Ciência&Cultura
OPINIÃO
(Fonte: “Estudo das Cabeças”, de Arthur Timotheo da Costa. Reprodução)
Precursores do modernismo no Brasil fora do Sudeste acabaram esquecidos pela Semana de Arte
Moderna e pelos acontecimentos que se seguiram.
Modernismo, passadismo e tradição
Modernistas anseiam por descobrir o Brasil, ao mesmo
tempo em que ignoram produção artística em muitas regiões
do país
* Rafael Cardoso
Ensina-se nas enciclopédias
e nos manuais escolares que a
Semana de Arte Moderna se
insurgiu contra o passadismo.
Esse termo, raramente definido,
é vinculado frequentemente
a outro conceito impreciso:
academismo. Acontece que a
Academia Brasileira de Letras
nunca foi monolítica. Em 1922,
ao lado de Coelho Netto e Ruy
Barbosa, tidos pelos escritores
jovens como representantes do
mofo literário, havia espaço para
autores então em voga como
Graça Aranha, Humberto de
Campos e Olavo Bilac. Isso, sem
nem falar de João do Rio, cuja
vaga na ABL continuava aberta
desde seu falecimento no ano
anterior. A menção a Bilac evoca
um terceiro -ismo pejorativo,
parnasianismo, supostamente
varrido da paisagem literária
pelos
ares
modernistas.
Essa
interpretação
ignora
estrategicamente que, entre
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as décadas de 1890 e 1910,
o estilo parnasiano já cedera
espaço para o simbolismo.
Resumir a poesia brasileira
em 1922 ao parnasianismo é
apagar da história Alphonsus de
Guimaraens, Augusto dos Anjos,
Cruz e Souza.
No âmbito das artes
plásticas, a situação também
era emaranhada. A Escola
Nacional de Belas Artes (ENBA)
— que perdera, décadas antes,
a designação Academia — era
ainda menos homogênea em
sua composição e orientação
do que a ABL. Varada por
disputas políticas e estéticas
entre as décadas de 1900 e
1920, a ENBA viveu um raro
período de fervilhamento em
que despontou uma geração de
artistas inovadores — dentre os
quais Arthur Timotheo da Costa,
Helios Seelinger, Mário Navarro
da Costa — todos esmagados
pelo rolo compressor do que
veio depois.
É no campo da música que
a caracterização do meio cultural
brasileiro como passadista chega
às raias do absurdo. A Semana
aconteceu no exato momento
em que os Oito Batutas
estrearam em Paris, marcando a
afirmação internacional da cena
musical urbana protagonizada
por Pixinguinha, Donga, Sinhô,
entre tantos outros expoentes
do samba moderno. Nos anos
anteriores, Alberto Nepomuceno
e Ernesto Nazareth já haviam
modernizado a parte erudita do
meio musical [1]. A influência
direta de ambos sobre Darius
Milhaud, entre 1917 e 1919,
constitui a primeira instância
de inversão das trocas culturais
com os meios parisienses de
vanguarda (Figura 1).
A acusação de passadismo
lançada pelos modernistas de
OPINIÃO
(Fonte: “Oitos Batutas”. Acervo Dedoc-Nova Cultural. Reprodução)
Figura 1. Os Oito Batutas estrearam em Paris no mesmo momento
em que acontecia a Semana de Arte Moderna em São Paulo,
marcando a afirmação internacional da cena musical urbana
protagonizada por Pixinguinha, Donga, Sinhô e outros expoentes
do samba moderno.
1922 revela menos sobre uma
cena cultural em plena ebulição
e mais sobre as estratégias de
consagração forjadas pelos
próprios. Sinaliza também um
quê de ignorância, da parte dos
jovens literatos que constituíam
o núcleo do grupo paulista, a
respeito do que se passava no
resto do Brasil. Os agitadores da
pauliceia desvairada parecem
ter estado mais au courant dos
debates em Paris do que daquilo
que acontecia, de fato, na capital
federal. De outras regiões do
país, então, o desconhecimento
deles era completo. O propósito
de ‘descobrir o Brasil’, ao
qual se lançaram por meio da
chamada caravana modernista
que viajou para Minas Gerais
em 1924, denota uma postura
etnográfica e quase colonialista.
Presumir que o Brasil pudesse
ser descoberto a partir de São
Paulo trai o pertencimento social
desses novos bandeirantes,
alinhados com a visão de mundo
da alta burguesia cafeicultora.
O anseio de repensar o
país não era exclusividade dos
modernistas de 1922. Com as
grandes levas de imigração entre
as décadas de 1890 e 1920, a
“A acusação
de passadismo
lançada pelos
modernistas de
1922 revela menos
sobre uma cena
cultural em plena
ebulição e mais
sobre as estratégias
de consagração
forjadas pelos
próprios.”
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composição demográfica do
país foi alterada, gerando um
anseio de que o caráter nacional
se diluísse. No livro “O problema
nacional brasileiro”, publicado
em 1914, Alberto Torres
sentenciou: “O povo brasileiro
precisa, como os estrangeiros
que aqui aportam, antes mesmo
destes, ser ‘imigrado’ à posse
da sua terra e ao gozo de
seus bens” [2]. Escrevendo na
“Revista do Brasil”, em 1916,
Alceu Amoroso Lima ecoou o
sentimento: “A missão suprema
do brasileiro de hoje é reunir
os materiais para preparar um
espírito nacional, em todas as
manifestações de sua atividade
[...] Hoje, o espírito brasileiro
está inteiramente obliterado por
estranhas influências” [3].
Com a eclosão da Primeira
Guerra Mundial e a aproximação
do centenário da Independência
do Brasil, exaltaram-se ainda
mais os ânimos nacionalistas.
A campanha pela Liga da
Defesa Nacional é o exemplo
mais notório, mas a própria
“Revista do Brasil” é prova da
importância atribuída à chamada
questão nacional. Surgida em
1916, sob a batuta de Júlio de
Mesquita e protagonizada por
Monteiro Lobato, que a adquiriu
em 1918, a revista se propunha
a “ser um reflexo da alma
nacional” [4]. Centralizar em
São Paulo o projeto de pensar
a Nação, com N maiúsculo, era
semear contradições que seriam
colhidas décadas depois. O
elogio da supremacia paulista
pressupunha
divergências,
inclusive de ordem étnica, que
vieram à tona na guerra civil de
1932 [5].
Vale atentar para a
confluência de sentimentos
nacionalizantes por volta da
OPINIÃO
Primeira
Guerra
Mundial.
Monteiro
Lobato
é
tido
geralmente como inimigo dos
modernistas de 1922. No quesito
nacionalismo, porém, eles eram
unidos em pensamento. Um
dos primeiros artigos publicados
por Oswald de Andrade em
“O Pirralho”, em 1915, trazia
como título “Em prol de uma
pintura nacional” e ralhava
contra as influências parisienses
na arte, antecipando-se à crítica
que Lobato dirigiu, em 1919, a
quem “macaqueia” as “coisas
de Paris” [6]. Pouco depois, em
1920, Mário de Andrade estreou
como ensaísta — não por
acaso, na “Revista do Brasil” —
conclamando um “movimento
nacionalista na arte”. Longe
de se alinhar ao cubismo ou ao
futurismo, então considerados
por ele como movimentos
exóticos, o “novo estilo”
propagado pelo jovem crítico
devia se assentar na tradição.
“O tradicionalismo agita-se em
nossa terra,” asseverou [7].
Há um nome oculto nesses
apelos à tradição. Nos textos
citados acima, ambos Alceu e
Mário fizeram menção explícita
a Ricardo Severo, engenheiro
português radicado em São
Paulo, arqueólogo e etnógrafo
amador, sócio do arquiteto
Ramos de Azevedo, membro do
Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo e presidente
da
sociedade
anônima
proprietária da “Revista do
Brasil”. A conferência “A arte
tradicional no Brasil: a casa e
o templo”, pronunciada por
ele na Sociedade de Cultura
Artística de São Paulo, em 20
de julho de 1914, e publicada
em seguida no jornal “O Estado
de S. Paulo”, é tida como
mote iniciador do movimento
“Presumir que o
Brasil pudesse ser
descoberto a partir
de São Paulo trai
o pertencimento
social desses novos
bandeirantes,
alinhados com a
visão de mundo
da alta burguesia
cafeicultora.”
de resgate das tradições
arquitetônicas que passaria a
ser nomeado de neocolonial
na década de 1920 [8].
Não deve ser subestimada
a
influência
das
ideias
propagadas por Severo, em
especial sobre o jovem Mário de
Andrade, que louvou “o glorioso
estilo neocolonial” em 1921 [9].
No ano seguinte, o neocolonial
marcou presença na Semana
de Arte Moderna por meio da
participação do arquiteto Georg
Przyrembel [10]. Na contramão
do Estilo Internacional, então
em plena formação, o primeiro
impulso
dos
modernistas
paulistas na arquitetura foi de
abraçar a tradição. O encanto
pelo passado remoto e pelo
etnográfico continuaria a marcar
a obra de Mário, mesmo após
sua repudiação definitiva do
neocolonial em 1930 [9].
Em vez de desaparecer
do ideário modernista, como
erro de percurso, tornou-se
paradigmática no Brasil a noção
paradoxal de que a arquitetura
moderna se assentava sobre a
tradição colonial — em especial,
o estilo barroco. Esse constructo
Ciência&Cultura
ideológico foi gestado no
Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, em seus
primeiros anos, por Lúcio Costa e
Rodrigo Melo Franco de Andrade
— com base nas contribuições
intelectuais de Hanna Levy,
Robert C. Smith, Roger Bastide,
entre outros estrangeiros — e
posteriormente codificado para
a história da arte por Lourival
Gomes Machado [11]. Posta sua
intenção nacionalista, de afirmar
o caráter genuinamente brasileiro
das obras modernas, é curioso
constatar o quanto essa ideia
deve a uma série de imigrantes
— Ricardo Severo à frente.
Ao examinar os textos
fundadores, das décadas de
1910 e 1920, salta aos olhos
também que a visão de Brasil
colonial preconizada por Severo,
Alceu e Mário era centrada na
dita “epopeia bandeirante”. Foi
na “conquista do Sertão” — no
dizer de Alceu, que entendia por
isso o assentamento dos paulistas
em Minas no século 17 — que
nasceram as primeiras ideias
de Brasil [12]. Voltaram assim
as costas para o litoral. Belém,
Olinda, Rio, Salvador, São Luís,
Vila Velha foram esquecidas.
“São Paulo será a fonte dum
estilo
brasileiro,”
escreveu
Mário na revista “Ilustração
Brasileira”, em fevereiro de
1921 [13]. Exatamente um ano
depois, partiu a Bandeira, rumo
à brasilidade modernista.
OPINIÃO
* Rafael Cardoso é membro
colaborador do Programa de PósGraduação em História da Arte da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e como pesquisador
associado junto ao LateinamerikaInstitut da Freie Universität Berlin
(Alemanha). É autor de vários livros
sobre história da cultura, da arte e do
design no Brasil, sendo o mais recente:
“Modernity in Black and White: Art and
Image, Race and Identity in Brazil”,
1890-1945 (Cambridge University
Press, 2021).
Referências
1. PEREIRA, A. R. Música, sociedade
e política: Alberto Nepomuceno
e a República musical. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p.
283-286.
2. TORRES, A. O problema nacional
brasileiro. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1978, p. 65.
3. LIMA, A. A. “Pelo passado
nacional”. Revista do Brasil, 1916,
v. 3-9, p. 14-15.
4. LUCA, T. R. A Revista do Brasil: um
diagnóstico para a (n)ação. São
Paulo: Editora Unesp, 1999, p. 67.
5. WEINSTEIN, B. The Color of
Modernity: São Paulo and the
Making of Race and Nation in
Brazil. Durham: Duke University
Press, 2015, p. 27-68.
6. ANDRADE, O. Estética e política.
São Paulo: Globo, 1992, p. 141-
143; LOBATO, M. Ideias de Jeca
Tatu. São Paulo: Globo, 2008, p.
23.
7. ANDRADE, M. A arte religiosa
no Brasil: Crônicas publicadas na
Revista do Brasil em 1920. São
Paulo:
Experimento/Giordano,
1993, p. 92-96.
8. KESSEL, C. Vanguarda efêmera:
arquitetura neocolonial na Semana
de Arte Moderna de 1922. Estudos
Históricos, 2022, v. 30, p. 111-120;
LUCA, T. R. A Revista do Brasil,
46. Ver também PINHEIRO, M. L.
B. Ricardo Severo e o neocolonial:
tradição e modernidade no debate
cultural dos anos 1920 no Brasil.
Intellectus, 2011, v. 1, p. 10.
9. PINHEIRO, M. L. B. Mário de
Andrade e o neocolonial. Desígnio,
2005, v. 4, p. 101.
10. KESSEL, C. Vanguarda efêmera:
arquitetura neocolonial na Semana
de Arte Moderna de 1922. Estudos
Históricos, 2022, v. 30, p. 121123; PINHEIRO, M. L. B. Ricardo
Severo e o neocolonial: tradição
e modernidade no debate cultural
dos anos 1920 no Brasil. Intellectus,
2011, v. 1, p. 18.
11. CARDOSO, R. A reinvenção da
Semana e o mito da descoberta do
Brasil. Estudos Avançados, 2022, v.
104, n. 36, p. 28-31.
12. LIMA, A. A. Pelo passado nacional.
Revista do Brasil, 1916, v. 3, p. 1.
13. PINHEIRO, M. L. B. Mário de
Andrade e o neocolonial. Desígnio,
2005, v. 4, p. 101.