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A família e a casa: Papai ainda sabe tudo?

2008

O artigo trata da relacao entre a familia e a casa no contexto brasileiro, da colonia aos dias atuais, tendo por foco a redefinicao de padroes espaciais para atender a demandas da familia contemporânea, em particular o abrigo do idoso no ambiente domestico familiar. Acredita-se que o paradigma setorial, base da organizacao da casa moderna, devera ser superado, tornando fronteiras mais tenues, garantindo uma maior integracao entre os moradores e entre moradores e visitantes. Palavras-chave: Casa; Familia; Espaco domestico; Idoso.

1. Este artigo toma por base investigação em andamento para o desenvolvimento de tese de doutoramento do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) de Cristiana Griz, sob orientação de Luiz Amorim e Claudia Loureiro e no contexto das pesquisas “O morar coletivo: um estudo analítico e proposicional de programas e tipos de edifícios habitacionais multifamiliares” e “O espaço da arquitetura como objeto de interesse patrimonial” desenvolvidas no MDU/UFPE, sob a coordenação dos professores Luiz Amorim e Claudia Loureiro, com o apoio do CNPq. 2. Arquiteta pela UFPE, mestre em Desenvolvimento Urbano/UFPE, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano – MDU/ UFPE, professora do Departamento de Expressão Gráfica da UFPE. 3. Arquiteto pela UFPE, PhD pela University College London, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. 4. Arquiteta pela UFPE, mestre e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 28 A FAMÍLIA E A CASA: PAPAI AINDA SABE TUDO?1 THE FAMILY AND THE HOUSE: DOES FATHER STILL KNOW BEST? Cristiana Griz2 Luiz Manuel do Eirado Amorim3 Claudia Loureiro4 Resumo O artigo trata da relação entre a família e a casa no contexto brasileiro, da colônia aos dias atuais, tendo por foco a redefinição de padrões espaciais para atender a demandas da família contemporânea, em particular o abrigo do idoso no ambiente doméstico familiar. Acredita-se que o paradigma setorial, base da organização da casa moderna, deverá ser superado, tornando fronteiras mais tênues, garantindo uma maior integração entre os moradores e entre moradores e visitantes. Palavras-chave: Casa; Família; Espaço doméstico; Idoso. Abstract This article deals with the relationship between the family and the house in Brazil, from the colonial period to the present. It focuses on a redefinition of spatial patterns in order to meet the contemporary family’s demands, in particular their need to shelter elderly people within the home environment. It is believed that the sectors paradigm, which is the basis of modern house organization, must be replaced, so as to render boundaries fuzzier and guarantee a closer integration between household members, as well as between them and visitors. Key words: House; Family; Domestic space; Elderly people. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 29 O artigo discute as alterações na organização do espaço doméstico contemporâneo, seguindo mudanças sociais atuais e seu reflexo na composição e nas relações familiares. Argumenta que os paradigmas que fundamentaram a organização da casa moderna – o ordenamento de atividades e categorias de usuários em setores domésticos, adequado às expectativas da família – devem ser superados para tornar as fronteiras setoriais mais tênues e garantir uma maior integração entre os moradores e visitantes. O artigo analisa o ambiente doméstico considerando três dimensões – a íntima, expressão da individualidade dos moradores; a familiar, locus das relações de vínculos e de domesticidade, e, por fim, a dimensão pública, aquela da interação entre moradores e visitantes. Procura observar o espaço doméstico segundo uma linha de tempo para entender como a inter-relação entre tais dimensões, atendendo a demandas sociais, culturais e econômicas, dá lugar a distintas configurações, governadas por complexas convenções sobre o que cada espaço deve ser, como se conectam e são sequenciados, e que atividades se desenvolvem privativa e coletivamente. A questão se coloca hoje de forma crucial, dado que o ambiente doméstico deve absorver demandas atuais decorrentes de eventos nunca antes experienciados de forma tão marcante, tais como o rearranjo familiar, redefinindo os papéis no âmbito doméstico e público, o acesso à tecnologia avançada, com novos aparatos de comunicação, lazer e eletrodomésticos, assim como uma nova configuração da pirâmide populacional, na qual se destacam ao menos dois fenômenos significativos – uma maior expectativa de vida e a diminuição da taxa de natalidade e do tamanho da família. Os efeitos desses eventos geram demandas em todos os âmbitos da vida, das políticas públicas ao universo familiar, sendo que a casa, diante de tais mudanças, consubstanciase como a menor unidade a refleti-las. De fato, a composição familiar vem se redefinindo, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, com o fenômeno da geração do baby-boom, e uma maior informalidade nas relações individuais, sejam elas no ambiente público ou privado. Novas estruturas familiares e novos personagens passam a compor o grupo doméstico – pais separados com filhos de diferentes uniões, casais sem filhos, casais de mesmo sexo, solteiros, acolhimento de idosos etc. Segundo Aghassian e Augé (1973), essas variações na composição do grupo correspondem às etapas do ciclo de desenvolvimento da família, com efeitos sobre o número de relacionamentos e, por conseguinte, sobre os princípios de organização espacial da casa. São também fonte de tensões e negociações no ambiente doméstico. Diversos arranjos familiares coexistem em tempo e lugar, mas a predominância de determinado arranjo ou a imposição por determinado grupo social orienta padrões de comportamento e estruturas familiares e domésticas ideais. Em especial, com relação à população mais velha que integra esse grupo doméstico, ao contrário de outros países, a família brasileira não vê com bons olhos a transferência de 30 Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 5. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia sugeriu a adoção da denominação “Instituição de Longa Permanência para Idoso” (ILPI). 6. Projeções indicam que em 2025 o Brasil será a sexta maior população de idosos do mundo, sendo que atualmente esse grupo representa 8% da população (IBGE, 2007). 7. Como expresso na Constituição Federal de 1988 e reforçado na Política Nacional do Idoso de 1994 e no Estatuto do Idoso de 2003. 8. Por atitudes deve-se entender não as variações psicológicas e individuais do comportamento, mas o conjunto dos comportamentos socialmente prescritos, que caracterizam as relações entre diferentes classes de consanguíneos e parentes por afinidade (AGHASSIAN; AUGÉ, 1973). 9. “Grupo social que compreende, no mínimo, um homem e uma mulher unidos pelos laços socialmente reconhecidos do casamento e um ou vários filhos biológicos ou adotados” (AGHASSIAN; AUGÉ, 1973, p. 49). 10. A noção de profundidade está relacionada à propriedade de acessibilidade e é empregada no sentido topológico e não geométrico ou métrico, que se expressa pela noção de continuidade. A profundidade (topológica) de um espaço a outro no sistema espacial é medida pelo número de espaços que intervêm na rota de um a outro. Um espaço que tem uma relação direta de acessibilidade com relação a outro dista deste um “passo”. Se entre os dois espaços considerados há a intermediação de um ou mais espaços, a distância topológica destes ou sua profundidade em relação ao ponto de partida expressa o número de intermediações. 11. O espaço selecionado para efeito desta análise foi sempre aquele que representa o espaço da individualidade. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 seus parentes para instituições de longa permanência para idosos (ILPI).5 A decisão pela internação do idoso é vista como um ato de abandono, além do fato de que tais instituições são vistas como um lugar de exclusão e isolamento ou, simplesmente, “um lugar para morrer”. Uma consequência dessa atitude é a baixa oferta de instituições de longa permanência e a sua baixa utilização no Brasil. Esse preconceito da família brasileira em relação às instituições, somado à expectativa de aumento do envelhecimento populacional, fará com que os idosos formem um significante grupo de potenciais moradores e usuários dos espaços domésticos privados.6 Soma-se, ainda, o fato de a atual legislação brasileira estabelecer que a família é responsável pelo cuidado do idoso.7 Isso justifica, de certa forma, o fato de que 90% dos idosos brasileiros morem em casas particulares (CAMARANO, 2007). Dessa forma, o envelhecimento populacional acaba por afetar significativamente a maneira de viver da família, independentemente da idade e composição de seus membros. A casa é vista como o lugar próprio de um indivíduo (simboliza sua identidade) e sua família, onde se tem privacidade, proteção e isolamento do mundo exterior. O modelo das relações familiares é base para o ordenamento das relações, atitudes8 e comportamentos, e, consequentemente, os princípios de organização espacial da casa. A sociedade molda a imagem da casa através dos tempos à medida que muda a estrutura de valores sociais, culturais, econômicos etc. Mudanças na estrutura de valores têm como consequência mudanças nos elementos programáticos e estruturais da casa (HANSON; HILLIER, 1982; LAWRENCE, 1997/1990; HANSON, 1998; KENT, 1997/1990). O paradigma projetual da casa é o modelo familiar. Esse modelo vem se modificando a partir da revolução industrial e emergência de uma burguesia urbana. A família nuclear9 começa a emergir no século XIX, quando a moradia sob um mesmo teto de gerações de membros da família se torna menos comum, sendo o espaço doméstico restrito ao pai, mãe e filhos e, nas famílias mais abastadas, alguns serviçais (TOSH, 1999). A relação família versus casa, neste artigo, é observada no contexto atual da multiplicidade de arranjos familiares e do envelhecimento populacional a partir da relação entre padrões espaciais e padrões familiares. Para a análise dos padrões espaciais adotou-se uma metodologia simplificada, baseada nas técnicas propostas pela sintaxe espacial (HILLIER; HANSON, 1984), observando-se a profundidade10 do espaço-referência11 em relação aos demais componentes do sistema, com vistas a investigar os campos potenciais de usos/atividades e de relações entre pessoas. Os campos potenciais são identificados através dos elementos que dividem e conectam espaços, podendo decorrer de barreiras físicas – paredes, por exemplo, ou da colocação de mobiliário e objetos, ou ainda de reentrâncias ou saliências no perímetro do ambiente (ZEISEL, 1995). O potencial para uso, independentemente das maneiras pelas quais campos são 31 criados, é relacionado à sensação de inclusão – porção de espaço que possibilita a copresença e a cociência – ou seja, onde atores estão presentes e sob exposição visual. A porção de espaço que suporta tal sensação é caracterizada por convexidade – um espaço convexo. Do ponto de vista matemático, um espaço convexo fica definido quando a linha que ligar dois pontos em seu perímetro esteja totalmente contida por este. Dessa forma, pode-se descrever o leiaute da edificação por uma representação abstrata dos campos de ação, identificando-se os constituintes espaciais do plano e seus padrões de conexões com espaços adjacentes e permeáveis, sob a forma de espaços convexos – ou seja, a maior unidade de espaço totalmente visível pelo ocupante de qualquer de suas partes. O conjunto de espaços convexos, e suas relações de conexão, conformam um mapa convexo e uma estrutura de permeabilidade. Para efeitos da análise apresentada neste artigo, adotou-se como critério englobar em um só espaço convexo os subcomponentes espaciais, tais como banheiros en suite, despensas, closets. A análise foi desenvolvida considerando somente as relações interiores. Dessa forma, privilegia-se apenas a organização interior, e as relações internas entre organização social e organização espacial. Duas técnicas foram adotadas. Na primeira, tendo como base o mapa convexo e de permeabilidade, a profundidade de cada campo de ação foi associada a uma escala de cinza, em ordem de profundidade, do mais claro – mais raso, ao mais escuro – mais profundo. Na segunda, as relações de profundidade são exploradas através do grafo justificado de permeabilidade, no qual cada convexo é representado por um nó e a relação de permeabilidade, por uma linha. Nesse grafo, o espaço de referência representa a raiz, e todos os demais são alinhados acima dele. Aqueles que têm uma relação direta de acessibilidade são colocados num nível acima (distando um passo). Os espaços subsequentes são então colocados acima desses últimos e assim por diante (ver Figura 1). O argumento será desenvolvido tomando como referência algumas composições do grupo familiar, aqui denominados (1) família patriarcal, (2) família moderna e (3) família contemporânea. Tomando como base esses arranjos familiares, é possível estabelecer os atributos espaciais que dão suporte à vida doméstica, tais como: a) isolamento; b) integração; c) permeabilidade. Tais atributos são definidos, do ponto de vista espacial, por meio da propriedade de acessibilidade, que estrutura as estratégias projetivas para garantir os atributos que comandam a interação entre moradores e visitantes. A casa e a família patriarcal A sociedade brasileira colonial é profundamente marcada pelo patriarcalismo. Segundo Scott (2003, apud GARCIA, 2003), o patriarcalismo é um termo único que sintetiza a articulação entre três hierarquias diferentes de poder: gênero, geração e classe, sendo, assim, o retrato da desigualdade, 32 Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 nesse caso, de atitudes e comportamentos entre os membros da família. A figura do pai, o chefe da família patriarcal, é a que prevalece e a que dita as regras de comportamento dos demais membros familiares, inclusive as regras do casamento – a escolha do cônjuge passa pelo crivo do pai. Segundo Figueira (1987, apud GARCIA, 2003), essa seria uma das características da família hierárquica, onde a identidade do sujeito é posicional, ou seja, todos tendem a ser definidos a partir de sua posição, sexo e idade. Nesse tipo familiar, observa-se uma clara distinção dos papéis sociais masculino e feminino, “o instrumental destinado ao homem e o expressivo, à mulher” (GARCIA, 2003, p. 23), que garantiam o funcionamento do sistema. Ou seja, o homem é educado para ser forte, rude e provedor, voltado para o mundo do trabalho, e a mulher, para ser passiva, frágil e delicada, voltada para o mundo doméstico, os cuidados dos filhos e dos idosos. A organização dos espaços e atividades da casa onde vive a família patriarcal se estrutura em torno de pares binários, mantendo a mesma intensidade na relação entre cada atributo binário: público x privado, masculino x feminino, frente x fundo, visitante x morador, lazer x trabalho, coletividade x privacidade/intimidade. Figura 1t$BTBUÏSSFBOB3VBEB (MØSJB  3FDJGF1MBOUBCBJYB  acima. Análise espacial, abaixo. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 O sobrado colonial, por exemplo, revela atributos sociais e espaciais congruentes com o regime patriarcal (suas regras sociais e de comportamento) predominante na sociedade colonial. Assim os visitantes eram recebidos e conduzidos a salas reservadas para esse fim, localizadas na face pública da casa, na frente, onde também ficavam à mostra imagens da família e objetos que simbolizavam a “vida ideal” que viviam. Como a tipologia do sobrado colonial brasileiro era formada por uma edificação estreita e comprida, a sala de 33 visita aproveitava as aberturas da rua, ficando as dos fundos para a iluminação dos ambientes de permanência da família (mulheres, crianças, idosos) e dos locais das atividades domésticas (cozinhas e serviços). Assim, os espaços onde aconteciam as atividades domésticas diárias (espaços de uso comum dos membros da família) e os espaços para receber visitas eram isolados em diferentes territórios da casa (ver Figura 1). Essa separação era uma maneira de reforçar a privacidade da família, ao mesmo tempo em que permitia o controle do patriarca sobre os outros membros da casa (AMORIM, 2001). Essas características ficam evidentes inclusive em residências térreas, como pode ser visto na Figura 1. A alcova principal, usualmente ocupada pelo casal, é contígua à sala de visitas e ao corredor privativo, de modo a garantir o adequado controle e supervisão dos universos familiar e público. As estratégias espaciais de isolamento entre as referidas esferas garantem que a segunda alcova, ocupada pela prole, seja das mais profundas. É nesse conjunto de espaços dedicados ao cotidiano da família que o pátrio poder é exercido e os indivíduos se encontram subjugados aos seus interesses. A casa e a família moderna Uma das primeiras imagens do que seria a “casa ideal” para a família moderna no mundo ocidental é a casa vitoriana (HEPWORTH, 1999). No período vitoriano,12 a casa era tida como o lugar onde se materializava uma “vida ideal”: “Um lar alegre, com os moradores trabalhando durante o dia, a mesa cheia e a família reunida” (HEPWORTH, 1999, p. 11). Proporcionando privacidade, segurança e sobretudo respeitabilidade, a imagem da “casa ideal” é um mediador essencial entre o mundo doméstico e o mundo público, sendo, assim, não somente um símbolo de sucesso nessas duas esferas, mas também do esforço de alcançar respeitabilidade e normalidade por parte de seus residentes. A família, na Inglaterra dos oitocentos, constituía uma importante instituição e, por extensão, a casa. A separação entre os domínios público e privado – separação entre o trabalho e a vida familiar – intensifica-se na medida em que o tempo do homem é dedicado aos negócios e ao mundo público, enquanto à mulher cabem a gestão das atividades domésticas e a criação dos filhos. A casa, o locus da vida emocional, torna-se central à idéia de masculinidade, dado que era o símbolo do sucesso do homem, figura dominante na família (TOSH, 1999). A organização da casa, portanto, além de baseada nas demandas das esferas pública e privada, é também baseada em gênero – os espaços de domínio do chefe, abertos à observação pública, e os espaços de domínio da mulher, invisíveis aos olhos de outros. Os primeiros localizam-se na frente da casa – representando a face pública dela, com uma entrada formal e finamente decorada. Os segundos, a esfera doméstica propriamente dita, localizados na parte de trás, representam o domínio dos subordinados – a mulher, crianças e serviçais. 34 12. O termo “vitoriano” deriva do nome EB3BJOIB7JUØSJB  NBT ainda hoje faz referência a uma série de atitudes e valores cuja influência vai além da Inglaterra e dos limites do TÏDVMP9*9 )&18035)   Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 Além disso, a casa se estrutura em setores sociofuncionais distintos. De acordo com Kerr, a casa do gentleman britânico vitoriano deveria ser dividida em dois departamentos – o da família e o dos serventes (KERR, 1864, p. 70), porque constituem diferentes comunidades e cada classe tem o direito ao isolamento. Independentemente de classe social, quanto mais importante a família, maior será o isolamento entre setores, ou departamentos, como o autor prefere chamar. Kerr chama a atenção para a necessidade de evitar encontros não programados entre habitantes, visitantes e serventes e, para tanto, propõe o uso de corredores e escadas independentes (KERR, 1864). A Figura 2 ilustra a imagem dessa casa ideal. A Figura 3 apresenta a análise do sistema espacial. A entrada localizase sempre na frente, assim como a sala de visitas – o parlour, local reservado para a interação entre moradores e visitantes. Frequentar essa área seria permitido apenas aos habitantes educados, sendo ela uma área social submetida à vigilância constante ditada pelas regras de conduta moral, o que era essencial para o sucesso do seu funcionamento (HEPWORTH, 1999). Serventes, pessoas com debilidades físicas ou mentais, crianças e idosos deveriam estar em áreas segregadas, nos fundos, cuidadosamente escondidas da visão pública. Para permitir o acesso a áreas da casa localizadas no pavimento superior, a escada de serviço garantiria a manutenção de tal segregação. Figura 2tSuburban dream house, 1887. Fonte: http://www.victorianstation. com/hpsuburban.htm, acessado em 22 mai. 2008 Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 35 No entanto, a casa vitoriana não pode ser definida apenas por meio da imagem de vida ideal, posto ser também o lugar onde a morte era esperada – esse aspecto é tema constante da arte vitoriana, sendo imagens de morte temas da pintura e literatura. Porém, nesse círculo social, cenas de morte eram assuntos privados, limitados a poucos membros da família, enfermeiras, serventes e doutores (HEPWORTH, 1999, p. 18). O sick-room, espaço destinado a pessoas que necessitavam de cuidados especiais (portadores de alguma debilidade permanente ou passageira, idosos etc.) era o único “espaço privado” que, por vezes, podia aparecer na imagem da “casa ideal”, pois mostrava a afeição, a organização e o conforto que a família proporcionava aos seus membros, sendo também o espaço onde um indivíduo poderia refugiar-se das demandas da vida em família e ser ele mesmo (HEPWORTH, 1999, p. 18). A existência de um espaço acessível à sociedade, porém destinado a imagens negativas de uma “vida ideal”, devia-se ao fato de que os moradores que o utilizavam necessitavam de constantes visitas de pessoas que não faziam parte da rotina da vida doméstica. Portanto, esses espaços deveriam ficar mais perto da parte pública, para não haver invasão da privacidade necessária aos espaços mais íntimos da família. Figura 3tSuburban dream house, 1887 – análise da estrutura espacial. Assim, como sugere Hepworth (1999), existia uma tensão entre a imagem idealizada da casa, mostrada à sociedade através da sua parte pública, e a prática das atividades diárias da vida familiar, que aconteciam na sua parte privada. Ou seja, “a casa vitoriana pode ser vista, na sua versão ideal, como um ambiente privado controlado, cujos limites, ainda mais controlados, tinham que estabelecer e manter uma congruência entre a aparência e a realidade” (HEPWORTH, 1999, p. 29). O problema da casa ideal também foi objeto do interesse de Viollet-le-Duc a partir de suas reflexões sobre as necessárias alterações na organização do espaço doméstico com as transformações na sociedade francesa pós-revolução. O autor argumenta que, na sociedade aristocrática, as profundas diferenças de classe e a inércia social faziam com que o 36 Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 cotidiano transcorresse sem o medo de que subordinados esquecessem as distâncias sociais que os separavam. Em contraste, na sociedade democrática, as classes sociais poderiam ser superadas, e por essa razão, recomenda-se que o dono da casa seja protegido da intrusão de estranhos e serventes (HEARN, 1995). Por isso, os ambientes de receber deveriam estar localizados no térreo, enquanto a família no primeiro andar, sendo os sistemas de circulação independentes um aspecto fundamental para o adequado funcionamento da casa. A casa e a família moderna no Brasil A partir da segunda metade do século XX, a ideologia da família começa a sofrer mudanças importantes, com o declínio do poder patriarcal e a inserção das mulheres no mercado de trabalho remunerado, dando lugar a um modelo mais democrático de relações. Essa família é retratada por alguns autores (MELO; NOVAIS, 1998; MADIGAN; MUNRO, 1999, p. 63; GARCIA, 2003) como um grupo que se apoia mutuamente e o casamento, como uma associação de iguais: “O amor romântico, como critério de escolha do cônjuge, ia substituindo a determinação imperativa da família. E a sujeição da mulher ao marido não era mais absoluta. Mas seu dia-a-dia era mais sacrificado que o do homem” (MELO; NOVAIS, 1998, p. 576). 13. Série exibida na televisão brasileira no início da década de 1960. Produzida QPS&VHFOF3PEOFZF3PCFSU:PVOH GPJ exibida nos Estados Unidos, no rádio, a partir de 1949, e na televisão, de 1954 a 1960 (http://www.infantv.com.br/ papai_sabe.htm). Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 As relações familiares agora mais democráticas envolvem mudanças substanciais em papéis e hierarquias profundamente enraizadas na sociedade, à medida que a mulher passa a também ser provedora e a participar ativamente da esfera pública, ainda que acumulando a gestão doméstica. No entanto, apesar de ter diminuído a distância social entre o homem e a mulher, as diferenças de funções dentro da família continuavam, sendo que o modelo do pai como o chefe da família ainda perdura até a metade do século, como ilustrado na série de grande sucesso na década de 1950/60, transmitida pelo rádio e pela TV no mundo todo, “Papai sabe tudo” (Father knows best).13 Embora trate dos conflitos de uma típica família de classe média americana, a série televisiva traduz bem o modelo de família que serve de referência universal à organização doméstica: o chefe da família, corretor de seguros, passa o dia fora, e ao chegar à noite, a mulher cozinha o jantar, que é servido a toda a família, composta ainda por um casal de filhos adolescentes e uma menina temporã, reunida na sala de jantar, ocasião em que os conflitos da adolescência e infância são discutidos e resolvidos, cabendo a palavra final ao pai. Afinal, ele sabe tudo. Outro aspecto na reestruturação familiar é a adoção do individualismo como valor central das sociedades ocidentais modernas, que, segundo Garcia (2003, p. 17), no campo familiar, “sobrepõe o indivíduo ao grupo, valorizando o projeto pessoal em detrimento da coesão e da convivência”. Porém, a autora ressalta que o individualismo também diz respeito à individualização de grupos da sociedade – como a família. Assim, a família nuclear, como subgrupo distinto e isolado do mundo, seria uma expressão coletiva do individualismo. 37 A casa moderna, aquela típica sobretudo da segunda metade do século XX, vai, portanto, revelar aspectos da relação família versus casa em um contexto de menor rigidez nas relações sociais e familiares e da emergência dos direitos individuais, portanto, na decadência do patriarcalismo e na formação da família nuclear moderna. Uma primeira mudança na organização espacial se dá pelo reforço do isolamento dos espaços para o uso individual daqueles reservados ao uso comum da família. Esse último passa a ter o duplo papel de reunir a família e receber visitantes, pela eliminação da antiga sala de visitas (aos moldes do parlour), sendo ainda o espaço destinado à exposição dos símbolos de distinção e status da família. Frequentemente estar e jantar constituem um só espaço integrado. Segundo Amorim (2001), a atitude de “deixar à mostra” a vida familiar representa uma atitude moderna em direção a um estilo de vida mais prático e espontâneo, sendo “um mostruário transparente da vida moderna e prática que substituía a sala de visita pré-moderna – depósito de memórias familiares e relíquias da sua história” (AMORIM, 2001, p. 15). Os quartos, por sua vez, onde se exerce a individualidade de cada membro da família, passam a ser mais isolados por meio de artifícios espaciais. A estrutura doméstica segue a tendência da organização dos espaços distribuídos em forma de setores domésticos.14 Esse modelo teórico, utilizado por todo tipo de moradia, exemplifica não somente um preciso método de projetação, mas também uma formulação social da estrutura da casa, como, por exemplo, a determinação de segregar os visitantes, os moradores e os serventes em diferentes territórios da moradia (AMORIM, 1997). 14. “Um setor é entendido como uma série de espaços agrupados de acordo com certos procedimentos classificatórios, que levam em conta requerimentos funcionais e sociais” ".03*.  Q  As Figuras 4 e 5 ilustram tais relações na casa moderna, operadas pelo sequenciamento de espaços – garantindo grande profundidade, e a formação de setores funcionais, devidamente isolados entre si, sem rotas alternativas capazes de permitir o livre movimento de moradores, visitantes e serventes no seu interior. Um arranjo que enfatiza a separação categórica desses usuários da casa, em busca da máxima privacidade do indivíduo, sujeito social identificável, reconhecido em seus direitos civis e personalizado no espaço que ocupa na esfera doméstica. A profundidade do quarto de casal revela com clareza essa nova ordem estruturante da casa brasileira. A casa e a família contemporânea Na emergência de uma nova ordem urbana, a partir da década de 1980, mudanças na estrutura industrial e ocupacional, com diminuição do emprego na indústria manufatureira e crescimento do emprego no setor de serviços, são acompanhadas pela emergência de uma “nova classe média”, aquela que se distingue mais pelo consumo que pela poupança. O perfil dessa família contemporânea é caracterizado por composições diversificadas do grupo doméstico. Com a legalização do divórcio em comum acordo, o casal já não é a base 38 Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 Figura 4t1MBOUBCBJYBEBDBTB moderna. Fonte: Amorim, 1999. Figura 5t"OÈMJTFFTQBDJBMEBDBTB moderna. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 exclusiva da família, nem o homem é a figura absoluta de chefe do lar. É nessa época também que, segundo alguns autores (PROST, 1992; MELO; NOVAIS, 1998), os indivíduos passaram a ter mais autonomia dentro da família. Há meio século, a família passava na frente do indivíduo; agora, é o indivíduo que passa na frente da família. O indivíduo era incorporado à família; sua vida privada pessoal, quando não se confundia com sua vida familiar, era secundária, subordinada, e não raro clandestina ou marginal. A relação do indivíduo com a família se inverteu. (...) cada indivíduo tem sua própria vida privada e espera que esta seja favorecida por uma família tipo informal. (...) A vida privada se confundia com a vida familiar; agora é a família que é julgada em função da contribuição que pode oferecer à realização das vidas privadas individuais. (PROST, 1992, p. 92) 39 Essas mudanças no âmbito social resultam em novas estruturas dos grupos domésticos, constituídos por famílias formadas por casais separados, com filhos de ambos, de mães ou pais solteiros, casais sem filhos, casais homossexuais, com ou sem filhos, biológicos ou adotados, solteiros etc. São famílias jovens, cujo conceito de cultura está relacionado à exposição conspíscua de bom gosto, simbolizado pelo apreço por comidas exóticas, roupas e acessórios de grife famosa etc. Dado o aumento na expectativa de vida, tais famílias têm, ainda, que lidar com a presença de pessoas idosas no ambiente doméstico. Diversificados também são os arranjos do espaço doméstico, indo desde espaços caracterizados pela integração das atividades – esquemas do tipo loft, com pouca fragmentação, até a permanência da tradicional estrutura setorial, por vezes mais complexa e fragmentada com maior especialização de ambientes, tais como o surgimento de home theater na área social, e da suíte master, na área íntima, com banheiro e closet en suite separados por sexo. Estudos desenvolvidos mostram que, apesar desse novo perfil, a produção imobiliária ainda oferece produtos baseados no mesmo arranjo tradicional da separação em setores (NOMADS, 2008), no máximo apresentando opções diversas de plantas. Essa é uma forma tímida de enfrentar a diversidade de grupos domésticos, sobretudo aqueles que incluem o idoso ou pessoas com dificuldades especiais. O idoso e a casa Na família contemporânea, a presença do idoso no ambiente doméstico tem sido enfrentada ora de forma individual, com adaptações na estrutura espacial para atender a demandas especiais, ou, de forma ainda incipiente, pela proposição de modelos específicos, domésticos ou institucionais. A opção da moradia em instituições que cuidam exclusivamente dessa parte da população, no entanto, ainda não é a solução adotada pela sociedade brasileira. Como sugere Hockey (1999, p. 108), “enquanto essas instituições compartilham da nomenclatura ‘casa’, elas apresentam poucos atributos, tantos espaciais quanto sociais, do que se entende como casa ideal”. Ou seja, em vez de ser uma pequena unidade doméstica onde vivem pessoas de diferentes gerações, essas instituições acomodam um grande grupo de pessoas da mesma idade que são ou deveriam ser cuidadas por profissionais especializados. A vida nas instituições, apesar de buscar proporcionar a ilusão de um ambiente habitacional, tentando ocultar os sintomas da perda e da morte, cria uma imagem completamente contrária, onde justamente esses aspectos da vida humana ficam mais evidenciados, permanecendo a segregação do convívio social (FAIRHURST, 1999; CHAMPMAN; HOCKEY, 1999). Assim, como sugere Hockey (1999, p. 11), “numa sociedade onde a vida e a morte geralmente ocorrem em espaços separados, a casa é o lugar da vida e a instituição é o lugar da morte”. 40 Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 Valins (1988) discute o problema da moradia para o idoso no contexto daquilo que ele chamou de fatores demográficos e circunstâncias sociais, focando especificamente o âmbito doméstico. Segundo ele, duas situações que geram inconveniências no adequado uso do espaço são frequentes na maioria das moradias: a) a casa torna-se muito grande, e sua manutenção mais trabalhosa, quando a família diminui, em decorrência da morte de alguns de seus membros, da mudança dos filhos para outros locais etc.; b) a casa torna-se inconveniente em decorrência da degeneração física que acompanha o envelhecimento; o ambiente doméstico torna-se arriscado para o morador idoso. Quatro alternativas podem ser apontadas para o idoso: a) continuar morando em casas inconvenientes para as suas necessidades; b) adaptar a casa (muitas vezes difícil de ser adaptada); c) mudar-se para instituições ou d) mudar-se para casas projetadas para atender às necessidades do idoso. 15. Essa denominação vem do fato de que os moradores não precisam mudarse para outra moradia, caso precisem de espaços que atendam a necessidades específicas (London Development "HFODZ"DDFTTJCMF-POEPOBDIJFWJOHBO inclusive environment. Lifetime homes, 2006). Com relação a essa última alternativa, a literatura especializada apresenta alguns modelos, dentre os quais se destacam as lifetime homes, na Inglaterra e a universal home, no Brasil. As chamadas lifetime homes,15 desenvolvidas pelo Joseph Rowntree Foundation Lifetime Homes Group a partir de 1991, na Inglaterra, baseiam-se no conceito de “casa para toda a vida” que, além de proporcionar conforto, conveniência e segurança, atendem às várias necessidades do morador ou são facilmente adaptáveis às mudanças de necessidades ao longo da vida (LONDON DEVELOPMENT AGENCY, 2006). Dessa maneira, imagina-se que a lifetime home seja adequada tanto para crianças quanto para adultos com dificuldades de locomoção ou idosos com debilidades físicas. A lifetime home é concebida de acordo com 16 padrões baseados nos conceitos de flexibilidade, adaptabilidade e acessibilidade. Seguindo os mesmos 16 padrões, a arquiteta Sandra Perito propôs um modelo que ela denominou de universal home (MARCONDES PERITO, 2007), adaptando o conceito para o contexto brasileiro. A Figura 6 ilustra a proposta de Perito. Na Figura 7, a análise da estrutura espacial revela que o isolamento ao qual os espaços privados estavam submetidos na casa moderna permanece. Já o espaço previsto para o idoso, apesar de estar próximo aos espaços de convívio social, se encontra segregado em relação aos espaços privados familiares, em uma configuração mais semelhante a do sickroom vitoriano. A mudança mais aparente com relação à casa moderna é a relação mais direta do quarto do idoso com o setor de serviço, introduzindo uma rota alternativa de movimento entre os setores de serviço e social. No entanto, a configuração espacial se apresenta como uma estrutura em forma de árvore profunda. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 Com relação à adaptação da moradia para atender às necessidades do idoso, as Figuras 8 e 11 apresentam dois casos. No primeiro, a adaptação consistiu na ligação do quarto do idoso com a área de serviço da casa, semelhante ao que ocorre na universal home, sem afetar a relação desse espaço com os setores íntimo e social. A profundidade 41 Figura 6tUniversal home. Fonte: Marcondes Perito, 2007. original do sistema espacial é reduzida em três níveis, resultando em uma configuração mais rasa, pela oferta de rota alternativa de movimento antes inexistente. No segundo caso, buscando integrar o idoso às atividades sociais da casa, a adaptação consistiu na ligação do quarto do idoso com a área social, sem, no entanto, restringir a rota de acesso existente do setor de serviço ao privado. Essa ligação aumenta o número de rotas alternativas de movimento, diminuindo a profundidade em um nível, e favorece a integração do idoso nas atividades sociais da casa, ao mesmo tempo em que mantém o necessário grau de isolamento, privacidade e agregação aos demais setores. 42 Figura 7t6niversal home. Análise espacial. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 Figura 8t$BTBDPOUFNQPSÉOFBBEBQUBÎÍP DBTP Figura 9t$BTBDPOUFNQPSÉOFBoBOÈMJTFFTQBDJBM DBTP Figura 10t$BTBDPOUFNQPSÉOFB adaptação, caso 2. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 43 Conclusão: papai ainda sabe tudo? Figura 11t$BTBDPOUFNQPSÉOFBo análise espacial, caso 2. O interesse da análise exposta neste artigo foi o de investigar o modo como os padrões espaciais se redefinem para atender às demandas dos novos perfis familiares. A investigação mostrou de que maneira esses padrões dão suporte às relações entre familiares, visitantes e serventes a partir da constituição de setores sociofuncionais, que ora se apresentam com limites fortemente definidos, ora se fundem parcialmente ou tendem à completa extinção. O diagrama da Figura 12 apresenta graficamente essa redefinição. Família Indivíduo Visitante Figura 12t-JOIBEPUFNQPSFEFGJOJÎÍP de setores. Colonial Moderno Contemporâneo Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1º sem. 2008 44 Na família patriarcal, a organização espacial da casa se fundamenta na rígida delimitação dos espaços para uso da família e dos visitantes, estando família e patriarca acima do indivíduo. Na emergência da individualidade e da família moderna, os espaços para convívio da família e para receber visitantes se fundem, reforçando, por outro lado, os espaços para exercício da individualidade. Existe um maior isolamento do núcleo familiar na configuração original, particularmente evidenciada no isolamento dos quartos, preservando a autonomia individual. Já nas circunstâncias da família contemporânea, os resultados da análise sugerem tendências que reforçam o argumento da mudança dos paradigmas que fundamentaram a organização da casa moderna e apontam para sua superação, no sentido de uma redefinição dos limites de setores, ainda mantendo-se os espaços da individualidade. Essa tendência, no entanto, convive com a produção maciça de moradia privada, principalmente no contexto do mercado imobiliário, ainda impregnada dos ideais de morar daquela família nuclear moderna. Tanto que as evidências que apontam para novas formas de estruturação do espaço doméstico foram observadas em tentativas de adaptação de estruturas ofertadas por esse mesmo mercado. Parece ser ainda cedo para perceber alterações mais profundas na estrutura espacial das casas contemporâneas brasileiras, mas, se esta vier a existir, superará a organização setorial da casa, tornando suas fronteiras mais sutis, como sugerem os casos analisados e algumas demandas atuais acima discutidas. Os casos estudados, fruto da adaptação do espaço doméstico à presença do idoso, tornando-o mais próximo de todos os cômodos e esferas da casa, sinalizam nessa direção. Se assim for, um novo tipo de estruturação espacial das relações familiares poderá emergir: aquele no qual as relações democráticas entre familiares, agora identificados em uma grande diversidade de arranjos, são otimizadas pela maximização de interfaces entre os usuários do espaço doméstico. Referências AGHASSIAN, M; AUGÉ, M. Introdução ao vocabulário do parentesco. In: AUGÉ, Marc (Dir.) Os domínios do parentesco: filiação, aliança matrimonial, residência. Lisboa: Edições 70, 1973. p. 11-74. AMORIM, L. 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