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-2-
PATRÍCIA KRIEGER GROSSI
organizadora
VIOLÊNCIAS, PODER E
PRÁTICAS INSTITUCIONAIS
coisas que a gente deveria saber
Obra financiada/incentivada por:
-3-
Comitê Científico Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Aldair Oliveira de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (USP/EcA - São paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Roberta Ferreira Coelho de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)
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PATRÍCIA KRIEGER GROSSI
organizadora
VIOLÊNCIAS, PODER E
PRÁTICAS INSTITUCIONAIS
coisas que a gente deveria saber
Embu das Artes - SP
2022
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO
AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira
Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel
COMITÊ EDITORIAL DA EDUA
Louis Marmoz Université de Versailles
Antônio Cattani UFRGS
Alfredo Bosi USP
Arminda Mourão Botelho Ufam
Spartacus Astolfi Ufam
Boaventura Sousa Santos Universidade de Coimbra
Bernard Emery Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira UFC
Conceição Almeira UFRN
Edgard de Assis Carvalho PUC/SP
Gabriel Conh USP
Gerusa Ferreira PUC/SP
José Vicente Tavares UFRGS
José Paulo Netto UFRJ
Paulo Emílio FGV/RJ
Élide Rugai Bastos Unicamp
Renan Freitas Pinto Ufam
Renato Ortiz Unicamp
Rosa Ester Rossini USP
Renato Tribuzy Ufam
Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira
Vice-Reitora
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe
Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza
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“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como
coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão
organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de
mudar”. Bertold Bretch
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© by Alexa Cultural
Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
Thassiel Melo
Revisão Técnica
Patrícia Krieger Grossi e Michel Justamand
Revisão de língua
Talissa Barcelos Rosário
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
V797
Violências, poder e práticas institucionais: coisas que a gente deveria saber / Organizadora Patrícia Krieger Grossi. – Embu das Artes, SP: Alexa
Cultural; Manaus, AM: EDUA, 2022.
300 p. : 14 x 21 cm
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-5467-230-0
1. Serviço Social. 2. Práticas Institucionais. 3. Violência 4. Poder. I. Grossi, Patrícia Krieger.
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
CDD 362.7
Índices para catálogo sistemático:
1. Serviço Social
2. Violência
3. Práticas Institucionais
Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610
É proibida a reprodução parcial ou integral sem a autorização das organizadores e/ou editora
Alexa Cultural Ltda
Rua Henrique Franchini, 256
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140
alexa@alexacultural.com.br
alexacultural@terra.com.br
www.alexacultural.com.br
www.alexaloja.com
-8-
Editora da Universidade Federal do Amazonas
Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos,
n. 6200 - Coroado I, Manaus/AM
Campus Universitário Senador Arthur Virgilio
Filho, Centro de Convivência – Setor Norte
Fone: (92) 3305-4291 e 3305-4290
E-mail: ufam.editora@gmail.com
Prefácio
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento;
ninguém diz violentas às margens que o cerceiam.
Bertold Brecht.
A epígrafe do poema de Brecht que abre o presente texto desperta uma reflexão fundamental, diante do atual contexto, no que se
refere aos inúmeros condicionantes que estão relacionados à violência para além de expressões individuais. A análise da violência,
deslocada do complexo social que a compõe, pode levar a diversas
armadilhas que contribuem para inflamar a chama punitivista ardente em uma sociedade guiada por valores neoliberais e neoconservadores. A construção ideológica da individualização da violência
na produção da ideia de “seres violentos” ou de pessoas “merecedoras” de sofrimento, está intrinsecamente ligada à funcionalidade
da ordem do capital, que necessita criar imagens de “inimigos” que
precisam ser combatidos com toda a força de um Estado penal, que
marca presença no lugar da perspectiva de proteção social. Nesse
jogo de ilusões de imagens fetichizadas do real, são encobertas as
raízes de uma intensa violência estrutural – fruto da questão social,
que marca presença nas trajetórias de vida da classe trabalhadora,
especialmente no que diz respeito à condição de gênero, a condições
étnico-raciais e geracionais.
O constructo ideológico que descola o sujeito das relações
mais amplas que compõem o complexo social no que tange à análise
da violência constitui-se como fruto de uma racionalidade neoliberal, que guia corações e mentes em um cenário de aprofundamento
da crise estrutural do modo de produção capitalista, diante dos agravamentos das condições de vida de toda a população, acentuados
diante da pandemia de covid-19. A racionalidade neoliberal, nos
termos de Dardot e Laval (2016), forja uma individualidade que
incorpora as aptidões demandadas pela lógica empresarial, absorvendo os ideários de competitividade e meritocracia, de modo a fazer com que os indivíduos se autorresponsabilizem pelos sucessos
e fracassos vivenciados. Tal ideário se articula a perspectivas neoconservadoras, sendo funcional ao projeto neoliberal por justificar
os efeitos perversos das políticas econômicas neoliberais através de
uma retórica excludente e de práticas autoritárias de controle da po-9-
pulação indesejada (CASARA, 2018). Por meio da mediação entre
neoliberalismo e neoconservadorismos, se reduz a complexidade
dos processos de violência a determinados sujeitos, naturalizando as
violências sofridas por alguns segmentos sociais.
Evidentemente, tais construções se conformam como uma
síntese dialética de um processo histórico, que marca a configuração das particularidades da sociedade brasileira enquanto economia
vinculada a um capitalismo periférico e dependente; que vivencia as
feridas abertas de uma longa e perversa escravidão, que, nos termos
de Kilomba (2019), nunca foram tratadas, que sempre doem, por
vezes infectam e outras vezes sangram. A perspectiva reducionista
que compreende a violência não como um processo complexo, mas
como ação individual de determinados sujeitos, adquire uma feição,
um rosto que tem em seus traços dimensões étnico-raciais, de gênero, geração e, em especial, de classe social. Tal processo tem como
base a criminalização da pobreza; como referem Zaffaroni e Batista
(2011), é sobre os pobres que recai a fúria persecutória do Estado:
em torno dessas pessoas se estabelece um cordão de isolamento, de
forma a promover a higienização social.
Dessa forma, se conclama a ideia de que a violência é promovida por uma classe social: que necessita ser controlada e punida
pelas “mãos de ferro” do Estado. Sendo assim, o discurso do enfrentamento à violência acarreta a geração de mais violências, pela
perspectiva punitivista e penal do Estado. É nesse sentido que se
faz necessária a compreensão da violência estrutural enquanto um
produto, resultado e processo vinculado à manutenção das relações
entre classes sociais na sociabilidade capitalista. Como bem lembra
Vázquez (1977), quando esquecida a raiz objetiva, econômico-social, de classe, da violência, o caminho fica livre para que a atenção
se centralize na própria violência, e não no sistema que a engendra
necessariamente; sendo que esse movimento é funcional para ocultar a expressão de uma violência mais profunda: a exploração do
humano pelo humano.
É diante desse solo sócio-histórico, adubado pelo neoliberalismo e neoconservadorismo, que se encontram as condições apropriadas para a reprodução de múltiplas formas de violência relacionadas a perspectivas racistas, capacitistas, homofóbicas, misóginas;
na direção da construção do outro como inimigo que precisa ser
- 10 -
combatido, e, em última instância, aniquilado. Nessa conjuntura, a
barbárie do tempo presente se torna naturalizada por meio dos múltiplos discursos que acarretam a culpabilização de quem vivencia
mais intensamente diversas formas de violências. O genocídio da
juventude negra, a morte precoce das pessoas trans, a violência doméstica vivenciada por mulheres no campo e na cidade, o trabalho
infantil no tráfico de drogas, o racismo expresso nas relações cotidianas, o capacitismo reproduzido nas relações do mercado de trabalho, a objetificação de crianças e adolescentes, e demais expressões
da violência, acabam por ser naturalizadas em uma sociedade que é
guiada por valores mercadológicos e conservadores.
Ao mesmo tempo, mostra-se fundamental a análise da antítese dialética desse processo, isso é: é preciso atenção acerca das
inúmeras resistências que são mobilizadas de múltiplas formas
por aqueles que lutam contra uma hegemonia que comunga com a
barbárie e com a reprodução de mais violências. Tais resistências
marcam as trajetórias de vida de muitos sujeitos, estando presentes
em suas expressões singulares, na tessitura das relações sociais estabelecidas em meio a um contexto marcado pelas desigualdades de
diversas ordens. Tais expressões de resistência, por vezes, ganham
corpo em uma arena pública, por meio de diversos movimentos sociais que gritam em meio ao silêncio ensurdecedor da hegemonia do
capital. Nessa disputa por projetos societários, mostra-se fundamental a construção de instrumentos de luta por garantia de direitos, uma
vez que, como traz Flores (2001), os direitos são processos de luta
em permanente disputa. Tais instrumentos de luta por direitos são
forjados por processos de resistência e precisam ser potencializados
diante de tempos tão obscuros e funcionais à ordem do capital.
A coletânea Violências, Poder e Práticas Institucionais: Coisas que Deveríamos Saber, que o leitor tem diante de si, se constitui em um desses instrumentos fundamentais que possibilitam um
importante antídoto em um contexto envenenado por perspectivas
obscurantistas que tendem a ocultar o real por meio das reproduções de fetiches. O pensamento científico, vinculado a uma direção
crítica expressa nas páginas seguintes, tem um papel fundamental
para auxiliar na compreensão dos movimentos do real e ensejar lutas
engajadas em um projeto social emancipatório que tem, em sua raiz,
o real enfrentamento das mais variadas expressões de violência, a
partir do fortalecimento das resistências cotidianas.
- 11 -
Ao propor a análise acerca das múltiplas expressões de violência e resistências, considerando as dimensões de gênero, raça,
etnia, classe social, geração, condição física, entre outras, o livro
contribui para desocultar o complexo de complexos, nos termos de
Lúckas (2020), que se relacionam a esse debate. Constitui-se, assim,
em um potente instrumento para fomentar o pensamento crítico na
direção oposta às armadilhas da individualização e da naturalização dos processos de violências, compreendendo os múltiplos elementos que se relacionam ao tema e suas inúmeras manifestações
no contexto contemporâneo. Sem abrir mão da relação dialética, a
produção dá ênfase, também, à perspectiva das resistências, sendo
uma dimensão constituinte do real e necessária de ser fortalecida em
tempos de reprodução ampliada de tantas violações.
A presente coletânea chega às mãos e telas dos leitores em
um momento apropriado, tendo em vista o contexto atual, em que
mentiras são embaladas como verdades e propulsionadas pelas redes
sociais, fortalecendo o obscurantismo que visa degradar a ciência
e o pensamento crítico. Nessa conjuntura, a presente produção faz
enfrentamento à miséria da razão, nos termos de Coutinho (2010),
dando evidências para o movimento que compõe o real e indo além
de sua aparência fenomênica, enquanto uma forma de enfrentamento aos fetiches funcionais à manutenção do status quo. A análise
das violências e resistências, problematizadas nos capítulos que
compõem a obra, é constituída sem se perder de vista o movimento
contraditório da história, composto por dimensões singulares, particulares e universais, e tomando o real como ponto de partida em
suas problematizações. A pandemia de covid-19, que alterou a vida e
trouxe diversos impactos para a classe trabalhadora, é analisada por
diversos autores e autoras para compreender os desafios para a luta
de direitos em tempos de agravos políticos, econômicos e sociais;
assim, aprofundam-se, ainda mais, as expressões da questão social
nesse contexto de crise estrutural do capital.
As múltiplas determinações da violência no tempo presente são analisadas considerando as dimensões de gênero, o que se
constitui como um debate fundamental diante do agravamento das
condições de vida das mulheres brasileiras, tanto pela lógica da superexploração do mundo do trabalho como pela perspectiva da violência de gênero, que, em última instância, deságua na perspectiva
- 12 -
do feminicídio. Nesse sentido, o feminicídio se constitui como a
expressão mais trágica de sucessivas violações de direitos que vivenciam as mulheres brasileiras. Sua análise é condição basilar para
fortalecer uma resistência feminista e anticapitalista diante do avanço neoconservador que tende a fortalecer o machismo e a misoginia
enquanto aspectos centrais da reprodução da violência de gênero.
No âmbito desse debate, a presente coletânea também se debruça sobre a análise acerca das mediações com o tema geração,
com ênfase nas violações e garantias de direitos para crianças e
adolescentes no contexto atual. As reflexões guiam os leitores na
compreensão das lutas históricas pelo sistema de proteção social
voltado para crianças e adolescentes, bem como analisamos desafios
no âmbito da sua materialização. Um dos diversos méritos da obra
está na análise de novos e antigos desafios para tornar palpáveis os
direitos de crianças e adolescentes na realidade concreta, em um cenário de múltiplas formas de violação para esses segmentos sociais.
A necessária superação de perspectivas menoristas e adultocêntricas
é problematizada juntamente com os desafios impostos pelas novas
tecnologias de comunicação, bem como acerca da reprodução da
violência de gênero nas relações afetivas e outras manifestações das
relações sociais estabelecidas por esses sujeitos, num contexto de
frágeis e precárias políticas públicas.
Tais mediações são estabelecidas sem abortar a análise acerca
do racismo enquanto elemento estrutural e estruturante das relações
de violência estabelecidas na sociedade contemporânea, o que se
constitui como uma mediação essencial na análise presente nas páginas a seguir. Entendendo o real como saturado de múltiplas mediações, a compreensão do racismo estrutural guia diversos capítulos
da presente produção, que analisam a sua manifestação como pedra
angular em que se assentam diversas expressões de violência. Conforme Almeida (2019), o racismo estrutural parte da compreensão
de que o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou
seja, do modo com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares como parte de um processo social. A
partir dessas análises, se compreende o avanço do punitivismo no
sistema de justiça enquanto uma expressão de violência que carrega
o fetiche da “solução de conflitos”, mas que traz em seu gérmen a
reprodução de mais violências, com nítidas dimensões de classe, ra- 13 -
ciais e geracionais. Nesse âmbito, as resistências por formas de justiça menos retributivas, na direção dos direitos humanos, se tornam
uma contra-hegemonia e estratégia importante diante de clamores
punitivistas que vem ganhando cada vez mais corpo.
Em uma sociedade em que a reificação se constitui como elemento central na perspectiva de descarte de vidas humanas, a discussão acerca da luta anticapacistista se torna essencial, especialmente diante da invisibilidade dessa discussão em muitos âmbitos.
Compreender a diversidade da vida humana é aspecto fundamental
para contrapor a homogeneização de padrões pregados pela ideologia do capital, sendo que o debate dos direitos das pessoas com
deficiência é uma luta necessária para todas as pessoas que se guiam
por um projeto societário afinado com perspectivas emancipatórias.
É por meio da análise das múltiplas expressões de violências e
resistências que as páginas a seguir provocam o leitor a refletir sobre
diversos debates essenciais no contexto contemporâneo, compreendendo a complexidade das mediações que conformam essa urgente
discussão. O desafio de analisar os múltiplos aspectos e expressões
de violências e resistências é tomado por diversos pesquisadores em
ricas problematizações, estabelecidas por meio da articulação de diversas áreas do saber, na direção da interdisciplinaridade, com a finalidade de enfrentar reflexões polêmicas e necessárias, oferecendo
subsídios tanto para a compreensão do real como para fundamentar
intervenções profissionais no cotidiano dos mais variados espaços
sócio-ocupacionais.
A presente produção é constituída como resultado dos debates de duas disciplinas do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), programa que é referência nacional por sua história, sendo o terceiro programa de pós-graduação (PPG) em Serviço Social
do Brasil, mas, especialmente, pela qualidade de suas produções,
marcadas por sua direção política em uma perspectiva crítica. Nesse
sentido, não poderia deixar de ressaltar a estima e imenso carinho
que tenho pelo coletivo de pesquisadores docentes e discentes que
compõem esse programa; e as palavras aqui expressas neste prefácio
são encharcadas de agradecimentos e afetos. O Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS, que me formou no âmbito dos meus estudos pós-graduados stricto sensu, também me pre- 14 -
parou como docente de pós-graduação, me possibilitando vivenciar
ricas experiências como docente vinculado a esse PPG. Importante
considerar que esse programa é construído por pessoas, sujeitos históricos que constroem suas trajetórias na luta por uma sociedade
mais justa e igualitária. Como não poderia deixar de ser, a presente
obra reflete tal luta, que é consolidada com conhecimento científico
e que se vincula a um projeto de sociedade guiado por valores éticos,
na defesa intransigente de direitos.
A presente coletânea, nesse sentido, se constitui como uma
leitura obrigatória em tempos em que as violências são reproduzidas
e naturalizadas. Questionar o poder e práticas institucionais, haja
vista a reprodução das mais variadas formas de violência, se torna
uma necessidade urgente diante do avanço de perspectivas neoliberais e neoconservadoras, que propulsionam diversas formas de violação. A produção não só revela coisas que deveríamos saber, como
também possibilita reflexões propositivas, na necessária direção do
enfrentamento às mais variadas formas de aniquilação da vida de
diversas pessoas que, como canta Milton Nascimento, possuem a
estranha mania de ter fé na vida!
Prof. Dr. Giovane Antonio Scherer
Programa de Pós-Graduação em Política Social e
Serviço Social – UFRGS
Referências
ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2019.
CASARA, Rubens. Precisamos falar sobre a “direita jurídica”. In:
SOLANO, Esther (Org.). O ódio como política: a reinvenção das
direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 74-80.
COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão.
2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
FLORES, Joaquín Herrera (Ed.). El vuelo de Anteo. Derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001.
- 15 -
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódio de racismo
cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LUKÁCS, Georg. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro.
4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. v. I.
- 16 -
SUMÁRIO
Apresentação
Patrícia Krieger Grossi
- 21 PARTE I -VIOLÊNCIAS, GÊNERO E PODER: O PESSOAL
É POLÍTICO
CAPÍTULO 1
A violência de gênero contra as mulheres durante a pandemia da
covid-19: um olhar sobre a violência estrutural a partir de uma
perspectiva feminista e anticapitalista
Tatiana Otto Stock, Ângelo Brandelli Costa
- 31 CAPÍTULO 2
A violência doméstica durante a pandemia: uma análise a partir do
portal G1
Suelen Gotardo
- 49 CAPÍTULO 3
Sexo desprotegido praticado por mulheres que se relacionam sexualmente com homens e intersecções com o sexismo
Isabella Zuardi Marques
- 79 CAPÍTULO 4
Perseguição obsessiva: falando sobre o stalking
Cíntia Maria Nascimento Cruz
- 101 PARTE II - VIOLÊNCIAS NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
CAPÍTULO 5
Particularidades dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil:
história, violências e pandemia
Graziela Milani Leal
- 115 - 17 -
CAPÍTULO 6
Prevenção à violência de gênero na adolescência: o que a Psicologia tem a ver com isso?
Thaís de Castro Jury Arnoud
- 137 CAPÍTULO 7
Violência de gênero e o uso de pornografia por adolescentes
Rodrigo Falcão Chaise
- 149 PARTE III - VIOLÊNCIAS NAS PRÁTICAS INSTITUCIONAIS:
RACISMO, CAPACITISMO, SEXISMO E OUTROS ISMOS
CAPÍTULO 8
Feminicídio e Sistema de Justiça Criminal: uma análise empírica
das narrativas processuais acerca das vítimas,
a partir da perspectiva de gênero
Taísa Gabriela Soares
- 163 CAPÍTULO 9
Justiça restaurativa em crimes de gênero: valores e princípios para
uma crítica radical ao punitivismo
Michelle Karen Batista dos Santos
- 193 CAPÍTULO 10
Capacitismo: a diversidade seletiva do mercado de trabalho
Clarissa Constant de Constant
- 219 CAPÍTULO 11
Racismo estrutural na vivência de mulheres quilombolas: narrativas de um cotidiano de violações de direitos e resistências
Eliana Mourgues Cogoy e Patrícia Krieger Grossi
- 229 -
- 18 -
CAPÍTULO 12
Classe, raça e gênero, o tripé maldito das sociedades humanas: o
papel da cultura e do patrimônio na manutenção dessa “trepeça”
Tiago de Campos
- 241 CAPÍTULO 13
Chapa Preta: uma iniciativa para enegrecer o campo publicitário
Enéias Brum Dias
- 253 CAPÍTULO 14
Aperitivos ecofeministas: alternativas para pesquisas sobre
violência, poder e dominação
Larissa Lunkes de Souza
- 273 Sobre autoras e autores
- 293 -
- 19 -
- 20 -
Apresentação
Este livro tem por objetivo fomentar o debate sobre as múltiplas expressões de violência e resistências, considerando as dimensões de gênero, raça, etnia, classe social, geração, condição física,
entre outras, no contexto da sociedade capitalista que produz hierarquizações de diferentes ordens. Essas expressões de violência têm
como repercussão a reverberação de processos de desigualdade de
poder no acesso a bens e serviços e direitos de cidadania. Traz-se
aqui contribuições de profissionais da área do Serviço Social, Psicologia, Direito, Arquitetura, Ciências Sociais, Comunicação Social,
Publicidade e Filosofia, e busca-se desvendar o fenômeno da violência, em suas diversas multideterminações, cujas facetas são acirradas pelo contexto da pandemia de covid-19.
Os capítulos que compõem a obra foram produzidos para as
disciplinas “Expressões de Violência e Estratégias de Enfrentamento” e “Violência, Poder e Prática Institucional” sob coordenação da
professora Dra. Patrícia Krieger Grossi, ministradas no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul no primeiro e segundo
semestre de 2021.
O livro está dividido em três partes. A primeira parte, intitulada Violências, Gênero e Poder: o Pessoal é Político, é composta
de quatro capítulos. O primeiro, intitulado “A violência de gênero
contra as mulheres durante a pandemia covid-19: um olhar sobre a
violência estrutural a partir de uma perspectiva feminista e anticapitalista”, de Tatiana Otto Stock, aborda profundamente o recorte
da relação entre a violência de gênero contra a mulher (VGCM) e a
violência estrutural, embora a violência simbólica permeie sempre
a análise. A autora também destaca a relevância do conceito de interseccionalidade na VGCM e a influência que os marcadores raça
e classe sofrem pela violência simbólica e estrutural. O capítulo demonstra o aumento da vulnerabilidade das mulheres conforme se
intersecciona a raça, a classe e o gênero.
O segundo capítulo, intitulado “A violência doméstica durante a pandemia: uma análise a partir do portal G1”, de autoria de Sue
Gotardo, faz uma análise de 50 notícias de feminicídio – ocorridos
no período da pandemia de covid-19 – catalogadas na busca em veí- 21 -
culos de comunicação. A pesquisa se deu nos meses de abril, maio
e junho de 2021, a partir das expressões: “mulher é assassinada”,
“mulher é morta”, “mulher é assassinada pelo marido”, “mulher é
morta pelo marido” e “mulher é vítima de violência”, rastreadas na
plataforma de busca Google. O estudo conclui que a mídia trata o
tema de forma sensacionalista, contribuindo para a naturalização do
fenômeno, e propõe a reflexão sobre o tema a fim de reeducar a sociedade para a igualdade de gênero.
O terceiro capítulo, intitulado “Sexo desprotegido praticado
por mulheres que se relacionam sexualmente com homens e intersecções com o sexismo”, de Isabella Zuardi Marques, busca reunir e
discutir pesquisas encontradas na literatura científica que investigam
associações entre o sexismo e o sexo desprotegido praticado por mulheres que se relacionam sexualmente com homens. Na contemporaneidade, mulheres permanecem apresentando controle limitado das
tomadas de decisões relacionadas ao controle dos seus corpos. Em
comparação com os homens, mulheres apresentam maior dificuldade de exercer o seu direito de proteção à saúde através do uso de preservativo. A autora argumenta que os papéis de gênero tradicionais,
regulados por assimetrias de poder, estão estreitamente associados à
maior vulnerabilidade das mulheres ao sexo desprotegido.
O quarto capítulo, intitulado “Perseguição obsessiva: falando sobre o stalking”, de Cíntia Maria Nascimento Cruz, apresenta
uma discussão teórica sobre a perseguição obsessiva, mais conhecida como stalking. A complexidade que envolve o fenômeno da
perseguição reiterada e obsessiva requer entender o papel da mulher
na sociedade patriarcal, pois falar de violência contra as mulheres é,
sobretudo, falar sobre o patriarcado, a hierarquia de gênero e desigualdade. A autora discorre também sobre a Lei nº 14.132/21 ou Lei
do Stalking, que entrou em vigor no dia 31 de março de 2021.
A segunda parte da obra, intitulada Violências na Infância
e Adolescência, contém três capítulos. O quinto capítulo aborda
“Particularidades dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil:
história, violências e pandemia”, de autoria de Graziela Milani Leal.
O texto tem como objetivo apresentar o processo sócio-histórico de
construção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, revelando o percurso que vem sendo trilhado para que estes sejam
entendidos enquanto sujeitos de direitos. Assim, busca-se construir
- 22 -
uma contextualização sobre o tratamento dispensado às infâncias e
às adolescências, principalmente a partir da década de 1920, quando
se inaugura a concepção que veio a ser reconhecida como doutrina
da situação irregular, criada a partir da promulgação do Código de
Menores e que vigorou até meados da década de 1980. Ainda nesse
percurso histórico, apresenta-se os processos de luta e de resistência que culminaram no compromisso com a doutrina da proteção
integral e na compreensão das crianças e dos adolescentes enquanto
sujeitos de direitos. A fim de dar materialidade e de garantir os direitos agora assegurados legalmente a este segmento populacional é
que se compõe um Sistema de Garantia de Direitos (SGD) que, articulando as esferas de promoção, de proteção e de controle, proporá
uma atenção integral às infâncias e adolescências. Ao encontro disso, destaca-se a aprovação da Lei Federal nº 13.431 no ano de 2017,
a qual regulamenta um SGD específico para crianças e adolescentes
vítimas ou testemunhas de violência, que carecem de olhar atento e
singular – sobretudo em tempos de pandemia da covid-19. Por fim,
a autora aponta alguns dos desafios que ainda se fazem presentes à
garantia dos direitos humanos.
O sexto capítulo, intitulado “Prevenção à violência de gênero na adolescência: o que a Psicologia tem a ver com isso?”, de
Thaís de Castro Jury Arnoud, tem como objetivo promover uma reflexão sobre como a Psicologia pode contribuir para os estudos de
prevenção à violência de gênero na adolescência. Para isso, propõe
uma discussão acerca da violência de gênero e seus componentes
teóricos, bem como da maneira que essa violência se manifesta na
adolescência. Por fim, busca analisar quais são as principais contribuições da Psicologia para o campo da prevenção, bem como suas
limitações enquanto ciência nesse contexto. Como principais conclusões, destaca que a Psicologia deve atuar com responsabilidade
social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural, ou seja, levando em conta as desigualdades de gênero ao produzir conhecimento sobre a violência nos relacionamentos íntimos entre adolescentes. Por fim, aponta também a
importância da interdisciplinaridade na produção de conhecimento
sobre o tema.
O sétimo capítulo, intitulado “Violência de gênero e o uso de
pornografia por adolescentes”, de Rodrigo Falcão Chaise, aborda
- 23 -
o tema da violência de gênero e a objetificação da mulher através
do crescente acesso a materiais sexualmente explícitos (MSE) na
sociedade, disponíveis em equipamentos como smartphones e tablets. A violência contra a mulher se caracteriza como qualquer ação
ou omissão, baseada nas desigualdades de gênero, que cause morte,
lesão, sofrimento ou dano à mulher. Movimentos feministas e os
estudos de gênero têm apontado para a dimensão simbólica do fenômeno. Em relação a isso, o consumo de pornografia entre adolescentes e jovens expandiu-se significativamente nos últimos anos. Por
conta da difusão exacerbada de materiais sexualmente explícitos da
internet (MSEI), diversas preocupações concernentes aos possíveis
impactos psicossociais advindos do uso de pornografia na adolescência passaram a afligir pesquisadores e a população geral. Assim,
potenciais desfechos associados ao uso de pornografia tornaram-se
objetos de estudo. A notória presença de agressão e da objetificação
de mulheres em vídeos pornográficos convencionais denota a urgência de se abordar a temática do consumo de pornografia com adolescentes. Eles podem começar a assistir pornografia por curiosidade e,
à medida que começam a surgir oportunidades para se envolverem
em atividades sexuais, podem tornar-se mais suscetíveis a perceber
os MSEI como representativos e aplicáveis ao mundo real. Considerando que adolescentes são socializados sexualmente ao se exporem
a MSEI, eles podem estar sendo reforçados a entender que a mulher
deve ser dominada pelo homem, em função do alto teor de objetificação da mulher presente nos conteúdos dos vídeos pornográficos
que acessam. Dessa forma, a abordagem do tema com os adolescentes tem o potencial de diminuir efeitos do uso de MSEI.
A terceira parte da obra é intitulada Violências nas Práticas
Institucionais: Racismo, Capacitismo, Sexismo e Outros Ismos e
é composta de 7 capítulos.
O capítulo 8, intitulado “Feminicídio e Sistema de Justiça
Criminal: uma análise empírica das narrativas processuais acerca
das vítimas, a partir da perspectiva de gênero”, de autoria de Taísa
Gabriela Soares, enfoca as formas de ocultamento e naturalização
de violências no âmbito do sistema penal, assim como demonstra os
obstáculos desse espaço de reação estatal penal no que diz respeito
aos direitos e às diversidades desde a perspectiva de gênero. Dessa
forma, o texto apresenta a discussão sobre o papel dos atores do Sis- 24 -
tema de Justiça Criminal diante da aplicação da legislação criminal
que prevê o aumento das penas de prisão para aqueles que praticaram violência letal contra as mulheres em contexto de violência
doméstica e familiar ou por razões da condição do sexo feminino.
O capítulo 9, intitulado “Justiça restaurativa em crimes de gênero: valores e princípios para uma crítica radical ao punitivismo”,
de Michelle Karen Batista dos Santos, enfoca os valores e princípios
da justiça restaurativa que delineiam outro modelo de justiça para
as mulheres vítimas de crimes de gênero. Nessa direção, a autora
defende que esse é um modelo de justiça cujas práticas são orientadas por novos valores e princípios críticos ao punitivismo, trazendo
um novo olhar para as violências contra as mulheres, desde uma
perspectiva que leva em conta fatores para além do gênero e todas
as iniquidades do Sistema de Justiça Criminal.
O capítulo 10, intitulado “Capacitismo: a diversidade seletiva do mercado de trabalho”, de Clarissa Constant de Constant, tem
como objetivo realizar uma breve reflexão acerca do tema da diversidade no mercado de trabalho. Essa tendência tem ganhado força
nos últimos tempos, porém percebe-se a dificuldade de o mundo do
trabalho reconhecer as pessoas com deficiência como parcela significativa da diversidade humana. No Brasil, cerca de 25% da população possui algum tipo de deficiência, o que nos mostra a necessidade
de esperançarmos, no sentido freiriano da palavra, para que a diversidade humana seja realmente reconhecida.
O capítulo 11, intitulado “Racismo estrutural na vivência de
mulheres quilombolas: narrativas de um cotidiano de violações de
direitos e resistências”, de Eliana Mourgues Cogoy e Patrícia Krieger Grossi, tem por objetivo mostrar o racismo estrutural a partir
das narrativas de mulheres quilombolas de diferentes gerações. Para
tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, bem
como analisadas as falas provenientes da coleta de dados de pesquisa realizada em 2018, com narrativas de três gerações de mulheres
quilombolas no Rio Grande do Sul. O racismo estrutural é presente
e revela que a equidade racial está longe de ser alcançada. São diversos os desafios a serem superados nos mais diferentes âmbitos da
sociedade brasileira.
O capítulo 12, intitulado “Classe, raça e gênero, o tripé maldito das sociedades humanas: o papel da cultura e do patrimônio
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na manutenção dessa ‘trepeça’”, de Tiago Campos, discorre sobre
os pilares fundantes da humanidade e como o patrimônio histórico
institucional reafirma os valores burgueses eurocêntricos de sociabilidade e, assim, fomenta a violência estrutural que parece crescer
de forma exponencial. O autor traz que esses pilares que constituem
a sociedade humana direcionam a maneira com a qual pensamos a
nossa existência: a classe, a raça e o gênero. Além desse tripé essencial da formação social, países ex-colonizados e hoje em posição de
dependência, sofrem ainda com o embranquecimento sistemático do
seu imaginário, fenômeno essencial para a manutenção do discurso
e ação imperialista dos países do centro, mais marcadamente países
da Europa e Estados Unidos da América, e é nesses países que níveis
de diferentes tipos de violência são mais agravados.
O capítulo 13, intitulado “Chapa Preta: uma iniciativa para
enegrecer o campo publicitário”, de Eneias Brum, busca analisar as
relações entre racismo e publicidade no Brasil. O texto tem como
objetivo observar indícios de engajamento do campo publicitário
em práticas antirracistas através da análise de propostas divulgadas
pela Chapa Preta, a diretoria eleita pelo Clube de Criação para o período 2021-2023. A fundamentação teórica aborda a articulação do
campo publicitário com o mundo social, as práticas de contestação
do público à publicidade, a dupla articulação da publicidade através
da modalidade de produção engajada, o racismo e a emergência da
publicidade antirracista. Como objeto empírico, são analisadas publicações da Chapa Preta no Instagram para, através da técnica de
análise documental, refletir sobre o potencial de transformação do
campo publicitário através de práticas antirracistas propostas para
serem executadas pelo Clube de Criação.
Por último, o capítulo 14, intitulado “Aperitivos ecofeministas: alternativas para pesquisas sobre violência, poder e dominação”,
de Larissa Lunkes de Souza, aborda as teorias ecofeministas e a interseccionalidade, conexão da opressão das mulheres com as demais
opressões; traz também uma oposição a lógicas binário-hierárquicas
e uma defesa da multiplicidade/pluralidade; aborda o princípio da
coexistência, a ética do cuidado e a associação patriarcal de homem-cultura superior à mulher-natureza, reforçando o domínio dos homens sobre as mulheres, entre outros temas.
Esta publicação procura desnaturalizar as múltiplas expressões de violências e trazer subsídios para a intervenção profissional
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em diferentes espaços sócio-ocupacionais, voltada para a defesa intransigente de direitos humanos e respeito à diversidade humana.
Espera-se, assim, contribuir para potencializar a construção de estratégias coletivas para o enfrentamento do racismo, sexismo, capacitismo e outras formas de opressão presentes no sistema de justiça, na
publicidade, no mercado de trabalho, nas escolas, na mídia, nos espaços públicos, enfim, no cotidiano institucional. Coisas que deveríamos saber urgentemente para poder transformar essas realidades!
Patrícia Krieger Grossi, PhD
Organizadora
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PARTE I.
VIOLÊNCIAS, GÊNERO E PODER:
O PESSOAL É POLÍTICO
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CAPÍTULO 1
A violência de gênero contra as mulheres durante a pandemia
da covid-19: um olhar sobre a violência estrutural a partir de
uma perspectiva feminista e anticapitalista
Tatiana Otto Stock
Ângelo Brandelli Costa
Introdução
A pandemia da covid-19, anunciada em 30 de janeiro de 2020
pela Organização Mundial as Saúde (OMS) como Emergência de
Saúde Pública de Importância Internacional, impactou fortemente
o estilo de vida da população mundial em função da sua gravidade,
facilidade de contágio e das medidas impostas para o controle da sua
contaminação, como a permanência em casa a fim de evitar aglomerações e diminuir contato físico entre as pessoas. Em 25 de junho de
2021, mais de 3 milhões de pessoas já haviam morrido no mundo
tendo como causa provável a covid-19, sendo 70 milhões de casos
confirmados da doença apenas nas Américas (OMS, 2021).
Em 24 de junho de 2021, mais de 2 bilhões de doses da vacina
já haviam sido administradas em todo o mundo. Nesse novo cenário
da pandemia, muitas das atividades foram retomadas e estabilizadas,
e as pessoas foram, gradualmente, retomando o seu ritmo de vida.
A permanência em casa, o distanciamento físico, o fechamento de estabelecimentos e a crise econômica, fatores trazidos pela
pandemia, potencializaram diversas vulnerabilidades sociais, como
é o caso das mulheres e, especialmente, das mulheres que já viviam
em um relacionamento abusivo ou violento. Autoras trazem fortes
impactos que as medidas da pandemia tiveram em mulheres, como
prejuízos na saúde física, mental, emocional, na situação financeira, violência doméstica e familiar (BRADBURY-JONES; ISHAM,
2020), sobrecarga de trabalho doméstico e familiar, assim como
suas intersecções, como maior vulnerabilidade das mulheres pobres,
negras, pardas e com deficiência (MONTEIRO; YOSHIMOTO; RIBEIRO, 2020).
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As desigualdades de classe e gênero potencializadas pela pandemia e enraizadas no sistema patriarcal e capitalista são impulsionadas pela violência simbólica no momento em que práticas sexistas
são negadas, o conteúdo de gênero abafado e o comportamento machista, classista e racista não é reconhecido (BOURDEIU, 1989); e
pela violência estrutural no momento em que normas, regras e leis
são criadas embasadas no interesse da elite branca, garantindo direitos para uma parcela específica da população e legitimando violências, com base na lógica do interesse pelo capital (CAVALLI, 2009).
A violência de gênero contra a mulher (VGCM) é fortemente
influenciada pela violência simbólica e pela violência estrutural, e
entendemos que elas se atravessam em muitos momentos quando
falamos no âmbito da violência, discriminação e questões sociais,
sobretudo dentro dessa temática. Ao longo deste capítulo, foi escolhido analisar mais profundamente o recorte da relação entre VGCM
e a violência estrutural, embora percebamos a violência simbólica
sempre permeando essa análise.
Outro conceito de importante destaque ao longo deste capítulo é a interseccionalidade na VGCM, assim como a influência
que os marcadores raça e classe sofrem pela violência simbólica
e estrutural. Crenshaw (2002) nos traz aspectos da discriminação
interseccional, apontando a raça como marca na discriminação de
gênero, e o gênero na discriminação racial, havendo um aumento
da vulnerabilidade conforme se intersecciona a raça, a classe e o
gênero. Hooks (2018) expõe o quanto o movimento feminista é inseparável das categorias raça e classe, partindo de uma perspectiva
histórica em que a luta feminista compactuou com o patriarcado,
promovendo grande desigualdade entre mulheres economicamente
privilegiadas e mulheres de classe média e baixa, também fortalecendo a supremacia racial, garantindo o poder aos homens brancos
e excluindo pessoas não brancas. Além disso, raça está conectada à
classe, pois, como fruto da discriminação racial e de gênero, grande
parte das mulheres não-brancas são sobrecarregadas pela pobreza,
sendo responsáveis pela assistência a crianças e sofrendo pela falta
de capacitação profissional, tornando-se um grupo de grande vulnerabilidade e invisibilidade (CRENSHAW, 1994).
Cabe destacar que a integração da pauta de raça, construída pelas mulheres negras, no movimento feminista, possibilitou um
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movimento que não atendia especificamente aos interesses das mulheres privilegiadas, contemplando mais mulheres (HOOKS, 2018;
CRENSHAW, 1994) ao entender que as experiências de mulheres
não-brancas é a intersecção do racismo (e classismo) com o sexismo, e que tais experiências não poderiam ser contempladas pela luta
de gênero ou de raça separadamente (CRENSHAW, 1994). Assim,
fez-se necessário enfrentar tanto a desigualdade de gênero quanto a
desigualdade racial (SILVEIRA; NARDI, 2014).
Políticas públicas e a rota crítica das mulheres que viveram violência de gênero
A violência simbólica contra as mulheres, conforme descrita por Bourdieu (1989), desencadeia uma banalização da violência
contra as mulheres e a legitima, prejudicando, de forma considerável, o amparo social e do Estado para essa população e impactando a
efetividade legislativa dos órgãos responsáveis, resultando em uma
violência estrutural contra as mulheres (CAVALLI, 2009). O crescente movimento de mulheres nas últimas décadas tem impulsionado mudanças legislativas e iniciativas nas políticas públicas (SILVA;
KROHLING, 2019; PASINATO, 2005).
Visto que o combate à violência em geral não foi suficiente para reduzir os índices de violência contra a mulher, se fez necessária a implementação de políticas públicas específicas (SILVA;
KROHLING, 2019). Em 2006, no Brasil, a Lei nº 11.340, denominada Lei Maria da Penha, estabeleceu um importante marco nas
políticas públicas, possibilitando o amparo legal para as mulheres
vítimas de violência e deslegitimando a violência contra a mulher,
apontando-a como violação dos direitos humanos. A Lei Maria da
Penha especifica os tipos de violência contra a mulher, classificando-os como de natureza física, psicológica, sexual, patrimonial e
moral, e estabelece medidas de proteção promovendo a garantia de
direitos humanos para as mulheres que vivenciam ou vivenciaram
violência de gênero contra a mulher (BRASIL, 2006).
Como forma de colocar diretrizes na qualidade do atendimento dos serviços especializados, as Normas Técnicas de Padronização
das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs
(BRASIL, 2010) destacam a necessidade de comprometimento e
implementação da Lei Maria da Penha por todos os serviços da rede
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de atendimento especializado à mulher através do Pacto Nacional
de Enfrentamento à Violência. A Lei Maria da Penha tem como tripé
medidas de prevenção – assistência – repressão, atuando em ações
para a eliminação da discriminação de estereótipos de gênero e preconceito contra a mulher, com o objetivo de renovação das práticas
sociais, a integração e articulação das políticas públicas e dos benefícios destinados à assistência das mulheres em situação de violência e a repressão dos crimes de violência doméstica pelos órgãos
responsáveis.
Outras leis foram conquistadas pela luta das mulheres nos últimos anos, cabendo destaque para a Lei nº 13.104, instaurada em
2015 no Código Penal e que identifica o feminicídio como crime
hediondo. Mais recentemente e já no período da pandemia de covid-19, a Lei nº 14.188, de julho de 2021, passou a considerar a
violência psicológica contra a mulher como um tipo de crime.
Infelizmente, apesar da importância dessa legislação, muitas
mulheres ainda não têm conhecimento acerca dos seus direitos e
das garantias oferecidas pela legislação, e a aplicabilidade dessa lei
ainda não é integral, apresentando falhas na sua efetividade. Na delegacia de São Borja, onde Carneiro e Fraga (2012) desenvolveram
sua pesquisa, foi constatado que, em 2009 e 2010, 27% e 57% dos
casos, respectivamente, não foram insaturados, isto é, os registros
não chegaram à investigação. Apesar de a lei identificar que todo
registro precisa ser insaturado e que a vítima só pode renunciar à
denúncia em audiência perante o/a juiz/a, foi constatado que muitas
das vítimas renunciaram na própria delegacia de polícia, e que os
poucos casos finalizados resultaram em 24 impunidades dos autores
da violência, silenciando e legitimando a violência de gênero contra
a mulher (CARNEIRO; FRAGA, 2012). No entanto, não há ações
governamentais para dar conta dessa demanda, retomando, assim, a
falta de interesse do Estado na aplicação eficaz dessas legislações e
garantia de direitos, proteção e recursos para as mulheres que vivenciam ou vivenciaram violência de gênero.
Esse percurso realizado pelas mulheres que decidem denunciar sua situação de violência é definido pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) como rotas críticas, representando também singularidades de cada mulher ao trilhar essa rota e abarcando
a experiência das mulheres na América Latina e Caribe. Meneghel
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et al. (2011) trazem importantes dados referentes à rota crítica no
Brasil e realizam estudo em Porto Alegre com mulheres em situação
de violência e operadores sociais dos serviços especializados. As
autoras identificam como facilitadores nas rotas críticas a existência
da Lei Maria da Penha e a eficácia do atendimento de alguns operadores, e como limitadores a fragmentação dos serviços e a falta de
capacidade dos operadores sociais para lidar com a complexidade
da demanda nos termos do acolhimento institucional e atuação nas
iniquidades sociais de gênero (MENEGHEL et al., 2011).
Segundo uma revisão integrativa realizada por Arboit, Padoin
e Paula (2019), os fatores limitadores no percurso das rotas críticas são a falta de proteção e a infraestrutura da rede e dos recursos humanos, culpabilização, discriminação e julgamento moral da
mulher. Demais autores relatam limitadores nas rotas, corroborando
achados anteriores: a culpabilização da vítima por sua condição de
violência e a não identificação da violência de gênero (ACOSTA et
al., 2015), falta de resolutividade judicial (PASINATO, 2005; VIEIRA et al., 2013), reprivatização dos casos e reforço da crença de que
“em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” (PASINATO,
2005). Os fatores positivos descritos são encaminhamento efetivos à
rede, auxílio policial na saída de casa e reorganização da vida (ARBOIT; PADOIM; PAULA, 2019).
A importância dos elementos das rotas críticas é a sua capacidade de impulsionar, retardar ou impedir a quebra do silêncio e o
início da rota. Outro dado importante considerado um limitador nas
rotas críticas é a quantidade expressiva de mulheres que sofrem violência física e sexual e não procuram nenhum tipo de suporte. Moura
(2009), em sua pesquisa realizada na região de Brasília, relata que
52,6% das participantes não buscaram nenhum tipo de ajuda. E esse
dado também pode ter sido potencializado na pandemia.
Alguns estudos internacionais apontaram fatores associados à
potencialização da violência, especialmente em relação à violência
por parceiro íntimo (VPI), no período de crise da pandemia de covid-19. Foram destacadas a diminuição da renda própria ou familiar
e desemprego, o medo do contágio e as medidas de prevenção da
covid-19, que dificultaram a saída de casa e o acesso a locais e pessoas (ABUHAMMAD, 2021; ADIBELI; SÜMEN; TESKERECI,
2021; FAWOLE; OKEDARE; REED, 2021), o aumento do uso de
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bebida alcoólica e outras drogas por parte dos parceiros (FAWOLE;
OKEDARE; REED, 2021) e a sobrecarga com tarefas domésticas e
cuidados com filhas/os (ADIBELI; SÜMEN; TESKERECI, 2021).
Em relação a esse último item, Hoehn-Velasco, Silverio-Murillo e
De La Miyar (2021) identificaram que a proibição da venda de bebida alcoólica no México está associada a menores índices de VPI.
Esses fatores podem indicar o aumento da vulnerabilidade
das mulheres em um período de crise mundial, por estarem menos
amparadas pelo Estado e pelas comunidades em função de estigmas
e discriminação. Flores et al. (2021) destacam, ao investigar o impacto da pandemia de covid-19 em homens e mulheres, que, apesar
de homens terem sido mais contaminados pelo vírus, provavelmente
por apresentarem menos cuidado em relação ao contágio ou por não
terem parado de sair para trabalhar, as mulheres apresentaram, de
forma significativa, uma maior sobrecarga de trabalho doméstico,
cuidados com filhas/os e familiares, salários reduzidos e medo do
desemprego. Esses resultados apresentam grande embasamento na
cultura patriarcal que define o gênero masculino como uma pessoa
sem fraquezas e que não precisa de cuidados, e a mulher como a
cuidadora, e não provedora da casa (FLORES et al., 2021).
Carneiro e Fraga (2012) apontam, como os motivos dessas
falhas, as dificuldades na estrutura estatal, cultural e social em relação à discriminação, preconceito e desigualdade de gênero. Boxall
e Morgan (2021), investigando mulheres na Austrália, identificaram
que as mais impactadas pela VPI foram mulheres grávidas e de minoria étnica, apontando dados importantes em relação ao impacto da
pandemia em termos interseccionais; e Crenshaw (1994) ressalta a
importância de que as interseccionalidades de grupos minoritários
sejam utilizadas para a humanização das políticas no enfrentamento
da violência contra as mulheres.
Dessa forma, pensando em uma maior efetividade das políticas públicas e ações governamentais no enfrentamento da violência
contra as mulheres para o momento da pandemia, os recursos tecnológicos foram amplamente utilizados, como uso do WhatsApp,
delegacia on-line, grupos virtuais, entre outros recursos, a fim de
manejar a necessidade de distanciamento físico e diversificar formas de acesso virtual, como a possiblidade de usar diferentes dispositivos e de forma silenciosa. Infelizmente, ainda há uma barreira
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importante a ser destacada, referente ao fato de que mulheres que
vivem em situação de violência são frequentemente privadas do uso
desses recursos e/ou não têm condições financeiras para acessá-los
(BRADBURY-JONES; ISHAM, 2020).
Além dessa dificuldade aumentada pela pandemia em relação
às formas de acesso à ajuda, o distanciamento físico traz outro desafio para a recuperação dessas mulheres que estão mudando de vida
ou em vias de quebrar o silêncio, pois a rede de apoio, tanto formal
quanto informal (amigas/os, familiares etc.), é considerada peça fundamental nesse processo (ANDERSON; RENNER; DANIS, 2012).
Esses dados trazidos por Anderson, Renner e Danis (2012)
também reforçam a importância de uma funcionalidade eficiente da
rede e a importância das adaptações das diretrizes institucionais e legislativas, especialmente para momentos de crise, a fim de facilitar o
acesso das mulheres e garantir o atendimento de seus direitos como
uma importante ferramenta de saúde mental e direitos humanos.
Para isso, é imprescindível conhecer a realidade dessas mulheres
e entender como a pandemia e o distanciamento físico interferiram
nessa situação.
Além disso, fatores que são impulsores na rede de apoio às
mulheres podem ser prejudicados pelo reforço da vitimização da
mulher em situação de violência, promovendo a dependência institucional e a percepção de que ela é incapaz de governar sua própria
vida. É importante que a rede esteja atenta e promova a autonomia
da mulher como forma de prevenir e finalizar a violência de gênero
contra as mulheres (BRUHN; LARA, 2016). Ainda vale destacar
que grande parte das mulheres que buscaram a delegacia de polícia
de São Borja optaram pela denúncia apenas por não encontrarem
outras formas de apoio, e muitas relataram a necessidade de suporte psicossocial para si e para suas famílias (CARNEIRO; FRAGA,
2012). Essas necessidades devem ser atendidas pelos serviços especializados, e os agentes de polícia devem ter respaldo e amparo da
rede para dar continuidade aos casos dessas mulheres, exigindo que
a/o atendente tenha aporte, qualificação e meios para realizar esses
encaminhamentos (CARNEIRO; FRAGA, 2012).
Segundo consta no Relatório Preliminar: Força Tarefa Interinstitucional do Combate aos Feminicídios do RS (RIO GRANDE
DO SUL, 2020), a falta de recursos públicos para o enfrentamento e
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atendimento às mulheres vítimas de violência aparece como um dos
principais motivos para o aumento do feminicídio. A previsão orçamentária de política para as mulheres no Rio Grande do Sul (RS)
tem decaído, chegando a 20 mil reais no atual governo. Esse déficit
impacta diretamente a qualidade dos serviços, tanto de prevenção
(acesso à saúde, educação e geração de trabalho e renda) quanto de
ações de atendimento para mulheres vítimas de violência (DEAMs,
Patrulha Maria da Penha, entre outros programas). Apesar da integralidade da legislação, atuando em muitos contextos de serviços
e assistência para garantir os direitos humanos das mulheres que
vivenciam ou vivenciaram violência, o gerenciamento qualificado e
humanizado dessa rede ainda é um desafio.
Violência macroestrutural: a violência do Estado
A violência estrutural está diretamente ligada às relações de
produção e exploração naturalizadas no sistema capitalista e, portanto, invisíveis. É possível destacar três tipos de violência: autoinfligida, contra si; interpessoal, por pessoa ou grupo; e coletiva, por
atos terroristas, pelo Estado ou organizações (CAVALLI, 2009).
Como principal perspectiva, Cavalli (2009) usa o conceito marxista
para explicar a violência, entendendo que comportamentos violentos existem dentro de uma sociedade violenta, em um Estado que
defende os interesses da elite, promovendo desigualdade de classe,
raça e gênero.
A autora ainda afirma que o Estado tem o papel de criar respostas de enfrentamento a situações de violência e garantir os direitos e o bem-estar da população. Porém, quando o Estado está a favor
do capital, o resultado é a falta de políticas públicas, ausência de
serviços públicos e falta de enfrentamento às expressões da questão
social (CAVALLI, 2009).
Em 28 de junho de 2021, o Brasil registrou 500 mil mortes
por covid-19 (FIOCRUZ, 2021), tendo enfrentado uma situação desastrosa ao longo do período de pandemia, com ausência de diretrizes do Ministério da Saúde e negligência do Estado, chegando a ser
considerado como um dos países com pior gestão no mundo no enfrentamento à covid-19. Esse cenário se configura como uma violência de Estado não apenas pelo número alarmante de mortes, mas por
outras manifestações sociais, como desemprego, fome e violência.
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Estima-se que, apesar das subnotificações dos casos, a violência doméstica contra as mulheres tenha aumentado em até três vezes
(SOUZA; SANTOS; ANTONIETE, 2021), e muitos estudos indicam não o aumento da frequência, mas da gravidade dos casos, sugerindo uma demora na busca por ajuda (MOOLDON et al., 2021;
NITTARI et al., 2021; SABRI et al., 2020). Tanto os dados de subnotificação citados ao longo do capítulo quanto a demora para buscar ajuda (formal ou informal) e o aumento desse tipo de violência,
sobretudo durante a pandemia de covid-19, podem ser identificados
como resultado da cultura patriarcal, que impede a aplicabilidade
eficiente de leis como a Maria da Penha ou qualquer outra reconhecedora das mulheres como sujeitos capazes e dotados de direitos
(BARBOSA, 2015). Tal relação traz à tona conceitos trabalhados
por Cavalli (2009) em relação à violência estrutural, referentes ao
caráter econômico – da estrutura – e ao caráter ideológico – superestrutura: a ação violenta se dá no plano material, mas a ideologia a
legitima socialmente e a torna imperceptível.
A Lei Maria da Penha traz no seu Art. 2⁰ que:
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação
sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,
intelectual e social. (BRASIL, 2006).
Porém, apesar de essa temática ser abordada na Lei Maria da
Penha, isso não significa que todas/os as/os operadoras/es da aplicação dessa lei entendam o conceito já explorado acerca da interseccionalidade. Silveira e Nardi (2014), por exemplo, entrevistaram
seis juízas/es – quatro de Porto Alegre e dois de Sevilha (Espanha),
todas/os brancas/os –, e a totalidade das/os entrevistadas/os afirmou
não haver diferença no acesso à justiça conforme raça e etnia e negaram que exista desigualdade social no contexto brasileiro entre
a população negra e a população branca. Dessa forma, estão explícitas as diversas facetas da violência macroestrutural reproduzida
em diversas esferas de organizações e poder, expressa através da
discriminação, do preconceito e da negação da intersecção desses
marcadores (CAVALLI, 2009).
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Interseccionalidade: gênero, classe, raça e etnia e o papel do
sistema patriarcal
Silveira (2013), em sua tese, enfatiza a história do mundo e,
sobretudo, a história do Brasil como baseada em opressão de gênero, raça, etnia e classe como forma de garantir os direitos humanos
a homens-brancos-ocidentais através de importantes marcos, como
o expressivo período de escravidão e desumanização da raça negra,
o significativo atraso no reconhecimento dos direitos das mulheres
enquanto cidadãs e a ainda atual luta pela legalização do aborto,
que são exemplos de retrocessos quando comparados a legislações e
avanços nos direitos humanos em outros países.
Os processos de colonização no mundo estabeleceram uma
hierarquia racial em que a raça branca europeia se colocou como
superior às demais, e a raça negra como inferior a todas, instaurando
séculos de escravidão, sobretudo no Brasil. Isso garantiu a dominação pela raça branca como forma de opressão, o que, consequentemente, impactou fortemente o acesso das mulheres não-brancas à
justiça, à saúde e à produção de subjetividade (SILVEIRA; NARDI,
2014). No momento em que os serviços e a sociedade não contemplam as diferentes necessidades resultantes dessa intersecção, as
mulheres não-brancas passam a ter grande probabilidade de terem
suas necessidades não atendidas, uma vez que as prioridades são
estabelecidas para contemplar mulheres racialmente privilegiadas
(CRENSHAW, 1994).
Assim, para além do conceito isolado de gênero, é importante
entender o sistema econômico e político no qual estamos inseridos,
que, num modelo capitalista e patriarcal, implementou a divisão sexual do trabalho e a separação das esferas de produção e reprodução,
criando mecanismos que mantêm a mulher numa posição de submissão e de cidadã de “segunda classe” (PASINATO, 2005). Dessa
forma, através do princípio de opressão e da desigualdade de poder,
que determina conceitos de superioridade e inferioridade, oprimindo
não apenas pelo gênero, mas também pela raça/etnia e classe social,
é possível compreender o conceito de interseccionalidade como fator importante dentro do fenômeno da violência de gênero contra a
mulher (SCOTT, 1995).
Crenshaw (1994) também cita outros fatores de vulnerabilidade para mulheres não-brancas, como a menor rigorosidade com
- 40 -
os agressores em caso de estupro de mulheres negras quando comparados aos casos de estupro de mulheres brancas (assim como uma
maior rigorosidade com pessoas negras acusadas por estupro em
comparação com pessoas brancas), trazendo um importante recorte
da experiência de violência de gênero contra mulheres não-brancas.
Outro fator que cabe destacar é a legitimação da violência contra
as mulheres em comunidades não-brancas, onde não se denuncia
a violência como uma forma de manter a integridade da comunidade, tornando difícil, inclusive, a tentativa de ativistas de acessar
essas mulheres, que não se encorajam a buscar ajuda em serviços
formais ou informais em função das barreiras sociais e culturais,
além da indisposição e desencorajamento para acionar a polícia pelo
receio de receber um tratamento hostil em função da sua condição
(CRENSHAW, 1994).
Autores destacam maiores níveis de violência contra as mulheres de minorias étnicas, grávidas (BOXALL; MORGAN, 2021),
com baixo nível socioeconômico (TEDESSE et al., 2020) e analfabetas (YARI et al., 2021). E Sabri et al. (2020) ressaltam que,
dentre os fatores que vulnerabilizam a mulher imigrante e a expõem
a maiores níveis de violência, está a situação de estar irregular no
país, que é acentuada em contextos de crise, como da pandemia da
covid-19. A falta de visibilidade à interseccionalidade nas políticas
públicas é considerada uma grande lacuna no enfrentamento à violência contra as mulheres no mundo, escancarando a não contemplação de intersecções como raça, minoria étnica, imigração, deficiência, gravidez e religião e impedindo que essas mulheres tenham as
suas necessidades atendidas ou se quer vistas (ORTIZ-BARREDO;
VISES-CASES; GIL-GONZÁLES, 2011).
Considerações finais
Assim, é possível compreender a VGCM como resultante
de um sistema patriarcal, capitalista, racista e classista, motivada
pela violência estrutural e, sobretudo, pela violência macroestrutural, uma vez que o Estado está em busca de satisfazer seus próprios
interesses, o interesse do capital e do homem-branco-ocidental – o
sujeito do direito. Essa realidade é manifestada no expressivo déficit
das políticas públicas e de preparo dos prestadores de serviços para
lidar com a demanda das mulheres que vivenciam ou vivenciaram
- 41 -
violência, sendo ainda mais invisibilizadas as intersecções que atravessam esse fenômeno.
A falta de gestão e o estado de caos no contexto brasileiro
durante a pandemia de covid-19 vêm aumentar essa situação de violência estatal e social, impactando de forma ainda mais cruel as populações de minoria, tornando-as mais vulneráveis à crise instalada
mundialmente e agravando suas condições. Este capítulo aponta a
necessidade de maior eficácia legislativa à demanda das mulheres,
à garantia de direitos para essa população, assim como aponta a necessidade de educação de gênero para a comunidade e a importância
da desconstrução do sistema patriarcal e capitalista, como forma de
diminuir a força da violência estrutural na nossa sociedade e prevenir a VGCM.
É importante ressaltar que as questões entre pandemia e violência estrutural seguiram se atravessando ao longo dos diversos
momentos desses últimos dois anos, desde o início da covid-19, e
que, ainda hoje, esses atravessamentos estão presentes. Como foi
visto neste capítulo, a violência estrutural não é exclusiva da pandemia, e sim uma realidade que permeia o dia a dia e potencializa
as problemáticas sociais desde antes dela, e que, se não houver intervenções em nível macro, tais problemáticas seguirão presentes e
potentes no período pós-pandêmico.
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de 2006 (Lei Maria da Penha), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal), em todo o território nacional;
e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para modificar a modalidade da pena da lesão corporal
simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo
feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica contra
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- 47 -
- 48 -
CAPÍTULO 2
A violência doméstica durante a pandemia: uma análise
a partir do portal G11
Suelen Gotardo
Introdução
De acordo com o Art. 5º da Lei Maria da Penha, sancionada
em 2006, violência doméstica e familiar contra as mulheres significa “[...] qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial” (BRASIL, 2006). O avanço consagrado pela instituição da lei foi um marco no combate à violência de gênero, mas
ainda há muito a ser feito.
A mídia, por sua vez, possui um papel fundamental no combate à violência doméstica, tanto na divulgação e consolidação dos
dados, quanto na percepção da violência. Nesse sentido, pode ser
compreendida como uma importante ferramenta a ser usada como
estratégia de enfrentamento. Mas como trabalhar esse canal na sociedade midiática?
Sabe-se que o sujeito contemporâneo é bombardeado por informações diariamente e, com o apoio da democratização do conteúdo promovido pelas redes sociais, o conceito de informação se
transformou. Castells (2017, p. 29) comenta que “[...] a transformação mais importante na comunicação nos últimos anos foi a transição da comunicação de massa para a intercomunicação individual”,
sendo que nesta última “[...] o processo de comunicação interativa é
que tem o potencial de alcançar uma audiência de massa”. Esse processo decorre principalmente do empoderamento de atores sociais,
que ganham voz nesse novo modelo comunicacional socialmente
conectado.
Logo, o modo de transmissão da informação transformou-se.
No caso da divulgação da violência doméstica, muitas vezes a mí1 Parte desta pesquisa foi apresentada no GP Comunicação para a Cidadania, XXI Encontro
dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 44º Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação.
- 49 -
dia expõe os fatos sem respeitar ou considerar os direitos humanos,
sobretudo das vítimas. Nesse movimento, estrutura-se a banalização da violência, ou, conforme Bonamigo (2008), a naturalização da
violência, que pode ser vista nas capas de jornais, em chamadas e
comerciais, em destaque nos sites e plataformas digitais, carregados
e revestidos de títulos sensacionalistas ou, como conceitua Debord
(1997), produto da sociedade do espetáculo. “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se
anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que
era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”, explica Debord (1997, p. 13) sobre a sociedade do espetáculo.
Nessa perspectiva, as violências são legitimadas e difundidas
por “[...] sistemas simbólicos e materializações diversas que impedem que se vejam as suas determinações sócio-históricas e contextuais”, como nota Borges (2015, p. 252). A autora lembra ainda
que tal sistematização contribui com a culpabilização das próprias
mulheres em um contexto em que a “[...] subalternidade feminina é
vista como necessária e como decorrência natural e imediata de suas
determinações biológicas” (BORGES, 2015, p. 252).
Esse problema agrava-se com a pandemia do novo coronavírus e com a necessidade do isolamento social que assola o mundo
desde dezembro de 20192, visto que muitas mulheres foram obrigadas a ficar reclusas em casa, tendo muitas vezes que conviver com
seu agressor. E sabe-se que o local onde há mais registro de violência doméstica e feminicídio é dentro de casa, espaço onde a mulher
deveria se sentir protegida.
Assim, este capítulo propõe desvelar a situação da violência
no período de pandemia ao mesmo tempo em que expõe de que forma o tema é tratado pela mídia. Como etapa inicial, serão apresentados dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
sobre a violência doméstica no ano de 2020.
Após o registro dos dados, traz-se as notícias de feminicídios
ocorridos no período da pandemia catalogadas na busca em veículos
de comunicação. A pesquisa se deu nos meses de abril, maio e junho
de 2021, a partir das expressões: “mulher é assassinada”, “mulher é
morta”, “mulher é assassinada pelo marido”, “mulher é morta pelo
marido” e “mulher é vítima de violência”, rastreadas na plataforma
de busca Google.
2 Em 2019 foi diagnosticado os primeiros casos de pacientes com covid-19, uma nova espécie
de coronavírus associado à Síndrome Respiratória Aguda Grave, SARS.
- 50 -
O estudo é uma aproximação dos temas circunscritos na tese
intitulada, provisoriamente, A Mídia e as Expressões de Violência:
um Olhar sobre os Instrumentos de Cristalização do Imaginário
do Feminino, no sentido de explorar a temática. Além disso, traz
também a análise das notícias, etapa essa que será apresentada na
parte final deste capítulo. Cabe destacar que este trabalho priorizou
o máximo de resultados encontrados, porém, para se ter um recorte definido, foram utilizadas as 50 primeiras respostas encontradas
pelo buscador, diferentes entre si e que fossem relacionadas ao ano
de 2021.
A desigualdade de gênero e a violência estrutural
Um material elaborado pela Fundação Demócrito Rocha trata
da violência doméstica e suas principais características. Organizado
por Isabel Carneiro (2020), o estudo nos mostra que o fenômeno da
violência de gênero deve ser analisado de maneira profunda, pois
sua consolidação nas estruturas e relações sociais se deu ao longo do
tempo, e mantém-se enraizado na sociedade atual.
“A principal característica das violências cometidas contra as
mulheres e que as diferencia das violências que vitimam os homens
é o vínculo afetivo ou de parentesco entre a vítima e seu algoz”,
comenta Carneiro (2020, p. 21). Tal constatação pode ser legitimada
por meio dos títulos das notícias encontradas nesta análise, visto que
todas apresentaram algum grau de relacionamento com o agressor.
É por essa razão que o fenômeno da violência contra as mulheres
precisa de uma análise aprofundada, que leve em consideração não
apenas a sua dimensão e permanência no tempo, como as manifestações próprias dele, buscando identificar a raiz do problema para
que, por meio de políticas públicas e sociais, de políticas educacionais e de pessoas engajadas, possamos transformar essa realidade.
(CARNEIRO, 2020, p. 21).
Violência de gênero tem sido uma expressão utilizada para
abordar a violência contra a mulher. Mas se o gênero possui essa
carga expressiva em relação à violência doméstica, é necessário pesquisar as suas raízes e como ele está estruturado na sociedade.
Saffioti (2015, p. 126) conceitua gênero como “[...] a construção social do masculino e do feminino”. Nesse sentido, a sociedade
vai esculpindo o estereótipo de menino e menina, principalmente
- 51 -
por meio das suas relações de poder, ferramenta importante para
o patriarcado. Essa transformação acompanha as mudanças sociais.
Matos (2015, p. 68) lembra que “[...] as culturas e sociedades são
dinâmicas e se transformam, com o passar do tempo ocorrem muitas
mudanças no conjunto de regras e valores que as organizam”.
Antes mesmo do nascimento do bebê, no momento após a
identificação do órgão genital do feto, os pais já constroem os padrões da criança. Assim, se for menino, o quarto do bebê, suas roupas e brinquedos, tendem a ser azuis. Por outro lado, se for menina,
a cor será predominantemente rosa. Essa construção social acompanha o desenvolvimento da criança e expande-se para além do quarto
e do lar. Por isso, muitas lojas de brinquedos, por exemplo, separam
seus departamentos entre meninos e meninas. Na maioria das vezes,
no espaço das meninas, são encontrados utensílios de cozinha e bonecas, enquanto, no departamento dos meninos, há uma variedade
de brinquedos relacionados a super-heróis, carrinhos, aviões, entre
outras opções diversas.
A menina é ensinada desde cedo a auxiliar a mãe nos afazeres domésticos, a cumprir normas e regras de “mocinha”, como ser
educada a não sentar de pernas abertas ou não falar alto, enquanto o
menino é criado para ser o homem da casa, ensinado a não ser sensível ou não demonstrar fraqueza com choros e lágrimas, assumindo,
assim, uma postura de rigidez, carregada de responsabilidades impostas pela virilidade do patriarcado.
Matos (2015, p. 69) explica que
Os estudos de gênero e feministas têm, ao menos desde os anos
1980, procurado demonstrar que há processos de construção social
e política que certamente incidem sobre a forma como estão definidos os lugares para os homens e as mulheres em nossas sociedades.
Mas como desconstruir a desigualdade de gênero que se perpetua até os dias de hoje? “Boa parte das características atribuídas
ao feminino foi desvalorizada se comparada àquelas atribuídas ao
masculino”, relembra Matos (2015, p. 69).
Tanto a desigualdade quanto a violência de gênero estão fortemente ligadas ao sistema do capital, que, por sua vez, amplia,
estrutura e legitima o poder dos homens, ou, como chamamos, o
patriarcado. Aguiar (2015, p. 270) explica que a “[...] autoridade do
- 52 -
chefe é ilimitada, com poder de vida e morte, de reconhecimento ou
exclusão econômica, e de arbítrio sobre os destinos de seus comandados”. Essa errônea interpretação se perpetua em diversas sociedades, fazendo com que as mulheres se sintam submissas aos homens,
seja na dimensão econômica, social e/ou pessoal. Aguiar (2015, p.
272) comenta ainda que
[...] o estabelecimento de políticas públicas de combate às desigualdades passa pela inclusão de mulheres no aparato estatal, que
permita a inovação política, e por uma mudança cultural que corrija
rumos no caminho da democratização na relação entre homens e
mulheres no espaço doméstico e no espaço público.
Logo, a desconstrução dessa estruturação acontece em várias
dimensões, na educação, dentro de casa, no ambiente de trabalho...
ou seja, em todos os espaços onde ocorrem as relações sociais. Por
isso, é importante o olhar e o estudo sobre a sociabilidade atual,
além da criação e aplicabilidade de políticas públicas que fomentem
a sua desconstrução.
A violência doméstica na pandemia
Em abril de 2020, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
divulgou dados acerca da violência contra as mulheres no Brasil por
meio de uma nota técnica. O documento apresenta um estudo realizado em seis estados brasileiros – São Paulo, Acre, Rio Grande
do Norte, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pará – com o objetivo
de compreender o impacto das medidas impostas pelo isolamento
social na vida das mulheres, na perspectiva da violência doméstica
(FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).
O estudo demonstrou que a quarentena, medida mais segura
para evitar a transmissão e contágio do coronavírus, provocou um
aumento nos casos de violência doméstica. Isso porque as mulheres
passaram a conviver mais tempo em casa com seus agressores.
Se comparado o índice de feminicídio no primeiro semestre
de 2019 com o do ano de 2020, observa-se o aumento de casos em
todos os estados mapeados, conforme apresenta a figura a seguir.
- 53 -
Figura 1. Comparação de homicídio e feminicídio 2019 e 2020
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020).
Ao mesmo tempo em que os casos de feminicídio aumentaram, os registros de boletins de ocorrência apresentaram queda nos
primeiros dias de isolamento, já que a presença do agressor em casa
dificulta o acesso da vítima aos canais de denúncia.
Figura 2. Boletins de ocorrência
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020).
É importante ressaltar que, tanto os registros de violência doméstica (lesão corporal dolosa) e os registros de ameaças, também
apresentaram redução, conforme ilustrados nas figuras a seguir.
- 54 -
Figura 3. Registros de violência doméstica
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020).
Figura 4. Registros de ameaça
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020).
Também é importante destacar que o portal do Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não apresenta, de forma
clara, os dados de violência doméstica relativos ao ano corrente e de
anos anteriores. Esse fato complica a metodologia de análise e comparação, principalmente em contexto nacional, uma vez que não há
um histórico de dados. Assim, a pesquisa priorizou exclusivamente
os dados divulgados por meio da nota técnica divulgada pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, em abril de 2020.
Outro caminho importante para o registro da violência doméstica é o canal de atendimento à mulher, Disque 180. Quando
analisadas as denúncias registradas na plataforma, fica claro também uma redução durante o período da pandemia, conforme apresenta a figura a seguir.
- 55 -
Figura 5. Denúncias realizadas no canal Disque 180
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020).
De acordo com este documento, no Brasil, o número total de
denúncias realizadas na central de atendimento à mulher, Disque
180, caiu de 8.440 em março de 2019 para 7.714 em março de 2020,
ou seja, apresentou uma redução de 8,6% (FBSP, 2020). O fato também decorre da presença do agressor em casa, que dificulta o acesso
ao Disque 180.
Assim, através da cartografia apresentada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020) sobre a violência doméstica
nos primeiros meses de pandemia, podemos observar um contexto de aumento dos casos de feminicídio ao mesmo tempo em que
os números de denúncias e registros de ocorrência diminuíram nos
estados pesquisados. Esse fato demonstra que a violência doméstica ainda está muito presente na sociedade atual, e é urgente que se
estabeleçam novas formas de combate à violência contra a mulher.
A mídia como instrumento de registro da violência doméstica
Sabe-se que a mídia possui um papel importante para a formação de opinião. No caso da violência doméstica, ela se torna um
instrumento para fomentar o debate. O Instituto Patrícia Galvão
(2020) explica que a mídia influencia crenças e comportamentos e,
em alguns casos, influencia até mesmo o processo penal. Por isso, é
importante pensar na forma de divulgação dos casos de feminicídio.
Neste estudo, entende-se a midiatização como “[...] a emergência e o desenvolvimento de fenômenos técnicos transformados
em meios, que se instauram intensa e aceleradamente na sociedade”,
- 56 -
conforme explica Fausto Neto em entrevista à Revista do Instituto
Humanitas Unisinos (WOLFART, 2009). Nesse sentido, além de informar o crime, a mídia possui um papel de responsabilidade social,
principalmente na desnaturalização da violência.
Sá Martino (2014, p. 274) comenta que
[...] um dos conceitos recentes trazidos para o campo da Comunicação, o conceito de midiatização oferece uma perspectiva de análise
que supera algumas antigas dualidades – por exemplo, pensar que a
mídia é parte integrante da sociedade e, por conta disso, talvez não
faça mais sentido falar nas relações entre ‘mídia e sociedade’, mas
seja importante dedicar tempo a compreender os elementos de uma
‘sociedade midiatizada’, na qual as práticas mais simples, como
ler um texto, ouvir música ou falar com amigos, ganha dimensões
inesperadas.
Assim, como mencionado anteriormente, este trabalho realizou o mapeamento de notícias veiculadas na mídia sobre os casos
de feminicídio e violência doméstica. A pesquisa foi realizada de 1º
de abril a 10 de junho de 2021, a partir das expressões: “mulher é
assassinada”, “mulher é morta”, “mulher é assassinada pelo marido”, “mulher é morta pelo marido” e “mulher é vítima de violência”,
buscadas na plataforma Google.
Para se ter um recorte definido, o estudo priorizou as 50 primeiras respostas encontradas no buscador no campo “notícias”, todas elas ocorridas no período da pandemia3.
O veículo de comunicação que mais apareceu nos resultados
foi o G1, portal de notícias do Grupo Globo. Das 50 notícias analisadas, 35 foram divulgadas pelo portal.
Quadro 1. Portais identificados
Veículo
G1
Correio Braziliense
Número de
notícias
Informação
G1 é um portal de notícias brasileiro
mantido pelo Grupo Globo e sob
orientação da Central Globo de
Jornalismo
Correio Braziliense é um jornal
brasileiro com sede em Brasília,
Distrito Federal, pertencente aos
Diários Associados
35
2
3 A relação das notícias encontra-se no fim deste trabalho, em forma de apêndice.
- 57 -
Diário Online
R7 Notícias
Agora RN
RIC Mais
A CidadeON
SBT
NP Expresso
Zero Hora (GZH)
Estado de Minas
O Diário é um veículo pertencente ao
Grupo RBA de Comunicação
R7 é um dos maiores portais de
internet brasileiro
Portal de notícias do Rio Grande do
Norte
Portal de notícias
Portal de conteúdo do interior do
estado de São Paulo
Portal de notícias da rede de televisão
Sistema Brasileiro de Televisão.
O NP/Expresso é um portal de notícias
do interior do Rio Grande do Sul
GZH é um jornal digital brasileiro
mantido pelo Grupo RBS
Portal de Minas Gerais que também
compartilha notícias nacionais.
1
3
1
2
1
2
1
1
1
Fonte: Elaboração própria.
Os estados que mais apareceram na coleta de dados foram
São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro. Já a idade das vítimas identificadas varia: 10 mulheres de 20 a 30 anos; 15 mulheres
de 31 a 40 anos; 12 mulheres de 41 a 50 anos e duas mulheres de
51 anos ou mais. Logo, as principais vítimas foram mulheres de 31
a 40 anos.
A classe econômica das mulheres não foi algo prioritariamente abordado. Em alguns casos sua profissão foi mencionada, de forma a personificar a vítima, em outros, não é algo apontado.
Em todos os casos foram identificados títulos sensacionalistas. Em alguns, foi possível perceber a falta de sensibilidade com
relação ao tema e, sobretudo, com a vítima e familiares.
Análise das notícias
Como mencionado anteriormente, os títulos apresentam a
mesma construção de linguagem, utilizando expressões sensacionalistas ou espetaculares (DEBORD, 1997), tais como: “Mulher é
assassinada pelo marido com facadas por senha de cartão”, “Mulher
é morta a facadas pelo marido na frente da filha de 5 anos em Limeira”, “Mulher é morta a facadas por ex-companheiro na zona oeste
do Rio”, “Mulher é assassinada pelo filho com golpes de faca, garfo
e martelo”, e assim por diante.
- 58 -
Na notícia abaixo, o portal constrói a frase sugerindo que o
fato foi consequência de uma discussão entre a mulher e seu ex-marido. Como subtítulo, explica que o suspeito tentou se matar e segue
foragido.
Figura 6. Notícia veiculada no portal G1
Fonte: Captura de tela do site (ALENCAR, 2021).
Veloso (2020, p. 165) explica que “[...] a produção industrial
da cultura veiculada pelos meios de comunicação de massa também
influencia na reprodução de comportamentos que afetam a vida das
mulheres”. Logo, a construção da notícia não valoriza o debate sobre a violência de gênero.
É muito comum a narrativa da notícia partir do fato “mulher
é morta” ou “mulher é assassinada”, seguido pela apresentação do
agressor, que, em todas as notícias deste corpus, possui um grau de
relacionamento com a vítima, e, em algumas chamadas, a complementação é o local do crime ou ainda informações sobre o caso,
como, por exemplo: “na frente da filha de 5 anos”.
Figura 7. Notícia veiculada no portal G1
Fonte: Captura de tela do site (MAFRA, 2021).
- 59 -
Mais uma vez, é possível identificar que a construção da notícia não priorizou o respeito à vítima, como sugere Bonamigo (2008)
quando discute a naturalização da violência. Isso porque a linguagem midiática e sensacionalista se sobrepõe à dignidade e aos direitos humanos, sobretudo da vítima e seus familiares.
Figura 8. Notícia veiculada no portal G1
Fonte: Captura de tela do site (SANTOS; HAMADA, 2021).
O título da matéria expõe não só o feminicídio como espetáculo, como também inclui o seguinte contexto: “homem deixa
bilhete e confessa o crime aos filhos por mensagem de áudio em
celular”. O subtítulo, por sua vez, expõe a justificativa do homem
com destaque: “fiz isso por que me traiu”. No entanto, é importante
ressaltar que o ciúme ou o relacionamento não são a causa. A causa,
conforme destaca o Instituto Patrícia Galvão (2020), é a naturalização da violência e da desigualdade de gênero. É necessário que a
mídia contextualize a violência e fomente o debate sobre a violência
doméstica e, consequentemente, de gênero – um propósito que vai
além do ato de informar.
Outro fator que contribui com a banalização da violência é
não enfatizar, sobretudo nos títulos, o nome da vítima. Em muitas
notícias, o nome aparece no fim da matéria, sem grande destaque,
ou, como em 14 dos 50 resultados analisados, não se divulga o nome
da vítima. A matéria abaixo é um exemplo disso.
[Título] Polícia de Campinas diz que marido é suspeito de matar
mulher encontrada carbonizada em carro
[Subtítulo] Homem de 40 anos foi encontrado próximo a um via-
- 60 -
duto e preso em flagrante pelo crime. Ele permanece internado sob
escolta.
[Texto] Uma mulher de 46 anos, encontrada morta na noite de segunda-feira (10) carbonizada dentro de um veículo no Jardim Nova
Mercedes, em Campinas (SP), foi assassinada pelo marido, de acordo com a Polícia Civil. A Guarda Municipal foi acionada e, quando
chegou ao local, a vítima já estava sem vida. A ocorrência foi registrada na 2ª Delegacia de Defesa da Mulher do município.
Segundo o boletim de ocorrência, o carro estava no nome de uma
seguradora e foi locado pelo marido da vítima. Enquanto o caso era
registrado, o homem de 40 anos foi encontrado próximo ao Viaduto
Santos Dumont, com lesões no corpo, “possivelmente decorrentes
de uma queda”, ao tentar se matar.
Ele foi preso em flagrante e socorrido ao Hospital de Clínicas (HC)
da Unicamp, onde permaneceu sob escolta. O caso foi registrado como feminicídio, tentativa de suicídio, além de localização e
apreensão de veículo.
Além da Guarda Municipal, o Corpo de Bombeiros também foi
chamado para atender a ocorrência por conta do carro ter sido queimado. A mulher chegou a tentar sair do veículo, mas não conseguiu
por conta das queimaduras. (POLÍCIA..., 2021).
Nesse sentido, é muito importante que a vítima não seja resumida a números e estatísticas; que, sempre que possível, se fale o
seu nome, respeitando a vontade e a segurança dos familiares.
Figura 9. Diga o nome dela
Fonte: Elaboração própria.
Conforme mencionado anteriormente, em todas as notícias, o
agressor mantinha algum grau de relação com a vítima.
- 61 -
Figura 10. Notícia veiculada no portal G1
Fonte: Captura de tela do site (ZUBA; PIMENTEL, 2021).
Este fato é o que diferencia a violência entre homens e mulheres, tema que gera ainda bastante discussão. Muitos homens questionam a violência de gênero, visto que as pesquisas apontam que a
proporção de mortes violentas por causa indeterminada (MVCI) de
homens é maior do que a de mulheres, conforme demonstra o Atlas
da Violência 2021, desenvolvido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Figura 11. Comparação de variáveis em relação aos homicídios
Fonte: Captura de tela (IPEA; FBSP, 2022).
No entanto, quando se analisa a origem dos homicídios entre homens e mulheres, identifica-se que a morte das mulheres é
provocada por companheiros e ex-companheiros, geralmente den- 62 -
tro da sua própria casa. Homens não morrem vítimas de esposas ou
ex-companheiras. De acordo com o site Nós Mulheres da Periferia
(FEMINICÍDIO..., 2020), as mulheres são assassinadas a cada nove
horas por seus parceiros ou ex-parceiros.
Outra característica significativa observada nas chamadas das
notícias foi o destaque dado ao feminicídio realizado em frente aos
filhos.
Figura 12. Notícia veiculada no portal R7
Fonte: Captura de tela do site (FEMINICÍDIO..., 2021).
Na imagem acima, o destaque é dado ao fato feminicídio, seguido pela espetacularização; nesse caso: “assassinada pelo marido
na frente do filho”. Já o subtítulo personifica a vítima a partir da sua
profissão e reforça o ato realizado na frente de uma criança de oito
anos.
Para Veloso (2020, p. 169), “Mais do que falar sobre, a produção midiática deve ser analisada em relação a maneira como falar
sobre o tema da violência e, no caso específico aqui discutido, como
abordar o tema da violência doméstica e familiar contra mulheres”.
Ainda assim, a maioria das notícias apresenta a mesma construção
de linguagem até aqui apresentada, conforme se vê na figura a seguir:
- 63 -
Figura 13. Esquema de linguagem da notícia
Fonte: Elaboração própria.
O esquema parte do fato, seja ele personificado ou não. Vejamos: “Enfermeira é morta a tiros pelo marido na frente da filha no
ES” (RANGEL, 2021). O destaque “morta a tiros pelo marido na
frente da filha” situa-se em um contexto espetacular e não leva em
consideração a situação da violência de gênero, conforme lembra o
Instituto Patrícia Galvão (2020).
A linguagem espetacular aparece diversas vezes, com grande destaque nas chamadas: “Mulher é assassinada pelo marido com
tiro de espingarda na cabeça; filhos viram tudo” (BORSUK; SILVA,
2021) e “Mulher morta a golpes de marreta por homem no Metrô é
enterrada em SP: ‘Não estamos acreditando no que aconteceu’, diz
filha” (TOMAZ, 2021).
O marcador geralmente aparece no fim do título, podendo assumir, por exemplo, a forma de localização ou informações sobre
o fato: “Mulher é assassinada com golpes de faca, em Taiobeiras”
(MULHER..., 2021a); “Mulher é morta 4 dias após pedir medida
protetiva contra ex” (MULHER..., 2021b); “Mulher é morta a pedradas pelo companheiro no Paranoá” (DIOGO; BERNARDES,
2021).
Assim, é urgente e necessário transformar o modo de informar. É papel da mídia contextualizar a sociedade acerca da violência
de gênero e abordar de forma reflexiva a violência doméstica. É im- 64 -
portante que seja discutida a reprodução do machismo e do patriarcado, sobretudo por meio da mídia.
Considerações finais
Neste estudo, resgatamos os dados de denúncias acerca da
violência doméstica no período que envolve a pandemia do coronavírus, entre os anos 2020 e 2021. Através dos dados mapeados,
identificamos que os registros de boletim de ocorrência e as denúncias diminuíram nos primeiros momentos de isolamento social. A
explicação encontrada é que, em geral, nesse período, os agressores
passaram a ficar mais tempo com as vítimas, ou seja, em casa, impedindo que muitas mulheres conseguissem registrar as denúncias.
Já o portal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos não apresenta os dados anteriores a 2020, o que impede
que os números sejam comparados entre o período de pandemia e
de não pandemia.
Acerca da análise das notícias, mapeamos 50 notícias que divulgaram casos de violência de gênero e feminicídio, e foi constatado que a mídia trata do tema de uma forma sensacionalista e rasa,
contribuindo para a naturalização da violência.
Bonamigo (2008), Veloso (2020) e Saffioti (2015) nos lembram que é preciso desvulgarizar a violência contra a mulher, e isso
só acontece a partir da reflexão e debate sobre o assunto, de modo a
reeducar a sociedade com base na igualdade de gênero.
A mudança acontece em muitas dimensões, entre elas na mídia, ferramenta com grande importância no combate à violência
contra a mulher e, sobretudo, como instrumento de debate e solidificação da igualdade de gênero.
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- 65 -
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BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e
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MULHER é morta 4 dias após pedir medida protetiva contra ex.
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- 67 -
br/2021/06/02/mulher-e-morta-4-dias-apos-pedir-medida-protetiva-contra-ex/>. Acesso em: 9 abr. 2022.
POLÍCIA de Campinas diz que marido é suspeito de matar mulher
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mulher-encontrada-morta-carbonizada-em-carro-foi-assassinada-pelo-marido-diz-policia-civil.ghtml>. Acesso em: 9 abr. 2022.
RANGEL, Vinícius. Enfermeira é morta a tiros pelo marido na frente da filha no ES. G1, 15 maio 2021. Disponível em: <https://g1.
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9 abr. 2022.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:
Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015.
SANTOS, Mariane; HAMADA, Heloise. Após matar a mulher a facadas, homem deixa bilhete e confessa o crime aos filhos por mensagem de áudio em celular. G1, 3 maio 2021. Disponível em: <https://
g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao/noticia/2021/05/03/
apos-matar-a-mulher-a-facadas-homem-deixa-bilhete-e-confessa-o-crime-aos-filhos-por-mensagem-de-audio-em-celular.ghtml>.
Acesso em: 9 abr. 2022.
TOMAZ, Kleber. Mulher morta a golpes de marreta por homem no
Metrô é enterrada em SP: ‘Não estamos acreditando no que aconteceu’, diz filha. G1, 28 abr. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.
com/sp/sao-paulo/noticia/2021/04/28/mulher-morta-a-golpes-de-marreta-por-homem-no-metro-e-enterrada-em-sp-nao-estamos-acreditando-no-que-aconteceu-diz-filha.ghtml>. Acesso em: 9 abr.
2022.
VELOSO, Raíssa. Fundação Demócrito Rocha. Enfrentamento à
violência doméstica e familiar contra a mulher: mídia e violência
doméstica. Fortaleza: Universidade Aberta do Nordeste, 2020.
WOLFART, Graziela. “A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é bom que seja assim”.
Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 289, 13 abr. 2009.
Disponível em: <https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/2479-antonio-fausto-neto-3>. Acesso em: 9 abr. 2022.
- 68 -
ZUBA, Fernando; PIMENTEL, Thais. Promotor matou a mulher
por ‘não conseguir cumprir papel de esposa e mãe esperado por
ele’, diz Ministério Público. G1, 30 abr. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/04/30/promotor-matou-a-mulher-por-nao-conseguir-cumprir-papel-de-esposa-e-mae-esperado-por-ele-diz-ministerio-publico.ghtml>. Acesso em:
9 abr. 2022.
Apêndice A – Corpus de notícias
TÍTULO
DA MATERIA
1
2
3
4
5
Mulher é
assassinada
pelo ex-marido após
discussão
em Mato
Grosso
Mulher é
assassinada
pelo marido
com facadas
por senha de
cartão
“Não consigo aceitar o
que ele fez”,
diz irmã
de mulher
morta pelo
marido
Feminicídio:
mulher é
assassinada
pelo marido
na frente do
filho
Mulher é
morta a
facadas pelo
marido na
frente da
filha de 5
anos em
Limeira
LINK
NOME
DA VÍTIMA
IDADE
UF
G1
https://g1.globo.com/
mt/mato-grosso/noticia/2021/03/21/mulher-e-assassinada-pelo-ex-marido-apos-discussao-em-mato-grosso.ghtml
Adriana
Barra
41
MATO
GROSSO
DIÁRIO
ONLINE
https://diarionline.com.
br/?s=noticia&id=124141
Viviane
Oliveira
de Jesus
36
MATO
GROSSO DO
SUL
Karla
Roberta
Fernandes
Pereira
38
BRASÍLIA
Roselaine
Modollo
Noli
31
SÃO
PAULO
35
SÃO
PAULO
VEÍCULO
CORREIO
BRAZILIENSE
R7 NOTICIAS
G1
https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/04/4920583-nao-consigo-aceitar-o-que-ele-fez-diz-irma-de-mulher-morta-pelo-marido.
html
https://recordtv.r7.com/
recordtv-interior-sp/
cidade-alerta/feminicidio-mulher-e-assassinada-pelo-marido-na-frente-do-filho-07052021
https://g1.globo.com/sp/
piracicaba-regiao/noticia/2021/05/16/mulherSamara
-e-morta-a-facadas-peloSchultz
-marido-na-frente-da-filha-de-5-anos-em-limeira.
ghtml
- 69 -
Mulher é
morta pelo
marido
com tiro
no coração,
6
em MS; o
autor tentou
se suicidar
após o feminicídio
Polícia de
Campinas
diz que
marido é
suspeito
7
de matar
mulher
encontrada
carbonizada
em carro
Mulher é
morta a
facadas por
8 ex-companheiro na
zona oeste
do Rio
G1
https://g1.globo.com/
ms/mato-grosso-do-sul/
noticia/2021/05/14/mulher-e-morta-com-tiro-no-coracao-pelo-marido-em-ms-o-autor-tentou-se-suicidar-apos-o-feminicidio.
ghtml
G1
https://g1.globo.com/sp/
campinas-regiao/noticia/2021/05/11/mulher-encontrada-morta-carboniza- N/D
da-em-carro-foi-assassinada-pelo-marido-diz-policia-civil.ghtml
R7 NOTÍCIAS
https://noticias.r7.com/
rio-de-janeiro/mulher-e-morta-a-facadas-por-ex-companheiro-na-zona-oeste-do-rio-19052021
https://g1.globo.com/
es/espirito-santo/noticia/2021/05/15/enfermeira-e-morta-a-tiros-pelo-marido-na-frente-da-filha-no-es.ghtml
Enfermeira é
morta a tiros
9 pelo marido G1
na frente da
filha no ES
Dois corpos
são encontrados às
margens de
10
G1
rodovias em
Uberlândia
neste fim de
semana
- 70 -
Gizele
da Silva
Amarilha
48
MATO
GROSSO DO
SUL
46
SÃO
PAULO
Nádia
Trindade
N/D
RIO DE
JANEIRO
Leidiane
Tonetti
36
ESPÍRITO
SANTO
50
MINAS
GERAIS
https://g1.globo.com/
mg/triangulo-mineiro/
noticia/2021/05/17/
dois-corpos-sao-encontra- N/D
dos-as-margens-de-rodovias-em-uberlandia-neste-fim-de-semana.ghtml
11
12
13
14
Mulher que
teria sido
morta pelo
marido
e que foi
encontrada
sem sangue
pode ter
sido vítima
de “ritual
macabro”,
diz polícia
Mulher é
assassinada
pelo marido
com tiro de
espingarda
na cabeça;
filhos viram
tudo
Mulher é
encontrada
morta pelo
filho com 14
perfurações
no corpo
em Canitar;
ex-marido
foi preso
Mulher é
assassinada
a facadas
pelo ex-companheiro dentro de
casa/ Outro
crime
https://agorarn.com.br/
ultimas/mulher-que-teria-sido-morta-pelo-mariLorenza
AGORA RN do-e-que-foi-encontradaPinho
-sem-sangue-pode-ter-sido-vitima-de-ritual-macabro-diz-policia/
RIC MAIS
https://ricmais.com.
br/noticias/seguranca/
mulher-e-assassinada-pelo-marido-com-tiro-de-espingarda-na-cabeca-filhos-viram-tudo/
Cristiana
Oliveira
G1
https://g1.globo.com/
sp/bauru-marilia/noticia/2021/04/25/mulher-e-encontrada-morta-pelo-filho-com-perfuracoes-no-corpo-em-canitar-ex-marido-foi-preso.ghtml
Cláudia
Valéria
de Oliveira
G1
https://g1.globo.com/
pe/pernambuco/noticia/2021/04/26/mulher-eN/D
-assassinada-a-facadas-pelo-ex-companheiro-dentro-de-casa.ghtml
Mulher é
assassinada
Estado de
pelo filho
15
com golpes Minas
de faca, garfo e martelo
Mulher é
morta a
facadas pelo ACIDADE16
ON
ex-marido
em São
Carlos
https://www.em.com.
br/app/noticia/nacional/2021/05/17/interna_nacional,1267323/
mulher-e-assassinada-pelo-filho-com-golpes-de-faca-garfo-e-martelo.shtml
https://www.acidadeon.
com/saocarlos/onclick/
GFOT,0,3,48012,mulher-e-morta-a-facadas-pelo-ex-marido-em-sao-carlos.
aspx
Aureni
Constância
de
Souza
Rodrigues
N/D
41
MINAS
GERAIS
35
PARANÁ
SÃO
PAULO
34
PERNAMBUCO
48
GOIAS
N/D
SÃO
PAULO
- 71 -
17
18
19
20
21
22
- 72 -
Mulher é
assassinada
com tiro na
cabeça no
Maiobão,
em Paço do
Lumiar
Mulher é
atacada e
morta a
facadas pelo
marido no
meio da rua
Era agredida sempre
e não contava para
a família’,
diz irmã
de mulher
morta após
levar socos
do marido
em Paulínia
Mulher
morre no
hospital
com tiro na
cabeça disparado pelo
ex-marido
em MS
Professora
é morta a
facadas pelo
marido no
ES
Mulher é
morta a
pauladas
pelo marido
na frente
do filho de
4 anos em
Ji-Paraná,
RO
G1
https://g1.globo.com/
ma/maranhao/noticia/2021/05/03/mulher-e-assassinada-com-tiro-na-cabeca-no-maiobao-em-paco-do-lumiar.ghtml
N/D
MARANHÃO
SBT
https://www.sbt.com.br/
jornalismo/primeiro-impacto/noticia/167375-mu- Júlia
lher-e-atacada-e-morLima
ta-a-facadas-pelo-marido-no-meio-da-rua
65
SÃO
PAULO
G1
https://g1.globo.com/
sp/campinas-regiao/
noticia/2021/05/03/era-agredida-sempre-e-nao-contava-para-a-familia-diz-irma-de-mulher-morta-apos-levar-socos-do-marido-em-paulinia.
ghtml
28
SÃO
PAULO
N/D
31
MATO
GROSSO DO
SUL
Regiane
Caetano
Alves
38
ESPÍRITO
SANTO
Selma
Gomes
Somenzari
32
RONDÔNIA
G1
G1
G1
https://g1.globo.com/
ms/mato-grosso-do-sul/
noticia/2021/05/15/mulher-e-socorrida-em-estado-grave-e-morre-depois-de-ser-alvejada-com-tiro-na-cabeca-pelo-ex-marido-em-ms.ghtml
https://g1.globo.com/
es/espirito-santo/noticia/2021/05/22/professora-e-morta-a-facadas-pelo-marido-no-es.ghtml
https://g1.globo.com/
ro/rondonia/noticia/2021/05/26/mulher-e-morta-a-pauladas-pelo-marido-na-frente-do-filho-de-4-anos-em-ji-parana-ro.ghtml
N/D
Roberta
dos
Santos
Alves
23
24
25
26
27
Após matar
a mulher
a facadas,
homem
deixa bilhete e confessa
o crime aos
filhos por
mensagem
de áudio em
celular
Técnica de
enfermagem
é morta
a facadas
e marido
é preso
suspeito do
crime no
Piauí
Mulher é
morta com
tiro e marido fica ferido durante
assalto em
Alto Alegre,
interior de
Roraima
Mulher
morta a
golpes de
marreta por
homem no
Metrô é
enterrada
em SP: ‘Não
estamos
acreditando no que
aconteceu’,
diz filha
Ex-marido
é suspeito
de matar
mulher a
facadas ao
tentar reatar
relacionamento, no
Paraná, diz
delegado
G1
https://g1.globo.com/sp/
presidente-prudente-regiao/noticia/2021/05/03/
apos-matar-a-mulher-a-facadas-homem-deixa-bilhete-e-confessa-o-crime-aos-filhos-por-mensagem-de-audio-em-celular.
ghtml
N/D
G1
https://g1.globo.com/pi/
piaui/noticia/2021/05/11/
tecnica-de-enfermagem-e-morta-a-facadas-e-marido-e-preso-suspeito-do-crime-no-piaui.ghtml
G1
https://g1.globo.
com/rr/roraima/noticia/2021/04/30/mulher-e-morta-com-tiro-e-marido-fica-ferido-durante-assalto-em-alto-alegre-interior-de-roraima.ghtml
49
SÃO
PAULO
Edinalva
Nunes
Alves
N/D
PIAUÍ
Maria
da Luz
Coelho
Soares
59
RORAIMA
G1
https://g1.globo.
com/sp/sao-paulo/
noticia/2021/04/28/
mulher-morta-a-golpesRoseli
-de-marreta-por-homemBispo
-no-metro-e-enterrada-em-sp-nao-estamos-acreditando-no-que-aconteceu-diz-filha.ghtml
29
SÃO
PAULO
G1
https://g1.globo.com/
pr/oeste-sudoeste/noticia/2021/05/11/ex-marido-e-suspeito-de-matar-mulher-a-facadas-ao-tentar-reatar-relacionamento-no-parana-diz-delegado.
ghtml
28
PARANÁ
N/D
(Uma
mulher
haitiana)
- 73 -
Promotor
matou a
mulher por
‘não conseguir cumprir
28 papel de es- G1
posa e mãe
esperado
por ele’, diz
Ministério
Público
Mulher
assassinada
pelo ex
NP EX29 registrou
PRESSO
ocorrência
três semanas
antes
Mulher é
assassinada
30 com golpes
de faca, em
Taiobeiras
G1
Mulher
assassinada
em motel de
Araraquara
31
G1
foi agredida
pelo ex-marido há dois
meses
Filhos
presenciam
mãe sendo
atropelada e
32 morta pelo
G1
marido propositalmente
em Pirapora,
MG
Mulher
morre ao ser
esfaqueada
33 dentro de
G1
shopping
em Niterói,
RJ
- 74 -
https://g1.globo.com/
mg/minas-gerais/noticia/2021/04/30/promotor-matou-a-mulher-por-nao-conseguir-cumprir-papel-de-esposa-e-mae-esperado-por-ele-diz-ministerio-publico.ghtml
Lorenza
Maria
Silva de
Pinho
N/D
MINAS
GERAIS
https://np.expressoilustrado.com.br/2021/05/
Cláudia
toropi-mulher-assassinaUrban
da-pelo-ex-registrou-ocorSoares
rencia-tres-semanas-antes.
html
25
RIO
GRANDE DO
SUL
https://g1.globo.com/
mg/grande-minas/noticia/2021/06/02/mulher-e-morta-a-facadas-pelo-ex-companheiro-em-taiobeiras.ghtml
Maria
de
Fátima
Viana
47
MINAS
GERAIS
https://g1.globo.com/
sp/sao-carlos-regiao/
noticia/2021/05/31/
mulher-assassinada-em-motel-de-araraquara-foi-agredida-pelo-ex-marido-ha-dois-meses.ghtml
Aline
Cristina
Rosa
Deodato
36
SÃO
PAULO
https://g1.globo.com/
mg/grande-minas/noticia/2021/05/30/filhos-presenciam-mae-sendo-atropelada-e-morta-pelo-marido-propositalmente-em-pirapora-mg.ghtml
Elba
Barbosa
do Nascimento
34
MINAS
GERAIS
https://g1.globo.com/
rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/06/02/mulher-e-esfaqueada-dentro-de-shopping-em-niteroi-rj.
ghtml
Vitórya
Melissa
Mota
22
RIO DE
JANEIRO
34
35
36
37
38
39
Polícia de
Campinas
diz que
marido é
suspeito
de matar
mulher
encontrada
carbonizada
em carro
Mulher é
morta 4 dias
após pedir
medida
protetiva
contra ex
Justiça
mantém
promotor
preso pelo
homicídio
da mulher
após pedido
do Ministério Público
Polícia
encontra
corpos
de quatro
pessoas desaparecidas
desde o ano
passado
Jovem é
assassinada
por namorado casado
a pedido da
mulher
Polícia
investiga
se homem
matou
colega em
Niterói por
‘amor não
correspondido’; faca foi
comprada
minutos
antes
G1
https://g1.globo.com/
sp/campinas-regiao/
noticia/2021/05/11/
mulher-encontrada-morta-carbonizada-em-carro-foi-assassinada-pelo-marido-diz-policia-civil.
ghtml
N/D
41
SÃO
PAULO
G1
https://matogrossomais.
com.br/2021/06/02/mulher-e-morta-4-dias-apos-pedir-medida-protetiva-contra-ex/
Indiana
Geraldo
Tardett
42
MATO
GROSSO
G1
https://g1.globo.com/
mg/minas-gerais/noticia/2021/05/04/justica-mantem-promotor-preso-pelo-homicidio-da-mulher-apos-pedido-do-ministerio-publico.ghtml
Lorenza
Maria
Silva de
Pinho
N/D
MINAS
GERAIS
G1
https://www.em.com.
br/app/noticia/gerais/2021/06/02/interna_gerais,1272949/
policia-encontra-corpos-de-quatro-pessoas-desaparecidas-desde-o-ano-passado.shtml
Maria
Tereza
Cunha
Rocha
43
MINAS
GERAIS
R7 NOTÍCIAS
https://noticias.r7.com/
sao-paulo/jovem-e-assassinada-por-namorado-casado-a-pedido-da-mulher-31052021
Vitória
Luiza da
Silva
20
SÃO
PAULO
G1
https://g1.globo.com/
rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/06/02/policia-inVitórya
vestiga-se-homem-matouMelissa
-colega-em-niteroi-por-aMota
mor-nao-correspondido-faca-foi-comprada-minutos-antes.ghtml
22
RIO DE
JANEIRO
- 75 -
Mulher é
assassinada
em quarto
40
SBT
de motel
no interior
de SP
Mulher é assassinada a
facadas pelo
companhei41
G1
ro dentro de
apartamento
em Três
Rios
Mulher de
24 anos é
assassinada
42
G1
com tiro na
cabeça em
Caratinga
Mulher é
morta a tiros
43
GZH
no Santa Fé,
em Caxias
Polícia
investiga
assassinato
de mulher
44 em Angra
dos Reis;
marido é o
principal
suspeito
Mulher é
morta a
pedradas
45
pelo companheiro no
Paranoá
Mulher
é morta
com tiros
na cabeça
46 pelo companheiro
após colocar
senhas no
celular
- 76 -
G1
CORREIO
BRAZILIENSE
RIC MAIS
https://www.sbt.com.br/
jornalismo/primeiro-imAline
pacto/noticia/169435-muCristina
lher-e-assassinada-emRosa
-quarto-de-motel-no-interior-de-sp
36
SÃO
PAULO
https://g1.globo.com/rj/
sul-do-rio-costa-verde/
noticia/2021/05/31/
mulher-e-assassinada-aN/D
-facadas-pelo-companheiro-em-apartamento-em-tres-rios.ghtml
35
RIO DE
JANEIRO
24
MINAS
GERAIS
27
RIO
GRANDE DO
SUL
N/D
RIO DE
JANEIRO
https://g1.globo.com/
mg/vales-mg/noticia/2021/05/29/mulher-de-24-anos-e-assassinada-com-tiro-na-cabeca-em-caratinga.ghtml
https://gauchazh.clicrbs.
com.br/pioneiro/policia/
noticia/2021/05/mulher-e-morta-a-tiros-no-santa-fe-em-caxias-ckpd8bg9n004b0180jau7nze9.
html
N/D
Edna
Pedroso
https://g1.globo.com/rj/
sul-do-rio-costa-verde/
noticia/2021/06/02/
policia-investiga-assassi- N/D
nato-de-mulher-em-angra-dos-reis-marido-e-o-principal-suspeito.ghtml
https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/05/4926391--no-paranoa-filha-chega-em-casa-e-encontra-a-mae-sem-vida.html
Karla
Pucci
N/D
DISTRITO
FEDERAL
https://ricmais.com.br/
noticias/brasil/mulher-e-morta-com-tiros-na-cabeca-pelo-companheiro/
N/D
N/D
MINAS
GERAIS
47
48
49
50
Vítima de
feminicídio
em SC deixa
filho de 5
anos, que
presenciou
crime; ex-namorado
está preso
Mulher é
morta com
golpes de
faca no
sudoeste
da Bahia;
companheiro é suspeito
pelo crime
Mulher é
encontrada
pelos filhos
morta por
facada em
Ponta Grossa, e marido
é suspeito,
diz PM
Mulher
assassinada pelo
ex-marido
em Teresina
pedia ajuda
aos amigos
e temia ser
morta, diz
polícia
G1
https://g1.globo.com/
sc/santa-catarina/noticia/2021/06/03/vitima-de-feminicidio-em-sc-deixa- N/D
-filho-de-5-anos-que-presenciou-crime-ex-namorado-esta-preso.ghtml
24
SANTA
CATARINA
G1
https://g1.globo.com/ba/
bahia/noticia/2021/05/26/
mulher-e-morta-com-golpes-de-faca-no-sudoeste-da-bahia-companheiro-e-suspeito-pelo-crime.
ghtml
Dionice
de Jesus
Oliveira
42
BAHIA
G1
https://g1.globo.com/
pr/campos-gerais-sul/
noticia/2021/06/04/mulher-e-encontrada-pelos-filhos-morta-por-facada-em-ponta-grossa-e-marido-e-suspeito.ghtml
N/D
35
PARANÁ
G1
https://g1.globo.com/pi/
piaui/noticia/2021/06/14/
mulher-assassinada-pelo-ex-marido-em-teresina-pedia-ajuda-aos-amigos-e-temia-ser-morta-diz-policia.ghtml
Ana
Valesca
Araújo
N/D
PIAUÍ
Nota: N/D = não disponível. Fonte: Elaboração própria.
- 77 -
- 78 -
CAPÍTULO 3
Sexo desprotegido praticado por mulheres
que se relacionam sexualmente com
homens e intersecções com o sexismo4
Isabella Zuardi Marques
Introdução
Os primeiros casos notificados de síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) em mulheres ocorreram na década de 1980.
Contudo, foi apenas no início da década de 1990, com o aumento do
número de casos na população feminina e de transmissão materno-infantil do vírus da imunodeficiência humana (HIV), chamada de
transmissão vertical, que o fenômeno conhecido como “feminização
da epidemia” ganhou visibilidade e passou a ser discutido no âmbito
científico, entre profissionais da saúde e no contexto do ativismo
(BRASIL, 2009). Embora se saiba que menos mulheres e meninas
estão contraindo HIV a cada ano que passa, é possível afirmar que
a porcentagem de infecção na população feminina não está sendo
reduzida rápido o suficiente. Ocorreram, em 2018, no mundo, cerca
de 306 mil novos casos de infecção por HIV entre meninas e mulheres de 15 a 24 anos, número que é cerca de três vezes maior do que
a meta de diminuição de casos que deveria ser cumprida até 2020.
Atualmente, há 19 milhões e 760 mil mulheres e meninas vivendo
com HIV no mundo, correspondendo a 52% do total de pessoas vivendo com HIV. Ainda, deve ser considerado preocupante o fato de
que apesar de 68% das mulheres e meninas que vivem com HIV
possuírem acesso a tratamento, doenças relacionadas à aids permanecem sendo a principal causa de morte de mulheres em idade reprodutiva em nível mundial (UNAIDS, 2020).
No Brasil, 31% dos casos de infecção por HIV notificados entre 2007 e 2019 ocorreram em mulheres. Em relação à concentração
de casos de aids em mulheres no país, eles foram mais prevalentes
em mulheres com menor escolaridade e em mulheres negras (BRA4 Artigo apresentado como requisito avaliativo para a disciplina de “Expressões de Violência
e Estratégias de Enfrentamento” do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
- 79 -
SIL, 2019). Ainda, é relevante destacar que 86,5% dos casos de infecção por HIV em mulheres brasileiras entre 2007 e 2019 ocorreram através de exposição heterossexual (BRASIL, 2009).
No que se refere ao papilomavírus humano (HPV), aproximadamente 80% das mulheres sexualmente ativas são infectadas em
algum momento de sua vida. Na maior parte dos casos, a infecção
é eliminada pelo organismo espontaneamente. Contudo, em alguns
casos o vírus permanece e ocasiona lesões que podem evoluir para o
câncer de colo do útero se não forem tratadas adequadamente (BRASIL, 2018). Cerca de 570.000 mulheres desenvolvem esse câncer
anualmente no mundo. É pertinente pontuar, ainda, que se trata de
um câncer que é cinco vezes mais comum e progride com uma maior
rapidez em mulheres que vivem com HIV (UNAIDS, 2017, 2020).
Atualmente, o câncer de colo do útero é o quarto tipo de câncer com
maior prevalência entre as mulheres no Brasil (WHO, 2018).
O preservativo é o único método que permite proteção contra
gravidez não planejada e contra infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) (UNAIDS, 2020). O seu uso, apesar disso, permanece
sendo infrequente em práticas sexuais heterossexuais, constatando-se uma lacuna significativa entre o nível de conhecimento das mulheres e o seu uso efetivo (MOURA et al., 2020; SILVA; OLIVEIRA, 2015). Dessa forma, o conhecimento sobre a prevenção parece
ser insuficiente para a adoção de comportamentos preventivos, sendo necessário destinar atenção às dimensões complexas próprias da
sexualidade humana (GALVÃO NETO; ALBUQUERQUE; SALDANHA, 2020; OLTRAMARI; CAMARGO, 2010). Buscando distância de um projeto de normalização de condutas e aproximação da
promoção de mudanças nas práticas sexuais, é fundamental transpor
a lógica única e exclusiva de compreensão de um sujeito que toma
decisões de forma racional e livre, e sim procurar dialogar com elementos de um sujeito social (MOURA et al., 2020).
Em comparação com os homens, mulheres tendem a apresentar maior dificuldade de exercer o seu direito de proteção à saúde
através do uso de preservativo (UNAIDS, 2017). Estudos apontam
que a distribuição desigual de poder em relacionamentos afetivos e/
ou sexuais está relacionada a menores níveis de uso de preservativo por mulheres que se relacionam com homens (ANALOGBEI et
al., 2020; CARMACK et al., 2020; CHIARAMONTE et al., 2020).
- 80 -
Cabe ressaltar que a associação é ainda mais significativa quando
se trata de mulheres com parceiros estáveis (CHOWDHURI et al.,
2019; MADIBA; NGWENYA, 2017). Mesmo quando existe distanciamento do “mito do amor romântico” e desconfiança de infidelidade dos parceiros, mulheres podem preferir utilizar o recurso da testagem periódica para ISTs como forma de conhecer o comportamento
do parceiro do que solicitar o uso de preservativo (GUTIÉRREZ,
2019; SILVA; SZAPIRO, 2015).
Entende-se que a capacidade das mulheres de tomar decisões
sobre as relações sexuais que estabelecem e a extensão em que conseguem negociar sexo seguro com seus parceiros homens deve ser
compreendida como multifatorial. Sendo assim, diferentes fatores
devem ser estudados buscando desenvolver um modelo de compreensão do uso do preservativo (UNAIDS, 2017). Nessa perspectiva, indícios têm apontado que avaliar o sexismo em suas diferentes
manifestações é importante para medir a influência desse fenômeno em relacionamentos afetivo-sexuais entre homens e mulheres
(GLICK; FISKE, 1996). No presente estudo, pretende-se reunir e
discutir pesquisas encontradas na literatura científica que investigam
associações entre o sexismo e o sexo desprotegido praticado por mulheres que se relacionam sexualmente com homens.
Tecendo reflexões acerca das desigualdades de gênero e seus
desdobramentos
As desigualdades de gênero devem ser consideradas fatores
estruturais que aumentam a vulnerabilidade das mulheres às ISTs
(UNAIDS, 2017). Mulheres, em diferentes países do mundo, permanecem sem a possibilidade de ter controle sobre seus próprios
corpos e realizar escolhas sobre suas vidas sexuais e reprodutivas
(UNAIDS, 2020). Mundialmente, aproximadamente 200 milhões
de mulheres não possuem suas necessidades de contracepção atendidas. Anualmente, 80 milhões de mulheres engravidam sem ter a
intenção (UNAIDS, 2017). Um estudo com amostras de diferentes
países verificou que, dentre as mulheres que engravidaram sem ter a
intenção nos últimos cinco anos, aproximadamente 61% recorreram
ao aborto. Na maioria das vezes, o aborto ocorreu de forma insegura
(BEARAK et al., 2020).
Na sociedade patriarcal, historicamente, está estabelecido que
aos homens cabe o controle de instituições econômicas, legais e po- 81 -
líticas, e às mulheres cabe o cuidado com a família e a satisfação dos
desejos sexuais masculinos (FERREIRA, 2004). Assim, está instituída uma dicotomia que marca o poder estrutural que os homens
possuem em relação às mulheres e que exerce influência significativa nas práticas sexuais que se estabelecem entre eles (GLICK; FISKE, 1996).
Conforme Saffioti (2001), o gênero deve ser tomado como
categoria histórica e analítica que possui potencial para auxiliar no
entendimento das diferentes formas de violência perpetradas contra
as mulheres. A autora aponta para a importância de que, ao se buscar
compreender as diferentes manifestações da violência de gênero, as
relações interpessoais não sejam dissociadas e descoladas de uma
estrutura social com posições hierárquicas bem delimitadas (SAFFIOTI, 2001).
É possível afirmar que a violência contra as mulheres possui
associações com dinâmicas de poder desiguais, papéis de gênero
tradicionais e concepções em torno da masculinidade hegemônica
(UNAIDS, 2020). Há evidências científicas que demonstram que a
possibilidade de negociação de sexo seguro por parte das mulheres é
limitada ou comprometida por completo quando ocorre violência ou
medo de sofrer violência por parte do parceiro íntimo (CHA et al.,
2015; KUSUNOKI et al., 2018; MATHUR et al., 2020; PEASANT
et al., 2017). Ainda, mulheres que sofrem violência perpetrada por
parceiro íntimo apresentam, em determinadas regiões do mundo,
maior probabilidade de engravidar sem ter intenção e risco 50%
maior de adquirir HIV, sífilis, clamídia e gonorreia (WHO, 2013).
A opressão de gênero segue operando na contemporaneidade como uma instituição política de dominação de corpos e, assim,
os corpos femininos permanecem heterossexualmente privatizados.
Contudo, além das práticas tradicionais, surgem novas formas de
opressão (BROWN, 2004), menos explícitas e de manifestações
simbólicas (BERCHT, 2019). Ao abordar a violência simbólica, a
autora Godinho (2020) destaca que esse tipo de violência pode ser
caracterizado como um poder invisível que atua regulando práticas e condutas, buscando moldar valores, regras e normas como se
fossem “naturais”. De forma sutil, em comparação com a violência
física, tem a intenção de encontrar justificativas para práticas de dominação, preconceito e estereótipos de gênero (GODINHO, 2020).
- 82 -
Strey e Jardim (2018) apontam que, no caso da violência simbólica contra as mulheres, é possível pensar que existiria um forte
poder simbólico que sustenta a ideia de superioridade masculina
e subordinação feminina. As autoras destacam que, embora exista
uma ideologia de uma suposta equivalência entre gênero e sexo que
tem como base o discurso de que há uma “essência” do que é ser homem e mulher associada ao sexo biológico de cada um, na realidade
é justamente através do sistema simbólico do sexismo que se institui
socialmente o que é esperado para cada um deles conforme o seu
gênero (STREY; JARDIM, 2018).
Nessa perspectiva, é importante atentar para a construção simbólica dos papéis de gênero, que podem ser compreendidos como
expectativas acerca de qualidades e comportamentos apropriados
para os indivíduos conforme o seu gênero (NOGUEIRA, 2001).
Esses papéis exercem impacto na construção da diferenciação das
formas de se relacionar sexualmente esperadas para homens e para
mulheres (FRANCISCO et al., 2016). A divisão desigual de poder
em relacionamentos afetivo-sexuais possui associações profundas
com normativas de gênero que regulam a experiência dos sujeitos.
Essa divisão de poder tende a conferir autoridade ao homem e exigir
a subordinação e devoção da mulher em relação ao parceiro (MADIBA; NGWENYA, 2017; PATRÃO; MCINTYRE; COSTA, 2019).
Dessa forma, são estabelecidas dinâmicas relacionais que reforçam
papéis de gênero que determinam que homens devem manifestar
sua masculinidade através da dominação, enquanto mulheres devem
expressar sua feminilidade através da passividade (ALVES; BRANDÃO, 2009; HARRISON et al., 2006).
Esses papéis de gênero também podem ser observados nos
scripts sexuais socialmente estabelecidos. O script sexual tradicional caracteriza-se como um conceito relacionado à sequência normativa de eventos que devem ser realizados durante as interações
sexuais. Trata-se de expectativas específicas e diferentes para o
comportamento e desempenho de mulheres e de homens durante a
relação sexual (SAKALUK et al., 2014). De acordo com esse script,
é esperado que homens assumam papéis mais ativos e tomem o controle das decisões sexuais, e mulheres papéis mais passivos e que
aceitem o que lhes é imposto (SIMMS; BYERS, 2013; WINTER;
RUHR, 2017).
- 83 -
Regulados por assimetrias de poder, os papéis de gênero
tradicionais estão estreitamente associados à maior vulnerabilidade das mulheres ao sexo desprotegido (GUTIÉRREZ, 2019; SOUZA; MUÑOZ; VISENTIN, 2020; VON MUHLEN; SALDANHA;
STREY, 2014). Para os homens, a ausência de intenção de uso de
preservativo parece estar atrelada a uma construção simbólica de
masculinidade impulsiva e com desejos imediatos. Enquanto isso,
para as mulheres, quando existe essa ausência de intenção, ela parece estar mais associada a um ideal de amor romântico que presume a
monogamia do parceiro (CARVALHAES, 2010; CASTRO; ABRAMOVAY; SILVA, 2004).
Em contrapartida, quando as mulheres possuem a intenção de
usar o preservativo, os papéis de gênero exercem efeito dificultando
a negociação do preservativo devido à limitada tomada de decisão
das mulheres (VON MUHLEN; SALDANHA; STREY, 2014). Não
raramente, as mulheres têm medo de serem acusadas de desagradar
ou de perder o parceiro caso façam a solicitação (ANALOGBEI et
al., 2020; GARCIA; SOUZA, 2010). Nessa perspectiva, um estudo recente constatou um achado relevante em relação a esse medo
experenciado pelas mulheres. De acordo com a pesquisa, enquanto
os homens não costumam identificar a percepção de sua parceira
como um fator que exerce influência na presença ou ausência do uso
de preservativo, o que as mulheres acreditam que o parceiro pensa,
mesmo que não necessariamente saibam, costuma interferir no seu
comportamento de negociação do preservativo (CARMACK et al.,
2020).
No âmbito dos relacionamentos casuais, os modelos hegemônicos do que se espera em termos de masculinidade e feminilidade
também exercem efeitos prejudiciais às mulheres, mas de maneira
diferente dos relacionamentos fixos. Esses modelos tendem a contribuir para condenar mulheres que trazem consigo preservativos pelo
fato de estarem assumindo uma postura mais ativa, que seria socialmente resguardada aos homens (FRANCISCO et al., 2016). Um
estudo que entrevistou participantes mulheres verificou que elas não
julgavam negativamente mulheres que carregam consigo preservativos e pensavam que outras mulheres também não julgariam, e que,
no entanto, acreditavam que os homens seriam críticos em relação
a esse comportamento das mulheres com base especificamente em
questões de gênero (LEUNG; MACDONALD, 2018).
- 84 -
A questão do uso do preservativo parece, contudo, ser ainda
mais difícil de manejar no contexto de relacionamentos íntimos estáveis (BRASIL, 2009). É considerado um dado alarmante que, aproximadamente, seis em cada dez mulheres brasileiras podem ter contato com o vírus HIV através de relações sexuais com um parceiro
estável (SOUZA; TANIGUCHI, 2014). Existem indícios, ainda, de
que as ISTs de forma geral costumam ocorrer com maior prevalência
entre mulheres em relacionamentos estáveis (OSWALT; WYATT,
2014). Nesse sentido, estudos têm verificado uma significativa associação entre o menor poder das mulheres nos relacionamentos
íntimos e ausência do uso de preservativo ou uso inconsistente de
preservativo (ALTSCHULER; RHEE, 2015; CHIARAMONTE et
al., 2020; DÉVIEUX et al., 2016; MCMAHON et al., 2015; SOUZA; MUÑOZ; VISENTIN, 2020).
Em relacionamentos estáveis com homens, mulheres demonstram ter narrativas semelhantes quanto à afirmação de seus
parceiros, que se resume em “ele não gosta de usar preservativo”,
demonstrando o imperativo da primazia do prazer masculino (GARCIA; SOUZA, 2010; SILVA; SZAPIRO, 2015). A infidelidade masculina como algo que deve ser aceito pelas mulheres está perpassada
por papéis de gênero que dificultam o questionamento do controle
exercido pelos homens nos relacionamentos heterossexuais (MOURA et al., 2020; NASCIMENTO; KIND, 2018; RODRIGUES et
al., 2012). Ademais, a reprodução de discursos que se associam a
ideias como a de que “a mulher não deve se separar, pois corre o
risco de ficar sozinha” tem dificultado a postura ativa das mulheres
diante de suspeitas de traições (CARVALHAES, 2010). A cristalização dos papéis de gênero, através da centralidade do status de esposa
e da manutenção da família como valores inegociáveis que propiciam sentido à vida das mulheres, parece continuar contribuindo na
atualidade para que elas estejam mais vulneráveis ao adoecimento
(GARCIA et al., 2015).
Dessa forma, há evidências de que, nos diferentes formatos
de relacionamentos entre homens e mulheres, casuais ou estáveis,
costuma ocorrer a predominância da vontade do homem em tomadas de decisões sexuais. Assim, a opressão de gênero instituída através da submissão feminina aos desejos masculinos segue operando
(FINKLER; OLIVEIRA; GOMES, 2004; RIBEIRO; SILVA; SAL- 85 -
DANHA, 2011; RUFINO et al., 2016), e permanece sendo exigido
que mulheres estejam em conformidade com expectativas associadas a estereótipos de gênero em detrimento de suas demandas de
saúde (RIBEIRO; SILVA; SALDANHA, 2011; RODRIGUES et al.,
2012).
O sexismo é uma das formas de expressão do fenômeno do
preconceito e pode ser compreendido como um conjunto de estereótipos, avaliações e atos discriminatórios dirigidos às mulheres
em decorrência de elas serem do gênero feminino. Está estabelecido
como um instrumento de poder que busca garantir que sejam mantidas diferenças sociais com base no gênero (FERREIRA, 2004).
O sexismo manifesta os valores patriarcais profundamente consolidados, exerce efeito nas dinâmicas afetivo-sexuais e contribui
para a manutenção dos papéis de gênero tradicionais estabelecidos,
com homens em posições mais ativas e dominadoras e mulheres em
posições mais passivas e dóceis (VON MUHLEN; SALDANHA;
STREY, 2014).
Atualmente, atitudes sexistas tradicionais não deixam de existir, mas passam a coexistir com novas formas de sexismo, em que
a manifestação da opressão ocorre de forma mais sutil (FERREIRA, 2004; FORMIGA; GOLVEIA; SANTOS, 2002). Glick e Fiske
(1996), com a intenção de investigar a ambivalência associada às
formas de sexismo presentes na contemporaneidade, propuseram o
modelo teórico do sexismo ambivalente. Esse modelo sustenta que
o preconceito direcionado às mulheres possui duas dimensões: o
sexismo hostil e o sexismo benevolente.
O sexismo hostil está relacionado à manifestação de grande
antipatia baseada em uma generalização falha e inflexível dirigida
particularmente às mulheres identificadas como aquelas que tentam
se apropriar do poder dos homens. Ele busca desqualificar mulheres
que se distanciam de papéis e estereótipos de gênero tradicionais
através de uma maior perspectiva crítica feminista (GLICK et al.,
2000; GLICK; FISKE, 2001). Essa dimensão do sexismo envolve a
intolerância em relação ao papel da mulher como alguém que possui capacidade de agência, ou seja, poder para controlar sua própria
vida. O sexismo hostil pode ser exemplificado pela compreensão de
que “[...] as mulheres tentam ganhar poder controlando os homens”
(FORMIGA; GOLVEIA; SANTOS, 2002).
- 86 -
O sexismo benevolente, em contrapartida, difere-se do sexismo hostil por não apresentar características evidentemente agressivas, e sim uma concepção de homem gentil e cortês que oferece
proteção e reverência às mulheres que manifestam conformidade
com papéis de gênero convencionais (GLICK et al., 2000; GLICK;
FISKE, 2001). Ele está relacionado à concessão de uma superioridade subjetivamente positiva no contexto dos relacionamentos íntimos. Assim, o sexismo benevolente pode ser exemplificado pelo
entendimento de que “[...] uma boa mulher deve ser colocada em um
pedestal pelo seu homem” (GLICK; FISKE, 1996).
Os próprios autores da teoria, contudo, problematizam o uso
da palavra benevolente para caracterizar este tipo de sexismo. Embora as características do sexismo benevolente possam ser identificadas como subjetivamente positivas por quem perpetra e mesmo,
por vezes, por quem sofre a opressão, essa dimensão sexista não
deve ser caracterizada como boa. Os estereótipos em relação às mulheres que decorem desse tipo de sexismo efetivamente possuem
características positivas, mas somente no que se refere aos aspectos
socioemocionais que seriam intrinsicamente femininos, e não à capacidade de agência das mulheres (GLICK; FISKE, 1996).
Nesse sentido, através da concepção de que “a mulher não é
explorada, mas, ao contrário, é protegida e amada”, o sexismo benevolente demonstra ser permeado pelo mesmo sistema de ideias que
legitima o poder hegemônico dos homens em relação às mulheres e
que é subjacente ao sexismo hostil, podendo ser exemplificado pela
concepção de que “a mulher pertence ao grupo mais fraco e inferior” (FERREIRA, 2004). Enquanto o sexismo hostil explicitamente
manifesta que as mulheres são incompetentes para ocupar cargos
remunerados de trabalho, o sexismo benevolente fornece uma racionalização para confinar as mulheres aos cuidados domésticos e à satisfação das “necessidades masculinas” e, ainda, para reverenciá-las
por ocupar esses papéis (GLICK; FISKE, 1996).
Cabe ressaltar que o sexismo ambivalente se caracteriza pela
tendência de oscilação da forma de manifestar o preconceito, dependendo das características do contexto e das características das
mulheres com quem ocorre a interação. A conotação ambivalente
do sexismo não diz respeito ao senso de confusão, conflito ou tensão, mas sim à divisão de atitudes em relação a dois grupos distin- 87 -
tos de mulheres: atitudes subjetivamente benevolentes em relação
às mulheres em conformidade com papéis de gênero tradicionais,
e atitudes hostis em relação às mulheres que desafiam e disputam o
poder destinado aos homens (GLICK; FISKE, 1996). É importante
destacar, assim, que essas formas de sexismo não são excludentes,
mas sim complementares (GLICK; FISKE, 2001).
Existem evidências científicas demonstrando que as mulheres consideram que homens com atitudes sexistas benevolentes são
mais atraentes, não apenas quando comparados com homens com
perfis de maior hostilidade em sua manifestação do sexismo, mas
também em comparação com os homens com atitudes não sexistas
(BOHNER; AHLBORN; STEINER, 2010). Ademais, é relevante
destacar que estudos com amostras de 19 países, incluindo o Brasil (GLICK et al., 2000), e com amostra exclusivamente brasileira
(FERREIRA, 2004) chegaram a conclusões semelhantes, verificando que as mulheres tendem a rejeitar o sexismo hostil e tolerar o
sexismo benevolente. Entende-se que uma possível explicação para
esse resultado está associada ao fato de que a manifestação benevolente desse preconceito é menos explícita e mais sutil. Nessa perspectiva, a percepção limitada em relação a esse tipo de sexismo pode
contribuir para dificultar a interrupção da perpetuação de valores
patriarcais, apontando para uma necessidade de desenvolver a criticidade das mulheres (FERREIRA, 2004).
O sexismo deve ser compreendido como um fenômeno que
exerce influência no uso de preservativo em relacionamentos sexuais entre homens e mulheres de diferentes maneiras (BATISTA
et al., 2016). Evidências recentes têm demonstrado que uma dessas
formas é através da manifestação do polo benevolente do sexismo,
que está associada a níveis mais baixos de uso de preservativo. A
internalização dessa faceta do sexismo por parte das mulheres pode
contribuir para uma maior conformidade aos papéis de gênero tradicionais e, assim, para que mulheres tenham dificuldade de se afastar
de um script sexual de maior passividade frente aos desejos dos homens (DURÁN; MOYA; MEGÍAS, 2014; FITZ; ZUCKER, 2015).
Ainda, é importante ressaltar que, embora a dificuldade de
negociação de sexo seguro ocorra independentemente do nível de
escolaridade e de dependência financeira das mulheres em relação
aos parceiros íntimos (GARCIA; SOUZA, 2010; GARCIA et al.,
- 88 -
2015), existem evidências de que esses fatores e outros, que incluem
idade, raça/cor e classe, se interseccionam com o sexismo e impactam grupos de mulheres de forma diferente em relação à capacidade de proteção contra ISTs (HANKIVSKY, 2012; UNAIDS, 2017).
Dessa forma, estudos sobre o enfrentamento às ISTs não podem ser
descolados da multiplicidade de vivências experenciadas por grupos
diversos de mulheres (SANTOS et al., 2009), sendo fundamental
obter distância de paradigmas de gênero fundamentados em uma
ideia universal de mulher (VON MUHLEN; SALDANHA; STREY,
2014).
Nessa perspectiva, pode ser útil para análises complexas relacionadas ao sexo desprotegido praticado por mulheres que se relacionam com homens estabelecer reflexões de forma interseccional.
O marco teórico da interseccionalidade, conforme propõe Crenshaw
(2002), envolve uma proposta crítica de análise que leva em consideração diferentes eixos de poder para compreender as diferentes
opressões de forma articulada. Cabe destacar que não se trata de
uma multiplicidade de diferenças que caracterizam os sujeitos a partir de uma somatória de opressões, e sim de articulações que se estabelecem de forma relacional. A autora discorre que é através dessa
intersecção de eixos de subordinação, com consequências que estruturam na prática as posições que as diferentes mulheres ocupam, que
as dinâmicas de desempoderamento das mulheres se estabelecem
(CRENSHAW, 2002). É possível pensar que uma dessas dinâmicas
de desemponderamento contempla a dificuldade de negociar o uso
do preservativo em relações sexuais com homens.
Cabe destacar, contudo, que é importante atentar para que não
se reproduza a histórica desconsideração da agência das mulheres
em relação à sexualidade quando se busca compreender a opressão estabelecida através de dinâmicas de poder que privilegiam os
homens (HIGGINS; HOFFMAN; DWORKIN, 2010). Na contemporaneidade, muitas mulheres já têm sido capazes de se distanciar
de padrões de conduta sexistas (VON MUHLEN; SALDANHA;
STREY, 2014). Ainda, há indícios de que mulheres com uma maior
perspectiva crítica feminista em relação aos papéis de gênero tendem a identificar que possuem um maior poder no contexto das relações sexuais (LANIER, 2013) e maiores níveis de autoeficácia no
uso de preservativo, que é uma medida preditiva do uso efetivo de
preservativo (SCHICK; ZUCKER; BAY-CHENG, 2008).
- 89 -
Conclusão
Não são recentes as pesquisas que demonstram a importância de estratégias para prevenção de ISTs em mulheres abordarem
questões específicas relacionadas às relações de gênero (ALVES;
BRANDÃO, 2009; FINKLER; OLIVEIRA; GOMES, 2004; OLTRAMARI; OTTO, 2006). Entretanto, apesar das evidências científicas, a implementação de uma resposta ao combate às ISTs em
mulheres que esteja perpassada por uma reflexão crítica de gênero
não está suficientemente implementada na prática (UNAIDS, 2020).
Há indícios, inclusive, de que os efeitos limitados de intervenções
na contemporaneidade parecem estar associados justamente à falta
de contemplação de questões psicossociais que comprovadamente
afetam comportamentos sexuais (BLASHILL; SAFREN, 2015).
Constata-se, assim, a importância de articular estratégias interventivas que busquem integrar componentes que contemplem diferentes
aspectos relacionados às competências de negociação (PATRÃO;
MCINTYRE; COSTA, 2019) e contribuam efetivamente para que
mulheres consigam ter habilidades para garantir o sexo seguro com
seus parceiros (SANTOS et al., 2009).
Para desenvolver essas intervenções, é fundamental que seja
desenvolvida, no contexto brasileiro, uma forma de compreensão
acerca dos fatores associados ao sexo desprotegido praticado por
mulheres que se relacionam sexualmente com homens. Sabe-se que
o sexismo internalizado é um fator associado a níveis mais baixos
de uso de preservativo por parte das mulheres (FITZ; ZUCKER,
2015), e, em contrapartida, existem indícios de que a rejeição a papéis de gênero tradicionais possui impacto positivo nos níveis de uso
de preservativo por parte das mulheres (HARRISON et al., 2006).
Sendo assim, conclui-se que é imprescindível investigar a assimetria de poder em relacionamentos heterossexuais quando se busca
desenvolver um modelo de compreensão do uso de preservativo por
mulheres que seja integrativo e que possa subsidiar futuras pesquisas de intervenção (COSTA et al., 2014; FRANCISCO et al., 2016;
SOUZA; MUÑOZ; VISENTIN, 2020).
Destaca-se, por fim, a relevância de incluir os homens em
intervenções que busquem a reflexão e problematização acerca de
modelos hegemônicos de masculinidade e suas expressões em manifestações durante as relações sexuais. Para questionar a existência
- 90 -
de uma necessidade constante de reforçar o que constitui o “sexo
forte”, é fundamental questionar a razão da busca por um distanciamento do “sexo frágil” (WINCK; STREY, 2009). Santos e Nardi
(2018) apontam que, para os homens, o próprio processo de garantir
o seu reconhecimento na sociedade ocorre a partir da diferenciação
de tudo que é tomado como feminino, e esse percurso, não raramente, é carregado de violência. Assim como é necessário se distanciar
de uma concepção universal de mulher, também é fundamental buscar a dissolução de uma concepção de homem essencialista e única,
buscando compreender as masculinidades enquanto diversas e passíveis de mudanças (SANTOS; NARDI, 2018).
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CAPÍTULO 4
Perseguição obsessiva: falando sobre o stalking
Cíntia Maria Nascimento Cruz
Introdução
Discutir a violência contra as mulheres é necessário e, sendo
ela uma das expressões da hierarquia de gênero, faz-se necessário
também debater os papéis atribuídos a homens e mulheres que foram e são construídos e reforçados pela ideologia machista e patriarcal consolidada ao longo da história. A violência é um meio de
coagir, de subalternizar, submeter o outro, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano. Assim, a violência possui um impacto
perverso na vida das pessoas e, no caso específico aqui estudado, na
vida das mulheres, deixando marcas tanto físicas como mentais, e
acontecendo no Brasil e no mundo.
Mesmo com os avanços conquistados, como a Constituição
de 1988, a Lei Maria da Penha5 e a Lei do Feminicídio6, a violência permanece acontecendo na vida privada e nos espaços públicos,
como no trabalho, na escola, universidade, e assume diversas formas: física, sexual, psicológica, econômica e de perseguição. É um
sistema de opressão, violência e coisificação da mulher que acontece
no campo e na cidade, do barraco ao castelo, do Oiapoque ao Chuí.
Essas formas de violência se inter-relacionam e afetam a vida das
mulheres em algum momento da sua vida.
É nesse cenário de objetificação e coisificação da mulher que
este trabalho estuda o stalking em sua relação com a violência de
gênero e com o patriarcado que contribui para sua sustentação na
sociedade.
Este capítulo foi dividido em tópicos. No primeiro aborda-se violências marcadas pelo gênero; no tópico seguinte, trata-se do
stalking e sua concepção.
Violências marcadas pelo gênero
Falar de violência contra as mulheres é, sobretudo, falar sobre
o patriarcado, a hierarquia de gênero e desigualdade. O conceito de
5 Lei nº 11.340/2006.
6 Lei nº 13.104/2015.
- 101 -
feminino foi, por muito tempo, condicionado às características biológicas para a definição do papel da mulher na sociedade, tais como
a maternidade e a fragilidade, enquanto ao homem foram dadas características de força física, chefe da família. É em tal diferenciação
entre os sexos que o patriarcado até os dias atuais se baseia para a
perpetuação da hierarquização entre gêneros. Não há como negar
que existe um mecanismo invisível de controle que tem sido utilizado, ao longo dos séculos, para colocar as mulheres num papel de
submissão na sociedade.
Santana (2010, p. 3) explica que
[...] por vários séculos, a mulher foi vista pelo viés masculino, ou
seja, pela ótica e percepções do homem, visto que a mulher deve a
ele obediência e respeito, pois é vista como frágil e incapaz, determinando assim, sua maneira de pensar, de ser e de agir, fazendo-a
acreditar que é inferior a ele.
Numa sociedade ainda patriarcal e machista, predomina o
controle sobre a vida da mulher, do seu corpo, da sua capacidade
sexual e reprodutiva, do seu modo de trabalho e até de pensar.
Gerda Lerner (2019, p. 290) define o patriarcado como “[...]
manifestação e institucionalização da dominância masculina sobre
as mulheres e crianças na família e a extensão da dominância masculina sobre as mulheres na sociedade em geral”. Assim, o patriarcado nada mais é do que o poder masculino exercido sobre mulheres
através da coerção, dominação, principalmente com a criação de
estruturas sociais com papéis hierarquizados predeterminados que
estipulam a inferioridade feminina. Os homens praticam a dominação iniciando com as mulheres do seu próprio grupo social, e isso se
reflete na exclusão feminina como forma de manutenção do poder
sobre a mulher, que vai do seu nascimento até a velhice, numa hierarquia desigual.
Saffioti (2015, p. 105) enfatiza que o regime patriarcal se sustenta em uma economia organizada domesticamente, consequentemente uma maneira de assegurar aos homens os meios necessários
à produção diária e à reprodução da vida. Estabelece-se, assim, um
pacto masculino para garantir a opressão das mulheres, que se transformam em seus objetos de satisfação sexual e reprodutoras de seus
herdeiros, da força de trabalho e de novas reprodutoras.
- 102 -
Dessa forma, a violência contra a mulher tem feito parte do
cotidiano e das relações entre os sexos, marcadas por profundas
desigualdades, e prevalecendo o poder masculino. Com base nesse
argumento, consideramos que este “É o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens” (SAFFIOTI, 2015, p. 47).
Nesse contexto, o texto de Araújo (2008) complementa:
A violência de gênero produz-se e reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as categorias de gênero, classe e raça/etnia.
Expressa uma forma particular de violência global mediatizada pela
ordem patriarcal, que delega aos homens o direito de dominar e
controlar suas mulheres, podendo para isso usar a violência.
Historicamente, existe uma relação de subordinação entre
mulheres e homens que permanece sustentada pela desigualdade
construída na divisão sexual. Baseado em uma construção cultural
de diferença entre sexos, o sistema capitalista e patriarcal, ao longo dos séculos, vem reproduzindo essas relações desiguais. Assim,
tanto o sistema capitalista como o sistema patricarcal corroboram
de forma mútua para essa desigualdade de gênero, um sustentando
o outro e impondo às mulheres, mesmo atualmente, condições subalternas, de dependência financeira, emocional e social. Tornam,
assim, a violência do homem sobre a mulher um instrumento de
manutenção dessa relação de inferioridade.
As mulheres, então, aprendem desde pequenas que existem
brincadeiras de meninas e brincadeiras de meninos, que elas devem
se portar de determinada forma e brincar com determinados objetos,
sendo domesticadas para agir conforme a sociedade patriarcal deseja
e, pior, influenciadas a sentir culpa quando não seguem o padrão de
comportamento esperado pela sociedade. Com todo o engessamento
e anulação que sofrem ao longo da vida, sejam eles no trabalho, na
escola, nas relações familiares, as mulheres são colocadas dentro
de estruturas bem definidas e hierarquizadas, nas quais o masculino
está no topo.
A violência contra as mulheres é a forma mais perversa dessa
institucionalidade multifacetada e cheia de complexidade. Celmer
(2010, p. 73) traz a violência contra a mulher como: “[...] aquela
conduta que cause danos físico, psíquico ou sexual não só à mulher
como a outras pessoas que coabitem na mesma casa, incluindo empregados e agregados”.
- 103 -
Já a violência familiar é explicada pela autora como (CELMER, 2010, p. 74): “[...] mais específica, abrangendo apenas as
agressões físicas ou psicológicas entre membros da mesma família.
Por fim, violência conjugal deve ser entendida como todo tipo de
agressão praticada contra cônjuge, companheira (o) ou namorada
(o)”.
Portanto, a violência se caracteriza como qualquer agressão,
física, psicológica, moral ou sexual que venha a machucar a mulher
ou qualquer outra pessoa dentro do ambiente doméstico e familiar.
Assim, a crueldade sofrida pelas mulheres revela-se em sua multiprocessualidade, em sua recorrência e ambivalência.
E a violência chegou também ao ambiente virtual. Segundo
a pesquisa “A voz das redes: o que elas podem fazer pelo enfrentamento das violências contra as mulheres”, realizada pelo Instituto
Avon (2018), o Facebook foi uma das plataformas em que os temas
assédio e violência contra mulher foram mais comentados (41%).
Em seguida vêm o Twitter (16%), YouTube (13%), Instagram (9%)
e WhatsApp (7%). O que revela essa pesquisa é que, apesar de a
evolução tecnológica facilitar a comunicação entre as pessoas e ser
de utilidade para a troca e acesso a informações, as redes sociais e
outras áreas da comunicação digital têm também facilitado violências contra as mulheres.
As violências de gênero que acontecem no ambiente virtual
não estão descoladas do “mundo real”, estão estruturadas na construção social da mulher como objeto, como uma coisa, e estão calcadas no desrespeito, na desumanização do ser feminino.
Esses espaços virtuais reproduzem discriminações construídas socialmente e que reforçam o patriarcado, machismo, misoginia,
podendo ser componentes para reforçar violências contra as mulheres e população LGBTQIA+.
Contudo, o ambiente virtual também se configura como espaço de denúncias e de enfrentamento das formas de violações e
violências contra as minorias. Nesse contexto de profundas transformações, torna-se pertinente discutirmos o stalking.
Falando sobre stalking: um crime novo para nomear velhas
práticas
Stalking é um termo norte-americano que surgiu nos anos
1980 por causa da grande perseguição a celebridades. Contudo, fi- 104 -
cou popularizado após a morte da princesa Diana, em 1997, que
sofreu um acidente e morreu enquanto fugia de paparazzis. O termo
é muito utilizado desde então.
O stalking é considerado crime em vários países, como EUA,
Portugal, Austrália, Alemanha. Nesses países, há uma legislação específica e, no caso de Portugal, um manual para profissionais de
apoio e atendimento às vítimas de stalking. No Brasil, o stalking
ficou conhecido principalmente nas redes sociais e não era considerado crime, e, sim, contravenção penal. A Lei nº 14.132/21, ou Lei
do Stalking, entrou em vigor no dia 31 de março de 2021, alterando,
no Código Penal, o Decreto-Lei nº 3.914, de 1941, com a seguinte
redação:
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio,
ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe
a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou
perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:
I – Contra criança, adolescente ou idoso;
II – Contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos
termos do §2º-A do art. 121 deste Código;
III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.
§ 3º Somente se procede mediante representação. (BRASIL, 2021).
Assim, o stalking é o ato de perseguir alguém, de forma persistente e incessante, por qualquer meio, como na internet (cyberstalking7), no trabalho e/ou na rua, ameaçando a sua integridade física
e/ou psicológica e interferindo na sua liberdade e privacidade; entendido também como o ato de assediar, aproximar-se repetidamente, caçar, aterrorizando a vítima – que são mulheres em sua grande
maioria e que frequentemente têm a necessidade de ajustar as suas
rotinas diárias por se sentirem aterrorizadas e sem qualquer controle
sobre as suas vidas.
O cyberstalking é muitas vezes relacionado ao crime de pornografia de vingança (revenge porn), previsto no Art. 218-C do Có7 O cyberstalking nada mais é do que a perseguição através da internet. Desde 31 de março
de 2021 passou a ser tipificado o crime de stalking e cyberstalking no Código Penal, no Art.
147-A, com uma pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa.
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digo Penal. Tal crime ocorre quando alguém, sem o consentimento
da vítima, oferece, troca, disponibiliza, transmite, vende ou expõe à
venda, distribui, publica ou divulga, “[... por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática
ou telemática –, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual” que
contenha cena de sexo, nudez ou pornografia (BRASIL, 1940).
Embora o stalking não seja novidade no cenário mundial, ele
foi por muito tempo aceito e reforçado pela sociedade com base nos
ideais do romantismo e da paixão. No Brasil, existe ainda pouca
produção científica sobre stalking, principalmente na área do Serviço Social. Assim, apesar de ser vivenciado diariamente, esse tipo de
violência ainda é pouco discutido e conhecido na esfera nacional.
O que caracteriza a perseguição obsessiva é quando há
uma ameaça à integridade física ou psicológica da vítima. A pessoa
perseguida ou stalkeada fica com medo de sair de casa, deixando de
frequentar lugares a que antes ia com tranquilidade, como escola,
trabalho... E, ao sair na rua, a vítima fica com desconfiança, tem sensação de perigo iminente. Stalking, portanto, é uma forma de violência em que o perseguidor invade a esfera de privacidade da vítima,
forçando incessantemente – através de atos variados, como ligações,
mensagens, presentes não solicitados, presença na saída da escola
ou do trabalho ou em outros espaços/momentos, dentre outros – sua
presença de modo inoportuno e sem consentimento da vítima.
No Brasil, segundo dados da organização não governamental
Safernet (CYBERSTALKING, [201-]), só em 2018, houve 16.717
denúncias de crimes na internet em que a mulher foi a principal vítima de crimes de cyberstalking. Mulheres estão mais suscetíveis a
esse tipo de violência pelo contexto da sociedade machista e patriarcal que hierarquiza e naturaliza as relações entre os gêneros. Amiki
(2014, p. 15), em seu estudo sobre stalking nos Estados Unidos e
Europa, afirma:
Stalker é o perseguidor, aquele que escolhe uma vítima, pelas mais
diversas razões, e a molesta insistentemente, por meio de atos persecutórios – diretos ou indiretos, presenciais ou virtuais – sempre
contra a vontade da vítima. Em outras palavras, stalker é quem
promove uma “caçada” física ou psicológica contra alguém. Os
estudos e pesquisas realizados até agora mostram que os homens
somam a grande maioria dos stalkers, o que não sinaliza a inexistência de stalkers feminino.
- 106 -
Cabe assinalar que pessoas em relações homoafetivas também
podem ser vítimas de stalking; contudo, no contexto de uniformalização, de heteronormatização das relações – que padroniza o ideário de casal na sociedade machista e patriarcal –, violências como
a perseguição obsessiva e revenge porn são invisibilizadas. Muito
dessa invisibilidade é por causa da cultura machista e patriarcal que
idealiza as relações heteronormativas como sendo padrão, fazendo
com que casos de stalking entre ex-companheiros e ex-companheiras de relações homoafetivas sejam desacreditados e possam sofrer
preconceito.
A perseguição, sob qualquer forma, degrada a privacidade.
Para Amiky (2014, p. 46), “Uma vítima de stalking pode nunca mais
voltar a ter uma vida tranquila, livre de preocupações com perseguições em geral”. Essa vítima pode desenvolver doenças psicológicas,
ter crise de ansiedade, medo, fobia de sair de casa. Ainda segundo
Amiky (2014, p. 45), sobre as consequências sofridas por vítimas
de stalking:
Para tentar evitar esse tipo de situação, as vítimas acabam se trancando em casa, não saindo nem mesmo para trabalhar. A ansiedade
é tão grande que elas não conseguem mais dormir, comer, conversar, abrir o computador ou atender o telefone. Essas pessoas enfrentam um revés do qual talvez nunca mais se recuperem.
Para David (2017, p. 26), entre as consequências do stalking
no nível psicológico das vítimas: “[...] podemos destacar a presença
de medo, hipervigilância, desconfiança, sentimentos de abandono,
desânimo, depressão, ansiedade, raiva, ideação suicida, paranoia,
perturbação de stress pós-traumático, etc.”.
Na lei conhecida como Maria da Penha, Lei nº 11.340/06, em
seu Art. 7º, inciso II, violência psicológica é entendida como a perseguição e/ou comportamentos que causem danos emocionais para
vítimas:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
[…]
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degra-
- 107 -
dar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto,
chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração
e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Percebe-se, mediante o exposto, que o stalking é “[...] um
misto de retaliação com ameaça, de perseguição e assédio, que persistentemente vai ocupando a consciência do indivíduo, ganhando
por vezes uma dimensão obsessiva e que parece escapar ao controlo
da sua consciência” (GONÇALVES, 2011, p. 7) – um controle, de
certa forma, do corpo e da vida da mulher.
Para David (2017, p. 28), o patriarcado e o machismo contribuem para o surgimento do stalking, relacionando “[...] o aparecimento deste fenômeno à existência de uma série de tensões opostas
na cultura contemporânea, a uma maior instabilidade nas relações
íntimas e a uma cultura de culpabilização”. Para a autora, o fator determinante no surgimento de situações de perseguição está relacionado à construção social do papel da mulher e sua desumanização.
Os comportamentos de procura de proximidade englobam atividades através das quais o stalker consegue ficar fisicamente próximo
do alvo e incluem: visitas regulares e indesejadas à vítima; mudança de habitação para ficar mais perto do local onde a vítima vive
ou que ela habitualmente frequenta e aparecer em sítios que ela
normalmente visita. (DAVID, 2017, p. 18).
O patriarcado contribui para o controle do corpo da mulher,
para a sua objetificação8, determinante para a desumanização da
mulher, fazendo dela um simples objeto de prazer. Assim, no olhar
masculino, ela possui papéis sociais definidos, de subalternidade, e
essa lógica machista e sexista produz, reproduz, alimenta e legitima
as relações desiguais entre homens e mulheres. No entanto, sendo
essa cultura algo que foi construído socialmente, ela é passível de
ser reconstruída, com igualdade entre os gêneros.
8 A palavra objetificação foi criada no início da década de 1970 e descreve o ato de analisar
uma pessoa como se fosse um objeto, sem levar em conta o lado emocional e psicológico
desse indivíduo (LIMA, 2016).
- 108 -
Conclusão
A luta das mulheres é pela autonomia, pelo fim de todas as
formas de violências, pelo direito de decidir sobre o seu corpo, pelo
direito de oportunidades e políticas públicas, por qualidade de vida
e, principalmente, por uma vida segura. Assim, a luta contra as expressões da questão social, sendo ela a desigualdade social, é uma
luta das mulheres contra a pressão patriarcal e contra o capitalismo.
A perseguição reiterada não é algo novo no cenário mundial; o stalking é apenas um novo nome para velhas práticas, agora também
realizadas por meio da internet, que facilitou a exposição das vítimas aos seus stalkers.
É fundamental que o Estado brasileiro aprimore suas ações
no tocante à proteção das mulheres, assegurando a efetividade dos
mecanismos protetivos para garantir à mulher o exercício de seus
direitos e liberdades fundamentais, em igualdade de condições com
o homem. Da mesma forma, é fundamental que as redes de apoio
trabalhem em conjunto para o acolhimento daquelas mulheres que
foram vítimas de qualquer tipo de violência.
Apesar das conquistas e avanços na legislação brasileira, as
mulheres ainda se encontram em situação menos privilegiada no
país, com salários mais baixos, e vivenciando o racismo, sexismo e
todas as formas de violências e violações que explicitam a perpetuação do machismo e patriarcado em nossa sociedade. Ou seja, persistem ainda desigualdades com origens nas relações estruturadas nas
diferenças entre os gêneros.
Referências
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(Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito,
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<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2008000300012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20
dez. 2021.
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- 109 -
o art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), para prever o crime de perseguição; e revoga o
art. 65 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei
das Contravenções Penais). Brasília, 2021. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.132-de-31-de-marco-de-2021-311668732>. Acesso em: 19 jun. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121
do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal,
para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime
de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para
incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Brasília, 2015.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2015/lei/l13104.htm>. Acesso em: 8 jun. 2022.
BRASIL.Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá
outras providências. Brasília, 2006. Disponível em: <https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm>.
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- 112 -
PARTE II
VIOLÊNCIAS NA INFÂNCIA E
ADOLESCÊNCIA
- 113 -
- 114 -
CAPÍTULO 5
Particularidades dos direitos das crianças e
adolescentes no Brasil: história, violências e
pandemia
Graziela Milani Leal
Introdução
Como todos os processos que se dão no âmbito da sociedade, a construção dos direitos das crianças e dos adolescentes não se
estabelece de uma vez por todas, de maneira absoluta. Pelo contrário, pois, por serem direitos históricos, eles nascem gradualmente,
a partir de processos de resistência, e igualmente acompanham os
movimentos da realidade, constituindo-se como espaço de produção
e reprodução, de conquistas, retrocessos e superações (BOBBIO,
1992). Ou seja, são processos dialéticos e provisórios, em que se tem
como principal fim o reconhecimento de crianças e de adolescentes
enquanto sujeitos de direitos. Entretanto, ao revisitar o início dessa
história, percebe-se que nem sempre a finalidade foi a sua proteção.
Ao compulsar o processo sócio-histórico de construção dos
direitos das infâncias e adolescências no Brasil, observa-se uma
gênese ligada à inexistência de legislações ou de políticas públicas
que objetivassem sua proteção, que era deixada a cargo da caridade religiosa. Na década de 1920, essa conjuntura altera-se com a
promulgação do Código de Menores de 1927, no qual se dispensa
um olhar menorista à criança e ao adolescente pobre, abandonado
e delinquente, entendidos enquanto sujeitos incapazes e em situação irregular (RIZZINI, 2011). Esse contexto perdura até meados
da década de 1980 e início da de 1990, quando, a partir da instituição da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), passasse-se a entendê-los enquanto sujeitos de
direitos, em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, que
devem ter assegurada a sua proteção integral.
Para dar materialidade aos direitos agora previstos nas normativas, constitui-se um Sistema de Garantia de Direitos (SGD)
que, articulando as esferas de promoção, de proteção e de controle,
- 115 -
propõe um modelo intersetorial que busca assegurar na realidade
concreta uma atenção integral às infâncias e adolescências. Nesse
mesmo sentido, considerando serem crianças e adolescentes população especialmente vulnerável à prática de violências (SPOSATI,
2009), compõe-se um Sistema de Garantia de Direitos específico
para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência,
regulamentado pela Lei Federal nº 13.431 de 2017, que visa construir mecanismos para prevenir e coibir as situações de violências.
Tais situações acirram-se no ano de 2020, tanto no Brasil quanto nos
demais países do mundo, que se depararam com uma grave crise
sanitária causada pela pandemia da covid-19, uma doença causada
pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e de grande letalidade, sobretudo em decorrência de sua fácil e rápida transmissão, e que demanda a necessidade de isolamento social.
Assim, este capítulo tem como objetivo compreender como
vem se materializando o processo sócio-histórico de construção dos
direitos das infâncias e adolescências no Brasil, buscando principalmente percorrer os caminhos já trilhados para entender como esse
segmento populacional constitui-se enquanto sujeito de direitos.
Para isso, coloca-se em perspectiva a inter-relação com as políticas
públicas de proteção social e com o Sistema de Garantia de Direitos,
que buscará assegurar o acesso aos direitos humanos no cotidiano
concreto das crianças e dos adolescentes – sobretudo quando vítimas
ou testemunhas de violências, situação essa que demanda um olhar
atento e singular tanto por parte do Estado quanto da sociedade.
Processo sócio-histórico de construção dos direitos da criança
e do adolescente no Brasil
Durante longo período da história brasileira, verifica-se a inexistência de legislações ou de políticas públicas que objetivassem
a proteção e o amparo às infâncias e adolescências, que ficavam
à mercê de ações caritativas de cunho religioso – não havendo intervenções do Estado nesse sentido. Essa assistência reduzia-se ao
recolhimento dos pobres, dos órfãos, dos abandonados e dos expostos, destinando-os principalmente para o preparo para as milícias ou
para os serviços domésticos (RIZZINI, 2011). Nessa época, tinha-se
em vigência o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, que
definia que a responsabilidade penal se daria a partir dos quatorze
- 116 -
anos de idade, de modo que “mendigos, vadios e criminosos” deveriam ser recolhidos para as Casas de Correção (SARAIVA, 2005).
Já a época da Primeira República é caracterizada por muitas
mudanças conjunturais, principalmente pela chegada do capitalismo à sociedade brasileira, tendo como importantes consequências a
industrialização e o grande êxodo rural. Com a superpopulação das
cidades, a normalização médica e a medicina higienista (COSTA,
2004) ganham espaço e, com elas, a ideia da necessidade de se sanear as famílias (MOURA, 2004; POLIGNANO, 2006). Em relação
à infância, o que se verifica é “[...] uma oscilação constante entre a
defesa da criança e a defesa da sociedade contra essa criança que se
torna uma ameaça ‘à ordem pública’” (RIZZINI, 2011, p. 109). Desse modo, os “problemas” das crianças e dos adolescentes passam a
ganhar uma dimensão política, gerando a necessidade de educá-los
e de corrigi-los para que se tornassem funcionais ao sistema, para
que a sociedade fosse protegida e para que a moral permanecesse
preservada.
Nesse período, destaca-se a década de 1920, uma vez que, em
meio a uma crise econômica e política, a população passa a questionar o papel do Estado em dar respostas às suas necessidades. Dentre
tais respostas, após prévias discussões e medidas legais de controle
da infância, como a internação em colônias, há a aprovação o Código de Menores de 1927, também conhecido como Código de Mello
Mattos (RIZZINI, 2011). Esse código destinava-se aos menores em
situação irregular – abandonados e delinquentes – que, por serem
considerados sem capacidade, consequentemente careciam de intervenção do Estado, tornando-se objetos de tutela. Portanto, “[...] o
paradigma da incapacidade [...] fundamentou a construção da Doutrina da Situação Irregular. Como incapazes, os menores, enquanto categoria jurídica, ocupam o lugar de mero objeto do processo”
(SARAIVA, 2005, p. 7).
Inaugura-se, assim, a doutrina da situação irregular em uma
era menorista, em que é dispensado às crianças e aos adolescentes
um olhar que os entende enquanto seres incapazes e até mesmo sem
dignidade – o que fundamentava a necessidade de se tornarem objeto de tutela por parte do Estado. Ou seja, as situações sociais de pobreza, de abandono ou de prática de ato infracional figuravam como
motivos concretos para justificar a intervenção estatal, de manei- 117 -
ra que as crianças e os adolescentes “[...] permaneciam confinados
nas instituições totais e submetidos ao poder discricionário do Juiz
de Menores” (SILVA, 2005, p. 32), havendo ampla judicialização
da questão social e a criminalização da pobreza (GERSHENSON;
ALENCASTRO, 2006).
No período do Estado Novo, há o desenvolvimento de políticas trabalhistas, que objetivavam abrandar os movimentos sociais
e as reivindicações dos trabalhadores. É também nessa época em
que se estrutura a primeira política pública para a infância no país,
instituindo-se o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), que “[...]
tinha como missão amparar, socialmente, os menores carentes abandonados e infratores, centralizando a execução de uma política de
atendimento, de caráter corretivo-repressivo-assistencial em todo
território nacional” (LIBERATI, 2002, p. 60).
Essa estrutura de atendimento e de assistência perdurou até o
período da ditadura civil-militar, em 1964, quando o serviço foi extinto (PASSETTI, 2004). Em substituição ao SAM e objetivando dar
respostas à sociedade em relação ao aumento da criminalidade, os
governos militares estabeleceram a Política Nacional de Bem-Estar
do Menor, que regulamentou a Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor e a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. No entanto,
na realidade fática, permanecia praticamente inalterada a estrutura
do atendimento e do tratamento ofertado a crianças e adolescentes,
havendo continuidade de institucionalizações e ações repressivas e
correcionais.
Em 1979, um novo Código de Menores é instituído, sendo
ele considerado uma legislação que “[...] já surgiu defasada para sua
época, pois constituía o prolongamento da filosofia do Código de
Mello Matos” (SILVA, 2005, p. 32), reafirmando o compromisso
com os valores menoristas e com a doutrina da situação irregular.
Contraditoriamente, no mesmo ano de 1979, comemorava-se o Ano
Internacional da Criança, resultado de lutas e de processos de resistência da sociedade para reconhecer os direitos das infâncias e adolescências – os quais não se fizeram presentes nessa nova legislação.
Esse contexto perdura até meados da década de 1980, quando se
tem o fortalecimento dos movimentos sociais durante o período de
transição democrática (SPOSATI, 1991).
Nessa conjuntura, a questão social “[...] atinge visceralmente
a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania [que]
- 118 -
passa a exigir a interferência do Estado no reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos, consubstanciados nas políticas e nos serviços sociais” (IAMAMOTO,
2018, p. 210). Assim, o tensionamento popular contribuiu para o
processo de construção da Constituição Federal de 1988 e para a elaboração do seu Art. 227, que dispõe sobre os direitos das crianças e
dos adolescentes, garantindo-lhes prioridade absoluta e reconhecendo-os enquanto sujeitos de direitos e enquanto pessoas em condição
peculiar de desenvolvimento (SARAIVA, 2005).
No entanto, há de se destacar que, simultaneamente a esse
processo de transição democrática, o cenário mundial era caracterizado por um novo padrão de acumulação capitalista e pela expansão
do ideário neoliberal, que preconiza um Estado não intervencionista
e mínimo, sobretudo para a área social (IAMAMOTO, 2011; YAZBEK, 2003). Esse contexto incide diretamente na forma como as
políticas de proteção social foram e são colocadas em prática no
Brasil, verificando-se que, historicamente, “[...] estas políticas se
caracterizaram por sua pouca efetividade social e por sua subordinação a interesses econômicos. Seu escopo foi desenhado em uma
perspectiva residual, sem o comprometimento em enfrentar a desigualdade social que caracteriza a sociedade brasileira” (DEGENSZAJN; COUTO; YAZBEK, 2012, p. 454).
Esse debate igualmente atravessa e impacta a seara dos direitos das crianças e dos adolescentes. Conforme Silva (2005) destaca,
por 63 anos, a doutrina da situação irregular guiou as práticas do
Estado brasileiro, uma vez que tal base filosófica estava atrelada e
sendo funcional aos interesses do capital. Com as novas atribuições
neoliberais,
[...] a justiça e o direito menorista foram criticados por “oferecer”
proteção tutelar maximizada (paternalismo), pela impunidade em
relação aos comportamentos violentos juvenis, sobretudo pela
ausência das garantias de defesa. Assim, esse direito/justiça, aos
poucos, foi sendo “desconstruído” e construído, com base na visão
moderna de Estado de direitos, de Estado mínimo e de democracia
participativa com os inerentes direitos e garantias jurídicas. (SILVA, 2005, p. 35).
Nesse contexto neoliberal de acumulação flexível do capital,
com a falência do Código de Menores e considerando as lutas e as
- 119 -
reivindicações históricas dos movimentos sociais que tensionavam
o Estado a oferecer respostas à garantia de direitos das infâncias e
das adolescências (CARVALHO, 2001; COUTO, 2006), é aprovada
a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Apesar de ser uma grande
conquista, principalmente por estar comprometida com a doutrina
da proteção integral, em consonância com o já anunciado na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, há de se considerar as
contradições que igualmente se fazem presentes.
Ainda que seja o ECA uma legislação que estabelece o dever
da família, da sociedade e, sobretudo, do Estado de assegurar a proteção integral e o acesso a condições dignas de vida para as crianças
e adolescentes, o contexto em que ocorre é de recessão e de flexibilização, não sendo a previsão legal uma garantia de sua materialização (CARVALHO, 2001; COUTO, 2006). Em meio às contradições
inerentes ao processo de construção dos direitos das infâncias e das
adolescências no Brasil, é inegável que o ECA introduz muitas descontinuidades em relação ao Código de Menores, sendo considerado
uma normativa inovadora e participativa, que preconiza a proteção
integral (SILVA, 2005). Nesse sentido, pode-se destacar a própria
opção pela doutrina da proteção integral, que considera a necessidade de crianças e adolescentes serem entendidos como sujeitos de
direitos (SARAIVA, 2005).
Para dar materialidade à proteção integral, articula-se um sistema de proteção social, que representa “[...] um conjunto de políticas públicas que objetivam assegurar, a partir de normas e regras, a segurança social às situações de riscos que afetam a vida dos
cidadãos” (AGUINSKY; PRATES, 2011, p. 2). Esse conjunto de
políticas públicas é colocado em prática para dar materialidade aos
direitos dos sujeitos, respondendo a necessidades que são coletivas,
porquanto “[...] não existe direito sem sua concreta realização e sem
suas mediações, e a política social é sem dúvida mediação fundamental nesse sentido” (YAZBEK, 2018, p. 191). Todavia, é importante compreender que esse movimento não ocorre de modo neutro,
visto que, ao mesmo tempo em que as políticas públicas atendem às
necessidades coletivas, igualmente apaziguam conflitos e acabam
por serem funcionais ao capital e à sua manutenção, transformando “[...] o campo aparentemente simples, neutro e pragmático da
- 120 -
proteção social em uma arena de conflitos de interesses de classes
e, portanto, de projetos societários e de éticas de política social antagônicos” (PEREIRA, 2013, p. 638).
Nesta seara, o ECA, em seu Art. 86 (BRASIL, 1990), propõe
a constituição de um Sistema de Garantia de Direitos, que tem como
um de seus princípios básicos a transversalidade e o trabalho intersetorial entre todos os serviços das políticas públicas que compõem
a rede de proteção de crianças e adolescentes (NOGUEIRA NETO,
1999). Desse modo, ele objetiva um atendimento integral às infâncias e às adolescências, sendo um “[...] conjunto articulado de ações
governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios” (BRASIL, 1990).
Outrossim, são avanços importantes a preconização da participação popular; a municipalização dos serviços; a convivência
familiar e comunitária; e o papel do Ministério Público, instituição
que tem como nova atribuição a atuação na defesa dos direitos e na
fiscalização da aplicação da lei (BRASIL, 1990). Contudo, apesar de
o ECA se distinguir e almejar romper com o paradigma menorista,
isso acaba por não se concretizar em sua totalidade, uma vez que
ele não supera o projeto societário compactuado pelos Códigos de
Menores de 1927 e de 1979, não passando de “[...] ‘intenção’ e ‘promessa’, já que o projeto social se manteve inalterado com o ECA,
que deu ‘continuidade’ às características dos sistemas sociopenais,
sem superar a velha polêmica do direito menorista: ‘assistência/proteção’ versus ‘punição/controle sociopenal’” (SILVA, 2005, p. 46).
Ademais, há de se considerar que a afirmação legal dos direitos é uma projeção, podendo não ser uma realidade na prática. O
Art. 3º do ECA, por exemplo, traz que todas as crianças e adolescentes gozam dos direitos fundamentais; contudo, percebe-se que,
após mais de 30 anos de vigência do estatuto, a realidade cotidiana
evidencia a grande fragilidade ainda existente na implementação do
que está preconizado. Assim, por mais que a legislação assegure a
atenção integral, a prioridade absoluta e o acesso aos direitos humanos, não é possível afirmar que todas as crianças e adolescentes
realmente se encontram com sua condição de sujeitos de direitos
assegurada e gozando de todas as garantias previstas à sua proteção,
o que permanece como um desafio a ser superado.
- 121 -
Sistema de Garantia de Direitos: um olhar singular às crianças
e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências
Uma importante estratégia na busca pela efetivação dos direitos humanos é a concepção de um Sistema de Garantia de Direitos
que proponha o desenvolvimento do trabalho integrado entre todas
as esferas da rede de proteção da criança e do adolescente e dos
serviços das políticas públicas. Isso porque “[...] não cabem ações
isoladas ou conceber que uma instituição sozinha possa responder
às distintas necessidades sociais daqueles que têm seus direitos violados” (TEJADAS, 2009). Assim, tornam-se fundamentais as articulações intersetoriais entre os diversos atores da rede de proteção
(FALER, 2015), a fim de contribuir para que uma atenção integral
seja ofertada, bem como para que possam ser delimitadas responsabilidades e competências em diferentes níveis e instâncias (NOGUEIRA NETO, 1999).
Visando reiterar essa concepção e contribuir para a efetivação de políticas intersetoriais, em 2006, o Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) deliberou pela
publicação da Resolução nº 113, que dispõe acerca dos parâmetros
para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia
de Direitos (SGD). Nela, fica delimitado que o SGD terá por fundamento a “[...] articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e
controle para a efetivação dos direitos humanos” (BRASIL, 2006).
Dessa forma, constitui-se um sistema que tem como principal fim a
proteção e a garantia de direitos de crianças e adolescentes.
No entanto, apesar da previsão legal, percebe-se que a integralidade da atenção ainda figura como um desafio, uma vez que,
“[...] tendo a intersetorialidade vínculos tácitos com as políticas sociais públicas, encontra para sua consolidação os mesmos desafios
deparados pela interdisciplinaridade quando se propõe a lançar outros modos de compreender o conhecimento numa acepção de totalidade” (FALER, 2015, p. 83). Isso se agrava quando “[...] se observa a configuração fragmentada e desarticulada da política pública
brasileira, o que impossibilita o atendimento das necessidades da
população em sua integralidade” (SCHUTZ; MIOTO, 2010, p. 60).
Nessa conjuntura de desmonte das políticas públicas e de intensifi- 122 -
cação das violações de direitos humanos, verifica-se não somente a
dificuldade da garantia de acesso a condições dignas de vida, como
também o agravamento das violências e das violações direitos – o
que se acentua quando se trata de populações especialmente vulneráveis à sua ocorrência (SPOSATI, 2009).
Esse é o caso das crianças e adolescentes, que “[...] foram e
ainda são destinatários de violações de direitos, dentre elas, o abandono, a repressão, a negligência, o abuso sexual, verbal e psicológico, a agressão física e outras formas de violências perpetuadas
por múltiplos atores” (CORRÊA, 2018, p. 121). A violência é um
fenômeno estrutural, multicausal, sócio-histórico e complexo, que
se apresenta em distintos contextos sociais e culturais. Todavia, é
importante destacar que “[...] não existe violência, mas violências,
múltiplas, plurais, em diferentes graus de visibilidade, de abstração
e de definição de suas alteridades” (MISSE, 1999, p. 38).
Nesse contexto, na mesma linha de criação de um sistema
para articular e integrar as instâncias em prol da proteção, verifica-se, em 4 de abril 2017, a aprovação da Lei Federal nº 13.431, que
estabelece o Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e cria mecanismos para
prevenir e coibir as situações de violências. A referida lei tipifica as
formas de violência, categorizando inclusive a violência institucional; prevê direitos e garantias; estabelece medidas de assistência e
proteção à criança e ao adolescente em situação de violência; regulamenta as formas de escuta; e dispõe sobre a integração das políticas
de atendimento para as situações de violência (BRASIL, 2017).
A partir da análise de dados relativos à realidade brasileira,
resta nítida a necessidade de se colocar em voga o debate, inclusive
como uma questão de saúde pública (NOGUEIRA, 2012), sobre a
prática de violências contra crianças e adolescentes que, com políticas públicas de proteção social cada vez mais enxutas (PEREIRA,
2013), não raras vezes vivenciam no cotidiano concreto a violação
de seus direitos. Conforme depreende-se do Anuário Brasileiro de
Segurança Pública de 2020, quase 5 mil crianças e adolescentes foram vítimas de morte violenta e intencional no ano de 2019, assim
como aproximadamente 26 mil foram vítimas de violência sexual
(FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).
Do mesmo modo, dados da Ouvidoria Nacional de Direitos
Humanos, constantes em seu relatório de 2019, demonstram que
- 123 -
55% do total de denúncias recebidas (o que equivale a 86.837 registros) são referentes a violações de direitos humanos perpetradas
contra crianças e adolescentes – evidenciando a vulnerabilidade a
que esse segmento populacional está exposto. Quando comparado
a 2018, analisa-se que esse montante representa um aumento de
14% em relação ao número de denúncias recebidas no ano anterior.
Acerca dos tipos de violências, tem-se como as mais recorrentes a
negligência (38%), a violência psicológica (23%) e a violência física
(21%) (BRASIL, 2020a).
A respeito do local em que normalmente ocorrem as situações de violação de direitos humanos contra crianças e adolescentes, percebe-se que a moradia da vítima é o espaço mais recorrente,
correspondendo a um total de 52%. Quanto ao perfil das vítimas,
observa-se que há grande variação quanto à faixa etária, e destaca-se
que 5% das crianças e adolescentes possuíam alguma deficiência,
sendo que, destes, 63% tinham o diagnóstico de deficiência mental.
Ademais, verifica-se que a maior parte das situações de violência
foram praticadas por pessoas da família ou de convívio próximo,
sendo os principais agressores identificados como a mãe (40%) ou o
pai (18%) (BRASIL, 2020a).
Esse tipo de violência, perpetrada no âmbito das relações familiares, é identificada como violência intrafamiliar. O Ministério
da Saúde a conceitua como sendo toda ação ou omissão que
[...] Prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a
liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro
da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum
membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função
parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de
poder à outra. [...] A violência intrafamiliar expressa dinâmicas de
poder/afeto, nas quais estão presentes relações de subordinação-dominação. Nessas relações – homem/mulher, pais/filhos, diferentes
gerações, entre outras – as pessoas estão em posições opostas, desempenhando papéis rígidos e criando uma dinâmica própria, diferente em cada grupo familiar. (BRASIL, 2002, p. 15-16).
As situações de violência intrafamiliar9, nesta seara, expressam a existência de relações de poder, de subordinação ou de domi9 A violência intrafamiliar é uma das formas de violência contra crianças e adolescentes de
abordagens mais complexas. Envolve situações delicadas e difíceis, particularmente quando a
família deixa de ser o ambiente de proteção, tornando-se local de abuso e violações (LOPES;
LEWGOY; MARQUES, 2020, p. 20).
- 124 -
nação, mediante ação ou omissão, que familiares ou responsáveis
praticam contra crianças e adolescentes – a quem deveriam cuidar,
zelar e proteger. Porém, é importante compreender essas situações de
violências perpetradas no âmbito do universo familiar para além de
uma perspectiva moral e culpabilizante, sobretudo ao se considerar
o contexto de desigualdade e de (des)proteção social vivenciado por
grande parte das famílias brasileiras. Por isso, “[...] faz-se necessário
também compreender a responsabilidade do Estado e da sociedade
perante os direitos dessa população, promovendo à família acesso à
Proteção Social [...], para que, assim, a família possa efetivamente
desempenhar suas funções protetivas” (LOPES; LEWGOY; MARQUES, 2020, p. 9).
Nesse sentido, os serviços das diferentes políticas públicas
que conformam o Sistema de Garantia de Direitos da criança e do
adolescente e, consequentemente, a sua rede de proteção, são potentes espaços não só para a prevenção, o atendimento e o acompanhamento das situações de violações de direitos, mas também para
a identificação e notificação dos casos de violência. Alguns desses
serviços, a exemplo das escolas, dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, dos Centros de Referência de Assistência
Social e das Estratégias de Saúde da Família, fazem-se presentes
nos territórios e estão situados geralmente em locais mais próximos
à população, o que potencializa a oferta e a realização de um acompanhamento mais sistemático e continuado às famílias.
A presença diária nesses espaços de proteção propicia acompanhamento próximo às crianças e aos adolescentes, e, dessa maneira, amplia-se as possibilidades de haver a percepção por parte de
seus professores, educadores e demais profissionais de alterações no
comportamento, na forma de agir, de se comunicar e de interagir,
ou até mesmo de indícios mais concretos que possam efetivamente
apontar para a ocorrência de uma possível situação de violência.
Com essa percepção e identificação, as providências que se fizerem
necessárias poderão ser adotadas de forma mais célere, assim como
a adoção de medidas de proteção, com o objetivo de contribuir para
que aquela possível situação de violência seja cessada com a maior
brevidade possível.
Não obstante, no ano de 2020, o Brasil e os demais países do
mundo depararam-se com uma grave crise sanitária, causada pela
- 125 -
pandemia da covid-19 (SILVA; FERREIRA, 2021), uma doença
causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), de grande letalidade
principalmente em virtude de sua fácil e rápida transmissão. Esse
contexto demandou a necessidade de haver isolamento social como
medida preventiva para conter a disseminação do vírus e a ampliação do contágio entre a população. “Com isso, atividades cotidianas
de crianças e adolescentes fora do lar foram proibidas, como frequentar as aulas, circular em ambientes públicos e até conviver com
os amigos, restringindo o espaço social dos indivíduos ao ambiente
intradomiciliar” (PLATT; GUEDERT; COELHO, 2021, p. 2).
No contexto pandêmico brasileiro, a partir de março de 2020,
os serviços considerados como não essenciais foram suspensos, e as
escolas e instituições educacionais tiveram suas atividades presenciais cessadas por tempo indeterminado. O ensino passou a ocorrer
na modalidade remota, por meio de plataformas e atividades on-line.
Essa nova realidade impôs às crianças e aos adolescentes a permanência no ambiente doméstico por tempo integral, o que restringiu a
convivência à rede primária, em sua maioria formada por mães, pais
e irmãos. Ainda que o isolamento seja uma medida imperiosa para
a contenção da propagação da covid-19, entende-se que ele igualmente pode ser sinônimo de situação de risco para muitas crianças
e adolescentes, sobretudo ao se considerar que a moradia é o espaço
em que mais ocorre a prática de violência e que a maior parte dos
agressores são pessoas da família ou de convívio próximo, sendo os
principais identificados como mãe ou pai (BRASIL, 2020a).
Com o fechamento ou atendimento remoto por muitos serviços da rede de proteção, somado às medidas de distanciamento
social e à interrupção das atividades presenciais escolares, intensifica-se a apreensão com a segurança e com a proteção das crianças
e adolescentes, tornando-se presente o questionamento de “[...] com
quem contam mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência
que vivenciam a violência intrafamiliar nesse momento de isolamento social?” (COSTA; LEÃO, 2020, p. 41). Ademais, com o não
acompanhamento diário e com o convívio restrito à rede primária,
quem identificará e notificará10 as possíveis situações de violência,
assim como adotará as medidas de proteção que forem necessárias,
10 “É necessário o acompanhamento das notificações de violência infantil, pois este é um instrumento de garantia de direitos importante na proteção às vítimas, especialmente em períodos
excepcionais como o vivenciado atualmente” (LEVANDOWSKI et al., 2021, p. 2).
- 126 -
principalmente ao se pensar em populações especialmente vulneráveis, como é o caso de crianças e adolescentes?
Essa conjuntura tem sido objeto de preocupação e de estudo
de muitos atores do SGD, que ressaltam a importância de haver um
olhar atento às situações de risco que são vivenciadas por crianças e
adolescentes, principalmente no transcorrer do período pandêmico,
em que estão restritos ao ambiente doméstico e sem o convívio com
pessoas que poderiam se constituir enquanto suas referências protetivas. Um estudo recentemente publicado analisou as taxas e tendências das notificações de violência contra crianças e adolescentes no
estado do Rio Grande do Sul nos meses de março e abril – primeiros
dois meses do início da pandemia no Brasil e início da adoção das
medidas de isolamento e distanciamento social, com suspensão de
serviços considerados como não essenciais – dos anos de 2015 a
2020. Nos resultados da pesquisa, observa-se que
A proporção da mudança anual do total de notificações entre os
anos de 2015 e 2020 no bimestre de março/abril foi de: 0% entre 2015-2016; aumento de 7% entre 2016-2017; aumento de 52%
entre 2017-2018; aumento de 24% entre 2018-2019; e redução de
54% entre 2019-2020. Quando observada a proporção da mudança
anual do total de notificações separadamente por mês, apenas entre
2019 e 2020, constata-se que: (i) com 38% do tempo em regime
de distanciamento social (março/2020) houve uma redução de 41%
na taxa de notificações de violência comparando com março/2019;
e (ii) com 100% do tempo em regime de distanciamento social
(abril/2020) houve uma redução de 65% na taxa de notificações
de violência comparando com abril/2019. (LEVANDOWSKI et al.,
2021, p. 5).
Compulsados os achados do estudo, percebe-se que há amplo
aumento nos números das notificações de casos de violência contra
crianças e adolescentes entre 2015 e 2019. Todavia, isso não ocorre
quando se coloca em perspectiva os dados de 2020, nos quais se
constata uma redução de 54% nos números de notificações realizadas. Ainda que os autores façam referência a outras pesquisas sobre
episódios de crises ou desastres, como a ocorrência de furacões e a
própria epidemia de ebola, que evidenciaram aumento no número de
casos de violência contra esse segmento populacional, o mesmo não
se verificou quanto às notificações de violência efetuadas durante os
dois primeiros meses da pandemia de covid-19.
- 127 -
Não obstante, a diminuição do número de notificações não
pode ser tratada como sinônima da diminuição da incidência de violência contra crianças e adolescentes, mas sim como a construção
de um provável contexto de subnotificação e de subproteção. Como
já referido, o isolamento social, o convívio restrito ao ambiente doméstico e a interrupção das atividades presenciais das escolas e dos
Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos podem ser
fatores importantes que contribuem para esse quadro de subnotificação, haja vista que esses serviços possuem “[...] papel fundamental
no enfrentamento da violência, seja por ser espaço privilegiado para
ações de prevenção, seja pelo contato sistemático com crianças e
adolescentes, permitindo a identificação de possíveis casos de violência” (LEVANDOWSKI et al., 2021, p. 10). Dessa maneira,
É possível concluir que a redução do número de notificações de
violência contra crianças e adolescentes não traz alento nem parece traduzir diminuição na incidência desse agravo. Ao contrário,
pode demonstrar dificuldades que as pessoas porventura estejam
enfrentando para fazer as denúncias e acionar os recursos sociais
existentes para o cuidado às vítimas. (PLATT; GUEDERT; COELHO, 2021, p. 5).
Como forma de enfrentamento dessa conjuntura, em 7 de julho de 2020, foi sancionada a Lei Federal nº 14.022, que dispõe
sobre as medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar
contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública causada pelo novo coronavírus (BRASIL,
2020b). Essa normativa assevera que os serviços de atendimento e
acompanhamento às crianças e adolescentes vítimas de violência
possuem caráter essencial e não devem ter suas atividades interrompidas ou cessadas durante a pandemia pela covid-19.
Nessa conjuntura, a partir do estudo de alguns dados referentes à realidade nacional, sobretudo ao se considerar o atual cenário
pandêmico, de fato evidencia-se como sendo imperativa a existência
de um olhar cuidadoso e específico para as situações de violências
contra crianças e adolescentes – e é a isso a que se propõe a Lei
Federal nº 13.431/2017. O referido dispositivo legal regulamenta o
Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente vítima
ou testemunha de violência, bem como regulamenta os fluxos para
- 128 -
o atendimento a essas situações, definindo o papel que cada órgão
e serviço da rede de proteção passa a ter nesse novo contexto legal
(SANTOS et al., 2020).
Como garantias às crianças e aos adolescentes, merecem destaque as previsões sobre a necessidade de terem a intimidade e as
condições pessoais protegidas, terem segurança e avaliação contínua sobre possibilidades de intimidação, ameaça ou outras formas
de violência, bem como de receberem informação adequada à sua
etapa de desenvolvimento acerca de seus direitos, serviços disponíveis, medidas de proteção e qualquer procedimento a que sejam
submetidos. Ainda, ressalta-se o direito de terem garantia de acesso à assistência qualificada, tanto jurídica quanto psicossocial, que
facilite a sua participação e os resguardem contra comportamentos
inadequados adotados por qualquer órgão atuante no processo de
atendimento, inclusive quando verificada a prática de violência institucional (BRASIL, 2017).
Outrossim, destaca-se a garantia às crianças e aos adolescentes de serem ouvidos e de expressarem seus desejos e opiniões, assim como de permanecerem em silêncio – contexto em que emerge
o desafio de implementação de uma das principais inovações trazidas pela lei, que não por acaso ficou popularmente conhecida como
a Lei da Escuta Protegida (SANTOS et al., 2020). Nela, regulamenta-se as formas de escuta de crianças e adolescentes quando vítimas
ou testemunhas de violências, nominadas como escuta especializada
e depoimento especial. A primeira é realizada no âmbito da rede de
proteção e tem a finalidade de atendimento e provimento de cuidados, sendo limitada ao relato do estritamente necessário para o
cumprimento de sua finalidade (a proteção). A segunda, por sua vez,
é definida como um procedimento de oitiva (ligada à prova testemunhal) da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (BRASIL, 2017).
Ambas as formas de escutas previstas na Lei nº 13.431/2017
já eram realizadas antes de sua regulamentação em grande parte das
unidades federativas brasileiras, no entanto, sem parâmetros mínimos comuns (SANTOS et al., 2020). Ainda que o texto legal traga conceitos, objetivos e explicações sobre a escuta especializada
e o depoimento especial, persistem muitas questões que precisam
ser estudadas e aprofundadas cientificamente. Isso se verifica espe- 129 -
cialmente em relação à coleta da prova testemunhal por meio do
depoimento especial, cujos debates são polêmicos e acentuam a linha tênue entre o entendimento de que crianças e adolescentes são
sujeitos de direito que, se desejarem, devem falar e ser escutados
(HOFFMEISTER, 2013), e a compreensão de que seriam mero objeto de prova para a garantia do contraditório nos processos criminais (AZAMBUJA, 2011).
Em meio a essas inovações e desafios e ao contexto de violências contra crianças e adolescentes que se vivencia na conjuntura
brasileira, faz-se premente que se acompanhe e analise os possíveis
impactos da implementação da Lei Federal nº 13.431/2017, que objetiva, conforme já posto, a partir de um Sistema de Garantia de Direitos específico, proteger às infâncias e adolescências. Afinal, a realidade é dinâmica e está em permanente movimento e modificação,
sendo essencial não se perder de vista a perspectiva de que crianças
e adolescentes são sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, e necessitam de proteção. Assim, é de suma importância que o Estado, os serviços das políticas públicas, a sociedade e
as famílias possam, enquanto partes dessa grande rede de proteção,
participar e contribuir para o processo contínuo de análise da realidade e de construção de subsídios, visando auxiliar a qualificação
das políticas de atendimento na perspectiva da proteção integral de
crianças e adolescentes.
Considerações finais
A partir de uma breve contextualização sócio-histórica, pode-se perceber que o processo de construção dos direitos das infâncias
e das adolescências no Brasil, apesar das inúmeras contradições e
possibilidades, é permeado por desafios. É possível identificar que,
“[...] na caminhada trilhada entre a indiferença e a proteção integral
de direitos, a criança transitou desde a desconsideração de sua condição diferenciada, ao rótulo de incapaz, até a compreensão (nem
sempre percebida) de sua condição de sujeito de direitos” (SARAIVA, 2005, p. 66), dotados de dignidade, autonomia e cidadania. No
entanto, com a agudização das expressões da questão social, com a
intensificação das desigualdades e com o parco investimento nas políticas públicas, a garantia de direitos ainda figura como um grande
desafio a ser enfrentado.
- 130 -
Nesse contexto, a concepção de um Sistema de Garantia de
Direitos é fundamental, visto que sua construção está voltada à efetivação da proteção social, visando à promoção, à defesa e ao controle de todos os direitos das infâncias e adolescências. Ademais, a
relevância do SGD também se encontra no fato de preconizar que a
intersetorialidade seja transversal à atuação de todos os atores que
o compõe, podendo, assim, contribuir para a oferta de uma atenção
integral e para a articulação e composição de estratégias de resistência, em prol da transformação dessa realidade em que ainda se tem
ampla desigualdade e violação.
Em consonância, sobretudo por serem crianças e adolescentes
especialmente vulneráveis à prática de violências (SPOSATI, 2009),
destaca-se a aprovação da Lei Federal nº 13.431/2017, que traz à
tona um olhar atento e singular às violações de direitos perpetradas
contra esse segmento populacional. A partir dela, regulamenta-se
um Sistema de Garantia de Direitos específico para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, bem como cria-se
mecanismos para prevenir e coibir as situações de violências. Sua
implementação mostra-se como uma potente estratégia de enfrentamento não só a essa realidade, como também ao atual contexto
sanitário causado pela pandemia do novo coronavírus.
Em suma, na atualidade, mesmo com o reconhecimento de
que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos e com os
avanços nos debates nacionais e internacionais acerca da temática,
permanece o desafio de se lutar pela ampliação e pelo investimento
em políticas públicas, visando à afirmação e à materialização dos
direitos em seu cotidiano concreto. Permanece o desafio de se lutar
pela superação real da doutrina da situação irregular e pela materialização efetiva da doutrina da proteção integral, reafirmando o
compromisso com a defesa dos direitos humanos e com um projeto
societário em que a justiça e a igualdade sejam pressupostos, e o
acesso a condições dignas de vida, sem a ocorrência de violações e
violências, seja uma realidade intrínseca às infâncias e adolescências.
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- 136 -
CAPÍTULO 6
Prevenção à violência de gênero na adolescência:
o que a Psicologia tem a ver com isso?
Thaís de Castro Jury Arnoud
Introdução
A violência contra meninas e mulheres consiste em um grave
problema de saúde pública (MUÑOZ; ECHERBÚA, 2016) e uma
pervasiva violação dos direitos humanos. Entretanto, esse fenômeno
histórico só passou a ser compreendido como uma questão de saúde
da mulher e, por consequência, de saúde pública em decorrência das
lutas de movimentos sociais. Trata-se de um fenômeno que persiste
em todos os países do mundo e constitui-se como um impedimento
na conquista da equidade de gênero. A Organização das Nações Unidas (ONU) define a violência de gênero contra meninas e mulheres
como qualquer ato de violência que resulte em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos (ONU, 2013). Ainda, a definição
inclui ameaças, coerção ou privação arbitrária da liberdade e estabelece que pode ocorrer no âmbito privado e familiar ou no âmbito
público (UNITED NATIONS, 1993). Este capítulo tem como objetivo promover uma reflexão sobre como a Psicologia pode contribuir
para os estudos de prevenção à violência de gênero na adolescência
e quais são as suas limitações enquanto campo do conhecimento.
Violência de gênero contra meninas e mulheres
A violência é um fenômeno que sofre atravessamentos diretos
da sociedade e das relações culturais (DAHLBERG, 2006). Desse
modo, para compreender a violência de gênero, é preciso levar em
consideração esses fatores. O gênero é um elemento central nas relações sociais entre homens e mulheres e é compreendido como conceito, categoria de análise e também categoria histórica (SAFFIOTI,
1999). Diz respeito a um conjunto de comportamentos, atitudes, valores, estereótipos e expectativas relacionadas com a feminilidade e
a masculinidade em um determinado contexto cultural, num determinado tempo histórico (SAFFIOTI, 1999). Trata-se de um conceito
- 137 -
enraizado em construções sociais, políticas, culturais e ideológicas
e, desse modo, não há uma definição única do termo. Cabe ressaltar
que essa categoria não deve servir para reproduzir ideias (cis)normativas sobre quem pode ou não ser considerada mulher (DAVIS,
2018). Apesar de o gênero ter surgido a partir de uma discussão binária e relacionada ao biológico, novas discussões trazem à tona a
perspectiva de gênero enquanto relação política – que se dá em campos discursivos e históricos de relações de poder (BUTLER, 1998).
Ao se compreender o gênero enquanto uma produção de discurso,
percebe-se que ele descreve construções sobre corpos materiais, naturais e preexistentes, mas, mais que isso, compreende os corpos
como também produções discursivas (PEREIRA, 2005). Assim, o
gênero é concebido como ato performático, que se constitui enquanto prática reafirmada ou (re)negociada a partir de um determinado
campo de diversas possibilidades (BUTLER, 2001). Essas múltiplas
definições e compreensões acerca do fenômeno auxiliam na compreensão de como a violência de gênero ocorre e é compreendida,
interpretada e estudada.
Por se tratar de um fenômeno histórico, é essencial levar em
consideração o contexto sociocultural brasileiro a fim de compreender a violência de gênero no país. A violência de gênero era considerada algo da ordem do privado e, portanto, uma problemática que
não deveria ser discutida como uma questão social. A transformação
de paradigma, ou seja, passar a considerar o caráter público e coletivo dessa violência só foi possível em decorrência dos esforços
dos movimentos feministas e dos estudos em gênero (MUHLEN;
STREY, 2013). Uma das mudanças cruciais em termos nacionais
foi a promulgação da Lei nº 11.340 em 2006. Conhecida como Lei
Maria da Penha, é assim denominada em homenagem a Maria da
Penha Maia Fernandes, que sofreu uma tentativa de homicídio perpetrada pelo seu então companheiro. Seu caso ganhou notoriedade
quando a Organização dos Estados Americanos (OEA) acatou a denúncia e condenou o Brasil por sua postura negligente em relação
aos casos de violência doméstica no país. A partir dessa denúncia,
houve também a recomendação da criação de mecanismos legais
que pudessem assegurar no âmbito jurídico os direitos das mulheres
(BERTOLDI et al., 2014). Junto a isso, movimentos sociais tiveram
um papel crucial nessa luta. A lei, portanto, rompe com o pressu- 138 -
posto de que a violência contra a mulher é algo privado, visto que
compreende que aquilo que ocorre no âmbito particular é também de
responsabilidade do Estado. Apesar desse avanço, ainda há muito o
que percorrer no que diz respeito à defesa dos direitos das mulheres
no país e no mundo.
A violência de gênero, portanto, pode ser compreendida como
uma das expressões mais graves das desigualdades de gênero, e a
sua manifestação mais comum ocorre nas relações íntimas (OMS,
2013). Estima-se que 30% das meninas e mulheres do mundo sofram violência física e/ou sexual. Além disso, os estudos demonstram que as situações de violência iniciam cedo, de modo que a
prevalência mais alta é entre meninas com idades de 15 a 19 anos
(WHO, 2013). Além disso, é possível notar que, no Brasil, meninas
e mulheres negras e/ou em vulnerabilidade social estão em maior
risco de sofrer violência. E, no país, 106.093 mulheres morreram por
questões relacionadas à violência de gênero no período entre 1980 e
2013 (WAISELFISZ, 2015).
Manifestações da violência de gênero na adolescência
Na adolescência, a violência de gênero se expressa de maneira muito significativa nos relacionamentos íntimos e afetivos. Trata-se de uma violência que tende a aparecer cada vez mais cedo e é
um problema que afeta de maneira significativa as/os adolescentes
(LOINAZ et al., 2011). Diversos pesquisadores utilizam a expressão
violência no namoro para se referir a essas situações (SÁNCHEZ-JIMÉNEZ; MUÑOZ-FERNÁNDEZ; ORTEGA-RIVERA, 2018;
SANTOS; SANTOS; MURTA, 2019). A violência no namoro diz
respeito à perpetração de comportamentos agressivos e pode envolver aspectos verbais, psicológicos, físicos e sexuais. Ainda, é preciso atentar-se para expressões da violência no namoro que se manifestam a partir das novas tecnologias – divulgação de fotos sem
consentimento, stalking, entre outros (CDC, 2021). E, ainda que
ambos os parceiros possam perpetuar a violência no namoro, as meninas tendem a ser as mais impactadas por esse fenômeno (DINIZ;
ALVES, 2015).
Os estudos dedicados a investigar fenômenos associados com
a violência no namoro encontraram relações importantes entre crenças sexistas e perpetração de violência. Por exemplo, adolescentes
- 139 -
homens que concordam com afirmações e percepções sexistas tendem a aceitar o uso de violência contra a mulher nos relacionamentos íntimos e a justificar situações de violência doméstica (LEE et
al., 2016; GARAIGORDOBIL; ALIRI, 2013). Além disso, encontrou-se também que adolescentes expressam atitudes sexistas no que
diz respeito ao uso das redes sociais de suas parceiras, de modo a
manifestar atitudes controladoras (LOGAN-GREENE; NURIUS;
THOMPSON, 2012).
As expressões de dominação fazem parte das desigualdades
estruturais de gênero. Meninos e homens são ensinados desde cedo
que existe um modelo ideal de masculinidade a ser seguido. Esse
modelo é chamado “masculinidade hegemônica” e implica uma noção de se ser homem que se baseia em crenças rígidas de gênero e
que entende o masculino no papel de dominância (LEONE; PARROTT, 2018). Assim, a fim de reforçar as normas tradicionais, meninos e homens afastam-se de características relacionadas ao feminino
(KIMMEL, 1998), e isso produz impactos nas relações que vivenciam com o outro. Por exemplo, homens que performam a masculinidade hegemônica tendem a apresentar um maior distanciamento
em seus relacionamentos afetivos, bem como a apresentar desvalorização e desdém por mulheres e por características consideradas
socialmente como femininas (LEVANT, 2011). Ainda, essa noção
rígida de masculinidade se relaciona com uma maior probabilidade
de perpetração de violência.
Por outro lado, o sexismo também impacta a construção da
identidade de meninas e mulheres, assim como os comportamentos
que são esperados delas. A sociedade patriarcal e machista contribui
para percepções reducionistas e sexistas acerca das mulheres. Elas
são muitas vezes consideradas frágeis, pouco competentes, emotivas
demais e em constante necessidade de apoio e proteção dos homens
(GLICK; FISKE, 1996). Num outro extremo, o machismo e as perspectivas sexistas classificam algumas mulheres como controladoras
e promíscuas caso fujam, em algum aspecto, das normas rígidas de
gênero (GLICK; FISKE, 2001). A socialização patriarcal leva meninas a aceitarem passivamente a autoridade masculina. Delas, espera-se que sejam boas namoradas e satisfaçam seus parceiros, ainda que
isso signifique submeter-se a situações de humilhação e violência
nas relações (DINIZ; ALVES, 2015). Desse modo, crenças sobre
- 140 -
papéis de gênero influenciam a maneira com a qual adolescentes se
relacionam e, muitas vezes, legitimam a violência nesses contextos
(HAGLUND et al., 2018).
E a Psicologia em meio a esse cenário?
É possível notar que a Psicologia possui produções discursivas e práticas que legitimam desigualdades de gênero, violência
e papéis sociais rígidos e normativos. Nenhum campo é neutro,
sempre há uma diversidade de atravessamentos que o constituem,
e com a Psicologia não é diferente. Discursos que perpetuam designações naturalizadas, heteronormativas, essencialistas, sexistas e
hierárquicas das possibilidades de ser e viver acabam por determinar
formas de sujeição específicas (NARVAZ; KOLLER, 2007). Tais
discursos normativos fazem parte do imaginário do senso comum,
mas também se entranham em saberes científicos e suas produções
(LOURO, 1999). O saber, desse modo, reproduz e enfatiza noções
de poder presentes no contexto social. A Psicologia enquanto ciência
possui um longo histórico de produção de normativas e regulações
sobre os corpos e vivências dos sujeitos. Desse modo, é de se esperar que a ciência psicológica tenha produzido perspectivas sexistas
que acabam por esquadrinhar e regular mulheres.
Existe uma crescente no que diz respeito à consolidação dos
estudos em gênero no país, porém é importante destacar que a inserção do campo no meio acadêmico segue marginalizada (NARVAZ;
KOLLER, 2007). Quando se destaca a escassez dos estudos com
perspectivas feministas e foco em gênero no campo psicológico,
isso demonstra uma desvalorização dessa área de estudos. Isso pode
ter relação com a história da Psicologia, que se separou da Filosofia
e passou a almejar um status de cientificidade baseado no positivismo moderno (BOCK, 2003). As perspectivas biológicas e evolucionistas são importantes para o desenvolvimento da ciência, mas não
devem ser as únicas bases a serem consideradas. Se, por um lado,
não é suficiente a compreensão das desigualdades de gênero a partir
de perspectivas biológicas, tampouco é aceitável ignorar as diferenças de gênero. Quando isso ocorre, nota-se que a figura construída
socialmente do masculino torna-se a regra para o desenvolvimento
das teorias psicológicas.
A Psicologia deve considerar o contexto e seus diversos atravessamentos ao produzir conhecimento sobre as vivências, compor- 141 -
tamentos e realidades dos sujeitos. Desse modo, é crucial que todas
as áreas tenham sensibilidade para a questão de gênero e como ela
pode produzir impactos importantes na saúde mental das mulheres.
Em termos de contribuição, é preciso destacar que existem estudos
dedicados a entender a questão da violência contra mulheres a partir
de uma perspectiva de gênero, investigando impactos para a saúde e
o desenvolvimento, bem como as relações entre sexismo e crenças
que legitimam e sustentam a violência. A partir de estudos psicológicos, foi possível apontar que a violência de gênero contribui para o
desenvolvimento de sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade e depressão (SMITH; WHITE; HOLLAND,
2015; SPENCER et al., 2019; OUYTSEL et al., 2017), bem como
para um risco elevado de suicídio. Ainda, meninas que sofrem situações de violência nas relações íntimas tendem a apresentar indicadores de baixa autoestima (OUYTSEL et al., 2017), sendo que a
experiência de polivitimização, ou seja, sofrer diferentes formas de
violência, pode agravar essas consequências (YOUNT et al., 2016).
No que diz respeito a crenças e comportamentos sexistas, ainda há uma escassez de produção científica nessa área ao se comparar
com outros campos. Entretanto, é possível encontrar evidências de
que as crenças e comportamentos sexistas influenciam os relacionamentos íntimos na adolescência, especialmente no que diz respeito
à aceitação e perpetração de violência contra meninas e mulheres.
Conforme já indicado, adolescentes homens com níveis elevados de
sexismo tendem a aceitar o uso de violência física contra mulher
nos relacionamentos íntimos (LEE et al., 2016) e também a justificar situações de violência doméstica (GARAIGORDOBIL; ALIRI,
2013). Ainda, é possível notar que a presença de crenças sexistas
está associada a maiores índices de violência no namoro, seja perpetrada ou sofrida (ANACONA et al., 2017). Os resultados encontrados reportados acima apontam para a importância de mais estudos
da área psicológica com a finalidade de investigar as relações entre
sexismo, desigualdades de gênero e violência na adolescência. Ainda, demonstram também a importância de trabalhar na redução de
atitudes sexistas na adolescência a fim de discutir estereótipos tradicionais de gênero e prevenir situações de violência.
- 142 -
Conclusões
A Psicologia por si só não tem como dar conta de um fenômeno tão complexo como a violência de gênero. É essencial que diversas áreas do conhecimento busquem trabalhar em conjunto a fim de
produzir um corpo de conhecimentos mais amplo e completo sobre
como enfrentar esse fenômeno tão prevalente no contexto social.
Apesar de, historicamente, a área da Psicologia ter um foco maior
nas subjetividades e no sujeito, é de extrema importância entender
como as estruturas sociais de opressão impactam a construção da
identidade dos indivíduos, bem como a sua saúde mental. Ainda, na
construção da prática psicológica, compreende-se que o combate à
violência contra meninas e mulheres constitui-se como uma responsabilidade ética e política da profissão. O Código de Ética enfatiza
o dever dos psicólogos e psicólogas de trabalhar com o objetivo de
promover a saúde e qualidade de vida das pessoas e das coletividades, contribuindo para a eliminação de qualquer forma de discriminação, exploração, violência e opressão. Espera-se que a classe atue
com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a
realidade política, econômica, social e cultural. Desse modo, a partir
da constatação dos diversos impactos da violência de gênero, desenvolver estratégias de prevenção é crucial para proteger meninas
e mulheres. Programas e ações com o intuito de prevenir situações
de violência de gênero podem ser pensados desde a infância e adolescência, de modo que se possa romper com a reprodução intergeracional da violência. Essas ações devem levar em conta não só as
evidências encontradas a partir das perspectivas psicológicas, mas
também de outros campos do conhecimento dedicados ao estudo da
prevenção à violência de gênero na adolescência.
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CAPÍTULO 7
Violência de gênero e o uso de pornografia por
adolescentes11
Rodrigo Falcão Chaise
Introdução
A violência contra a mulher se caracteriza como qualquer ação
ou omissão baseada nas desigualdades de gênero que cause morte,
lesão, sofrimento ou dano à mulher (BRASIL, 2006). Tal violência
constitui-se como um problema de saúde pública e é uma grave violação de direitos humanos (WHO, 2013). Movimentos feministas
e estudos em gênero têm apontado para a dimensão simbólica do
fenômeno (VON MÜHLEN; STREY, 2013).
Conforme Strey e Jardim (2018) destacam ao caracterizar
a violência simbólica contra as mulheres, há uma forte relação de
poder que garante a manutenção da superioridade masculina e inferioridade feminina. A partir de símbolos e signos sexistas que
permeiam o repertório discursivo da população geral, institui-se
socialmente o que é esperado do homem e da mulher. As relações
de gênero, portanto, são fundamentais para compreender de forma
profunda a problemática da iniquidade entre os dois sexos (STREY;
JARDIM, 2018).
O gênero está relacionado às diferentes relações e papéis sociais que são culturalmente estabelecidos para homens e mulheres
com base no sexo biológico. Então, a violência de gênero abrange ações ou circunstâncias que subjugam pessoas por conta de seu
gênero (VON MÜHLEN; STREY, 2013). Sabe-se que a educação
de qualidade pode contribuir na busca por equidade de gênero e
na diminuição da perpetuação de estereótipos e papéis de gênero
(UNAIDS, 2020). Seria interessante, e possivelmente fundamental,
que a educação abordasse também o consumo de pornografia, que
está associado a um aumento de expectativas sexuais irrealistas, objetificação sexual e à manutenção de papeis de gênero estereotipados (KOLETIĆ; KOHUT; ŠTULHOFER, 2019).
11 Artigo apresentado como requisito avaliativo para a disciplina de “Expressões de Violência
e Estratégias de Enfrentamento”, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
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O termo pornografia é conceitualmente complexo. O debate
acerca de sua caracterização pode ser capcioso e de difícil delimitação (DINES et al., 1998; GERBASE, 2006; MORAES; LAPEIZ,
1984). Segundo Moraes e Lapeiz (1984), é quase impossível traçar
limites entre o que é exclusivamente pornográfico e o que é erótico,
pois ambos os conceitos possuem a sexualidade como elemento essencial de expressão e podem ter capacidade afrodisíaca, e, ainda, há
de se considerar variáveis históricas, culturais e individuais – o que
é pornográfico para uns, pode não ser para outros.
Na era vitoriana surgiram as primeiras revistas e almanaques
pornográficos com retratos de nudez. Foi na metade do século XX,
contudo, que a indústria pornográfica começou a se desenvolver.
Os primeiros debates envolvendo grupos feministas que apontavam
para a ambiguidade da produção pornográfica em massa começaram, então, a surgir. Se por um lado a pornografia tem o potencial
de promover a liberdade em relação à sexualidade, por outro pode
estar reduzindo as pessoas a objetos, explorando as mulheres e, inclusive, incitando a violência contra a mulher (DINES et al., 1998;
MORAES; LAPEIZ, 1984).
Dworkin (1981), uma importante autora feminista antipornografia, argumenta que a indústria pornográfica desumaniza as
mulheres e incita a violência contra elas, não só por colocá-las em
situações de abuso e degradação durante a produção de conteúdos
pornográficos, mas também por encorajar o consumo de materiais
que erotizam a submissão da mulher. O poder simbólico, conforme
propõe Bourdieu (1989), cumpre sua função política como instrumento de imposição dos homens sobre as mulheres, constituindo-se
como uma autoridade invisível que carrega consigo uma violência
também simbólica, cuja pretensão é justificar preconceitos, estereótipos e práticas de dominação ao representar a submissão da mulher
como algo que é desejável.
Ainda que o conceito de pornografia não possa ser definido
com precisão pelo seu caráter subjetivo, algumas concepções são
adotadas por autores como Dines et al. (1998) a fim de possibilitar
um maior engajamento em questões como a produção de iniquidades sociais. Uma das concepções amplamente compreendia no senso comum é de que 1) pornografia consiste em materiais vendidos
para excitar sexualmente seus consumidores, que são homens majo- 150 -
ritariamente; e outra é que, partindo de uma análise feminista crítica,
2) pornografia é um tipo específico de material sexual que garante a
manutenção da subordinação sexual da mulher.
A perspectiva supracitada sobre a pornografia é interessante
tendo em vista que é sob a ótica da ordem patriarcal de gênero que
a violência contra a mulher deve ser analisada (SAFFIOTI, 2004).
É de suma importância, porém, reconhecer que o movimento feminista antipornografia nunca foi uma batalha contra a representação
de atividades sexuais ou para banir materiais com teor sexualmente
explícito. Trata-se de uma luta contra a indústria pornográfica multibilionária que elevou a produção e distribuição de pornografia para
outro nível, contribuindo para a perpetração da violência sexual e de
iniquidades sociais de gênero (DINES et al., 1998).
Para Saffioti (2004), a opressão às mulheres é constituinte de
um sistema político-econômico baseado na exploração do ser humano pelo ser humano. A indústria pornográfica está no centro do sistema capitalista patriarcal e tem como uma de suas características a
exploração, em grande escala, das mulheres. Atualmente, a indústria
se expandiu para o on-line e seu alcance foi alargado assustadoramente, entre os jovens principalmente.
Uso de pornografia na adolescência e a objetificação da mulher
O surgimento da internet e de equipamentos móveis como
smartphones e tablets tornou o acesso a materiais sexualmente explícitos (MSE) extremamente difundido. Consequentemente, o acesso entre jovens expandiu-se também (KOLETIĆ, 2017; OWENS et
al., 2012). Conforme uma revisão sistemática de Peter e Valkenburg
(2016), as taxas de prevalência do uso de pornografia entre adolescentes podem chegar a 71% dependendo do país de origem, sexo e
idade.
Uma das conclusões da revisão supracitada é que os adolescentes que usam pornografia mais frequentemente costumam
ser meninos em um estágio da puberdade mais avançado (PETER;
VALKENBURG, 2016). Estudos posteriores a 2015 seguiram demonstrando essa tendência. Meninos, especialmente os mais velhos,
tendem a ser expostos mais frequentemente a pornografia, intencionalmente ou de forma não intencional, em diferentes regiões do
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mundo (DANEBACK; ŠEVČÍKOVÁ; JEŽEK, 2018; RIVERA et
al., 2016; SHEK; MA, 2016; TEIMOURI et al., 2016; VANDENBOSCH; PETER, 2016).
Um estudo probabilístico retrospectivo com universitários
estadunidenses demonstrou que 93% dos homens e 62% das mulheres foram expostos a MSE antes de completarem 18 anos de idade
(SABINA; WOLAK; FINKELHOR, 2008). Já um estudo de levantamento croata com meninos que estavam no segundo ano do ensino
médio evidenciou que 79,8% dos respondentes da capital, Zagreb,
usavam MSE diariamente ou semanalmente (ŠEVIĆ; MEHULIĆ;
ŠTULHOFER, 2020). Não se sabe no Brasil em que extensão os
jovens estão utilizando esse tipo de material. O que se tem conhecimento é que o recorte de adolescentes na faixa etária de 14 a 17 anos
que já utilizaram a internet é de 87,7% (IBGE, 2018). É plausível
pensar que meninos brasileiros estejam utilizando materiais pornográficos com frequência, assim como em outros países no ocidente,
visto que a maioria dos adolescentes ocidentais possui acesso à internet (OWENS et al., 2012).
Potenciais desfechos associados ao uso de pornografia na
adolescência tornaram-se objetos de estudo. Uma revisão de literatura na base de dados da EBSCO sugere que a anatomia do cérebro
adolescente, considerando seu sistema límbico hiper-responsivo,
aumenta a sensitividade a MSE. A exposição frequente a pornografia
na juventude, portanto, pode estar associada à fragilização do córtex
pré-frontal. Esse é um achado preocupante, visto que essa fragilidade pode comprometer funções executivas importantes e contribuir
para que os adolescentes sejam mais impulsivos e estejam em constante busca de autogratificação (BROWN; WISCO, 2019).
Outras revisões de literatura identificaram uma ascensão do
uso problemático de pornografia on-line (UPPO) como subtipo de
transtorno hipersexual (DE ALARCÓN et al., 2019) e o uso descontrolado de pornografia como um dos subtipos mais prevalentes
de uso problemático de mídia interativa (UPMI) (PLUHAR et al.,
2019) No que tange a riscos psicossociais especificamente, estudos
apontam que a frequência do uso de pornografia durante a adolescência está relacionada expressivamente a atitudes sexuais permissivas, aumento da insatisfação sexual e a uma maior ocorrência de
relações sexuais. É ainda importante pontuar que a pornografia na
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adolescência também está associada a crenças mais rígidas sobre estereótipos de gênero, perpetração da violência sexual e aumento da
objetificação das mulheres (KOLETIĆ, 2017; PETER; VALKENBURG, 2016).
A presença de agressão e da objetificação de mulheres em vídeos pornográficos (FRITZ; PAUL, 2017; SHOR; GOLRIZ, 2019)
denota a urgência de abordar a temática do consumo de pornografia
com adolescentes. O estudo de Fritz et al. (2020), a partir da análise
de conteúdo de 4.009 cenas pornográficas, constatou que há uma
presença significativa de violência física nessas imagens. Foi observado que a quantidade de agressão física nos vídeos era de 35%
e 45% em dois dos principais sites gratuitos de pornografia on-line,
Xvideos e Pornhub, respectivamente. Mulheres são o principal alvo
das agressões em cerca de 97% das cenas, que incluem espancamento, sufocamento e puxões de cabelo, sendo que elas respondem às
agressões de forma positiva ou neutra na maioria das vezes em que
estão performando esses vídeos (FRITZ et al., 2020).
Portanto, não é surpreendente que a perpetração da violência sexual seja um dos possíveis desfechos do consumo de MSE
(KOLETIĆ, 2017; PETER; VALKENBURG, 2016), visto que os
adolescentes poderiam estar sendo socializados sexualmente por
meio da exposição a esses materiais (WRIGHT, 2011) que retratam
a agressão e a degradação como consensuais (SHOR, 2019). Para
Bourdieu (1989), a violência simbólica se realiza como um tipo de
agressão sutil, pois se constrói por meio de formas de expressão de
uma sociedade, ou seja, valores, comportamentos e hierarquias que
contribuem para a reafirmação e reprodução de uma ordem social.
No caso da pornografia on-line, além da evidente presença de violências física e sexual, a violência simbólica também pode ser observada, tendo em vista a naturalização das práticas sexuais misóginas
performadas pelos atores.
Adolescentes podem começar a assistir pornografia por curiosidade e, à medida que começam a surgir oportunidades para se
envolverem em atividades sexuais, tornarem-se mais suscetíveis a
perceber materiais sexualmente explícitos da internet (MSEI) como
algo representativo e aplicável ao mundo real. Ou seja, consumir
pornografia on-line extensivamente durante a adolescência pode estar associado ao desenvolvimento de crenças estereotipadas sobre
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sexo e gênero e atitudes orientadas à performance sexual (ARRINGTON-SANDERS et al., 2015; ROTHMAN et al., 2015; VANDENBOSCH; VAN OOSTEN; PETER, 2018).
Cheney, Kamusime e Mekonnen Yimer (2017) realizaram
uma pesquisa de métodos mistos com jovens na Uganda e na Etiópia e constataram que muitos adolescentes sentiam que os conteúdos
pornográficos forneciam informações que eles precisavam de forma
excitante. É relevante destacar também que a maioria dos respondentes tendia a acreditar que a pornografia “mostra como as relações
sexuais realmente são para pessoas normais”. Ainda, uma porcentagem significativa dos participantes reportou que assistir pornografia
contribuía para que eles fossem mais “homens” e “ferozes” durante
o sexo. Para Santos e Nardi (2018), as performances dos homens são
incentivadas pelo processo de subjetivação que relaciona as masculinidades a atributos de força, virilidade, vigor e destreza física, uma
suposta animalidade.
Há evidências de que a desigualdade de gênero está imbricada
nos vídeos pornográficos (CHENEY; KAMUSIME; MEKONNEN
YIMER, 2017; DAVIS et al., 2018). Foi constatado por Davis et al.
(2018) que, na perspectiva dos jovens da Austrália, a pornografia geralmente retrata cenas de sexo que os remetem muito mais ao prazer
do homem (83%) e à representação do homem enquanto figura dominante (70%). Além disso, é notório que adolescentes podem estar
utilizando esses vídeos como forma de educação sexual (CHENEY;
KAMUSIME; MEKONNEN YIMER, 2017; VANDENBOSCH,
VAN OOSTEN; PETER, 2018).
Considerando que os adolescentes são socializados sexualmente ao se expor a MSEI (WRIGHT, 2011), é possível afirmar que
eles podem estar recebendo reforço n direção de compreensão de
que a mulher deve ser dominada pelo homem, em função do alto
teor de objetificação da mulher presente nos conteúdos dos vídeos
pornográficos que os jovens acessam (VANDENBOSCH; VAN
OOSTEN, 2017). O uso de pornografia on-line, portanto, pode estar
associado positivamente à maior ocorrência de agressão sexual, tanto em termos de perpetração como de vitimização (PETER; VALKENBURG, 2016), retroalimentando a violência contra a mulher e
a violência de gênero.
Ainda, pode-se pensar na violência simbólica e, inclusive,
psicológica que os homens sofrem para se “adequarem” ao que eles
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assistem nos vídeos pornográficos. Todos os homens sofrem processos mais ou menos violentos para se adaptarem à norma, investindo
no lugar simbólico (da hegemonia masculina) que lhes é possível
(SANTOS; NARDI, 2018). Desse modo, reforça-se o modelo de dominação masculina, que é incentivado desde muito cedo, como descreve Bourdieu (1989), considerando que os homens são induzidos
a demonstrar a sua suposta força de supremacia e controle contra as
mulheres ou outros dotados de características femininas. A misoginia, portanto, legitima a sujeição da mulher ao homem e essa relação
de poder é reproduzida na pornografia, servindo como dispositivo de
manutenção do patriarcado.
Em relação às meninas participantes da pesquisa de Cheney,
Kamusime e Mekonnen Yimer (2017), houve a percepção por parte
de algumas sobre o quanto as mulheres eram sujeitadas a somente
atender às necessidades sexuais dos homens nos vídeos pornográficos. Fica evidenciado na fala das participantes o quanto as mulheres
são socializadas para expressar sua feminilidade através da passividade (UNAIDS, 2020).
Conclusão
A ubiquidade da pornografia de cunho patriarcal, em conjunto com a ausência de um ambiente de apoio público ou privado de
afirmação da diferença, alerta para a importância de renovar o diálogo sobre sexualidade com os jovens (HOOKS, 2019). Em especial,
com relação ao consumo de pornografia, faz-se necessário que esse
tema seja abordado junto aos jovens por pais, professores e profissionais da saúde ou assistência social, a fim de minimizar danos.
A exposição à pornografia faz parte do contexto de muitos
adolescentes, razão pela qual torna-se imprescindível a comunicação sobre essa temática de forma aberta, direta e frequente. Apesar de pais compreenderem a gravidade da situação, fatores como
o medo de abordar o assunto e o desconforto suscitado tendem a
dificultar essa abordagem com seus filhos (ZURCHER, 2017).
É recomendado que as escolas facilitem a discussão a respeito do uso de pornografia, introduzindo o tema como parte de programas amplos de educação sexual que incluam a participação de
pais (BAKER, 2016). A abordagem do tema pode diminuir efeitos
indesejáveis do uso de MSEI, como noções das mulheres enquanto
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objetos sexuais (VANDENBOSCH; VAN OOSTEN, 2017) e a percepção de que pornografia é uma forma adequada de aprender sobre
sexo (ROTHMAN et al., 2018).
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- 160 -
PARTE III
VIOLÊNCIAS NAS PRÁTICAS
INSTITUCIONAIS
racismo, capacitismo, sexismo
e outros ismos
- 161 -
- 162 -
CAPÍTULO 8
Feminicídio e Sistema de Justiça Criminal:
uma análise empírica das narrativas processuais
acerca das vítimas, a partir da perspectiva de
gênero12
Taísa Gabriela Soares
Introdução
O presente capítulo pretende encontrar formas de ocultamento e naturalização de violências no âmbito do Sistema de Justiça Criminal, assim como demonstrar os obstáculos desse espaço de reação
estatal no que diz respeito aos direitos e às diversidades desde a
perspectiva de gênero. Dessa forma, o texto apresenta a discussão
sobre o papel dos atores do Sistema de Justiça Criminal diante da
aplicação da legislação criminal que prevê o aumento das penas de
prisão para aqueles que praticaram violência letal contra as mulheres em contexto de violência doméstica e familiar ou por razões da
condição do sexo feminino.
Ainda que exista a divergência sexo/gênero na legislação
nacional, a proposta está focada na violação do direito à vida de
mulheres por razões de gênero, possibilitando compreender, de um
modo geral, como a criminalização da conduta específica do feminicídio vem sendo recepcionada pelas agências do Sistema de Justiça
Criminal.
Nesse sentido, o objetivo geral do trabalho é compreender o
tratamento das vítimas dos crimes de feminicídio a partir da análise empírica do papel dos atores do Sistema de Justiça Criminal na
atuação dos processos penais de feminicídios ocorridos na cidade de
Pelotas/RS entre os anos de 2015 e 2019. Seu desenvolvimento está
12 O presente capítulo é um excerto da pesquisa realizada para a dissertação de mestrado da
autora, que foi desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal de Pelotas, sob orientação da Profa. Dra. Ana Clara Corrêa Henning, coorientação
da Profa. Dra. Fernanda Bestetti Vasconcellos e apoio do Programa Institucional de Bolsas
(PIB-MD) da Universidade Federal de Pelotas. Mais informações acerca da metodologia e do
desenvolvimento do trabalho estão disponíveis em: <https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/
public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_
trabalho=9496699>.
- 163 -
focado em responder qual o papel dos atores do Sistema de Justiça
Criminal na observação da igualdade, dignidade e diversidade das
vítimas (diretas e indiretas) de feminicídio, a partir da perspectiva
de gênero.
Para isso, tomamos como ponto de partida os amplos desenvolvimentos no âmbito teórico e no dos direitos humanos acerca da
figura do feminicídio, até o enfoque específico das problemáticas
relativas à sua tipificação como crime na legislação penal brasileira.
O estudo tem como base as elaborações provenientes da literatura
especializada para estabelecer os principais elementos de caracterização, diferenças e classificações das definições existentes sobre o
fenômeno.
Sem deixar de lado a dimensão política do conceito de feminicídio, desenvolvemos sua construção a partir dos movimentos
feministas, como uma tentativa de chamar atenção para as condições
específicas em que ocorrem as mortes de mulheres nas mais diversas
sociedades. A nomenclatura própria vai além da inserção de uma
categoria diferente de homicídio, abarcando aspectos sociais de um
fenômeno complexo que exige intervenções amplas para sua compreensão e enfrentamento.
Não há como questionar a legitimidade da criminalização de
condutas que buscam salvaguardar os direitos das mulheres desde os
direitos humanos fundamentais; no entanto, para que seja possível
dimensionar o impacto de tais legislações, a análise da atuação do
Sistema de Justiça Criminal será imprescindível.
Dessa forma, a fim de responder ao problema de pesquisa
proposto, apresentamos alguns resultados da pesquisa empírica realizada, focada na análise de documentos produzidos pelo Sistema
de Justiça Criminal, os quais são articulados com as bases teóricas
abordadas acerca do gênero, bem como de violências baseadas em
expectativas de gênero e estudos sobre a atuação de operadores do
Sistema de Justiça Criminal a partir de uma perspectiva de gênero.
A referida pesquisa de campo foi baseada na análise documental de inquéritos policiais, processos penais e julgamentos do
Tribunal do Júri sobre feminicídios na cidade de Pelotas/RS ocorridos entre os anos de 2015 e 2019. Com esse escopo, produzimos,
através do método indutivo, uma pesquisa qualitativa, com técnicas
baseadas na análise bibliográfica e documental, em que se pretendeu
- 164 -
apurar possíveis ocorrências que explicitem padrões de narrativas
estereotipadas e/ou comportamentos revitimizantes na investigação,
processamento e, em alguns casos, julgamentos dos crimes de feminicídio pelo Tribunal do Júri.
Somente assim podemos entender a importância do estudo
dos atores do sistema penal para o respeito de direitos e da igualdade de gênero, o que pressupõe a análise do próprio sistema penal,
notadamente do modo como se desenvolve o tratamento das vítimas
no Sistema de Justiça Criminal diante da violação do direito à vida
por razões de gênero.
Metodologia de pesquisa13
Primeiramente, para que possamos melhor desenvolver as
ideias do trabalho, é necessário adentrarmos em alguns aspectos
acerca da metodologia utilizada. O percurso adotado para buscar a
resposta do questionamento central deste capítulo foi baseado no
método indutivo, em pesquisa qualitativa, com técnicas amparadas
na análise bibliográfica e documental, através da pesquisa empírica
com coleta de dados em formulários estruturados.
Com base na revisão bibliográfica realizada, partimos da hipótese teórica de que o Sistema de Justiça Criminal, como local de
resolução de conflitos sociais, expressa, em certa medida, expectativas estereotipadas de gênero. Dessa forma, podemos considerar
que a atuação dos atores do Sistema de Justiça Criminal tende a (re)
produzir relações desiguais de gênero, comprometendo a observação do pleno respeito à igualdade e à não discriminação a partir dos
parâmetros de direitos humanos.
O objetivo geral da pesquisa pode ser traduzido na observação
à igualdade, dignidade e à não discriminação das vítimas dos crimes
de feminicídio, a partir da análise do papel dos atores do Sistema de
Justiça Criminal na atuação dos processos penais de feminicídio na
cidade de Pelotas/RS entre os anos de 2015 e 2019.
Os objetivos específicos são delimitados na análise das principais construções teóricas acerca dos caminhos da normatização e
criminalização da violência de gênero, a partir das teorias feministas,
na análise teórica da construção da figura penal típica do feminicídio
13 As informações aqui constantes fazem parte da metodologia aplicada na pesquisa empírica
realizada pela autora entre os anos de 2019 e 2020 para a construção da sua dissertação de
mestrado.
- 165 -
e, por fim, na análise documental de inquéritos policiais, processos
penais e julgamentos do Tribunal do Júri sobre feminicídios ocorridos na cidade de Pelotas nos anos de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019.
Para tanto, a análise documental dos processos passou pelas
seguintes etapas: a) mapeamento dos crimes de feminicídio ocorridos na cidade de Pelotas/RS entre os anos de 2015 e 2019; b) observação acerca da possível existência de narrativas de gênero presentes nos documentos produzidos pelos operadores do Sistema de
Justiça Criminal selecionados; c) análise da observação do direito à
igualdade, dignidade e diversidade nos processos de feminicídio a
partir dos parâmetros de direitos humanos e da perspectiva de gênero.
Após o levantamento dos processos de feminicídio na base de
dados primária do sistema informático interno do Tribunal de Justiça Estadual do Rio Grande do Sul (Sistema THEMIS – 1º Grau) e da
devida triagem de acordo com os critérios descritos abaixo, foram
selecionados nove processos para compor o universo de análise dos
procedimentos de feminicídio investigados, processados ou julgados pela 1ª Vara Criminal do Tribunal do Júri da cidade de Pelotas/
RS entre os anos de 2015 e 2019.
Em resumo, os procedimentos analisados foram selecionados
segundo os seguintes critérios: a) critério temporal: processos ativos
e baixados ocorridos entre os anos de 2015 e 2019; b) espacial: foram selecionados apenas os crimes ocorridos na cidade de Pelotas/
RS; c) tipo penal: a pesquisa centrou-se na análise dos crimes tipificados legalmente como feminicídio consumado, a exceção de um
caso com divergência na classificação sexo/gênero; d) andamento
processual: foram analisados processos com diversos tipos de andamento processual, desde a fase de inquérito policial até aqueles com
sentença penal, ou seja, esclarecidos e não esclarecidos; e) área: a
pesquisa foi realizada no Cartório da 1ª Vara Criminal do Tribunal
do Júri do Foro da Comarca de Pelotas.
Para fins de análise, foram considerados como feminicídios
aqueles casos que se enquadravam na definição legal da figura penal típica (mesmo que não identificados dessa forma pelos atores
do Sistema de Justiça), ou seja, crimes com motivação baseada em
gênero, em contexto de violência doméstica ou não, com traços de
misoginia ou sexismo.
- 166 -
Importa salientar que não temos a pretensão de oferecer uma
análise exata ou estanque da realidade, uma vez que a carência de
recursos das instituições, a falha de sistemas informatizados, a falta de integração entre os diferentes âmbitos do Sistema de Justiça
Criminal e a própria discricionariedade dos agentes podem resultar
em diferentes bases de dados e, consequentemente, em diferentes
resultados finais (AZEVEDO; VASCONCELLOS, 2011).
Com essa ressalva, não afirmamos a ausência de confiabilidade e legitimidade da base de dados, e, sim, a existência de limitações. Assim, foi realizado um esforço para que os dados disponíveis
fossem trabalhados da melhor maneira possível, com o objetivo de
responder ao presente problema de pesquisa.
O propósito da análise documental é o armazenamento de variáveis e a consequente facilitação do acesso ao observador, de forma a obter o máximo de informações (aspecto quantitativo) com o
máximo de pertinência (aspecto qualitativo). Dessa forma, a análise
documental pode ser entendida como uma operação que visa representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da
original, constituindo um serviço de documentação ou de um banco
de dados para facilitar a compreensão e o estudo de um determinado
objeto (BARDIN, 2016).
Importa ressaltar que a análise do presente trabalho não se debruça sobre a categoria de justiça, tampouco considera que esta seja
sinônimo de uma sentença penal condenatória. Ainda, também não
foi objeto de análise a avaliação do desempenho laboral das funções
dos atores do Sistema de Justiça Criminal.
O que se buscou durante a análise foi a observação de condutas que não levavam em consideração a perspectiva de gênero e a
verificação de como essa negligência afetava os direitos das vítimas,
principalmente no que concerne à dignidade, à igualdade e à diversidade.
Feminicídio: perspectivas a partir de um fenômeno social
Desde a sua criação, a suficiência dos tipos penais, supostamente neutros, já existentes, a conveniência de utilizar agravantes
genéricas ao invés de tipos penais especiais, o risco de construir uma
forma de direito penal do autor, ou ainda a indeterminação do bem
jurídico protegido, têm sido parte das principais críticas à tipificação
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do feminicídio a partir da doutrina penal tradicional. No entanto,
uma análise particular dessas críticas, assim como do conteúdo das
iniciativas e leis, permite questionar grande parte dos pressupostos
em que se fundam (TOLEDO VÁSQUEZ, 2009).
Primeiro, importa retroceder um pouco e destacar que os
conceitos de feminicídio e femicídio – já que existe uma variação
marcadamente teórica acerca da nomenclatura – se desenvolvem na
literatura feminista desde o início da década de 1990 para evidenciar
o teor sexista em inúmeros assassinatos e mortes de mulheres, o androcentrismo de figuras aparentemente neutras, como o homicídio,
assim como a responsabilidade direta do Estado nesses fenômenos,
dadas às deficiências em seus julgamentos por parte dos sistemas de
justiça criminal (TOLEDO VÁSQUEZ, 2009).
As expressões feminicídio e femicídio encontram seu antecedente direto na voz inglesa femicide, que foi utilizada pela primeira
vez (com sua atribuição contemporânea) por Diana Russell em um
depoimento no Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, ocorrido em Bruxelas no ano de 1976 (TOLEDO VÁSQUEZ,
2009).
Muito embora a autora (RUSSEL, 2009) atribua a invenção
da palavra à Carol Orlock, foram Diana Russell e Jane Caputi (1990)
as autoras responsáveis pela definição do termo, no artigo “Femicide: Speaking the unspeakable”. Seu significado, referido também
em sua obra posterior, com Jill Radford (1992), foi primeiramente definido como “[...] o assassinato misógino de mulheres por homens” (RUSSEL; RADFORD, 1992, p. 3, tradução nossa)14. Já em
sua obra intitulada Femicide in global perspective, Diana Russell
redefiniu o termo como “[...] o assassinato de mulheres, por homens,
porque são mulheres” (RUSSEL; HARMES, 2001, p. 3, tradução
nossa)15.
Mais recentemente, em seu discurso introdutório ao Simpósio
sobre Feminicídio, apresentado na sede das Nações Unidas em 2012,
Diana Russel, com o temor de que sua definição anterior pudesse se
aplicar somente a uma mulher ou homem, redefine o termo como “[...]
o assassinato de uma ou mais mulheres, por um ou mais homens, porque são mulheres” (RUSSEL, 2012, p. 2, tradução nossa)16.
14 “the misogynist killing of women by men”.
15 “the killing of females by males because they are female”.
16 “the killing of one or more females by one or more males because they are female”.
- 168 -
O que se pretendia demonstrar nos primeiros estudos da década de 1990 era, dentre outros aspectos, o contexto de desigualdade
presente nas mortes de homens e de mulheres. Tais desigualdades
poderiam ser observadas não somente na maneira como as mortes
ocorriam, mas principalmente nas suas motivações. Nesse sentido:
A romancista canadense Margaret Atwood certa vez perguntou a
um amigo, do sexo masculino, por que os homens se sentem ameaçados pelas mulheres. Ele respondeu: “Eles têm medo que as mulheres riam deles”. Ela então perguntou a um grupo de mulheres por
que se sentiam ameaçadas por homens. Elas responderam: “Temos
medo de sermos mortas”. (RUSSEL; CAPUTI, 1992, p. 13, tradução nossa)17.
As concepções de femicídio de Diana Russel são fortemente
vinculadas aos estudos do feminismo radical, uma vez que o desenvolvimento acerca da violência de gênero pode ser percebido
marcadamente pelo aspecto da dominação. Dessa forma, podemos
perceber que as nuances que definem tal fenômeno ultrapassam as
instâncias psíquicas de um indivíduo, levando em consideração
aspectos misóginos e sexistas, e são norteadas por sentimentos de
ódio, desprezo, prazer ou pretensão de propriedade e dominação sobre as mulheres (RUSSEL; CAPUTI, 1992).
Essa trajetória de definições evidencia o contexto complexo
que a terminologia pretende abarcar, mas também destaca que principalmente a partir da institucionalização dos movimentos feministas nos anos de 1990 – conforme já abordado no trabalho –, suas
diretrizes pretendem, de fato, tornarem-se universais.
No referido discurso de Diana Russell (2012), ao mencionar o
intercâmbio de definições ocorrido a partir da iniciativa da então deputada federal mexicana Marcela Lagarde (2006), a autora demonstra sua insatisfação em torno da nova dimensão dada ao femicídio.
O termo femicide passou a ser traduzido para o espanhol como feminicidio, sob a definição inclusiva “the impunity with which these
crimes are typically treated in South America” (RUSSEL, 2012, p.
3). Muito embora a tradução revisada tenha sido previamente autorizada pela autora, ela acaba por rejeitá-la no discurso.
17“Canadian novelist Margaret Atwood asked a male friend why men feel threatened by
women. He replied: ‘They are afraid women will laugh at them’. She then asked a group of
women why they felt threatened by men. They answered: ‘We’re afraid of being killed’.”
- 169 -
No entanto, para Marcela Lagarde (2004, p. 5), o uso da palavra feminicídio seria importante em sua tradução para o espanhol,
uma vez que a tradução para a expressão femicídio se mostraria unicamente como a construção da palavra homicídio de maneira feminizada. Ademais, a inclusão do elemento impunidade à definição era
necessária para o contexto latino-americano, pois, nas palavras da
autora:
Para que se dê o feminicídio concorrem de maneira criminal o silêncio, a omissão, a negligência e a conveniência de autoridades
encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes. Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para as mulheres e não cria
condições de segurança para suas vidas na comunidade, em suas
casas, nos espaços de trabalho e de lazer. Mais ainda quando as
autoridades não realizam com eficiência suas funções. Por isso o
feminicídio é um crime de Estado. (LAGARDE, 2004, p. 5 apud
PASINATO, 2011, p. 232).
A diferença entre essas duas expressões, femicídio e feminicídio, tem sido objeto de profunda discussão no âmbito latino-americano, apesar de serem largamente generalizadas tanto em seu contexto social quanto político. A maior parte das investigações sobre o
tema dedica, ao menos, um capítulo para tratar acerca da distinção
entre ambas, ainda que não exista consenso, em nível teórico, quanto ao conteúdo de cada um desses conceitos (TOLEDO VÁSQUEZ,
2009).
Apesar disso, é possível verificar certa unanimidade acerca
da necessária reunião de diversos fatores para podermos falar sobre
feminicídio e femicídio, como, por exemplo, as condições sociais,
políticas, econômicas e jurídicas particulares de opressão contra
as mulheres que podem levar até seu assassinato (FERNANDEZ;
RAMPAL, 2011).
O femicídio ou feminicídio vem sendo definido genericamente como a morte violenta de mulheres, pelo fato de serem mulheres,
ou o assassinato de mulheres por razões associadas ao seu gênero. A
expressão morte violenta enfatiza a violência como determinante da
morte e, a partir de uma perspectiva penal, incluiria as que resultam
de homicídios simples ou qualificado.
Existem, porém, posturas mais amplas, que incluem as mortes de mulheres provocadas por suas ações, ou omissões, que não
- 170 -
necessariamente se constituem em delito. Tais condutas são aquelas
que carecem do elemento subjetivo que requerem os delitos contra a vida, qual seja, a intenção de matar; ou são condutas que não
podem ser imputadas a uma pessoa delimitada, mas sim dar conta
de violações dos direitos humanos devido ao não cumprimento das
obrigações do Estado com relação à garantia do direito à vida das
mulheres (TOLEDO VÁSQUEZ, 2009).
Conforme já abordado, o termo feminicídio surge a partir da
insuficiência que teria a expressão femicídio para dar conta dos elementos da misoginia e da responsabilidade estatal ao favorecer a
impunidade dos crimes (TOLEDO VÁSQUEZ, 2009). Ademais, o
feminicídio pode apresentar, em suas possíveis formulações como
tipo penal, uma amplitude maior em relação ao conceito de femicide
formulado por Diana Russel (2009, 2012), Russel e Caputi (1990,
1992) e Russel e Harmes (2001).
No entanto, é possível notar que, à parte da razão linguística, o elemento da misoginia está presente em ambas as concepções,
ficando as diferenças estabelecidas quando adentramos no elemento da impunidade e, portanto, da responsabilidade estatal, mas que,
ainda assim, não geram grandes dissonâncias entre as teóricas em
geral. É o questionamento acerca da validez de uma ou outra expressão que dificulta o consenso num plano teórico e político dos crimes
(TOLEDO VÁSQUEZ, 2009).
Apesar do dissenso entre as expressões cunhadas, inúmeros
são os argumentos valiosos que permeiam o tema e que não devem
ser ignorados. No entanto, por razões de praticidade e convicção,
adotaremos no desenvolvimento do presente capítulo a terminologia feminicídio. A praticidade se justifica em razão de ter sido essa
a terminologia adotada pelo ordenamento legal brasileiro, e a convicção, por ser oriunda de perspectivas latino-americanas, portanto,
localizadas.
Ademais, algumas autoras (TOLEDO VÁSQUEZ apud
CARCEDO, 2010) sinalizam a possibilidade de coexistência e complementariedade dos termos, em que femicídio pode ser visto como
um conceito mais amplo, que se refere aos homicídios violentos de
mulheres, e o feminicídio aos casos de impunidade e de responsabilidade estatal pelo não cumprimento de suas obrigações de garantia
dos direitos das mulheres.
- 171 -
Os feminicídios também são classificados de acordo com diferentes tipologias. As tipificações clássicas de femicídio formuladas com base nas investigações de Diana Russel (2009, 2012), Russel e Caputi (1990, 1992) e Russel e Harmes (2001) são expandidas
e podem ser compreendidas como feminicídio íntimo, não íntimo
e por conexão, que, por sua vez, podem definir, respectivamente,
a) assassinatos cometidos por homens com quem a vítima tinha ou
teve uma relação íntima, familiar, de convivência ou afins, b) aqueles cometidos por homens com quem a vítima não teria relações, e
que frequentemente envolvem um ataque sexual prévio, podendo,
assim, também ser chamado de feminicídio sexual, e, finalmente, c)
a tipologia melhor delineada por Ana Carcedo e Montserrat Sargot
(2001), o feminicídio por conexão, que ocorre quando o alvo era
uma mulher mas acaba por atingir outra mulher adulta, ou menina,
na “linha de fogo”.
Faz-se necessário sublinhar que essas construções conceituais
são oriundas das ciências sociais, constituindo marcos teóricos e políticos para a ação e investigação específicas em torno do fenômeno.
Dessa forma, nem sempre é possível a sua aplicação direta no âmbito jurídico, em particular no penal, onde o princípio da legalidade
comporta exigências materiais e formais especialmente rigorosas
acerca da precisão, determinação e taxatividade de seus conceitos
(TOLEDO VÁSQUEZ, 2009).
Com efeito, as definições legais mais frequentes de feminicídio e femicídio se restringem às mortes violentas de mulheres por
razões de gênero como consequência direta dos delitos, excluindo as
mortes que se produzem como consequência de leis e práticas discriminatórias, como, por exemplo, o aborto, a deficiência no atendimento à saúde das mulheres, assim como os suicídios muitas vezes
motivados por razões de gênero (TOLEDO VÁSQUEZ, 2009).
Destarte, podemos perceber que conceitos mais amplos, apesar de teoricamente difundidos, limitam-se, na prática, a estudos e
investigações somente acerca dos casos que se qualificam penalmente como homicídios de mulheres, ou seja, estão limitados às
mortes violentas de mulheres como resultado imediato da conduta
masculina. Dessa forma, as exclusões das demais mortes referidas
podem ser interpretadas como mortes que carecem da mesma relevância penal (TOLEDO VÁSQUEZ, 2014).
- 172 -
Os conceitos aceitos penalmente podem, por vezes, resultar
em demasia generalizadores quando se trata de identificar e dar visibilidade a fenômenos com características particulares. É necessário
prestar atenção a certos elementos específicos como expressão local
ou particular de um fenômeno mundialmente estendido (TOLEDO
VÁSQUEZ, 2014).
Assim, devemos nos questionar qual a importância política de
utilizar uma mesma categoria para explicar mortes que ocorrem em
contextos variados pelas mãos, muitas vezes, de agentes diferentes.
Talvez seja possível encontrar semelhanças, mas o emprego de uma
categoria pode acabar por contribuir para a falsa ideia de unidade ou
de homogeneidade das mortes, fazendo com que se perca a capacidade de observação das especificidades locais, fator importante para
estratégias de enfretamento (PASINATO, 2011).
O uso de uma ou outra expressão demonstra diferentes ênfases com relação à responsabilidade estatal pelos crimes, diferenças
políticas encontradas dentro dos movimentos feministas latino-americanos, assim como diversas realidades presentes em cada contexto
local. Nesse sentido, a divergência teórica entre ambas as categorias
também é reflexo da variação problemática de cada país (TOLEDO
VÁSQUEZ, 2014).
Inobstante a carga de especificidade apresentada pelas variações locais desse fenômeno, importa ressaltar que a formulação do
conceito de femicídio (e consequentemente duas derivações) é vinculada aos chamados crimes de ódio. As reflexões iniciais acerca
do termo surgiram num contexto norte-americano de amplo debate
político de reconhecimento dos chamados hate crimes, debate esse
impulsionado pelo movimento de direitos civis e outros coletivos
sociais. Por meio dessa categoria criminal, o objetivo era tornar visível a violência que afetava de maneira específica diversos grupos
socialmente vulneráveis (TOLEDO VÁSQUEZ, 2014).
Assim, apesar da especificidade necessária para a transposição do conceito, conforme as dinâmicas locais de violência, essa
estreita vinculação da expressão femicídio com crimes de ódio direciona grande parte dos debates jurídicos latino-americanos.
A simbiose entre os conceitos político e jurídico do termo
femicídio e feminicídio possibilitou sua popularização e aceitação
social, viabilizando a inclusão da nova categoria no ordenamento
- 173 -
jurídico penal de diversos países da América Latina, seja como categoria penal específica, agravante ou qualificadora da figura do homicídio.
Ainda, devemos apontar que o cenário político da redemocratização também influenciou fortemente nesse sentido, principalmente no que concerne à responsabilidade do Estado diante das
violências de gênero. No entanto, por mais que as teorias latino-americanas insistam na carga de responsabilidade estatal diante da
impunidade histórica do assassinato de mulheres, tal dimensão não
é incorporada juridicamente quando tratamos do feminicídio (TOLEDO VÁSQUEZ, 2014).
Apesar disso, podemos perceber com certo êxito as décadas
de esforços feministas em prol da desnaturalização da violência contra as mulheres na percepção coletiva. Isso porque a impopularidade
política de manifestação contrária a medidas que buscam a sanção
dessa violência ou a proteção de suas vítimas, é cada vez mais presente. Por outro lado, também cresce a ideia do estereótipo da vítima, ao mesmo tempo em que se reforça o tradicional papel protetor
do Estado, tornando a criminalização de condutas uma fácil estratégia política quando os governos se veem obrigados a dar respostas
às pautas feministas (TOLEDO VÁSQUEZ, 2014).
As legislações nacionais incorporam a tipificação penal do
crime de feminicídio principalmente a partir do compromisso internacional com os ditames da Convenção de Belém do Pará, de 1994,
que foi ratificada pelo Brasil em 1996. Sua abordagem permite a
denúncia da violência contra as mulheres como um problema público e político, além de reconhecer sua prática como crime contra
a humanidade. Possibilita também, a partir da aproximação com o
direito internacional dos direitos humanos, a cobrança social da adoção de medidas necessárias para a prevenção, sanção e investigação
da violência contra as mulheres (PASINATO, 2011; TOLEDO VÁSQUEZ, 2014).
Não existe consenso sobre as vantagens da aproximação das
ações feministas com o discurso dos direitos humanos. No entanto,
muitas autoras entendem que o uso da categoria insere a dimensão
política no problema, já que um dos maiores obstáculos para os estudos e as possíveis estruturações de políticas criminais na América
Latina é a ausência ou escassez de dados que permitam uma visão
- 174 -
mais clara do número de mortes e de seus contextos (PASINATO,
2011).
A respeito do contexto nacional atual, os dados do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública18 (2017, 2019) demonstram que,
só entre os anos de 2015 e 2019, tivemos um crescimento de 449
para 1.326 feminicídios no Brasil. Dessa forma, podemos perceber
que, muito além de eventos isolados decorrentes da criminalidade
comum, o feminicídio se apresenta como um fenômeno social complexo que tem causas múltiplas. Os conflitos violentos podem ser
compreendidos como importantes elementos para entender o processo de socialização de modo a moldar estruturas sociais através
das tensões geradas por tais conflitos e por seus elementos dissociativos (VASCONCELLOS, 2014).
A promulgação da Lei do Feminicídio, Lei nº 13.104, de 9
de março de 2015, alterou o art. 121 do Código Penal (CP) “para
prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de
homicídio”, incluindo-o no rol dos crimes hediondos. Dessa forma,
de acordo com o direito penal vigente, feminicídio é o homicídio
doloso praticado contra a mulher por “razões da condição de sexo
feminino”, ou seja, em casos de violência doméstica e familiar e/
ou menosprezo ou discriminação, desconsiderando a dignidade da
vítima enquanto mulher (art. 121, §2º-A, CP).
A definição de violência doméstica e familiar pode ser encontrada na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), em seu artigo 5º:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço
de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar,
inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por
laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva
ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
18 Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/01/ANUARIO
_11_2017.pdf;
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020final-100221.pdf. Acesso em: 06 nov. 2020.
- 175 -
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. (BRASIL, 2006).
Da mesma forma, a definição de discriminação contra a mulher pode ser encontrada no artigo 1º da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979),
ratificada em 1984 pelo Brasil:
[...] toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento,
gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado
civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos
humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (ONU,
1979).
Assim, apesar de classificar-se como uma norma penal em
branco, optou-se pela inclusão do feminicídio não como um tipo
penal autônomo (o que é recorrente em outros ordenamentos jurídicos), mas como um qualificador cuja incidência está condicionada
aos casos previstos pela lei, conforme já referido.
Nesse contexto, esses crimes traduzem a mais extrema expressão da violência de gênero quando buscam vincular a sua natureza
a um processo de socialização em que estamos todos envolvidos, e
não como fruto da natureza ou de um sentimento (MENDES, 2017).
Do ponto de vista técnico, o bem jurídico ofendido em um ato
feminicida se mostra como um grande passo para a desconstrução
de argumentos que diminuem os atos do agressor, tais como perturbações de ordem psicológica, a patologização, ou alegações como
“devido à forte emoção” e “em legítima defesa da honra”.
Ainda que o conceito de feminicídio seja socialmente construído, é importante notar que, também sob o ponto de vista técnico,
podemos inferir que a ação do verbo do tipo penal brasileiro é: matar
uma mulher por ser mulher; o resultado é a morte de uma mulher; e
o nexo de causalidade é um sistema de opressão que não só criminaliza seletivamente, mas também seleciona aqueles/as que merecem
proteção (MENDES, 2020).
Nesse sentido, devemos atentar para a amplitude e a diversidade de elementos que podem estar presentes no crime de feminicídio. A conceituação de cenários e a tipologia são aproximações
- 176 -
necessárias para a compreensão do fenômeno a partir dos estudos
feministas baseados na análise dos feminicídios na América Latina.
Dessa forma, a complexidade da realidade deve envolver uma ampla
visão, com conceitos que possibilitem sua compreensão em situações menos ou mais específicas (GOMES, 2018).
É necessário chamar atenção para o debate e para as implicações sociais do reconhecimento jurídico do feminicídio, apontando
que reconhecer e denunciar um fenômeno social não é o mesmo
que legislar penalmente sobre ele. Reduzir um problema social a um
debate penal é impor limites – em nome das garantias legais – para
a compreensão de um fenômeno altamente complexo (GOMES,
2018).
Tais limites foram possíveis de serem observados através de
valores e representações da sociedade antes mesmo de a lei que institui o crime de feminicídio no Brasil ser aprovada. Alvo de muitas críticas, o texto sofreu modificações substanciais em suas tramitações no Congresso Nacional. Desafortunadamente, em uma
manifestação de claro viés religioso-conservador, foi substituída a
expressão razões de gênero por sexo, sob o argumento de que a primeira abarcaria também situações outras que não a de morte de mulheres biológicas, mas também as de transexuais e travestis (MENDES, 2017).
Dessa forma, também no plano simbólico e político, se encontra o risco de que essas leis reforcem ou conduzam a uma essencialização biologicista da qualidade de mulher, que pode ser traduzida
através da restrição de direitos para pessoas transgênero, transexuais
ou intersexuais (TOLEDO VÁSQUEZ, 2014).
Nesse sentido, podemos transpor para esse contexto a afirmação de Djamila Ribeiro acerca da política e a representação no que
diz respeito à garantia de direitos para as mulheres:
Não incluir, por exemplo, mulheres trans com a justificativa de
que elas não são mulheres reforça aquilo que o movimento tanto combate e que Beauvoir refutou tão brilhantemente em 1949: a
biologização da mulher, ou a criação de um destino biológico. Se
não se nasce mulher, se ser mulher é um construto, se o gênero é
performance (em termos butlerianos), não faz sentido a exclusão de
trans como sujeitos do feminismo. O movimento feminista precisa
ser interseccional, dar voz e representações às especificidades existentes no ser mulher. Se o objetivo é a luta por uma sociedade sem
- 177 -
hierarquia de gênero, existindo mulheres que, para além da opressão de gênero, sofrem outras opressões, como racismo, lesbofobia,
transmisoginia, torna-se urgente incluir e pensar as intersecções
como prioridade de ação, e não mais como assuntos secundários.
(RIBEIRO, 2018, p. 47).
Esse fato demonstra explicitamente a prévia seletividade
de vítimas. No entanto, mesmo admitindo, infelizmente, que a lei
entende por “mulheres” somente aqueles indivíduos nascidos biologicamente do sexo feminino, ainda devemos atentar para outras
potenciais seletividades de vítimas. Estas sofrem igualmente com os
gestos totalizantes do feminismo, cujas análises são estruturadas em
supostos universalismos que, atrelados a características homogeneizantes, pretendem criar um sujeito único do feminismo, e igualmente, um sujeito único feminino. Segundo Judith Butler (2003, p. 22):
“[...] esses domínios de exclusão revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é
elaborada com propósitos emancipatórios”.
Todavia, não estamos afirmando com isso que o reconhecimento penal não possa ser uma ferramenta de reconhecimento de
direitos a partir da perspectiva de gênero; muitas vezes, tipificar uma
conduta nessa perspectiva significa, também, confrontar a universalidade da lei com a singularidade do que ela nomeia (ENRIQUEZ,
2010). Assim, para além da crença na eficácia ou na efetividade da
ferramenta penal, devemos apontar que o seu uso representa um posicionamento político dentro de um cenário de disputas de poder
(GOMES, 2018).
Tão importante quanto discutir a validade ou a legitimidade da
utilização do direito penal como elemento central para a regulação
de condutas, parece ser a discussão a respeito de quais as consequências geradas nas dinâmicas formais de administração de conflitos
e quais os efeitos (im)previstos gerados por esta opção (SOARES;
VASCONCELLOS, 2018).
Observar esses efeitos significa compreender como se dão
os processos desta que seria uma forma de efetivação de direitos,
executados por agentes que, muitas vezes, reproduzem os mesmos
preconceitos ou julgamentos que motivam a prática das violências
a que estiveram expostos àqueles que buscaram o sistema de justiça para conduzir de modo justo o conflito no qual estão inseridos
(SOARES; VASCONCELLOS, 2018).
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Considerações acerca do processamento dos delitos: o que
nos dizem os discursos dos atores do Sistema de Justiça Criminal19
Antes de adentrarmos na análise da observação do direito à
igualdade, diversidade e dignidade das vítimas, é necessário tecer
algumas considerações que emergiram acerca dos dados encontrados sobre o processamento e os crimes de feminicídio ocorridos na
cidade de Pelotas/RS.
Segundo o Modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio) (ONU MULHERES, 2014, p. 55):
Falar de “razões de gênero” significa encontrar os elementos associados à motivação criminosa que faz com que o agressor ataque
uma mulher por considerar que sua conduta se afasta dos papéis
estabelecidos como “adequados ou normais” pela cultura. Para entender a elaboração da conduta criminosa nos casos de femicídio,
cabe conhecer a forma como os agressores utilizam as referências
culturais existentes para elaborar sua decisão e conduta.
Nesse sentido, os feminicídios observados na cidade de Pelotas/RS demonstram uma desigualdade estrutural característica das
relações entre homens e mulheres. Mais do que uma carga emocional, as condutas demonstram o desprezo da condição de mulher da
vítima e um controle sobre o desejo e a autonomia das mulheres,
características que não são atribuídas exclusivamente ao perfil psicológico ou biográfico dos agressores, mas são reconhecidas como
circunstâncias atreladas a construções sociais dos papéis femininos
e masculinos, tornando-se, ao fim e ao cabo, um problema social
(BRASIL, 2016).
Dessa forma, foi possível verificar as marcas da violência
de gênero no corpo da maioria das vítimas, uma vez que as mortes
ocorriam de forma extremamente violenta, envolvendo mutilações
de partes específicas do corpo, como o rosto, os seios e o ventre,
partes muitas vezes associadas à feminilidade e ao desejo sexual
sobre o corpo da mulher.
19 Os dados aqui transcritos foram obtidos a partir do acesso a documentos públicos, com
anuência do gabinete responsável, respeitando a identidade das partes envolvidas, e não
pretendem, de forma alguma, avaliar o desempenho da função laboral dos atores do Sistema
de Justiça Criminal observados.
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Dentre os processos analisados, um deles demonstrou particular crueldade nos atos executórios que envolveram o crime de
feminicídio os quais chegaram a caracterizar a execução do crime
mediante meio cruel e tortura. Nesse sentido, podemos verificar a
presença de aspectos marcantes que caracterizam o crime de feminicídio, estando presente a imposição do sofrimento físico e mental, o
emprego de meio cruel ou degradante, com a mutilação ou desfiguração do corpo da vítima (BRASIL, 2016).
Importa ainda ressaltar dois aspectos que apareceram com
frequência nos crimes de feminicídio analisados. O primeiro diz respeito à existência de registros anteriores de violência doméstica envolvendo autores e vítimas, e o segundo tem relação com a presença
dos/as filhos/as no momento do crime.
Dos processos analisados, apenas 33%20 apresentavam registro anterior de violência doméstica entre o autor e a vítima. Esse
índice diminuto pode demonstrar o que outras pesquisas já apontam:
a subnotificação dos casos de violência de gênero, o medo e a descrença da vítima nas leis e no Sistema de Justiça Criminal (SCARANCE, 2019).
Por vezes, a vítima não encontra suporte familiar ou social
para realizar a denúncia da violência sofrida, tem vergonha, medo
do parceiro violento, ou acredita numa mudança de comportamento
por parte dele. O certo é que qualquer tentativa de elencar os aspectos que envolvem a incapacidade de rompimento do ciclo da violência nos parece irrazoável (SANTIAGO, 2019).
Alguns processos analisados demonstraram que a vítima era
assassinada quando decidia deixar o autor do fato, ou após o término
do relacionamento. No entanto, alguns aspectos que chamaram atenção nos documentos analisados foram: a naturalização da violência
de gênero por alguns depoentes (testemunhas) e autores, a perspectiva de que os comportamentos privados não eram “da conta” dos
familiares, vizinhos ou amigos e, até mesmo, a manifestação de condescendência com o comportamento do autor do fato.
Todos esses elementos demonstram a reprodução social de
discursos e práticas arraigadas na cultura social que podem se transformar em obstáculos para a denúncia da violência de gênero pelas
20 A pesquisa completa da autora está disponível em: <https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/
public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_
trabalho=9496699>. Acesso em: 19 abr. 2022.
- 180 -
vítimas, assim como alimentam comportamentos que podem levar à
morte violenta de mulheres.
A presença dos/as filhos/as no momento do crime ocorreu
na maioria dos casos em que as vítimas possuíam filhos/as, fossem
eles de ambas as partes ou somente da vítima. O fato demonstra um
prejuízo social significativo, pois além do possível trauma gerado,
existe a possibilidade de transmissão intergeracional da violência.
Nessas situações, a base da violência pode ser transmitida para os/as
filhos/as por meio da aprendizagem social (GONÇALVES, 2016).
A presença de vítimas indiretas embasa fortemente os direitos
da vítima (ainda que nunca possam se sobrepor aos direitos do réu),
uma vez que estas também são afetadas pela violência perpetrada e
podem vir a ser revitimizadas quando entram no Sistema de Justiça
Criminal. Dessa forma, importa tecer alguns comentários a respeito
do que foi observado acerca do papel dos atores do sistema de justiça na observação dos direitos das vítimas a partir dos parâmetros dos
direitos humanos e da igualdade de gênero.
Conforme afirmado anteriormente, podemos considerar que
a atuação dos atores do Sistema de Justiça Criminal também pode
reproduzir, em certa medida, relações desiguais de gênero. Isso porque parte-se da ideia de que o sistema jurídico, enquanto lugar de
resolução de conflitos sociais, expressa valores e representações
da sociedade e que o convencimento para a decisão leva em conta
também categorias do mundo social que os operadores reproduzem
(FACHINETTO, 2012).
O campo institucional do Sistema de Justiça Criminal identificado era predominantemente masculino, e as posições de poder
eram quase que exclusivamente ocupadas por homens, o que pode
propiciar expectativas estereotipadas com relação ao comportamento feminino (PORTELLA, 2014).
O Tribunal do Júri, particularmente, pode ser compreendido
como um espaço de reflexão de valores socialmente disseminados,
uma vez que o júri se faz como uma instituição social (SCHRITZMEYER, 2012). Essas características tornam a observação das perspectivas de igualdade de gênero ainda mais importantes quando tratamos de vítimas de feminicídio. O impacto positivo que pode ser
gerado a partir da compreensão do fenômeno e dos fatores que o
cercam é tão grande quanto o impacto negativo gerado a partir da
- 181 -
presença de comportamentos discriminatórios e estereotipados de
gênero.
Para Bardin (2016, p. 57):
Um estereótipo é “a ideia que temos de...”, a imagem que surge
espontaneamente, logo que se trate de... É a representação de um
objeto (coisas, pessoas, ideias) mais ou menos desligada da sua realidade objetiva, partilhada pelos membros de um grupo social com
alguma estabilidade. Corresponde a uma medida de economia na
percepção da realidade, visto que uma composição semântica preexistente, geralmente muito concreta e imagética, organizada em
redor de alguns elementos simbólicos simples, substitui ou orienta
imediatamente a informação objetiva ou a percepção real. Estrutura cognitiva e não inata (submetida à influência do meio cultural,
da experiência pessoal, de instâncias e de influências privilegiadas
como as comunicações de massa), o estereotipo, no entanto, mergulha as suas raízes no afetivo e no emocional, porque está ligado ao
preconceito por ele racionalizado, justificado ou criado.
Tais estereótipos podem ser encontrados nas manifestações
dos atores do Sistema de Justiça Criminal quando descrevem ou auxiliam na descrição das vítimas da violência letal de gênero e do
contexto em que essa se deu.
Nesse sentido, em todos os processos analisados em que as vítimas possuíam filhos, a maternidade era uma característica presente
na construção da imagem das mulheres vítimas, seja para realizar
uma construção positiva ou negativa delas. Questionamentos acerca
da “boa ou má” maternidade da vítima eram largamente explorados
tanto pela defesa quanto pela acusação, tornando essa característica
o pano de fundo de toda a vida pessoal pregressa da vítima. Tais
depoimentos podem ser retomados na construção das peças processuais.
No geral, verificamos pouca preocupação com a qualificação da vítima, muito embora exista a previsão legal de que, quando
possível, a ofendida poderá ser qualificada. Dessa forma, é possível
observar que poucos aspectos apresentados definiam a vítima como
sujeito.
O suposto consumo de drogas pelas vítimas também aparece no processo como característica negativa da conduta da vítima,
como uma espécie de justificativa de sua morte violenta: “morreu
porque era usuária de drogas”. Já quando esse uso é alegado em
- 182 -
relação ao comportamento do autor, passa a ser visto como um fato
desabonatório do ato criminoso: “cometeu o assassinato porque era
usuário de drogas”.
A conduta da mãe da vítima também foi utilizada como elemento de desqualificação das vítimas (direta e indireta), como numa
tentativa de atribuir à “má” maternidade o desfecho dos fatos.
Também pode ser observado que há uma tentativa de construção de uma imagem promíscua e negativa da vítima, afirmando que
ela se relacionava com outros homens. No entanto, verificou-se que
tal argumento só é mencionado de maneira desabonatória com relação à conduta da vítima, o réu, muito embora afirme ele próprio que
possuía outros relacionamentos concomitantes, permaneceu incólume no que diz respeito à sua conduta. Logo, verifica-se que o controle da sexualidade só é efetuado quando tratamos de uma mulher.
A prática de indicação de testemunhas mulheres, ex-companheiras do autor, pela defesa também pode ser observada (testemunhas abonatórias da conduta do réu). O interrogatório conduzido
pela defesa pretendia demonstrar que o motivo que levou o autor
a assassinar a vítima girava em torno dela; ou seja, pretendiam culpabilizar a vítima pela conduta do acusado. Em plenário, a linha de
questionamento das testemunhas, por vezes, denota a construção de
papéis sociais definidos para mulheres e homens.
Há casos em que o/a magistrado/a interrompe e indefere as
perguntas pela ausência de relevância em relação ao caso em comento, mas, novamente, como o julgamento já estava em fase de
plenário, sempre há a possibilidade de impacto de tudo aquilo que
é abordado.
Outro fator observado foi a variação na utilização de pronomes de tratamento das vítimas. Conforme as testemunhas construíam o caráter da vítima, os atores modificavam os pronomes de
tratamento para se referir à vítima; as variações oscilaram entre senhora, mulher, moça, menina, companheira, esposa, namorada, dona
e guria.
Muito embora exista a recomendação de que todas as mortes
violentas de mulheres devam partir de um processo investigativo
que tenha por premissa o crime de feminicídio, sob pena de ferir o
próprio acesso à justiça das vítimas, tal conduta não pôde ser verificada de modo contundente. Sobre tal recomendação:
- 183 -
A prudência exige que se aplique o Modelo de Protocolo frente ao
mais mínimo indício ou dúvida de que se possa estar diante de uma
morte violenta. Sua aplicação não impede, em caso algum, a investigação geral dos fatos; antes permite, pelo contrário, identificar
os fatos e associá-los a um eventual contexto feminicida. (ONU
MULHERES, 2014, p. 18).
Dessa forma, a variação da tipificação do crime foi observada
durante os atos processuais. Desde a abertura do inquérito, indiciamento, denúncia, pronúncia e sentença, a tipificação variou desde
homicídio simples, homicídio qualificado e, finalmente, feminicídio. Não foi possível observar tal variação em todos os processos
analisados em razão dos diferentes estágios em que esses se encontravam.
Aspectos acerca do relacionamento entre a vítima e o autor do
fato giravam em torno da exclusividade, convivência e da constância desse relacionamento. O tempo de duração do relacionamento
também foi suscitado diversas vezes para definir, ou não, o uso da
qualificadora.
Assim, podemos perceber que um aspecto determinante para
a compreensão da inclusão da qualificadora nos crimes analisados
era a ocorrência do delito em contexto de violência doméstica ou
familiar, o que pode denotar certa confusão acerca das violências
baseadas nas relações de gênero e as domésticas ou familiares, dificultando percepções que extrapolem o âmbito doméstico e familiar.
De todos os processos analisados, somente três já possuíam
sentença do Tribunal do Júri, e todos apresentaram a condenação
do réu, inclusive o último processo mencionado, com penas que oscilaram entre 13 e 18 anos de reclusão. Em todos os casos, o comportamento da vítima não foi considerado como contribuinte para a
prática do delito no momento da sentença, muito embora essa tese
seja aventada pela defesa.
Nos dois processos julgados que contavam com a qualificadora do feminicídio, tal qualificadora foi mantida pelo corpo de jurados, com 4 votos a 0 para a manutenção da qualificadora em um dos
casos e, em outro, com a proporção de 4 votos a 3, o que demonstra
a importância do conhecimento social acerca do fenômeno do feminicídio, bem como a observação da perspectiva de gênero durante o
processo penal.
- 184 -
Importa ressaltar que a análise desta pesquisa não se debruça
sobre a categoria de justiça, tampouco considera que ela seja sinônimo de uma sentença penal condenatória. Também não foi objeto
de análise a avaliação do desempenho das funções dos atores do
Sistema de Justiça Criminal.
O que se buscou durante a análise foi a observação de condutas que não levavam em consideração a perspectiva de gênero e a
verificação de como essa negligência afetava os direitos das vítimas,
principalmente no que concerne à dignidade, à privacidade, à intimidade e à igualdade das vítimas.
Dessa forma, concluímos que a construção de narrativas em
torno da vítima durante o processo pode implicar na construção de
memória histórica acerca da violência de gênero sofrida por mulheres. Tal construção ultrapassa o caso específico e adentra a sociedade, impactando a compreensão de um fenômeno complexo que pode
ser encontrado nas mais diversas instâncias sociais e, principalmente, na instância jurídica.
Considerações finais
Com o presente trabalho, buscou-se abordar as principais
construções teóricas e legais acerca da figura do feminicídio, compreendendo como sua criação insere uma dimensão política importante para a apreensão de um fenômeno social complexo. Nesse sentido, sintetizamos as principais construções oriundas das ciências
sociais que permitem a observação da complexidade em torno das
mortes violentas de mulheres, sinalizando, novamente, os perigos de
compreender um fenômeno tão amplo com tipificações específicas
e limitantes.
Afirmamos que não há como questionar a legitimidade da criminalização de condutas que pretendem salvaguardar os direitos das
mulheres desde os direitos humanos fundamentais; no entanto, para
que possamos dimensionar o impacto de tais legislações, a análise
do Sistema de Justiça Criminal se faz imprescindível.
Identificado como um campo institucional predominantemente masculino e com posições de poder ocupadas quase que exclusivamente por homens, seus atores possuem como característica a
expectativa estereotipada com relação ao comportamento feminino. Assim, em certa medida, suas atuações podem ser interpretadas
- 185 -
como a reprodução de valores e representações da sociedade baseados em relações desiguais de gênero, algo que pode afetar os direitos
de vítimas mulheres.
Desde a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres (1979) e a Convenção do Belém do Pará (1994), foi possível a criação da figura penal típica do
feminicídio, que deveria ser incorporada a partir da observação das
diretrizes latino-americanas para investigar, processar e julgar as
mortes violentas de mulheres (ONU MULHERES, 2014). A investigação, o processamento e o julgamento com a perspectiva de gênero
implicam tornar real o direito de igualdade; logo, os cuidados com
a demonstração das razões de gênero da morte da vítima devem ser
observados desde os momentos iniciais do processo.
É nesse sentido que estruturamos a pesquisa de campo, que
teve como objeto principal a análise do papel dos atores do Sistema
de Justiça Criminal na observação dos direitos das vítimas (diretas e
indiretas) de feminicídio, desde a perspectiva de gênero. A pesquisa
delimitou-se à análise documental de processos de feminicídio consumado ocorridos na cidade de Pelotas/RS entre os anos de 2015 e
2019.
Realizou-se, assim, a verificação da possível existência de
narrativas de gênero presentes nos documentos produzidos pelos
operadores do Sistema de Justiça Criminal, para, ao fim, analisar
a observação dos direitos de igualdade e dignidade das vítimas nos
processos de feminicídio a partir dos parâmetros dos direitos humanos e da igualdade de gênero.
Ao longo da pesquisa de campo, foi possível observar algumas formas de revitimização abordadas pela base teórica do trabalho: a vitimização secundária, que pode ser percebida com a ampla
intervenção das instâncias de controle judicial durante o processo
criminal, e a vitimização terciária, através da discriminação e culpabilização da vítima também no curso do processo. Tal revitimização
pode ser apontada em todos os momentos em que o poder inquisitório implícito não encontrou limites nos direitos humanos das vítimas, deixando de observar a dignidade, a diferença e a privacidade.
Conforme verificado a partir das situações analisadas, em termos práticos, a dignidade da vítima pode ser preservada com a observação, por exemplo, de linhas de interrogatório que não tragam
- 186 -
questionamentos discriminatórios acerca da vida íntima da vítima
(seja vítima direta ou indireta), especulações sobre informações que
não dizem respeito ao processo ou que causem constrangimento.
Estereótipos de gênero e julgamentos de valor acerca do comportamento da vítima também devem ser impedidos, tornando nulo qualquer emprego de linguagem discriminatória.
Além disso, também não devem ser tolerados aqueles questionamentos maculados por juízos de valor que investiguem hábitos,
atitudes ou comportamentos da vítima de modo a responsabilizá-la
pela violência sofrida.
Conforme ressaltado, o direito à igualdade e à dignidade tem
especial importância quando tratamos de crimes julgados pelo Tribunal do Júri. Isso porque, conforme observado, a reconstrução dos
fatos em plenário, protagonizada pela acusação e defesa, que visam
o convencimento dos jurados, é frequentemente realizada através da
responsabilização da vítima, principalmente a partir de estereótipos
de gênero e narrativas impregnadas de uma moral sexual, com pouca consideração à memória da vítima.
Dessa forma, quaisquer atos que empreguem linguagem sexista ou linguagem de outra natureza discriminatória, com referências
depreciativas a qualquer característica de identificação social, como
raça, etnia e orientação sexual, devem ser impedidos em nome da
preservação dos direitos da vítima.
A inclusão da perspectiva de gênero é uma alternativa vista
como transformadora da atuação dos profissionais do Sistema de
Justiça Criminal. No entanto, atribuir a revitimização à falta de capacitação dos atores ou à falha de seu funcionamento não nos parece suficiente. Dessa forma, é necessária a viabilização de pesquisas
comprometidas com os valores democráticos da ciência para que
possamos construir um quadro complexo das questões que permeiam os poderes institucionais.
Finalmente, se adotarmos uma dimensão mais ampla, o respeito à memória e aos direitos da vítima ultrapassa o caso individual,
uma vez que pode promover a conscientização social através da
atuação dos atores jurídicos, contribuindo para comunicar à sociedade o que é violência de gênero, bem como a sua inadmissibilidade.
- 187 -
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- 191 -
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CAPÍTULO 9
Justiça restaurativa em crimes de gênero:
valores e princípios para uma crítica radical ao
punitivismo
Michelle Karen Batista dos Santos
Introdução
Na constituição do paradigma punitivo como núcleo identitário do Sistema de Justiça Criminal, a expropriação do conflito,
o controle do “criminoso” e a neutralização da vítima se tornaram
elementos centrais que configuram novos problemas de (re)vitimização. Atuando de forma altamente violenta e genocida, sua relação
com o sofrimento administrado pelo Estado é inegável: produz-se
tanto na corporalidade vulnerável da vítima quanto na do acusado/
réu/condenado e dos familiares afetados.
A certeza da pena como dor acaba se tornando tão insuportável como a violência do crime, em que ambas se anulam na objetividade dos fatos, sendo esse o único critério de justiça. É nesse processo de perda de credibilidade da justiça punitiva frente aos obstáculos
enfrentados pelas questões subjetivas do real, antes não observadas,
que o sistema penal passa a correr o risco de uma “crise sacrificial”
(GARAPON; GROS; PECH, 2001, p. 267).
Por ser uma construção histórica, foi necessário que o Sistema de Justiça Criminal fosse questionado através de outros padrões
de pensamento, que buscam desaprender as premissas pré-decisionais das teorias modernas da pena (retribuição, prevenção e ressocialização). Isso não por intermédio das discussões infinitas sobre
revoluções/reformas ou transformações dentro/do sistema, mas por
meio de extenso exercício de crítica à racionalidade penal moderna e
ao seu paradigma norteador, como possibilidade real de transformar
esse sistema de pensamento em uma nova teoria de intervenção na
questão criminal (ou outro sistema de ideias) (PIRES, 2017).
Nesse universo de possibilidades, a justiça restaurativa surge
como um modelo radicalmente diferente de resolução de conflitos
(ACHUTTI, 2016), inaugurando uma nova forma de pensar o crime
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e a pena e realizando um giro histórico-científico – até mesmo no
núcleo do fazer criminológico crítico – no que tange ao deslocamento da vítima do lugar subalterno de interesse da justiça criminal,
especialmente do processo penal.
Entretanto, o conceito de justiça restaurativa é intranquilo, já
que está envolto em uma série de confusões conceituais advindas de
seu desenvolvimento desde uma perspectiva sociológica, criminológica ou jurídica; das distintas formas pelas quais tal justiça é regulada nos países que a recepcionaram; da relação que estabelece com o
sistema penal; da pluralidade de autores e tendências e da evolução
de suas experiências no que tange aos seus princípios, sua possibilidade/necessidade de regulação legal e o âmbito de aplicação.
Entretanto, mesmo considerando sua abertura e fluidez (PALLAMOLLA, 2009), há um relativo consenso em torno da concepção
de Tony Marshall (1996, p. 37), que a define como “[...] um processo
pelo qual as partes envolvidas em uma específica ofensa resolvem,
coletivamente, como lidar com as consequências da ofensa e as suas
implicações para o futuro”, na presença de um terceiro (o facilitador) que viabiliza esse encontro e a observação dos valores e princípios que o devem orientar.
Fruto de uma conjuntura complexa, a justiça restaurativa veio,
então, se constituindo como um movimento social que tem por finalidade a reforma da justiça criminal, movimento esse fundamentado
historicamente no uso da criticidade por parte também de movimentos pelos direitos civis e pelos direitos das mulheres (ACHUTTI,
2016). Por esse ângulo, a urgência de uma justiça restaurativa passa
a ser pautada no enfrentamento do sistema dominante punitivo, lugar de discriminação racial em todos os âmbitos e de negação da
vítima como elemento essencial nos processos de responsabilização.
Desse modo, o problema aqui enfrentado versou sobre a compreensão dos valores e princípios da justiça restaurativa que delineiam outro modelo de justiça para as mulheres vítimas de crimes de
gênero. Nessa direção, a hipótese defendida foi a de que se trata de
um modelo de justiça cujas práticas são orientadas por novos valores
e princípios críticos ao punitivismo, trazendo um novo olhar para as
violências contra as mulheres, desde uma perspectiva que leva em
conta outros fatores para além do gênero e todas as iniquidades do
Sistema de Justiça Criminal.
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Para tanto, se teve como suporte referenciais bibliográficos e
documentais que auxiliam na percepção de fundamentos filosóficos,
sociológicos e criminológicos do referido modelo de justiça e das
suas potências e resistências quando se trata da sua aplicação em
crimes de gênero.
Valores, princípios e práticas que concretizam a possibilidade
da intervenção da justiça restaurativa em crimes de gênero
Desde uma crítica feita pelas vítimas do sistema punitivo, a
questão racial e a questão de gênero foram as grandes mobilizadoras
da proposta restaurativa quando se pensa o âmbito judicial. A partir das práticas de injustiça e do tratamento seletivo ofertado pelo
Sistema de Justiça Criminal tradicional, revelou-se a emergência de
novos caminhos para o justo. Logo, o novo modelo de administração
de conflitos violentos vem para denunciar a atuação do poder punitivo estatal criminalizante e seletivo. Constitui-se, portanto, contrário
ao confisco do conflito, aos moldes inquisitoriais de produção de
verdade, à concepção de sujeito-objeto, à pena como inflição de dor
e à perda de protagonismo da vítima e da comunidade nos processos
resolutivos. E parte da compreensão da definição de crime e pena
enquanto construção social que se sobrepõe à essência relacional da
existência humana (CARVALHO; ANGELO; BOLDT, 2019).
Nesse sentido, (i) a justiça restaurativa se apoia no rearranjo
da noção de crime, que passa a não ser considerado uma violação
contra o Estado ou uma transgressão da norma jurídica, e sim uma
situação que causa danos, consequentemente, gerando prejuízos e
consequências a pessoas reais; (ii) o foco de atuação deixa de ser o
crime e o “criminoso”, voltando-se para a possível solução do problema através do diálogo entre os sujeitos envolvidos (direta ou indiretamente: vítima, agressor, parentes, amigos, comunidade afetada
etc.); (iii) a infração deixa de ser um simples tipo penal violado, uma
relação de causa e efeito, convertendo-se em uma ação resultante de
um complexo contexto (JACCOULD, 2005) histórico-cultural-social-político-econômico etc; (iv) reconhece-se a vítima e o agressor
como protagonistas, atores do processo, possibilitando acordos que
questionam a relação entre crime e pena, justiça penal e punição; (v)
constrói-se a justiça partir das expectativas das vítimas; (vi) apesar
de admitir a utilização do cárcere e ainda considerar de suma im- 195 -
portância a conservação das garantias processuais e penais (PALLAMOLLA, 2009), esse tipo de justiça desloca o núcleo identitário
do Sistema de Justiça Criminal, na medida em que a retribuição-punição não é o fim almejado, mas sim a resolução do conflito com a
verdadeira satisfação dos envolvidos; e (vii) o paradigma restaurativo (relacional) coloca em xeque também as teorias justificativas da
pena ao propor outras formas de pensar e responder a tais condutas.
Estando presentes essas características centrais – participação da vítima, o deslocamento da prisão da posição dominante no
núcleo identitário do sistema de justiça, a possibilidade de acordo
entre as partes e a retirada dos operadores jurídicos do protagonismo
do processo (ACHUTTI, 2016) –, resta identificado um novo modelo de intervenção do sistema criminal que se contrapõe à tradição
dominante. Desvincula-se, nesse sentido, da burocracia exagerada
e do método de atribuição de culpa a um sujeito específico, voltando-se para a solução satisfatória da situação-problema, em que a
vítima possa acessar o reconhecimento da violência (dano) sofrida e
o agressor possa ser devidamente responsabilizado sem necessariamente ser punido mediante uma pena, uma inflição de dor.
Atualmente, por sua confusão de sentidos, a justiça restaurativa se estabelece enquanto um movimento internamente complexo
(JOHNSTONE; VAN NESS, 2007), desenvolvido e atualizado com
fundamento em suas experiências práticas do global ao local.
Resultante desse seu conceito aberto e fluido, diversas são
as compreensões acerca da sua finalidade, subdividindo-se em três
principais: (1) a oportunidade do encontro: concepção que afirma a
ideia central de que a vítima, o ofensor e demais sujeitos interessados precisam ter a oportunidade de se encontrar em um local com
símbolos e significados diversos da justiça formal. Nessa acepção,
entende-se que a justiça restaurativa oferece aos envolvidos um papel de protagonismo na resolução de seus conflitos (com a presença
de um facilitador), em que o diálogo se torna o instrumento para alcançar melhores resultados; (2) a reparação do dano: tal concepção
defende que o dano causado à vítima deve ser reparado, pois a reparação é o elemento central da justiça, não sendo necessário infligir
dor ou sofrimento ao agressor. Ainda, afirma-se que esse modelo de
justiça, para além de reparar o dano, propicia o restabelecimento do
autor do fato e a restauração da comunidade afetada; e, por fim, (3) a
- 196 -
transformação: adeptos dessa concepção defendem que a finalidade
principal da justiça restaurativa é transformar o modo de os sujeitos
se perceberem e se relacionarem uns com os outros no cotidiano
das sociedades. Adota-se, portanto, a justiça restaurativa como uma
filosofia de vida que conecta profundamente os indivíduos (JOHNSTONE; VAN NESS, 2007; PALLAMOLLA, 2009).
A implementação bem-sucedida dessa estrutura de pensamento alternativa, seja qual for a concepção adotada ou a inter-relação
entre elas, está condicionada à observação de novos princípios e valores que orientarão as novas práticas propostas de solução de conflitos violentos.
Valores e princípios: evidenciando a oposição ao sistema punitivo
Os valores da justiça restaurativa podem ser divididos, segundo Braithwaite (2003), em três categorias fundamentadas em tratados internacionais e experiências empíricas21. A primeira categoria
é dos valores que devem ser obrigatoriamente observados nos processos restaurativos, pois entende-se que, na ausência deles, a prática desenvolvida pode se tornar opressiva aos sujeitos participantes
(PALLAMOLLA, 2009; ACHUTTI, 2016; CNJ, 2018a). São eles:
Não dominação: a dominação deve ser contida nos processos restaurativos por outro participante, seja ele um dos sujeitos envolvidos ou o próprio facilitador ou mediador. Tal valor é afirmado
justamente porque, em qualquer interação social, há a possibilidade
de o desequilíbrio de poder se fazer presente, e isso precisa ser minimizado e até mesmo combatido.
É imprescindível considerar esse valor como obrigatório, posto que a tradição do sistema punitivo é reproduzir as relações de
dominação, hierarquizando os sujeitos. Inclusive, muitas vezes os
próprios atores do judiciário exercem tal prática, já que operam a
justiça segundo um modelo vertical de resolução de conflitos, neutralizando vítimas e agressores.
21 Pela abertura conceitual, existem outras concepções acerca dos valores e de suas categorias
que também merecem ser consideradas (cf. JOHNSTONE; VAN NESS, 2007); entretanto,
a opção teórica feita aqui se justifica pelo fato de o autor ser considerado precursor desse
saber-fazer justiça e por apresentar um quadro mais completo e complexo acerca de questões
que precisavam ser enfrentadas frente às diferenças intransponíveis entre os paradigmas trabalhados.
- 197 -
Empoderamento: como uma consequência do imperativo da
não-dominação, surge o empoderamento como valor associado ao
equilíbrio de poder. Trata-se de garantir que todas as pessoas envolvidas no conflito tenham e exerçam suas vozes, desejos e percepções.
Esse é um valor indispensável, pois se defronta com dois sentidos organizacionais da racionalidade penal moderna: seu autorretrato essencialmente punitivo e a justificação da punição como uma
obrigação ou necessidade. Assim, ao conceder validade discursiva
mediante a disposição do poder da fala e da construção, são os sujeitos envolvidos que irão decidir sobre a solução mais satisfatória para
o conflito vivenciado, sendo que a pena/punição não se constitui na
única via de acesso à justiça e nem o fim almejado. Ao oportunizar
a participação ativa aos implicados, especialmente à vítima, o restaurativismo se torna um novo paradigma que se coloca contra a
tradição vigente.
Respeito aos limites legais: os procedimentos restaurativos
nunca poderão ter consequências ou resultados superiores ao da
justiça penal no que tange à sanção, ou seja, o desfecho não pode
estar relacionado a uma imposição de degradação e/ou humilhação
ao agressor.
Percebe-se, nesse sentido, um sistema de ideias que está profundamente comprometido não apenas com as vítimas do conflito
e/ou da violência, mas com as vítimas de um subsistema jurídico,
como é o sistema de justiça penal, reprodutor dos mais diversos marcadores de desigualdade e seletividade.
Escuta respeitosa: esse valor é pressuposto básico para a participação, inclusive servindo de limite ao empoderamento excessivo
que pode se refletir em dominação. Todos os participantes devem
respeitar o momento de fala do outro e escutar respeitosamente todas essas falas. Representa, nesse sentido, igualdade entre os sujeitos e objeção a qualquer reação desproporcional.
A escuta respeitosa indica um paradigma que se preocupa
com os sujeitos e está comprometido com a não revitimização. Considerando que é possível produzir conhecimento e acessar resoluções racionais mediante a participação das pessoas, o falar e o ouvir
se estabelecem como práticas solidárias ao outro; práticas de reconhecimento, de validade discursiva e de possibilidade de existência
e resistência.
- 198 -
Igualdade entre as partes: pressupõe-se, segundo esse valor,
que todas as pessoas devem ter suas necessidades acolhidas nos processos restaurativos. Não a igualdade formal, princípio da racionalidade penal moderna, e sim uma real preocupação igualitária que
compreenda diferenças, capacidades, identidades e consiga acessar
de forma diversa os interesses de cada participante, dando a eles a
atenção devida.
Accountability/Appealability: sem tradução literal para o português, esse é um dos valores mais defendidos, por corresponder
à possibilidade e ao direito de qualquer pessoa envolvida em um
conflito optar entre o processo judicial tradicional e o processo restaurativo.
Esse valor compreende a justiça restaurativa como outro meio
de acesso à justiça, não “o” meio. Entretanto, também revela o núcleo de um sistema que não se pretende hegemônico, sendo um interessante indicativo de preocupação com sua própria constituição.
Essa convivência entre modelos de justiça diversos, portanto, é possível. No que concerne o Sistema de Justiça Criminal, esse
valor retrata a possibilidade da permanência da justiça penal tradicional e, consequentemente, a permanência de um sistema de justiça que se articula à hegemonia opressora e à funcionalidade de
sua eficácia. Do mesmo modo, seria possível a operacionalização da
justiça restaurativa articulada aos grupos de oprimidos e excluídos,
instituindo uma perspectiva crítica que coloca esse modelo de justiça sempre como uma alternativa positiva.
Mesmo diante dessa problemática, o importante é verificar
que a emergência da justiça restaurativa também parte da autonomia
de vontade dos sujeitos, da voluntariedade e das múltiplas possibilidades de se resolver um conflito face à pluralidade intersubjetiva
dos indivíduos. Inclusive, a voluntariedade é uma das características
primordiais de diferenciação entre a justiça restaurativa e o modelo
retributivo (PALLAMOLLA, 2009), dado que a justiça retributiva
impõe a responsabilização ao ofensor mediante a sanção; já na justiça restaurativa, não há essa imposição – ao menos em suas proposições –, pois o ofensor é percebido como um sujeito capaz de
reconhecer sua responsabilidade e reparar o dano causado.
Respeito aos direitos humanos: é preceito desse modelo de
justiça o respeito aos direitos humanos fundamentais, especialmente
- 199 -
aqueles previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos
e na Declaração dos Princípios Básicos da Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, assim como aqueles
constantes em outros documentos internacionais.
Este representa mais um valor que desorganiza as estruturas
da racionalidade penal moderna, pois, se existe uma relação paradoxal entre a justiça penal e os direitos humanos, na justiça restaurativa
esses direitos são vistos como aliados fundamentais na busca por
melhores condições materiais de vida para todas e todos.
Já na segunda categoria, estão os valores que orientam os
procedimentos, devendo ser encorajados enquanto objetivos dos
encontros efetivados (BRAITHWAITE, 2002). Nesse grupo, está a
possibilidade de reparação dos danos materiais, a minimização das
consequências emocionais do conflito, a restauração da dignidade
humana, a prevenção de futuras ações danosas etc.
Esses valores, mais uma vez, reafirmam um modelo de justiça que não vê na pena sua finalidade exclusiva; ao contrário, em
profunda preocupação com os sujeitos, em especial com a vítima,
busca-se uma solução que transpasse todos os níveis do conflito.
Apesar de a prevenção figurar como um valor nessa categoria, verifica-se que ela não está relacionada com a finalidade da pena (um
instrumento preventivo de garantia social); diversamente, refere-se
a uma das possibilidades de impacto social ante a oportunidade do
encontro, da reparação do dano e/ou da transformação.
Por fim, na terceira categoria, se encontram valores emergentes, não obrigatórios aos participantes (BRAITHWAITE, 2002):
perdão, desculpas, censura do ato, remorso, entre outros. São sentimentos advindos da participação individual, do exercício da conscientização crítica e da subjetividade potencializada. Demonstram,
dessa forma, a importância de processos que valorizem os sentimentos espontâneos que emergem do reconhecimento do outro e da possibilidade de praticar a solidariedade responsável.
Já no que tange aos princípios básicos, estes se encontram
firmados na Resolução nº 2002/12 do Conselho Econômico e Social
da Organização das Nações Unidas (ONU), devendo ser utilizados
como orientadores dos programas de justiça restaurativa em matéria
penal. A instauração de tais princípios se relaciona às emergências
acerca desse modelo, como definição, a metodologia de uso, a ope- 200 -
racionalidade dos programas, as atribuições dos facilitadores e as
possibilidades de desenvolvimento.
A referida resolução faculta aos Estados-membros da ONU
a adoção dos seguintes princípios na implementação de programas
de justiça restaurativa: imparcialidade do facilitador, com a devida
preocupação igualitária acerca das necessidades dos sujeitos participantes; a confidencialidade, proporcionando um ambiente seguro,
sem julgamentos e novas implicações jurídicas; a voluntariedade
das partes, como prática contradiscursiva às imposições; a presunção de inocência, a fim de garantir que o reconhecimento dos fatos
não configure culpa legal com consequente responsabilização penal;
a razoabilidade e a proporcionalidade em relação ao acordo alcançado.
Estabelecendo diretrizes estruturais a serem observadas, confirma-se a preocupação com a satisfação e a segurança dos sujeitos
envolvidos, prevenindo práticas equivocadas que possam gerar riscos. Tais orientações são necessárias na medida em que a justiça restaurativa se pretende um modelo de justiça com melhores propostas
de resolução de conflitos e violências.
Apreender os modos de vida dos indivíduos envolvidos em situações conflitivas e dar significado às raízes dos problemas a nível macro
representa a permissão para os elementos externos contribuírem para
a transformação do intervir na questão criminal de maneira contínua e
flexível, confirmando que é no diálogo entre teoria e prática onde reside
o potencial crítico de enfrentamento à realidade que oprime.
As promessas da justiça restaurativa para as mulheres vítimas de crimes de gênero
A justiça restaurativa vem ganhando força em diversos países,
proporcionando amplos debates sobre seus objetivos, sua competência e sua aplicação em diferentes graus e especialidades da justiça.
Nos últimos anos, tem se colocado, inclusive, como uma alternativa
para solucionar conflitos que envolvem violências de gênero, propondo-se a oferecer respostas satisfatórias a esse tipo de conflito
violento tão arraigado à reprodução social dos marcadores das desigualdades.
E não se estranha esse percurso, já que a idealização desse
modelo de justiça passa também pela crítica vitimológica e dos mo- 201 -
vimentos de mulheres. A indagação que se faz é: o que a justiça
restaurativa promete de diferente? Por que abandonar a união estratégica com o sistema punitivo e se aliar a um paradigma restaurativo
de justiça?
Em primeiro lugar, quando se fala de vítima na justiça restaurativa, nos estamos referindo a um conceito mais amplo dessa
categoria do que a mulher individualizada, concretamente lesionada (LARRAURI, 2007). Mesmo que o procedimento dialogado e
a participação dos sujeitos envolvidos sejam marcos da distinção
desse modelo de justiça, a possibilidade de compreensão da raiz do
problema leva a outras dimensões, a outros marcadores sociais da
violência.
Nesse sentido, por ter em sua origem a contraposição ao sistema penal, sua primeira promessa reside em ser uma alternativa
transformadora, na medida em que representa valores e princípios
distintos (LARRAURI, 2007). Compreender a justiça restaurativa
dessa forma é, inclusive, uma chance de evitar erros quando incorporada ao sistema tradicional. Contudo, ser uma alternativa não
implica renunciar a todos os princípios do direito penal – podendo
ainda se vincular a ele; tampouco implica a dispensa dos recursos
do sistema penal, dado que muitas vezes irá contar com a polícia,
com os advogados, com os juízes, com os recursos sociais e com o
sistema penal para garantir o cumprimento do acordo ou a reação
frente ao descumprimento (LARRAURI, 2007). Ser uma alternativa
está intrinsecamente ligado a renunciar a repressão, a opressão e a
exclusão como modus operandi do fazer justiça.
Não se ignora que ambos os sistemas apresentam vantagens e
desvantagens e que vão esbarrar em inúmeras limitações em relação
à erradicação da violência contra a mulher. O que se apresenta é um
novo modelo que não busca solução através de um processo penal e,
mesmo assim, pode alcançar de forma mais satisfatória os próprios
objetivos do sistema tradicional: responsabilização, reparação e reintegração (DALY, 2002), sem abrir mão das garantias de direitos.
O reconhecimento também figura como um compromisso,
pois se o crime é um sinal de desprezo pela vítima, “[...] o que se espera da justiça é a negação desta humilhação, isto é, a manifestação
de um reconhecimento” (GARAPON; GROS; PECH, 2001, p. 289).
Na reconfirmação pública de que o sujeito vítima tem valor, confi- 202 -
gurando uma aliança da democracia com a reafirmação do princípio
da igualdade entre as pessoas, garante-se a capacidade de agir da
mulher vitimada.
Entre os reconhecimentos que podem ser alcançados pelas
mulheres vítimas, encontram-se: (a) o poder de agir em justiça, sendo a mulher autorizada a denunciar seu agressor e acusá-lo. Fazer
a queixa é o primeiro sinal de restauração/reconstrução, podendo a
mulher voltar a ser ativa e requerer o reconhecimento do dano causado – oportunidade de dissolução do ressentimento; (b) o ter sua
resposta sobre as motivações; (c) a oportunidade de um espaço para
comunicar seu sofrimento; (d) o frente a frente com o agressor como
negativa de que o confronto tem que ser com a lei. Nesse sentido, o
encontro, direto ou indireto, entre vítima, ofensor e comunidade de
apoio é indicativo de mudança profunda nas representações penais.
É esse o momento em que reside a esperança de que o reconhecimento revele o sofrimento ilegítimo da vítima, bem como que possa
pôr fim ao desprezo e à incerteza das consequências, e (e) a possibilidade de o ofensor receber e entender o ressentimento da vítima,
com o consequente reconhecimento dos fatos, como uma espécie de
confissão pública (GARAPON; GROS; PECH, 2001).
Receber um bom tratamento e vivenciar corporalmente a valorização tem imprimido nas mulheres vítimas novos registros em
suas memórias e criado novas disposições internas de amor-próprio
e confiança (FULCHIRON, 2017). Resulta desses processos a substituição da desvalorização, inscrita nas suas vidas pela violência, por
um novo arranjo positivo de validade discursiva e material, por meio
do qual se permite a negação das relações violentas e danosas, mesmo diante da pressão cultural-social.
No exercício da conscientização da violência, as mulheres
podem encontrar o poder da fala e da escuta, o discernimento sobre suas necessidades, interesses e desejos, à margem dos mandatos
machistas, sexistas, patriarcais, racistas e classistas dominantes. Ao
retirar seus conflitos da ordem do simbólico, criam seus próprios
símbolos e valores (PISANO, 2004), desenham suas próprias vidas
e podem, finalmente, ser responsáveis por si e se compreenderem
enquanto plurais. Nesse cenário, práticas que estimulem o reconhecimento são fundamentais, pois valorizam o sujeito histórico e a ele
dão a oportunidade de construir o sentido de justiça. No caso das
- 203 -
mulheres, ainda mais profundo, permite que o ato de reconhecimento também seja um desafio à morte, à submissão e à desumanização.
O reconhecimento começa, portanto, na atestação pública da
violência e das barreiras que não podem ser ultrapassadas nas relações. Com isso, nos procedimentos restaurativos, será possível não
apenas compreender a identidade de vítima, mas proporcionar seu
uso de forma subversiva, deslocando-a do contexto universal, essencialista, unificador e conservador acerca das representações sociais
vigentes (FERREIRA, 2018). É, portanto, um processo de autovalorização e autoafirmação que aumenta o sentimento de legitimidade
pessoal e coletiva sem desconsiderar as diferenças.
A justiça restaurativa obriga-se, assim, a ser uma metodologia de despertar de consciências tanto para a vítima quanto para o
ofensor. Inicialmente porque, ao contrário do modelo retributivo
promotor de culpabilidade, ela leva à responsabilidade. Ao agressor
é reservada a chance de compreender o dano causado, medir as consequências e suscitar uma tomada de consciência a fim de despertar
em si uma prudência, anulando os sinais de desprezo (GARAPON;
GROS; PECH, 2001). Já à vítima destina-se a esperança de que –
de um fato isolado a uma violência contínua – consiga perceber os
significados do dano para além da relação interpessoal, compreendendo sua identidade coletiva no interior das estruturas sociais e das
relações de poder.
Para que a mulher possa existir e reviver depois de suportar
experiências cruéis, é fundamental que a sociedade reconheça o que
ocorreu e o que o dano representou para essa mulher. Poder falar
e ser ouvida muitas vezes é o que representa a justiça para as vítimas; dizer suas verdades para se sentirem reparadas (FULCHIRON,
2017). Esse é o espaço de fala que a justiça restaurativa pretende
entregar: um espaço social de escuta que valide sua experiência danosa e que dê a essas mulheres um lugar na história, para que possam romper o silêncio e aliviar seus corações sem serem julgadas e
estigmatizadas.
Ainda, com a possibilidade de um serviço de apoio às vítimas, elas poderão compartilhar suas histórias com outras mulheres
e confirmar que não estão “loucas” e que não se trata de um “problema de uma”, mas sim de um grave problema social e político que
marca as sociedades. Restaurar/reconstruir também significa deixar
- 204 -
de explicar a violência como um destino do ser mulher no mundo e
começar a inscrever a especificidade desse conflito violento em uma
explicação social e política.
As violências de gênero muitas vezes implicam a elaboração
de um trauma que se reflete em um processo complexo de desarticulação a nível corporal, emocional, cognitivo e energético da percepção acerca da imposição patriarcal. Se livrar dessa culpa, que não
raras vezes é imprimida na subjetividade, requer iniciar um longo
caminho de construção de autonomia sobre sua própria vida (FULCHIRON, 2017). Passando por dar nome ao sentimento, desarticular
a culpa e se autoafirmar coletivamente, surge o direito de reparação
como um fazer justiça.
A reparação também é uma promessa da justiça restaurativa,
situando-se no prolongamento do reconhecimento; ou seja, não há
possibilidade de reconhecimento sem reparação do prejuízo (GARAPON; GROS; PECH, 2001). Pela racionalidade que a sustenta,
por óbvio não se trata de uma reparação abstrata – como a pena
–, apesar de não deixar de reconhecê-la. O novo modelo de justiça
postula uma reparação mais concreta, de acordo com as necessidades das vítimas, criando condições de uma autêntica reconstrução
para evitar um tratamento único para todas e todos, sem respeito às
especificidades dos sujeitos e das situações.
A reparação tem em seu núcleo diversos sentidos. Entre eles
está a responsabilização, o reconhecimento, o acordo entre os sujeitos a partir das necessidades da vítima e da disponibilidade do
ofensor, e a reconstrução da relação – não no sentido de manter a
relação posta, mas de um despertar de consciência que signifique
a possibilidade de outras relações (GARAPON; GROS; PECH,
2001). Por isso, a reparação na justiça restaurativa é ampla, dispondo de inúmeras possibilidades conectadas aos seus princípios e valores norteadores.
O direito à memória histórica também deve ser central para as
estratégias de reparação e justiça, e é por isso que a justiça restaurativa pode ser considerada também um paradigma emergente para as
mulheres vítimas de violência. Ao possibilitar participação ativa nos
processos e se propor autônoma à justiça penal tradicional, a justiça
restaurativa se consolida como um modelo de justiça que, para ser
operacionalizado, não precisa de nenhuma autoridade ou lei patriar- 205 -
cal, encontrando seu resultado satisfatório na própria vítima, na sua
dignidade, liberdade e bem-estar (FULCHIRON, 2017).
Ter a vítima como sujeito ativo é conhecer a história desde as
vozes e experiências das mulheres, alimentando um intenso interesse pelo conhecimento das realidades diversas. Mediante a validade
discursiva crítica, o conflito poderá ser percebido como não necessariamente individualizável, para além da situação-problema. O exercício da criticidade parte das vítimas para revelar a importância de
abordar o núcleo ideológico e as estruturas de poder de um sistema
como o da justiça penal tradicional.
Contar histórias como produção de memória coloca no centro
do restaurativismo uma justiça com alto potencial de construir territórios de paz, liberdade e bem viver para todas as mulheres. Apesar
de não se pleitear por impunidade, nesse âmbito o castigo penal não
garante que essas experiências sejam contadas, de forma que a dimensão das violências de gênero não pode ser resolvida unicamente
através do modelo vigente. Nenhum sistema carcerário teria a capacidade de abarcar todos os violadores de mulheres, e esse fim não
permite trabalhar sobre as causas socioculturais da violência com o
objetivo de erradicá-la (FULCHIRON, 2017).
Demanda-se uma justiça que trace estratégias sociais e políticas de longo prazo para acessar questões tão complexas e buscar
uma erradicação de todas as violências que perpassam a condição de
mulher vitimada. Talvez seja utópico pensar que poderíamos chegar
a um ponto de descobrir esse modelo de justiça; entretanto, a demanda não espera. É imperativa a abertura ampla para as possibilidades
do real que propõem um trabalho coletivo, jurídico e/ou comunitário, com potencial de transformação das mentalidades e das práticas
sociais sustentadas até então pela racionalidade penal moderna.
A justiça não pode ser norma ou processo, pois a justiça é
vida. Ela deve ser dignificante, reparadora, garantidora da oportunidade de reconstruir vidas e relações sociais, sem medo nem vergonha. Isto não invalida a justiça retributiva, mas coloca a justiça restaurativa como um futuro de promessas que a complementam (ou,
no melhor dos casos, a transformam) a partir de novas fórmulas. Representa o partir da validade discursiva das vítimas para reconhecer
suas possibilidades de existência (validade material), respondendo
às suas demandas com novos caminhos que integrem a reconstrução
- 206 -
e transformação das vidas coletivas e da sociabilidade, colocando as
mulheres como parte constitutiva das propostas políticas e filosóficas do (re)construir uma nova intervenção criminal.
Delineando potencialidades e riscos
Como nem sempre as promessas fazem parte da estrutura pulsional que almeja transformações e concretizações, residindo por
vezes no campo das abstrações que não passam de ilusões simbólicas, é sempre importante ponderar não apenas as possibilidades
positivas, mas principalmente as negativas, uma vez que a construção de um novo paradigma crítico está profundamente conectada ao
bem-estar dos participantes.
No que tange à justiça restaurativa, há inúmeras preocupações
com sua aplicação no âmbito dos crimes de gênero, já que pode
ser contraproducente para as mulheres que as violências sofridas recebam outra intervenção criminal, diversa do restante dos delitos
(HUDSON, 2002). Ainda, predomina o receio em relação ao encontro direto entre vítima e ofensor, seja qual for a prática restaurativa
desenvolvida, considerando que talvez nunca haja um equilíbrio de
poder entre os sujeitos envolvidos, e a mulher não poderia ingressar
em tal procedimento estando em situação de vulnerabilidade após
uma violência sofrida (LARRAURI, 2007).
A mulher vítima teria o que mediar? O que se pretende restaurar? Essas são outras questões que mobilizam oposições à justiça
restaurativa nesse âmbito. Verifica-se uma grande desconfiança de
que as práticas podem estar a serviço de salvar a instituição familiar,
especificamente nos casos de violência doméstica (LARRAURI,
2007), não se preocupando com as formas violentas de consolidação
dessa instituição.
Ao contrário, a insatisfação das vítimas com o funcionamento
do sistema de justiça penal já seria um forte argumento a favor das
vantagens da aplicação da justiça restaurativa (HUDSON, 2002),
porque a crítica mais concisa, desde uma perspectiva da criminologia feminista, alerta para a sua inefetividade. Mesmo diante de
concepções distintas acerca dos desdobramentos criminológicos da
relação entre violência de gênero e poder punitivo, autoras como Soraia Mendes, Elisa Girotti Celmer e Carmen Hein de Campos vêm
delineando como, no Brasil, o processo de recrudescimento da legis- 207 -
lação criminal também afetou diretamente as vítimas e as mulheres
autoras de crimes.
Recorda-se, nesse sentido, as principais críticas: incapacidade
de resolução efetiva dos casos mais graves e poucas denúncias em
relação a eles; condenações relativamente benevolentes; revitimização da mulher que acessa o sistema e a falha na erradicação da
violência (LARRAURI, 2007), além da dificuldade de operacionalização do sistema penal quando a mulher não se enquadra no estereótipo da “vítima ideal” (HUDSON, 2002), o que reforça a sua
seletividade, na medida em que algumas mulheres recebem mais recursos e tratamento de qualidade, enquanto outras conhecem o lado
mais perverso do sistema, o que leva a uma nova vitimização, agora
institucional.
Constata-se das pesquisas desenvolvidas no âmbito internacional que as vítimas participantes dos procedimentos restaurativos
afirmam terem sido tratadas de forma justa (LARRAURI, 2007), o
que constitui uma vantagem fundamental para essas mulheres. Claro
que muitas vítimas não acessam o sistema penal, o que não pode ser
explicado simplesmente como produto do desconhecimento dessa
via de acesso à justiça. A problemática que se levanta, portanto, é
que, em inúmeros casos, as mulheres conhecem essa possibilidade,
mas a julgam inadequada por diversas razões, como vínculo emocional, medo do agressor, não ter interesse em uma punição etc. Por
esse ângulo, não basta haver uma justiça repressiva dos atos que
causam sofrimento, faz-se necessária, fundamentalmente, uma justiça justa e adequada, capaz de ser enxergada como uma via satisfatória frente às necessidades das vítimas.
Em geral, apostar no papel ativo da vítima e do ofensor seria
a alternativa para superar a inefetividade das promessas da justiça
penal, principalmente por romper com a mentalidade de que os profissionais/especialistas são os mais aptos a decidir acerca das soluções mais satisfatórias para os problemas postos, concedendo maior
protagonismo aos sujeitos envolvidos. Parece ser coerente afirmar,
também, que permitir uma maior participação da vítima em todo o
processo é uma dinâmica que favorece o respeito à autonomia da
mulher (HUDSON, 2002).
Em pesquisas desenvolvidas acerca da participação em processos restaurativos, verificou-se que as pessoas ficaram muito satis- 208 -
feitas, afirmando preferência por submeter-se a esses procedimentos
em detrimento do sistema penal tradicional. Geralmente, os altos
índices de satisfação estão atrelados aos sentimentos de justiça informacional, interacional e procedimental experimentados ao longo
da aplicação das práticas restaurativas, as quais diminuem as chances de revitimização e têm potencial para evitar a prática de novas
agressões do mesmo agressor contra a mesma vítima (CNJ, 2018b).
O empoderamento da vítima também representa uma das vantagens, pois é a possibilidade concreta de fala e construção do seu
futuro a partir das suas necessidades e do seu reconhecimento enquanto sujeito ativo, bem como de participação na resolução da sua
situação conflitiva. Investigações empíricas têm comprovado que a
possibilidade de explicar suas histórias e de serem escutadas favorece o entendimento das vítimas, no sentido de que a participação na
justiça restaurativa é algo muito positivo em suas vidas (LARRAURI, 2007). Essa oportunidade se torna extremamente relevante dado
que é muito comum que suas histórias de violência sejam consideradas como narrativas exageradas, assim como que sejam julgadas
por supostamente contribuírem para o acontecimento da violência
sofrida. O exercício da fala e da escuta passa a ser instrumento em
potencial para atingir a validação dessas narrativas mediante outras
vivências, reconhecendo nas outras sua forma de vida violenta e
opressora.
Do mesmo modo, os ofensores também podem ser empoderados positivamente, com um despertar de consciência que o/a coloca no lugar de responsabilização e ação, frente à oportunidade de
reparar os danos e se reintegrar à comunidade. É possível, ainda,
que os membros dessa comunidade (territorial ou de apoio) também
sejam empoderados para resolver os seus conflitos comunitários e
para ajudar a traçar planos de acolhimento das pessoas envolvidas
nas situações de violência (ROSENBLATT; MELLO, 2015).
O empoderamento também flui do reconhecimento. Sentir-se
reconhecido propicia aos participantes o encontro de um terreno seguro, os capacitando a alcançar melhores compreensões de si e dos
outros. Assim, os dois processos se retroalimentam, devem ser mutuamente dependentes. Ressalta-se que o empoderamento baseia-se
na compreensão das relações de poder, não como percepções preconcebidas de uma inevitável dominação masculina, mas como um
- 209 -
padrão complexo de ação, de busca de sobrevivência, de autopreservação e, também, de conciliação e de um pouco de paz (PELIKAN;
HOFINGER, 2016). Isso deve ser o empoderamento – concreto e
não meramente um slogan.
As práticas dialogais, principalmente as operadas no encontro direto dos sujeitos, seriam outro ponto favorável, por terem uma
grande utilidade nos conflitos de natureza relacional, potencializando socialmente as pessoas para que possam expressar livremente
suas versões dos fatos. Os que defendem a aplicação desses procedimentos afirmam o elevado índice de probabilidade de resultados efetivos, por observar as peculiaridades que envolvem vítima e
ofensor e por possibilitar respostas mais flexíveis e construtivas, ao
contrário da aplicação de regras jurídicas que não consideram tais
aspectos. Tal flexibilidade viabiliza o reconhecimento de diversos
grupos de vítimas, inclusive as que não querem denunciar e as que
não desejam o rompimento da relação afetiva.
Outro argumento relevante que sustenta a possibilidade de
aplicação de práticas restaurativas em conflitos domésticos marcados por violência contra a mulher, é a verificação empírica de que a
maioria das vítimas não deseja a punição do seu agressor, enxergando o processo criminal como um procedimento imediato para cessar a violência. As pesquisas vitimológicas sugerem que: (1) grande
parte das vítimas querem coisas diferentes da punição; (2) as vítimas
de crime, de modo geral, não são mais punitivas que as não-vítimas; (3) não há evidência de que ser vítima de crime lhe tornará
mais conservador em relação a alternativas penais; (4) a maioria das
pesquisas de vitimização (victimisation surveys) revela um grande
apoio das vítimas às medidas alternativas ao encarceramento; e (5)
não há evidência de que sentenças mais rígidas para ofensores têm
efeitos positivos sobre a saúde mental das vítimas etc. (CNJ, 2018b).
A justiça restaurativa propõe, então, uma forma de enfrentar
o problema público das violências de gênero diversificando a forma
de responder a essas demandas sociais, mediante a ampliação da
rede de proteção e oferecendo à mulher um espaço de tratamento
humanizado e igualitário.
Todavia, apesar da abordagem acerca das vantagens ser inevitável, um paradigma emergente crítico deve dar prioridade para a
análise de seus riscos, pois não cumpre apenas o papel de apresentar
- 210 -
resultados satisfatórios, mas principalmente assume o lugar de apresentação de uma justiça que se preocupa com os sujeitos e busca
evitar novas vitimizações.
Tratando-se aqui de crimes de gênero, faz-se necessário frisar
que os procedimentos restaurativos podem apresentar alguns riscos
específicos que fundamentam os argumentos contrários à sua utilização. Um dos mais comuns trata sobre o desequilíbrio de poder
entre mulheres e homens, que por vezes é desconsiderado durante o
processo restaurativo, podendo conduzir a uma revitimização (CNJ,
2018b). As práticas restaurativas conduzidas sem observação de
seus princípios e valores podem, ainda, contribuir para que a mulher
permaneça em situação de violência e dominação, em face do convívio com o seu agressor. Isso se dá em razão da informalidade dos
processos, o que pode favorecer a manipulação por parte do ofensor,
que poderia se valer do procedimento para culpabilizar a vítima pelo
ocorrido (CNJ, 2018b). Nesse caso, não só o frente a frente (encontro direto entre vítima e agressor) pode ser autenticamente perigoso,
como também a participação da comunidade pode ser inefetiva, já
que a violência contra a mulher possui algum respaldo social. O
temor justamente reside no fato de que qualquer intervenção com a
participação da vítima pode resultar em sua revitimização, por estar completamente exposta em sua corporalidade física e emocional.
Estando frente ao agressor, sua proteção nunca estará totalmente garantida, e não necessariamente uma intervenção restaurativa a auxiliará no alcance de sua autonomia (LARRAURI, 2007).
Outra questão de oposição levantada é a chance de banalização da violência, com a relativização da gravidade dos fatos. Há um
entendimento de que, em países onde a justiça restaurativa não é
aplicada em crimes graves, requerendo obrigatoriamente a intervenção punitiva do Estado, as violências de gênero acabam por ser banalizadas, equiparando-se simbolicamente ao rol de crimes de menor potencial ofensivo. Nesses casos, ocorre uma descriminalização
da violência masculina, produzindo retorno ao estado de problema
“privado” ou particular (MORRIS, 2005).
Apresenta-se, também, a dificuldade de transpor técnicas de
mediação que provêm de outras tradições jurídicas, já que há inúmeras especificidades locais e culturais de iniciativas restaurativas,
e a violência é um fenômeno que se materializa com um caráter
- 211 -
social, ou seja, é profundamente vinculada à mentalidade de uma
comunidade concreta. Portanto, a importação de métodos baseados
em outra cultura não viabiliza a solução efetiva do conflito, devendo
ser implantadas técnicas alternativas fundadas pela própria sociedade local.
Outro ponto relevante é que o princípio da obrigatoriedade e
da indisponibilidade da ação penal pública afirma a residualidade da
competência da justiça restaurativa no nível processual penal, negando mais uma vez a autonomia da vítima frente à possibilidade de
escolher outra via de acesso à justiça (CNJ, 2018a). Assim, é comum
que sujeitos envolvidos em uma situação conflitiva vivenciem tanto o processo criminal quanto o processo restaurativo, demarcando
seus lugares de fala e o poder intransponível do Estado em relação
aos indivíduos.
Igualmente, é bastante comum a crítica de que a justiça restaurativa resulta em um aumento da rede de controle social, visto
que não abre mão da responsabilização do ofensor e que as penas recebidas pelos infratores de menor risco tendem a ser mais invasivas
do que seriam em outras situações (MORRIS, 2005). Nesse cenário,
há a possibilidade de que algumas iniciativas de justiça restaurativa
não rompam com a lógica do sistema de justiça comum, podendo
complementar a justiça criminal não em sentido de transformação,
mas com intenção de aumentar as possibilidades de expansão da
rede de controle, inaugurando programas que unem o formal e o
informal, saber leigo e expertise (TONCHE, 2015).
Assim, dependendo da forma como se concebe a relação entre
justiça restaurativa e sistema penal, haverá o risco de relativização
das violências de gênero. Se o modelo alternativo não se apresentar
como uma forma efetiva de intervenção fora dos moldes atuais do
sistema penal, os riscos serão maiores e tão danosos quanto os padrões de operação do paradigma punitivo.
Considerações finais
Na trama de poder e controle de uma situação de violência, é
possível captar muitas coisas, entre elas, o lugar do direito no trajeto
das mulheres vítimas. Em relação ao Sistema de Justiça Criminal,
racionalidade orientada pelo paradigma punitivo, já se sabe que ele
não é capaz de traduzir as violências que não estão marcadas visi- 212 -
velmente na carne, sendo um instrumento que não lhes serve como
suporte para ver outra possibilidade de vida (PRANDO, 2016). O direito penal, portanto, não auxilia na instauração da conscientização
crítica em substituição ao olhar lançado pela violência, justamente
porque é um lugar onde os conflitos não podem ser resolvidos, apenas reprimidos.
Quando a justiça restaurativa se apresenta como um novo modelo de justiça, o que se espera dela é um direito que se incorpore às
potencialidades da judicialização para além das estratégias punitivas
tradicionais oferecidas pelo direito penal. A dinâmica própria da sua
metodologia produziu a expectativa de que finalmente as mulheres
seriam pensadas no plural, com o enfrentamento da uniformização/
universalização do que se compreende por “vítima”.
O ato de pensar a mulher no centro do processo, reconhecendo suas dores e oferecendo um espaço seguro para que ela participe
da resolução do conflito violento que a vitimou, representou a concessão de um lugar ativo na construção de sua história, impulsionando a reflexão sobre como as relações de violência são constituídas
por diversos sujeitos que estão em movimento e em disputa, apesar
de também se encontrarem em vínculos marcados pelas regras de
poder patriarcais.
Com o deslocamento dos sentidos da relação entre crime e
pena, a justiça restaurativa abriu o caminho para conceber as vítimas não no sentido jurídico dado ao termo, mas como inseridas em
conflitos que não são congelados em partes antagônicas, “[...] dentro do qual há poucas possibilidades de representações de vítimas
possíveis” (PRANDO, 2016, p. 136). Poder ultrapassar a noção da
vítima subjugada ao poder masculino ou da vítima possuidora do livre-arbítrio que opera na tradição do direito, é um dos aspectos mais
marcantes da justiça restaurativa, na medida em que tratar o conflito
pode refletir na apreensão das marcas patriarcais que também são
atravessadas pelas assimetrias de classe, raça e sexualidade, dando
visibilidade a outras violências ativas nessas relações, onde todos os
participantes estão implicados em suas subjetividades.
Na emergência e na criticidade da justiça restaurativa, construída sobre a validade discursiva e material da comunidade de vítimas, acredita-se que é possível acessar uma abordagem do mundo
da vida que traz à superfície as feridas e ferimentos da violência em
- 213 -
suas diversas manifestações. A possibilidade do encontro, mediante
o exercício do diálogo, expõe um terreno ainda não explorado em
profundidade. Talvez essas sejam práticas que revelem nada mais
que uma indicação de disposição para tentar mudar e assumir uma
nova maneira de comunicação e relação entre os sujeitos. Mas é
aí que reside o potencial do começo da transformação que precisa
ser estimulada para causar um impacto duradouro na vida cotidiana
(PELIKAN; HOFINGER, 2016).
Tal compreensão representa o desafio de mudar o caminho e
descentralizar a concepção hegemônica, convocando todas/os/es a
participar da construção de caminhos complementares da justiça que
integrem o sentir como método, e ponham no centro das propostas
filosóficas e políticas de justiça o corpo e a vida das mulheres. Pois
o que é a justiça se não nos sentirmos escutadas, reconhecidas e
reparadas?
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- 217 -
- 218 -
CAPÍTULO 10
Capacitismo:
a diversidade seletiva do mercado de trabalho
Clarissa Constant de Constant
Introdução
A diversidade tem sido tema relevante nos últimos tempos,
principalmente após o surgimento da recente Lei Brasileira de Inclusão, de 2015, que entrou em vigor em 3 de janeiro de 2016. Essa
lei se destina a assegurar e a promover, em condições de igualdade,
o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais das pessoas
com deficiência, visando à inclusão social e à cidadania.
A partir disso, surgem diversas iniciativas de promoção da
inclusão, muitas delas em consonância com a Lei de Cotas, que busca assegurar a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de
trabalho. Instituições, entidades e serviços públicos passaram a planejar e implementar ações de inclusão social; no entanto, percebe-se
o interesse maior no cumprimento da lei e menor no que se refere à
efetiva inclusão das pessoas com deficiência.
A Lei de Cotas traz a obrigatoriedade da contratação de pessoas com deficiência (PCD) para as empresas com mais de 100 funcionários. A quantidade de pessoas com deficiência contratadas varia
de 2% a 5%, conforme o número de trabalhadores na empresa. Há
um estímulo para o cumprimento dessa lei no abatimento do imposto de renda, para que as empresas contratem mais do que é exigido.
No entanto, faz-se necessário que haja capacitação para esse
processo de contratação de PCD, para que de fato possamos incluí-las. A inclusão vai muito além da criação de rampas, instalação de
elevadores e pisos táteis, ou da ampliação das aberturas das portas.
Funcionários e gestores precisam estar preparados para conviver e
lidar com os diferentes tipos de deficiência. O sentimento de pertencimento aos ambientes sociais é primordial para todas as pessoas,
especialmente para as com deficiência, que há décadas lutam contra
a invisibilidade e exclusão.
As pessoas com deficiência atualmente ainda sofrem a segregação, a discriminação, e os olhares e atitudes capacitistas estão
- 219 -
presentes na escola, nos órgãos públicos, nas organizações privadas,
nos transportes públicos, restaurantes e vários outros lugares de convívio social, o que reforça a necessidade do preparo para relações
sustentáveis e ambientes harmônicos frente à diversidade humana.
Diante do mencionado até aqui, podemos direcionar nossa reflexão para a complexidade do reconhecimento da deficiência como
parte da diversidade humana.
O capacitismo vestido de boas intenções
O capacitismo consiste na discriminação, preconceito ou
opressão contra pessoas com deficiência e está presente na barreira
atitudinal. Em geral, ocorre quando alguém considera uma pessoa
incapaz por conta de diferenças e impedimentos corporais, com o
olhar nas supostas “capacidades das pessoas sem deficiência” como
referência para mostrar as supostas “limitações das pessoas com deficiência”. No capacitismo, a ênfase é colocada nas supostas “pessoas capazes”, as quais constituem a maioria da população e são
consideradas “normais”.
As atitudes capacitistas precisam urgentemente ser superadas,
pois o número de pessoas com deficiência o Brasil é bastante expressivo. Segundo o IBGE (2010), no Brasil há 190,7 milhões de
habitantes, sendo que 45,6 milhões de pessoas (23,9%) têm algum
tipo e grau de deficiência, e 35,8 milhões têm algum tipo e grau de
deficiência visual.
Dados como esses demonstram quão significativa é a parcela
de PCD no Brasil, deixando evidente a necessidade de superarmos
toda e qualquer forma de preconceito e discriminação. No entanto,
isso se torna uma tarefa complexa dado o capacitismo estrutural22
existente na sociedade.
As pessoas com deficiência são fortemente subestimadas por
conta de suas limitações, e digo isso também enquanto mulher cadeirante e com dificuldade de dicção, não com o objetivo de privilegiar a minha história, mas, sim, a fim de elucidar esse lugar de fala,
corroborando o de tantas pessoas com deficiência que passam por
situações semelhantes.
22 O capacitismo estrutural constitui-se como algo que está enraizado e naturalizado na
sociedade, passando a ideia de ser apenas consequência das ações individuais, ao invés de um
dos diversos tipos de preconceito estrutural.
- 220 -
Em distintos momentos fui infantilizada pela minha fala, ou
tive minha capacidade posta à prova pelo fato de ser cadeirante. Essas situações ocorrem em diversos momentos do cotidiano, desde
as relações pessoais até a inserção no mercado de trabalho, onde o
capacitismo age de maneira perversa, conforme podemos observar
na charge de Ferraz (2006) abaixo:
Figura 1. Charge
Fonte: Ferraz (2006).
Falas capacitistas como essas da charge muitas vezes são
interpretadas erroneamente como elogios e admiração, quando na
verdade estão vestidas de preconceito em razão do capacitismo estrutural. Quando pensamos sobre preconceito contra as pessoas com
deficiência, logo nos vem à cabeça frases do tipo: “Não tem como
ele fazer isso!”, “Coitada, só tem uma mão!”, mas não nos damos
conta que a supervalorização de atividades normais do dia a dia também é uma face do capacitismo.
Segundo Mello (2016), o capacitismo é a materialização de
atitudes permeadas pelo preconceito que rotulam as pessoas conforme a adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade
funcional. Assim, avalia-se as pessoas com deficiência como menos
- 221 -
aptas ou incapazes de gerir suas próprias vidas, sendo, para os capacitistas, a deficiência como um estado minimalista do ser humano.
Nesse sentido, com o avanço do neoliberalismo e o arcabouço
de desigualdade e exclusão existente nesse sistema, a inserção no
mercado de trabalho formal não ocorre para todas as pessoas, e menos ainda para aquelas com deficiência (ROSA, 2009). As concepções neoliberalistas potencializam a capacidade individual, e, para
alcançar maior espaço no mercado, a competição entre indivíduos é
a principal ferramenta para que o melhor alcance o sucesso (GENTILI, 1996). Tal movimento acaba por provocar o sentimento de individualismo, em que interesses, atenção e preocupações individuais
minimizam o olhar para as causas das minorias, fortalecendo ainda
mais a exclusão e segregação.
Casara (2021) nos provoca a reflexão sobre a sociedade, que
antes se caracterizava pelo autocontrole e pela busca de consenso
entre as diferenças, mas que agora deu lugar à imagem de uma sociedade em constante disputa, na qual as pessoas se percebem como
empresas que estão em concorrência com outras pessoas que também se percebem como empresas, instaurando-se uma espécie de
vale-tudo para obter lucros, alcançar vantagens ou manter privilégios sociais.
Nesse sentido, as PCD raramente são notadas pelas suas potencialidades, e sim pelos seus limites, fomentando ainda mais a exclusão e corroborando o capacitismo. Conceitos como mecanismos
de exclusão, políticas de assistencialismo, caridade, inferioridade,
oportunismo, entre outros, são “construídos culturalmente”. Porém,
seguindo essa lógica, da mesma forma que “[...] conceitos negativos
foram estabelecidos, é possível ‘reconstruí-los’ positivamente, modificando essas questões culturais” (FIGUEIRA, 2008, p. 17).
As barreiras encontradas pelas PCD não são apenas físicas,
mas também socialmente construídas. Para Hammes e Nuernberg
(2015), os entraves são percebidos também nas pessoas com deficiência, as quais, por vezes, não se consideram capazes e autônomas
para desenvolver certas atividades dentro de seu potencial laboral.
No entanto, isso não pode mais ser razão para a não inclusão, já que
vai ao encontro do processo de exclusão que é pautado pela falta de
credibilidade a que as pessoas com deficiência foram historicamente
submetidas.
- 222 -
A inclusão laboral de pessoas com deficiência no mercado de
trabalho promove experiências positivas e potentes e viabiliza conhecimentos também para pessoas sem deficiências, fazendo com
que PCD deixem de ser invisibilizadas ou vistas como seres dignos
de pena. O convívio com a diversidade humana gera distintos aprendizados para todos os indivíduos, possibilitando, assim, o maior protagonismo dos seres.
A seletividade da diversidade
Atualmente o tema da diversidade tem tido significativa relevância nas redes sociais. Há divulgações de lives23, de vagas de empregos para a diversidade, seminários on-line acerca dessa temática.
Porém, isso me gera certa inquietação, pois, na maioria das vezes, a
pauta é direcionada para a população negra e LGBTQIA+24.
Mas antes de adentrar nessa inquietação, gostaria de expressar o intuito deste diálogo. Não pretendo de forma alguma minimizar os processos de discriminação e exclusão que esses segmentos
populacionais sofrem, mas sim abordar brevemente a diferenciação
de violações de direitos que as minorias vivenciam.
Percebe-se que há níveis distintos de preconceito e invisibilidade entre pessoas negras, pessoas com deficiência e a população
LGBTQIA+. Peço licença a esses segmentos para aqui mencionar
a percepção que tenho em relação a esses níveis de discriminação,
especialmente em relação ao mercado de trabalho.
As PCD têm suas capacidades subestimadas e sofrem preconceito em relação à sua capacidade laboral e pena pela sua condição;
a população negra é violentada pelo racismo estrutural e pela certeza
da superioridade da branquitude; as pessoas LGBTQIA+ sofrem a
sexualização de seus corpos e o conservadorismo.
Direcionando o diálogo agora para o capacitismo e invisibilidade vivenciados pelas PCD, um exemplo da materialização do
capacitismo no mercado de trabalho está no não reconhecimento da
pessoa com deficiência como parte da diversidade. Somos acostumados a admirar a diversidade da natureza, mas temos dificuldade/
resistência em admirar a diversidade humana.
23 Transmissões ao vivo de áudio e vídeo na Internet, geralmente feita por meio das redes
sociais.
24 A sigla LGBTQIA+ engloba pessoas que são lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
travestis, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e mais.
- 223 -
A diversidade é um conceito multidimensional que possui características visíveis e não visíveis (MACCARI et al., 2015). Milliken e Martins (1996) e Mannix e Neale (2005) apontam que os atributos da diversidade são, principalmente, categorizados em função
da visibilidade ou perceptibilidade, em atributos mais facilmente
visíveis e atributos não tão visíveis. Os atributos visíveis geralmente
estão associados ao gênero, à raça, etnia, origem/nacionalidade, idade, traços físicos, deficiências físicas, nível educacional, formação,
tempo de empresa e área/departamento a que pertence, opção político-ideológica, opção religiosa. Já os atributos não visíveis estão
usualmente relacionados aos conhecimentos, habilidades, experiências e valores pessoais, pertencendo a redes de relacionamento.
A diversidade brasileira, em suas variadas formas, apresenta-se naturalmente nas organizações. A preocupação com a integração
dos chamados grupos de minoria não é recente, assim como não é
recente o debate do tema no âmbito organizacional. Experiências
nacionais e internacionais comprovam que saber lidar com as diferenças é um fator essencial para promover a sustentabilidade e
garantir o êxito do negócio (SCHWARZ; HABER, 2009).
A diversidade amplia os horizontes, apresenta novas possibilidades e incrementa o repertório daqueles que com ela convivem.
As corporações que estão à frente com suas iniciativas de capacitação e inclusão da diversidade notaram aumento de produtividade
gerado pela colaboração e sinergia da equipe; além do aumento de
flexibilidade decorrente do convívio com diferentes pessoas. Tais
características mostram-se valiosas tanto para a empresa como para
os profissionais, que necessitam dessas competências para atuar no
contexto empresarial, que conta com recorrentes processos de fusões e aquisições (REGINA et al., 2015).
Nesse sentido, evidencia-se a relevância da convivência com
a diversidade humana. Esse movimento possibilita que os sujeitos
modifiquem suas percepções, observem demandas do cotidiano sob
outras perceptivas, e que levem os aprendizados oriundos dessas relações para outras esferas da vida.
Segundo o Dieese (2020), em relação à ocupação e ao setor, a pessoa com deficiência atuava no mercado de trabalho formal
predominantemente nas ocupações ligadas ao escritório, tais como
assistente administrativo e auxiliar de escritório. Existia, também,
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um contingente expressivo de pessoas com deficiência que trabalhavam como alimentadores de linha de produção, função importante
na indústria, e, ainda, como faxineiros, repositores de mercadorias e
embaladores, funções típicas de atividades de prestação de serviços
e comércio, além de vendedores, operadores de caixa e recepcionistas.
Esses dados nos elucidam o quão restritos ainda são os cargos
ocupados por pessoas com deficiência. Portanto, assim como os ambientes precisam ser adaptados para que possamos ter pessoas com
qualquer tipo de deficiência realizando atividades, precisamos nos
adaptar, rever nossos pensamentos e promover práticas inclusivas
em todos os espaços, para que pessoas com deficiência tenham a
oportunidade de desempenhar suas múltiplas possibilidades de atuação.
Considerações finais
Ao longo deste capítulo, buscou-se dialogar acerca da seletividade na contratação de pessoas com deficiência no mercado
de trabalho, refletindo o quanto isso está atrelado ao capacitismo.
Percebemos que atualmente há maior interesse na contratação desse
segmento populacional; no entanto, não há preparo para sua efetiva
inclusão.
Quando falamos sobre diversidade no mercado de trabalho, é
fundamental que consideremos a diversidade humana em sua amplitude; como mencionado em outros momentos deste capítulo, o convívio com os diferentes seres possibilita aprendizados e experiências
significativas para todas as pessoas, em todos os espaços, inclusive
nos ambientes de trabalho.
A convivência entre seres plurais contribui fortemente para
a ruptura do capacitismo presente na nossa sociedade. Precisamos
aprofundar nossas discussões sobre a temática da inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho para que isso seja algo
natural, acolhendo e possibilitando o protagonismo dessas pessoas.
Como fruto deste capítulo, espero que possamos esperançar,
irmos atrás, adiante e juntarmos uns aos outros também em prol da
plena diversidade no mercado de trabalho, como dizia Paulo Freire.
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Referências
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DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIECONÔMICOS (DIEESE). Nota Técnica 246: inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. São Paulo,
2020. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/notatecnica/2020/
notaTec246InclusaoDeficiencia.pdf>. Acesso em: 23 set. 2021.
FERRAZ, Ricardo. Visão e Revisão: Conceito e Preconceito. Cachoeiro do Itapemirim: Edição do autor, 2006.
FIGUEIRA, Emílio. Caminhando no silêncio: uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na história do Brasil. São Paulo:
Giz Editora, 2008.
GENTILI, Pablo (Org.). Escola S.A.: quem ganha e quem perde no
mercado educacional do neoliberalismo. Brasília: CNTE, 1996.
HAMMES, Isabel Cristina; NUERNBERG, Adriano Henrique. A
inclusão de pessoas com deficiência no contexto do trabalho em Florianópolis: relato de experiência no sistema nacional de emprego.
Psicologia, Ciência e Profissão, v. 35, n. 3, p. 768-780, 2015. DOI:
10.1590/1982-3703000212012
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA
(IBGE). Censo Demográfico 2010: Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência. Rio de Janeiro: IBGE,
2010.
MACCARI, Nicole et al. As práticas de recursos humanos para a
gestão da diversidade: a inclusão de deficientes intelectuais em uma
federação pública do Brasil. Revista de Administração Mackenzie,
v. 16, p. 157-187, 2015. DOI: 10.1590/1678-69712015/administracao.v16n2p157-187
MANNIX, Elizabeth; NEALE, Margaret A. What differences make
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MELLO, Anahí Guedes de. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomé- 226 -
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402-433, abr. 1996. DOI: 10.2307/258667
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de pessoas com deficiência (PcDs). Rede Empresarial de Inclusão
Social, 2015.
ROSA, Enio Rodrigues. O trabalho das pessoas com deficiência e
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políticas de cotas no Brasil. 2009. 249 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel,
2009.
SCHWARZ, Andrea; HABER, Jaques. Cotas: como vencer os desafios da contratação de pessoas com deficiência. São Paulo: iSocial,
2009.
- 227 -
- 228 -
CAPÍTULO 11
Racismo estrutural na vivência de mulheres
quilombolas: narrativas de um cotidiano de
violações de direitos e resistências
Eliana Mourgues Cogoy
Patrícia Krieger Grossi
“[...] não sei porque eles acham que uma pessoa branca
vale mais que uma pessoa preta.”
(Mulher, Quilombo Vovó Chinoca, Formigueiro, 2018).
Introdução
O presente trabalho apresenta uma abordagem sobre o racismo estrutural a partir de uma reflexão teórica e, posteriormente, de
uma análise com base nas falas de quilombolas que vivem no Rio
Grande do Sul. Os relatos são oriundos de uma pesquisa iniciada em
2015, destinada a compreender as experiências sociais das comunidades quilombolas no âmbito das políticas públicas, considerando
as relações étnico-raciais, de gênero, classe social e geração. Para
a coleta de dados, no período de março a setembro de 2018, foram
realizadas entrevistas semiestruturadas nas comunidades quilombolas de 15 municípios gaúchos, a saber: Bagé, Canguçu, Pedras Altas,
Piratini, Mostardas, Pelotas, Restinga Seca, São Lourenço do Sul,
Uruguaiana, Rio Grande, Portão, Formigueiro, Viamão, Gravataí e
Porto Alegre. O trabalho aqui apresentado estrutura-se da seguinte
forma: inicialmente, são abordadas reflexões sobre o racismo estrutural. Na sequência, são apresentados elementos que definem os/as
quilombolas, bem como o aporte legal brasileiro. O terceiro item
apresenta uma análise a partir das narrativas sobre o racismo estrutural de três gerações de mulheres quilombolas: jovens, adultas
e idosas. Os quilombos aos quais pertencem são: Vovó Chinoca e
Vó Maria e Vô Valdomiro (Formigueiro), Macaco Branco (Portão),
Boqueirão/Das Nascentes (São Lourenço), Fazenda Cachoeira (Piratini) e Areal da Baronesa, Alpes e Fidélix (Porto Alegre). Por fim,
são acrescidas as considerações finais deste trabalho.
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Reflexões sobre racismo estrutural
O entendimento dos conceitos de raça e racismo torna-se necessário antes de se abordar o racismo estrutural. Esses conceitos
refletem concepções que norteiam as ações de pessoas e sociedades.
Nesse sentido, tomamos como aporte teórico os estudos de Almeida
(2021). O referido autor destaca na introdução do seu livro Racismo estrutural que “[...] a sociedade contemporânea não pode ser
compreendida sem os conceitos de ‘raça’ e ‘racismo’” (ALMEIDA,
2021, p. 20). Ao fazer referência à compreensão de raça, Almeida
(2021, p. 31) assegura que esta “[...] ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados
minoritários”. Essas situações são decorrentes do colonialismo e da
escravidão enraizados na história da sociedade.
Para Assis (2014, p. 614), “Na perspectiva da colonialidade,
as antigas hierarquias coloniais, que foram agrupadas na relação europeu versus não europeu, continuaram arraigadas e enredadas na
divisão internacional do trabalho e na acumulação do capital à escala global”. A colonialidade precisa ser considerada em seu contexto sócio-histórico, nas suas formas de dominação e subalternização
de que os europeus fizeram uso para manter sujeitos dominados.
A dominação afeta o trabalho, o conhecimento e a autoridade materializados na sociedade capitalista, a exemplo da ideia de raça,
que manifesta um determinado padrão de poder. Quijano (2005, p.
117) afirma que “Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica
da população”. O autor aborda a colonialidade do poder a partir da
composição de um poder mundial capitalista, moderno/colonial e
eurocentrado desde a criação da ideia de raça, que foi biologicamente imaginada para naturalizar os colonizados como seres inferiores
aos colonizadores. Ao encontro desse entendimento, a concepção de
raça, para Madeira e Gomes (2018, p. 464), é definida com densidade histórica e política:
Não se tem o interesse de recorrer à questão sanguínea, mas compreender as determinações que constituem o sistema político, econômico e sociocultural hierarquizador entre povos, garantindo privilégios de todas as ordens para povos não negros (brancos), numa
perspectiva biologizante/naturalizante cujo interesse alimenta um
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discurso racialista e segregador, enquanto seu uso em termos políticos vem como reivindicação de direitos historicamente suprimidos,
como denuncia a militância negra e os cientistas sociais.
Tal entendimento apresentado pelas autoras acima revela o
quanto a questão racial não se configura como uma questão sanguínea, mas sim como uma determinação que implica fatores de ordem
política, econômica e sociocultural. Fatores esses que são privilégios
para não negros (brancos) e que segregam historicamente os povos
negros. O racismo, no entendimento de Almeida (2021, p. 32), “[...]
é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou
inconscientes quem culminam em desvantagens ou privilégios para
indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem” (ALMEIDA, 2021, p. 32)
O racismo gera desvantagens na vida de todos os membros
do grupo social afetado por ele, ou seja, reduz as chances de ascensão social, de reconhecimento e sustento material, além de questões
subjetivas de ordem emocional e de tantos outros fatores que estão
diretamente associados à vida em sociedade, a partir de práticas de
denotam uma espécie de superioridade racial e que, para Almeida
(2021), implicam a necessidade de mudanças profundas nas relações sociais, econômicas e políticas. Isso pressupõe, para além de
denúncia ou repúdio moral, a toma de postura e adoção de práticas
antirracistas.
Também são esses fatores que Almeida (2021) considera para
a compreensão do racismo estrutural como algo que se desenvolve
nas entranhas políticas e econômicas da sociedade. Conforme Bersani (2018, p. 194),
De fato, o racismo estrutural é nítido e não demanda grande esforço para ser visualizado. Ele está difundido na sociedade, na ordem
social vigente e a serviço dos privilégios que demarcam as classes sociais. Enfrentá-lo é uma forma de discriminação positiva e
necessária, e não um racismo na mesma intensidade, ao contrário
do que muitos dizem, pois trata-se da busca por mecanismos que
promovam a desconstrução da ideologia que se traduz em inúmeras
práticas discriminatórias diariamente, chancelando a exclusão de
um grupo social específico.
Perceber o racismo estrutural através das práticas discriminatórias cotidianas e enraizadas na sociedade é um dos primeiros pas- 231 -
sos para enfrentá-lo, para a desconstrução da ideologia que exclui
um grupo social em detrimento de outro. Além disso, torna-se necessária a implementação de políticas públicas e sociais que promovam a equidade racial, reconhecendo tanto os direitos étnico-raciais
como as especificidades de cada grupo, a exemplo dos direitos das
comunidades quilombolas brasileiras, abordados no item a seguir.
Comunidades quilombolas e as formas de resistência
A história brasileira, marcada pela escravidão dos negros,
precisa ser contada para além da condição de submissão desse grupo social, o que significa que também houve formas de resistência
à escravização, que foram manifestadas através de fugas, revoltas,
assassinatos de senhores, abortos e, de maneira mais materializada,
da constituição de quilombos. “Esta resistência ocorreu em espaços
diversos, inclusive nas senzalas, mas os quilombos foram, sem dúvida, um território importante para suas elaborações. Sem a oposição
e resistência à escravidão não haveria o que chamamos de cultura
afro-brasileira” (SOARES, 2020, p. 58).
Os quilombos eram um lugar secreto; lá permaneciam as pessoas que fugiam das fazendas, minas ou casas de famílias onde eram
escravizadas. Geralmente, os quilombos eram encobertos ou escondidos em meio ao mato. A palavra kilombo é parte do idioma dos
povos bantus, originários de Angola, e carrega o significado de local de pouso ou acampamento. Para Munanga (2001, p. 63), “[...] o
quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano
reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se
encontraram todos os oprimidos”.
Ao estabelecer a relação entre quilombos brasileiros e africanos, o autor assegura a condição de oposição à estrutura escravocrata, fortalecendo a importância da formação de resistência às formas
de opressão e de exploração.
Nessa perspectiva, mais que um refúgio para os negros, os quilombos foram reunião de homens e mulheres que se negaram a viver
sob o regime de escravidão e que desenvolviam laços de solidariedade e fraternidade na reconquista de sua dignidade. Assim, a ênfase na definição deve, então, ser posta sobre o binômio resistência
e autonomia, e não sobre o ato da fuga. (SILVA; NASCIMENTO,
2012, p. 27).
- 232 -
Para Silva e Nascimento (2012), as formações dos quilombos
revelam que, onde houve trabalho escravo, houve também rebeldia corporificada sob a forma de quilombos, sejam estes pequenos,
grandes, próximos às cidades ou bem distantes delas, apresentando
também uma variedade de formas de organização e de origens. Quilombos são expressões de liberdade e de reconquista da dignidade (SILVA; NASCIMENTO, 2012). Entretanto, as autoras também
explicam que, embora todos os quilombos brasileiros representem
resistência ao sistema escravista, nem todos foram constituídos pela
reunião de escravos fugitivos. A saber, outras situações que deram
origem aos quilombos:
- A partir do abandono, pelo fazendeiro, dos escravos nas terras que
cultivavam, principalmente em momentos de crise econômica do
produto cultivado;
- Por herança. Há muitos casos em que fazendeiros deixaram pedaços de terra para escravos de sua confiança, ou em que viúvas
solitárias as deixaram para seus escravos, ou ainda os casos em que
o herdeiro é um filho bastardo do fazendeiro;
- Terras doadas a Santos muitas vezes foram ocupadas por comunidades negras;
- Terras ocupadas pacificamente depois de abandonadas pelos senhores em momentos de crise econômica;
- Compra de terras por parte dos escravos alforriados;
- Ocupação de terras devolutas, antes e depois da abolição da escravidão, pois mesmo após esta, a marginalização dos negros fez com
que muitos migrassem em busca de terras mais distantes e ainda
não ocupadas, ou abandonadas;
- Recebimento de terras por serviços prestados ao Estado;
- E, é claro reunião de escravos fugidos. (SILVA; NASCIMENTO,
2012, p. 28).
Frente a essas diferentes situações, uma das questões mais
atuais de resistência vivenciada pelas comunidades está na luta pelo
território. A questão do território quilombola passou a fazer parte da
agenda política do Brasil a partir da promulgação da Constituição
Federal de 1988, por meio de seu Art. 68, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADTC), que reconhece a propriedade
das terras ocupadas por comunidades quilombolas, sendo o Estado
obrigado a lhe emitir títulos pertinentes. Soares (2020) ressalta que
“É somente com a Constituição Federal de 1988 que direitos sociais
à população negra são reconhecidos em lei, fruto de uma mobiliza- 233 -
ção do movimento negro e de organização de segmentos da sociedade civil em torno da defesa e garantia de direitos sociais e políticos”
(SOARES, 2020, p. 61).
No entanto, mesmo com os direitos reconhecidos na Carta
Magna, o número de quilombos brasileiros titulados é baixo, e os
quilombolas são constantemente ameaçados pelo agronegócio, pela
especulação imobiliária e pelo próprio poder público. É frente a essa
realidade que a proteção das comunidades quilombolas mediante reconhecimento e titulação de terras se faz tão importante para o território nacional. Além de garantir a preservação da identidade cultural
e étnica desses grupos, ela serve para a preservação e conservação
do meio ambiente, tão ameaçado na contemporaneidade.
No âmbito federal, em 2004, foi criado o Programa Brasil
Quilombola (PBQ), com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas. O plano é base da Agenda Social Quilombola (Decreto nº 6261/2007), que agrupa as ações
voltadas às comunidades em quatro eixos: acesso à terra, infraestrutura e qualidade de vida, inclusão produtiva e desenvolvimento
local e direitos e cidadania. Através do referido documento, tem-se
o entendimento de comunidades quilombolas como sendo:
[…] comunidades remanescentes de quilombo são grupos sociais
cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade. É importante explicitar que, quando se fala em identidade étnica, trata-se de um processo de auto-identificação bastante dinâmico e não se
reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos, como
cor da pele, por exemplo. (BRASIL, 2004, p. 9).
Para atender a esse conceito, o Programa Brasil Quilombola
estabelece as seguintes diretrizes centrais:
Garantir direitos sociais e acesso à rede de proteção social, em articulação com os outros órgãos governamentais, formulando projetos
específicos de fortalecimento dos grupos discriminados, com especial atenção às mulheres e à juventude negras, garantindo o acesso
e a permanência desses públicos nas mais diversas áreas (educação,
saúde, mercado de trabalho, geração de renda, direitos humanos,
previdência social etc.). (BRASIL, 2004, p. 24).
Destaca-se que as chamadas comunidades remanescentes de
quilombos existem em praticamente todos os estados brasileiros. No
- 234 -
Rio Grande do Sul, existem 146 comunidades quilombolas identificadas. Desse total, 90% já possuem certificado25 emitido pela Fundação Palmares e se encontram em fase de regularização. No entanto,
apenas duas são tituladas, e três possuem titulação parcial (CPI-SP,
c1995-2020). A próxima seção mostra um pouco sobre como as mulheres quilombolas no RS percebem o racismo estrutural.
Relatos de gerações de mulheres quilombolas sobre o racismo
estrutural
Os diversos depoimentos a seguir são de mulheres de distintas
gerações: jovens, adultas e idosas, pertencentes aos seguintes quilombos do Rio Grande do Sul: Formigueiro, Macaco Branco, Boqueirão/Das Nascentes, Fazenda Cachoeira, Vó Chinoca, Areal da
Baronesa, Alpes e Fidélix. Os trechos foram extraídos de depoimentos coletados, gravados e cedidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisa
em Violência – Nepevi/PUCRS.
Mulheres quilombolas jovens
Os quilombos são marcados por luta e resistência pelos seus
territórios, mas também são espaços configurados na formação de
identidades, principalmente a partir da cultura afro-brasileira, perante um mundo predominantemente machista e capitalista. Para as
jovens quilombolas, o racismo estrutural possui o sentido literal do
“sentir na pele”, como se vê nas narrativas abaixo:
“É depende muito do tom que tu fala, por que no meu trabalho
aconteceu né, eu pensei em registrar contra a minha colega na delegacia, achei uma falta de respeito, aconteceu um episódio com
um senhor e ela falou assim: ‘ah ele que vá andar com aquelas
nega dele prá lá...’ [...] claro que vai ter umas pessoas que vai
preferir da raça branca do que da raça negra, e eu pesquisei se
eu fosse registrar na delegacia, ‘tu iria te incomodar’ eu disse pra
ela.” (Jovem Quilombola, Formigueiro, 2018).
“Na minha opinião as mulheres negras são vistas hoje como as que
estão ali, tipo em uma pirâmide, ela está ali em baixo, sustentando essa pirâmide, fazendo a limpeza, cozinheira. Ela é vista mais
nesse sentido, não em outros cargos. [...] É limpeza que tu vê as
mulheres negras. Isto quando não tem uma branca que quer fazer
a faxina, que daí vão pegar a branca.” (Jovem, Quilombo Macaco
25 Casca foi a primeira comunidade quilombola reconhecida no Rio Grande do Sul, recebendo
a certificação da Fundação Cultural Palmares em 2001.
- 235 -
Branco, Portão, 2018).
“Não é fácil. Só querem dar serviço braçal, sem condições da pessoa ter um estudo melhor para poder pegar um emprego melhor.
Então até isso aí dificulta.” (Jovem, Quilombo Fazenda Cachoeira,
Piratini, 2018).
Vê-se na primeira fala que, ao se sentir afetada pela atitude
da colega, a jovem foi em busca de informações sobre seus direitos
– “[...] pesquisei se eu fosse na delegacia”. Esse comportamento revela um não se colocar num nível de subalternidade. Da mesma forma, no segundo relato, há uma consciência crítica sobre a distinção
de tratamento entre mulheres brancas e negras, colocando aquelas
sempre na condição de superioridade. Há ainda a terceira narrativa,
que traz que as ofertas de trabalho para pessoas negras são predominantemente relacionadas ao trabalho braçal. Para Soares (2020),
“A resistência negra implica um movimento muito mais amplo, que
emerge como forma de garantir que, mesmo dentro de um intenso
sistema de exploração e opressão que tende à desumanização, se
produzam saberes, vínculos, afetos, solidariedade e luta pela liberdade” (SOARES, 2020, p. 57).
Logo, a resistência negra se fortalece à medida que se dá conta das formas de opressão e exploração que sofre, possibilitando a
luta por condições dignas de vida, que deveriam ser pertencentes a
todo e qualquer ser humano.
Mulheres quilombolas adultas
Grossi (2018, p. 7) afirma que “[...] as mulheres quilombolas
podem internalizar a opressão ou desafiar os conceitos atribuídos socialmente a elas, questionando a estrutura de poder vigente e as auto-atribuições, ressignificando suas identidades”. A narrativa abaixo
é capaz de sintetizar isso:
“[...] a minha guriazinha há um tempo atrás ela teve um problema
que ela ia pra escola e estavam desfazendo o cabelo dela, que ela
tem um jubão, bem crespo, [...] a professora pegou firme no braço
dela e disse que ela não podia usar o cabelo daquele jeito que ela
tava usando né. [...] chamaram a coordenação da escola, mas aí o
problema foi resolvido aí, que não, que a professora tinha se exaltado em questão a ela, aí eu fui saber o porquê e eu disse pra ela
que o cabelo dela não era feio, que era assim e que cada um tem
- 236 -
um tipo de cabelo e que ninguém era igual, que a coleguinha dela
tinha cabelo liso e a outra não. Mas aí depois nunca mais eu tive
problema.” (Mulher, Quilombo Vovó Chinoca, Formigueiro, 2018).
A narrativa acima vai ao encontro do que Silva (2015) analisa
sobre como o negro se vê e é visto pelo outro em relação ao seu
cabelo. Conforme a autora, “[...] atuando em alguns casos em sua
valorização e em outras situações continua sendo tomado como uma
marca de inferioridade, não associada à beleza” (SILVA, 2015, p.
95). O que se vê é o impacto direto do racismo estrutural presente
na sociedade e que interfere na autoestima, na segurança e na identidade das pessoas negras. Por outro lado, a mulher quilombola demonstra uma postura de fazer a filha entender que as pessoas são diferentes e que isso não significa que alguém seja melhor que o outro.
Mulheres quilombolas idosas
Ferreira (2021) observa que as mulheres idosas quilombolas
trazem na memória os tempos de resistência, as diversas tentativas
de expulsão das suas terras, como característica das suas identidades. Por meio do depoimento a seguir, constata-se uma relação com
a resistência na luta pelos direitos e a dificuldade de acessá-los.
“E eu sempre digo que o nosso chicote, a nossa chibata é a caneta,
porque a gente tá sempre refém da assinatura dos governos pra
deliberar. Então acho que é a nossa maior dificuldade é essa, né.
A gente sabe que existem os recursos, a gente sabe que a gente tem
direitos, mas é uma dificuldade pra tu acessar. E quando acessa,
dependendo das brigas políticas e governamental, tu fica na espera, né.” (Idosa, Quilombo Alpes, Porto Alegre, 2018).
A narrativa ressalta a dificuldade de acessar recursos, o que
se traduz na violação de direitos para que os povos quilombolas tenham condições de vida dignas. A ameaça constante dos seus territórios é decorrência de disputas políticas que envolvem grandes
proprietários de terra ou setores do próprio Estado, caracterizando-se como mais uma forma de expressão do racismo. Almeida (2021)
explica que o racismo se constitui de uma ideologia ancorada em
práticas sociais concretas. O autor chama a atenção, ainda, para a
ruptura dos meios de financiamento dos direitos sociais, deslocando
parte do orçamento público para as esferas privadas. Como produto,
- 237 -
essa realidade desencadeia que jovens negros, pobres, moradores da
periferia, trabalhadores e minorias sexuais sejam vítimas de fome,
de epidemias e eliminados violentamente pelo Estado.
Pereira (2021) observa a importância política e social das mulheres idosas quilombolas para mostrar formas possíveis de atuação
na preservação e criação de estratégias que defendam as comunidades em geral. Dito de outra forma, é a materialidade da resistência
nas lutas das comunidades quilombolas, no acesso aos recursos públicos que são direitos de cidadania, os quais deveriam ser garantidos a todos/as cidadãos/ãs brasileiros/as, independentemente de raça
ou condição social.
Considerações finais
Este capítulo abordou o racismo estrutural nos seus aspectos
conceituais, bem como a sua relação com as mulheres quilombolas,
a partir de narrativas colhidas em diferentes quilombos do Rio Grande do Sul. Constata-se que o racismo estrutural se expressa por meio
de condutas de determinados grupos que passam a ser consideradas
naturalizadas na sociedade. Essa ordem social estabelecida fundamenta-se em princípios discriminatórios de raça, que sustentam o
processo histórico, político e social de mecanismos de hierarquização e segregação racial.
A partir da análise das narrativas compostas de diferentes
gerações de mulheres quilombolas, observa-se que as percepções
sobre o racismo independem de tempo de vida; elas são sentidas no
cotidiano dessas mulheres. Importa destacar que, ao sentir a discriminação, essas mulheres demonstram a consciência de que essa realidade precisa ser modificada, seja pela atitude, pela conscientização
ou pela luta por recursos públicos.
Desse modo, entendemos que o racismo estrutural está enraizado num processo histórico marcado pelas desigualdades sociais,
econômicas, políticas e culturais na sociedade brasileira e que perdura desde o tempo da escravidão.
Para finalizar, sugere-se que as questões abordadas neste
capítulo sejam aprofundadas sob a perspectiva de delineamentos
qualitativos, mediante processos sociais e políticos que venham a
contribuir com a construção de espaços que favoreçam o exercício
da cidadania, realizando o devido enfrentamento das situações de
- 238 -
racismo estrutural relacionadas às comunidades quilombolas. Certamente, o processo de tomada de consciência já se configura como
um começo para a superação desse círculo vicioso do racismo enraizado na nossa sociedade; entretanto, ações antirracistas precisam ser
colocadas em prática para vivermos uma outra sociedade possível.
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- 240 -
CAPÍTULO 12
Classe, raça e gênero, o tripé maldito das
sociedades humanas: o papel da cultura e do
patrimônio na manutenção dessa “trepeça”
Tiago de Campos
Introdução
A sociabilidade burguesa tem como bases fundantes a propriedade privada e a liberdade individual. Sabemos da importância desses pilares para a manutenção da civilidade alcançada pela
humanidade; todavia, os problemas criados por essa sistemática tiveram, nos últimos anos, uma importância jamais vista antes em
toda a história humana. Os níveis de violência e desigualdade social
beiram à barbárie, e o humano não se reconhece mais como uma
espécie consciente de si e de seus iguais. O capitalismo como forma
social erigida há alguns séculos chega hoje perto de sua derrocada,
e não pela iniciativa humana de terminar com a égide do capital,
mas sim pelo esgotamento iminente das condições ambientais que
promovem a vida humana, sem contar o avanço neoliberal sobre a
política e o que resta do social (BROWN, 2019).
Para além de uma discussão material da sociabilidade que hoje
construímos, neste capítulo, pretende-se discutir, qualitativamente,
os pilares fundantes da humanidade, os aspectos que fundamentam
todo e qualquer pensamento filosófico que até hoje conseguimos
elaborar, e como o patrimônio histórico institucional reafirma os valores burgueses eurocêntricos de sociabilidade e, assim, fomenta a
violência estrutural que parece crescer de forma exponencial. Isso
pode parecer muito trabalho; todavia, os pilares que constituem a
sociedade humana foram lançados há muitos milênios e são apenas
três, mas, até os dias de hoje, direcionam a maneira com a qual nós,
humanos, pensamos a nossa existência: a classe, a raça e o gênero.
Além deste tripé essencial da formação social, países ex-colonizados e hoje em posição de dependência sofrem ainda com o
embranquecimento sistemático do seu imaginário, fenômeno essencial para a manutenção do discurso e ação imperialista dos países do
- 241 -
centro – mais marcadamente países da Europa e os Estados Unidos
da América –, e é nesses países que os níveis de diferentes tipos de
violência são mais agravados. Entender o tripé perpassa também por
um entendimento de valores e ideias que incluam na sua concepção
e conceituação a interseccionalidade e a consubstancialidade (HIRATA, 2014), já que são essas duas maneiras de ver as relações sociais que lançaram as bases da igualdade de importância dessas três
fundantes do pensamento social das sociedades humanas.
Um breve histórico do tripé fundamental
Remontar a formatação das sociedades humanas nos leva há
mais de 30 mil anos atrás, quando a vida tinha outras condições,
quando iniciávamos as nossas capacidades cognitivas e a sobrevivência era o único dever da humanidade. Vivíamos em tribos, sem
arquitetura ou tecnologias, e a única organização social era a da
procriação. Nessa fase da história humana, construímos a primeira
divisão dentro da nossa espécie, a divisão entre machos caçadores
e fêmeas cuidadoras – uma divisão racionalmente aceitável já que
a expectativa de vida era de 35 anos e a mortalidade abarcava altos
índices; logo, manter mulheres que procriam a salvo das caçadas
era uma necessidade de vida ou morte. Por séculos nos dividimos
dessa maneira, sendo nossas sociedades coletoras e caçadoras, com
pouco conhecimento de agricultura – no máximo, horticultura. Convivemos harmoniosamente com essa divisão social entre machos e
fêmeas e compensávamos essa divisão com a matrilocalidade, quando o local da mulher é a preferência para o estabelecimento das famílias, e a matrilinearidade, quando a mulher é a “dona” das crias, a
referência de origem.
Com o desenvolvimento das relações, o aumento do número
de pessoas e o contato com outras tribos, que também seguiam essa
sociabilidade, inauguramos a propriedade privada, o Estado (arcaico
ainda) e as demais “pernas” do tripé social que fundamenta a nossa
realidade. A pesquisadora Guerda Lerner (2019, p. 90) consegue sintetizar essa transformação:
Em algum momento durante a revolução da agricultura, sociedades
relativamente igualitárias, com divisão sexual do trabalho baseada
em necessidade biológica, deram espaço a sociedades mais estruturadas, nas quais eram comuns a propriedade privada e o comércio
- 242 -
de mulheres. As primeiras sociedades eram muitas vezes matrilineares e matrilocais, enquanto as últimas sociedades sobreviventes
eram, de modo predominante, patrilineares e patrilocais. Não existem evidências de um processo inverso, passando de patrilinearidade para matrilinearidade. As sociedades mais complexas faziam a
divisão do trabalho não mais com base apenas em distinções biológicas, mas também em hierarquia e no poder de alguns homens
sobre outros e todas as mulheres. Inúmeros acadêmicos concluíram
que a mudança descrita aqui coincide com a formação de estados
arcaicos.
Após a consolidação da derrocada feminina e do controle masculino da sociabilidade, a escravidão, inaugurada com a conquista
de outras tribos e povos, exigia do Estado e de seus comandantes
a inauguração de uma sub-raça que aceitaria o seu destino escravo
sem a necessidade de vigilância constante. Era sabido que, para cada
um escravo do sexo masculino, eram necessários dois soldados, já
para as escravas mulheres, bastava o estupro para que ficassem grávidas, e uma nova vida era suficiente para mantê-las sob controle. O
futuro filho, então, as mantinha pacíficas. Erigíamos, assim, as bases
para o racismo, que, mais tarde, seria embranquecido pelos europeus
e se tornaria o racismo contra os corpos pretos. A classe vem logo
depois. Até alguns reinados da Mesopotâmia era possível que um
plebeu ascendesse e se tornasse rei ou rainha de certas regiões. A
classe como a conhecemos hoje, que podemos traduzir como uma
forte hereditariedade da propriedade, títulos e riquezas, não era praticada. Mais tarde, a hereditariedade formaria os reinados e, assim,
consolidaríamos a classe como perdura até os dias de hoje. O Estado
já mais desenvolvido é, então, a “liga” desse sistema perverso de
sociabilidade que praticamos até a atualidade.
Como é possível notar, as divisões que hoje formam a questão social foram inauguradas há muitos séculos, antes mesmo da
formação do capitalismo e do seu embrião, o mercantilismo. Dividir
e classificar a sociedade parece ser algo que iniciamos em remotas
eras e não mais abandonamos. Nossa derrocada enquanto espécie
parece ser cimentada com o desenvolvimento pleno do Estado, a
criação e uso do dinheiro, a ascensão da burguesia ao poder na Europa, a subtração e cooptação do trabalho no seio da filosofia humana,
o erigir do capitalismo como sociabilidade desde o século XV e a
branquitude como moral tradicional, norteadora da nova sociabilidade que hoje é mundializada.
- 243 -
Remontar brevemente essa linha de raciocínio constitucional
da humanidade nos leva a notar que o sistema neoliberal de sociabilidade é nada mais que o produto das relações humanas com a
nova forma financeirizada do capital. Desmontar o social, acabar
com a política e responsabilizar o indivíduo pela manutenção da sua
existência são ações fundamentais para a inauguração de um sistema
social tão perverso como o neoliberalismo.
O patrimônio cultural institucional dos povos que fundamenta
a identidade de uma nação e de seus constituintes tem papel fundamental na cooptação do imaginário do trabalhador e da sua identidade. Segundo a cultura e o patrimônio institucional brasileiros, somos
uma sucursal europeia da arquitetura e dos costumes da branquitude
daqueles povos. O papel do Estado, desde há muito tempo, aqui, é o
de apagar a identidade negra, índia e brasileira do imaginário do seu
próprio povo. Um povo que não reconhece a si mesmo, um Estado
que não fomenta a sua identidade, que não valoriza a cultura de seus
povos originários, é facilmente ludibriado, e a colonização nunca é
desfeita, aliada à dependência econômica; um ciclo vicioso sem fim
é engendrado, a derrota do povo é decretada.
O apagamento é a política de Estado
Com essa breve noção do caminho que percorremos ao longo
da nossa história, podemos entender como chegamos até o século
XXI ostentando números e indicadores humanos dignos das épocas
mais sombrias da humanidade. A vida do povo se resume ao trabalho e à tentativa de sobrevivência em um ambiente cada vez mais
hostil e em um meio ambiente cada vez mais degradado, sem contar
com o contexto de pandemia que se instalou no ano de 2020 após a
eclosão do vírus Sars-CoV-2 na China.
A instauração de um regime branco, heteronormativo e rico
perpassa, como já citamos, a cooptação das diferentes identidades
ao redor do mundo na tentativa de “lavar” qualquer sinal identitário
diferente ou na tentativa de manipulação desses sinais, como podemos ver nos países do Oriente Médio e da Indochina. Todavia, no
ambiente brasileiro, a manipulação se deu de maneira mais abrupta
e agressiva; basta olharmos as nossas cidades, os nossos costumes, e
reparar o quanto eles se parecem com os da Europa ou dos Estados
Unidos. Carregamos um sem-número de etnias no seio da nossa so- 244 -
ciedade e, mesmo assim, o que mais salta à vista são as características brancas do povo europeu.
A desvalorização e o apagamento das demais identidades é
visível. Segundo o censo de 2019 (FREIRE, 2020), 56,1% dos brasileiros se declaram negros, ou seja, a maioria da população é negra,
mas nossa identidade geral institucional não reflete essa negritude
histórica do Brasil. O fato de que mais da metade dos brasileiros
vive com menos de um salário-mínimo por mês (METADE..., 2019)
reflete não apenas a incapacidade de respostas econômicas por parte
do Estado, mas também a anestesia social que é promovida para
manter o povo no cabresto. Onde a identidade desse povo está refletida? Onde a história institucional protegida representa o povo
brasileiro?
Uma realidade distópica é criada pelo Estado na tentativa de
embranquecer a sociedade. Somos forçados a aceitar que nossa história foi forjada e construída a partir dos invasores europeus, que
os povos originários brasileiros eram preguiçosos e que os negros
aceitaram sem muita resistência a escravidão. Criamos o mito do
homem branco conquistador e construidor da nossa sociabilidade
quando, na realidade, foi o suor e o sangue de negros e índios escravizados que construíram, projetaram, criaram cultura e arte, forjando a verdadeira identidade brasileira que é sentida, cantada, pintada,
retratada nas comunidades Brasil afora, mas que não são reconhecidas pelo Estado que deveria (com muita fé no Estado) assegurar a
identidade do seu povo.
Neoliberalismo
As não-políticas neoliberais implantadas, seja na seguridade,
nas leis trabalhistas ou na cultura, emergem para justamente dar o
golpe fatal na identidade dos povos dos países dependentes. A reativação da centralidade da família, de um Deus cristão, dos direitos
individuais são a reafirmação de que só há espaço para a cultura do
embranquecimento.
As parcas políticas culturais oferecidas durante os anos neodesenvolvimentistas nos governos do PT, para além de deslocarem
recursos financeiros para as grandes empresas de cultura burguesa
do país, ainda reforçaram o papel branqueador do aparato estatal
brasileiro. Poucas produções nacionais mostraram a verdadeira cor
- 245 -
e costume da população brasileira ou, quando mostravam, serviam a
interesses que não do próprio povo ou lhes tiravam o protagonismo.
A classe média é a mais retratada, na grande maioria das produções
de cinema, da música, do teatro; a maior parte dos recursos fica para
o eixo Rio-São Paulo e nas mãos das grandes redes de televisão ou
produtoras artísticas.
A principal lei de incentivo à cultura brasileira, a famosa Lei
Rouanet, é por si só a neoliberalização do financiamento da cultura
no país. Os recursos diretos da União para a cultura são diminuídos ano a ano, e a única maneira de angariar fundos para a cultura
é através dos incentivos fiscais e da boa vontade dos empresários
brasileiros, como explica a produtora cultural Carolyne Melo (2016)
em um artigo publicado na internet:
No Brasil, a produção cultural não consegue se sustentar “por si só”
e fica à mercê do financiamento da iniciativa privada ou da abertura
de editais de empresas estatais. A polêmica Lei Rouanet é um processo burocrático no qual o proponente deve apresentar um projeto
e o Ministério da Cultura deve decidir se ele está apto ou não para
a captação de recursos. Uma vez aprovado o projeto, o proponente
tem um tempo determinado para recolher esses recursos em empresas, o que significa que são aqueles que detêm o poder econômico
que decidirão o que será produzido no campo cultural. Ter o projeto aprovado pelo MinC (ou qualquer outro edital, seja municipal
ou estadual, que funcione de modo semelhante) não garante sua
realização. Um exemplo disso é o que está acontecendo com Wagner Moura, que pretende realizar um filme sobre o revolucionário
Carlos Marighella, e declarou não conseguir captar estes recursos.
Ora, se até mesmo uma importante figura não consegue captar
recursos para a realização de um filme sobre um comunista, que dirá
a comunidade conseguir captá-los para fazer a sua cultura chegar
aos ouvidos de todos.
Chegamos a um ponto crucial na identificação dos territórios
de disputa do imaginário e ideologia dos trabalhadores. Não estamos
mais apenas disputando esse imaginário no chão das fábricas ou no
discurso economicista, essa disputa acontece sistematicamente no
imaginário artístico e cultural, que é um dos principais ingredientes
para a construção da identidade de qualquer povo.
O liberalismo, que tem como um de seus pilares a moral tradicional, que é branca, racista e machista, como vimos no início
- 246 -
do texto com a “trepeça” fundamental, engendrou suas forças para
manter e fortalecer esse tripé social em todas as esferas da vivência
humana. Jaime Osório nos recorda como, na esfera política, a luta de
classes se desdobra para todas as camadas que envolvem a expressão da existência da nossa espécie.
As sociedades capitalistas constituem espaços de força, territórios
nos quais se criam e se movem forças sociais, resultado da presença
de classes sociais, frações e setores que estão em disputa e se confrontam. A base da política está formada pelas inúmeras atividades
que podem gerar e acumular forças para exercer e manter o poder
político ou para resistir, disputá-lo e alcançá-lo. (OSÓRIO, 2019,
p. 94).
Apesar de o poder político ser disputado, conquistado, resistido, o núcleo central da acumulação e da ideologia burguesa continuam intactos, vide os governos de esquerda que estiveram no Brasil
e na América Latina recentemente. O ordenamento social burguês
fica intacto, as classes são mantidas e a sua existência é apagada.
Logo, a supressão das identidades dos povos dependentes
sempre foi um programa de Estado e das burguesias internacionais;
o neoliberalismo ou ultraliberalismo já havia sido anunciado há
muito tempo, com Lenin (2012) em Imperialismo, a Fase Superior
do Capitalismo. O espanto pelo qual os progressistas do mundo todo
foram tomados com a criação das teorias ordoliberais e neoliberais
nos anos 1970 e a sua atual implantação parecem não fazer sentido
frente a todos os indícios que a sociabilidade da acumulação nos
demonstrava.
Conclusão
Entender o papel do Estado na manutenção da ideologia burguesa é essencial para a compreensão do funcionamento político que
rege a sociabilidade violenta que estamos vivenciando hoje. Esperar
desse ente ações assertivas no caminho da formação de uma identidade nacional fidedigna é, no mínimo, ingenuidade, até mesmo em
momentos mais antigos da história do Estado.
O choque que tomamos hoje ao ver o aspecto e o modus operandi do Estado na nova ordem ultraliberal, como já dissemos, é de
causar espanto. Marx, em Glosas Críticas Marginais, de 1844, já
anunciava que nem a miséria da Europa seria erradicada pelas forças
- 247 -
e pela vontade do Estado, que dirá a identidade nacional de um povo
dependente, negro e índio ser fortalecida por meio de políticas de
cultura e patrimônio coerentes.
A morte anunciada da política e do social pelo neoliberalismo
é absolutamente coerente com a sociabilidade que erigimos desde
há muito tempo; uma relação doentia baseada numa moral tradicionalmente branca e rica, em direitos individuais que impossibilitam
a criação de um ambiente civilizado e num ser invisível endeusado que chamamos de mercado. Acreditar que o desmonte social foi
inaugurado agora é não acreditar na nocividade que o sistema capitalista oferece à vida humana no planeta Terra.
Recentemente as previsões dos cientistas da Breakthrough
National Centre for Climate Restoration, uma think tank australiana, afirmam que
Mudanças climáticas podem representar uma “ameaça existencial”
até o ano 2050. As previsões incluem 20 dias de calor letal por ano,
aquecimento global de três graus Celsius, ecossistemas encolhidos,
mais de um bilhão de pessoas deslocadas, dois bilhões sem água e
produção de alimentos em colapso. O sistema planetário e humano
vai atingir um ‘ponto sem volta’ até o meio do século, onde a perspectiva de uma Terra em grande parte inabitável levará à queda de
nações e da ordem internacional. (NO DIA..., 2019).
A crise ambiental anunciada é fruto do sistema capitalista, um
sistema que durante séculos apagou a expressão de vida de bilhões
de pessoas, as desconectou da natureza, da terra e das suas origens
em nome da acumulação desenfreada de capital. Um sistema assassino não só de indivíduos, mas assassino da espécie humana.
Pode parecer, como disseram os cientistas, um caminho sem
volta, mas se ainda nutrimos alguma esperança de construir um
mundo de sociabilidade mais saudável, com certeza a ação passa por
valorizar as diferentes expressões, saberes e fazeres dos diferentes
povos constantes da espécie humana.
Pecamos sistematicamente desde que a consciência se fez
presente nos nossos cérebros; erigimos um tripé violentamente mortal de separação e classificação que culminou no aparecimento de
um sistema canceroso como o capitalismo – que hoje se desdobra
com o ultraliberalismo, em mais uma tentativa de sobreviver a mais
uma de suas crises cíclicas, cada vez mais agressivas, cada vez mais
- 248 -
mortais – e na derrocada final de toda uma espécie. Acabaremos
com o único planeta conhecido capaz de abarcar a vida humana.
Pensar que toda a produção cultural, científica e filosófica que
a humanidade produziu e ainda vislumbra produzir pode ser perdida em nome da acumulação de capitais por uns poucos indivíduos
em detrimento da sua própria espécie nos faz perguntar: como erramos tão rudemente? Em que momento perdemos totalmente o fio da
meada da nossa história e nos deixamos ser levados de roldão, ludibriados, enebriados pelo consumo e pela enganação ideológica capitalista? Mas como culpar um povo que nunca teve a possibilidade de
desenvolver sua identidade ou seus costumes de maneira orgânica?
O neoliberalismo se apresenta implacável, apoiado pelos que
mais sofrerão com a sua perversa “maneira de ser”. Esse apoio não
advém de mau-caratismo ou de pura ignorância, esse apoio advém
de séculos de apagamento da realidade desse apoiador, de séculos
de políticas e de práticas que deixam o povo à mercê de sua própria
sorte e de suas necessidades; as possibilidades de subverter essa realidade lhe são tiradas, e, por fim, é negada qualquer tentativa de criar
outra maneira de viver. Apenas aguentamos, como cantou Milton
Nascimento (2013):
Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta.
Cantar, atuar, filmar o que o nosso povo tem a mostrar pode
não nos salvar dessa possível derrocada final que estamos prestes a
experimentar. Todavia, se há uma saída, com certeza é com a experiência e a voz do povo de baixo. Com uma possível nova realidade
que está próxima, com certeza não será o capital ou a sociabilidade
tradicional que nos guiarão com segurança para a sobrevivência da
espécie humana. Até agora, o Estado e a institucionalidade não nos
representaram, não nos ofereceram e nem vão oferecer qualquer saída possível. Cabe, enfim, ao povo trabalhador criar as suas próprias
narrativas e saídas.
- 249 -
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- 250 -
OSÓRIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização. A sociedade civil e o tema do poder. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular,
2019.
- 251 -
- 252 -
CAPÍTULO 13
Chapa Preta: uma iniciativa para enegrecer o
campo publicitário1
Enéias Brum Dias
Introdução
No dia 27 de outubro de 2021 foi anunciada a eleição da Chapa Preta para o ocupar a diretoria do Clube de Criação, “[...] entidade sem fins lucrativos, fundada em 1975 por publicitários da área
de criação para valorizar e preservar a criatividade da propaganda
brasileira”, que possui reconhecida atuação junto ao campo publicitário no Brasil (O CLUBE, 2019). Os fatos de que todas as pessoas
componentes da chapa são negras e de a Chapa Preta utilizar argumentos antirracistas como foco de sua campanha eleitoral nos inspira a escrever o presente capítulo. E, possivelmente, é isso que levou
a chapa a se sobressair à Chapa 2, que também tinha pessoas negras
entre seus integrantes e cujas propostas também chamavam atenção
para a falta de diversidade na publicidade brasileira (TAMAGNO;
HAGUIARA, 2021).
A publicidade é um gênero de comunicação fortemente vinculado às forças econômicas da sociedade em função do seu viés
comercial; contudo, suas práticas também se articulam a aspectos
políticos e culturais do mundo social (PIEDRAS, 2009). Como a comunicação publicitária (re)coloca em circulação pautas presentes no
cotidiano dos consumidores, seus produtores (publicitários, agências de publicidade e anunciantes) podem ser responsabilizados por
ocultar e/ou estereotipar, selecionar temas, assuntos e identidades
em anúncios. A invisibilização da população negra é um tensionamento emergente nos últimos anos, visto que o público receptor tem
ampliado seus espaços de fala – sobretudo pelas redes sociais digitais – para contestar a forma como o campo publicitário se articula a
aspectos políticos e culturais do mundo social (WOTTRICH, 2019).
Entre as recentes repercussões das contestações da sociedade civil à publicidade, destaca-se o perceptível aumento de pessoas
1 O presente capítulo foi escrito como trabalho de conclusão do Seminário Violência, Poder e
Prática Institucional, ministrado pela professora doutora Patrícia Krieger Grossi no Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS.
- 253 -
negras atuando como protagonistas em anúncios (TODXS, 2018).
Porém, de acordo com o Ministério Público do Trabalho de São Paulo, somente 3% dos cargos produtivos da publicidade brasileira são
ocupados por profissionais negros/as (RIBEIRO, 2020). A exposição pública da disparidade entre a demografia do Brasil e o perfil
dos publicitários atuantes em agências de publicidade é geradora
de discussões e iniciativas para ampliar a presença e valorização de
pessoas negras nesse mercado (BRUM, 2021).
Diante desse cenário, o objetivo do capítulo é observar indícios de engajamento do campo publicitário em práticas antirracistas
através da análise de propostas divulgadas pela Chapa Preta, a diretoria eleita pelo Clube de Criação para o período 2021-2023.
Para isso, abordamos o objeto de pesquisa a partir da metodologia qualitativa, com uso da técnica de análise documental,
que permite acessar documentos e sistematizá-los de forma a criar
categorias que revelam fenômenos empíricos (MOREIRA, 2005).
Como fonte de pesquisa, elencamos o perfil na rede social digital
Instagram2 criado pela Chapa Preta para divulgar suas propostas e
apresentar o currículo dos seus componentes. Abrimos mão das publicações referentes às pessoas concorrentes pela chapa e nos detemos à descrição e análise dos textos que legendam oito postagens.
Dessas publicações, a primeira realizada pelo perfil é uma explícita
apresentação introdutória dos propósitos antirracistas da Chapa Preta. As outras sete assemelham-se entre si por repetirem uma mesma
imagem na qual se lê unicamente “propostas”, um indício de que o
objetivo por trás dessas publicações é persuadir o público sobre as
contribuições pretendidas pela chapa em sua relação com o campo
publicitário brasileiro.
Para fundamentar a discussão científica a partir de tal análise
empírica, partimos da técnica de pesquisa bibliográfica (STUMPF,
2005) para estabelecer diálogo entre obras e pesquisas recentes sobre a articulação da publicidade com o mundo social (PIEDRAS,
2009), a composição do campo publicitário (PETERMANN, 2011),
as práticas de contestação do público à publicidade (WOTTRICH,
2019), a dupla articulação da publicidade através da modalidade
de produção engajada (BRUM, 2021), o racismo (MOORE, 2000;
BRAH, 2006; RIBEIRO, 2008; SCHUCMAN, 2010; ALMEIDA,
2 Ver em <https://www.instagram.com/chapapreta>.
- 254 -
2020), o racismo na publicidade (SODRÉ, 1999; MARTINS, 2019;
MORENO FERNANDES, 2020) e a emergência da publicidade antirracista (LEITE, 2019; LEITE; BATISTA, 2019).
O tema, objetivo e metodologia do capítulo, expostos na presente introdução, são desenvolvidos nas seções subsequentes. Iniciamos apresentando brevemente as relações entre a publicidade e
o mundo social, em seguida reconstituímos um breve panorama de
atuação do Clube de Criação; avançamos estabelecendo um diálogo
entre o posicionamento da Chapa Preta e noções teóricas sobre raça
e racismo, e, enfim, descrevemos e analisamos as propostas de práticas antirracistas da Chapa Preta. A última seção finaliza o capítulo
com considerações provisórias sobre as potenciais repercussões da
atuação da Chapa Preta junto ao campo publicitário e ao conhecimento acadêmico-científico da área de comunicação publicitária.
Publicidade: produto e produtora do contexto social
Sem a pretensão de esgotar as possíveis perspectivas sobre a
dualidade exposta no título da presente seção deste capítulo, nos valemos das abordagens de Piedras (2009) e Petermann (2011) para refletir sobre a publicidade enquanto agente da manutenção de violências simbólicas na sociedade, bem como sobre suas possibilidades
de promover mudanças estruturais em questões como, por exemplo,
o combate ao racismo.
A publicidade é um gênero de comunicação originado e marcado pelo viés mercadológico por ser destinado a auxiliar corporações na execução de seus objetivos comerciais por meio da persuasão
de potenciais consumidores. Através da noção de dupla articulação,
Piedras (2009) explora vínculos de nível estrutural entre o contexto
macrossocial e a publicidade, apresentando a economia como principal força motriz do mercado publicitário, que, por sua vez, é constituído de acordo com aspectos políticos e culturais das sociedades
nas quais agências e anunciantes atuam. Em um segundo aspecto de
articulação, a autora afirma que tais forças macrossociais ativam e
são ativadas pelas práticas cotidianas da publicidade, enfatizando o
potencial dialógico da relação entre a produção e a recepção publicitária: “[...] a leitura e o consumo são codeterminados pelas demandas dos receptores e pelas ofertas da produção” (PIEDRAS, 2009, p.
81). Os diversos modos de conexão entre o macrossocial e a publi- 255 -
cidade, e deste vínculo estrutural com o nível cotidiano das práticas
(de produção e de recepção) geram a dupla articulação, marcada por
variados encontros e desencontros de interesses. Interessados em
propostas antirracistas mobilizadas por publicitários, enfatizamos,
aqui, que as práticas de produção publicitária “[...] são o lugar da
construção das mensagens publicitárias, e operam segundo uma lógica particular, na qual também há espaço para as contradições que
refletem o mundo social” (PIEDRAS, 2009, p. 67). Portanto, assim
como vemos disputas entre perspectivas antagônicas da sociedade
civil em torno de questões de raça no Brasil, a tendência é de que
não haja unanimidade entre os produtores sobre como a publicidade
deve se posicionar diante de temas efervescentes tais como o racismo.
Vista como um campo social, a publicidade auxilia atores de
outros campos a levar seus interesses a serem (re)conhecidos pela
esfera pública (PETERMANN, 2011). O campo publicitário se
constitui em meio a disputas por posições de poder perceptíveis nas
relações entre os diversos agentes produtores da publicidade. Petermann (2011) indica que essas disputas devem ser observadas a partir
das lógicas internas da criação publicitária, constituídas pela atuação articulada de diferentes agentes: as Instituições de Ensino Superior (formadoras dos sujeitos profissionais do campo), os sindicatos
e associações (que representam e/ou regulam a atuação de sujeitos e
empresas produtoras de publicidade), os eventos de premiação (avaliadores e divulgadores do que são consideradas boas práticas do
campo), as agências de publicidade (organizações empresariais que
protagonizam o desenvolvimento da publicidade enquanto negócio
e enquanto gênero de comunicação), os publicitários (sujeitos profissionais produtores da publicidade) e os anúncios (produto final da
atuação de todos os agentes citados acima).
Tais agentes constituintes das lógicas internas do campo publicitário se relacionam direta ou indiretamente com atores de outros
campos sociais, que, igualmente, possuem as suas lógicas de funcionamento. O movimento negro brasileiro pode ser visto como um
desses campos. Sua relação com o fazer publicitário tem sido marcada pela crítica ao uso de estereótipos e à invisiblização das pessoas
negras (entre os personagens representados em anúncios e/ou entre
os profissionais atuantes nas agências). Podemos dizer que o movi- 256 -
mento negro é um dos atores que mobiliza o que Wottrich (2019, p.
201-202) denomina como “práticas de contestação”, ou seja, “[...]
as modalidades de participação dos receptores orientadas a subverter ou minar as lógicas do campo publicitário, realizadas a partir do
contato com os anúncios”. Tais práticas são geradas e geradoras de
tensionamentos deflagrados em outros âmbitos da sociedade e que se
tornam movimentos de pressão coletiva por parte de receptores que
requerem o reconhecimento de suas pautas prioritárias pelo campo
publicitário. Algumas das pautas levantadas pelo movimento negro
em contestação à publicidade serão vistas na próxima seção do capítulo.
A pressão exercida pelas práticas de contestação da sociedade
civil repercute de diferentes maneiras no campo publicitário e reflete
a articulação entre a publicidade e o macrossional no nível estrutural e no nível das práticas cotidianas. Brum (2021), observando as
inter-relações do público contestador com as agências, anunciantes
e publicitários, observa três modalidades de dupla articulação entre
as práticas de contestação e as práticas de produção do campo publicitário: modalidade de produção blindada, modalidade de produção
sensibilizada e modalidade de produção engajada.
A modalidade de produção blindada apresenta situações em
que o campo publicitário se posiciona contra as requisições do público e nega que a publicidade brasileira reforce estereótipos geradores
de violências simbólicas e exclusões de grupos marginalizados pela
comunicação midiática. A modalidade de produção sensibilizada reflete “[...] o processo de recondução da comunicação publicitária por
parte de produtores diante de práticas de contestação” (BRUM, 2021,
p. 115) quando são publicados pedidos de desculpas e a veiculação de
campanhas é interrompida após questionamentos do público. Porém,
como foco do presente capítulo, ressaltamos a dupla articulação da
publicidade através da modalidade de produção engajada, que “[...]
trata de movimentos de produtores para integrar suas práticas com as
principais contestações realizadas pelo público”. É essa terceira modalidade que apresenta produtores atentos aos pedidos da sociedade
civil por transformações na publicidade, na direção de mais inclusão
e representatividade, por exemplo, de pessoas negras.
O movimento negro luta contra a constituição racista das forças hegemônicas no Brasil e pode encontrar apoio nas práticas de
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produção engajada do campo publicitário. Integrando essa perspectiva, apresentamos a seguir um breve panorama sobre a atuação do
Clube de Criação como agente do campo publicitário, agora dirigido
por um grupo de pessoas negras ativistas do movimento negro.
O clube de criação
Em 1975, um grupo de lideranças das maiores agências de
publicidade do Brasil criou uma entidade com propósito de proporcionar “[...] fortalecimento da criação e a consequente valorização
dos profissionais do setor” (40 ANOS, 1975), originalmente denominada Clube de Criação de São Paulo. Em 2015, demostrando consonância com buscas latentes por mudanças no campo publicitário,
seu nome passou a ser somente Clube de Criação, sob a justificativa
de possuir atuação mais abrangente e diversa, não focando somente
em São Paulo, apesar de a capital paulista ser o principal mercado
do setor (40 ANOS, 1975).
A atuação do Clube de Criação é marcada por traços característicos de cada um dos seis agentes do campo publicitário apresentados por Petermann (2011), destacados a seguir. Por se caracterizar
como um grupo representativo das melhores práticas criativas das
agências de publicidade brasileiras, bem como por ser liderado por
uma diretoria formada e eleita por publicitários associados, a entidade pode ser entendida como uma associação que promove visibilidade e melhorias para as práticas do campo publicitário. O Clube
não se relaciona somente com organizações mercadológicas, pois
mantém ativo o diálogo com instituições de ensino superior, promovendo cursos, palestras e também abrindo espaço para que estudantes de comunicação representem a entidade dentro de suas faculdades, bem como para que atuem como porta-vozes dos interesses
de seus colegas e professores junto ao Clube, através da iniciativa
Embaixadores do Clube (EMBAIXADORES..., 2015). O principal
meio para atingir seu propósito de valorizar o setor criativo é a premiação (através de um júri escolhido pela diretoria) dos melhores
anúncios de cada ano, compilados no Anuário do Clube de Criação,
prática ativa desde 1975 até os dias atuais. Assim sendo, o Clube de
Criação se coloca em um lugar de fomento e celebração das práticas
vigentes no campo publicitário em sua articulação presente com o
mundo social (PIEDRAS, 2009).
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Observar as práticas de produção publicitária brasileira pela
lente do Clube de Criação através da comparação da seleção realizada no anuário de 1975 (40 ANOS, 1975) com as edições dos últimos
anos nos permite perceber a crescente inserção da diversidade como
pauta (explícita em textos ou implícita na escolha dos corpos representados em anúncios), uma das possíveis repercussões das práticas
de contestação do público, geradora de movimentos mercadológicos
na última década no Brasil (WOTTRICH, 2019; BRUM, 2021).
A escolha de sua diretoria, objeto central deste capítulo, também pode ser vista como uma mudança essencial entre o que o Clube representava em 1975 e o que pode vir a representar a partir de
2021. Isso porque as duas chapas que concorreram nas últimas eleições chamaram atenção para a urgência de pluralidade na composição não somente das agências de publicidade, mas também dessa
associação que se propõe a representar o mercado como um todo.
Nesse sentido, é ilustrativa a Figura 1, que apresenta, da esquerda
para a direita: a fotografia da primeira diretoria da história do Clube,
formada exclusivamente por homens brancos; uma montagem com
fotografias de cada integrante da Chapa Preta, vencedora do pleito, formada exclusivamente por homens e mulheres negras; e uma
montagem com fotografias de cada integrante da Chapa 2, formada
por homens e mulheres brancos/as e negros/as, cujo manifesto publicado durante o período eleitoral afirmava: “[...] o Clube de Criação precisa mudar. Temos questões raciais urgentes, assim como em
relação a todas as suas intersecções (de gênero, classe, LGBTQIA+
e PCD), que precisam ser endereçadas e resolvidas.” (TAMAGNO;
HAGUIARA, 2021).
Figura 1. Comparativo do Clube de Criação 1975-2021
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de imagens disponíveis no portal do
Clube de Criação
(40 ANOS, 1975; CLUBE..., 2021a; CLUBE..., 2021b)3.
3 Ver em <https://www.clubedecriacao.com.br/>.
- 259 -
Obtendo quase 70% dos votos válidos, a Chapa Preta venceu
a eleição e se tornou representante da diretoria de uma importante
entidade do campo publicitário, gerando uma expectativa que pode,
de certa forma, ser aferida em trechos da declaração da Chapa 2, derrota no pleito: “Hoje perdemos uma eleição, mas sabemos que todo
o mercado ganha. [...] O resultado de hoje é um marco histórico para
o Clube de Criação e traz a confiança de que a mudança que tanto
queremos vai acontecer” (MENDES, 2021).
Para que possamos refletir sobre o potencial de mudanças a
serem geradas através da atuação da Chapa Preta, realizamos dois
movimentos a seguir. Primeiramente, apresentamos a primeira
postagem pública da chapa no Instagram – dedicada a pontuar um
olhar crítico sobre o campo publicitário – e a discutimos a partir de
noções teóricas que fundamentam discussões sobre raça, racismo
na sociedade e na publicidade. Em seguida, analisamos as demais
publicações relativas às propostas concretas de atuação da chapa,
entendendo-as como exemplos de possíveis práticas antirracistas a
serem promovidas na publicidade.
A chapa preta como agente do antirracismo na publicidade
Entendemos a primeira postagem realizada pela Chapa Preta
no Instagram como uma espécie de cartão de visitas que resume
o que pensam seus integrantes e os desafios que entendem como
prioritários para quem se propõe a liderar o Clube de Criação entre
2021-2023. Já na frase inicial dessa publicação, percebemos que sua
intenção de dirigir a entidade não se limita a valorizar e fortalecer
o setor criativo genericamente (que é o propósito da entidade, de
acordo com seu manifesto de fundação), mas prioriza a urgência de
debater abertamente o racismo na publicidade:
Já passou da hora da gente ser visto. Porque é muito cansativo construir ambições em um mercado em que corpos negros são solitários,
deixados aos cantos ou reduzidos a narrativas únicas. Nós somos
plurais. Potentes. A luta dos nossos ancestrais valeu a pena. A gente
veio para ocupar. Para reivindicar o que é nosso e reinventar as
estruturas, se preciso. Por isso, nós, publicitárias e publicitários
negros, de diferentes lugares do Brasil, decidimos juntar forças e
articular a CHAPA PRETA para concorrer aos cargos diretivos do
Clube de Criação. (CHAPA PRETA, 2021).
- 260 -
Consideramos que o tom crítico desse posicionamento é decorrente do entendimento de que as violências contra pessoas negras não ocorrem apenas em atos de discriminação explícitos e facilmente identificáveis. Almeida (2020, p. 32) define racismo como
“[...] uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como
fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes
ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a
depender ao grupo racial ao qual pertençam”. A denúncia da Chapa
Preta da exclusão racista praticada pelo campo publicitário dialoga
com os inúmeros casos de anúncios veiculados com discursos discriminatórios disfarçados de humor ou de normalidade, bem como
refere-se à limitação imposta às carreiras de profissionais negros. A
“discriminação indireta” é uma das formas de deixar os corpos negros nos cantos, ou seja, está contida em atos que desconsideram dificuldades da população negra (majoritariamente de classes sociais
mais baixas [VILLAS BÔAS, 2019]) para obter capital financeiro,
cultural, educacional e qualificação profissional, e que impõem “[...]
regras de ‘neutralidade racial’- colorblindness – sem que se leve em
conta a existência de diferenças sociais significativas”, por exemplo,
nos momentos de disputa por vagas de trabalho em agências (ALMEIDA, 2020, p. 33, grifos do autor).
Entendemos que quando a Chapa Preta se posiciona como um
grupo caracterizado por pessoas racializadas articuladas para ocupar
a diretoria do Clube de Criação, faz uma alusão à ideia de “discriminação positiva”, ou seja, a proposta de empregar um “[...] tratamento discriminatório a fim de corrigir ou compensar a desigualdade”
(ALMEIDA, 2020, p. 34), fazendo com que a raça seja uma questão central nas discussões sobre como transformar o campo publicitário em um ambiente socialmente mais diverso, respeitador das
diferenças e justo. Schucman (2010) ressalta que a categorização
dos humanos em raças diferentes é a fonte da discriminação contra negros e que, justamente por isso, deve ser ativada em práticas
que visem combater o racismo. A autora acredita em uma “política
do reconhecimento” (TAYLOR, 1998 apud SCHUCMAN, 2010, p.
49) que ressalte representações positivas de sujeitos historicamente
subalternizados e estereotipados, ressignificando a categoria raça:
“[...] a política do reconhecimento não é apenas um respeito a esses
grupos, mas também uma necessidade vital para a constituição dos
indivíduos” (SCHUCMAN, 2010, p. 49).
- 261 -
Além de percebermos filiação à ideia de discriminação positiva para construir uma política de reconhecimento na publicidade,
entendemos que a publicação inaugural da Chapa Preta toca em dois
pontos fundamentais na discussão sobre racismo na sociedade brasileira: o racismo institucional e o racismo estrutural.
O Clube de Criação, conforme já dissemos, é uma associação
voltada aos interesses da publicidade – campo que dialoga (seja harmônica ou conflituosamente) com os demais campos na sociedade.
Esse campo é tratado pela Chapa Preta como um mercado cujas corporações abandonam ou estereotipam corpos negros, nos levando a
entender que o racismo na publicidade não é visto somente em ações
isoladas e movidas por sujeitos individualmente. Segundo Almeida
(2020, p. 40) esses são os traços que delineiam a prática de “racimo institucional”, percebida quando “[...] instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos
institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos”. A
liderança histórica de uma maioria esmagadora de homens brancos
(tanto no Clube de Criação quanto no campo publicitário como um
todo) estabelece regras e padrões que normalizam a branquitude no
poder, dificultam a inserção e valorização de pessoas negras (e de
mulheres) e relegam a importância da discussão sobre discriminação
racial a um plano inferior.
Para Schucman (2010), negros são racializados, enquanto
brancos são autoproclamados universais, sem marcas que coloquem
a branquitude como diferente de algo ou alguém, mas como referência de neutralidade. Moreno Fernandes (2020, p. 22), pontua que
“[...] ao reforçar um imaginário de branquitude na mídia, a publicidade constrói o imaginário sobre o que é ser brasileiro, excluindo a
presença das pessoas negras deste”. Carneiro (2003), aprofundando-se na relação entre raça, gênero e comunicação, equipara a estereotipação midiática com outras violências e coloca o embranquecimento do padrão estético socialmente normalizado como inibidor do
desenvolvimento de questões como sexualidade, relações afetivas e
desenvolvimento profissional de mulheres negras. Sua perspectiva é
de que a comunicação midiática (na qual se enquadra a publicidade)
é ativa na construção e reconstrução de sistemas de representação e
deveria agir para afirmar positivamente a imagem da mulher negra,
desligando-a dos clássicos estereótipos subalternos. A mudança dos
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padrões representados pelos anúncios passa, necessariamente, por
uma mudança nas perspectivas institucionalizadas nas agências de
publicidade. E deve provocar e/ou reproduzir transformações sociais favoráveis à equidade.
Mesmo o aumento da presença de pessoas negras em anúncios deve ser questionado criticamente. Concordarmos com Sodré
(1999), que considera a inclusão estética de pessoas negras uma
estratégia de promover consumo e de harmonizar conflitos com o
público enquanto as lógicas do racismo são mantidas intactas, o ele
que caracteriza como uma “encenação mercadológica da diferença”.
Moore (2000, p. 31) reforça esse raciocínio ao dizer que a propaganda contemporânea, ao ceder espaço para novas representações
identitárias, “[...] continuamente reinscreve as categorias e discursos
dominantes pela referência a uma relação fixa de diferença, embora
pareça incorporar o desafio, a resistência e a mudança”. Por mais
que a diversidade seja pauta requerida pelas minorias, ela não representa, necessariamente, libertação ou emancipação das lógicas
de poder. Segundo Ribeiro (2008, p. 203), “[...] a diversidade pode
ser uma ferramenta para a reprodução ou para a contestação da hegemonia”. Para que a inclusão negra não seja somente funcional,
para responder a objetivos de vendas e de pacificação superficial,
é preciso que reconheçamos práticas consistentes, que conduzam o
mercado publicitário a reinventar suas institucionalidades.
Entendemos que a proposta da Chapa Preta caminha nesse
sentido positivo de contestação do racismo institucional e que vai
além ao destacar a disposição de atuar pela reinvenção de estruturas,
o que nos conecta à ideia de “racismo estrutural”. Almeida (2020,
p. 47) ressalta que “[...] as instituições são racistas porque a sociedade é racista” e explica a existência de uma ordem social (dito de
outra forma, uma estrutura) defendida por lógicas institucionais racistas. Quando a sociedade não privilegia o debate sobre a presença
de racismo no cotidiano, deixa de ir em busca de propostas para
solucionar as violências, as normaliza e, por consequência, induz
as instituições – como agências de publicidade – a atuarem de acordo com esse cenário discriminatório no qual se inserem. Por isso, a
Chapa Preta aborda a necessidade de romper com a estrutura. Almeida (2020, p. 48) pontua que “[...] se o racismo é inerente à ordem
social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da
- 263 -
implementação de práticas antirracistas efetivas”. Martins (2019) é
contundente ao dizer que o campo publicitário deve reconhecer a
necessidade de reconfigurações estruturais na relação entre a publicidade e a negritude, e sugere como ponto de partida uma mudança
ética que reconheça a cidadania e humanidade das pessoas negras.
Para Brah (2006), o poder se constitui nas práticas econômicas, políticas e culturais, e, através delas, são formadas as subjetividades de dominados e dominantes de maneiras dificilmente previsíveis. Nesse sentido, práticas originadas da entrada de minorias
no âmbito produtivo e decisório da publicidade – como a direção
do Clube de Criação pela Chapa Preta – encaminharão resultados
perceptíveis no futuro. A autora defende que “[...] se a prática é
produtiva de poder, então a prática é também um meio de enfrentar
as práticas opressivas do poder” (BRAH, 2006, p. 373, grifos da
autora). Pensar no âmbito das práticas é o que aproxima a presente
reflexão de uma visão mais otimista, na direção de que as contestações do movimento negro, ao serem defendidas por agentes ativistas
atuantes no campo publicitário, possam estar em vias de construir
mudanças estruturais na publicidade.
Propondo a emergência de uma “publicidade antirracista”,
Leite e Batista (2019, p. 13) reforçam a necessidade de “[...] repensar os espaços publicitários brasileiros, da produção aos consumos,
considerando em seus fluxos perspectivas e ações antirracistas, que
colaborem para o enfrentamento e a superação do racismo nesses
espaços” e questionam:
“Como o campo publicitário poderia se movimentar para promover
e expressar a igualdade racial em suas práticas? Quais caminhos e
desafios precisam ser observados e enfrentados para garantir que a
mutualidade, equidade, isto é, o equilíbrio entre as representações
raciais, tanto nos espaços profissionais da produção publicitária
quanto nas suas narrativas de ações de marcas, seja assegurada?
(LEITE; BATISTA, 2019, p. 14).
Entendemos que a constituição e eleição da Chapa Preta tem
potencial de encaminhar respostas parciais a esses questionamentos
que reverberam entre pesquisadores de publicidade críticos à sua
imobilidade enquanto campo social. Por isso, avançamos o presente
capítulo para a próxima seção, dedicada a descrever e analisar as
propostas práticas divulgadas pela chapa em seu perfil do Instagram.
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As propostas antirracistas da Chapa Preta
Ao todo, há sete postagens intituladas como propostas. Dessas, três não contêm menções diretas a ideias antirracistas. Duas das
três referidas postagens abordam assuntos redundantes entre si: as
relações institucionais da entidade, com finalidade de manter viva
a memória e zelar pela reputação da criatividade brasileira. São os
textos mais intimamente relacionados à atuação histórica do Clube,
com trechos como “[...] a gente quer manter a memória e excelência
da propaganda por meio de ações que promovam encontro de ideias
e atualização de profissionais” e “[...] a gente também pretende expandir e fortalecer relações com entidades e empresas de comunicação, a fim de garantir a manutenção da boa reputação da criatividade
brasileira no mundo” (CHAPA PRETA, 2021). A outra postagem
sem menção direta a antirracismo refere-se a uma intenção de fazer bom uso dos canais de comunicação digital do Clube para abrir
diálogo com mais pessoas e instituições, “[...] com o objetivo de
incentivar a economia criativa do país e promover novos talentos do
mercado” (CHAPA PRETA, 2021).
Paradoxalmente, podemos dizer que o uso repetido da expressão manter, ao se referir ao que a publicidade historicamente
representa e (re)constrói socialmente, passa uma ideia contraditória
à intenção de contestar as institucionalidades do campo publicitário e reinventar as estruturas que o conformam. Contudo, também
podemos encontrar o recado implícito do desejo de transformação
nas propostas de ampliar o leque de profissionais em destaque no
mercado, de não esquecer o passado (o que pode ser visto sob o
viés de recordar para não repetir) e de trabalhar pelo reconhecimento
global, em um momento em que a publicidade como um todo passa
por uma renovação do que é considerado social, comercial e tecnicamente adequado. Tal olhar progressista se sobressai ao cruzarmos
tais publicações com as outras quatro postagens analisadas a seguir.
A primeira publicação intitulada Propostas realizada pela
Chapa Preta afirma que novas perspectivas são fundamentais para
“[...] manter vivo o propósito do Clube de Criação” e centraliza esse
novo olhar na busca por fazer a publicidade “[...] representar a diversidade da população brasileira” (CHAPA PRETA, 2021). Para isso,
em conjunto com a postagem posterior, elenca seis ações práticas e
objetivas a serem realizadas.
- 265 -
A primeira delas é “[...] incentivar o aumento do número de
associados negros e não-brancos” (CHAPA PRETA, 2021), o que
demonstra uma intenção de estimular a ocupação dos espaços na
entidade em questão por pessoas negras, atribuindo-lhes poder de
decisão e de requisitar a priorização de suas pautas na construção da
publicidade brasileira (no que cabe à atuação do Clube).
A segunda é “[...] fomentar parcerias com entidades sociais
de apoio a populações minorizadas” (CHAPA PRETA, 2021), uma
iniciativa que explicita o entendimento da chapa de que a publicidade não se restringe às lógicas comerciais na sua articulação com o
mundo social e que, para reconstruir as institucionalidades do campo publicitário, é preciso repensar seu vínculo com a estrutura macrossocial.
No que diz respeito à atuação central do Clube em relação à
memória da publicidade brasileira, propõe “[...] organizar um arquivo de propaganda que garanta a representação positiva de pessoas
não-brancas” (CHAPA PRETA, 2021), em mais uma evidente intenção de reconstruir a história que é criada e contada pela publicidade
no Brasil.
A Chapa Preta defende, também, a descentralização do poder
decisório, criando um Conselho Colaborativo no Clube que reflita,
numericamente, a proporcionalidade da população brasileira, contando com a presença de “[...] pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência e pessoas em situação de refúgio”
(CHAPA PRETA, 2021), um indicativo de que a urgência das questões de raça não limita o pensar sobre as demais minorias sociais da
sociedade em sua relação com o campo publicitário.
A quinta proposta refere-se a “[...] reforçar o caráter educativo do CCSP com cursos, aulas, materiais e exposições que tenham como meta os pilares da criatividade, diversidade e inovação”
(CHAPA PRETA, 2021), e, nesse sentido, observamos que a presença da ideia de diversidade convive com dois valores mais comuns e
históricos da publicidade (criatividade e inovação), sendo mais um
indicativo de renovação das práticas institucionalizadas.
A sexta proposta explícita e objetiva da chapa promete criar
aliança com o Observatório da Diversidade e outras entidades para
“[...] promover e publicar pesquisa com dados estatísticos sobre a
diversidade na propaganda” (CHAPA PRETA, 2021). Entendemos
- 266 -
que tal ação pode reverberar no mercado como uma denúncia relativa à urgência de que o racismo e outras discriminações sejam debatidas pelo campo, além de, possivelmente, fornecer insumos para
decisões de onde priorizar a energia do próprio Clube para mitigar
os efeitos do racismo na publicidade brasileira.
Além dessas duas publicações que trazem pautas de trabalho
bastante concretas, as últimas duas analisadas reforçam a ideia de
que novas perspectivas são vitais para a reconfiguração das práticas institucionais do mercado publicitário. Nelas, a Chapa Preta defende que “[...] jovens talentos movimentam a criatividade” e, por
isso, pretende “[...] aproximar o Clube de estudantes de instituições
menos visadas ou fora do eixo SP-RJ, [...] incentivar a diversidade
de profissionais nas fichas técnicas de peças, [...] buscar e propor
parcerias para a concessão de bolsas e apoio a pessoas de grupos
minorizados” (CHAPA PRETA, 2021).
Para finalizar essa descrição e análise das propostas de práticas antirracistas da nova diretoria do Clube de Criação, destacamos uma afirmação que demonstra a ideia central das requisições
do movimento negro na direção de uma publicidade mais inclusiva
e representativa, que ceda espaços de voz e de escuta para as populações marginalizadas e/ou estereotipadas: “[...] se todo mundo tem
espaço pra falar, conseguimos pautar assuntos de interesse coletivo
e representativo” (CHAPA PRETA, 2021).
Considerações provisórias
O capítulo não se propõe a encaminhar considerações finais,
mas provisórias. O tema tratado é de tamanha abrangência e tão enraizado na estrutura social brasileira que, em hipótese alguma, um
breve texto acadêmico-científico deve ter a pretensão de encerrar
qualquer discussão. Pelo contrário, o que propomos é o início de
uma problematização a partir da inter-relação entre discussões teóricas consolidadas sobre publicidade e sobre racismo para que possamos fundamentar a análise das propostas de atuação institucional-mercadológica que está recém sendo iniciada pela Chapa Preta à
frente da diretoria do Clube de Criação.
Há décadas, a mídia e o campo publicitário brasileiro sustentam uma construção social de normalidade ao representar majoritariamente pessoas brancas e, simultaneamente, marginalizar ou
- 267 -
estereotipar a maior parte da população. Isso tudo em benefício daqueles que detêm o poder. Ocorre uma espécie de realimentação do
grupo hegemônico sem que este seja tensionado, afastando o campo
publicitário das mudanças estruturais consideradas necessárias por
quem defende a equiparação de direitos às minorias.
As noções teóricas apresentadas dialogam com o objetivo do
presente capítulo no sentido de embasar o entendimento de que a
publicidade se constitui não somente dos objetivos comerciais dos
anunciantes, mas também da sua relação com aspectos políticos e
culturais do mundo social. Por isso, reflete, produz e reproduz, em
suas práticas, disputas em torno das questões de raça presentes no
cotidiano brasileiro. O movimento negro possui interesse contestatório, como costumam ser os interesses das minorias sociais. Segundo
Sodré (2005, p. 14): “[...] minoria é uma recusa de consentimento, é
uma voz de dissenso em busca de uma abertura contra-hegemônica
no círculo fechado das determinações societárias. É no capítulo da
reinvenção das formas democráticas que se deve inscrever o conceito de minoria”. Se as práticas de produção publicitárias se articulam
às práticas de contestação do público, além da possível mudança do
discurso que circula socialmente através de anúncios, um provável
desdobramento é a reconfiguração das institucionalidades do campo
publicitário que constituem o cotidiano das agências.
Ressaltamos, entre as propostas de atuação da Chapa Preta, a
intenção de enegrecer o campo publicitário e, com isso, ocupar os
espaços de debate sobre o desenvolvimento do mercado com perspectivas diferentes daquelas que constituíram uma publicidade que
reproduz o racismo na sociedade brasileira. Entre as possibilidades
observadas, destaca-se a intenção de produzir um novo cenário mais
inclusivo e colaborativo, em termos individuais e institucionais,
através do incentivo ao crescimento profissional de jovens marginalizados e do estreitamento de relações com entidades interessadas
em romper com mazelas sociais tais quais o racismo estrutural.
Seguir observando as ações do Clube de Criação nos próximos
anos é um dos caminhos possíveis para, através da pesquisa acadêmico-científica, colaborarmos com a construção e disseminação de
conhecimento obtido a partir da prática. Uma prática orientada por
preceitos antirracistas, que honra a luta daqueles que vieram antes,
que busca dialogar com as contestações às práticas mercadológicas,
- 268 -
que se propõe diversa, dialógica e inclusiva, e que pretende fazer
com que vozes até então pouco ouvidas se tornem protagonistas nos
ambientes de decisão sobre a forma como a publicidade brasileira
quer ser vista hoje e lembrada amanhã.
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CAPÍTULO 14
Aperitivos ecofeministas: alternativas para
pesquisas sobre violência, poder e dominação
Larissa Lunkes de Souza
Contextualização geral sobre ecofeminismos
Estipula-se como marco para o movimento feminista o século XIX e início do século XX, momento contextualizado como a
primeira onda, na qual mulheres europeias se mobilizaram em prol
do sufrágio universal (REIMER, 2019). Nesse período, a filósofa
Simone de Beauvoir publica a obra O Segundo Sexo (1949), gerando o start acadêmico da análise da construção sobre quem eram as
mulheres e como elas foram definidas e consideradas como Outro ao
longo da história ocidental.
É essencial destacar dois aspectos desse começo do que se
considera feminismo: primeiramente, que ele surge da organização
social em massa das mulheres, causada por um problema de silenciamento, ausência e dominação exercida sobre elas na construção da
sociedade. Assim, havia um descontentamento com a falta da construção das mulheres enquanto sujeitos que promovem o movimento
e produções acadêmicas feministas. O segundo aspecto é relativo a
que, numa linha cronológica, antes de Simone de Beauvoir, houve
diversas mulheres durante a história ocidental que se recusaram às
imposições patriarcais e que escreveram sobre os mais diversos temas, inclusive sobre serem mulheres, mas que, no entanto, foram
silenciadas e apagadas da história. Hoje, o movimento feminista
conseguiu resgatar algumas delas, como: Safo de Lebos, Aspásia de
Mileto, Diotima de Mantinea, Hipátia de Alexandria, Hildegarda de
Bingen, Christine de Pisan, Olympe de Gouges (PACHECO, 2016).
Esse resgate resultou de esforços das feministas no âmbito
acadêmico para reconstruir a história das mulheres, mostrando uma
“rebeldia”, no sentido de não conformação com a narrativa que diz
que as mulheres foram inertes ao longo da história. Porém, dado
tamanho silenciamento que sofreram, como diz a filósofa Caroline
Marim (no prelo), é necessário compreender a história das mulheres
- 273 -
como uma colcha de retalhos “[...] cujos pedaços se encontram espalhados ao longo da história”. Portanto, sugiro o seguinte questionamento: produzir sobre história das mulheres não seria uma forma de
colocar em questão a ciência e sua forma de compreensão do tempo
a partir da linearidade?
Também, é válido ressaltar a contribuição da historiadora
Silvia Federici em seu livro Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e
Acumulação Primitiva (1970), sobre as mulheres do campo que, ao
longo da história medieval, se organizavam e reivindicavam seus
direitos e interesses (FEDERICI, 2017). Com isso, destaco que a
produção acadêmica por si só não bastou para combater o silenciamento, tampouco bastou o movimento social de mulheres. Portanto,
entende-se a união desses dois elementos como o contexto histórico
que foi suficiente para que as mulheres pudessem resistir e organizadamente reivindicar espaços e propostas dentro do “constructo
hegemônico da história ocidental”.
Diferentemente de outros séculos, o século XX é recheado
por guerras, o que fez dele o século da tecnologização a serviço da
morte, com aprimoramento de tanques, gases, metralhadoras e da
bomba nuclear. Assim, é um período vivencial distinto dos demais,
pois se globaliza o horror, o genocídio, a tortura, o massacre e o
etnocídio. Uma das consequências desse período histórico, como
aponta Eric Hobsbawn (1997, p. 147), é a destruição do passado
como resultante do presente:
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que
vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – um
dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século
XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
Todavia, como o Hobsbawn (1997, p. 161) destaca: “Somos
partes deste século. Ele é parte de nós”, e há diversas maneiras de se
ser autor de vivências e consequências deste período. Proponho que
se pense na condição das mulheres que historicamente foram colocadas na condição de cuidado e do regimento do campo doméstico,
para essas mulheres o século XX se apresentou com a destruição
das suas casas e territórios - especialmente as mulheres do campo
- 274 -
situavam-se impossibilitadas de produzir seus meios de subsistências, como à alimentação. Deste modo, Ivone Gebara (2017) afirma
que as mulheres experienciaram as guerras de modo distinto que
os homens porque enquanto eles eram recrutados para lutarem nas
guerras, elas sentiam a dor de perder seus filhos, maridos e parentes,
como também cuidavam nos fronts de batalhas dos soldados feridos.
Ressalto a importância de que as mulheres, em sua totalidade,
vivenciaram a guerra de modo distinto dos homens. Enquanto eles,
ainda que com recortes de raça e classe, iam para os campos de
batalha, as mulheres, na sua totalidade e devido ao constructo histórico, não foram para tais campos, ao menos não com a função de
soldadas. Os diferentes recortes, como classe, raça e território, modificaram, dentro do espaço “doméstico”, sob quais circunstâncias e
ângulos as mulheres viveriam as experiências da guerra.
Com algumas conquistas e muita repressão, os movimentos de mulheres constituíram o que se convencionou de chamar de “segunda
onda”, que tem na década de 1960 um marco referencial, junto com
os movimentos contestatórios estudantis, pacifistas (guerra Vietnã)
e hippies. (REIMER, 2019, p. 125).
Ivone Reimer (2019) descreve essa segunda onda como um
movimento social que coexiste com os demais movimentos sociais,
e, na sua particularidade, levanta o slogan feminista “o pessoal é
político”, dado o contexto de grande repressão da primeira onda e,
em especial, a desilusão com as conquistas de direitos civis. Assim,
esse feminismo traz para o debate público o que anteriormente era
visto como somente particular (REIMER, 2019). Por exemplo: há
uma ascensão do abolicionismo e mobilização de mulheres negras,
em especial na América do Norte, o que será considerado feminismo
negro, atualmente também nomeado como decolonial e afrodiaspórico. Ao mesmo tempo, surgiram mulheres em distintas partes do
globo e de distintos recortes sociais reivindicando seus territórios e
o cuidado com o meio ambiente.
Assim, foi definido que o início do ecofeminismo se deu na
década de 1970, quando esse termo foi utilizado pela primeira vez
pela francesa Françoiuse D’ Eubonne, em 1974 (KHEEL, 2019).
Porém, conforme Maximiliano Torres (2009), essa vertente só se
tornará popular na década de 1980, no contexto de ascensão das
- 275 -
manifestações em prol de proteção ambiental. Todavia, há uma impossibilidade de afirmar com exatidão quando de fato mulheres começaram a se mobilizar em prol do que se considera essa vertente,
justamente por ela ser resultado de mobilizações independentes e
em diferentes espaços territoriais. Dessa maneira, desde o germe
do ecofeminismo, se torna incongruente concebê-lo desta forma: se
surgiu de movimentos independentes plurais, com mulheres em recortes distintos, como será possível pensar este movimento de forma
singular?
Em vista disso:
As correntes ecofeministas apresentam diferentes respostas para
essa pergunta, por isso podemos chamar de ecofeminismos (no plural). Na literatura ecofeminista, podem ser identificadas diversas
interconexões entre a dominação das mulheres, dos animais e da
natureza: histórica, conceitual, empírica, socioeconômica, linguística, simbólica e literária, espiritual e religiosa, epistemológica, política e ética. (WARREN, 2000 apud ROSENDO; ZIRBEL, 2019,
p. 122, grifos meus).
Antes de adentrarmo-nos na pergunta que Daniela Rosendo e
Ilze Zirbel colocam na citação acima, é necessário o questionamento: “mas, afinal, o que é ecofeminismo?”. Em palavras mais específicas: “o que faz do ecofeminismo uma vertente do feminismo e
não apenas um feminismo com preocupação ambiental?”; “qual a
centralidade das teorias ecofeministas que as possibilita estar dentro
de uma mesma vertente?”.
Para se pensar sobre por que o ecofeminismo deveria ser considerado uma vertente feminista, cabe o seguinte questionamento:
por que existem vertentes feministas? Por que não considerar apenas feminismo? Assim, se faz jus à colocação de que o que une as
mulheres no termo feminista são as considerações comuns de que
estamos em um sistema patriarcal e que mulheres vêm sendo vítimas
de opressões por serem mulheres. Todavia, estamos falando de mulheres: pessoas com racionalidade e emoções, experiências diversas,
raça, classe, corpo marcado, uma localidade, gostos e afinidade...
As diferenças entre as mulheres vão resultar em múltiplas perspectivas, ou seja, distintas maneiras de conceitualizar a opressão à qual
são submetidas, assim como as causas dessa opressão e estratégias
para vencê-la. Também resultarão em diferentes utopias e formas de
acreditar no que devem construir.
- 276 -
Assim, a multiplicidade de existências de mulheres causa a
necessidade de compreensão de um feminismo no plural, em que as
vertentes exemplificam as premissas centrais da análise feminista.
Por exemplo: feministas radicais propõem a ida à raiz de quem é a
mulher; as feministas marxistas defendem o feminismo inserido na
luta de classes. Ou seja, por mais que as autoras destas vertentes – e
das demais – sejam feministas, suas análises possuem sentidos e
lógicas inconciliáveis.
Reimer (2019) põe a multiplicidade de vertentes dentro do
feminismo como consequências do evento da Quarta Conferência
Mundial sobre a Mulher, em 1995, em Beijing, na China, e dos Fóruns Sociais Mundiais. Na análise da autora em questão, esses eventos tornaram o feminismo mais heterogêneo e complexo, ou seja,
ampliaram seu campo de atuação e embates (REIMER, 2019) – aspecto esse que é uma das marcas da terceira onda do feminismo,
“começada em 1990” com o objetivo de “afirmar e alargar as tendas” (REIMER, 2019, p. 127).
Comumente, as vertentes feministas caracterizam as categorias de mulheres: mulheres brancas burguesas, operárias, negras,
lésbicas/queers, indígenas. E se a degradação do meio ambiente,
toxicidade alimentar, poluição generalizada não são temas exclusivamente das mulheres, mas sim de preocupação de toda a espécie
humana – mesmo que determinados grupos sejam mais afetados que
outros – por que o ecofeminismo deveria ser uma vertente?
Um projeto feminista não é, por isso, um projeto “feminino” e não
é um projeto de e para mulheres, mas é um projeto de construção e
respeito mútuo em direção a uma sociedade de cooperação igualitária – também porque necessita repensar a sua relação com outros
marcadores sociais. (SATTLER, 2019, p. 184).
Considerando a citação acima de Sattler, sobre a amplitude
dos projetos feministaS, e as contribuições de Reimer, entende-se
que os feminismos atuavam como projetos de libertação e liberdade
de “pelo menos” da espécie humana; o ecofeminismo surge ao longo
da segunda onda e desenvolve teorias centrais próprias, ou seja, o
eco não é apenas uma preocupação ambiental, mas sim uma centralidade e composição das áreas, teorias e dos movimentos sociais:
da ecologia e do feminismo (REIMER, 2019). Por esses motivos, o
ecofeminismo é uma vertente dentro do feminismo.
- 277 -
Como dito anteriormente, ecofeminismoS devem ser entendidos em sua pluralidade. Marti Kheel enfatiza essa questão ao afirmar
que não existe uma filosofia única do ecofeminismo. Mesmo assim,
a autora sugere uma explicação brevíssima/ampla sobre o que significa ecofeminismo: “[...] refere-se à ideia de que a desvalorização
das mulheres são associadas com a natureza e por isso são desvalorizadas. A desvalorização das mulheres é também comumente vista
como conectada com outras formas de opressão” (KHEEL, 2019, p.
32). Para o ecologista Capra (1996, p. 23 apud TORRES, 2009, p.
164):
Os ecofeministas vêem a dominação patriarcal de mulheres por
homens como o protótipo de todas as formas de dominação e exploração: hierárquica, militarista, capitalista e industrialista. Eles
mostram que a exploração da natureza, em particular, tem marchado de mãos dadas com a das mulheres, que têm sido identificadas
com a natureza através dos séculos. [...] os ecofeministas vêem o
conhecimento vivencial feminino como uma das fontes de uma visão ecológica da realidade.
Com o marco do que é ecofeminismo, pode-se retomar a pergunta de Daniela Rosendo e Ilze Zirbel (2019, p. 122): “Qual a relação entre a opressão das mulheres, dos animais e da natureza?”.
As ecofeministas vêm desenvolvendo suas teorias e estabelecendo
seus laços com a natureza, investigando essas associações. Correntes diferentes – tanto de análise, como de localidade – vão encontrar
associações distintas para essa pergunta central.
Todavia, há temas recorrentes nas teorias ecofeministas que
são interessantes de já serem minimamente abordados, dentre deles: interseccionalidade, conexão da opressão das mulheres com as
demais opressões, oposição a lógicas binário-hierárquicas – e, ao
recusar as lógicas binárias, surge uma defesa da multiplicidade/pluralidade, princípio da coexistência, ética do cuidado, e a associação
patriarcal de homem-cultura superior à mulher-natureza. Assim, em
relação a este último, a degradação ambiental reforça a soberania da
cultura, ou seja, o domínio dos homens sobre as mulheres.
Dito isso, este capítulo seguirá, inicialmente, expondo os elementos centrais do antagonismo entre o ecofeminismo essencialista/
clássico e o construtivista. Posteriormente, abordaremos um pouco
sobre o ecofeminismo animalista, em especial o abordado pela au- 278 -
tora Carol Adams, apresentando uma síntese do que é prioritário em
sua construção teórica. Na sequência, discute-se sobre a filósofa-bióloga Donna Haraway, que monta seu ecofeminismo animalista
pelas relações interespécies, salientando duas obras centrais de seu
pensamento animalista.
Ecofeminismo essencialista ou ecofeminismo construtivista?
O ecofeminismo essencialista e o construtivista se apresentam como antagônicos na literatura ecofeminista. No entanto, também fazem parte de uma concepção central que influenciará outras
ecofeministas; ou seja, dentro do ecofeminismo animalista ou do
Sul global, se encontrará autoras que dialogam mais com a ideia do
essencialismo e outras com a do construtivismo. Mas, por quê?
A ilustre frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”, da
francesa Simone de Beauvoir, inicialmente significa que não existe
uma essência da mulher, mas que a mulher é uma construção social. A argumentação da autora se baseou na dicotomia patriarcal
cultura-homem/natureza-mulher, que descreve que os homens vão
se desenvolvendo, em sua existência, como seres para o mundo –
para a cultura – assim tornando-se seres de existência autêntica. Por
outro lado, as mulheres são criadas para uma existência inautêntica,
indeterminada, sendo negada a cultura para elas, fadadas apenas a
reproduzir “ciclos naturais” como reprodutoras, mães, cuidadoras.
Essa análise foi fundamental para grandes conquistas feministas,
como acesso ao voto, mercado de trabalho, divórcio, entre outros.
No contexto da segunda onda do feminismo, feministas começaram a debater sobre o meio ambiente utilizando suas próprias
categorias de apreensão da realidade. Assim, surge o ecofeminismo,
que reflete sobre o meio ambiente através do patriarcado, androcentrismo, cuidado, sexismo e gênero (PULEO, 2019). Conforme
Daniel Kirjner, o ecofeminismo, surgido no final da década de 1970,
surgirá associado ao feminismo radical e espiritual (KIRJNER,
2019). Essas filósofas reivindicaram a dicotomia homem-cultura/
mulher-natureza que foi questionada por Beauvoir, dando a ela um
novo significado:
Elas inverteram a valorização desse par conceitual que nos pensadores tradicionais servia para sustentar a inferioridade das Mulheres e afirmaram que a Cultura masculina, obcecada pelo poder,
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havia levado a guerras suicidas e ao envenenamento da terra, da
água e do ar. Do Homem, viram a agressividade; em Mulheres, a
esperança de conservação da Vida. Alguns grupos se organizaram
em torno do pacifismo, outros desenvolveram um espiritualismo
ecofeminista como cultos da Deusa Terra que buscavam o reencantamento do mundo em face de sua dessacralização instrumentalizadora da Terra reduzida à mera matéria prima4. (PULEO, 2019, p.
49, tradução minha).
Algumas das teóricas do movimento do ecofeminismo essencialista/espiritualista são: Sherry Ortner, Rosemary Radford Ruether
– teóloga, Susan Griffin – filósofa, Caroltn Merchant – filósofa e
historiadora da ciência, Mary Daly – teóloga e filósofa5. Também,
algumas dessas ecofeministas defendiam claramente a superioridade inata das mulheres, como Daly, por causa dos fatores provindos
das suas experiências espirituais com a natureza (KIRJNER, 2019).
Porém, essa perspectiva de que as mulheres seriam mais espiritualizadas que os homens sofrerão críticas:
Contudo, como apontou Audre Lorde, todos estes elementos indicadores do gênero feminino como superior remetiam à experiência
das mulheres brancas norte-americanas. Deidades africanas não tinham espaço neste discurso e valores dissidentes também não. E
mais: o ecofeminismo defendia uma luta universalista de mulheres,
o que supria as manifestações das subjetividades das mulheres negras no processo. (KIRJNER, 2019, p. 155).
Da mesma forma, essa perspectiva espiritualista feminina não
incluía as deidades africanas, tampouco incluía deidades indígenas.
Por conta disso, algumas autoras, como Alicia Puelo, entendem essa
corrente como clássica, enquanto as espiritualistas são as que irão
surgir do Sul global, como Vandana Shiva (PULEO, 2002), que não
se basearam em deidades ocidentais e nem excluíram outras deidades necessariamente. Porém, é válido ressaltar que as visões dos
ecofeminismos espiritualistas possuem uma perspectiva essencia4 Parágrafo original: “Invirtieron la valoración de este par conceptual que en los pensadores
tradicionales servía para sostener la inferioridad de la Mujer y afirmaron que la Cultura
masculina, obsesionada por el poder, había conducido a guerras suicidas y al envenenamiento
de la tierra, el agua y el aire. En el Hombre, vieron la agresividad; en la Mujer, la esperanza
de conservación de la Vida. Algunos grupos se organizaron en torno al pacifismo, otros
desarrollaron un espiritualismo ecofeminista con cultos a la Diosa Tierra que buscaban el
reencantamiento del mundo frente a su desacralización instrumentalizadora que de Terra
manter lo había reducido a mera materia prima”.
5 Professora muito influente na formação da ecofeminista animalista pioneira: Carol Adams.
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lista das mulheres. Ou seja, para elas, as mulheres possuem uma
conexão especial com a natureza. Um exemplo disso é a perspectiva
xamânica do sagrado feminino, em que as mulheres possuem uma
natureza feminina intensa da geração, criação e de movimentos cíclicos: em que há um começo, um meio e um fim6.
Um adendo significativo seria que, por mais que seja possível entender as ecofeministas essencialistas norte-americanas como
ecofeministas clássicas, prefiro me referir a elas como norte-americanas essencialistas pelos seguintes motivos: clássico remonta à
Grécia Antiga, e não vejo aí uma grande relação com essas ecofeministas; também, porque carrega um sentido de original, ou de maior
relevância, como se as demais perspectivas ecofeministas fossem
mais “periféricas” ou posteriores. É válido ressaltar, no entanto, que
essas autoras são consideradas as primeiras; todavia, isso é reflexo
também do funcionamento das acadêmicas colonizadas, segundo o
ecofeminismo carrega como valorativo a multiplicidade. Assim, não
há muito sentido em considerar uma perspectiva como clássica e as
demais como não clássicas, excêntricas, locais.
Esse ecofeminismo essencialista, principalmente o norte-americano, vai ser alvo de diversas críticas, tanto pelos pós-modernos como pelas feministas, devido à redução da natureza para a ordem biológica e sua diferenciação extrema da cultura e à concepção
fixa e pré-determinada do homem e da mulher. Assim, mantêm-se e
reforçam-se as estruturas patriarcais dicotômicas opressivas, e torna-se insuficiente, esse ecofeminismo, para abarcar identidades de
gênero distintas (DIAS et al., 2019):
Dos feminismos decoloniais é possível extrair a crítica à leitura
generalizada, pautada em estereótipos de gênero, que intenciona
universalizar a experiência das mulheres, enquadrando-as em uma
categoria monolítica, contribuindo para uma reificação da subalternização, vitimização e ausência de capacidade moral. (DIAS et al.,
2019, p. 202).
O último ponto a se ressaltar é da universalização das experiências das mulheres. Os modelos essencialistas contribuem para
6 Retirado da minha experiência com o xamanismo. Porém, é importante ressaltar que
essa conexão com a energia feminina da geração, por mais que seja uma existência mais
manifestada nas mulheres, não se restringe a elas. Todas as pessoas possuem uma energia
masculina e feminina, mas essas energias seguem os estereótipos por sexo: feminina –
geração, criação, cuidado; masculina – iniciadora, linear, agressiva.
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a formulação de uma concepção única de mulher. Essa crítica foi
levantada pelas ecofeministas do Sul global que mostravam que as
autoras norte-americanas consideravam as mulheres terceiro-mundistas pela régua colonizadora, sendo as brancas de classe média
donas de casa e subalternas aos maridos. No entanto, esse modelo de
mulher pouco atende à pluralidade de mulheres do terceiro-mundo
e ignora categorias importantes, como raça, classe e a colonização:
“[...] há a hegemonia de um pensamento ecofeminista produzido
por mulheres europeias ou estadunidenses que ignoram a questão de
classe e raça na composição e na percepção de discursos opressores
que partem destas regiões” (DIAS et al., 2019, p. 198).
Em oposição à perspectiva essencialista, o ecofeminismo
construtivista considera, em linhas gerais, que essa associação da
mulher com o meio ambiente corresponde à sua construção social,
pelas tarefas que lhes são destinadas no sistema patriarcal:
Defende que a relação profunda da maioria das mulheres com a
natureza não está associada a características próprias do sexo feminino, mas é originária de suas responsabilidades de gênero na
economia familiar, criadas através da divisão social do trabalho,
da distribuição do poder e da propriedade. Por isso, acreditam na
necessidade de se assumirem novas práticas de relações de gênero
e com a natureza. (TORRES, 2009, p. 165).
Sendo a aproximação das mulheres com o meio ambiente
uma construção social, isso não é intrínseco à sua nascença, uma
capacidade inata inerente apenas às mulheres. Portanto, aqui há uma
maior abertura para a crítica do sistema patriarcal enquanto sistema,
e sem considerar que são propriamente os homens enquanto indivíduos os responsáveis pelo sistema, ou que eles sejam necessariamente agressivos, dominantes e que oprimem por sua “natureza”,
“essência”; mas, sim, que a própria ideia de homem também é uma
construção social.
Dessa maneira, a interseccionalidade com as demais categorias que sofrem opressão se dá porque essas categorias também são
construídas socialmente, dentro do sistema patriarcal. Ou seja, alega-se que a estrutura da opressão patriarcal, antropocêntrica, heteronormativa e racista, possui uma lógica opressiva comum:
A forma como consideramos apropriado pensar a relação das mulheres com outros seres subjulgados ou alvos de opressão não apela
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a nenhum tipo de natureza intrínseca ou a características próprias ao
feminino, mas sim ao modo como as estruturas, tais como patriarcado e a heteromatividade, moldam relações de dominação e geraram
um potencial de resistência e empatia entre as partes oprimidas.
(DIAS et al., 2019, p. 196).
Alicia Puleo (2002) traz que essa perspectiva, assim, não se
vincula a espiritualismos e nem a essencialismos. A filósofa apresenta duas pensadoras dessa corrente ecofeminista: Bina Agarwal
– economista indiana, e Val Plumwood – filósofa australiana. Agarwal (apud PULEO, 2002) coloca que os laços que certas mulheres
possuem com o meio ambiente está relacionado com a economia
familiar, esse laço social que coloca as mulheres em maior interação
com o meio ambiente, desde a esfera do cuidado, na agricultura,
cuidando do jardim:
A interação com o meio ambiente e a sensibilidade correspondente
ou falta de sensibilidade ecológica gerada por/para ela dependem
da divisão sexual do trabalho e da distribuição de poder e propriedade de acordo com as divisões de classe, gênero, raça e casta7.
(PULEO, 2002, p. 38).
A segunda pensadora focaliza a questão histórica, afirmando
que o nosso (enquanto humanidade) caráter histórico é uma história construída da racionalidade dominadora masculina, através de
dualismos hierárquicos (natureza/cultura; mulher/homem; corpo/
mente; razão/emoção) (PULEO, 2002). Assim, Torres (2009, p.
166) sugere uma superação dos dualismos, mas considera crucial a
apreensão dos conceitos dicotômicos para “[...] o entendimento da
problematização das relações já cristalizadas historicamente entre
mulher e natureza”.
Ecofeminismo animalista
O animalismo dentro do ecofeminismo não demanda intensos
esforços para responder, até então, a pergunta central: “Qual a origem da associação/aproximação da mulher com a natureza?”. Portanto, essa questão irá depender da pensadora em questão, podendo
ser mais relacionada a uma perspectiva essencialista/espiritualista
7 Trecho Original: “La interacciónconelmedio ambiente y lacorrespondientesensibilidad o
falta de sensibilidad ecologista generada por éstadependen de ladivisión sexual deltrabajo y
de ladistribucióndel poder y de lapropiedadseg˙n las divisiones de clase, género, raza y casta”.
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ou construtivista. Grande parcela das ecofeministas animalistas norte-americanas são criticadas por serem essencialistas. Marti Kheel
(2019, p. 32) traz uma perspectiva sobre essa análise: “Apesar de
a grande maioria das feministas que trabalha no campo ter dirigido
suas críticas às visões de mundo culturalmente construídas, essa percepção continua a existir”. Ou seja, ao aproximarem a natureza às
características femininas, não estão necessariamente afirmando o essencialismo, apenas apontando aproximações da cultura patriarcal.
O livro pioneiro do ecofeminismo animalista é A Política
Sexual da Carne, publicado em 1990 pela teórica-engajada8 Carol
J. Adams. Esse ano coincide com a primeira March for the Animals (Marcha para os Animais), que contou com a participação social do movimento de feministas em prol dos animais, carregando
uma grande faixa com a seguinte frase: “Ecofeminists for Animals
Rights” (Ecofeministas pelos Direitos dos Animais) (ADAMS;
GRUEN, 2014). Conforme Maximiliano Torres (2009, p. 165), é
na década de 1990 que começa uma “nova tendência” do ecofeminismo: “[...] começaram a relacionar a exploração da Natureza e a
opressão das mulheres nas sociedades patriarcais, baseados, entre
outros aspectos, no reconhecimento de que essas formas de dominação estão ligadas a inúmeras formas de exploração”. Também se
faz importante ressaltar que nesse período já se tinha uma comunicação entre as autoras ecofeministas de modo mais estabelecido.
Por exemplo, dentre as pessoas que influenciaram Carol J. Adams,
e algumas que conheceu diretamente, se encontram ecofeministas
como Mary Daly, Karen Warren, Lori Gruen e Greta Gaard.
Portanto, se antes se focalizava a destruição da natureza pelo
sistema patriarcal, as animalistas direcionam o olhar também para a
opressão dos animais: “o que a exploração dos animais diz sobre o
sistema patriarcal?”, “quais aproximações podem ser feitas entre a
exploração das mulheres e dos animais?”. Adams volta seus esforços para a opressão dos animais “de consumo” – os que são transformados em comida – e das mulheres, em especial em relação à
sexualização dos corpos femininos e à violência doméstica.
Adams (2012) costura que a lógica da dominação é comum e
está imersa nas esferas simbólica, material e linguística. Essas três
8 Adams se autodenomina como teórica-engajada, significando que, mesmo que sua pesquisa
seja extremamente teórica, ainda assim é baseada em sua prática enquanto ativista. Ou seja, a
pesquisa e o ativismo se retroalimentam.
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esferas não são independentes, mas funcionam em sincronicidade e
interseccionalmente, manifestadas em ciclos de objetificação, fragmentação e consumo: primeiro se vê o ser como objeto, assim desfragmentando o ser de si mesmo – da sua existência ontológica –,
por fim, se consome essa fragmentação – seja literalmente, violando
o corpo, metaforicamente, ou por imagens (ADAMS, 2012).
O fio condutor que possibilita o funcionamento dos ciclos de
dominação são os referentes-ausentes, significando que a entidade
independente – o ser em questão – está ausente na relação: literalmente, conceitualmente e metaforicamente.
O referente ausente está ao mesmo tempo presente e não presente.
Está presente por meio da inferência, mas sua significação se reflete
apenas naquilo a que ele se refere, porque a experiência que lhe
deu origem, literal, que fornece o significado, não está presente.
(ADAMS, 2012, p. 1116).
No entanto, dessa forma, a associação das mulheres com os
animais seria apenas da lógica da dominação. Mas Adams aprofunda a lógica do referente-ausente afirmando que o sistema patriarcal
superpõe referentes-ausentes. Assim, as referências sobre mulheres
serão animalizadas – por exemplo: “me senti um pedaço de carne”,
“vou ‘comer’ ela” –, enquanto os animais serão sexualizados/erotizados, como em imagens que representam a virilidade dos homens
ao caçar: “[...] nas imagens de chacina de animais, insinuações eróticas mostram que as mulheres são o referente ausente” (ADAMS,
2012, p. 1136).
Depois de esboçar uma síntese da teoria de Carol Adams, saliento dois aspectos: primeiramente, a necessidade da inclusão dos
animais para desmantelar os sistemas/lógica de opressões, porque
“A primeira metáfora foi animal” (BERGER apud ADAMS, 2012,
p. 1067). Assim, a violência cometida contra os animais não humanos ocupa uma posição básica da lógica da dominação; o segundo
é que, como os animais ocupam essa posição, essa sistemática dos
ciclos e dos referentes-ausentes superpostos pode ser identificada
entre outras opressões. Exemplo disso é a seção do “Racismo e referente ausente”, no capítulo 2 do livro A Política Sexual da Carne
(ADAMS, 2012).
Porém, a relação humana com os animais não humanos não
perpassa somente o consumo no sentido de alimentação e vestes. A
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filósofa e bióloga Donna Haraway focaliza seus estudos nas relações
interespécies. Dessa maneira, sua questão central não é pensar apenas a associação da dominação entre as mulheres e os animais, mas,
sim, investigar as relações de coabitação e coevolução entre as espécies humana e não humana, mostrando como as delimitações entre
natureza e cultura patriarcal não são suficientes para a compreensão
da complexidade das existências.
A sua obra O Manifesto das Espécies Companheiras (HARAWAY, 2021) salienta as relações interespécies de coabitação e
coevolução, como também o problema das delimitações natureza/
cultura. Haraway faz um convite para se levar a filosofia para dentro
dos canis e afirma: “O Manifesto das espécies companheiras é, portanto, sobre a implosão da natureza e da cultura na implacável e historicamente específica vida conjunta de cachorros e pessoas ligados
em alteridade significativa” (HARAWAY, 2021, p. 24). Contextualizando, alteridade significativa são ontologias emergentes, distintas,
nas quais se leva a sério as relações em sua complexidade, negando
os relativismos culturais simplistas (HARAWAY, 2021). Ou seja, a
autora intima que as práticas de deparação com os diferentes atores,
culturas, contextos, memórias, corpos sejam de alteridade significativa, considerando e aprendendo com essas facetas para se construir
uma multiplicidade.
A filósofa também desenvolveu vastos trabalhos sobre epistemologias feministas e tecnociências. Ela critica os saberes universais e apresenta uma possibilidade epistêmica configurada em saberes parciais, localizados e corpóreos em sua publicação “Saberes
localizados” (1995), e afirma que as ecofeministas “[...] mais insistiram em algumas versões do mundo como sujeito ativo, não como
recurso a ser mapeado e apropriado” (HARAWAY, 1995, p. 35).
Um exemplo sobre essa questão de as feministas insistirem
na concepção de sujeito ativo, é seu livro Primate Visions (1990)
(Visões do Primata), que analisa as narrativas da primatologia, mostrando como as produções científicas inserem conceitos e análises
científicas a partir das noções ocidentais de raça, gênero e da natureza. Com isso, a autora busca questionar a objetividade dentro
da ciência a partir do olhar feminista interespécies, concebendo o
primata como um ator dos estudos científicos, não apenas um objeto
(HARAWAY, 1990).
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Seguindo na temática científica interespecífica, a autora nos
convida a entrar nos laboratórios que realizam testes em animais,
oferecendo uma perspectiva potente porque lida com a materialidade concreta. Por mais que se deva criar avanços científicos para
não se precisar mais utilizar animais, alguns testes vão continuar
acontecendo – considerando um contexto que levasse a sério os direitos dos animais. Dessa forma, a autora lida com a complexidade
dos laboratórios no que se tem materialmente, respondendo a grande
questão: se alguns testes em animais são necessários em determinados contextos, qual seria a forma de lidar com tais contextos, considerando os animais como seres que importam?
Em primeira instância, sugere a partilha do sofrimento, implicando que se conceba os animais não apenas como um instrumento, mas um ator, com sensações, emoções, capacidades, e que, com
esses procedimentos, eles estão sofrendo. Partilha do sofrimento
significa viver junto a experiência da dor. Existem diversas formas
de vivenciá-la, e ela jamais será a mesma dor que o animal de fato
está sentindo, até porque o animal x e o y vão sentir a dor de formas
distintas. Porém, há algo em comum nessa partilha, mesmo havendo o campo da dor individual; quando se compartilha, se cria uma
conexão e uma empatia. A autora desenvolve sobre esse conceito a
partir de um romance de Nancy Farmer, que, em um de seus trechos,
expõe de forma simbólica e poética essa partilha do sofrimento:
‘É cruel’, Baba Joseph concordou, ‘mas um dia as coisas que aprendemos vão evitar que o nosso gado morra’. Ele enfiou o próprio
braço dentro da gaiola de tsé-tsés. Nhamo tampou a boca para não
gritar. As moscas pousaram por toda a pele do velho e começaram
a chupar. ‘Eu faço isso para saber o que os porquinhos-da-índia
estão sofrendo’, ele explicou. ‘Causar dor é maldade, mas se eu a
compartilho pode ser que Deus me perdoe’. (FARMER, 1996, p.
239 apud HARAWAY, 2011).
O compartilhamento da dor possibilita espaços para reconsiderar os testes em animais, preponderando com mais ênfase a necessidade e a utilidade. E também possibilita um Gestalt para considerar os animais não como instrumentos de laboratório, mas, sim,
como trabalhadores do conhecimento científico no laboratório. Essa
proposta de considerar os animais não humanos como trabalhadores
(HARAWAY, 2011) carrega consigo uma concepção de que há di- 287 -
reitos que eles possuem enquanto trabalhadores, como salário que
deve ser investido em moradias satisfatórias, brinquedos, acesso à
regulamentação do trabalho, aposentadoria, entre outros.
Por fim, o ecofeminismo animalista apresenta uma grande
contribuição para as teorias de direito dos animais, este que tradicionalmente se focalizava na construção filosófica individualista e
racionalista, como o pragmatismo de Peter Singer e o abolicionismo
de Tom Regan: “Ambos os teóricos orgulhosamente proclamaram
que em nenhum lugar em seus livros encontrar-se-á a qualquer referência à emoção ou afirmações que não poderiam ser suportadas
pela lógica rigorosa” (KHEEL, 2019, p. 30). Também, há a via pelas
éticas da natureza, mas é comum a negligência em relação aos animalismos, ainda considerando-os como um objeto de uso da espécie
humana (KHEEL, 2019), como em alguns autores da defesa da caça.
Todavia, esse ainda é um campo de pesquisa incipiente e em
constante construção. Ainda assim, ele conta autoras norte-americanas como Carol Adams e Donna Haraway, Lori Gruen, Greta Gaard,
Mari Kheel e Karren J. Warren. E, dentro do contexto da América
Latina, temos Daniela Rosendo, Tânia Kuhnen, Alicia Puleo, Maria
Alice da Silva e Angélica Velasco Sesma.
Conclusão
O ecofeminismo é um movimento de conhecimento e de práxis novos, mas de saberes antigos (TORRES, 2009), que vivem nas
memórias das mulheres camponesas, indígenas, pretas, religiosas,
as que foram consideradas bruxas9 para se instaurar com maior força
o poder patriarcal. Os saberes das mulheres associadas com a natureza e seus territórios são ancestrais e recheados de conhecimentos
múltiplos, e, hoje, talvez uma de nossas principais tarefas seja recuperar esses conhecimentos e romper com os silenciamentos que
permitem que nossos saberes estejam soterrados.
Dada a juventude do ecofeminismo e as estruturas acadêmico-sociais nas quais a materialidade se alicerça, tal vertente ainda
é pouco pesquisada e conhecida. Todavia, já há uma considerável
quantidade de obras e perspectivas significativas em sua literatura.
Ainda assim, ressalto que, mesmo que o ecofeminismo já estivesse
mais estabelecido, a sua teoria continuaria inacabada, em constru-
9
Por se curarem com plantas, por acreditarem na Deusa Mãe e no Deus Cornífero,
as que tinham conhecimento sobre sua capacidade de reprodução...
- 288 -
ção, porque a realidade por si só é inesgotável e múltipla, sempre
havendo espaço para rever, associar, intercambiar e aprender.
Por conta disso e da multiplicidade de pessoas/corpos e realidades, há necessidade de se ter cuidados ao pensar nas correntes
ecofeministas, porque, da mesma forma que elas são úteis para diferenciar pensamentos e autoras, elas podem acabar sendo limitadoras. Também, friso que as ecofeministas e suas perspectivas se
cruzam entre si; há diálogos, e, em grande parte, as diferenciações
não são antagônicas.
Este trabalho foi um aperitivo ecofeminista, que trouxe a
problemática da associação espiritual e construtivista. Saliento o
problema das críticas ao ecofeminismo enquanto essencialista, que,
conforme demonstrado, corresponde a uma parcela dentro do movimento, e pontuo que, ao realizar o exercício de decodificar o sistema patriarcal e seus símbolos, sistema esse que é extremamente
essencializador, dualista e hierárquico, as pesquisadoras podem, por
erro, acabar escrevendo de forma binária e que cruze com o essencialismo, a partir da ideia de mulher/homem. Porém, muitas ecofeministas vêm a se desculpar publicamente e concordar com a crítica,
como é o caso de Carol Adams. Em vista disso, sugiro que façamos
que nem os homens fazem entre si, que consideremos essas falhas
como acidentes, e erros não intencionais, para não cairmos no mecanismo produzido da rejeição, condenação e do afastamento.
Também foi apresentado um pouco do ecofeminismo animalista. É interessante retomar que essa vertente animalista começou
a surgir durante a terceira onda do feminismo, pela década de 90.
Esse momento foi quando o ecofeminismo começou a dedicar esforços para compreender e teorizar sobre as lógicas das dominações;
assim, o animalismo foi somente uma das vertentes que surgiram
nesse período. Como não foi possível abordar outras vertentes do
ecofeminismo – pós essa lógica da dominação comum –, gostaria de
destacar pelo menos a importância do ecofeminismo terceiro-mundista. Nessa vertente, pesquisadoras e ativistas do Sul global articulam perspectivas ecofeministas voltadas para as situações dos países
“periféricos”, com ênfase no processo de colonização.
Um ecofeminismo decolonial precisaria propor justamente uma visão a partir de mulheres que vivem em países do Sul (ex-colônias
de exploração, se assim podemos chamar de forma generalista) e
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buscam a conexão de aspectos fundamentais como a questão de
raça, classe e descolonização conectadas com a visão ecológica.
(DIAS et al., 2019, p. 192).
Destaco duas pensadoras ecofeministas do Sul global de altíssima relevância: Vandana Shiva, física e ativista ecofeminista indiana que critica, essencialmente, as tecnociências na agricultura.
Um dos conceitos significativos para ela é o das monoculturas da
mente; e Ivone Gebara, teóloga e filósofa brasileira, uma das pioneiras do movimento ecofeminista acadêmico e que fez críticas severas
às estruturas da Igreja católica e das interpretações cristãs. Um dos
seus conceitos significativos é a metafísica patriarcal, que, de forma
extremamente vaga, significa que a construção da metafísica filosófica que conhecemos é baseada nos valores e concepções patriarcais
– dos homens de poder. Assim, ela serve para ancorar injustiças e
dominações.
Por fim, as múltiplas teorias ecofeministas apresentam caminhos alternativos para a compreensão das violências e poder, através
das identificações das lógicas de dominação que se repetem em diferentes opressões, possibilita uma interseccionalidade que não se desenvolve em fragmentações e silenciamento. Assim, colocando “em
xeque” o poder capitalista patriarcal, capitalista, racista, capacitista,
heterossexual, monoafetivo... Tanto no nível simbólico tanto na esfera material e nas institucionalidades, como é o caso, por exemplo,
dos laboratórios: quando Haraway põe que os animais devem ser reconhecidos enquanto trabalhadores, a autora ao mesmo tempo reconhece a instrumentalidade dos animais, mas apresenta um caminho
de mudanças institucionais para os laboratórios, para que reconheçam esses animais como trabalhadores/sujeitos da pesquisa.
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DOI: 10.18224/cam.v17i4.7489
ROSENDO, Daniela; ZIRBEL, Ilze. Dominação e sofrimento: um
olhar ecofeminista animalista a partir da vulnerabilidade. In: ROSENDO, Daniela et al. Ecofeminismos: fundamentos teóricos e
práxis interseccionais. Rio de Janeiro: Botafogo; Ape’Ku, 2019. p.
111-132.
SATTLER, Jayne. Um projeto ecofeminista para a complexidade da
vida. In: ROSENDO, Daniela et al. Ecofeminismos: fundamentos
teóricos e práxis interseccionais. Rio de Janeiro: Botafogo; Ape’Ku,
2019. p. 167-190.
TORRES, Maximiliano. Ecofeminismo: “um termo novo para um
saber antigo”. Terceira Margem, v. 13, n. 20, 2009. Disponível em:
<https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/11043>. Acesso
em: 24 fev. 2022.
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Sobre autoras e autores
Ângelo Brandelli Costa
Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e coordenador do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos
Psicossociais. Desenvolve pesquisas nas áreas de psicologia social e
da saúde, com ênfase em preconceito e atitudes sociais, sexualidade,
gênero e HIV/aids. E-mail: angelo.costa@pucrs.br
Cíntia Maria Nascimento Cruz
Graduada em Serviço Social pela Universidade Norte do Paraná. Tem especialização em Trabalho Social e Assistência às Famílias pela Universidade Pitágoras Unopar, atualmente é mestranda
em Serviço Social pela PUCRS. Trabalha no Marista Cesar Bussato
como assistente social. Foi membro do Conselho Nacional e Municipal de Juventude. Tem experiência no campo social, educação
popular e coordenação de projetos sociais, com ênfase em Serviço Social, atuando principalmente nos seguintes temas: educação
popular, políticas de juventude, direitos das mulheres e crianças e
adolescentes. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI). E-mail: cintianascimentocruz@gmail.com
Clarissa Constant de Constant
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS), da Escola de Humanidades da PUCRS, bolsista Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
integral e pesquisadora integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas
Sobre Cotidiano, Trabalho e Território (GEPsT/PUCRS). Graduada
em Serviço Social pela PUCRS no ano de 2018. Especialista em Política de Assistência Social pela Uninter (2020). Também participou
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Assistência Social (GPsTAS) e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Acessibilidade
e Diversidade, ambos vinculados ao programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da PUCRS. E-mail: cla.pga@gmail.com
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Eliana Mourgues Cogoy
Possui graduação em Serviço Social pela Escola de Serviço
Social da Universidade Católica de Pelotas, especialização em Desenvolvimento Social pela Universidade Católica de Pelotas, mestrado em Serviço Social pela PUCRS e doutorado pela Faculdad Latinoamericana de Ciências Sociales – FLACSO/Argentina. Iniciou
sua carreira docente na Universidade de Cruz Alta (1999-2001). Foi
assistente social na UCPel entre os anos 2000 e 2007. Em 2006, foi
aprovada como docente na Universidade Federal do Pampa – Unipampa. Tem experiência na área de Serviço Social, com ênfase em
Serviço Social e Cidadania, atuando principalmente nos seguintes
temas: Serviço Social, cidadania, prática profissional, ações coletivas e processos educativos. Desde 2014, é docente no quadro efetivo
da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, junto ao Centro
de Ciências Sociais e Humanas – CCSH, no curso de graduação
em Serviço Social. Foi coordenadora do curso de Serviço Social da
UFSM (2017-2019), coordena o Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Serviço Social, Mídia Cultura e Questão Social – NEPMQS. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em
Violência (Nepevi). E-mail: ELIANA.COGOY@edu.pucrs.br
Eneias Brum Dias
Doutorando em Comunicação Social na PUCRS. Mestre em
Comunicação pela Unviersidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS (2021). Membro dos Grupos de Pesquisa CNPQ Inovação
nas Práticas Publicitárias (INOVAPP – PPGCOM/PUCRS) e Comunicação e Práticas Culturais, no âmbito do projeto Rumos da Pesquisa em Publicidade e Propaganda (PPGCOM/UFRGS). Experiência
de mais de 10 anos como profissional de planejamento de comunicação e gestão de marcas em agências de publicidade, atualmente
ocupando a posição de head de planejamento na W3haus. Graduado
em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas pela
Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS (2008).
Experiência na área de Comunicação, com ênfase em Publicidade
e Relações Públicas, atuando principalmente nos seguintes temas:
publicidade, produção executiva de eventos, branding, planejamen- 294 -
to, estratégia de comunicação, comunicação organizacional, comunicação digital, pesquisa em comunicação, internet. E-mail: brum.
eneias@gmail.com
Graziela Milani Leal
Possui graduação em Serviço Social (2014), especialização
em Intervenção Social com Famílias (2016) e atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social pela PUCRS.
É assistente social judiciária do Tribunal de Justiça do estado do
Rio Grande do Sul. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Ética e Direitos Humanos (GepeDH), vinculada ao Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Ética, Violência e Direitos Humanos (NepeveDH/PUCRS). E-mail: GRAZIELA.LEAL@edu.pucrs.br
Isabella Zuardi Marques
Psicóloga (CRP 07/33194) graduada pela PUCRS. Mestra em
Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da PUCRS. Especialização em andamento em Psicologia Jurídica
na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Atuou durante a graduação como bolsista de iniciação científica na PUCRS,
voluntária no Serviço de Assistência Jurídica em Direito das Famílias da UFRGS e estagiária na Central de Atendimento Psicossocial
Multidisciplinar do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do
Sul (TJRS). Tem interesse principalmente nas temáticas de gênero,
sexualidade, vulnerabilidades em saúde, violência e violação de direitos. E-mail: Isabella.Marques@edu.pucrs.br
Larissa Lunkes de Souza
Formada em Filosofia – Licenciatura pela PUCRS, atualmente cursa mestrado com financiamento CNPq pela mesma instituição.
Suas temáticas centrais: estruturas simbólicas-materiais, dominação, pandemia e ecofeminismo. E-mail: larissa.souza.003@acad.
pucrs.br
Michelle Karen Batista dos Santos
Professora universitária, pesquisadora e advogada. Mestra e
doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, com bolsa de estudo integral concedida pela Capes. Coordenadora adjunta do Institu- 295 -
to Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) no Rio Grande do
Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e
Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS). Cofundadora da
Escola Justiça Restaurativa Crítica (@jrcritica). E-mail: michelle.
kbs@hotmail.com
Patrícia Krieger Grossi
Possui graduação e mestrado em Serviço Social, ambos pela
PUCRS (1994), e PhD em Serviço Social pela University of Toronto. Especialista em Gerontologia Social pela PUCRS. Pós-doutorado na Universidade de Toronto, Canadá, com auxílio do Faculty
Research Program da Embaixada canadense. Atualmente é professora adjunta do curso de Serviço Social da Escola de Humanidades
da PUCRS e professora do corpo docente permanente do Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS e do Programa de
Pós-Graduação em Gerontologia Biomédica da Escola de Medicina
da PUCRS. Tem experiência na área de Serviço Social, com ênfase
em Serviço Social da Saúde, atuando principalmente nos seguintes temas: violência de gênero e políticas públicas, as interseccionalidades de gênero, raça/etnia, classe social e geração; violência
contra idosos, violência nas escolas, bullying, práticas restaurativas
e cultura de paz. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Violência (Nepevi) e o Grupo de Estudos da Paz (Gepaz). Recebeu prêmio Pesquisador Destaque Gaúcho na área de Ciências Humanas
e Sociais pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
Grande do Sul (Fapergs) em 2013. Membro fundador da Red de
Trabajo Social/Servicio Social Iberoamericana (RTSSSI). Membro
da Instância de Ciências Humanas e Sociais da Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa (CONEP), vinculada ao Ministério da Saúde.
Pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq 1B. E-mail: pkgrossi@pucrs.br
Rodrigo Falcão Chaise
Psicólogo (CRP 07/33172) graduado pela PUCRS. Mestrando em Psicologia Social, vinculado ao Grupo de Pesquisa Psicologia, Saúde e Comunidades do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da PUCRS, coordenado pela Profª Drª Kátia Bones
Rocha. Atua como acompanhante terapêutico (AT) vinculado à Co- 296 -
munidade Terapêutica D.W. Winnicott e ao Contemporâneo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade. E-mail: rodrigofchaise@
gmail.com
Suelen Gotardo
Relações Públicas, doutoranda em Comunicação Social pela
Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos/PPGCOM/PUCRS, na linha de pesquisa Práticas e Culturas na Comunicação, Cultura e Tecnologias das Imagens e dos Imaginários, sob orientação da
Dra. Juliana Tonin. Mestra em Comunicação Social pela Famecos/
PPGCOM/PUCRS na área Práticas e Culturas da Comunicação, sob
orientação de Juremir Machado da Silva (2021). Graduada em Relações Públicas pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Integrante
do Laboratório de Pesquisas da Comunicação nas Infâncias – LabGim. Diretora da empresa de produção cultural Soul Produções
e assessora de comunicação na Secretaria de Justiça, Cidadania e
Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. E-mail: suelen.gotardo@
edu.pucrs.br
Taísa Gabriela Soares
Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Mestra em
Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Foi bolsista institucional (PIB-MD/
UFPel). Possui Graduação em Direito pela Universidade Federal
de Pelotas (UFPel). Foi bolsista Proext do Libertas – Programa de
Enfrentamento da Vulnerabilidade em Ambientes Prisionais. Atualmente, é pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-INEAC),
integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança
e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS), do Grupo de
Estudos e Pesquisa em Punição e Controle Social (GEPUCS/UFPel)
e do Grupo de Estudos em Ciências Criminais e Direitos Humanos
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). E-mail:
taisagsoares@hotmail.com
Tatiana Otto Stock
Graduada em Psicologia pela PUCRS (2010) e especialista
em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental pela WP das Facul- 297 -
dade Integradas de Taquara/RS – FACCAT (2013). Atualmente é
psicóloga clínica em consultório particular, instrutora de mindfulness – modelo BMT pelo Mindfulness Centre of Excellence (2019),
mestranda em Psicologia Social, no Grupo de Pesquisa Preconceito,
Vulnerabilidade e Processos Psicossociais pela PUCRS e pós-graduanda em Terapia do Esquema pela Cognitivo. E-mail: tatiana.
stock@edu.pucrs.br
Thais de Castro Jury Arnoud
Psicóloga clínica (CRP 07/33569), mestre e doutoranda em
Psicologia pela PUCRS, vinculada ao Grupo de Pesquisa Violência,
Vulnerabilidade e Intervenções Clínicas (GPeVVIC), sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Luísa Fernanda Habigzang. E-mail: thais.arnoud@
edu.pucrs.br
Tiago de Campos
Arquiteto e urbanista graduado pela PUCRS (2018); mestre
em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da PUCRS (2022). Atuou sempre ligado às questões da habitação de interesse social e patrimônio histórico de comunidades.
Pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa em Habitação de Interesse Social e Sustentabilidade – Sustenfau, coordenado pelo Prof.
Dr. Marcos Diligenti, vinculado ao Nepes – Núcleo de Estudos em
Políticas e Economia Social da PUCRS. E-mail: tiagodecampos@
gmail.com
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