NOTAS SOBRE A TEORIA MONETÁRIA E DO JURO DE MARX1
Eduardo Maldonado Filho2
1 - Introdução
O objetivo central desse artigo é o de apresentar, de uma forma breve, os elementos essenciais
da teoria monetária, do capital dinheiro e do capital de empréstimo de Marx. Pretendemos, em
especial, mostrar a riqueza analítica dessa teoria e a sua atualidade para a compreensão dos fenômenos
monetários contemporâneos.
Apesar de Marx ter dedicado muito tempo ao estudo e desenvolvimento da teoria monetária,
ela ficou inacabada. Mas existem elementos suficientes, na minha opinião, para utiliza-lá na análise dos
fenômenos monetários do capitalismo atual. Um dos aspectos mais importantes da teoria monetária de
Marx está na associação que ele desenvolve entre as formas do dinheiro e as funções que ele exerce3 .
Esse artigo está organizado da seguinte forma. Na próxima seção serão apresentadas as bases
da teoria marxiana do dinheiro. Um dos pontos centrais dessa exposição está em mostrar porque a
quantidade de dinheiro em circulação aparece como uma variável endógena na teoria de Marx. Na
seção 3 apresentaremos o circuito do capital e como que o dinheiro aparece como sendo uma das
formas de existência do capital. Mais ainda, indicaremos porque, no circuito do capital industrial, uma
parcela significativa do valor-capital existe, sempre, na forma de capital dinheiro. Esses fundos de
capital dinheiro se constituem nos principais componentes da oferta de capital de empréstimo. A seção
seguinte apresentará os elementos essenciais da teoria marxiana do capital de empréstimo e da origem
do juro. Na quinta seção, apresentaremos a análise realizada por Marx sobre os efeitos dos ciclos
econômicos sobre as variações dos preços e da quantidade de dinheiro que é necessária à esfera da
circulação de mercadorias. Nessa análise Marx demonstra que enquanto no circuito do rendimento
existe uma correlação positiva entre elevação dos preços e da quantidade de dinheiro em circulação, no
circuito do capital isso não tende a ocorrer. Ou seja, a elevação dos preços não tende a ser
acompanhada por um aumento na quantidade de dinheiro em circulação. Portanto, na análise de Marx
1
O presente artigo baseia-se na apresentação feita na Sessão Especial da ANPEC - A Crítica da Economia
Política Hoje: 130 Anos de O Capital, organizada por João Antonio de Paula do CEDEPLAR/UFMG.
2
Professor do Departamento de Economia e do Pós-graduação em Economia da UFRGS.
3
Ver Lapavitsas (1991).
1
a quantidade de dinheiro em circulação não só é uma variável endógena, mas também apresenta um
comportamento diferenciado, ao longo dos ciclos econômicos, nos circuitos do rendimento e do
capital. Assim, na nossa opinião, a teoria marxiana é muito mais rica e promissora do que aquela
apresentada pelo monetarismo.
2 - A Teoria Monetária de Marx: o dinheiro como dinheiro
Marx começa sua teoria monetária explicando a essência do dinheiro. Ele demonstra que a
dualidade intrínseca das mercadorias (valor de uso e valor), com o desenvolvimento das relações
mercantis, acaba necessariamente se diferenciando em mercadorias e dinheiro. Ou seja, a dualidade
interna das mercadorias acaba se expressando externamente como uma dicotomia entre mercadorias e
dinheiro4 . A mercadoria que acaba sendo destacada pelo mercado para exercer o papel de equivalente
geral (i.e., que aparece como sendo a forma independente do valor) se constituí na mercadoria
dinheiro. Assim, para Marx o dinheiro é, na sua essência, a forma independente do valor.
A partir dessa análise, Marx deriva as funções primárias que a mercadoria dinheiro exerce na
esfera da circulação de mercadorias.
A primeira função da mercadoria dinheiro é a de servir como medida do valor das mercadorias.
O dinheiro pode exercer essa função porque ele próprio, sendo também uma mercadoria, possui valor.
No entanto, para executar de forma adequada a função de medida do valor é preciso que seja definida
uma unidade de medida para o dinheiro, isto é, que seja estabelecido um padrão monetário. Como a
definição do padrão monetário é arbitrária ela acaba sendo regulada por lei. Por exemplo, a legislação
pode definir que o dinheiro metálico de determinado país seja definido pelo seguinte padrão monetário:
$1 = uma moeda de ouro de 31 gr. com 11/12 de fino. Uma vez definido o padrão monetário, as
mercadorias passam a expressar o seus respectivos valores em termos do padrão monetário, ou seja
através dos seus respectivos preços. Para Marx, a expressão do valor de uma mercadoria em termos
do padrão monetário (digamos, 1 camiseta vale $5) se constitui no preço da mercadoria.
Evidentemente que o estabelecimento do preço da mercadoria por parte do seu proprietário não requer
4
"A ampliação e aprofundamento históricos da troca desenvolve a antítese entre valor de uso e valor latente
na natureza da mercadoria. A necessidade de dar a essa antítese representação externa para a circulação leva a uma
forma independente do valor da mercadoria e não se detém nem descansa até tê-la alcançado definitivamente por
meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e em dinheiro." (Marx, 1983, p. 81).
2
a presença física da mercadoria dinheiro, essa é uma operação puramente contábil. Na função de
medida de valor, o dinheiro aparece apenas enquanto dinheiro contábil.
Mas cabe destacar, por exemplo, que uma redução no valor intrínseco da mercadoria dinheiro
(digamos, uma redução no tempo de trabalho socialmente necessário à produção de 31 gr. de ouro)
implicará, tudo o mais constante, numa elevação generalizada nos preços das mercadorias.
A segunda função primária do dinheiro é a de servir como meio de circulação. As mercadorias
são colocadas a venda com os seus preços já estabelecidos, cabendo agora ao dinheiro efetivar a
venda da mercadoria. Para executar a função de meio de circulação, a mercadoria dinheiro precisa
assumir a forma de dinheiro metálico (digamos, moedas de ouro cunhadas segundo o padrão
monetário). Na operação de compra e venda, o dinheiro passa das mãos do comprador para o
vendedor enquanto que o direito de propriedade da mercadoria é transferido para o comprador. O
dinheiro metálico ao executar essa operação de compra e venda funciona como meio de circulação.
Marx (1983, p. 110) define o dinheiro como dinheiro da seguinte forma: "a mercadoria que
funciona com medida do valor e também, corporalmente ou por intermédio de representantes, como
meio circulante, é dinheiro". A partir do desenvolvimento da categoria dinheiro como dinheiro, Marx
deriva três novas funções que o dinheiro executa na esfera da circulação, a saber: (a) entesouramento
ou reserva de valor; (b) meios de pagamento e (c) dinheiro mundial.
Em relação à questão da quantidade de dinheiro metálico (i.e., moedas de ouro cunhadas
segundo o padrão monetário) que é necessária para executar a função de meio de circulação, Marx
adota o ponto de vista da Banking School, ou seja essa quantidade de meio de circulação é
determinada endogenamente. Mais especificamente, a quantidade de meio de circulação que é
necessária para a realização das trocas no mercado é determinada pela soma dos preços das
mercadorias e pela velocidade média de circulação do dinheiro. Caso exista um excesso de moedas em
circulação, a velocidade de circulação da moeda diminui e a parcela de moedas que estiver excedente
será retirada da circulação (entesourada). No caso em que exista falta de meio circulante, haverá
elevação da velocidade de circulação das moedas e, se for necessário, parcela do dinheiro metálico
que está entesourada entrará em circulação. Portanto, para Marx, o ajuste da quantidade de meio de
circulação, no caso de dinheiro metálico, se dá pela constante variação do estoque de moedas que está
entesourado.
3
O processo inflacionário ocorrido nos séculos XVII e XVIII na Europa Ocidental serve para
ilustrar a diferença entre a teoria quantitativa da moeda e Marx. Para a primeira, o processo
inflacionário foi uma conseqüência do substancial aumento da quantidade de moedas de ouro e de prata
que entraram em circulação, como conseqüência do descobrimento das minas de metais preciosos nas
Américas. Portanto, a direção de causalidade foi do aumento da quantidade de dinheiro em circulação
para a elevação dos preços. Para Marx, por sua vez, a causa desse processo inflacionário está
associado ao fato de que as novas minas que foram descobertas nas Américas eram muito mais
produtivas e isso levou a uma queda do valor intrínseco do ouro e da prata. Com a queda do valor
intrínsecos dos metais preciosos, os preços das mercadorias (expresso em moedas de ouro ou de
prata) aumentaram. Essa elevação generalizada dos preços das mercadorias requereu, por sua vez, o
aumento na quantidade de meio de circulação. Portanto, para Marx, a direção de causalidade foi dos
preços (enquanto medida do valor) para a quantidade de meios de circulação. Em outras palavras, a
quantidade de meio de circulação é a variável endógena e o preço é a variável exógena.
Marx argumenta, no entanto, que o dinheiro metálico não é adequado para exercer a função de
meio de circulação. Isso se deve ao fato de que uma vez em circulação, o dinheiro metálico se desgasta
e, portanto, perde peso. Com isso, o peso real das moedas passa a ser, em geral, menor do que o seu
peso nominal, que é fixado pelo padrão monetário, o que implica que as moedas, enquanto meio de
circulação, deixam de representar um equivalente efetivo ao valor das mercadorias. Existe, assim, uma
tendência natural do processo de circulação de transformar o dinheiro metálico em um símbolo da
moeda estabelecida pelo padrão monetário. Para Marx. é essa dissociação entre o padrão nominal do
dinheiro metálico e o seu conteúdo real que explica porque a moeda, enquanto meio de circulação,
acaba sendo substituído pelo papel moeda emitido pelo Estado com curso forçado. Em outras
palavras, o papel moeda de curso forçado emitido pelo Estado surge da incapacidade do dinheiro
metálico de exercer, de forma adequada, a função de meio de circulação.
Para Marx, o papel-moeda emitido pelo Estado se constitui no meio de circulação por
excelência, mas ele apresenta um defeito importante: ele pertence apenas à esfera da circulação, pois
ele não possuí valor de uso fora da esfera da circulação.
"once the notes are in circulation it is impossible to drive them out, for the frontiers of the country limit
their movement, on the one hand, and on the other hand they lose all value, both use-value and
4
exchange value, outside the sphere of circulation. Apart from their function they are useless scraps of
paper" (Marx, 1976, p. 119).
Quando o meio de circulação é o papel moeda emitido pelo Estado, a teoria monetária de
Marx é formalmente similar à teoria quantitativa da moeda. Por exemplo, se o Estado realizar uma
emissão excessiva de papel-moeda, isso implicará numa elevação generalizada dos preços das
mercadorias. Portanto, a predição da teoria de Marx é igual à da teoria quantitativa da moeda. No
entanto, como argumenta Lapvitsas (1994, p. 450),
"despite formal similarities with the Quantity Theory, Marx did not argue that increases in fiat money
represented fresh money demand, other things being equal. Rapid fiat money inflation was instead as the
outcome of a blind, ineluctable process of re-adjusting the measurement of value ... Through inflation,
commodity circulation re-asserted its pre-eminence over the state's apparent ability to determine at will
the quantity of fiat money".
Vejamos agora o conceito de dinheiro crédito. Para Marx, da mesma forma que para a
Banking School, o dinheiro crédito é qualitativamente diferente do dinheiro metálico ou do papel moeda
com curso forçado emitido pelo Estado. Segundo Marx (1976, p. 116) "credit money belongs to a
more advanced stage of the social process of production and conforms to very different laws".
A introdução das relações de crédito entre compradores e vendedores de mercadorias faz com
que o dinheiro (papel moeda ou dinheiro metálico) assuma uma nova função, a saber: a de ser meio de
pagamento. Com a venda a crédito, vendedor entrega a mercadoria ao comprador e recebe um título
no qual este promete realizar o pagamento da dívida numa data futura. Quando, finalmente, o dinheiro é
utilizado para realizar o pagamento da dívida, a mercadoria já saiu da esfera da circulação - assim,
segundo Marx, o dinheiro aparece como sendo um meio de pagamento de uma dívida. O dinheiro
funciona agora, em primeiro lugar, como medida de valor para a determinação do preço da mercadoria
e, com a venda a crédito, o dinheiro aparece como meio de pagamento da dívida.
Os próprios títulos de crédito (letras de câmbio e notas promissórias) passam, por sua vez, a
circular, ainda que de uma forma limitada, como meio de circulação ou como meio de pagamento.
Esses títulos de crédito se constituem, assim, em formas rudimentares de dinheiro crédito. Na época de
Marx, a nota bancária é que se constituía numa das forma mais avançada de dinheiro crédito. De
acordo com Marx (1983, p. 110), "just as the true paper money arises out of the functions of money as
5
the circulating medium, so does credit money take root in the function of money as the means of
payment".
Um dos aspectos mais importantes do dinheiro crédito - e que o distingue do dinheiro enquanto
meio de circulação (seja na forma de papel moeda emitido pelo Estado com curso forçado, seja na
forma de dinheiro metálico) - se relaciona com o fato de que esse tipo de dinheiro está sujeito ao que a
Banking School chamava de "lei do refluxo". Enquanto o meio de circulação (moeda ou papel moeda)
se afasta continuamente do seu ponto de origem, o dinheiro crédito, por sua vez, tende a retornar ao
seu ponto de origem, isso ocorre quando os devedores pagam suas dívidas. Com isso, o dinheiro
crédito emitido anteriormente se extingue. Assim, em relação ao dinheiro crédito - que é emitido pelos
agentes econômicos privados, em especial pelos bancos, (e não pelo Estado) - não se coloca, em
geral, a questão do excesso de emissão. Enquanto a emissão excessiva do papel moeda pelo Estado
pode causar inflação, o mesmo não ocorre com o dinheiro crédito emitido pelos agentes privados,
principalmente pelos bancos, pois essa forma de dinheiro está submetida à lei do refluxo. Infelizmente,
Marx não nos deixou uma análise mais detalhada das "leis muito diferentes" que regulam a emissão e
circulação do dinheiro crédito.
A teoria monetária moderna não faz qualquer distinção entre as diferentes formas de dinheiro
que circulam na economia. Os diferentes tipos de dinheiro (depósitos, notas bancárias, moedas e títulos
de crédito) são consideradas como sendo iguais e sujeitas as mesmas leis. A análise de Marx
demonstra, por sua vez, que os meios de circulação (moedas e papel moeda) e o dinheiro crédito são
regulados por leis bastante diferentes. Portanto, essas formas de dinheiro devem ser mantidas em
agregados monetários separados.
3 - Dinheiro como Capital (Capital Dinheiro)
O dinheiro como capital apresenta a seguinte forma geral de circulação: D - M - D'. Aqui o
dinheiro (D) é adiantado na compra de mercadorias (M) que serão posteriormente vendidas,
obtendo-se nesse processo não só o retorno do dinheiro inicialmente adiantado (D), mas também a
mais-valia (? D); ou seja, D' = D + ? D. A premissa básica do capital é a existência da mercadoria
força de trabalho. O circuito do capital industrial é o único que gera e realiza a mais-valia. O circuito
completo do capital industrial é representado por Marx da seguinte forma:
6
D - M {MP, FT}... P ... M' - D'
O capital industrial, ao longo do seu circuito, assume, simultânea e sucessivamente, as formas
de capital dinheiro (D), capital produtivo 5 (P = MP e T) e de capital mercadoria (M'). A circulação do
capital industrial implica, por sua vez, que uma significativa parcela desse capital, em maior ou menor
grau, estará sempre sob a forma de capital dinheiro. Em outras palavras, a circulação do capital
industrial resulta na formação dos seguintes fundos de capital dinheiro:
(a) fundo de compras e pagamentos: o capital industrial total (por exemplo, uma empresa industrial)
precisa ter dinheiro em caixa para realizar as compras a vista e para pagar as compras realizadas a
crédito; por outro lado, a empresa está constantemente recebendo pagamentos das vendas a vista e a
crédito que foram realizadas. Portanto, uma parcela do capital industrial existirá sempre sob a forma de
capital dinheiro, com o objetivo de propiciar a realização das chamadas "operações técnicas de
pagamento e recebimento"6 .
(b) lucros retidos: parcela da mais-valia retida pelo capital industrial e que não atingiu ainda o tamanho
mínimo para ser colocada em operação por esse capital;
(c) fundo de amortização;
(d) capital adicional: parcela do capital industrial total que é necessária para garantir a continuidade do
processo de produção durante o período em que o valor-capital se encontra na esfera da circulação.
Portanto, uma parcela substancial do capital industrial existe sempre sob a forma de capital
dinheiro que está temporariamente entesourado. Evidentemente que esse capital dinheiro, ou parcela
dele, pode ser transferido, através do sistema financeiro, para outras empresas e, assim, retorna a
circular enquanto capital industrial.
O valor-capital que se encontra sob a forma de dinheiro (i.e., o capital dinheiro), só pode
executar funções monetárias (meio de circulação, meio de pagamento e reserva de valor). Portanto, o
que distingue o dinheiro como dinheiro do capital dinheiro é a seqüência do circuito percorrido pelo
5
A transformação do capital dinheiro em capital produtivo se dá através da compra, no mercado de bens e
serviços, dos meios de produção, MP, (matérias primas, matérias auxiliares e instrumentos de trabalho) e, no mercado
de trabalho, da força de trabalho, FT. Cabe ressaltar, em relação à compra da mercadoria FT, que apenas o seu valor
de uso - o trabalho (T) - é, de fato, adquirido pelo capitalista. Portanto, o capital produtivo é composto pelos meios de
produção (MP) e pelo trabalho (T), e não pela FT.
6
Cabe salientar que, segundo Marx, essas "operações técnicas de pagamento e recebimento" tendem a ser
assumidas pelos bancos.
7
valor. Se a seqüência do circuito for M - D - M esse dinheiro funciona apenas como dinheiro, mas se o
circuito percorrido for D - M ...P... M' - D' esse dinheiro funciona como capital dinheiro.
A distinção entre dinheiro como dinheiro e capital dinheiro, e a sua importância analítica, pode
ser demonstrada através do seguinte exemplo. Vamos supor que num dado mercado ocorra uma queda
significativa nos preços das mercadorias ali transacionadas e que essa queda de preço aconteça antes
que a empresa "A" tenha realizado a venda de parcela significativa de seu estoque de capital
mercadoria. Por conseqüência disso, o capital dinheiro obtido pela empresa "A" com a venda do seu
capital mercadoria não será suficiente, tudo o mais constante, para que esta empresa continue a operar
na mesma escala de produção. Neste caso, as dificuldades enfrentadas por esta empresa para
continuar operando na mesma escala de produção estarão relacionadas com a falta de capital dinheiro
e não com a falta de dinheiro como dinheiro. Assim, um aumento da quantidade de meios de circulação
não resolverá o problema da falta de (capital) dinheiro enfrentada por esta empresa. A manutenção da
escala de produção, nesses caso, só seria possível através da obtenção de capital dinheiro emprestado
(i.e., capital de empréstimo).
4 - O Capital de Empréstimo e o Juro
Conforme foi visto acima, uma parcela significativa do capital industrial existe sob a forma de
capital dinheiro que fica, em maior ou menor grau, temporariamente entesourado. Esse capital dinheiro
pode, então, ser emprestado, principalmente através do sistema financeiro, para outros capitalistas.
Marx argumenta que não só o capital dinheiro, mas também o dinheiro como dinheiro7 pode ser
transformado em capital de empréstimo. Ou seja, o dinheiro é que adquire um valor de uso adicional no
capitalismo: a capacidade de funcionar como capital. Em outras palavras, o dinheiro, na sua capacidade
de capital potencial (i.e., como um meio de produzir lucro), se torna uma mercadoria. Evidentemente
que o empréstimo do dinheiro só é realizado mediante o pagamento de uma remuneração pelo seu uso
- o juro.
Segundo a teoria de Marx, o juro corresponde a uma parcela da mais-valia que é gerada pela
operação desse capital de empréstimo no circuito do capital industrial. Ou seja, uma parcela da
mais-valia gerada pelo capital emprestado é apropriada pelo capitalista industrial sob a forma de lucro
7
Os salários dos trabalhadores, se forem depositado nos bancos, podem então funcionar como capital de
empréstimo.
8
de empresa e a outra parcela é apropriada pelo proprietário do capital de empréstimo (o capitalista
monetário) sob a forma de juro. O lucro de empresa aparece, assim, como sendo a remuneração pelas
atividades (funções) que o capitalista executa com o capital no processo de reprodução, enquanto que
o juro aparece como a remuneração pela propriedade do capital, independentemente do processo de
reprodução. Essa divisão da mais-valia em juro e lucro de empresa acaba por se consolidar de tal
forma que mesmo o capitalista que trabalha apenas com capital próprio também faz essa distinção.
Em relação à determinação da taxa de juro, Marx argumenta que não existe uma taxa de juros
natural. Ainda que o juro seja regulado pela taxa média de lucro, a taxa de juros é determinada apenas
pela oferta e demanda de capital de empréstimo. Nos períodos em que houver um excesso relativo de
oferta de capital de empréstimo (por exemplo, no início da fase de recuperação da economia), as taxas
de juros serão baixas, tendendo a aumentar nos períodos de auge econômico e de crise.
5 - O Ciclo Econômico e as Variações na Quantidade de Meios de Circulação
Para Marx, as distinções entre dinheiro como dinheiro, capital dinheiro e o capital de
empréstimo (i.e., capital portador de juros) são muito importantes do ponto de vista analítico. Por
exemplo, durante um período de crise econômica ocorre, em geral, uma forte demanda por dinheiro;
uma das questão que se coloca, dentro da teoria de Marx, é a seguinte: essa é uma demanda por
dinheiro como dinheiro (i.e., por meio de circulação ou meio de pagamentos), por capital dinheiro ou
por capital de empréstimo? Na teoria monetária moderna essa questão não se coloca, pois essas
distinções em relação ao dinheiro e ao capital não são consideradas. Evidentemente que não será
possível desenvolver uma análise mais aprofundada dessas questões nesse artigo. Nosso objetivo aqui
se limita a mostrar como a análise de Marx apresenta uma compreensão bastante diferenciada em
relação ao seguinte tópico: qual a quantidade de dinheiro como dinheiro (meio de circulação) que é
necessária à esfera da circulação ao longo do ciclo econômico8 .
A análise de Marx parte, em primeiro lugar, da diferenciação do processo de reprodução em
dois circuitos distintos, mas que são intrinsecamente relacionados, a saber: o circuito de rendimento e o
circuito do capital. No circuito do rendimento, o dinheiro é utilizado na compra de bens e serviços de
consumo individual por trabalhadores e capitalista, portanto o dispêndio realizado representa a forma
8
Ver Marx (1977b) capítulo 28.
9
monetária do rendimento. Por outro lado, no circuito do capital, o dinheiro que é utilizado nas relações
de compra e venda entre empresas serve para mediar a transferência de capital; portanto esse dinheiro
se constitui na forma monetária do capital (i.e., capital dinheiro).
Para Marx, se constitui em um equívoco transformar a distinção do dinheiro que realiza o
rendimento e o dinheiro que é utilizado para realizar a transferência de capital em uma distinção entre
meio de circulação e capital. Se o dinheiro aparece como a forma monetária do rendimento, ele
funciona predominantemente como meio de circulação. Por outro lado, se o dinheiro aparece como a
forma monetária do capital, ele funciona principalmente com meio de pagamento. No entanto, a
distinção entre dinheiro como meio de pagamento e o dinheiro como meio de circulação é uma
distinção que existe dentro da própria categoria dinheiro, ela não se constitui em uma distinção entre
dinheiro e capital.
Em relação ao dinheiro como dinheiro, é preciso se distinguir o meio de circulação emitido pelo
Estado (papel moeda de curso forçado) do dinheiro crédito que é criado pelos agentes econômicos
privados, principalmente pelos bancos. Por exemplo, a venda do capital mercadoria a crédito
corresponde à transformação do capital mercadoria em dinheiro crédito (digamos, uma letra de
câmbio). O desconto dessa letra de câmbio no banco por depósito bancário consiste na transformação
do dinheiro crédito original (letra de câmbio) em uma forma diferente de dinheiro crédito (depósito
bancário). Se essa desconto da letra de câmbio for realizada contra papel moeda, teremos então a
transformação de dinheiro crédito em meio de circulação.
O dinheiro, tanto se servir para realizar o rendimento (i.e., compra bens de consumo por parte
de capitalistas e trabalhadores) quanto se servir para transferir capital (compra e venda de capital
mercadoria entre capitalistas) , pode funcionar tanto como meio de compra ou meio de pagamento. O
fato de representar rendimento ou capital para aquele que paga ou para o que recebe nada altera nessa
análise.
Vejamos agora a análise de Marx sobre o efeito dos ciclos econômicos sobre os preços das
mercadorias e sobre as variações na quantidade de meio de circulação.
Na fase de expansão do ciclo econômico, o rápido crescimento leva o sistema econômico a
uma situação próxima ao pleno emprego; com isso a massa de salário (tanto por decorrência da
elevação das taxas de salário quanto do aumento do número de trabalhadores empregados) e o
10
montante de rendimento dos capitalistas crescem substancialmente. O resultado disso é uma elevação
significativa do consumo individual. O dinamismo do processo de reprodução do capital e a significativa
expansão do consumo individual causam a elevação dos preços das mercadorias. Essa elevação dos
preços, juntamente com o acréscimo das quantidades transacionadas no mercado, leva, por sua vez, a
um aumento na quantidade de meio de circulação (ainda que não na mesma proporção do crescimento
da soma dos preços, pois a velocidade de circulação do dinheiro também se eleva). Portanto, ao
contrário da teoria quantitativa da moeda, na análise de Marx o aumento na quantidade de meio de
circulação aparece como uma conseqüência da elevação dos preços.
No entanto, essa análise global esconde o comportamento diferenciado que a quantidade de
meio de circulação experimenta nos circuitos do capital e do rendimento. Vejamos, portanto, a análise
desagregada (i.e., em termos dos circuitos do capital e do rendimento) realizada por Marx sobre esse
questão.
No circuito do rendimento, o crescimento do consumo individual, pelas razões expostas acima,
requer uma maior quantidade de meios de circulação9 para realizar as operações de compra e venda.
Portanto, durante a fase final da expansão econômica observa-se um aumento simultâneo dos preços e
da quantidade de meio de circulação.
Em relação ao circuito do capital, Marx argumenta que nos períodos de auge econômico o
crédito é fácil e elástico. Assim, as transações entre capitalistas se fazem, principalmente, através da
utilização das diferentes formas de dinheiro crédito. Por conseguinte, na fase expansiva do ciclo, a
quantidade de meio de circulação que é necessária a esta esfera apresenta uma diminuição relativa. Ou
seja, uma maior massa de pagamentos é realizada sem intervenção do papel moeda. Portanto, nesta
esfera tem-se que a elevação dos preços está associada à uma redução relativa dos meios de
circulação.
9
Nessa análise Marx parte da hipótese, claramente pertinente para sua época, de que, no circuito do
rendimento, o dinheiro funciona principalmente como meio de circulação e apenas subsidiariamente como meio de
pagamento. Ou seja, a moeda crédito joga um papel secundário no circuito do rendimento. No circuito do capital, por
sua vez, o dinheiro crédito predomina em relação ao meio de circulação. Em outras palavras, no circuito do
rendimento a forma predominante do dinheiro que nela circula é o papel moeda, enquanto que no circuito do capital
são as diferentes formas de dinheiro crédito que predominam.
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Considerando-se os dois circuitos em conjunto, a quantidade de meio de circulação aumenta
nos períodos de auge, ainda que essa quantidade, no circuito do capital, apresente uma redução relativa
e no circuito do rendimento apresente uma forte expansão.
Na fase de recessão, o montante de capital em operação declina, o desemprego aumenta e o
circuito do rendimento se contrai e, como conseqüência desse eventos, os preços e salários diminuem.
No circuito do rendimento, a quantidade de dinheiro requerida pela esfera da circulação também
diminui. Portanto, nesse circuito a queda dos preços está associada com a redução da quantidade de
dinheiro em circulação, mas a direção de causalidade vai dos preços para a quantidade de meio de
circulação.
Em relação ao circuito do capital, Marx argumenta que a recessão provoca uma diminuição do
crédito e, por conseguinte, cresce a necessidade de meio de circulação para realizar os pagamentos.
Ou seja, nessas circunstâncias de escassez de crédito, é evidente que os capitalistas precisarão de mais
dinheiro (i.e., meios de circulação) do que antes, mas isso não implica, segundo Marx, que a demanda
deles por capital tenha aumentado; o que aumentou foi a demanda pelo capital sob a forma meio de
circulação. Nesse caso, tem-se que os preços estão caindo mas a quantidade de meios de circulação
que se faz necessária a este circuito aumenta.
Para Marx, não é a forte demanda por empréstimos que distingue os períodos de recessão dos
períodos de prosperidade, mas sim a facilidade com que essa demanda é satisfeita.
A análise de Marx demostra que nos períodos de prosperidade, a demanda por meios de
circulação no circuito do rendimento é dominante, enquanto nos períodos de recessão, é a demanda
por meios de circulação entre os capitalistas (i.e., no circuito do capital) que domina. No período
recessivo, a demanda por meios de circulação no circuito do rendimento diminui enquanto que no
circuito do capital essa demanda aumenta. Para Marx, nas crises os capitalistas estão com excesso de
capital (principalmente de capital mercadoria que não estão conseguindo vender); o que eles estão
precisando é de meios de circulação (i.e., "liquidez") para honrar seus compromissos
6 - Comentários Finais
Procuramos mostrar nesse artigo a complexidade e a riqueza da teoria monetária e do capital
de Marx. Como vimos acima, na teoria marxiana o dinheiro aparece não só como sendo simplesmente
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dinheiro (ou seja, como sendo a forma independente do valor), mas também aparece como sendo uma
das formas assumidas pelo capital industrial (i.e., capital dinheiro) e também como capital de
empréstimo no mercado monetário. Portanto, a distinção das formas e das funções que o dinheiro
assume é bastante complexa e de fundamental importância para a análise do funcionamento do
capitalismo.
Um dos pontos que salientamos nesse nosso artigo se refere à posição anti-quantativista de
Marx. Foi visto que, em geral, a causalidade vai da flutuação nos preços para a variação na quantidade
de meio de circulação. Além disso, o dinheiro crédito aparece como tendo um papel de crescente
importância, conforme o sistema financeiro evolui.
Finalmente, apesar de não ter tido tempo para tratar desse tema nesta apresentação, gostaria
de salientar à importância que o conceito de capital fictício tem na análise marxiana das crises
financeiras e sua aplicabilidade para a compreensão da atual crise que atinge os países asiáticos e que
ameaça desencadear uma nova grande crise mundial.
BIBLIOGRAFIA
C. (1991). "The Theory of Credit Money: A Structural Analysis." Science & Society, vol. 55, no. 3,
Fall, pp. 291-322.
Lapavitsas, C. (1994). "The Banking School and the Monetary Thought of Karl Marx." Cambridge
Journal of Economics, 18, pp. 447-461.
Marx, K. (1976). A Contribution to the Critique of Political Economy. New York: International
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Marx, K. (1983). O Capital, Livro 1, São Paulo, Abril Cultural (Os Economistas).
Marx, K. (1977a). Capital: a critique of political economy, Vol. II. New York: International
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Marx, K. (1977b). Capital: a critique of political economy, Vol. III. New York: International
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