Curso de direito AdministrAtivo
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
4ª edição revista e atualizada
Belo Horizonte
2013
© 2007 editora Fórum Ltda.
2010 2ª edição
2012 3ª edição
2013 4ª edição rev. e atual.
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F992c
Furtado, Lucas rocha
Curso de direito administrativo / Lucas rocha Furtado. – 4ª edição revista e atualizada. –
Belo Horizonte : Fórum, 2013.
xxx p.
isBn 978-85-7700-678-6
1. direito administrativo – Brasil. 2. Administração Pública – Brasil. 3. Ato administrativo.
4. Contrato administrativo – Brasil. 5. Licitação. 6. serviço público – Brasil. 7. servidor público.
8. Parceria público-privada. i. título.
Cdd: 341.3
Cdu: 342.9 (81)
Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
técnicas (ABnt):
FurtAdo, Lucas rocha. Curso de direito administrativo. 4. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
xxx p. isBn 978-85-7700-678-6.
Às minhas filhas Mariana e Laura, minhas lindas princesas.
Ao meu filho Pedro, meu grande amigo.
Agradeço as sugestões e os comentários apresentados pelos amigos Benjamin
Zymler, Carlos Átila Lins, Luiz Felipe Almeida Simões, Guilherme Barbosa
Netto, Pierre Luigi Silva, Alexandre Cardoso Veloso, Vera Lúcia de Pinho
Borges, Sandro Rafael Matheus Pereira, Alexander Pinheiro Pascoal,
Eduardo Bicalho Belmock, Victor de Oliveira Meyer Nascimento e Silvio
Caracas de Moura Neto.
sumário
notA Ao Leitor ................................................................................................................................ 25
PArte i
reGime JurídiCo AdministrAtivo e
orGAniZAção AdministrAtivA
CAPítuLo 1
estAdo e teoriA GerAL do direito AdministrAtivo....................................... 29
1.1
1.1.1
1.1.2
1.2
1.3
1.4
do estado Liberal ao estado social e cooperativo........................................................... 29
Formação do estado ............................................................................................................. 29
estado social e cooperativo................................................................................................. 31
integração de países e o direito Administrativo no século XXi .................................... 33
modelo de estado adotado pela Constituição Federal de 1988: estado
subsidiário e cooperativo .................................................................................................... 33
teoria Geral do direito Administrativo ............................................................................ 36
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo ................................. 39
2.1
2.1.1
2.1.2
2.1.3
2.2
2.2.1
2.2.2
2.3
2.4
2.5
2.5.1
2.5.2
2.5.3
2.5.4
2.5.5
2.5.6
2.5.7
2.6
Funções estatais .................................................................................................................... 39
Ato administrativo em sentido amplo .............................................................................. 39
Jurisdição e administração .................................................................................................. 40
decisões proferidas pelos tribunais de Contas ............................................................... 44
Âmbito de aplicação do direito Administrativo.............................................................. 46
Ato judicial e ato legislativo ................................................................................................ 46
Ato administrativo e critério residual ............................................................................... 48
direito Administrativo e direito Privado ......................................................................... 48
objeto do direito Administrativo ...................................................................................... 50
Fontes do direito Administrativo ...................................................................................... 51
Constituição Federal ............................................................................................................ 51
Leis .......................................................................................................................................... 52
tratados e acordos internacionais ...................................................................................... 53
decretos e regulamentos ..................................................................................................... 53
Jurisprudência ....................................................................................................................... 57
doutrina ................................................................................................................................. 58
Costume ................................................................................................................................. 59
Âmbito público e âmbito privado ...................................................................................... 59
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo .................................................................................. 63
3.1
3.2
3.2.1
surgimento do direito Administrativo ............................................................................. 63
regime jurídico administrativo: níveis de realização ..................................................... 66
nível constitucional: teoria Geral do direito Administrativo....................................... 66
3.2.2
3.2.3
3.3
3.4
3.5
3.6
3.6.1
3.6.1.1
3.6.1.2
3.6.1.3
3.6.1.4
3.6.1.4.1
3.6.1.5
3.6.2
3.6.2.1
3.6.2.2
3.6.2.3
3.6.2.4
3.6.2.5
3.6.2.6
3.6.2.7
nível legal .............................................................................................................................. 67
nível infralegal ..................................................................................................................... 68
regime jurídico administrativo e interesse público ........................................................ 70
interesse público: planos de realização ............................................................................. 73
supremacia e indisponibilidade do interesse público .................................................... 76
Princípios gerais da Administração Pública ..................................................................... 78
Princípios expressos ............................................................................................................. 80
Legalidade ............................................................................................................................. 80
impessoalidade ..................................................................................................................... 83
moralidade ............................................................................................................................ 86
Publicidade ............................................................................................................................ 91
Lei de Acesso à informação (Lei nº 12.527/2011) ............................................................. 93
Eficiência ................................................................................................................................ 96
Princípios implícitos .......................................................................................................... 100
razoabilidade...................................................................................................................... 100
Proporcionalidade .............................................................................................................. 102
motivação ............................................................................................................................ 103
segurança jurídica .............................................................................................................. 106
Continuidade do serviço público ..................................................................................... 111
Autotutela ............................................................................................................................ 112
Controle judicial ................................................................................................................. 113
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA ..................................................................................... 115
4.1
4.1.1
4.1.2
4.1.3
4.1.4
4.1.5
4.1.6
4.1.7
4.1.8
4.1.9
4.1.10
4.1.11
4.1.12
4.1.13
4.1.14
4.2
4.2.1
4.2.2
4.2.3
4.2.3.1
4.2.3.2
4.2.3.3
4.2.3.4
4.3
4.3.1
4.3.2
4.3.2.1
As bases da Administração Pública ................................................................................. 115
direito da organização Administrativa .......................................................................... 115
direito Constitucional e direito da organização Administrativa ............................... 116
organização da Administração Pública e princípios gerais da Administração
Pública .................................................................................................................................. 116
reserva legal e reserva institucional ................................................................................ 118
Administração informal .................................................................................................... 121
Administração Pública em sentido orgânico e em sentido funcional ........................ 123
estado federado e estado unitário ................................................................................... 124
descentralização vertical e horizontal ............................................................................. 125
Limites à descentralização horizontal ............................................................................. 129
Conflitos de atribuição....................................................................................................... 130
descentralização de competência: limites ...................................................................... 131
desconcentração administrativa ...................................................................................... 132
descentralização horizontal e desconcentração: distinções ......................................... 134
delegação de competência: aspectos relevantes e distinções com os processos
de desconcentração e de descentralização administrativa ........................................... 136
Administração Pública direta ........................................................................................... 137
organização das entidades, dos órgãos e dos agentes públicos ................................. 137
Órgãos independentes ....................................................................................................... 139
Classificação dos órgãos .................................................................................................... 141
Classificação em razão da posição do órgão na estrutura da Administração ........... 141
Classificação quanto à estrutura....................................................................................... 142
Classificação quanto à composição .................................................................................. 142
Classificação quanto à atuação funcional ....................................................................... 142
Administração Pública indireta........................................................................................ 144
entidades administrativas................................................................................................. 144
Autarquias ........................................................................................................................... 146
Principais características ................................................................................................... 146
4.3.2.2
4.3.2.3
4.3.2.4
4.3.3
4.3.4
4.3.4.1
4.3.4.2
4.3.4.3
4.3.4.4
4.3.4.5
4.3.4.6
4.3.4.7
4.4
4.4.1
4.4.2
4.4.3
4.4.4
4.4.5
Agências reguladoras ........................................................................................................ 150
Agências executivas ........................................................................................................... 155
Autarquias corporativas .................................................................................................... 155
Fundações públicas ............................................................................................................ 158
empresas estatais................................................................................................................ 161
regime jurídico e características das empresas estatais ............................................... 161
serviço público e atividade empresarial ......................................................................... 167
empresas estatais e regime jurídico de seus empregados ............................................ 171
empresas estatais e regime jurídico de licitações e contratações ................................ 172
Falência de empresas estatais ........................................................................................... 175
Controle de empresas estatais .......................................................................................... 176
distinções entre empresa pública e sociedade de economia mista ............................. 178
Paraestatais e terceiro setor ............................................................................................... 180
entidades do terceiro setor e o estado ............................................................................ 180
organizações sociais (os) ................................................................................................. 181
organização da sociedade civil de interesse público (osCiP) .................................... 183
serviços sociais autônomos (ssA) .................................................................................... 185
entidades do terceiro setor criadas pelo estado ............................................................ 186
PArte ii
AtividAde AdministrAtivA
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo .............................................................................................................. 191
5.1
5.2
5.2.1
5.2.2
5.2.3
5.2.4
5.2.5
5.2.6
5.2.7
5.2.8
5.2.9
5.3
5.4
5.4.1
5.4.2
5.4.3
5.4.4
5.4.5
5.5
5.5.1
5.5.2
5.5.3
5.5.4
5.6
5.6.1
5.6.2
5.6.3
Atividade administrativa .................................................................................................. 191
Considerações necessárias à conceituação dos atos administrativos ......................... 192
Ato legislativo, ato judicial e ato administrativo ........................................................... 192
Ato administrativo e fato administrativo ....................................................................... 192
Ato administrativo e ato de direito Privado .................................................................. 193
empresas estatais e atos administrativos ........................................................................ 195
Ato administrativo e contrato administrativo................................................................ 196
Ato de governo ................................................................................................................... 197
Atos normativos ................................................................................................................. 199
Controle jurisdicional ........................................................................................................ 201
Conceito de ato administrativo ........................................................................................ 201
Perfeição, validade e eficácia do ato administrativo ..................................................... 201
requisitos de validade do ato administrativo................................................................ 203
Competência........................................................................................................................ 203
Finalidade ............................................................................................................................ 206
Forma ................................................................................................................................... 209
motivo .................................................................................................................................. 211
objeto ................................................................................................................................... 214
Atributos do ato administrativo ....................................................................................... 215
Atividade administrativa e prerrogativas públicas ....................................................... 215
Presunção de legitimidade ................................................................................................ 216
Auto-executoriedade.......................................................................................................... 217
imperatividade ................................................................................................................... 219
Classificação dos atos administrativos ............................................................................ 221
Classificação do ato administrativo quanto ao destinatário ........................................ 221
Classificação do ato administrativo quanto ao alcance ................................................ 223
Classificação do ato administrativo quanto ao conteúdo ............................................. 224
5.6.4
5.6.5
5.6.6
5.6.6.1
5.6.6.2
5.6.6.3
5.6.6.4
5.6.6.5
5.7
5.7.1
5.7.2
5.7.2.1
5.7.2.2
5.7.2.3
5.7.2.4
5.7.2.5
5.7.2.6
5.7.2.7
5.7.2.8
5.7.2.9
5.7.2.10
5.7.2.11
5.7.2.12
5.7.3
5.7.3.1
5.7.3.2
5.7.3.3
5.7.3.4
5.7.3.5
5.7.3.6
5.7.3.7
5.7.4
5.7.5
Classificação do ato administrativo quanto ao regramento ......................................... 225
Classificação do ato administrativo quanto à formação ............................................... 227
outras categorias de atos administrativos...................................................................... 231
Ato perfeito e ato inexistente ............................................................................................ 231
Ato válido e ato nulo .......................................................................................................... 231
Ato eficaz, ato exequível e ato consumado ou exaurido .............................................. 232
Ato constitutivo, ato declaratório, ato modificativo e ato extintivo............................ 232
Atos restritivos de direito e atos ampliativos de direito ............................................... 233
revogação, anulação e convalidação ............................................................................... 233
desfazimento do ato e interesse público......................................................................... 233
Anulação .............................................................................................................................. 234
direito Administrativo e direito Civil............................................................................. 234
Ato administrativo nulo e ato administrativo anulável................................................ 236
dever ou poder de anular? ............................................................................................... 238
Fundamentos para anulação ............................................................................................. 240
Prazo para anulação do ato pela Administração
(legalidade x segurança jurídica) ..................................................................................... 241
Anulação e colisão de princípios...................................................................................... 244
efeitos da anulação............................................................................................................. 245
Consequências da anulação do ato anulatório ............................................................... 246
Anulação e dever de indenizar ......................................................................................... 247
Órgãos competentes para a anulação .............................................................................. 248
Anulação do ato de aposentadoria e restituição dos proventos pagos ...................... 250
Anulação, cassação e caducidade..................................................................................... 253
revogação ............................................................................................................................ 254
Fundamentos....................................................................................................................... 254
efeitos ................................................................................................................................... 255
Atos irrevogáveis ................................................................................................................ 255
revogação e interesse público .......................................................................................... 256
revogação de atos processuais ......................................................................................... 257
Prazo para revogação ......................................................................................................... 258
revogação e dever de indenizar....................................................................................... 258
distinções entre anulação e revogação ............................................................................ 259
Convalidação ....................................................................................................................... 260
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo .............................................................................................. 263
6.1
6.2
6.3
6.4
6.5
6.6
6.6.1
6.6.2
6.6.2.1
6.6.2.2
6.6.2.3
6.6.2.4
6.7
Contratos celebrados pela Administração Pública – fundamento constitucional ...... 263
normas gerais sobre licitações e contratos administrativos ........................................ 264
Terceirização de atividades fins: impossibilidade ......................................................... 267
Contrato administrativo e ato administrativo ................................................................ 270
Conceito de contrato administrativo ............................................................................... 270
outros acordos de vontade ............................................................................................... 271
Convênios celebrados pelo poder público ...................................................................... 271
Contratos de gestão ............................................................................................................ 274
Contratos de gestão e organizações sociais .................................................................... 274
Contrato de gestão celebrado entre entidades ou órgãos públicos............................. 276
termos de parceria e organizações da sociedade civil de interesse público ............. 277
Parcerias público-privadas, concessões de serviço público, termos de parceria
e contratos de gestão: distinções ...................................................................................... 279
distinção entre contratos administrativos e contratos celebrados pelos
particulares .......................................................................................................................... 279
6.8
6.9
6.9.1
6.9.2
6.9.3
6.9.4
6.9.5
6.9.5.1
6.9.5.2
6.9.5.3
6.10
6.11
6.12
6.12.1
6.12.2
6.12.3
6.12.4
6.12.5
6.12.6
6.13
6.14
6.15
6.16
Contrato de direito Público e contrato de direito Privado .......................................... 281
Cláusulas exorbitantes ....................................................................................................... 284
Mutabilidade contratual: modificações unilaterais ....................................................... 285
rescisão unilateral .............................................................................................................. 289
Fiscalização da execução do contrato .............................................................................. 291
Aplicação de sanções ......................................................................................................... 293
outras cláusulas exorbitantes ........................................................................................... 295
retenção de créditos e exigência de garantias ............................................................... 295
exceção de contrato não cumprido .................................................................................. 296
Anulação do contrato......................................................................................................... 297
Contratos administrativos e empresas estatais .............................................................. 297
Prazos contratuais .............................................................................................................. 298
Equilíbrio econômico-financeiro do contrato ................................................................. 301
teoria da imprevisão.......................................................................................................... 301
distinção entre recomposição, reajuste de preços e repactuação ................................ 305
distinção entre atualização, recomposição e reajuste de preços ................................. 308
Equilíbrio financeiro e contratos de concessão .............................................................. 308
Fato do príncipe e fato da administração ....................................................................... 309
Caso fortuito, força maior e teoria da imprevisão ......................................................... 310
Formalização do contrato-regra ....................................................................................... 311
execução dos contratos...................................................................................................... 313
recebimento do objeto do contrato ................................................................................. 316
extinção do contrato .......................................................................................................... 317
CAPítuLo 7
LiCitAção ........................................................................................................................................ 323
7.1
7.2
7.3
7.4
7.4.1
7.4.2
7.4.3
7.4.4
7.4.5
7.4.6
7.4.7
7.4.8
7.4.9
7.5
7.6
7.6.1
7.6.2
7.6.3
7.6.3.1
7.6.3.2
7.6.3.2.1
7.6.3.2.2
7.6.3.2.3
7.6.3.2.4
7.6.3.2.5
7.6.3.2.6
7.6.3.2.7
Administração Pública e setor privado ........................................................................... 323
Finalidades da licitação ..................................................................................................... 324
Processo administrativo e formalismo exagerado ......................................................... 328
Princípios da licitação ........................................................................................................ 329
supremacia e indisponibilidade do interesse público .................................................. 329
Legalidade ........................................................................................................................... 330
impessoalidade ................................................................................................................... 331
moralidade ou probidade ................................................................................................. 331
motivação ............................................................................................................................ 332
Publicidade .......................................................................................................................... 333
vinculação ao instrumento convocatório........................................................................ 335
Julgamento objetivo ........................................................................................................... 336
Adjudicação compulsória.................................................................................................. 337
dever constitucional de licitar .......................................................................................... 337
Contratação sem licitação .................................................................................................. 338
distinção conceitual entre dispensa e inexigibilidade de licitação ............................. 338
Licitação dispensada – Lista exaustiva ............................................................................ 340
Licitação dispensável – Lista exaustiva ........................................................................... 341
Licitação dispensável em razão do valor ........................................................................ 342
Licitação dispensável em razão de situações excepcionais .......................................... 344
Contrato emergencial ......................................................................................................... 344
inércia do administrador causadora da emergência na contratação .......................... 346
renovação e prorrogação de contratos emergenciais ................................................... 347
Licitação deserta ou frustrada – Ausência de interessados .......................................... 349
Convite e licitação deserta................................................................................................. 349
Licitação fracassada............................................................................................................ 350
Contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento ................................ 351
7.6.3.2.8
7.6.3.3
7.6.3.4
7.6.4
7.6.4.1
7.6.4.2
7.6.4.3
7.6.4.4
7.7
7.7.1
7.7.2
7.7.3
7.7.4
7.7.5
7.7.6
7.7.7
7.7.8
7.7.8.1
7.7.8.2
7.7.8.3
7.7.8.4
7.7.8.5
7.7.8.6
7.7.8.7
7.7.8.8
7.7.8.9
7.7.8.9.1
7.7.8.9.2
7.7.8.9.3
7.7.8.9.4
7.7.8.9.5
7.7.8.9.6
7.7.8.10
7.7.8.11
7.7.8.12
7.7.9
7.7.10
7.7.11
7.7.12
7.7.13
7.7.13.1
7.7.13.2
7.7.13.3
7.7.13.4
7.7.13.5
7.7.13.6
7.7.13.7
7.7.13.8
7.7.13.9
7.7.13.10
7.8
7.8.1
outras hipóteses de contratação direta relacionadas a situações excepcionais ........ 351
dispensa em razão do objeto ............................................................................................ 352
dispensa em razão da pessoa ........................................................................................... 357
inviabilidade de competição e inexigibilidade de licitação ......................................... 363
Fornecedor exclusivo ......................................................................................................... 364
Serviços técnicos a serem prestados por profissionais de notória especialização ...... 368
Contratação de serviços artísticos .................................................................................... 372
outras hipóteses de inexigibilidade de licitação ........................................................... 372
modalidades de licitação ................................................................................................... 373
modalidades comuns e especiais de licitação ................................................................ 374
Critério para a utilização da concorrência, tomada de preços ou convite ................. 374
utilização do leilão ou da concorrência para a alienação de imóveis ........................ 375
Licitação internacional e adoção da concorrência ......................................................... 376
Adoção da modalidade de licitação mais rigorosa que a definida em lei.................. 376
desmembramento (fracionamento) do objeto do contrato .......................................... 377
Criação de modalidade de licitação não prevista em lei – impossibilidade .............. 379
Concorrência ....................................................................................................................... 379
Procedimento básico na licitação ..................................................................................... 379
Fase interna e fase externa da licitação............................................................................ 380
Fase interna: providências preliminares ......................................................................... 380
motivação da licitação – necessidades da Administração Pública ............................. 381
objeto da licitação .............................................................................................................. 382
necessidade da previsão dos recursos a serem gastos ................................................. 382
edital – elaboração ............................................................................................................. 383
Lei de responsabilidade Fiscal e licitações..................................................................... 383
Fases da concorrência ........................................................................................................ 385
edital .................................................................................................................................... 385
Habilitação........................................................................................................................... 389
Julgamento (classificação das propostas)........................................................................ 407
Homologação do procedimento licitatório ..................................................................... 418
Adjudicação ......................................................................................................................... 419
recursos contra as decisões proferidas no curso da licitação ...................................... 419
representação ao tribunal de Contas ............................................................................. 420
Convocação do adjudicatário para assinar o contrato .................................................. 420
Prazo de validade das propostas ..................................................................................... 421
tomada de preços............................................................................................................... 421
Convite ................................................................................................................................. 422
Leilão .................................................................................................................................... 423
Concurso .............................................................................................................................. 424
Pregão................................................................................................................................... 425
Aspectos gerais ................................................................................................................... 425
Definição .............................................................................................................................. 426
Bens ou serviços de informática e pregão ....................................................................... 428
Pregão e margem de preferência prevista na Lei nº 12.349/2010 ................................ 430
Procedimento do pregão ................................................................................................... 431
Fase interna do pregão....................................................................................................... 431
Pregoeiro .............................................................................................................................. 433
Fase externa do pregão ...................................................................................................... 433
Contratação decorrente do pregão................................................................................... 438
Pregão eletrônico ................................................................................................................ 439
tipos de licitação ................................................................................................................ 442
noções gerais – distinção entre modalidade e tipo de licitação ................................. 442
7.8.2
7.8.3
7.8.4
7.8.5
7.8.6
7.8.7
7.8.8
7.9
7.10
impossibilidade de ser criado novo tipo de licitação que não tenha sido
indicado pela lei .................................................................................................................. 442
impossibilidade de serem julgadas as propostas por meio de critérios
subjetivos ou não constantes do edital ............................................................................ 443
menor preço – tipo básico de licitação ........................................................................... 443
melhor técnica e técnica e preço ....................................................................................... 444
Aquisição de bens e serviços de informática e o direito de preferência..................... 446
outras hipóteses de utilização do tipo melhor técnica ou técnica e preço ................ 449
menor preço como critério decisivo, inclusive na licitação de melhor técnica ......... 449
regime diferenciado de Contratações Públicas ............................................................ 451
Compras, contratações e desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa .... 453
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo................................................... 455
8.1
8.1.1
8.1.2
8.2
8.3
8.4
8.5
8.6
8.7
8.8
8.9
8.10
8.11
8.12
8.13
8.14
8.15
8.15.1
8.15.2
8.15.3
8.15.4
8.15.5
8.15.6
8.16
8.16.1
8.16.2
8.17
8.17.1
8.17.2
8.17.3
8.18
Concessões de serviço público e a formação do estado ............................................... 455
do estado Liberal ao estado moderno............................................................................ 455
subsidiariedade e o novo modelo de concessão de serviços públicos ....................... 457
interesses envolvidos na concessão ................................................................................. 458
empresas estatais concessionárias de serviço público .................................................. 460
Legislação aplicável............................................................................................................ 461
Âmbito de aplicação das concessões ............................................................................... 461
serviços passíveis de concessão e o texto constitucional .............................................. 463
Conceito legal ...................................................................................................................... 466
Concessão de serviço público precedida de obra pública ............................................ 466
Concessão e permissão de uso de bem público ............................................................. 467
Licitação das concessões .................................................................................................... 468
Equilíbrio econômico-financeiro da concessão .............................................................. 471
direitos dos usuários ......................................................................................................... 476
direitos do concessionário ................................................................................................ 477
intervenção na concessão .................................................................................................. 478
extinção da concessão........................................................................................................ 478
Advento do termo contratual ........................................................................................... 479
encampação ........................................................................................................................ 482
Caducidade ......................................................................................................................... 482
rescisão ................................................................................................................................ 484
Anulação .............................................................................................................................. 484
outras hipóteses ................................................................................................................. 484
responsabilidade civil do concessionário e do poder concedente ............................. 485
responsabilidade perante os usuários e perante terceiros........................................... 485
responsabilidade subsidiária do poder concedente ..................................................... 486
Permissão de serviço público............................................................................................ 488
distinção entre permissão e concessão............................................................................ 488
Formalização da permissão .............................................................................................. 489
vigência da permissão ....................................................................................................... 490
Autorização de serviço ...................................................................................................... 491
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs........................................................................................... 495
9.1
instituição das parcerias público-privadas no direito brasileiro ................................ 495
9.2
modelos de parcerias público-privadas .......................................................................... 497
9.3
Âmbito de aplicação........................................................................................................... 498
9.4
regime jurídico das parcerias público-privadas ........................................................... 501
9.5
9.6
9.6.1
9.6.2
9.6.3
9.6.4
9.7
9.8
9.9
9.9.1
9.9.2
9.9.3
9.10
9.11
Características das parcerias público-privadas .............................................................. 502
diretrizes e garantias das PPP .......................................................................................... 503
Eficiência .............................................................................................................................. 503
Responsabilidade fiscal ..................................................................................................... 503
distribuição dos riscos, encargos e responsabilidades ................................................. 506
outras diretrizes ................................................................................................................. 508
vedações à utilização de PPP............................................................................................ 508
Conteúdo dos contratos de PPP ....................................................................................... 509
Licitação para a contratação de PPP ................................................................................ 510
Planejamento prévio .......................................................................................................... 510
Arbitragem .......................................................................................................................... 511
Procedimento da licitação de PPP.................................................................................... 512
Sociedade de Propósito Específico (SPE) ........................................................................ 513
Órgão gestor de PPP, ministérios e agências reguladoras ............................................ 514
PArte iii
AtividAde AdministrAtivA: Conteúdos mAteriAis
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos .......................................................................................517
10.1
10.2
10.2.1
10.2.2
10.2.3
10.2.4
10.3
10.4
10.4.1
10.4.2
10.4.3
10.4.4
10.4.5
10.4.6
10.5
10.5.1
10.5.2
10.5.3
10.5.4
10.5.5
10.5.6
10.5.7
10.5.8
10.5.9
10.5.10
10.5.11
10.5.12
10.5.13
10.5.14
10.5.14.1
Potestades administrativas e interesse público .............................................................. 517
Poderes e deveres administrativos................................................................................... 518
dever de agir ....................................................................................................................... 518
Dever de eficiência ............................................................................................................. 519
dever de probidade............................................................................................................ 520
dever de prestar contas ..................................................................................................... 523
Abuso de poder .................................................................................................................. 524
discricionariedade e vinculação administrativa ............................................................ 526
Poder discricionário e poder vinculado .......................................................................... 526
Conceito de discricionariedade ........................................................................................ 527
Como surge a discricionariedade..................................................................................... 528
discricionariedade e interpretação .................................................................................. 528
discricionariedade e mérito .............................................................................................. 529
Controle judicial da discricionariedade .......................................................................... 530
Poder de polícia (atividade ordenadora do estado)...................................................... 532
Aspectos gerais ................................................................................................................... 532
Poder de polícia e demais poderes administrativos ...................................................... 533
Poder de polícia e serviço público ................................................................................... 534
áreas de atuação................................................................................................................. 535
Agências reguladoras e poder de polícia ........................................................................ 535
impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares .............................. 537
Definição do poder de polícia........................................................................................... 538
Formas de atuação.............................................................................................................. 538
Atributos .............................................................................................................................. 539
estado constitucional e poder de polícia: pressupostos ............................................... 541
regulamentos de polícia ................................................................................................... 543
Polícia administrativa e polícia judiciária ....................................................................... 545
Polícia geral e polícia especial .......................................................................................... 546
técnicas de ordenação ....................................................................................................... 547
técnica de informação ....................................................................................................... 547
10.5.14.2
10.5.14.3
10.5.15
10.5.16
10.6
10.7
10.7.1
10.7.2
10.7.2.1
10.7.2.2
10.7.2.3
10.7.3
10.8
técnica de condicionamento ............................................................................................. 548
técnica sancionatória ......................................................................................................... 549
obrigações positivas .......................................................................................................... 552
segurança e liberdade ........................................................................................................ 553
Poder hierárquico ............................................................................................................... 553
Poder disciplinar................................................................................................................. 557
Aspectos gerais ................................................................................................................... 557
Processo disciplinar: servidores públicos ....................................................................... 558
sanções disciplinares ......................................................................................................... 558
Processo administrativo disciplinar................................................................................. 560
etapas do processo disciplinar ......................................................................................... 562
Processo disciplinar: empresas contratadas pela Administração Pública ................. 565
Poder regulamentar............................................................................................................ 566
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem
eConômiCA .................................................................................................................................... 571
11.1
11.1.1
11.1.2
11.2
11.3
11.4
11.5
11.6
11.6.1
11.6.2
11.6.3
11.7
11.8
11.9
11.10
11.10.1
11.10.2
11.10.3
11.10.4
11.10.5
11.10.6
serviços públicos e o estado ............................................................................................. 571
surgimento da atividade prestacional do estado .......................................................... 571
desenvolvimento das atividades prestacionais ............................................................. 571
serviço público e outras atividades estatais ................................................................... 573
Formas de intervenção do estado na economia............................................................. 575
intervenção do estado na ordem econômica: os princípios do estado
subsidiário e do estado cooperativo ................................................................................ 577
serviço público: concepção subjetiva e objetiva ............................................................. 580
elementos caracterizadores do serviço público ............................................................. 581
titularidade do serviço público ....................................................................................... 582
objeto do serviço público: atividades privadas x serviços públicos........................... 584
serviço público e regime jurídico administrativo.......................................................... 586
Conceito de serviço público .............................................................................................. 588
Princípios ............................................................................................................................. 588
regime jurídico do usuário: Código de defesa do Consumidor ................................ 592
Classificação do serviço público ....................................................................................... 595
Classificação quanto ao destinatário: serviços públicos uti universi (ou gerais)
e serviços públicos uti singuli (ou individuais) .............................................................. 595
Classificação quanto à titularidade: serviços federais, estaduais e municipais ........ 595
Classificação quanto à essencialidade: serviços essenciais e serviços não
essenciais.............................................................................................................................. 597
Classificação quanto à forma de prestação: serviço centralizado e serviço
descentralizado ................................................................................................................... 597
Classificação quanto à gestão da prestação: gestão direta e gestão indireta ............. 597
Outros critérios de classificação ....................................................................................... 599
CAPítuLo 12
AtividAde de Fomento ........................................................................................................ 601
12.1
12.2
12.3
12.4
12.5
12.6
desenvolvimento da atividade de fomento ................................................................... 601
Fomento e outras atividades estatais ............................................................................... 602
Atividade de fomento como dever constitucional ........................................................ 603
áreas de atuação................................................................................................................. 604
Fomento como atividade jurídica .................................................................................... 605
técnicas de fomento ........................................................................................................... 607
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA
ProPriedAde PrivAdA ........................................................................................................... 609
13.1
13.2
13.3
13.4
13.5
13.5.1
13.5.2
13.5.3
13.5.4
13.5.5
13.5.6
13.5.7
13.5.8
13.6
13.7
13.7.1
13.7.2
13.7.3
13.8
13.8.1
13.8.2
13.9
13.10
13.11
13.12
13.13
13.14
13.15
13.16
Fundamentos para a intervenção do estado na propriedade privada ....................... 609
desapropriação e fundamentos constitucionais: necessidade ou utilidade
pública e interesse social ................................................................................................... 610
requisitos constitucionais ................................................................................................. 612
Procedimento administrativo ........................................................................................... 612
indenização ......................................................................................................................... 615
indenização prévia, justa e em dinheiro ......................................................................... 615
indenização em títulos ....................................................................................................... 617
súmulas do supremo tribunal Federal e do superior tribunal de Justiça sobre
desapropriação.................................................................................................................... 618
Juros compensatórios ......................................................................................................... 620
Juros moratórios ................................................................................................................. 622
Acumulação de juros compensatórios e moratórios ..................................................... 624
Atualização monetária ....................................................................................................... 624
Honorários de advogado................................................................................................... 625
Bens passíveis de desapropriação .................................................................................... 625
Competência em matéria de desapropriação ................................................................. 631
Competência para legislar................................................................................................. 631
Competência para desapropriar....................................................................................... 632
Competência para promover desapropriação................................................................ 632
desapropriação indireta .................................................................................................... 633
distinção entre desapropriação direta e desapropriação indireta .............................. 633
natureza da ação de desapropriação indireta e prazo prescricional.......................... 636
desapropriação por zona .................................................................................................. 638
direito de extensão ............................................................................................................. 639
tredestinação ...................................................................................................................... 640
Anulação, cassação e retrocessão ..................................................................................... 642
requisição ............................................................................................................................ 645
Limitação administrativa................................................................................................... 646
servidão administrativa .................................................................................................... 649
tombamento........................................................................................................................ 652
PArte iv
estruturA dA AdministrAção PúBLiCA
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos .............................................................................................................................. 661
14.1
14.2
14.3
14.4
14.4.1
14.4.2
14.4.3
14.5
14.6
14.7
14.8
domínio público e domínio eminente............................................................................. 661
regime jurídico dos bens públicos .................................................................................. 664
Bens pertencentes às empresas estatais........................................................................... 664
destinação dos bens públicos ........................................................................................... 667
Bens de uso comum ........................................................................................................... 667
Bens de uso especial ........................................................................................................... 668
Bens dominicais .................................................................................................................. 669
Afetação e desafetação ....................................................................................................... 671
Classificação dos bens quanto a sua titularidade .......................................................... 672
domínio público e domínio privado do estado ............................................................ 674
Características do regime jurídico dos bens públicos ................................................... 676
14.8.1
14.8.2
14.8.3
14.8.4
14.8.5
14.9
14.10
14.10.1
14.10.2
14.10.3
14.10.3.1
14.10.3.2
14.10.3.3
14.10.4
14.10.5
14.11
14.12
14.13
14.13.1
14.13.2
14.13.3
14.13.4
14.13.5
14.13.6
14.13.7
Alienabilidade condicionada ............................................................................................ 676
impenhorabilidade ............................................................................................................. 678
imprescritibilidade ............................................................................................................. 678
não onerabilidade .............................................................................................................. 679
Características e espécies de bens públicos .................................................................... 680
uso ordinário e uso extraordinário dos bens públicos ................................................. 680
delegação de uso ................................................................................................................ 681
Autorização de uso............................................................................................................. 681
Permissão de uso ................................................................................................................ 683
Concessão de uso................................................................................................................ 687
Conceito e características................................................................................................... 687
Concessão de direito real de uso ...................................................................................... 688
Concessão de uso especial para fins de moradia ........................................................... 689
Cessão de uso ...................................................................................................................... 691
Formas de delegação de uso do direito Privado: bens dominicais ............................ 692
Alienação de bens ............................................................................................................... 695
Aquisição de bens............................................................................................................... 695
Bens públicos em espécie .................................................................................................. 702
terrenos reservados ........................................................................................................... 702
terrenos de marinha .......................................................................................................... 703
terras devolutas.................................................................................................................. 705
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios............................................................. 706
Plataforma continental e mar territorial.......................................................................... 707
águas públicas.................................................................................................................... 708
ilhas ...................................................................................................................................... 708
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos .................................................................................................................... 711
15.1
15.1.1
15.1.2
15.1.3
15.2
15.2.1
15.2.2
15.2.3
15.2.4
15.3
15.3.1
15.3.2
15.3.3
15.3.4
15.3.5
15.3.6
15.3.7
15.4
15.5
15.5.1
15.5.2
15.5.3
15.5.4
15.5.5
15.5.6
Agentes públicos e atividade estatal ............................................................................... 711
Agentes públicos e estrutura do estado.......................................................................... 711
teoria do órgão ................................................................................................................... 712
Agente de fato ..................................................................................................................... 714
Cargo, emprego e função pública .................................................................................... 715
distinções e conceitos ........................................................................................................ 715
Âmbito de utilização do emprego e do cargo público no serviço público ................ 718
Cargo efetivo e cargo em comissão .................................................................................. 720
Cargo em comissão e função de confiança ..................................................................... 721
Categorias de agente público............................................................................................ 722
Agentes políticos ................................................................................................................ 723
servidores públicos ............................................................................................................ 724
empregados públicos ........................................................................................................ 727
servidores temporários...................................................................................................... 729
Agentes delegados ............................................................................................................. 731
Agentes honoríficos............................................................................................................ 733
militares ............................................................................................................................... 733
regras constitucionais pertinentes aos servidores públicos ........................................ 734
Concurso público................................................................................................................ 734
obrigatoriedade.................................................................................................................. 734
edital e isonomia ................................................................................................................ 737
Prazo de validade do concurso......................................................................................... 738
Ordem de classificação ...................................................................................................... 738
Aprovação em concurso público e direito à nomeação ................................................ 740
Concurso público e cadastro de reserva ......................................................................... 744
15.6
15.7
15.7.1
15.7.2
15.7.3
15.7.4
15.7.5
15.7.6
15.8
15.8.1
15.8.2
15.9
15.9.1
15.9.2
15.9.3
15.9.4
15.9.5
15.9.6
15.9.7
15.9.8
15.9.9
15.9.10
15.9.11
15.9.12
15.9.13
15.10
direito de livre associação sindical e de greve no serviço público ............................. 745
sistema de remuneração.................................................................................................... 747
Conceitos básicos ................................................................................................................ 747
Fixação e revisão de remuneração ................................................................................... 749
teto remuneratório............................................................................................................. 751
isonomia e paridade........................................................................................................... 754
vedação de vinculação e equiparação ............................................................................. 755
irredutibilidade................................................................................................................... 756
Acumulação de cargos, empregos e funções públicas .................................................. 758
Acumulação de cargos na atividade ................................................................................ 758
Acumulação de proventos e vencimentos ...................................................................... 762
estabilidade ......................................................................................................................... 763
requisitos ............................................................................................................................ 763
efetividade e estabilidade ................................................................................................. 764
estágio probatório .............................................................................................................. 764
reprovação de servidor não estável no estágio probatório: exoneração ................... 766
reprovação de servidor estável no estágio probatório: recondução .......................... 767
recondução a pedido......................................................................................................... 768
necessidade de servidor estável aprovado em novo concurso submeter-se a
novo estágio probatório ..................................................................................................... 769
estágio experimental.......................................................................................................... 770
Avaliação especial de desempenho.................................................................................. 771
estabilidade decorrente do Ato das disposições Constitucionais transitórias ........ 772
efeitos da estabilidade ....................................................................................................... 772
servidor não estável ocupante de cargo efetivo............................................................. 775
estabilidade e vitaliciedade .............................................................................................. 776
Aposentadoria..................................................................................................................... 777
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL
(Lei nº 8.112/90) ............................................................................................................................... 783
16.1
Considerações iniciais ........................................................................................................ 783
16.2
Provimento .......................................................................................................................... 784
16.2.1
requisitos para a investidura ........................................................................................... 784
16.2.2
Formas de provimento ...................................................................................................... 785
16.2.2.1 nomeação ............................................................................................................................ 785
16.2.2.2 Promoção ............................................................................................................................. 785
16.2.2.3 readaptação ........................................................................................................................ 786
16.2.2.4 reversão ............................................................................................................................... 787
16.2.2.5 reintegração ........................................................................................................................ 787
16.2.2.6 recondução ......................................................................................................................... 788
16.2.2.7 Aproveitamento .................................................................................................................. 788
16.3
Posse, exercício e estágio probatório ............................................................................... 788
16.3.1
Posse ..................................................................................................................................... 788
16.3.2
exercício ............................................................................................................................... 789
16.3.3
estágio probatório .............................................................................................................. 790
16.4
vacância ............................................................................................................................... 791
16.4.1
exoneração .......................................................................................................................... 791
16.4.2
demissão.............................................................................................................................. 792
16.4.3
Posse em outro cargo inacumulável ................................................................................ 792
16.5
remoção e redistribuição .................................................................................................. 793
16.6
direitos e vantagens ........................................................................................................... 794
16.6.1
remuneração....................................................................................................................... 794
16.6.2
16.6.3
16.7
16.7.1
16.7.2
16.7.3
16.7.4
16.8
16.8.1
16.8.2
16.8.3
16.8.4
16.8.5
16.8.5.1
16.8.5.2
Férias .................................................................................................................................... 796
Licenças, afastamentos e concessões ............................................................................... 797
responsabilidade do servidor .......................................................................................... 799
responsabilidade civil ....................................................................................................... 799
responsabilidade penal ..................................................................................................... 801
responsabilidade administrativa ..................................................................................... 802
Comunicação de instâncias ............................................................................................... 802
regime disciplinar e processo administrativo disciplinar ........................................... 805
regime disciplinar.............................................................................................................. 805
Penalidades disciplinares: atividade vinculada ............................................................. 806
Autoridade competente para a aplicação das sanções disciplinares .......................... 809
Prescrição das sanções disciplinares................................................................................ 809
Processo administrativo disciplinar (PAd)..................................................................... 810
modalidades ........................................................................................................................ 810
Processo disciplinar............................................................................................................ 812
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo ............................ 815
17.1
17.2
17.3
17.4
17.5
17.5.1
17.5.2
17.6
17.6.1
17.6.2
17.7
17.7.1
17.7.2
17.7.3
17.8
17.8.1
17.8.2
17.9
17.9.1
17.9.2
17.10
17.11
Âmbito de aplicação da responsabilidade civil do estado........................................... 815
evolução da responsabilidade civil ................................................................................. 817
teoria subjetiva e teoria objetiva ...................................................................................... 819
risco administrativo e risco integral: excludentes de responsabilidade civil ........... 820
responsabilidade civil do estado no direito brasileiro: regras básicas ..................... 824
Pessoas de direito Público ou de direito Privado prestadoras de serviços
públicos ................................................................................................................................ 824
Ação de responsabilidade civil e direito de regresso .................................................... 824
Prescrição e a Fazenda Pública ......................................................................................... 827
Ações contra o poder público ........................................................................................... 827
imprescritibilidade da ação regressiva............................................................................ 829
requisitos à responsabilização do estado ...................................................................... 830
dano ..................................................................................................................................... 831
nexo de causalidade .......................................................................................................... 833
Oficialidade da conduta causal ........................................................................................ 835
omissão e responsabilidade civil do estado .................................................................. 837
teoria objetiva e teoria subjetiva ...................................................................................... 837
omissão do estado e teoria da reserva do possível ...................................................... 841
responsabilidade civil do estado e concessionárias de serviços públicos ................ 843
responsabilidade pelos danos causados aos usuários ................................................. 843
responsabilidade dos prestadores de serviços públicos e terceiros não
usuários dos serviços ......................................................................................................... 847
responsabilidade civil do estado por atos legislativos ................................................ 849
responsabilidade civil do estado por atos judiciais ..................................................... 852
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA ................................................................... 857
18.1
18.2
18.2.1
18.2.2
18.2.3
18.3
18.3.1
Controle como fundamento do estado democrático de direito ................................. 857
Conceito e classificação...................................................................................................... 859
Controle prévio, controle sucessivo e controle corretivo.............................................. 859
Controle interno e controle externo ................................................................................. 861
Controle de mérito e controle de legalidade .................................................................. 861
Controle de legalidade....................................................................................................... 863
discricionariedade, interpretação e conceitos jurídicos indeterminados .................. 863
18.3.2
18.3.3
18.3.4
18.4
18.4.1
18.4.2
18.4.3
18.5
18.5.1
18.5.2
18.6
18.6.1
18.6.2
18.6.3
18.6.4
18.6.4.1
18.6.4.2
18.6.4.3
18.6.4.4
18.6.4.5
18.6.4.6
18.6.5
18.6.6
18.6.6.1
18.6.6.1.1
18.6.6.1.2
18.6.6.1.3
18.6.6.1.4
18.6.6.1.5
18.6.6.1.6
18.6.6.2
18.6.6.2.1
18.6.6.2.2
18.6.6.2.3
18.6.6.3
18.6.7
18.6.8
18.7
18.7.1
18.7.2
18.7.3
18.7.4
18.7.5
18.7.5.1
18.7.5.2
18.7.5.3
18.7.6
18.7.7
18.7.7.1
razoabilidade e discricionariedade ................................................................................. 867
discricionariedade técnica ................................................................................................ 869
Eficiência e discricionariedade ......................................................................................... 871
Controle administrativo .................................................................................................... 874
Fundamento e alcance ....................................................................................................... 874
supervisão ministerial: poder de tutela e de autotutela ............................................... 876
instrumentos do controle administrativo ....................................................................... 877
Controle parlamentar direto ............................................................................................. 880
Controle político ................................................................................................................. 880
Controle financeiro ............................................................................................................. 883
Controle exercido pelo tribunal de Contas da união ................................................... 887
modelos de controle externo ............................................................................................ 887
Composição dos tribunais de Contas ............................................................................. 889
natureza do controle exercido pelo tCu ....................................................................... 892
Atribuições constitucionais e legais do tCu .................................................................. 897
opinativa ou consultiva .................................................................................................... 897
Fiscalizadora........................................................................................................................ 897
de julgamento de contas ................................................................................................... 898
de registro ........................................................................................................................... 898
sancionadora ....................................................................................................................... 898
Corretiva .............................................................................................................................. 899
natureza das sanções aplicadas pelo tCu e poder disciplinar................................... 899
espécies de processo no tCu ........................................................................................... 901
Processos de contas ............................................................................................................ 901
modalidades de contas ...................................................................................................... 901
Julgamento das contas ....................................................................................................... 904
natureza das decisões proferidas pelo tCu no julgamento de contas ...................... 906
Fiscalização e julgamento de contas dos gestores das empresas estatais .................. 909
Competência do tCu para julgar contas e imunidade dos advogados ..................... 909
inelegibilidade e contas irregulares ................................................................................. 912
Processos de fiscalização ................................................................................................... 913
Objeto da fiscalização......................................................................................................... 913
Instrumentos de fiscalização ............................................................................................. 916
tramitação dos processos .................................................................................................. 922
Processos sujeitos a registro .............................................................................................. 924
recursos contra as decisões do tCu ............................................................................... 928
tribunais de Contas estaduais e municipais .................................................................. 929
Controle judicial ................................................................................................................. 931
sistemas de controle ........................................................................................................... 931
Limites ao controle judicial ............................................................................................... 932
etapas para o controle judicial da discricionariedade .................................................. 933
intensidade do controle judicial da atividade administrativa: teoria da reserva
da Administração ............................................................................................................... 934
Controle judicial e arbitragem .......................................................................................... 937
Arbitragem e inafastabilidade da apreciação judicial ................................................... 937
Arbitragem, contratos administrativos e indisponibilidade do interesse
público.................................................................................................................................. 937
Arbitragem e controle de legalidade ............................................................................... 941
direitos subjetivos, controle judicial e esgotamento da instância
administrativa ..................................................................................................................... 943
instrumentos de controle judicial .................................................................................... 951
mandado de segurança ..................................................................................................... 951
18.7.7.2
18.7.7.3
18.7.7.4
18.7.7.5
18.7.7.6
18.7.7.7
18.7.7.8
Habeas corpus........................................................................................................................ 957
Habeas data ........................................................................................................................... 958
mandado de injunção ........................................................................................................ 960
Ação popular ....................................................................................................................... 963
Ação civil pública ............................................................................................................... 965
Ação de improbidade ........................................................................................................ 966
outras ações ........................................................................................................................ 969
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo................................................................................................. 971
19.1
19.2
19.3
19.4
19.5
19.5.1
19.5.2
19.5.3
19.5.4
19.5.5
19.5.6
19.5.7
19.5.8
19.5.9
19.5.10
19.6
19.6.1
19.6.2
19.6.3
19.6.4
Processo judicial e processo administrativo ................................................................... 971
Processo e procedimento ................................................................................................... 973
Processo e forma do ato ..................................................................................................... 975
Categorias de processos administrativos ........................................................................ 975
Princípios do processo administrativo ............................................................................ 977
Oficialidade ......................................................................................................................... 978
Gratuidade........................................................................................................................... 979
Ampla defesa e contraditório ........................................................................................... 979
recorribilidade das decisões administrativas ................................................................ 979
economia processual ......................................................................................................... 980
Formalismo moderado ...................................................................................................... 981
verdade material ................................................................................................................ 982
Publicidade .......................................................................................................................... 983
motivação ............................................................................................................................ 983
Lealdade e boa-fé ................................................................................................................ 983
Processo da Lei nº 9.784/99................................................................................................ 983
Processo administrativo previsto na Lei nº 9.784/99 e outros processos
administrativos ................................................................................................................... 983
Âmbito de aplicação da Lei nº 9.784/99 ........................................................................... 984
direitos e deveres dos administrados ............................................................................. 985
instauração e condução do processo ............................................................................... 986
reFerênCiAs ..................................................................................................................................... 989
índiCe .......................................................................................................................................................
notA Ao Leitor
A ideia de escrever o presente Curso de Direito Administrativo surgiu em função
da necessidade do autor de apresentar respostas para inúmeras questões relacionadas
ao direito Administrativo.
A elaboração do texto, que utiliza linguagem simples e de fácil compreensão, tem
o propósito de tratar dos principais temas afetos a este ramo do direito Público. Para
enfrentar o desafio de escrever uma obra que aborde os mais variados temas relacionados
ao exercício da atividade administrativa do estado, o autor se vale da sua experiência
como representante do ministério Público junto ao tribunal de Contas da união e como
professor da universidade de Brasília (unB). esses dois traços são marcantes no texto.
As questões tratadas no presente livro refletem, em primeiro lugar, a experiência
do autor na atividade de controle da Administração Pública decorrente do exercício
do cargo de procurador-geral do ministério Público junto ao tCu. no desempenho da
sua função, são enfrentadas questões reais relacionadas à aplicação do direito Administrativo e são buscadas soluções para as mais variadas situações com que se deparam
os gestores públicos e todos os que fazem do direito Administrativo o instrumento de
trabalho. A outra linha de atuação do autor, o magistério na universidade de Brasília,
permite que as questões sejam apresentadas de forma didática, sendo facilmente compreendidas pelo leitor.
Esses dois traços na formação profissional do autor fazem com que o presente
texto seja indicado tanto para os alunos de direito, que buscam textos de fácil compreensão, quanto pelos profissionais que necessitam de soluções para questões práticas,
relacionadas à aplicação do direito Administrativo.
são abordadas questões relacionadas ao regime jurídico administrativo, à organização administrativa do estado, aos atos e aos poderes administrativos, às licitações
e aos contratos administrativos, às concessões de serviço público e às parcerias públicoprivadas, à intervenção do estado na propriedade, ao regime jurídico constitucional
e legal dos servidores públicos, ao controle da Administração Pública, entre outros.
referência especial deve ser conferida a determinados temas, dentre os quais
destacamos a organização administrativa do estado, as licitações e os contratos administrativos, o regime jurídico dos servidores públicos e o controle da Administração Pública.
É apresentada ampla jurisprudência, especialmente do supremo tribunal
Federal, do superior tribunal de Justiça e do tribunal de Contas da união. Apenas
para mencionar um exemplo, no capítulo que trata das licitações, são apresentadas
aproximadamente 200 notas de rodapé, sendo praticamente todas elas referentes a
decisões proferidas pelos mencionados tribunais. A ampla pesquisa de jurisprudência,
que constitui um dos traços mais marcantes do presente trabalho, permite que o leitor
tenha acesso à mais recente e mais importante jurisprudência nacional pertinente ao
direito Administrativo.
26
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
não se tem, é evidente, a pretensão de reformular por completo a teoria do direito
Administrativo brasileiro. Propõe o autor, no entanto, o reconhecimento da teoria
Geral do direito Administrativo, cujas normas, de estatura constitucional e fortemente
influenciadas pelos direitos fundamentais, servem de parâmetro para todo o sistema
administrativo brasileiro.
Algumas teses defendidas pelo autor não se harmonizam com a doutrina majoritária brasileira. Isto se verifica, por exemplo, em relação ao princípio da legalidade e
à necessidade de esgotamento da instância administrativa como requisito ao exercício
dos mecanismos do controle judicial da Administração Pública. em relação a essas
divergências, o autor, que não tem a pretensão de ter a palavra definitiva para essas
controvérsias, defende seus pontos de vista e expõe sua crítica ao pensamento dominante, mas apresenta as teses contrárias, seus fundamentos e as decisões judiciais que
servem de amparo aos diferentes pontos de vista. Abre-se, assim, ao leitor a oportunidade de conhecer todas as correntes existentes sobre os diferentes temas do direito
Administrativo.
PArte i
reGime JurídiCo AdministrAtivo e
orGAniZAção AdministrAtivA
CAPítuLo 1
estAdo e teoriA GerAL
do direito AdministrAtivo
1.1 do estado Liberal ao estado social e cooperativo
1.1.1 Formação do estado
Formas rudimentares de administração podiam ser encontradas em organizações
sociais primitivas. o chefe da tribo já realizava funções de administrador, cumulativamente com as de juiz e de legislador. os julgamentos e as regras de comportamento
social emanadas desses governantes eram, todavia, tão dispersas e fragmentárias que
não permitiam o seu enquadramento como função de Estado, qualificação que não podia
ser igualmente conferida ao grupo social. A rigor, o que cabia aos líderes de referidas
organizações sociais era a administração de interesses pessoais — normalmente os do
próprio governante —, e eventualmente da coletividade. de fato, algumas atividades —
especialmente aquelas voltadas para a guerra — constituíram as primeiras manifestações
organizadas das sociedades primitivas, que não bastavam, todavia, para configurar a
existência do estado.
o que torna a existência desta entidade inequívoca, que constitui a sua essência,
não é o exercício de atividades sociais de conteúdo administrativo. o que caracteriza o
estado é a sua organização: o estado apresenta como traço essencial da sua existência
a capacidade de atender a determinados fins por meio de unidades administrativas
organizadas e dotadas de competência para o exercício dessas atividades. A existência
do estado pode ser mensurada, portanto, não pela sua função ou pelo exercício de
atividades executivas, legislativas ou judiciais, mas pela forma organizada com que
exerce essas mesmas atividades.
durante o longo período que se inicia nos séculos Xi e Xii, as forças políticas
existentes na sociedade europeia eram organizadas em função de um objetivo básico:
a guerra. os chefes políticos pouco interferiam na vida das pessoas. esse papel cabia à
igreja. A importância desempenhada pela igreja durante a idade média foi tão marcante
para a definição do Estado que seus efeitos atravessariam o período correspondente às
monarquias absolutistas e iria explicar por que diversos países, como França, espanha
e Portugal, seguiram o modelo adotado pela igreja romana e se organizaram de forma
30
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
tão centralizada. deste longo período, a maior herança, que tem sobrevivido até os dias
atuais em diversos estados, é a tendência à centralização. Ao ser adotado o modelo
eclesiástico, em que todo o poder provinha de roma, o estado central é visto como
única fonte de poder e de direito.
o estado moderno, conforme atualmente o conhecemos, formou-se a partir dos
ideais defendidos pelas revoluções liberais ocorridas nos séculos XVIII e XIX. A fim de
que se possa entender esse novo organismo — o estado —, que se mostrará, mais do
que qualquer outro fenômeno jurídico, político ou social, fundamental para a definição do destino de todos os povos, é necessário retroceder um pouco mais e verificar a
realidade existente na europa ao longo da Idade Média.
A importância do modelo de organização adotado pela Igreja Romana na definição
de diversos estados, e dos seus respectivos regimes jurídicos, pode ser demonstrada
quando se compara o modelo de estado e de sociedade adotado na europa continental
com aquele surgido nos estados unidos da América.
Em função da pouca influência exercida pela Igreja Romana na definição do
modelo de organização da sociedade e do estado norte-americano, evidencia-se a
importância dada ao indivíduo em detrimento do estado. o modelo de sociedade
surgido nos estados unidos confere primazia absoluta ao indivíduo. As necessidades
básicas de cada membro da sociedade, relativas ao emprego, à segurança, à saúde, à
seguridade social etc. devem ser satisfeitas ou buscadas pelos próprios indivíduos,
cabendo ao estado papel secundário na satisfação desses interesses.
de acordo com o modelo centralista de estado adotado na europa continental — e
seguido pelos países latino-americanos —, ao contrário, a satisfação das necessidades
da sociedade deve ser promovida pelo estado.
Pode ser demonstrada a diferença entre os dois modelos — norte-americano e
europeu continental — quando se compara o sistema de aposentadoria adotado nos
estados unidos, de capitalização, em que o trabalhador deve fazer sua poupança a
fim de garantir seu sustento para a futura inatividade, com o regime de aposentadoria
europeu e latino-americano, em que o estado tem o dever de criar mecanismos jurídicos que assegurem aos trabalhadores o pagamento de seus proventos. A questão da
segurança do cidadão também se presta para demonstrar as diferenças entre os sistemas: nos estados unidos cada cidadão tem direito constitucional de portar sua arma
de modo a garantir sua segurança; nos países de tradição romanística, a segurança de
cada cidadão é dever do estado — ainda que nem sempre cumprido —, sendo, em
muitos casos, vedado ao cidadão o porte de arma.
Para a formação do estado moderno é inequívoca a importância desempenhada
pelas revoluções liberais.
A revolução Francesa e a independência norte-americana promoveram profundas modificações nas relações entre o Estado e o cidadão. O centro do poder e de
todas as decisões políticas era o estado. todos os direitos eram exercidos pelo estado,
para o estado e em nome do estado. nos regimes absolutistas o estado não era concebido como instrumento ou meio para a satisfação de interesses dos cidadãos, mas
como a única e legítima fonte de poder. nesse ponto, ainda que a herança centralista
de diversos Estados seja evidente, verifica-se a primeira aproximação entre o modelo
norte-americano e o europeu.
os movimentos liberais, em especial a revolução Francesa, promoveram verdadeira inversão nos papéis até então desempenhados por esses atores: os cidadãos passam
CAPítuLo 1
estAdo e teoriA GerAL do direito AdministrAtivo
a ser o centro do poder e os titulares de todos os direitos, e o estado passa a constituir o
instrumento para regular o exercício dos direitos individuais. de acordo com este novo
modelo, o Estado justifica sua existência como meio para harmonizar, definir limites
ou, em última instância, para permitir o exercício dos direitos dos cidadãos. A adoção
desse modelo constituiu o primeiro passo para o surgimento do Estado de Direito.
são dois os pressupostos do estado de direito: 1) existência de um ordenamento
jurídico que defina as unidades estatais competentes para o exercício das diferentes
atividades conferidas ao estado; e 2) a criação de mecanismos que permitam aos particulares acionarem o estado de modo a exigir o cumprimento do ordenamento jurídico,
ainda que essa exigência tenha como destinatário o próprio estado — fenômeno que
resultará no desenvolvimento do sistema de controle judicial da Administração Pública.
A estrita observância do princípio da legalidade passa a ser a principal característica
do estado de direito. Apresentada a questão nesses termos, percebe-se a estreita relação
entre o desenvolvimento do direito Administrativo e a existência do estado de direito,
não sendo possível admitir a existência de um sem a do outro.
1.1.2 estado social e cooperativo
A mais importante contribuição dada pelo século XX à nova concepção de estado
se relaciona certamente à necessidade de conformação dos textos constitucionais aos
direitos fundamentais.
Com a incorporação dos direitos fundamentais ao ordenamento jurídico, a
organização e as funções do estado moderno não mais se resumem ao cumprimento
de um ordenamento jurídico desprovido de valor ou de conteúdo. A formatação do
novo Estado continua a ser definida pelo Direito, em estrita observância ao princípio
da legalidade. todavia, o ordenamento jurídico, ao estruturar o estado, passa a ter nos
direitos fundamentais não somente a sua fundamentação, mas também a sua própria
razão de existir.
o ordenamento jurídico disciplinador do estado moderno, que deve agora não
apenas ser de direito, mas também democrático, passa a definir as funções e os limites
do estado, bem como a organizar a sua estrutura, tendo em vista não apenas a realização
e a harmonização dos direitos individuais, mas também a realização da dignidade da
pessoa humana e da segurança jurídica.
A partir, sobretudo do fim da Segunda Grande Guerra, o Estado passou a ser
chamado a intervir de forma mais efetiva na sociedade e na economia. Com o surgimento
do Estado Democrático e Social, que passou a desempenhar tarefas de empresário, de
investidor e de prestador de serviços públicos, verificou-se o início do agigantamento
estatal e uma de suas consequências foi a criação de empresas estatais incumbidas de
desempenhar diversas atividades, inclusive aquelas que no modelo anterior haviam
sido atribuídas a empresas privadas concessionárias de serviços públicos.
No final da década de 1970 e, no Brasil, especialmente a partir do início da
década de 1980, o resultado do processo verificado nos anos anteriores foi o imenso
endividamento público e o agigantamento do estado, cuja intervenção se fazia sentir
em todos os setores da sociedade e da economia. o resultado foi o surgimento de um
Estado grande, caro, ineficiente e fraco.
A crise do estado se tornou evidente durante a década de 1980 e demonstrou a
incapacidade dos mecanismos do estado social de atender as demandas da população.
31
32
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
sem que pudessem ser abandonados os ideais do estado democrático e social,
novos mecanismos de intervenção estatal tiveram que ser desenvolvidos. A sociedade,
diante deste processo — que se tornou conhecido como choque de eficiência —, passou
a exigir respostas rápidas e eficientes do Estado.
O fim do século XX mostrou a necessidade de nova evolução na concepção do
estado. o processo de globalização, os avanços tecnológicos, em especial na área das
comunicações em massa, e a velocidade com que passaram surgir novas relações jurídicas ou situações nunca antes apresentadas ao estado obrigaram-no, mais uma vez,
a redefinir sua atuação.
diante do atual contexto social e econômico, a atuação do estado não mais se
restringe à prestação direta de serviços à população. o estado atua igualmente como
agente incentivador ou parceiro de entidades privadas que se dedicam ao desempenho
de serviços de interesse da população. É imperioso, portanto, reconhecer a necessidade
de adaptar o sistema jurídico vigente a essa nova realidade, definindo de forma mais
adequada o papel dos diversos entes públicos e a forma como se relacionam com o setor
privado. Esta solução certamente é mais adequada do que a simples desqualificação
do estado como instrumento realizador dos direitos fundamentais — tese que vigorou
ao longo da década de 1990.
independentemente da concepção política acerca do papel do estado, ou dos
seus limites para a sua atuação, em qualquer sociedade que tenha por objetivo maior
a realização da dignidade humana deve-se reconhecer a incapacidade tanto do setor
público quando do setor privado, empresarial ou não, de resolverem, isoladamente, as
questões básicas relacionadas à realização dos direitos fundamentais.
A visão tradicional do direito Administrativo, que reconheceu a supremacia do
estado em relação aos particulares, nos dias atuais, ainda que necessária em alguns
setores — em que a edição de regulamentos gerais ou a prática de atos administrativos
ainda se mostram necessárias —, é totalmente inadequada para responder a demandas
de inúmeras outras situações em que o poder público é chamado a agir como parceiro
do setor privado.
inconcebível aceitar o bom funcionamento de setores submetidos ao regime jurídico
das concessões ou das permissões de serviço público, bem como das organizações não
governamentais (onGs) diante da visão unilateral do estado. A delegação de serviços
públicos, tais como os de telefonia, de energia elétrica, de transporte, de manutenção e
conservação de estradas, e o incremento na atuação das entidades do terceiro setor, que
muitas vezes buscam no estado os recursos necessários ao desempenho das atividades
de interesse social, criam relações jurídicas múltiplas entre os diversos personagens
do processo (estado, concessionárias, usuários, onGs, órgãos de controle, mercado)
e impedem que soluções unilaterais, ou de império, impostas pelo estado realizem os
interesses envolvidos, sejam eles públicos ou dos particulares.
surge a necessidade de que o estado moderno assuma nova posição, que se
poderia chamar de cooperativa.
o Estado cooperativo deve dispor de instrumentos que o permitam agir de forma
harmoniosa e negocial com os particulares. deve igualmente dispor de instrumentos
que assegurem a sua posição de império, cabendo ao ordenamento jurídico indicar esses
instrumentos e as diferentes situações em que cada um deles se mostre mais adequado
à realização dos direitos fundamentais.
CAPítuLo 1
estAdo e teoriA GerAL do direito AdministrAtivo
o moderno direito Administrativo deve ser construído de modo a compreender
a realidade atual, dotando o estado cooperativo de instrumentos que o tornem capaz
de atender às crescentes e novas demandas da sociedade.
1.2 integração de países e o direito Administrativo no século XXi
os processos de integração econômica e política iniciados nas últimas décadas do
século XX, dos quais a criação da união europeia é o mais importante, têm provocado
grande impacto nos regimes jurídicos administrativos dos países envolvidos.
A criação de entidades supranacionais importa, dentre outros relevantes aspectos,
na renúncia de parcela da soberania dos diversos Estados e na redefinição dos mecanismos internos de distribuição de competência administrativa, além de impor a necessidade
de adequação dos seus regimes internos aos padrões definidos no plano supranacional.
As diretrizes fixadas pela União Europeia indicam como os ordenamentos jurídicos nacionais são influenciados e, sob pena de exclusão da União, estão obrigados a
se adaptar aos parâmetros supranacionais. temas relacionados ao direito Ambiental,
ao combate à corrupção, à obrigação da adoção de mecanismos que protejam e assegurem a realização dos direitos fundamentais e dos princípios democráticos, à fixação de
padrões éticos de comportamento para administradores públicos e para os particulares
que se relacionam com o poder público — chamadas em alguns países de normas de
bom governo —, e à definição de regras básicas em matéria de licitação e de contratação
pública são apenas alguns exemplos de áreas afetadas pelos processos de integração
nacionais.
evidencia-se a importância marcante dos processos de integração política,
econômica e cultural, em âmbito regional e mundial, em diversas áreas do direito, e,
nesses processos, talvez mais do que em qualquer outro ramo, o direito Administrativo
é fortemente impactado.
A forte influência — cultural, jurídica, econômica, tecnológica —, historicamente
exercida pela Europa, provocará significativos impactos nos ordenamentos jurídicos
de diversos países, ainda que não integrem a união europeia.
Convém aos operadores do direito Administrativo nacionais manterem os olhos
atentos ao processo de integração europeu — hoje o maior laboratório jurídico do planeta. o objetivo, é evidente, não deve ser a cópia das soluções ali apresentadas, mas
o reconhecimento de que o novo modelo de administração pública que ali vem sendo
implantado pode interessar ao Brasil.
1.3 modelo de estado adotado pela Constituição Federal de 1988:
estado subsidiário e cooperativo
O reconhecimento da autonomia científica do Direito Administrativo, assim
como a dos demais ramos do direito Público, sobretudo a do direito Constitucional,
somente ocorreu com a necessidade de estruturação do estado de direito, fruto das
revoluções liberais, surgido a partir dos ideais da revolução Francesa, criado e moldado
pelo princípio da legalidade e pela teoria da separação dos poderes.
A definição das três funções básicas do Estado — legislativa, judicial e administrativa, ou executiva — é o principal traço definidor do Estado moderno. Busca-se nesta
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
divisão de funções e na criação de mecanismos de controle recíprocos — checks and
balances — o caminho para o estado realizar o bem comum e os princípios democráticos.
Cabe à Constituição o papel de definir a atuação de cada uma das funções estatais
e como devem ser exercidos os mecanismos de controle.
no modelo da separação das funções do estado, a lei aprovada pelo Poder Legislativo constitui o principal mecanismo de controle da função administrativa estatal.
Aos administradores públicos é dado fazer tão somente o que o legislador determinar
ou autorizar. A competência dos diversos agentes, órgãos ou entidades que integram a
função administrativa é limitada pela lei, que se deve conformar com todos os princípios
e preceitos constitucionais, expressos ou não.
Ao se comparar o regime jurídico público dos dias atuais com aquele adotado
nas monarquias absolutistas, percebe-se a inversão da função do estado — em especial no
que concerne à sua função de administrar — em face dos setores privados. Ao estado
absolutista reconheciam-se todas as prerrogativas. Fonte única de todo o poder político,
o limite para a atuação estatal era definido tão somente pela vontade do monarca, e, no
relacionamento dos particulares com o estado, eram reconhecidos apenas os direitos que
este último entendesse legítimos. Neste contexto, inconcebível identificar a existência
do direito Administrativo.
nos dias atuais, ao contrário, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente”, conforme dispõe a Constituição Federal (art. 1º,
parágrafo único). Partindo-se dessa premissa, a relação jurídica Cidadão-estado tem
como objetivos a proteção e a preservação dos direitos e interesses do primeiro (o cidadão), e não o simples exercício de prerrogativas por parte do segundo (o estado). Cabe
ao ordenamento jurídico administrativo, desse modo, definir em que parâmetros se deve
desenvolver esse relacionamento de modo a melhor realizar os direitos fundamentais.
na conformação do moderno direito Administrativo, o limite e o fundamento
para toda ação ou abstenção estatal deve ser a realização dos direitos fundamentais, que
passam a constituir o verdadeiro interesse público primário.
o Estado brasileiro, conforme o modelo definido pela Constituição Federal, é
democrático, de direito, cooperativo e social.
É democrático, em primeiro lugar, porque nascido da vontade do povo; de direito,
porque se submete ao ordenamento jurídico previamente estabelecido, conforme definido
na Constituição; cooperativo, porque, em inúmeras situações, necessita da participação
de segmentos do setor privado para desempenhar suas atribuições; e social porque
atua de modo a realizar o bem comum, visando à satisfação dos direitos relacionados à
dignidade da pessoa humana — saúde, educação, cultura, segurança etc.
Diante desse novo Estado, torna-se necessário redefinir os termos em que se
desenvolvem as relações jurídicas entre ele e os particulares.
Diante do modelo estatal definido pelos princípios constitucionais, os responsáveis pela formulação das políticas públicas devem reconhecer o caráter complementar
da atuação estatal e que os princípios da reserva da lei e da livre iniciativa — este
último elevado pela Constituição Federal (art. 1º, iv) à categoria de fundamento do
estado democrático de direito — conferem primazia às atividades privadas desenvolvidas pelos próprios indivíduos na busca pela realização das necessidades materiais
da população.
no cumprimento da função administrativa, o estado deve, em primeiro lugar,
identificar os segmentos ou campos de atuação em que os setores privados não são
CAPítuLo 1
estAdo e teoriA GerAL do direito AdministrAtivo
capazes de satisfazer as necessidades materiais dos particulares. Identificados esses
setores, devem ser desenvolvidos mecanismos de cooperação com os particulares — e
aqui desempenham papel fundamental as entidades do terceiro setor. desenvolve-se,
assim, a ideia de Estado definida pela Constituição, que deve pautar-se pela cooperação
e pela subsidiariedade.
A velocidade do mundo moderno faz com que surjam e se desenvolvam novas
relações jurídicas e novas demandas por parte da população — a necessidade de acesso
à internet pode ser apresentada como exemplo de demanda social surgida há relativamente pouco tempo. nesse processo, surgem as seguintes questões: na repartição
de tarefas entre o estado e o setor privado, a quem cabe atender as novas demandas
sociais? o princípio da reserva da lei constitui carta-branca para que o estado, desde
que se utilize de lei, possa promover todo e qualquer tipo de interferência na sociedade?
As regras básicas acerca do papel do estado e dos limites de sua atuação devem
ser buscadas na Constituição Federal.
No Brasil, o texto constitucional de 1988, em seu art. 1º, afirma que a República
Federativa do Brasil se constitui em estado democrático de direito e tem como fundamentos:
i - a soberania;
ii - a cidadania;
iii - a dignidade da pessoa humana;
iv - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
v - o pluralismo político.
dos fundamentos acima indicados, a cidadania, a dignidade da pessoa humana
e a livre iniciativa são particularmente importantes para a definição das funções administrativas do estado e dos limites da relação estado-sociedade.
esses fundamentos reconhecem a capacidade de auto-organização da sociedade,
conferem à própria sociedade a primazia na busca das soluções para as suas demandas
materiais e jurídicas e tornam a interferência estatal subsidiária em relação à atuação
dos agentes privados.
em função desse caráter suplementar da atuação estatal, decorrente, sobretudo,
da adoção pela Constituição Federal do modelo da livre iniciativa, a atuação estatal
direta na área social — com vista ao atendimento de novas e de antigas demandas
sociais (acesso à internet, proteção de consumidores, assistência a pessoas idosas ou
portadoras de deficiências, treinamento e aperfeiçoamento de trabalhadores, acompanhamento de gestantes etc.) — deve ocorrer somente quando não houver parceiros
privados interessados em desenvolver atividades tendentes à realização desses interesses. A atuação do estado social é subsidiária, porque se a própria sociedade for capaz
de obter satisfação para suas necessidades, por seus próprios meios, não se justifica a
atuação ou a intervenção pública direta.
A intervenção direta do estado deve ser reclamada somente quando: 1) a sociedade não for capaz de atender, por seus próprios meios, essas novas demandas sociais;
e 2) não houver na sociedade interessados em desenvolver parcerias com o estado que
permitam o atendimento dessas necessidades.
É importante observar que na eventualidade de a sociedade não ser capaz de
atender às demandas sociais da população — principalmente no que se refere às parcelas mais carentes da população —, ou de não haver na sociedade interessados em
desenvolver mecanismos de cooperação com o estado, este tem o dever de agir.
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Curso de direito AdministrAtivo
A atuação do Estado deve voltar-se, portanto, em primeiro lugar, para a identificação
das demandas sociais. em segundo lugar, para a avaliação da capacidade da própria
sociedade de satisfazer suas carências. Caso seja demonstrada a incapacidade da sociedade de, por seus próprios meios, promover o atendimento das suas necessidades, deve
o estado procurar cooperar, incentivar ou mediar com os agentes privados interessados
na satisfação das necessidades da população. somente quando não houver interesse por
parte dos agentes privados (empresas ou terceiro setor) de atuar em determinado segmento
social, deve o estado ser chamado a agir e, nesta hipótese, está ele obrigado a agir. diante
da impossibilidade de autorregulação da sociedade, o estado está obrigado, em face da
própria concepção de que ele é democrático e de direito, a desenvolver mecanismos
legais ou regulamentares que permitam e legitimem a sua atuação, bem como fixem
limites para esta atuação.
o caráter subsidiário da atuação estatal deve mostrar-se presente não apenas no
exercício da sua função administrativa, mas também na função legislativa. tomemos
a seguinte situação: diante do diagnóstico de que o feto sofre de anencefalia, o que
resulta em nenhuma expectativa de vida fora do útero materno, pode a gestante optar
por manter o feto tão somente com vista à doação dos seus órgãos? não nos interessa,
aqui, a resposta a esta pergunta. interessa-nos saber onde deve a sociedade, ou o Poder
Judiciário, caso seja chamado a intervir, buscar a solução jurídica para tal problema.
o estado moderno não pode querer apresentar soluções prévias para todas as
possíveis dúvidas ou demandas existentes — ou ainda por surgir — por meio de lei.
o excesso legislativo e a perda de abstração ou de generalidade das leis — apontadas
como as principais causas da crise do Direito — apenas contribuem para a ineficiência
e baixa racionalidade da sociedade moderna, que reclama respostas rápidas, respostas
que as leis nem sempre são capazes de dar. deve-se igualmente reservar à capacidade de
autorregulação da própria sociedade a primazia na apresentação das soluções jurídicas.
1.4 teoria Geral do direito Administrativo
A vinculação da Administração Pública aos direitos fundamentais e aos princípios
da legalidade e da tutela judicial torna inexorável a aproximação entre o direito Administrativo e o direito Constitucional. o núcleo do direito Administrativo é composto
por normas de estatura constitucional que definem o exercício da atividade administrativa do estado. Assim, dentre outros importantes aspectos, integram o direito
Administrativo as normas constitucionais pertinentes à organização administrativa
do estado, aos princípios gerais da Administração Pública, aos principais mecanismos
de intervenção do estado na economia e na propriedade privada, às normas gerais
pertinentes às licitações e aos contratos celebrados pelo poder público e aos servidores
públicos, apenas para citar alguns exemplos.
este fenômeno cria extensa zona de interface entre o direito Administrativo e o
Direito Constitucional e torna descabidas as tentativas de definir limites estritos entre
esses dois ramos do direito Público.
A aproximação do direito Constitucional não põe em risco a autonomia do direito
Administrativo. É este que permite a aplicação das normas constitucionais voltadas para a
consecução da função administrativa do estado. neste sentido, pode-se enxergar a teoria
Geral do direito Administrativo como o direito Constitucional aplicado ou concretizado.
CAPítuLo 1
estAdo e teoriA GerAL do direito AdministrAtivo
A teoria Geral do direito Administrativo, de estatura constitucional, serve de
parâmetro para a elaboração de respostas para importantes questionamentos acerca
dos limites para a intervenção do estado na sociedade. nesse sentido, qual a razão de
ser regulamentado o exercício de determinada profissão, por exemplo? Está o Estado
legitimado, por meio de lei, a promover qualquer intervenção na esfera privada dos
cidadãos? A regra contida no art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal, que
assegura “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente
de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”, permite ao estado
promover, desde que observe a exigência de lei, qualquer intervenção no exercício de
atividades econômicas?
deve-se examinar, inicialmente, a necessidade de que qualquer intervenção estatal
na esfera das liberdades individuais seja justificada em função de sua essencialidade,
no sentido de que qualquer restrição de direito ou de liberdade individual deve ser
justificada em função da realização de valor jurídico maior. Desse modo, qualquer
intervenção estatal no âmbito de liberdade dos particulares necessita de justificação
em função da própria realização dos direitos fundamentais.
A intervenção do Estado na regulação de profissões na área da saúde, por exemplo, justifica-se em função da natureza essencial dos serviços prestados. Em outras
palavras, há benefícios evidentes para a coletividade quando o exercício dessa atividade
privada é objeto de intervenção pública e de regulação pelo estado.
sob o mesmo pretexto, poderia ser considerada legítima a intervenção estatal
na regulação das atividades dos profissionais da imprensa? Como justificar essa intervenção sob a ótica dos direitos fundamentais, sobretudo quando outros valores, como
a liberdade de imprensa e de expressão, sofrerão restrições?
toda atuação do estado, sobretudo quando interfere e restringe a liberdade dos
particulares (a regulamentação de atividades profissionais pode ser mencionada como
exemplo desse tipo de intervenção pública), somente se justifica se ampliar, a partir de
um juízo de ponderação, o âmbito e o alcance dos direitos fundamentais. ou seja, toda
restrição de direitos ou de liberdades imposta pelo Estado à sociedade deve ser justificada e compensada — no sentido de que a restrição de determinados direitos permite
a realização de outros, ainda que de natureza diversa, que gerem benefícios sociais e
que compensem as restrições impostas pelo poder público.
reconhecer que os direitos fundamentais integram e impregnam a teoria Geral
do direito Administrativo importa, efetivamente, na imposição de limites a esse tipo
de intervenção estatal, que deve ser justificada do ponto de vista da sua necessidade e
da sua intensidade (ou razoabilidade).
Deve-se verificar os eventuais benefícios para a sociedade com a intervenção do
estado que importe em restrição de direitos, ou em que medida a imposição de sacrifícios
às liberdades e aos direitos individuais encontra respostas claras no ordenamento jurídico
— afinal, o Estado existe para realizar direitos dos cidadãos, e não para restringi-los.
Para a proteção dos particulares contra os excessos do estado, no exercício do
poder de regulação das atividades privadas, a teoria Geral do direito Administrativo
deve assegurar mecanismos de defesa contra a atuação estatal abusiva.
É evidente que nem toda intervenção estatal importa em restrição de direitos
individuais ou limita o exercício de direitos fundamentais. em inúmeros setores da
atuação estatal, principalmente na área social, em áreas sensíveis como saúde, educação,
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Curso de direito AdministrAtivo
cultura ou preservação do meio ambiente, a crítica é feita à omissão do estado, e não
ao excesso de intervenção pública.
A compreensão da existência da teoria Geral do direito Administrativo é de fundamental importância não apenas porque define os limites para a intervenção do Estado
na esfera privada, mas igualmente porque impõe ao estado o dever de agir de modo a
corrigir a falta ou a omissão na prestação de serviços à população.
A construção do novo Direito Administrativo pressupõe a identificação do núcleo
desse ramo do direito Público, que cuida dos princípios gerais da Administração Pública,
da organização administrativa, do processo administrativo, dos atos e poderes administrativos e das atividades administrativas. desse núcleo jurídico de estatura constitucional,
surge a teoria Geral do direito Administrativo.
A identificação da Teoria Geral do Direito Administrativo, de estatura constitucional, importa em que os mecanismos de atuação dos outros ramos do direito Público
surgidos do direito Administrativo — como os direitos Ambiental, econômico e tributário, por exemplo — devam igualmente buscar perfeita adequação com o sistema.
Beneficia-se da existência do sistema de Direito Administrativo não apenas a
Administração Pública, que passa a dispor de regras uniformes de atuação, o que lhe
confere maior eficiência e racionalidade, mas principalmente o cidadão que encontrará
na teoria Geral do direito Administrativo o principal parâmetro para a sua segurança
jurídica.
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e
direito AdministrAtivo
2.1 Funções estatais
o primeiro aspecto a ser examinado na divisão das funções do estado diz respeito ao fato de que, em muitas situações, a definição da competência para a prática
de determinado ato, no sentido de saber se ele deve ser praticado por órgão legislativo,
judiciário ou executivo, passa por mero acaso ou vontade do direito Positivo.
o instituto da adoção pode ser utilizado como exemplo dessa disponibilidade
de vontade ou casuísmo do legislador. teoricamente, a competência para a prática do
ato por meio do qual é formalizada a adoção poderia ter sido atribuída indistintamente
a órgão executivo ou judicial, ou mesmo poderia ter sido dispensado qualquer formalismo, hipótese em que poderia ter sido reconhecida como válida a adoção por mera
disposição dos interessados. o Código Civil de 2002, em seu art. 1.623, determina que
a adoção obedecerá a processo judicial e, na eventualidade de o adotado ser maior de
18 anos, dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva. vê-se
que a não aplicação das regras do direito Administrativo a referido ato não decorre da
sua natureza, mas da vontade do legislador.
2.1.1 Ato administrativo em sentido amplo
A primeira dificuldade a ser enfrentada na busca pela definição dos atos a serem
regidos pelo direito Administrativo é de natureza terminológica. Historicamente, o
ato administrativo tem sido apresentado como a manifestação unilateral de vontade
produzida pela Administração Pública tendente à produção de efeitos jurídicos, independentemente da concordância ou anuência do administrado.
A importância conferida às manifestações unilaterais de vontade da Administração Pública pode ser atribuída a razões históricas haja vista ser esta a forma histórica
mais comum de o estado exercer suas funções administrativas.
As atividades materiais do estado podem ser divididas, conforme examinaremos
adiante (capítulos 10, 11 e 12) em três grandes grupos: ordenadora de atividades privadas, prestacional e de fomento. se na ordenação do exercício das atividades privadas a
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Curso de direito AdministrAtivo
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forma básica do estado agir continua a ser por meio de atos unilaterais (autorizações,
licenças etc.), o mesmo não ocorre no desempenho das outras atividades. na prestação
de serviços públicos, a teoria dos atos administrativos, conforme historicamente apresentada, é quase de nenhuma utilidade. Como aplicar a visão de que o estado atua por
meio de atos unilaterais às concessões de serviço público, por exemplo? em relação às
atividades estatais de fomento, o conceito histórico de ato administrativo é de serventia
ainda menor. essa forma de atuação do estado depende sempre do consentimento dos
administrados destinatários dessas atividades.
Faz-se necessário rever o conceito histórico do ato administrativo de modo a
incluir em seu âmbito essas outras formas de atuação do estado, que tanto em função
do volume de atos praticados, como do enquadramento jurídico, não são mais respondidas pela teoria clássica do ato administrativo.
no presente capítulo, utilizaremos a expressão ato administrativo para designar
toda e qualquer manifestação, unilateral ou não, do estado no exercício da sua função
executiva (ou administrativa). não nos preocuparemos, ao menos por enquanto, com
aspectos conceituais do ato administrativo — tarefa a ser enfrentada no Capítulo 5, destinado especificamente ao estudo da teoria do ato administrativo. No presente capítulo,
o ato administrativo será apenas descrito, e nesta tarefa ele será apresentado em sentido
amplo, compreendendo toda e qualquer forma de agir da Administração Pública. esta
abordagem nos permite utilizar o termo ato administrativo para indicar o exercício de
todas as atividades da Administração Pública (ordenadora, prestacional e de fomento),
incluindo, por exemplo, convênios ou contratos celebrados pelo poder público.
2.1.2 Jurisdição e administração
exame mais detalhado, e desprovido de preconceitos, quanto ao exercício das
atividades administrativas ou judiciais, leva à conclusão de que jurisdição e administração não são atividades de naturezas tão distintas.
Acerca da jurisdição, J. J. Gomes Canotilho a ela se refere como “actos públicos
concretamente aplicativos do direito”.1 entendida nesse sentido, como a aplicação do
Direito a situações concretas por meio de instrumentos estatais impositivos, verifica-se
que tanto a Administração quanto o Judiciário se utilizam da jurisdição no desempenho das suas funções, que o fazem por meio de processos que observam os princípios
constitucionais básicos do contraditório, da ampla defesa, da motivação, dentre outros,
e que, tanto no exercício da função administrativa quanto judicial, o estado está autorizado pelo direito a se utilizar do exercício do poder de polícia para dar executoriedade
à decisão proferida.
É certo que o processo administrativo e o judicial não se confundem. A possibilidade de a Administração Pública agir de ofício — na instauração, na condução e na
revisão de processos — constitui particularidade normalmente estranha ao processo
judicial — ainda que em algumas oportunidades verificadas no processo penal a atuação
de ofício do juiz não seja estranha.
não há como negar que decisões proferidas em determinados processos administrativos, como aqueles conduzidos no âmbito do tribunal de Contas da união (tCu)
1
CAnotiLHo. Direito constitucional, p. 1000.
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
ou do Conselho Administrativo de defesa econômica (CAde), por exemplo, possuem
tal grau de similaridade com as decisões proferidas pelos juízes que levaram o min.
sepúlveda Pertence a referir-se ao processo do tCu como de colorido quase jurisdicional
(ms nº 23.550-dF).
A rigor, o tCu, que não integra o Poder Judiciário, não conduz processo quase
jurisdicional. ele exerce jurisdição. É a própria Constituição Federal que dispõe nesse
sentido (CF, art. 73, caput: “o tribunal de Contas da união (...) tem sede no distrito
Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional”).2
Ao proferir suas decisões, o tCu o faz no âmbito da sua jurisdição. vale-se, todavia, de normas de direito Constitucional e Administrativo. o CPC somente é aplicado
subsidiariamente nos processos do tCu, conforme se depreende do art. 172, parágrafo
único, do ri/tCu e da súmula nº 103 (“na falta de normas legais regimentais específicas, aplicam-se, analógica e subsidiariamente, no que couber, a juízo do Tribunal de
Contas da união, as disposições do Código de Processo Civil”).
A restrição do exercício da jurisdição aos órgãos judiciais decorre mais de razões
históricas e dogmáticas, que viam nos juízes os únicos operadores do direito, do que
de tese jurídica fundamentada e estruturada. tradicionalmente, dizia-se que o administrador atua nos limites da lei para realizar interesse público, ao passo que o papel
precípuo do juiz seria o de aplicar o direito ao caso concreto. não há necessidade de
exame muito aprofundado para se perceber que essas afirmações não se sustentam.
Acaso ao juiz é dado — em seu processo de aplicação do direito — agir fora deste, além
dos limites da norma jurídica em exame? ou, ao contrário, no processo conduzido pelo
juiz de aplicação do direito, pode ele ferir o interesse público? em relação ao administrador, ao contrário, há como defender que ele adota soluções para casos concretos
sem aplicar o direito? tanto o juiz quanto o administrador público atuam nos limites
do direito e com vista à realização do interesse público.
não se busca equiparar a decisão judicial àquela proferida em processo administrativo. A distinção entre essas decisões não reside, todavia, na natureza dos atos — no
sentido de que uma é ato de aplicação do direito e a outra é ato de execução do direito.
As diferenças entre uma decisão e outra decorrem do tratamento conferido pelo direito
Positivo a uma e a outra.
2
sobre o exercício da atuação do tCu, vale transcrever parte do voto proferido pelo min. sepúlveda Pertence no
julgamento do Pet nº 3.606-Agr/dF (Informativo STF, n. 441):
“vale recordar a lição do saudoso victor nunes Leal sobre o papel do tribunal de Contas da união e a sua
relação com a Administração Pública: “(...) Cumpre notar, porém, que a doutrina mais segura, baseando-se na
natureza de sua principal atribuição, não o considera integrante do aparelhamento administrativo em sentido
estrito: coloca-o acima da administração propriamente dita, pela ação fiscalizadora que sobre ela exerce. (...) Nas
palavras de Francisco Campos, ‘(...) as funções de controle exercidas pelo tribunal de Contas, ele, as exerce em
nome, por autoridade e com a sanção do Parlamento. são, conseguintemente, pela sua natureza e seus efeitos,
funções congressionais ou parlamentares. não é o seu controle um controle administrativo, mas constitucional’.
‘o que torna ainda mais manifesta — escreve Guimarães menegale — a natureza parlamentar ou congressional
das funções do tribunal de Contas é o fato de que a lei o coloca em relação direta com o Congresso, cominando-lhe
a obrigação de a ele referir imediatamente os conflitos ocorridos entre o Tribunal e o Executivo’. O Tribunal de
Contas — diz Castro nunes — ‘não é uma jurisdição administrativa, senão em certo sentido, sem confusão possível, entretanto, com as instâncias administrativas que funcionam como órgãos subordinados do Poder executivo (...)’”. vê-se dos esclarecimentos do preclaro mestre — amparado em pronunciamentos de juristas de escol
— que a atuação do Tribunal de Contas da União no exercício da fiscalização contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial das entidades administrativas não se confunde com aquela atividade fiscalizatória
realizada pelo próprio órgão administrativo, uma vez que esta atribuição decorre do controle interno ínsito a
cada Poder e aquela, do controle externo a cargo do Congresso nacional (art. 70 da Constituição Federal)”.
41
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Curso de direito AdministrAtivo
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em primeiro lugar, deve-se dar destaque à inafastabilidade da atuação judicial
— princípio básico do estado democrático de direito. em nome deste princípio, as decisões administrativas devem sujeitar-se ao devido controle judicial, não sendo possível
arguir-se o instituto da coisa julgada administrativa perante o Poder Judiciário. nesse
sentido, distingue-se a decisão administrativa da judicial na medida em que a primeira
pode ser revista pela própria Administração, por meio do seu poder de autotutela e
pelo Poder Judiciário, ao passo que a decisão judicial somente pode ser revista pelo
próprio Poder Judiciário. em segundo lugar, não obstante ambas as decisões disponham
do poder de polícia para a sua executoriedade, há limites à atuação administrativa. Ao
julgar o mandado de segurança nº 24.182-dF, rel. min. maurício Correia, proposto por
servidor da Câmara dos deputados contra este órgão legislativo, decidiu o stF que,
não obstante demonstrada a responsabilidade do servidor que deu causa ao prejuízo
à Administração Pública, não poderia a Câmara dos deputados, sem o consentimento
do servidor, promover a indenização do prejuízo por meio de processo administrativo
que resultaria em desconto em contracheque, sendo necessária a propositura de ação
judicial. observa-se que a jurisprudência do stF reconhece a existência de limites ao
poder da Administração Pública de dar executoriedade a seus próprios atos. de forma
aparentemente contraditória, o mesmo stF, ao julgar o ms nº 24.544-dF, indeferiu pedido
de impetrante contra ato emanado do tribunal de Contas da união que determinara à
Câmara dos deputados o desconto da dívida na remuneração do responsável, sendo
dispensável a sua manifestação de vontade, haja vista a autorização emanada do tCu
ter decorrido de processo de tomada de contas especial no qual foi observado o direito
de ampla defesa, bem como cumprida a exigência de notificação prévia ao impetrante
do desconto, de acordo com o art. 46 da Lei nº 8.112/90.
Ao considerar legítimo o desconto em folha promovido pela Câmara dos deputados decorrente de processo conduzido pelo tCu, e ilegítimo o mesmo desconto quando
oriundo de processo administrativo conduzido no âmbito da Câmara dos deputados,3
o stF deixa inequívoco o seu entendimento acerca da existência de limites para a atuação administrativa do Estado. Não define precisamente, todavia, esses limites, questão
ainda em aberto em nosso ordenamento jurídico.
A atuação administrativa se distingue da judicial, em terceiro lugar, por força da
impossibilidade de atuação de ofício dos juízes, que dependem de provocação, limitação
não aplicável ao administrador público.4
Argui-se ainda a imparcialidade do Judiciário, assegurada pela relação tripartite
do processo judicial, distintamente do que se verifica no processo administrativo, em
que a Administração Pública atua como parte e como “juiz”, como distinção entre a
atividade administrativa e a judiciária. efetivamente, há juízes que condenam o estado
na vã ilusão ou no afã de condenarem os governantes ou administradores públicos, sem
saber que, ao condenar o estado, condenam, em verdade, toda a população. As unidades
3
4
Prevalece no superior tribunal de Justiça, no entanto, “a corrente segundo a qual, de fato, é possível à Administração Pública efetuar o desconto no contracheque dos servidores de valores indevidamente pagos. tal procedimento encontra-se condicionado à ciência do interessado, oportunizando-lhe a observância dos princípios
da ampla defesa e do contraditório, em prévio procedimento administrativo, ou precedido de autorização do
servidor público” (resp nº 1.239.362/sC, 2ª turma. rel. min. mauro Campbell marques. DJe, 15 abr. 2011).
exceções à impossibilidade da atuação de ofício dos juízes: no âmbito civil (prescrição e decadência) e no penal
(habeas corpus, art. 654, §2º, CPP), em certas circunstâncias.
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
administrativas e judiciais são meros órgãos destinados à execução das funções estatais,
conforme definidas pelo ordenamento jurídico. Tanto o juiz quanto o administrador
devem, no exercício das suas atribuições, aplicar o direito com imparcialidade e por meio
de decisões fundamentadas e passíveis de questionamento. não se pode esperar que as
decisões dos juízes sejam melhores, ou mais justas, simplesmente porque proferidas por
juízes. no exercício da sua atividade de controle da Administração Pública, os juízes
desempenham papel essencial para a realização do princípio do estado democrático
de direito, daí o ordenamento jurídico positivo ter-lhes assegurado as garantias da
inamovibilidade, da vitaliciedade e da irredutibilidade de subsídios (CF, art. 95, caput e
incisos I a III), garantias que não beneficiam os administradores públicos, muitos deles
sujeitos a exonerações de ofício.
A rigor, a maior garantia conferida pelo ordenamento jurídico aos magistrados
não reside naquelas indicadas pelo art. 95 da Constituição Federal, mas na inexistência
de hierarquia imposta aos juízes no exercício da atividade jurisdicional.5
5
Informativo n. 99
Título: Conflito de Competência: Inexistência
Artigo: Inexiste conflito de competência entre o STJ e os Tribunais Regionais Federais, uma vez que este incidente
pressupõe decisões proferidas por órgãos entre os quais não haja hierarquia jurisdicional. Com esse entendimento,
o Tribunal não conheceu de conflito negativo de competência entre o TRF da 1ª Região e o STJ tendo em vista que
as decisões daquele são de competência recursal deste. tratava-se, na espécie, de inquérito instaurado perante o
trF que, entendendo haver elementos que atraíam a competência do stJ para o processamento e julgamento do
feito, remetera os autos ao stJ que, por sua vez, devolvera-os. Precedentes citados: CC 6.996-rs (rtJ 143/543); CC
6.997-Pr (rtJ 143/547); CC 7.002-mG (rtJ 143/550). CC 6.990-dF, rel. min. maurício Corrêa, 12.2.1998.
Informativo n. 154
título: Habeas Corpus: não Cabimento
Artigo: Considerando tratar-se de uma sucessividade de pedidos de medida liminar em habeas corpus sem que
tenha havido o julgamento do mérito destas impetrações. no caso, requereu-se inicialmente medida liminar
em habeas corpus impetrado perante o trF da 4ª região em que se pretende que os pacientes aguardem soltos
o julgamentos dos recursos especial e extraordinários interpostos, cujo pedido cautelar foi indeferido pelo
relator e, contra esse despacho de indeferimento, foi impetrado novo habeas corpus perante o stJ em que se
pretendia a concessão de liminar em substituição do despacho denegatório atacado, a turma não conheceu de
habeas corpus originário contra o despacho do relator de habeas corpus impetrado perante o stJ que indeferira a
medida cautelar, já que o que se pretende é a concessão de liminar per saltum, substitutiva de duas denegações
sucessivas por tribunais inferiores, o que implicaria a ofensa aos princípios processuais da hierarquia dos graus
de jurisdição e da competência. Precedente citado: HC 76.347-ms (DJU, 08 maio 1998). HC 79.238-rs, rel.
min. moreira Alves, 22.6.1999.
Informativo n. 34
título: Cabimento de Habeas Corpus
Artigo: se a pretensão a determinado tratamento penal já foi examinada e indeferida pelo stF em julgamento
de habeas corpus, a circunstância de o stJ haver decidido de modo mais favorável em relação a outro co-réu
não confere ao paciente daquele HC o direito à extensão previsto no art. 580 do CPP [“no caso de concurso de
agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não
sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.”]. Não pode o STF ficar vinculado a decisão
proferida por tribunal de menor hierarquia. Habeas corpus não conhecido. HC 73.886-sP, rel. min. sydney
sanches, 4.6.1996.
Informativo n. 178
título: impetração sucessiva de Habeas Corpus
Artigo: Considerando tratar-se de uma sucessividade de pedidos de medida liminar em habeas corpus sem que
tenha havido o julgamento do mérito destas impetrações — no caso, requereu-se inicialmente medida liminar
em habeas corpus impetrado perante o tribunal de Justiça do estado do Amapá contra a manutenção da prisão
do paciente decretada na sentença de pronúncia, cujo pedido cautelar foi indeferido pelo relator e, contra esse
despacho de indeferimento, foi impetrado novo habeas corpus perante o stJ em que se pretendia a concessão
de liminar em substituição do despacho denegatório atacado para que fosse o paciente posto em liberdade —,
a turma, por maioria, não conheceu de habeas corpus originário contra o despacho do relator de habeas corpus
impetrado perante o stJ que indeferira a medida cautelar, já que o que se pretende é a concessão de liminar
substitutiva de duas denegações sucessivas por tribunais inferiores, o que implicaria a ofensa aos princípios
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
no Poder executivo, à exceção dos respectivos chefes de Poder em cada esfera
de governo, todos os demais administradores se sujeitam, de algum modo, a diferentes
mecanismos de controle político ou hierárquico e, nessa qualidade, podem ser obrigados a adotar soluções em função de ordem recebida da autoridade superior, e não por
convicção própria.
no Poder Judiciário, ainda que seja inegável a existência de hierarquia nas atividades meio — não é o juiz que define suas férias, mas o presidente de seu Tribunal,
por exemplo —, no exercício da atividade de julgar, não se submete o juiz a qualquer
tipo de relação hierarquizada. daí a importância de que todos os atos da Administração
Pública possam ser controlados pelo Poder Judiciário. Assegura-se, desse modo, que a
palavra final acerca da legalidade, da adequação ao ordenamento jurídico das diversas
atividades administrativas seja proferida por autoridade isenta, não obstante ser inegável que os administradores apliquem o direito e exerçam jurisdição administrativa.
de modo inverso, não há igualmente como negar que os tribunais judiciários
praticam atos administrativos, o que se verifica, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal decide, nos termos do seu regimento, recurso de servidor contra ato do
presidente do tribunal.
o ato praticado pelo Poder Judiciário terá sua natureza judicial, desse modo,
não apenas por ter sido praticado por juiz ou por tribunal judiciário, mas por ter sido
praticado por estes no exercício da sua atividade fim, e desde que proferido a partir de
normas de Direito Processual Civil e Penal. A definição da natureza dos atos praticados
pelo Poder Judiciário, como judiciais ou administrativos, é importante porque somente
os primeiros podem-se beneficiar da autoridade da coisa julgada judicial, ao passo que
os segundos podem ser controlados, inclusive, por tribunal de Contas.
2.1.3 decisões proferidas pelos tribunais de Contas
em relação aos atos praticados por tribunais de Contas, não obstante os ministros
ou conselheiros que compõem estas Cortes gozarem das garantias e prerrogativas dos
magistrados (CF, art. 73, §3º), seus atos têm natureza administrativa. esta conclusão
decorre de dois fatos: 1) não integram os tribunais de Contas o Poder Judiciário; e 2)
as decisões proferidas pelos tribunais de Contas regem-se por normas de direito Administrativo e Constitucional.
processuais da hierarquia dos graus de jurisdição e da competência dos tribunais. vencido o min. marco
Aurélio, que conhecia do habeas corpus. Precedente citado: HC 79.238 (DJU, 06 ago. 1999). HC 79.775-AP, rel.
maurício Corrêa, 15.2.2000.
Informativo n. 180
Título: Conflito de Competência: Inexistência
Artigo: Inexiste conflito de competência entre o STJ e os Tribunais dos Estados, uma vez que este incidente pressupõe decisões proferidas por órgãos entre os quais não haja hierarquia jurisdicional. Com esse entendimento,
o tribunal, resolvendo questão de ordem apresentada pelo min. sepúlveda Pertence, relator, não conheceu de
conflito de competência entre o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão e o STJ, tendo em vista que as decisões daquele Tribunal são de competência recursal deste. Trata-se de conflito de competência em que se alegava
que o stJ, ao deferir liminar para cassar os efeitos das decisões do tribunal de Justiça do maranhão em agravo
de instrumento e em ação cautelar inominada, teria usurpado a competência do mencionado tribunal de Justiça.
Vencido o Min. Marco Aurélio, que entendia configurado, na espécie, o conflito de jurisdição suscitado pelo requerente. Precedentes citados: CJ 6978-dF (rtJ 136/583), CC 6.996-rs (rtJ 143/543); CC 6.997-Pr (rtJ 143/547); CC
7.002-mG (rtJ 143/550). CC (Qo) 7094-dF, rel. min. sepúlveda Pertence, 9.3.2000.
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
deve-se reconhecer que a estatura constitucional das decisões proferidas pelas
Cortes de Contas — único título cuja natureza executiva decorre de dispositivo constitucional expresso (CF, art. 71, §3º) — impossibilita o seu enquadramento como meros
atos administrativos. Assim sendo, ainda que sujeitas ao controle judicial, as decisões
dos tribunais de Contas, especialmente aquelas que julguem contas de administradores
públicos e daqueles que derem causa a prejuízo ao erário (CF, art. 71, II), justificam a
adoção de controle menos intenso por parte do Poder Judiciário, devendo ser promovida
a sua anulação somente em casos de aplicação absurda do direito ou por falhas formais
do processo, de que seria exemplo a não observância de contraditório ou de ampla
defesa. Admitir que as matérias de fato ou de direito examinadas pelos tribunais de
Contas possam ser completamente reexaminadas, em todos os seus aspectos, pelo Poder
Judiciário, além de importar em absoluta quebra da racionalidade do sistema — afinal,
qual a utilidade desses tribunais se tudo o que eles decidirem puder ser revisto pelo
Poder Judiciário? —, transferiria para o Judiciário a competência para julgar contas dos
gestores públicos, competência definida na Constituição Federal como exclusiva dos
tribunais de Contas. A constatação de que as decisões proferidas pelos tribunais de
Contas, não obstante sua natureza administrativa, encontram-se em patamar jurídico
mais elevado que os demais atos administrativos foi feita pelo próprio stF no julgamento
dos ms nº 24.182-dF e nº 24.544-dF (já mencionados). neste último julgado, o stF considerou legítima providência determinada pelo tCu — com vista ao desconto em folha
de dano causado ao erário pelo servidor — prerrogativa que havia sido considerada
ilegítima quando adotada pela Administração Pública. o stF reconheceu, desse modo,
executoriedade à decisão do tCu em razão das particularidades presentes na natureza
do processo conduzido no âmbito deste tribunal, processo de colorido quase jurisdicional,
na feliz expressão de sepúlveda Pertence (ms nº 23.550-dF).
A discussão acerca da natureza das decisões proferidas pelos tribunais de Contas
não é nova em nosso ordenamento constitucional. Ainda sob a égide da Constituição
do estado novo, de 1937, apreciou o stF a Apelação Cível nº 8.442, em julgamento
encerrado na sessão de 3.7.1944. disputava-se direito ao montepio militar instituído
por general falecido. Litigavam, de um lado, a viúva do militar (apelante) e, de outro, a
irmã do general (apelada). também apelante, ao lado da viúva, a união. na instância a
quo, a irmã do general movera ação contra a união questionando a anulação do ato que,
inicialmente, lhe concedera o montepio. A irmã alegou que vinha recebendo o montepio
deixado por seu irmão militar desde 1934 e que, em 1941 — sete anos depois, portanto
—, a Administração, atendendo ao pleito da viúva, anulara o ato pelo qual o montepio
havia sido deferido a ela (irmã) e concedera o benefício à viúva.
o caso, decidido pelo supremo em 1944, é de relevância inquestionável até os
dias de hoje. vejamos a solução adotada pelo supremo tribunal Federal em 1944.
travou-se frutífero debate em relação à possibilidade de revisão pela própria
Administração do ato administrativo já apreciado pelo tribunal de Contas e a possibilidade de o próprio tribunal rever, provocado pela Administração, sua decisão anterior.
o ministro Castro nunes (revisor) argumentou nos seguintes termos:
Sr. Presidente, fiquei, apenas num aspecto preliminar, que, a meu ver, é tão decisivo no
caso que me dispensei de fundamentar o meu voto, abordando outros aspectos. A espécie
vem a ser a seguinte: perante as autoridades uma das partes se habilitou à pensão e estava
no gozo da mesma quando o tesouro lha cancelou, porque a outra parte apresentara
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
documento mais hábil. ora, a que estava no gozo desse direito, como pensionista, sê-lo-ia
em virtude de decisão do Tribunal de Contas, que é a jurisdição constitucional e legal competente
para se pronunciar sobre título declaratório de pensão. Assim, já depois disso, não poderia
mais o tesouro insurgir-se contra a decisão do tribunal ou desconhecê-la, para atribuir o
direito a quem quer que fosse, mesmo o outro parente, ainda que este outro parente tivesse
melhor direito. essa subordinação decorre da hierarquia mesma do tribunal de Contas, no
mecanismo, porque ele não é órgão administrativo; é órgão estabelecido pela Constituição,
de permeio entre os poderes executivo e legislador — e é essa a teoria do instituto — e
destinado a controlar a execução do orçamento. As autoridades administrativas estão
subordinadas às decisões do tribunal de Contas. se ele defere a um dado parente a pensão,
esta decisão poderá não ser conclusiva para o Judiciário mas terá de sê-lo, necessariamente,
para a administração. (grifos nossos)
Quais os fundamentos da tese sustentada por Castro nunes?
Fundamentou-se no fato de que a Administração subordina-se ao Tribunal de Contas,
não podendo descumprir suas decisões. Tal subordinação decorre da posição constitucional do
Tribunal, que não integra a própria Administração, mas é o seu fiscal. se a Administração não
concorda com o que decidiu o tribunal de Contas, pode recorrer ao Poder Judiciário,
mas não pode pura e simplesmente desconhecer o que lhe foi determinado (“essa subordinação decorre da hierarquia mesma do tribunal de Contas, no mecanismo, porque
ele não é órgão administrativo; é órgão estabelecido pela Constituição, de permeio
entre os poderes executivo e legislador — e é essa a teoria do instituto — e destinado a
controlar a execução do orçamento. As autoridades administrativas estão subordinadas às decisões do tribunal de Contas. se ele defere a um dado parente a pensão, esta
decisão poderá não ser conclusiva para o Judiciário mas terá de sê-lo, necessariamente,
para a administração”).
essa a interpretação natural. se a Constituição institui órgão de controle externo
a quem incumbe a função de fiscalizador da Administração, atribuindo-lhe, inclusive,
poderes de apenar o gestor faltoso, é evidente que suas determinações devem ter eficácia. As decisões do tribunal de Contas podem ser questionadas pelo administrador
junto ao Poder Judiciário, mas o administrador não pode ignorá-las por si só, o que
caracterizaria exercício arbitrário das próprias razões.
ou seja: o Tribunal de Contas tem a palavra final sobre a Administração, com a ressalva
de que a Administração pode levar a questão ao Poder Judiciário.
2.2 Âmbito de aplicação do direito Administrativo
2.2.1 Ato judicial e ato legislativo
Na tentativa de definir o âmbito de aplicação do Direito Administrativo, somos
levados a concluir que ele regula toda e qualquer atividade do estado, ressalvadas
aquelas resultantes do exercício das funções judiciais ou legislativas. essa conclusão
decorre das razões a seguir expostas.
reputa-se judicial, em primeiro lugar, a decisão produzida por órgão integrante
do Poder Judiciário e resultante de processo regido pelo direito Processual (Civil, Penal
ou trabalhista).
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
examinar o ato legislativo constitui tarefa que se nos apresenta ainda mais desafiadora,
sobretudo porque não admitimos a existência de categoria de ato fora do alcance das
três funções do estado.6
À semelhança do que se verifica com o Poder Judiciário, o Legislativo, no exercício
de suas atividades meio, não pratica atos legislativos. Quando, por exemplo, o senado
Federal realiza licitação ou concurso público pratica atos administrativos. Afasta-se,
de pronto, o argumento de que ato legislativo é aquele praticado por órgão integrante
do Poder Legislativo.
Não nos parece igualmente correto afirmar que a prática de atos de caráter concreto, de execução, seja exclusividade do Poder executivo, e que a edição de atos de
caráter normativo seja atribuição exclusiva do Poder Legislativo.
indiscutível que a função precípua do Legislativo compreende o exercício do
poder normativo do estado, e, nessa condição, atos abstratos ou gerais são produzidos. todavia, assim como o poder normativo do estado não se restringe ao âmbito
do Legislativo, as Casas Legislativas também praticam atos concretos, sem qualquer
caráter abstrato.
A partir do modelo de separação de atribuições do estado adotado no Brasil,
pode-se tão somente falar em atribuição principal — a do Legislativo, editar atos abstratos;
a da Administração Pública, dar execução a esses atos —, mas nunca em exclusividade
de exercício de atribuições estatais.
A discussão acima apresentada é necessária a fim de que se indique o regime
jurídico aplicável a cada ato: ato legislativo segue as normas constitucionais pertinentes
ao processo legislativo, ato administrativo observa as normas do direito Administrativo,
sejam elas de estatura constitucional, legal ou infralegal, e o ato judicial observa as
normas do direito Processual Civil, Penal ou trabalhista.
Para definir o ato legislativo parece-nos mais adequado considerar o processo
legislativo. este processo se encontra disciplinado no próprio texto da Constituição
Federal e regula a atividade fim das Casas Legislativas. Parece-nos adequado considerar
que todos os atos integrantes do processo legislativo devam ser reputados legislativos.
nos termos do art. 59 da Constituição Federal, o processo legislativo compreende
a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, ordinárias e delegadas,
medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. desse modo, todos os atos que
compõem o processo legislativo, tanto os iniciais (de que seriam exemplos a apresentação do projeto de lei, de iniciativa do chefe do executivo, de parlamentar ou popular,
ou a edição de medida provisória), quanto os finais (veto, sanção ou promulgação de
lei) são atos legislativos.
o processo legislativo extrapola os limites das Casas Legislativas, diferentemente
do que se verifica com os atos judiciais, que estão restritos ao âmbito do Poder Judiciário.
efetivamente, cabe ao direito Positivo, especialmente à Constituição Federal,
indicar os atos que irão compor o processo legislativo. estes são os atos legislativos,
disciplinados diretamente pelo texto constitucional e pelos regimentos internos das
Casas Legislativas.
6
Para maiores detalhes acerca desta matéria, remetemos o leitor para o Capítulo 5, onde estudaremos mais
detidamente a existência dos atos de governo.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
2.2.2 Ato administrativo e critério residual
em função do que até o momento expusemos, é possível concluir que todo ato
praticado pelo estado é ato administrativo, salvo se se tratar de ato praticado por órgão
do Poder Judiciário disciplinado por normas de direito Processual, ou se for ato que
integre o processo legislativo, hipótese em que o ato será reputado legislativo.
Esse resíduo da atuação estatal define o objeto do Direito Administrativo e caracteriza o ato como administrativo.
A utilização do critério residual para definir o ato administrativo explica o crescimento do Poder executivo em relação aos demais poderes do estado. ora, se o âmbito
de atuação dos Poderes Legislativo e Judiciário está restrito à prática de determinados
atos, todas as novas atividades a serem desempenhadas pelo estado têm sido conferidas
pelo ordenamento jurídico ao Poder executivo.
2.3 direito Administrativo e direito Privado
Historicamente, o direito Público tem sido apresentado como aquele em que
o Estado é parte, figurando como sujeito nas relações jurídicas. O Direito Privado, ao
contrário, seria, também do ponto de vista histórico, aquele que regula relações entre
particulares sem que o estado delas faça parte. Questiona-se, então, o que ocorre quando
a Administração Pública busca no direito Privado soluções para disciplinar o exercício
da sua atividade estatal. o direito Privado se transforma em direito Público em função
da presença do estado, ou ele manteria sua natureza privada?
o aumento da utilização das normas de direito Privado pela Administração
Pública — processo que se tornou conhecido como fuga do direito Administrativo —
está diretamente ligado à busca de eficiência pelo Estado.
Os defensores dos processos de reforma do Estado no final do século passado
partiam do pressuposto de que as normas de direito Público eram responsáveis pela
ineficiência do poder público, o que aumentou a utilização de normas de Direito Privado como a solução para a falta de eficiência pública. O privado era apontado como
a solução para todos — ou quase todos — os males do estado.
diante da variada gama de atividades desenvolvidas pelo estado moderno — de
intervenção no âmbito das atividades privadas, de prestação de serviço público e de fomento
—, as normas de direito Privado somente mostram-se úteis e aplicáveis em algumas áreas,
sobretudo em relação à prestação de determinados serviços públicos.
Antes de avançarmos no exame da questão, algumas questões preliminares devem
ser enfrentadas.
Quando se fala em modernidade — e hoje já se fala em pós-modernidade —,
um dos primeiros aspectos que se apresenta é a impossibilidade de separação absoluta
entre os dois ramos básicos do direito, o Público e o Privado. A maior interferência
do estado no âmbito das atividades privadas torna impossível qualquer tentativa de
separação absoluta desses dois ramos. É praticamente impossível, nos dias atuais, indicar relação jurídica entre particulares que não sofra alguma interferência do estado.
A relação entre marido e mulher, por exemplo, que até passado relativamente recente
era tida como matéria de interesse exclusivo dos dois, hoje é fortemente influenciada
por normas editadas pelo direito Público.
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
o processo inverso, de interferência do direito Privado no âmbito da Administração
Pública, mostra-se igualmente evidente, sendo comum o estado se utilizar de institutos
privados para tornar sua atuação mais efetiva.
importante questão a ser enfrentada consiste em saber se nas situações em que
a Administração Pública se utiliza das normas de direito Privado para a prática de
determinados atos, o que ocorre com cada vez mais frequência, essas normas de direito
Privado poderiam ser consideradas fonte de direito Administrativo. em outras palavras,
caso a Administração Pública se utilize do direito Privado para regular algum ato, ou
alguns aspectos da sua atuação, essa norma de direito Privado se transmuda em direito
Público? Parece-nos que não. É certo que as normas do direito Privado constituem
importante fonte de direito para a Administração Pública. na falta de norma de direito
Administrativo para regular determinado ato, a Administração Pública pode servir-se
do direito Privado. essa utilização, porém, não muda ou afeta a natureza das normas
privadas e não as transforma em direito Público.
É importante observar, todavia, que a utilização do direito Privado pela Administração Pública não constitui mera opção discricionária do gestor público. Caso haja
norma de direito Público para regular determinado ato, o direito Privado assume
função meramente suplementar. Assim, por exemplo, existindo normas de direito
Público que regulem a execução de uma obra pública — a Lei nº 8.666/93 —, não pode
o administrador preferir executar referida obra com base em regras ditadas pelo direito
Privado, que assume sempre caráter subsidiário em relação ao direito Público.
outra observação importante consiste em que, mesmo nas hipóteses em que o
direito Privado possa ser utilizado pela Administração Pública, sempre haverá normas
de direito Público irrenunciáveis e que possuem precedência em relação às do direito
Privado.
tradicionalmente, a doutrina nacional entende que não é o simples fato de a Administração Pública figurar como parte em um contrato que faz com que este se transforme
em contrato administrativo. de acordo com Celso Antônio Bandeira de mello,7 quando a
Administração Pública procede, em suas relações jurídicas com o particular, de comum
acordo com este, estabelece contratos, que podem ser:
a) contratos de direito privado da Administração; ou
b) contratos administrativos.
A distinção entre ambos residiria na natureza do regime jurídico utilizado para
disciplinar o vínculo: os contratos de direito Privado celebrados pela Administração
seriam regulados pelas normas do direito Privado e os contratos administrativos
sujeitar-se-iam às regras e princípios estabelecidos pelo direito Público, admitida a
aplicação supletiva de normas privadas compatíveis com a índole pública do instituto.
ocorre, todavia, que mesmo em relação aos ditos contratos de direito Privado
existem determinadas regras de direito Público irrenunciáveis. tomemos o exemplo de
contrato de locação em que o poder público seja o locatário. A Lei nº 8.666/93 não disciplina o seu conteúdo. Assim sendo, nos termos do art. 54 da própria Lei de Licitações
(“os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e
pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da
teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”) a esse contrato serão
7
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 377-378.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
aplicadas as regras do Direito Privado previstas na legislação sobre locação para fins
não residenciais. ocorre que o art. 62, §3º, i, da Lei de Licitações determina ainda que
“aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja
locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de
direito privado” aplica-se o disposto nos artigos 55 e 58 a 61 da Lei de Licitações, “e
demais normas gerais”, no que couber.
vê-se que em relação a esses contratos denominados de direito Privado, bem
como a qualquer outro ato praticado pela Administração Pública, além da inafastável
observância do interesse público, sempre haverá normas de direito Público aplicáveis.
Assim sendo, não obstante a crescente importância que o direito Privado assume como
fonte para o estado, o direito Público mantém a precedência.
os processos de reforma empreendidos em diversos países da europa e da América
Latina ao longo das décadas de 1980 e de 1990, respectivamente, tinham como escopo
conferir maior eficiência ao Estado. Nesses processos, atribuiu-se ao Direito Público parte
da responsabilidade pela ineficiência da Administração Pública e se buscou no Direito
Privado a solução para a falta de eficiência estatal.
Após vários erros, e alguns acertos, hoje se constata a impossibilidade de total
afastamento das normas e dos princípios que constituem o instrumental do direito
Administrativo. se há novas áreas de atuação do estado que reclamam maior agilidade,
outras continuam a ser pautadas pelos instrumentos tradicionais do direito Administrativo. De qualquer forma, hoje se verifica, de modo cristalino, que a desqualificação
do direito Público não interessa nem ao estado nem à sociedade. Portanto, em vez de
se afastar o direito Público, deve-se buscar atualizar seus preceitos e torná-lo capaz de
responder de forma pronta e eficaz às demandas que as sociedades modernas apresentam ao Estado. Este constitui o grande desafio que se apresenta aos que lidam com
o direito Administrativo: mantê-lo atualizado, capaz de atender às demandas sociais,
sem se afastar dos princípios basilares do estado democrático de direito.
2.4 objeto do direito Administrativo
Diversas escolas têm buscado definir o objeto do Direito Administrativo a partir
da utilização de diferentes critérios. trata-se de difícil tarefa e que nem sempre alcança
resultados definitivos ou seguros.
o direito Administrativo objetiva regular todas as atividades estatais, excetuadas
aquelas qualificadas como atos legislativos ou judiciais. Esta conclusão é importante
porque define o regime jurídico aplicável a cada ato praticado pelo Estado e, consequentemente, os mecanismos de controle aplicáveis. Apenas para exemplificar, não é
possível aplicar regra relativa ao desfazimento (anulação e revogação) do ato administrativo, conforme regulado pela Lei nº 9.784/99, aos atos legislativos ou judiciários,
haja vista não serem esses atos disciplinados por este regime jurídico, mas pelo direito
Constitucional e pelo direito Processual, respectivamente.
o objeto do direito Administrativo compreende, portanto, todas as atividades
do estado, ressalvadas aquelas inseridas no âmbito das funções legislativas e judiciais.
Algumas áreas inseridas no âmbito do direito Administrativo e diretamente
ligadas às funções executivas do estado — urbanismo, preservação do meio ambiente,
regulação do mercado, apenas para mencionar alguns exemplos — têm assumido tamanha
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
importância social que se defende sua autonomia científica — Direito Urbanístico,
Direito Ambiental, Direito Econômico. O reconhecimento da autonomia científica dessas
disciplinas não importa, todavia, em que suas regras estejam em desarmonia com a
teoria Geral do direito Administrativo.
no presente trabalho temos defendido a existência do sistema de direito Administrativo que se compõe de um núcleo, cujas normas compõem a teoria Geral do
direito Administrativo, e de normas periféricas que integram o direito Administrativo
especial, que compreende as normas de direito Ambiental, de direito urbanístico, o
regime jurídico dos servidores públicos, o direito da concorrência etc. desse modo, ainda
que se pretenda reconhecer, ao menos em relação a algumas dessas áreas do direito
Administrativo especial, autonomia didática e científica, essa autonomia será relativa,
haja vista estarem suas normas relacionadas ao exercício de atividades desenvolvidas
pela Administração Pública e sujeitas aos parâmetros constitucionais da teoria Geral
do direito Administrativo.
2.5 Fontes do direito Administrativo
o estudo do objeto do direito Administrativo, tarefa empreendida no item anterior,
busca identificar os atos ou situações que sofrerão a incidência das normas que compõem
este ramo do direito Público.
o exame das fontes do direito Administrativo, a seu turno, tem o propósito de
definir de onde surge a norma que irá disciplinar referido objeto.
A Constituição Federal, as leis — complementares, ordinárias ou delegadas —,
os tratados internacionais, os regulamentos, os costumes, a doutrina e a jurisprudência
constituem as principais fontes do direito Administrativo.
2.5.1 Constituição Federal
A Constituição Federal tem como um de seus mais importantes propósitos a definição da estrutura do estado. Basta essa constatação para que se perceba a importância
que este conjunto de normas assume não apenas como fonte do direito Administrativo,
mas, sobretudo, como instrumento definidor do sistema jurídico do País.
Conforme visto no capítulo anterior, na Constituição Federal serão encontradas
as normas que compõem o núcleo do direito Administrativo. estas normas irão pautar
todas as manifestações deste ramo do direito. o processo administrativo, as licitações
e a contratação pública, as normas básicas relativas aos servidores públicos, as competências administrativas das entidades políticas e os mecanismos da organização e
de descentralização administrativa, as normas relativas à proteção ao meio ambiente,
ao mercado e aos consumidores são temas afetos ao direito Administrativo e que se
encontram regulados diretamente pelo texto constitucional.
As normas constitucionais servem de parâmetro para balizar a atividade do legislador e, em alguns casos, praticamente dispensam a intervenção legislativa. tomemos
como exemplo as normas relativas ao processo administrativo. inegável a importância
desempenhada pela Lei nº 9.784/99, que disciplina o processo administrativo no âmbito
federal. tão grande a importância desse texto legal que estados e municípios, que não se
submetem a essa legislação federal, têm sido fortemente influenciados pelas regras nela
51
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
52
estabelecidas. Ademais, as principais regras contidas na lei do processo administrativo
seriam aplicáveis à união, aos estados e aos municípios independentemente da aprovação dessa lei.8 o contraditório, a ampla defesa, o acesso aos elementos do processo, a
segurança jurídica são alguns dos diversos princípios consagrados pela mencionada Lei
nº 9.784/99. esses princípios, todavia, não decorrem da lei, mas da própria Constituição
Federal. Não tivesse a lei, por acaso, fixado prazo para a Administração Pública anular
seus próprios atos (art. 54), seria possível admitir que essa prerrogativa pudesse ser
utilizada a qualquer tempo? A prerrogativa da Administração Pública de anular seus
próprios atos não teria que observar o princípio constitucional da segurança jurídica?
o caráter abstrato do texto da Constituição Federal, que costuma se utilizar de
princípios ou tão somente fixar diretrizes para a atuação dos legisladores ou administradores públicos, permite que por meio das mutações constitucionais o direito
Administrativo se mantenha atualizado independentemente de qualquer reforma
legislativa. A inevitável aproximação — ou mesmo confusão — entre as normas do
direito Constitucional e do direito Administrativo não torna este último mais rígido.
Ao contrário, a aplicação de referidas normas abertas aos fatos da vida, que estão em
constante evolução, permite que o direito Administrativo possa melhor responder às
novas necessidades da sociedade de forma mais pronta e efetiva.
2.5.2 Leis
o princípio da legalidade administrativa — segundo o qual a Administração
Pública somente pode fazer o que a lei autorizar ou determinar — constitui um dos
pilares básicos do estado de direito. A necessidade de impor limites ao estado, de valorizar os indivíduos e de buscar a realização dos direitos fundamentais confere grande
importância à lei formal. inegável, ademais, a importância das leis como instrumento
básico de controle do estado.
A lei em sentido formal, resultante do processo legislativo, constitui — em seguida
às normas constitucionais — a principal fonte do direito Administrativo. A Constituição, as leis e os regulamentos, não obstante sejam fontes do direito Administrativo,
desempenham papel distinto no processo de criação das normas administrativas e se
sujeitam a limites distintos na criação normativa.
A Constituição não se submete, em princípio, a qualquer limite no processo de
criação das normas que regulam a atividade administrativa do estado, excetuados
os limites criados pelo próprio texto constitucional (art. 60, §4º). As leis encontram
seus limites na própria Constituição. os regulamentos, que têm desempenhado papel
secundário no processo de criação de normas administrativas, restringem-se, quase
sempre, a indicar a opção normativa escolhida pela Administração dentre as opções
normativas admitidas pelas leis.
Em função de variados fatores, tem-se observado sistemática modificação na
importância dessas diferentes fontes, sendo evidente a perda de importância da lei no
âmbito do Direito Administrativo e a consequente redefinição do princípio da legalidade.
8
o stF entende que a Lei nº 9.784/99 pode ser aplicada de forma subsidiária no âmbito dos demais estados-membros,
se ausente lei própria regulando o processo administrativo no âmbito local (resp nº 1.148.460/Pr, segunda turma.
DJe, 28 out. 2010).
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
A necessidade de a Administração Pública apresentar respostas rápidas, a maior
importância conferida às normas do núcleo do direito Administrativo, de estatura
constitucional, cuja aplicação não depende necessariamente de lei, os processos de integração supranacionais, que conferem aos tratados internacionais importância nunca
antes exercida para a organização das novas entidades administrativas são alguns fatores
que têm contribuído para que as leis formais percam sua importância como fonte de
Direito Administrativo e para a redefinição do princípio da legalidade.
não obstante a perda de importância da lei em relação às demais fontes, as leis,
ao lado da Constituição Federal, continuam a desempenhar papel fundamental no
processo de criação do direito Administrativo.
2.5.3 tratados e acordos internacionais
os processos de integração supranacionais constituem, certamente, o fenômeno
que maior impacto e, portanto, maiores desafios têm trazido para as administrações
públicas neste início de século XXi.9
independentemente dos processos de integração, acordos e convenções internacionais em matéria de meio ambiente, de combate ao terrorismo, aos crimes organizados
e à corrupção têm demonstrado a influência crescente que esses textos jurídicos têm
exercido sob o direito Administrativo em inúmeros países, inclusive no Brasil. Apenas
para citar um exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção firmada
na cidade de mérida, méxico, no ano de 2003, determina aos países signatários, dentre
outras medidas, a necessidade de fixação de regras em matéria de contratos públicos e
licitações, sobre servidores públicos, sobre o controle da Administração Pública, sobre
orçamentos públicos, sobre transparência etc. estas regras constituem fontes da maior
relevância para o direito Administrativo.
2.5.4 decretos e regulamentos
um dos aspectos mais controvertidos do estudo das fontes do direito Administrativo se refere à utilização e à definição dos limites para a utilização dos decretos e
para a edição de regulamentos por parte do Poder executivo.
9
Acerca da importância dos processos de integração, vejam a palavras do então Cardeal ratzinger, atualmente
Papa emérito Bento Xvi, em debate ocorrido em 19 de janeiro de 2004, na Academia Católica da Baviera, em
munique, com o pensador Jürgen Habermas, em que os dois pensadores analisam “as bases pré-políticas e
morais do estado democrático”:
“o islã tem um catálogo de direitos humanos próprio, diverso do ocidental. A China é, com efeito, atualmente
marcada por uma forma cultural, o marxismo, originada no ocidente, mas ainda coloca a pergunta se não se
trata, no caso dos direitos humanos, de uma típica invenção ocidental, a qual deveria ser questionada...
Como último elemento do direito natural, o qual desejava ser, em nível mais profundo, um direito racional,
pelo menos nos tempos modernos, permanecem os direitos humanos. eles não são compreensíveis sem o
pressuposto de que o homem como homem, simplesmente por sua filiação à espécie humana, é um sujeito de
direitos, que sua existência carrega em si valores e normas que devem ser descobertos, mas não inventados.
talvez a doutrina dos direitos humanos devesse hoje em dia ser acrescida de uma doutrina acerca dos deveres
humanos e dos limites do homem, e isso poderia ajudar a atualizar a pergunta se não pode haver uma razão
da natureza e, portanto, um direito racional para os homens e sua posição no mundo. uma tal discussão
deveria hoje ser constituída e exposta de maneira intercultural. (...) Para mim, a interculturalidade compõe hoje
uma dimensão indispensável para a discussão acerca dos fundamentos do ato de ser humano, que não pode
ser conduzida nem unicamente dentro do universo cristão nem totalmente dentro de uma tradição racional
ocidental” (Folha de S.Paulo, São Paulo, 24 abr. 2005. Caderno Mais. Tradução de Érika Werner).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o termo regulamento, conforme observa Celso Antônio Bandeira de mello, não
indica categoria jurídica específica, sendo possível, em diferentes regimes jurídicos,
serem utilizados instrumentos distintos para a expedição desta manifestação de vontade
de caráter genérico do Poder executivo. este último aspecto, segundo o autor, seria o
que mais caracterizaria o regulamento: ser expedido pelo Poder executivo, e, no caso
brasileiro, pelo chefe deste poder por meio de decreto.
o regulamento assume diferentes funções em diferentes regimes jurídicos. no
direito francês, apenas para citar um exemplo, fala-se inclusive em reserva regulamentar
para indicar determinados temas que não poderiam ser disciplinados por lei, sendo
exclusiva do chefe do executivo a competência para regular em caráter geral alguns
temas afetos à Administração Pública.
No Brasil, a grande discussão em torno do uso do regulamento busca definir os
limites para a utilização do decreto, instrumento por meio do qual o chefe do executivo
expede normas de caráter geral.
A Constituição Federal, em seu art. 84, iv, confere competência privativa ao Presidente da república — competência que será estendida pelas constituições estaduais e leis
orgânicas municipais aos governadores e prefeitos, respectivamente — para “sancionar,
promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para a
sua fiel execução”. Ademais, o art. 49, V, da própria Constituição, confere competência
ao Congresso nacional para sustar ato do poder executivo que extrapole os limites do
poder regulamentar.
uma primeira observação a ser feita deve ser dirigida à redação do texto constitucional citado — o art. 84, iv. nele é dada a impressão de que decreto e regulamento
seriam coisas distintas, quando na verdade um é instrumento do outro. É por meio
de decreto que o Presidente da república exerce o seu poder de regulamentar as leis.
A questão que aqui se coloca consiste em saber se a única função do decreto seria
a regulamentação da lei, se seria possível ao decreto exercer outras funções e, sobretudo, se poderia o Poder executivo, por meio de decreto, cuidar, em caráter abstrato,
de matérias não tratadas em lei.
no Capítulo 10, a questão do poder regulamentar será tratada com maior profundidade. desde já antecipamos nosso entendimento no sentido de que é legítimo ao
decreto inovar no direito Administrativo.
o ponto de partida para o enfrentamento dessa questão consiste em saber que
o poder regulamentar é uma categoria do poder normativo do Estado. este é mais amplo e
compreende o próprio poder do estado de legislar.
se é certo que existem limites ao exercício de todos os poderes do estado, o
exercício do poder normativo não constituiria exceção. o próprio poder do estado
de legislar em matéria administrativa, que podemos denominar poder normativo legal,
além da necessidade de conformação com os parâmetros constitucionais expressos,
deve observar regras de razoabilidade, de necessidade e de intensidade com que a
interferência do estado ocorre na esfera privada, sendo exigido, ademais, que essas
interferências públicas na esfera privada sejam sempre justificadas sob a ótica da realização dos direitos fundamentais.
o poder normativo do estado, não obstante constitua a função predominante
do Legislativo, alcança todos os demais poderes — caso em que poderemos falar em
poder normativo complementar.
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
no âmbito do Judiciário podemos mencionar como manifestação dessa categoria
de poder normativo a prerrogativa dos tribunais de aprovarem seus regimentos internos
ou da Justiça Eleitoral de fixar normas para a realização das eleições.
no âmbito do executivo, o poder normativo complementar não se restringe ao
chefe do executivo. ele se espalha por vários órgãos e entidades públicas — vale mencionar exemplos como o do Banco Central do Brasil que exerce grande poder normativo
sobre os mercados financeiros, ou de algumas agências reguladoras que no âmbito das
suas atribuições definem, por meio de resoluções, parâmetros de caráter geral para os
segmentos de mercado sujeitos à sua atuação.
Para limitar o poder normativo do estado, os particulares dispõem, como primeiro
instrumento de defesa, dos princípios da reserva da lei (CF, art. 5º, ii), segundo o qual
“ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa salvo em virtude de lei”,
e do devido processo legal substantivo (razoabilidade).
observados os critérios de competência — haja vista ser inconcebível, por
exemplo, a união editar ato normativo em matéria de competência dos estados ou dos
municípios —, e desde que a edição desses atos normativos emanados do estado não
criem obrigações para os particulares, restrinjam, limitem ou condicionem o exercício
de direitos, o que somente pode ocorrer por meio de lei, deve-se reconhecer liberdade
para a edição de atos normativos independentemente de prévia aprovação pelo Poder
Legislativo.
Faz-se necessária a aprovação de lei formal — aprovada pelo Poder Legislativo
— para legitimar qualquer interferência estatal na esfera dos particulares ou para disciplinar matérias para as quais o texto constitucional tenha expressamente exigido lei.
em outras situações — em que a Administração Pública tenha a necessidade de regular
questões administrativas internas ou de desenvolver programas de governo que não
restrinjam liberdades individuais, mas que ponham à disposição da sociedade benefícios
ou facilidades, deve-se reconhecer ampla competência ao poder normativo complementar do estado, que irá atuar por meio dos instrumentos de hierarquia inferior à lei.
em períodos de exceção democrática, em que o exercício das atribuições executivas do estado carece de legitimidade popular, eram compreensíveis as teorias
limitadoras do poder normativo complementar. em regimes democráticos, em que
todas as funções do Estado são exercidas de forma plena e democrática, não se justifica
a manutenção de teses excessivamente limitadoras da atuação do Poder executivo.
Ao chefe do executivo (CF, art. 84, iv) está afeta categoria especial do poder
normativo do estado: o poder regulamentar.
o chefe do executivo, no exercício do Poder regulamentar, está restrito aos
limites da lei a ser aplicada. o poder regulamentar, como categoria do gênero poder
normativo do estado, é de alcance bem mais restrito e tem por objetivo principal
restringir a discricionariedade conferida ao administrador pela lei. no exercício do
poder regulamentar, não pode o chefe do executivo criar novas áreas de atuação para
a Administração Pública, mas tão somente definir como os administradores públicos
irão aplicar referida lei. tomemos como exemplo a legislação que cuida do pregão.
temos, no caso, a Lei nº 10.520/02 e o decreto nº 3.555/00, que regulamenta referida
lei. A função do decreto não é de ampliar a atuação do administrador, mas de indicar,
dentre as possibilidades de proceder permitidas pela lei aos diversos administradores,
qual ou quais procedimentos devem ser adotados.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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o poder regulamentar apresenta algumas particularidades. em primeiro lugar,
somente serão regulamentadas as leis para cuja aplicação seja necessária a intervenção
da Administração Pública. somente as regras contidas em lei cuja aplicação necessite da
intervenção da função executiva do estado serão regulamentadas. somente normas de
direito Administrativo — ou de outros sub-ramos do direito surgidos a partir do direito
Administrativo (direito urbanístico, direito Ambiental ou direito econômico) — devem
ser objeto de regulamentação. normas de direito Privado, ou mesmo de outros ramos
do direito Público, como o direito Penal, não podem ser objeto de regulamentação.10
Isto assim se verifica porque a função da regulamentação é de definir como as leis serão
aplicadas pela Administração Pública.
Ainda em relação ao poder regulamentar, é necessário observar que somente
serão regulamentadas as leis que contenham dispositivo por meio do qual seja expressamente exigida essa regulamentação. Caso não se faça presente qualquer desses dois
requisitos, a regulamentação será inócua ou desnecessária.
O decreto regulamentar tem o propósito específico, conforme mencionado, de
definir dentre as opções legais possíveis qual ou quais podem ser adotadas pela Administração Pública. Definida por meio de decreto regulamentar a solução possível dentre
aquelas permitidas pela lei ao administrador, este não pode adotar solução diversa,
ainda que esta outra solução fosse admitida pela lei, sob pena de praticar ato ilegal.
A ilegalidade deste ato — que fere o decreto — decorre do fato de que é a própria lei
que exige do chefe do Executivo a regulamentação da lei a fim de que seja indicada as
soluções de execução possíveis. Assim sendo, caso o administrador público não adote a
solução definida no decreto regulamentar, ele terá violado, além do próprio decreto, a
lei que determinou que sua aplicação seria feita nos termos definidos em regulamento.
trata-se de poder exclusivo do chefe do executivo vinculante para toda a Administração Pública, incluídas as administrações dos Poderes Legislativo e Judiciário.
Definida determinada solução em decreto regulamentar editado pelo Presidente da
república, os órgãos administrativos dos Poderes Judiciário e Legislativo não podem,
apesar de disporem de autonomia administrativa, adotar solução diversa daquela permitida pela regulamentação. A função precípua do decreto regulamentar é, portanto,
definir a aplicação da lei pela Administração Pública, limitando a discricionariedade
do administrador.
É evidente que o decreto regulamentar não pode, a pretexto de limitar a discricionariedade administrativa, adotar solução contrária à lei ou restringir prerrogativas
ou competências do administrador expressamente conferidas pela lei ao administrador
público.
A obrigatoriedade das unidades administrativas dos Poderes Legislativo e Judiciário de observarem o disposto nos decretos regulamentares nos parece evidente, e sua
violação deve importar em invalidação do ato praticado. É de se observar, em primeiro
lugar, que a definição das matérias a serem regulamentadas pelo chefe do Executivo não
resta sob o livre alvedrio do Poder executivo. somente são regulamentadas as matérias para as quais a lei tenha requerido a devida regulamentação. essa interferência do
10
As normas penais em branco podem ser consideradas exceções a esse entendimento, uma vez que por apresentarem conteúdo incompleto exigem complementação/integração por outra norma jurídica, como por exemplo:
decreto, regulamento, portaria etc.
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
Poder executivo na autonomia administrativa dos demais poderes se insere dentro do
sistema de separação das funções do estado, como mecanismo de freio e contrapeso.
A expedição de decretos de caráter genérico, não obstante sujeito a limites
outros, não se restringe apenas ao papel de regulamentar a lei. em outras palavras: a
edição de normas de caráter abstrato por parte do Poder executivo não decorre apenas
do poder regulamentar. Pode o chefe do executivo expedir decretos para normatizar
matérias não previstas em lei. Pode o Presidente da república, por exemplo, por meio
de decreto, disciplinar a realização de concursos públicos, matéria não prevista em
lei. Caso isto ocorra, não se poderia falar em decreto regulamentar ou em exercício do
poder regulamentar haja vista não existir qualquer lei sobre a matéria para que se fale
em regulamentação. o poder para a edição deste decreto decorre do poder hierárquico
do Presidente da república e vincula somente os administradores a ele subordinados.
editado este decreto, de modo algum estariam as unidades administrativas do supremo tribunal Federal ou da Câmara dos deputados, por exemplo, obrigadas a seguir
as regras contidas em referido e hipotético decreto.
decretos expedidos pelo Presidente da república no exercício do poder hierárquico, que não têm a finalidade de regulamentar lei, mas de disciplinar temas afetos à
competência do chefe do executivo, vinculam tão somente aqueles que estejam hierarquicamente a ele subordinados, direta ou indiretamente, não podendo alcançar outros
poderes do estado.
As observações até o momento feitas demonstram que não seguimos a corrente
majoritária adotada na doutrina pátria segundo a qual a edição de normas de caráter
abstrato por parte do Poder executivo se restringe à edição de decretos regulamentares.
É certo que o papel de expedir normas de caráter abstrato cabe, precipuamente,
ao Poder Legislativo. somente por meio de lei (CF, art. 5º, ii – princípio da reserva da
lei) alguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. nesse sentido,
não é possível ao legislador delegar ao Poder executivo a competência para editar
decreto que imponha restrições, limite, direitos ou crie obrigações para os particulares.
A edição de decretos delegados por meio dos quais o legislador transfere ao chefe
do executivo a incumbência de cuidar de determinados temas, ainda que legítimos —
legitimidade a ser aferida em função do que dispõem a Constituição Federal e a própria
lei que delega a competência normativa —, deve observar o princípio da reserva da lei,
bem como os limites para a delegação legislativa (CF, art. 68, §1º).
Além dos decretos regulamentares, outros atos de caráter normativo editados
pelo Poder executivo são fontes de direito Administrativo. resoluções, instruções ou
outros atos normativos podem criar normas para disciplinar a atuação da Administração Pública.
2.5.5 Jurisprudência
muito se discute na doutrina acerca de a jurisprudência ser fonte de direito.
no exercício da atividade jurisdicional, os juízes e os tribunais administrativos são
obrigados a criar normas para os casos concretos levados à sua apreciação. neste
processo, surgem normas específicas que definem a solução a ser adotada em futuros
casos. neste sentido, as orientações emanadas destas decisões constituem importante
parâmetro para os aplicadores do direito. Cabe ressaltar, ademais, a importância que
57
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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as decisões proferidas por determinados tribunais administrativos assumem em nosso
direito Administrativo. As decisões proferidas pelo tribunal de Contas da união em
matéria de licitações ou de pessoal, por exemplo, são de importância fundamental
para os diversos gestores públicos. Basta observar que a Lei orgânica do tCu (Lei
nº 8.443/92 – art. 1º, Xvii) dispõe que as decisões preferidas pelo tribunal em resposta
a consultas têm caráter normativo.
2.5.6 doutrina
A doutrina desempenha papel secundário no processo de criação de normas
de Direito Administrativo. À semelhança do que se verifica com a jurisprudência, a
doutrina não desempenha, no Direito Administrativo, papel significativo na criação
de normas. A sua função mais relevante é a de explicar, de esclarecer aos aplicadores
do direito acerca do correto conteúdo das normas administrativas, indicando a melhor
interpretação ou as interpretações possíveis destas normas.
opiniões doutrinárias contrárias às leis — ainda que válidas para que o legislador procure aperfeiçoar as normas vigentes — não podem ser admitidas como fonte
de direito Administrativo.
não existe por parte dos administradores públicos a prerrogativa de deixar de
aplicar normas sob o argumento de inconstitucionalidade com base em opiniões doutrinárias, por mais abalizadas que sejam. somente o Poder Judiciário e, excepcionalmente,
os tribunais de Contas — em razão do disposto na súmula nº 347 do stF — podem
deixar de aplicar lei sob argumento de inconstitucionalidade.11
11
Há que se observar, não obstante, que a súmula nº 347 do stF foi objeto de crítica pelo ministro Gilmar mendes
no ms nº 27.796-mC/dF, mediante o qual deferiu pedido de medida liminar, para suspender os efeitos da
decisão proferida pelo tribunal de Contas da união (Acórdão nº 1.763/2008) no processo tC nº 008.815/2000-3
(relatório de Auditoria):
“Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo tribunal de Contas da união, do art. 67 da Lei nº 9.478/97,
e do decreto nº 2.745/98, obrigando a Petrobras, conseqüentemente, a cumprir as exigências da Lei nº 8.666/93,
parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as
que delimitam as competências do tCu (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da
atividade econômica do petróleo (art. 177). não me impressiona o teor da súmula nº 347 desta Corte, segundo
o qual ‘o tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos
atos do Poder Público’. A referida regra sumular foi aprovada na sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto
constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da emenda Constitucional nº 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos
não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. no entanto, é preciso levar em conta que o
texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a
inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao supremo tribunal Federal, operou
uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase
intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo
tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira
radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com
que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao supremo tribunal Federal mediante ação
direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla
função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada
desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da súmula 347 em face da ordem
constitucional instaurada com a Constituição de 1988” (Publ. 9.2.2009).
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
2.5.7 Costume
o costume deve ser igualmente visto com fonte secundária de direito Administrativo. se por costume os administradores adotam determinada interpretação das
normas jurídicas, a fonte primária será aquela de onde surgiu a norma — a lei, o decreto,
a jurisprudência etc. o costume contrário à lei é fonte tão somente de ilegalidade e não
pode ser arguido como pretexto para favorecer servidores públicos ou particulares
ou para manter práticas, infelizmente, ainda frequentes em nosso direito. tomemos
o exemplo das tradicionais licenças sabáticas concedidas em favor de professores de
algumas universidades públicas. trata-se de prática contra legem, haja vista não ter sido
prevista na legislação que cuida do regime jurídico destes servidores.
em relação aos costumes praeter legem, ainda que admitidos, não criam normas
que obriguem os administradores a sempre repeti-los. se de determinada prática resulta
circunstância que faz surgir direito para determinado particular, este direito deve ser
protegido. não possui, todavia, o particular direito de que referida prática seja mantida, sendo legítimo ao administrador modificar práticas ou costumes praeter legem e
recomendável à Administração Pública, na eventualidade de mudança do costume,
dar aos possíveis interessados a devida divulgação quanto aos novos procedimentos
a serem adotados no futuro.
2.6 Âmbito público e âmbito privado
A distribuição de competências entre as diferentes esferas de governo constitui o
ponto de partida para qualquer estudo do direito da organização administrativa. A sua
definição ocorre no próprio texto da Constituição Federal que define se o Estado será
unitário ou federado e o critério para a distribuição de competências entre as diferentes
entidades políticas acaso existentes.
no Brasil, a Constituição Federal estabelece a distribuição de competências em três
níveis: federal, estadual e municipal (CF, art. 18: “A organização político-administrativa
da república Federativa do Brasil compreende a união, os estados, o distrito Federal
e os municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”). essa primeira distribuição de atribuições define os níveis de organização do Estado brasileiro e o critério
para a distribuição de competências entre as três esferas.
Ao dispor sobre essa organização, a Constituição, além de definir e distribuir as
atribuições entre as pessoas jurídicas de direito Público dotadas de autonomia política — autonomia identificada, sobretudo, pela capacidade de legislar e de tributar —,
indica as tarefas em que o estado assume primazia sobre os particulares, em oposição
aos âmbitos privados de atuação em relação aos quais o estado assume as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento (CF, art. 174).
os limites entre o público e o privado se tornam cada vez menos precisos. serviços
até recentemente considerados de competência exclusiva do estado são transferidos aos
particulares e atividades privadas passam a sofrer forte interferência estatal (defesa do
consumidor, proteção das minorias, direito da concorrência etc.).
A prestação dos serviços de telefonia no Brasil pode ser citada como exemplo
desse processo de aproximação entre o público e o privado. em período inferior a cinco
anos, toda a prestação dos serviços de telefonia fixa e móvel passou das mãos do Estado
59
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Curso de direito AdministrAtivo
para as de empresas privadas. o estado, de prestador dos serviços, assume hoje posição
de regulador, de fiscalizador de tarefas desempenhadas pelos particulares.
A principal questão dessa discussão consiste em saber qual a função do estado
e quais os limites para sua atuação.
o estado democrático de direito existe como meio ou instrumento para a satisfação das necessidades da sociedade. A dúvida consiste em saber quais bens ou serviços devem ser fornecidos à sociedade pelo estado, e quais necessidades da sociedade
devem ser satisfeitas pelos próprios agentes privados. serviços sociais, como educação,
saúde, assistência aos idosos, por exemplo, são de competência exclusiva do estado?
serviços indicados no texto da Constituição Federal como públicos, tais como de telecomunicações, de geração, distribuição e fornecimento de energia elétrica, de serviço
postal, de transporte rodoviário de passageiros podem ser explorados como atividades
empresariais? Como proceder na transposição dos limites entre o público e o privado?
Trata-se, como afirmado, de questão extremamente complexa, cuja resposta deve
ser buscada na própria Constituição Federal.
o modelo de estado adotado pelo texto constitucional valoriza o setor privado
em relação ao setor público. somente podem ser consideradas tarefas públicas aquelas indicadas pelo texto da Constituição Federal (artigos 21, 23, 25 e 30 — o que não
impede, no entanto, que o poder público interfira no âmbito privado, principalmente
por meio do poder de polícia) por meio do qual o estado limita, condiciona e restringe
o uso de bens e o exercício de direitos ou de atividades, interferências cuja validade
deve ser examinada sob a ótica da necessidade da intervenção, da sua intensidade e da
razoabilidade dos instrumentos utilizados pelo estado.
A primazia do privado sobre o público é confirmada pela possibilidade de serviços
qualificados pela Constituição Federal como públicos terem sua execução delegada a
particulares por meio de concessões ou permissões de serviços públicos, ou ainda por
meio de convênios, termos de parceria ou contratos de gestão, que permitem a colaboração dos particulares com o poder público.
diante dessa nova realidade, em que o estado se vale com cada vez maior frequência e intensidade da participação dos particulares, qualquer tentativa de separar
serviço público de atividade empresarial torna-se vã. Ademais, atribuir a determinada
atividade a qualificação de serviço público não afasta a possibilidade de a sua exploração ser feita em caráter empresarial — a atividade desempenhada pelos Correios (CF,
art. 21, X), por exemplo, é considerada serviço público essencial (re nº 220.906-dF. DJ,
14 nov. 2002), o que em nada afasta a possibilidade de esta atividade ser explorada
como empresarial.
A definição pela Constituição Federal da competência material ou administrativa
da união (art. 21), comum (art. 23), dos estados (art. 25, §1º) e dos municípios (art. 30)
indica as áreas em que a atuação do estado é prioritária. isto não afasta, todavia, a possibilidade dessas mesmas atividades poderem ser exploradas em caráter empresarial,
sob regime de concessão ou de permissão de serviços públicos, em razão da previsão
contida no art. 175 do texto constitucional, que autoriza o poder público, desde que se
utilize de lei, a delegar a execução dessas atividades a particulares.
em relação a quaisquer outras atividades não mencionadas nos dispositivos
constitucionais acima citados, a interferência do estado somente deve ocorrer se puder
ser justificada em função de possíveis benefícios para a própria sociedade. Ademais,
CAPítuLo 2
AtividAde AdministrAtivA e direito AdministrAtivo
essas interferências estatais, para serem legítimas, conforme já mencionado, precisam
ser examinadas sob a ótica da necessidade da interferência, bem como da intensidade
com que essa interferência se verifica, da razoabilidade dos instrumentos de intervenção,
além da realização dos direitos fundamentais. demonstrada a presença desses pressupostos, a noção de subsidiariedade da atuação do estado, impõe ao estado o dever de
agir e de praticar todos os atos ou de desenvolver todas as atividades necessárias ao
atendimento das demandas sociais. esta conclusão é relevante, dentre outros aspectos,
porque distingue a subsidiariedade da atuação estatal, que defendemos, da ideia de
estado Liberal, cuja função precípua era assegurar o exercício dos direitos individuais.
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CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
3.1 surgimento do direito Administrativo
A clássica separação do direito em público e privado deriva do direito romano
e apresenta mais de dois mil anos de história.
o direito Administrativo, ou o regime jurídico administrativo, como frequentemente a ele nos costumamos referir, não obstante integre o grupo formado pelo direito
Público, possui pouco mais de dois séculos de existência.
A análise histórica das condições em que surgiram o estado de direito e o direito
Administrativo são fundamentais para que se possa compreender porque determinados institutos, como o princípio da legalidade ou o controle judicial da Administração
Pública, por exemplo, são tão importantes para a formação do estado moderno e para
o exame prospectivo da relação estado/sociedade. A partir desse exame poderemos
verificar a necessidade de constante atualização desses e de outros importantes conceitos
do direito Administrativo de modo a adaptá-los à realidade de uma sociedade muito
mais complexa do que aquela em que esses institutos foram criados.
Conforme examinamos nos capítulos anteriores, o direito Administrativo surge
para disciplinar a atividade executiva ou administrativa do estado,1 mas não de qualquer
estado, mas do estado Liberal.
o Estado de Direito, nascido com as revoluções liberais e inspirado na teoria da
separação de poderes de montesquieu, necessita apresentar mecanismos de contenção
do poder absoluto do estado, e esse papel cabe ao direito Administrativo.
nesse contexto, são três os objetivos básicos do estado de direito:
1. Assegurar o exercício das liberdades individuais;
2. reconhecer e assegurar o direito à propriedade privada; e
3. estabelecer regras de responsabilidade patrimonial para o estado.
o papel histórico desempenhado pelo direito Administrativo dentro do estado
Liberal foi limitado: atuar como mecanismo dentro do sistema de freios e contrapesos
entre os poderes ou funções estatais a fim de evitar interferências indevidas da função
1
“indeed, what is Administrative Law about if not the control of discretion?” (SCHWARTZ. Administrative Law,
p. 652).
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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executiva do Estado na órbita privada. Enfim, a função histórica do Direito Administrativo
foi de contenção do estado frente aos particulares e o principal instrumento para exercer
esse poder de contenção foi o princípio da legalidade.
A etapa seguinte corresponde ao surgimento do Estado Social ou do Bem-estar
social (Welfare State), consagrado inicialmente pela Constituição mexicana de 1917 e,
em seguida, na Constituição de Weimar, de 1919. De mero espectador, o Estado assume
posição ativa na prestação de serviços públicos a fim de assegurar à população direito
à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância (CF, art. 6º).
vê-se, aqui, a primeira necessidade de adaptação do regime jurídico responsável pela definição das regras reguladoras do exercício desse novo amplo espectro de
atividades que formava o âmbito das atribuições do estado.
Os avanços seguintes por que o Estado passa não significam, nem podem significar, o abandono da visão e dos objetivos do estado social. o Estado Democrático traz para
o ordenamento jurídico a necessidade de conformação de todas as funções do estado
aos direitos fundamentais e a incorporação do princípio democrático. de acordo com
essa concepção, o Estado não é fim, mas apenas o meio para atender às necessidades
de toda a população, e não apenas daquela que obtenha a maioria no Parlamento.
Alain Touraine afirma que a democracia não é o triunfo do “universal sobre os particularismos, mas como o conjunto de garantias institucionais que permitem combinar
a unidade da razão instrumental com a diversidade das minorias, o intercâmbio com
a liberdade. A democracia é uma política de reconhecimento do outro”.2 Prossegue o
autor: “A democracia não nasce só do estado de direito, mas da apelação a princípios
éticos — de liberdade, de justiça”.3
A incorporação do princípio democrático ao estado social e de direito constitui
salto importante a ser dado pelo ordenamento jurídico público, mas sem afastar as
premissas do estado de direito ou do estado social.
Ocasionalmente afirma-se que o Estado é representante do povo, e que esse
poder de representação é transferido à Administração Pública, ou, mais precisamente,
aos chefes do Executivo. Essa afirmação constitui equívoco histórico. A Administração
Pública não representa quem quer que seja. ela é o instrumento de que se vale o estado
para realizar os seus fins constitucionais. A representação do povo é feita em caráter
exclusivo e indelegável pelo Poder Legislativo, o que explica a importância assumida
pela lei como instrumento da expressão da vontade da população.
La Ley no es simplemente, como la Ley del rey absoluto, un mandato general; por el
contrario, es el instrumento adecuado para articular precisamente las libertades, que
siendo propias del hombre son entre sí recíprocas. (...) He aquí por qué la Ley expresa la
esencia misma de la democracia: la libertad, la igualdad, la auto disposición de la sociedad
sobre sí misma.4
Como consequência do princípio democrático, a lei passa a desempenhar o papel
fundamental de expressar a vontade da população e de impor o limite ao exercício da
2
3
4
tourAine. Qu’est-ce que la démocratie?, p. 11.
tourAine. Qu’est-ce que la démocratie?, p. 37. tradução livre.
GArCíA de enterríA. Democracia, jueces y control de la administración, p. 26.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
atividade executiva do estado — daí a construção do modelo a partir do qual ao estado
somente é dado fazer o que lei autorizar. dentro do modelo de separação dos poderes
desenhado por montesquieu, a função do Poder executivo será basicamente a de dar
executoriedade à lei parlamentar e a função do Poder Judiciário, a de verificar o cumprimento das leis pelo executivo.
o novo salto que se cobra do estado está ligado mais à forma como ele atua do que
ao seu conteúdo. diante da incapacidade do estado de responder aos anseios da população, a primeira fórmula apresentada durante a década de 90 para a solução do problema
foi a redução do Estado. Verificou-se a sua desqualificação como instrumento capaz de
satisfazer às funções sociais ou democráticas que dele se esperava. esta falsa percepção
da incapacidade do estado de atender às expectativas da sociedade gerou o chamado
“choque de eficiência” e provocou o processo que se tornou conhecido como a “fuga do
direito Administrativo”.
Em nome da eficiência, buscou-se no Direito Privado a regulação da Administração Pública, fenômeno que, ainda que sujeito a crítica, não pode ser negligenciado.
Constata-se que o regime Jurídico da Administração Pública não se restringe ao regime
Jurídico administrativo, mas também alcança o direito Privado, utilizado, agora, com
muito mais frequência para regular a atuação administrativa do estado.
Como separar, então, o regime jurídico administrativo do regime jurídico da
Administração Pública?
A resposta a esta pergunta deve ser encontrada em algumas características
presentes apenas no regime administrativo, que, a rigor, jamais se afasta totalmente
do direito Público, haja vista em toda atuação da Administração Pública sempre, em
alguma medida, estarem presentes regras ou princípios públicos que conferem a ela prerrogativas em face dos particulares, prerrogativas inerentes ao direito Administrativo.
Hoje, avaliados os erros e os acertos desse “choque de eficiência”, vê-se que melhor
do que desqualificar o Estado como instrumento para a realização dos direitos sociais e
para o atendimento das necessidades da população é dotá-lo de instrumentos capazes
de exercer esse mister. surge então o Estado cooperativo, que busca no setor privado o
apoio necessário ao exercício de afazeres públicos. A função do estado cooperativo
é a de dotar a Administração Pública de instrumentos capazes de se relacionar com
os segmentos privados empresariais e não empresariais de modo a atender, de modo
eficiente, as necessidades da população.
vê-se que do contexto em que surgiu o direito Administrativo, como o segmento
do Direito Público responsável pela fixação de limites ao exercício da atividade administrativa do estado, aos dias atuais, muito já se fez e, todavia, alguns operadores do
direito Administrativo ainda continuam com a mesma visão do regime administrativo
vigente no estado Liberal.
A criação de um novo modelo para o direito Administrativo, ou seja, a criação do
novo regime jurídico administrativo não pode abandonar avanços essenciais à população
verificados nos últimos 200 anos de história, sobretudo em relação aos valores sociais
e democráticos. não podemos, todavia, manter para os dias atuais, de globalização,
de avanços tecnológicos, de surgimento de novas demandas sociais, a mesma visão do
direito Administrativo do estado Liberal, ou querer que o estado seja capaz de atender
às expectativas que nele são depositadas com os mesmos instrumentos de atuação do
estado Liberal, totalmente destoantes dos tempos e das necessidades atuais. É em torno
desses novos desafios que devemos buscar construir o novo regime administrativo.
65
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
66
3.2 regime jurídico administrativo: níveis de realização
vê-se que do contexto histórico em que se formou o direito Administrativo aos
dias atuais, muito foi feito e construído em relação à teoria do estado, sobretudo no
que diz respeito ao dever de realização dos direitos fundamentais e dos interesses público
e social.
o regime jurídico administrativo não se restringe, hoje, ao exame da lei. sendo ele
o ramo do Direito Público que fixa os princípios e as regras que pautam a atuação das
atividades administrativas do estado, e considerando que a função do estado democrático
é a de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,
o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”, conforme
consta do Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, todas as normas jurídicas e, em
especial, as de direito Administrativo, devem ser interpretadas a partir dessa ótica: o
estado existe para realizar o bem-estar da sociedade, para atender às necessidades da
população, enfim, para ser instrumento de realização dos direitos fundamentais.5
Com vistas ao exame sistêmico do regime administrativo, podemos apresentá-lo
em três diferentes níveis: constitucional, legal e infralegal.
3.2.1 nível constitucional: teoria Geral do direito Administrativo
o primeiro nível em que se realiza o regime jurídico administrativo é no plano
constitucional. É neste nível onde se forma a Teoria Geral do Direito Administrativo.
o direito Administrativo é o ramo do direito Público que estabelece as regras e
os princípios de que se vale o estado para exercer sua função administrativa.
Quando se examina a Constituição Federal de 1988, constata-se que as principais
normas administrativas têm sede constitucional, e que essas normas constitucionais
servem de parâmetro para todo o sistema que compreende o regime administrativo.
As regras básicas relativas aos principais aspectos que compõem o direito Administrativo — tais como: princípios administrativos, organização administrativa, processo
administrativo, serviços públicos, incluídas as concessões e permissões, licitações e
5
Acerca da importância dos direitos fundamentais na formação do direito atual e do seu papel de regulação do
poder, em 19 de janeiro de 2004, reunidos na Academia Católica da Baviera, em munique, o pensador alemão
Jürgen Habermas e o então Cardeal Joseph ratzinger, atual Papa emérito Bento Xvi, promoveram interessante
análise sobre “as bases pré-políticas e morais do estado democrático”. seguem alguns trechos da resposta
apresentada pelo então Cardeal:
“A tarefa de colocar o poder sob a medida do direito remete, portanto, à pergunta seguinte: como se forma o
direito e o direito deve ser constituído a fim de que seja veículo da justiça, e não um privilégio daqueles que
têm o poder de estabelecer o direito? A questão de que o direito não deve ser um instrumento de poder de
poucos, mas a expressão de interesse comum a todos, parece resolvido, pelo menos pelos instrumentos de formação democrática da vontade. Apesar disso, me parece, permanece ainda uma pergunta. Já que dificilmente
há unanimidade entre os homens, somente às vezes permanece a delegação com instrumento imprescindível
da formação democrática da vontade, outras vezes, a decisão da maioria, com o que, segundo a importância da
pergunta, ordens de grandeza distintas podem ser empregadas para a maioria mas também as maiorias podem
ser cegas ou injustas. A história nos mostra de maneira claríssima. Quando uma maioria, por maior que seja,
reprime, com leis opressoras, uma minoria, por exemplo, religiosa ou racial, pode-se, nesse caso, ainda falar de
justiça, de direito de modo geral? os tempos modernos formulam um acervo de tais elementos normativos e
diversas declarações de direitos humanos e os retiram do jogo das maiorias. Agora, com a consciência presente,
podemos nos dar por satisfeitos com a evidência interna desses valores. Há em vigor, portanto, valores em si,
os quais decorrem da essência do ser humano e por isso são intocáveis por todos os portadores dessa essência”
(Folha de S.Paulo, São Paulo, 24 abr. 2005. Caderno Mais. Tradução de Érika Werner).
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
contratos administrativos, servidores públicos, entre outros — estão disciplinadas na
Constituição, cabendo aos demais níveis — legal e infralegal — do direito Administrativo papel, hoje, secundário na composição e formação do regime administrativo.
A lei que disciplina o processo administrativo no plano federal, por exemplo, Lei
nº 9.784/99, por acaso teria opção de adotar soluções diversas daquelas que constam
em seu texto? Poderia esta lei deixar de reconhecer os princípios do contraditório, da
ampla defesa, da segurança jurídica, da necessidade de fixação de prazo para a Administração Pública anular seus atos, de delegação de competência, de motivação? o
papel assumido pela lei em matéria de processo administrativo, bem como em todos
os demais temas mencionados (contratos, licitações, serviços públicos etc.), é quase
sempre o de tratar de aspectos formais e, salvo em alguns aspectos pontuais, pode a
lei inovar sem que esteja o legislador compelido por força de normas constitucionais
a adotar determinadas soluções constitucionais. daí a necessidade de se reconhecer
que o primeiro plano do regime administrativo corresponde àquele que indicamos no
Capítulo 1, que compreende a teoria Geral do direito Administrativo.
As normas da teoria Geral do direito Administrativo compõem o núcleo do
regime jurídico administrativo, ou, segundo o modelo kelseniano, formam o ápice da
pirâmide e exigem que todas as demais normas do regime não apenas estejam de
acordo com este núcleo, mas que busquem realizá-lo. exige-se do legislador não apenas
o dever de aprovar leis que não colidam com as normas do núcleo, mas que as realizem.
Questão mais teórica do que prática consiste em saber qual é o primeiro plano
do regime jurídico de um país, e não apenas o regime administrativo, se são as normas
constitucionais ou os direitos fundamentais. trata-se de questão de muito pouca utilidade
prática na medida em que todas constituições democráticas modernas adotam como
parte integrante e fundamental de seus textos a realização dos direitos fundamentais.
torna-se, portanto, desnecessário buscar a primazia de um sobre o outro na medida em
que um — o texto constitucional — adota o outro — os direitos humanos — como parte
de seu corpo — ainda que não se possa negar que estes últimos gozam de importância
especial na medida em que servem de balizamento para a interpretação dos dispositivos
constitucionais.
dentro da teoria Geral do direito Administrativo, os princípios da Administração Pública desempenham papel fundamental. deles nos ocuparemos mais adiante.
3.2.2 nível legal
A lei que, ao menos em tese, é o instrumento democrático e que representa a
vontade geral do povo continua a desempenhar papel fundamental no regime jurídico
administrativo.6
muito se tem falado sobre a crise da lei. esta crise existe, porém não se deve a
essa crise a perda da importância da lei no regime administrativo. A crise da lei decorre,
6
não é objeto desse trabalho examinar as disfunções do processo democrático. todavia, podemos apenas apresentar a grave crise por que atravessam os sistemas democráticos na medida em que os legisladores, eleitos para
representar o povo, por diversas razões (submissão ao executivo, atuação de grupos organizados ou pura e simples corrupção), afastam-se totalmente de seu papel de representação e comprometem a máxima democrática
segundo a qual democracia é o governo do povo pelo povo. A salvação da democracia reside no fato de que, por
pior que ela seja, por maior que seja a falta de credibilidade da população em seus representantes, ela sempre
será melhor do que qualquer ditadura.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
antes, da perda do seu caráter de abstração e de generalidade. Legisla-se para atender
a questões particulares. diante de determinado fato que tenha tido repercussão nos
meios de comunicação, no dia seguinte já se aprova novo texto legal.
A crise da lei decorre igualmente do processo de “captura” do Poder Legislativo
pelo executivo. o legislador, que deveria agir como representante do povo e aprovar
leis que limitariam a atividade do administrador, principal instrumento do sistema de
freios e contrapesos da teoria da separação de poderes, diante do processo de captura,
passa a aprovar somente as leis que o executivo deseja. A prova disso está no fato de
que a grande maioria das leis aprovadas pelo Parlamento são de iniciativa do chefe do
executivo.
A perda da importância da lei no direito Administrativo não está, portanto,
diretamente associada à mencionada crise do direito. ela se deve, em primeiro lugar,
à valorização que o ordenamento jurídico confere às normas de estatura constitucional.
Conforme visto no item anterior, os parâmetros básicos e definidores do regime jurídico
administrativo se encontram no corpo da Constituição Federal, sobretudo quando esta
estabelece de modo expresso ou implícito os princípios constitucionais que irão nortear
o legislador em seu processo de criação legislativa.
o segundo fator responsável pela perda da importância da lei corresponde à
tendência de valorização das normas infralegais, conforme examinaremos em seguida.
3.2.3 nível infralegal
o terceiro plano do regime administrativo compreende as normas previstas em
decretos, regulamentos, portarias, instruções normativas etc.
não se pretende, de modo algum, admitir inversão da hierarquia normativa. As
normas infralegais devem observar estritamente o que dispõe a lei, não podendo, em
hipótese alguma, contrariá-la. o aumento da importância dos textos infralegais se deve
a alguns fatores de ordem mais prática do que propriamente jurídica.
As normas administrativas devem sempre estar em condições de responder de
modo satisfatório às necessidades da população. responder satisfatoriamente às demandas
da população significa dizer que a Administração deve ser capaz de apresentar soluções
rápidas, tecnicamente adequadas e socialmente justas. A rapidez com que surgem novas
demandas sociais impede que lei formal — em função do lento processo legislativo — seja
capaz de atender às necessidades da população.
Algumas circunstâncias práticas demonstram a incapacidade da lei de atender
às demandas da população. tomemos o excesso de medidas provisórias que, desde a
vigência da Constituição Federal de 1988, têm sido objeto de permanente crítica. Por
que todos os governos editam tantas medidas provisórias? se o Presidente da república pode enviar ao Congresso projeto de lei e solicitar a sua tramitação em regime
de urgência, por que se sujeitar a críticas e editar medida provisória? A resposta é evidente: porque com a medida provisória se obtém resposta normativa imediata para a
questão que reclama regulamentação, rapidez que não será encontrada na tramitação
do projeto de lei.
A competência normativa conferida às agências reguladoras demonstra a necessidade de regulação técnica de determinadas matérias, outro aspecto que nem sempre
se alcança com a lei. não se pode querer, a partir dessa constatação, inferir que lei não
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
possa tratar de questões técnicas. A rigor, observado o plano constitucional, o legislador
possui ampla liberdade de criação, inclusive no campo técnico. em muitas situações,
é o próprio legislador que transfere ampla competência normativa às entidades administrativas quando confere discricionariedade técnica a entidades administrativas especializadas em determinados temas. estas normas técnicas são editadas por unidades
administrativas — especialmente por agências reguladoras — em observância ao que
dispõe a própria legislação
A discricionariedade administrativa decorre da lei. Para que algum órgão ou entidade possa exercer discricionariedade, é necessário que lei tenha conferido a essa unidade
administrativa a competência necessária para o exercício dessa potestade. A discricionariedade técnica, espécie de discricionariedade administrativa, fonte da capacidade das
agências reguladoras para normatizar determinadas situações, decorre diretamente da lei,
o que afasta qualquer pretensão de se enxergar no aumento da importância que os textos
infralegais assumem no Direito Administrativo a existência de conflito ou de crise entre o
órgão ou entidade administrativa que exerce competência normativa e o Poder Legislativo.
Outra hipótese em se verifica expressa delegação de competência ocorre quando
a lei se vale da técnica de legislar em branco. nesta situação, o legislador expressamente
remete ao administrador a função de completar o conteúdo de certas leis por meio da
edição de atos normativos.
diante desse novo contexto, poder-se-ia falar em perda ou redução da importância do legislador ou do Poder Legislativo? Isto não ocorre. O que se verifica é apenas
a mudança de função dos órgãos legislativos. estes, a quem historicamente se atribuía
exclusividade no processo de criação das normas de direito Administrativo, têm esse
papel reduzido, e passam a exercer a nova função na distribuição das competências
do estado. A transferência para o executivo de parcela da competência normativa do
Estado cria para o legislador novo papel, de fiscal do exercício das atividades administrativas, inclusive no que diz respeito ao exercício da competência normativa, podendo,
por exemplo, sobrestar ato normativo do executivo que extrapole os limites do poder
regulamentar (CF, art. 49, v).
É importante observar que a ampliação da importância normativa dos órgãos
executivos possui limites bem definidos:
1. A criação de órgãos ou entidades públicas depende de lei;
2. o exercício de qualquer atribuição por parte das unidades administrativas que
importe na criação de obrigações, ou na restrição ou limitação do exercício de
qualquer direito ou atividade por parte de particulares depende de lei;
3. se a Constituição Federal determina ou requer a normatização de determinada
matéria por meio de lei, norma infralegal não pode regular o tema.
em relação à primeira hipótese, remetemos o leitor para o Capítulo 1 deste livro,
na seção em que se examina o princípio da reserva institucional.
o exercício de atribuições por parte da Administração Pública — segunda limitação ao exercício normativo pelo executivo — merece algumas considerações adicionais,
a começar pelo fato de que as atividades administrativas estatais se dividem em duas
categorias básicas:
1. prestacionais;
2. interventivas.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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no exercício das suas atividades prestacionais, o estado põe à disposição da
sociedade utilidades, presta serviços, cria programas de governo etc. Ao exercer a sua
potestade interventiva, o estado, ao contrário, limita o exercício de direitos, de atividades. se lei, por exemplo, confere a determinado órgão competências genéricas para
exercer atividades prestacionais, é absurdo querer que cada uma das atividades desse
órgão seja prevista em lei. desde que haja previsão orçamentária, e o órgão possa legitimar sua atuação em competência legal genérica, ele pode desenvolver determinadas
atividades — como um programa de governo — sem que isso importe em violação
de qualquer preceito constitucional. se o órgão exerce atribuições interventivas, que
objetivam limitar o exercício de direitos e criar obrigações para os particulares, cada
atividade ou a prática de qualquer ato depende de expressa e prévia previsão legal,
afinal, o Estado não pode exigir que alguém faça ou deixe de fazer algo, salvo em virtude de lei (CF, art. 5º, ii).
exemplo evidente de violação da terceira hipótese de limitação ao exercício de
competência normativa infralegal corresponde ao decreto nº 2.745/98, que determina,
dentre outros aspectos, que as licitações da Petrobras não se submetem à lei, mas às normas do próprio decreto. nos termos dos artigos 22, XXvii, e 173, §1º, o regime jurídico
das empresas estatais exploradoras de atividades empresariais deve ser disciplinado
por lei. ora, se o próprio texto constitucional exige que lei seja o instrumento regulador
de determinado tema, decreto ou qualquer outro texto infralegal, não pode, sob pena
de inconstitucionalidade, tratar desse assunto. É evidente que inclusive nessas hipóteses, pode o legislador remeter ao executivo o tratamento de alguns aspectos pontuais,
técnicos e bem definidos na própria lei. Não se admite, ao contrário, que a Constituição
Federal determine que lei regule certo assunto, e a lei simplesmente transferir toda a
regulação ao executivo.7
3.3 regime jurídico administrativo e interesse público
o Estado cooperativo — que compreende o estado de direito, social e democrático
— tem objetivos básicos que lhes são conferidos pelas Constituições de cada país. no
caso do Brasil, o art. 3º do texto constitucional estabelece como objetivos fundamentais
da república Federativa do Brasil:
i - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
ii - garantir o desenvolvimento nacional;
iii - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais;
iv - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.
A fim de que o Estado brasileiro, ou qualquer outro sujeito a regime democrático,
possa cumprir seus objetivos, é necessário que o ordenamento jurídico lhe confira determinadas prerrogativas, e não se pode querer que a realização de tão elevados misteres seja
alcançada por meio de instrumentos existentes no próprio setor privado, no mercado.
7
não obstante tais considerações, necessário registrar que a Petrobras obteve liminar no stF que garante à empresa
a aplicação do Regulamento de Procedimento Licitatório Simplificado (Mandado de Segurança nº 25.888).
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
não se pode negar, ao menos em sociedades como a brasileira, que padece de
profundos problemas de desigualdades sociais, econômicas e tecnológicas, que os instrumentos do mercado não são capazes de organizar a sociedade de modo a buscar a
realização dos objetivos da nossa república. deve ser reconhecido que sem a participação dos setores privados empresariais e não empresariais o estado não pode, sozinho,
buscar alcançar referidos objetivos. sem o estado, os segmentos privados também não
são capazes de se articular a fim de superar as dificuldades estruturais que fazem com
que em nossa sociedade, até nos dias atuais, haja fome, pobreza, falta de assistência
social, analfabetismo e diversas outras mazelas que deveriam há muito tempo ter sido
eliminadas.
As prerrogativas criadas pelo direito Administrativo, e que constituem a sua
principal característica, existem para permitir a realização dos objetivos do estado de
direito, social e democrático, e essas prerrogativas estão diretamente relacionadas ao
atendimento do interesse público.
Indiscutível que o Estado é o titular mais qualificado para a formulação e o
exercício desses interesses. não possui, todavia, a exclusividade em nenhum desses
dois momentos — definição do que é o interesse público ou legitimidade para o seu
exercício. o conceito de interesse público não é metajurídico. não é possível admitir a
existência de interesses públicos previamente definidos fora da ordem jurídica, ordem
jurídica que pressupõe a observância dos direitos fundamentais, fonte de inspiração
para a elaboração de inúmeras regras e princípios constitucionais. o interesse público
será concretizado por meio do processo de elaboração do direito Positivo. Cabe à Constituição Federal, como principal fonte do Direito Administrativo, e à lei identificarem o
que é o interesse público, definir como se deve proceder para dar a ele executoriedade
e quem possui legitimidade para, em seu nome, exercer alguma prerrogativa. de se
observar, todavia, a necessidade da legislação se conformar com a Constituição que
alberga em seu núcleo os direitos fundamentais.
A definição do interesse público decorre, em primeiro lugar, da realização dos
direitos fundamentais concretizados em qualquer texto constitucional moderno, inclusive na Constituição Federal brasileira de 1988. interesse público é aquele que realiza
direito fundamental.8
A fim de dar maior racionalidade e segurança ao sistema jurídico, cabe ao legislador definir os parâmetros para o exercício desses direitos. Não é possível inferir-se que
o estado, ao exercer a sua função executiva, seja o único titular ou o único legitimado
a se utilizar de prerrogativas decorrentes desses interesses. em inúmeras situações, o
direito Positivo, particularmente a Constituição Federal, confere ao particular a legitimidade para realizar e defender o interesse público, ainda que esse possa ser utilizado
como instrumento contrário aos interesses da própria Administração Pública — o que
se verifica, por exemplo, quando juiz dá provimento a ação popular para determinar a
paralisação de obra pública que não observe exigências ambientais.
o direito Positivo confere com mais frequência ao estado prerrogativas para a
realização de interesses públicos. não é possível, todavia, inferir-se que o estado seja
o seu único titular.
8
sobre o tema, marçal Justen Filho anota: “o interesse público se perfaz com a satisfação de necessidades de
segmentos da população, em um momento concreto, para realizar os valores fundamentais. o interesse público é o
interesse da sociedade e da população, mas voltado à realização dos valores de mais elevada hierarquia” (Conceito
de interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, p. 129).
71
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Curso de direito AdministrAtivo
Desse modo, em primeiro lugar, merece ser qualificado como público apenas
aquele interesse que pela sua importância seja elevado à categoria de interesse geral,
de toda a sociedade, e em cujo nome pode-se exigir limitação ou restrição de interesse
privado. É certo que na elaboração das normas de direito Administrativo, que disciplinam o exercício da função executiva do estado, o interesse público interfere para
conferir prerrogativas a determinados titulares ou impor limites ou restrições a outros.
A rigor, a participação do interesse público no processo de elaboração legislativa está
longe de ser exclusividade do Direito Administrativo. Afinal, não está o interesse público
sempre presente na elaboração de toda e qualquer norma constitucional, ou de direito
Penal, de modo talvez ainda mais intenso do que ocorre na elaboração da norma de
direito Administrativo?
A titularidade para o exercício de interesses públicos decorre, de forma imediata,
do direito Positivo, principalmente da lei, e de modo mediato dos direitos fundamentais.
sendo decorrentes do direito Positivo, as prerrogativas conferidas em nome de referidos
interesses são exercidas nos estritos limites da lei. Além disso, possuem legitimidade
para exercer prerrogativas decorrentes dos interesses públicos, no âmbito estatal,
alguns órgãos independentes, como as defensorias públicas ou o ministério Público,
que postulam e zelam sistematicamente pela defesa dos interesses públicos. A ordem
jurídica confere a titularidade de interesses públicos e, portanto, a legitimidade para o
seu exercício aos particulares, à sociedade civil organizada — sindicatos, associações,
fundações, cooperativas etc.
em regimes democráticos, interesses públicos são interesses gerais da sociedade
que se sujeitam a processo de elevação a esta categoria especial. o processo legitimado
a alçar interesses gerais à categoria de interesses públicos é o processo legislativo, e
a Constituição Federal e a lei são os instrumentos hábeis à declaração dos interesses
públicos.
Feitos esses esclarecimentos, pode-se perceber facilmente que as prerrogativas
conferidas pelo direito Administrativo estão diretamente relacionadas à realização dos
interesses públicos.
o poder do estado de desapropriar bens, a presunção de legitimidade dos atos
administrativos, a prerrogativa do estado de exigir, por meio de atos unilaterais, determinados comportamentos positivos ou negativos dos particulares, o poder de anular
ou de revogar seus próprios atos, de modificar unilateralmente seus contratos são
alguns exemplos de prerrogativas que o direito Administrativo confere à Administração
Pública. todas essas prerrogativas existem e devem ser exercidas tendo como único e
exclusivo objetivo a realização do interesse público.
Poderíamos concluir que o binômio prerrogativas públicas/interesses públicos
confere ao regime jurídico administrativo a sua principal característica, e esta pode
ser traduzida pela seguinte expressão: o regime jurídico administrativo se caracteriza pela
realização do interesse público.
em razão dessa constatação, de que é o regime administrativo que assegura os
instrumentos necessários à consecução dos interesses públicos, parece ser um contrassenso a Administração Pública ir, com cada vez mais frequência, buscar no direito
Privado regras para disciplinar sua atuação.
esse contrassenso, como dito, é aparente. em primeiro lugar, ainda que a Administração possa servir-se do direito Privado, há aspectos do regime administrativo
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
inafastáveis na atuação da Administração Pública, especialmente no que concerne à
aplicação dos princípios gerais da Administração Pública. ou seja, o direito Privado
aplicável à atividade administrativa do estado não derroga ou afasta todo o direito
Administrativo.
em segundo lugar, não existe contrassenso na utilização do direito Privado pela
Administração Pública, porque somente algumas atividades administrativas do estado
podem ser disciplinadas pelo direito Privado — sobretudo aquelas prestacionais, em
que a Administração não impõe sua vontade aos particulares, mas simplesmente lhes
presta serviços ou lhes põe à disposição utilidades. É possível em situações como essas,
de atividades prestacionais, a Administração Pública utilizar o direito Privado, porque
simplesmente não se faz necessária a utilização de qualquer prerrogativa pública para
que o interesse público possa ser alcançado. Quando a Administração, diretamente
ou por meio de entidade privada, presta serviços assistenciais de apoio a deficientes
físicos ou mentais, por exemplo, qual a necessidade de ser utilizada qualquer prerrogativa pública? isto não impede, no entanto, que a prestação desses serviços, ainda que
tenha sido delegada a sua execução a particulares, observe padrões de moralidade, de
publicidade, de impessoalidade etc., porque, como já afirmado, o Direito Privado nunca
derroga totalmente o direito Administrativo.
Quando, todavia, a Administração Pública exerce sua atividade interventiva na
esfera privada — restringindo o exercício de atividades empresariais ou profissionais,
condicionando o uso da propriedade privada, exercendo, enfim, o seu poder de polícia
—, as normas de que ela vai-se valer são necessariamente as do regime administrativo.
3.4 interesse público: planos de realização
A grande maioria da doutrina pátria segue os ensinamentos do administrativista
italiano renato Alessi, para quem o interesse público se divide em dois:
1. interesse público primário, que corresponde ao estrito cumprimento da lei; e
2. interesse público secundário, entendido como a necessidade de a Administração obter vantagens para si.9
A partir dessa separação, conclui-se que o interesse público secundário somente
é legítimo na medida em que se verifique o cumprimento da lei, entendido este último
como o interesse público primário.
essas considerações são da mais alta importância para a compreensão do que é
o interesse público, e, sobretudo, para quebrar a percepção de que os administradores
podem tudo para obter vantagens para a Administração. o limite para a obtenção de
vantagens é a lei, e, dentre as opções de agir que a lei faculte ao administrador, ele deve
optar por aquela que mais benefício traga para o estado.
essas considerações são procedentes e necessárias para a compreensão do que é
o interesse público. entendemos, todavia, que considerações de outra ordem também
possam ser aduzidas de modo a identificar com mais precisão como surgem esses
interesses e como deve o administrador (ou o particular incumbido de executar tarefa
pública) agir para realizá-lo.
9
ALessi. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano apud BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 57.
73
74
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Curso de direito AdministrAtivo
o regime jurídico administrativo está, conforme examinamos no item anterior,
diretamente relacionado à realização do interesse público, que constitui a própria razão
de ser do direito Administrativo.
o processo para a realização do interesse público deve ser examinado em três
planos sequenciais, sob pena de se frustrarem as expectativas incorporadas no ordenamento jurídico e de ocorrerem desvios.
são os seguintes os planos em que se devem realizar os interesses públicos:
1. Plano constitucional – ou dos direitos humanos;
2. Plano legal;
3. Plano econômico – ou da economicidade.
o processo de elevação de determinados interesses à categoria de interesse público está diretamente relacionado à busca pela realização dos fins do Estado. No caso
particular do estado brasileiro, o exame dos seus objetivos que estão elencados no art. 3º
da Constituição Federal leva-nos à conclusão de que, além do desenvolvimento nacional (art. 3º, ii), todos os demais estão diretamente vinculados à observância dos direitos
humanos, especialmente no que concerne à realização da dignidade da pessoa humana.
o primeiro plano de realização do interesse público é o da busca pela realização
dos direitos humanos, sobretudo em relação ao princípio da valorização da dignidade
da pessoa humana. esse é o ponto de partida para o exame do interesse público. de
nada adianta o estrito cumprimento da lei, ou a obtenção de vantagens para o estado
ou para a Administração Pública se isso importa em afastamento ou o descumprimento
dos direitos fundamentais. de se observar que os direitos humanos estão incorporados
nos textos constitucionais e que, portanto, a interpretação e aplicação de todos os demais
textos normativos infraconstitucionais devem ocorrer tendo (os direitos humanos e os princípios constitucionais como parâmetro) como parâmetro os referidos direitos e os próprios
princípios constitucionais.
A lei, que nos sistemas democráticos é o instrumento mais abalizado para expressar o interesse público, deve ser interpretada e aplicada tendo em vista essa superestrutura normativa. isso evita que a lei seja simplesmente a manifestação de vontade
da maioria, mas seja, desde um ponto de vista axiológico ou valorativo, o instrumento
para a maioria expressar sua vontade em conformidade com limites ou parâmetros que
lhes estão sobrepostos e reclamam o seu cumprimento, a sua plena realização, e não
apenas a sua não infringência. impõe-se ao legislador o dever positivo de, ao legislar,
criar mecanismos para a realização dos direitos humanos.
esse primeiro nível vincula não apenas o legislador, mas o administrador, aquele
responsável pela aplicação da lei. tomemos a hipótese de determinado agente público que,
diante de infração administrativa praticada por empresa disponha de duas opções ou
sanções que poderiam ser indistintamente aplicadas: multa ou interdição de estabelecimento. A aplicação do princípio in dubio pro libertatis, surgido ainda nos primórdios do
estado de direito, deve conduzir a Administração a optar pela sanção que não importe
no fechamento do estabelecimento. É evidente que, se em função da infração cometida,
a lei requerer a aplicação da sanção mais grave, ela deve ser aplicada. Havendo dúvida,
deve-se optar pela sanção menos grave igualmente em função da aplicação do princípio
da proporcionalidade.
mais do que o cumprimento da lei — que constitui o segundo nível de realização dos interesses públicos —, o primeiro nível em que se deve buscar a realização do
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
interesse público primário está diretamente relacionado à prevalência e à necessidade
de conformação da lei e dos atos praticados pela Administração aos direitos humanos.
o segundo plano em que os interesses públicos devem-se realizar é no plano legal.
A lei, nos regimes democráticos, é a expressão de vontade da maioria representada
nos parlamentos, observados os parâmetros constitucionais de realização dos direitos
fundamentais. Ainda que se verifique certa perda na importância da lei na formação do
regime administrativo, perda que se pode atribuir em grande parte à maior importância
que se tem atribuído diretamente aos textos constitucionais, ela continua a desempenhar função da mais alta relevância no sistema jurídico administrativo. não obstante
se constate que várias das prerrogativas públicas criadas para permitir a realização dos
fins do Estado decorram diretamente do texto constitucional, a função da lei, em várias
situações, é a de fixar limites ou de definir a forma ou o procedimento a ser observado
pelo administrador na utilização dessa prerrogativa.
tomemos, aqui, a súmula nº 473 do stF, que reconheceu à Administração Pública
o poder de anular ou revogar seus atos, independentemente de intervenção judicial.
o poder da Administração de anular seus próprios atos deve estar sujeito a limites.
Antes mesmo da edição da Lei nº 9.784/99 já era reclamada a fixação de limite temporal
para a Administração poder exercer a prerrogativa de anular atos administrativos, haja
vista ser incompatível com o princípio da segurança jurídica a possibilidade de o poder
público poder exercê-la a qualquer tempo. Coube à lei a fixação do limite de cinco anos
para o exercício da prerrogativa pública — art. 54 da citada Lei nº 9.784/99.
em matéria de desapropriação, a prerrogativa da Administração de invocar
necessidade ou utilidade pública ou interesse social e privar alguém de sua propriedade
decorre do texto constitucional (art. 5º, XXiv). os procedimentos a serem observados
pela Administração se encontram definidos em lei.
não se pode concluir que lei não possa criar prerrogativa. em muitas situações,
a prerrogativa pública necessária à realização do interesse público não está prevista
na Constituição Federal, mas é criada pela lei. Isso se verifica, por exemplo, no poder
da Administração de unilateralmente rescindir seus contratos (Lei nº 8.666/93, artigos 58,
ii, 77, 78 e 79, i).
A grande maioria das prerrogativas necessárias à realização dos interesses públicos decorre de maneira explícita (poder de desapropriar, por exemplo) ou implícita
(presunção de legitimidade dos atos administrativos) da própria Constituição Federal,
cabendo à lei papel secundário no processo de criação das prerrogativas públicas.
não se pode admitir a criação de prerrogativas públicas por meio de instrumentos
infralegais. Aceitamos que decretos, resoluções, instruções normativas etc. sejam fonte
do direito Administrativo. Falta-lhes, todavia, a capacidade de criar qualquer prerrogativa (CF, art. 5º, ii). deve-se, aqui, ter muito cuidado para que o legislador, a pretexto
de conferir discricionariedade ou por meio de legislação em branco, não transfira ao
executivo o poder de criar prerrogativas públicas. Qualquer prerrogativa pública que
importe em exercício de supremacia sobre particulares deve ter sido criada e definida
em lei, a quem cumpre, inclusive, a fixação dos limites para o exercício da prerrogativa.
o terceiro plano para a realização do interesse público corresponde à obtenção de
vantagens para a Administração Pública.
Deve-se, aqui, uma vez mais, ter cuidado. A finalidade de qualquer órgão ou
entidade da Administração Pública não é, jamais, a simples obtenção de lucros ou de
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
vantagens econômicas. mesmo no caso de empresas estatais exploradoras de atividades
econômicas, a entidade existe como instrumento necessário aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput). não se pode enxergar, aqui,
vedação à obtenção de lucro, sobretudo em relação a essas empresas estatais. mas ele
não é o único, nem o mais importante objetivo de qualquer unidade administrativa,
inclusive de uma empresa estatal. o Banco do Brasil, por exemplo, pode agir de modo
a obter lucro, mesmo por que existe participação de particulares em seu capital social.
o estado não pode, todavia, criar entidade pública apenas para lucrar, haja vista o lucro
não constituir objetivo do estado.
impõe-se, todavia, aos gestores públicos a obrigação de considerar a atuação das
unidades administrativas sob a ótica da economicidade.
A rigor, a economicidade, compreende três diferentes aspectos: a eficiência, a
eficácia e a efetividade.
o exame da eficiência os obriga a considerar a relação custo benefício da atuação
administrativa. deve o agente público considerar o volume de insumo necessário à
produção do resultado que se busca.
o controle de eficácia dá relevo aos resultados. Busca-se verificar apenas se a atividade administrativa produz os resultados esperados. O exame da eficácia restringe-se
tão somente aos resultados da atuação administrativa.
em relação à efetividade, busca-se verificar se os resultados programados ou planejados para determinadas atividades administrativas foram alcançados.
tomemos o exemplo de programa de governo que tenha por objetivo criar emprego para jovens. O exame da eficiência requer a ponderação de quantos recursos serão
necessários para produzir determinados resultados (quantos recursos são necessários
para alcançar os objetivos pretendidos?). A eficácia do programa pode ser medida examinando os resultados do programa (quantos empregos foram efetivamente criados?).
e o controle de efetividade examina se os resultados projetados ou planejados foram
alcançados (os empregos que o programa buscava criar foram efetivamente criados?).
Atuação vantajosa é aquela que considera os diversos aspectos da economicidade
para a Administração Pública. Planejamento, definição de estratégias, fixação de metas,
avaliação de metas, controle de custos, controle de resultados são os aspectos a serem
considerados para que seja realizado o terceiro plano do interesse público. É evidente
que dentro desse processo devem os agentes procurar, por exemplo, contratações
mais vantajosas — o que não significa, necessariamente, contratações mais baratas. A
redução dos custos é apenas uma das tarefas a ser cumprida pelos administradores para
a realização do terceiro plano do interesse público.
3.5 supremacia e indisponibilidade do interesse público
nos itens anteriores, examinamos os níveis em que ocorre a realização do interesse
público e vimos ainda que a principal característica do regime jurídico administrativo
consiste na presença de prerrogativas necessárias à realização dos interesses públicos.
A realização do interesse público importa em dois aspectos fundamentais, que
são normalmente apresentados como as características do mencionado regime, são elas:
1. supremacia do interesse público sobre o interesse privado;
2. indisponibilidade do interesse público.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
Acerca da supremacia do interesse público, a primeira observação a ser feita é no
sentido de que não existem interesses públicos presumidos ou ilimitados. eles somente existem
após serem reconhecidos pela Constituição Federal ou por lei como tais, e necessariamente
terão limites também fixados pela Constituição ou pela lei.
A segunda observação questiona a legitimidade ou o momento em que é feita a
valoração acerca da necessidade de determinados interesses serem elevados à categoria
de públicos e de se sobreporem a outros interesses, igualmente legítimos. essa valoração
ou definição de hierarquia de interesses é tarefa que cabe ao legislador, ou ao constituinte, e não ao administrador público. Cabe à Constituição ou à lei proceder a esse
juízo de ponderação e atribuir a alguns interesses supremacia sobre outros. realizado
esse trabalho de ponderação, o legislador irá conferir a determinadas pessoas, sobretudo
ao estado, determinadas prerrogativas públicas, que extrapolam do direito comum,
prerrogativas necessárias à realização desses interesses que foram reconhecidos pelos
representantes da população como os mais importantes para o País.
Coube ao legislador reconhecer, por exemplo, que a Administração Pública
poderia melhor realizar os seus objetivos legais ou constitucionais se tivesse o poder de
unilateralmente modificar seus contratos. Nos termos da Lei nº 8.666/93, artigos 58, I,
e 65, i e §1º, é conferida à administração contratante a prerrogativa de proceder, como
regra, a modificações unilaterais de até 25% do valor inicial do contrato, tanto para os
aumentos quanto para as supressões. em que consiste, no caso, o que se denomina
supremacia do interesse público sobre o interesse privado? Consiste no exercício, por
parte do administrador, responsável pela aplicação da mencionada norma, da utilização
de referida prerrogativa.
outro exemplo, este de estatura constitucional, de exercício de prerrogativa
pública corresponde ao próprio poder expropriatório do estado (CF, art. 5º, XXiv). de
um lado temos o interesse do particular de conservar sua propriedade, reconhecida pela
Constituição Federal (art. 5º, caput) como direito fundamental. do outro, o interesse da
Administração Pública de dar ao bem finalidade de interesse social ou de necessidade
ou utilidade pública. Coube à própria Constituição conferir à Administração Pública
referido poder expropriatório outorgando-lhe a prerrogativa de, após o pagamento de
indenização prévia, justa e, como regra, em dinheiro, independentemente de consentimento do particular, tomar-lhe sua propriedade. mais uma vez, a ponderação acerca
de quais interesses devem prevalecer sobre outros foi feita pela Constituição Federal e
disciplinada por lei e resultou na prerrogativa expropriatória do estado.
A supremacia do interesse público sobre o interesse privado consiste, portanto,
tão somente, no exercício das prerrogativas públicas, prerrogativas que afastam ou
prevalecem sobre outros interesses.
A realização do interesse público não se restringe, todavia, à noção de supremacia,
mas alcança igualmente a indisponibilidade do interesse público. não falamos em indisponibilidade do interesse público pela Administração Pública porque não necessariamente
cabe apenas à Administração a legitimidade para o exercício da potestade pública.
Falar em indisponibilidade importa em cobrar do agente público ou privado
responsável pelo exercício da prerrogativa fidelidade aos fins visados pelos criadores
dessa prerrogativa. Conforme mencionamos, as prerrogativas são criadas pela Constituição e pelas leis. Cabe àqueles que as aplicam identificarem os fins que justificaram a
criação da prerrogativa pública — e aqui nos reportamos aos três níveis de realização
77
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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dos interesses públicos: constitucional, legal e econômico — e atuarem de modo a
realizar referidos fins.
3.6 Princípios gerais da Administração Pública
o regime jurídico administrativo compõe-se de preceitos jurídicos disciplinadores
do exercício da atividade administrativa do estado. estes preceitos estão contidos em
normas de duas diferentes categorias: os princípios e as regras.10 os princípios constituem as proposições básicas do sistema. todas as demais normas que integram o regime
jurídico administrativo devem buscar a sua conformação com esses princípios; são eles,
portanto, que dão coesão e lógica ao sistema jurídico administrativo.
A importância dos princípios está no fato de que, em primeiro lugar, eles servem
de parâmetro para a interpretação de todas as regras. se determinado dispositivo legal
ou regulamentar permitir mais de uma interpretação possível, deve-se optar por aquela
que melhor realize os princípios.
outra grande função dos princípios é a de apresentar soluções para questões
não tratadas diretamente pelas regras. se determinado agente público se depara com
situação para a qual deve apresentar solução e existe regra jurídica que aponta de forma
evidente a solução, deve ele seguir essa regra. todavia, isso nem sempre ocorre. Quantas
vezes vê-se o administrador público diante de situação para a qual nem a lei, nem os
regulamentos, nem a doutrina, nem qualquer outra fonte possível apresenta solução e
ele é, por dever de ofício, chamado a tomar alguma medida ou decisão. Como proceder
em situações como essas, tão comuns no serviço público?
A solução está na utilização dos princípios. devido ao seu elevado nível de abstração, os princípios prestam-se a resolver questões e permitem que o administrador
apresente soluções juridicamente fundamentadas. se não existe regra que permita,
por meio de sua aplicação direta, apresentar a solução jurídica para o problema real,
o exame dos princípios gerais da Administração Pública sempre apresentará a solução. A moralidade, a impessoalidade, a eficiência, a razoabilidade, a finalidade, a
motivação e tantos outros sempre permitem a construção de soluções juridicamente
adequadas tanto para questões já enfrentadas quanto para as novas situações nunca
enfrentadas e que requerem a adoção de solução por parte do administrador. desde
que o administrador motive a decisão adotada, motivação que terá como fundamento
para decidir a utilização de princípios, é possível até que algum órgão de controle
interno ou externo discorde da solução, mas não poderá, de modo algum, atribuir
responsabilidade àquele gestor.
Questão tormentosa se verifica quando dois princípios aparentemente entram
em colisão. este tema — da colisão de princípios — tem sido objeto de estudo mais detido
no âmbito da hermenêutica constitucional. Como deve proceder, por exemplo, quando
a adoção da solução proposta pela lei importar em quebra da eficiência? Ou se determinada solução legal violar a moralidade?
10
José Joaquim Gomes Canotilho: “as regras e princípios são duas espécies de normas; a distinção ente regras e
princípios é uma distinção entre duas espécies normativas” (Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1160).
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
no âmbito da hermenêutica constitucional, a doutrina majoritária não estabelece
hierarquia de princípios.11 na eventualidade da aplicação de um princípio importar
em quebra de outro, não cabe falar que se deva dar primazia a um em detrimento do
outro princípio.12
o aplicador das normas do direito Administrativo, bem como de qualquer outro
ramo do direito, deve procurar solução que concilie os princípios. se a lei permite
mais de uma solução de agir, deve o administrador buscar aquela que melhor realize a
eficiência. Não se admite, todavia, que o argumento de que determinada solução legal
é ineficiente importe em descumprimento da lei, ou em adoção de solução estranha
à lei — o que em direito Administrativo equivale a violar a lei. não pode o princípio
da eficiência importar em afastamento do administrador do princípio da legalidade.
o inverso é igualmente verdadeiro. Ao interpretar a lei, deve o gestor buscar a solução
mais eficiente, de modo a realizar os dois princípios (legalidade e eficiência), e não
apenas um deles.
Em casos de aparente conflito entre moralidade e legalidade, o mesmo raciocínio
deve ser utilizado. se lei permite mais de uma interpretação possível, deve o administrador optar por aquela que realize a moralidade.
A razoabilidade, que é princípio da Administração Pública e requer sempre
juízo de ponderação, é, nos dias atuais, instrumento extremamente útil para auxiliar o
aplicador das normas administrativas na eventualidade de surgirem aparentes conflitos
entre princípios.
temos utilizado, aqui, o termo aparente porque a utilização correta dos mecanismos de interpretação e de aplicação das normas jurídicas evitam que na construção da
norma do caso ocorra referida colisão. Essa colisão ou conflito é sempre aparente. Ela
somente se verifica em tese. Quando o aplicador da norma administrativa se deparar
com essas situações, no processo de interpretação do direito — que parte da situação
fática a ser regulada, das normas em abstrato e chega à norma do caso, aquela que
apresenta a solução juridicamente adequada para o caso que se examina —, o conflito
desaparece se for utilizado critério de ponderação e de acomodação dos princípios,
evitando-se sempre que a aplicação de um princípio afaste outro, mas, ao contrário,
buscando-se, ao máximo, dar a maior efetividade possível aos princípios.
A utilização da expressão princípios gerais se deve ao fato de que examinaremos,
agora, apenas os princípios aplicáveis a todo o sistema, aqueles que fazem parte fundamental da teoria Geral do direito Administrativo. existem, no regime administrativo,
11
12
Paulo Bonavides aborda a questão da seguinte maneira, reportando-se aos ensinamentos de dworkin: “o conceito de validade da regra é conceito de tudo ou nada apropriado para a mesma, mas incompatível com a dimensão de peso, que pertence à natureza do princípio. entenda-se bem: peso ou valor”. e mais adiante, assinala: “A
dimensão de peso, ou importância ou valor (...) só os princípios a possuem, as regras não, sendo este, talvez, o
mais seguro critério com que distinguir tais normas. A escolha ou hierarquia dos princípios é a de sua relevância”. E arremata: “Das reflexões de Dworkin infere-se que um princípio, aplicado a um determinado caso, se
não prevalecer, nada obsta a que, amanhã, noutras circunstâncias, volte ele a ser utilizado, e já então de maneira
decisiva” (Curso de direito constitucional, p. 282).
Canotilho: “A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação
de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológiconormativa da lei fundamental. daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo ente os vários
princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma
‘lógica do tudo ou nada’, antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu ‘peso’
e as circunstâncias do caso” (Direito constitucional, p. 1182).
79
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
80
outros princípios que não recebem a caracterização de gerais porque são de aplicação
restrita. são exemplos desta última categoria alguns princípios aplicáveis a determinados
processos administrativos (oficialidade, gratuidade etc.), ou tão somente às licitações
(julgamento objetivo, vinculação a instrumento convocatório etc.).
Princípios gerais são aqueles que norteiam toda a atividade administrativa do
estado porque têm sede constitucional expressa ou implícita.
em função de sua estatura constitucional, os princípios gerais vinculam igualmente o legislador, bem como os demais responsáveis pela criação das normas que
compõem o regime jurídico administrativo, normas estas que, se não se adequarem a
referidos princípios, resultam inconstitucionais.13
Feitas essas considerações, devemos passar ao exame dos princípios gerais expressos
e implícitos.
3.6.1 Princípios expressos
3.6.1.1 Legalidade
o princípio da legalidade, ou da reserva de lei, está previsto como direito fundamental pela Constituição Federal que, no seu art. 5º, ii, dispõe nos seguintes termos:
Art. 5º (...)
ii - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Ao lado do controle judicial da Administração Pública e da proteção ao direito
de propriedade, o princípio da legalidade constitui uma das maiores conquistas do
estado de direito.
no campo do direito Administrativo, a doutrina tem admitido a existência de
dois princípios da legalidade. o primeiro está contido no art. 5º, ii, acima transcrito, e
também denominado de princípio da reserva de lei. ele é apresentado como a legalidade
do setor privado, no sentido de que nenhum particular pode ser obrigado a fazer ou
deixar fazer algo senão em virtude da lei.
A segunda versão do princípio da legalidade seria a legalidade administrativa,
que é tão somente mencionada pelo caput do art. 37 do texto constitucional.
os dois são apresentados como distintos ou, que o segundo — a legalidade
administrativa — decorreria e estaria contido no primeiro, o princípio da reserva da lei.
de acordo com a visão tradicional, e dominante em nossa doutrina, a legalidade
administrativa, denominada de legalidade restrita, ou estrita, cria a situação de que a
Administração Pública somente pode agir se e quando a lei autorizar a atuação. de
acordo com essa interpretação dominante, ainda que a atividade estatal não importe
em impor qualquer conduta positiva ou negativa de qualquer cidadão, a Administração
13
não é dado ao administrador deixar de aplicar norma sob o argumento de inconstitucionalidade. Ao administrador
é dado buscar dentre as opções normativas possíveis a que melhor realize os princípios e demais regras constitucionais. o controle de constitucionalidade de leis e demais atos normativos está afeto ao Poder Judiciário. Fora deste, o
único órgão competente para, em casos concretos, negar aplicação à lei ou a outros atos normativos sob argumento
de inconstitucionalidade são os tribunais de Contas em função do que dispõe a súmula nº 347 do stF.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
estaria impedida de agir. deu-se, desse modo, à legalidade administrativa (CF, art. 37,
caput) alcance maior do que o definido no art. 5º, II, do texto constitucional, ainda que o
citado art. 37 tenha-se restringido a simplesmente mencionar a aplicação da legalidade
à Administração Pública.
discordamos dessa distinção e entendemos que os dois são manifestações distintas de um único preceito.
Quando a Constituição dispõe que ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de
fazer algo senão em virtude de lei, ela dirige o postulado tanto aos particulares quanto
ao estado. o particular não pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão
em virtude de lei porque somente por meio desse instrumento, a lei formal, aprovada
pelo Parlamento, pode o estado exigir algo do particular, impondo-lhe o dever de agir
ou de se abster de fazer algo.
É esse o ponto que buscamos avançar no exame do princípio da legalidade administrativa. se existe órgão ou entidade administrativa dotado de competência genérica
para desenvolver atividades administrativa, não é necessário que seja aprovada lei que
trate especificamente de cada ato ou atividade a ser desenvolvida por essas unidades,
salvo se esse ato ou essa atividade administrativa impuser ao particular a obrigação de
fazer ou de deixar de fazer algo.
no amplo campo das atividades prestacionais (saúde, educação, trabalho, lazer,
proteção à maternidade ou à infância), o estado não atua por meio de atos que importem em qualquer tipo de imposição unilateral de vontade. exigir que cada programa
de governo, que cada ato praticado ou atividade desenvolvida tenham sido detalhadamente disciplinados por meio de lei se trata de equívoco acerca da interpretação do
princípio da legalidade.
Essa visão extremamente restritiva pode ser justificada em períodos de exceção
democrática, em que o Poder executivo carece de legitimidade. essa é, todavia, destoante
da realidade dos dias atuais, em que o executivo está legitimado pelo voto popular e
que dele se espera maior agilidade para atender as novas necessidades da população.
A lei é necessária, do ponto de vista do exercício de atividade administrativa do
estado, para:
1. Criar entidades (CF, art. 37, XiX) ou órgãos públicos (CF, art. 61, §1º, ii, “e”);
2. obrigar particular a fazer ou deixar de fazer alguma coisa (CF, art. 5º, ii);
3. A adoção de qualquer outra medida para a qual a Constituição Federal tenha
exigido lei (por exemplo: a criação de cargos, empregos ou funções públicas
– art. 61, §1º, ii, “a”; o regime jurídico dos militares, provimento de cargos,
promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva
– art. 61, §1º, ii, “f”; contratação temporária por tempo determinado – art. 37,
iX; a realização de despesa pública – art. 166; a realização de investimentos,
a abertura de crédito extraordinário etc.).14
14
stF: “Ação direta de inconstitucionalidade. medida liminar. decreto 1.719/95. telecomunicações: concessão ou
permissão para a exploração. decreto autônomo: possibilidade de controle concentrado. ofensa ao artigo 84-iv
da CF/88. Liminar deferida. A ponderabilidade da tese do requerente é segura. decretos existem para assegurar
a fiel execução das leis (artigo 84-IV da CF/88). A Emenda Constitucional nº 8, de 1995 — que alterou o inciso
Xi e alínea a do inciso Xii do artigo 21 da CF — é expressa ao dizer que compete à união explorar, diretamente
ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. não
havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em
lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição
81
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Curso de direito AdministrAtivo
82
A interpretação sistemática da Constituição Federal nos leva à conclusão acima.
Afinal, se houvesse necessidade de lei para disciplinar qualquer atividade da Administração, por que teria o texto constitucional tido o cuidado de indicar, apenas para
algumas situações específicas, a necessidade de lei? Se qualquer atividade ou atuação
administrativa necessitasse de legislação prévia, qual o sentido de ter sido elaborado
tão longo elenco de situações para as quais a Constituição exige lei como requisito
ao exercício de alguma atividade estatal? não teria sido mais simples a Constituição
Federal ter simplesmente afirmado que qualquer atividade administrativa do Estado
depende de lei?
A realização de concursos públicos para a investidura em cargos ou empregos
públicos (CF, art. 37, ii), por exemplo, consiste em atividade administrativa do estado
realizada independentemente da existência de qualquer lei. em face da inexistência de lei
sobre a matéria, o Poder executivo não apenas pode, como deveria, por meio de decreto
autônomo, regular a realização dos concursos públicos. no caso, haveria violação do
princípio da legalidade estrita? dentro da visão tradicional que tem sido utilizada para
definir o alcance desse princípio, parece-nos que sim. Ocorre que essa visão tradicional
da legalidade estrita deve ser adequada à realidade que nos cerca. Como a realização
de um concurso público não incide em nenhuma das situações acima indicadas para
as quais é exigida a regulação por meio de lei, pode a questão ser regulada por meio
de decreto ou de qualquer outro ato de estatura infralegal.
o stF, ao admitir o cabimento de ação direta de inconstitucionalidade contra
o decreto autônomo, reconhece implicitamente a compatibilidade desta categoria
normativa com o nosso sistema constitucional.15 Ato infralegal não pode, no entanto, a
pretexto de regular matérias não tratadas em leis, estabelecer restrição ao exercício de
direito, de que seria exemplo o estabelecimento de critérios restritivos para o ingresso
em determinadas carreiras, como a Polícia Federal.
Hely Lopes Meirelles adota pensamento similar ao que aqui defendemos. Afirma
o autor que “a doutrina aceita esses provimentos administrativos praeter legem para
suprir a omissão do legislador, desde que não invadam as reservas da lei, isto é, as
matérias que só por lei podem ser reguladas”. e mais adiante: “Advirta-se, todavia,
que os decretos autônomos ou independentes não substituem definitivamente a lei:
suprem, apenas, a sua ausência, naquilo que pode ser provido por ato do executivo,
até que a lei disponha a respeito”.16
relativamente ao princípio da reserva de lei, questão que merece estudo mais
aprofundado — e cujo objetivo não se inclui nas pretensões deste trabalho — diz respeito à utilização de medidas provisórias.
instituto típico dos sistemas parlamentaristas, a Constituição Federal de 1988,
em seu art. 62, criou esse instituto em substituição à figura do decreto-lei do regime
15
16
a exige. A Lei 9.295/96 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto. Pela ótica da
maioria, concorre, por igual, o requisito do perigo na demora. medida liminar deferida” (Adi-mC nº 1.435-dF).
nesse sentido, vide Adi nº 708-dF: “Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de liminar. decreto n. 409,
de 30.12.91. esta Corte, excepcionalmente, tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja
decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta lei, apresentando-se, assim, como
decreto autônomo, o que da margem a que seja ele examinado em face diretamente da Constituição no que diz
respeito ao princípio da reserva legal”.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 175.
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militar. A expectativa era a de que sua utilização ocorresse em situações excepcionais,
“em caso de relevância e urgência”, e não como instrumento de substituição da legitimidade do Poder Legislativo. A forma como esse instituto tem sido utilizado por todos
os chefes do executivo federal constitui agressão a um dos princípios mais básicos do
estado de direito. o problema não se encontra na forma como o texto constitucional
trata o tema, mas como esse texto tem sido utilizado para usurpar do Legislativo a sua
função de legislar, transferindo-a a quem deveria encarregar-se de cuidar da aplicação
e execução da lei.
As alterações inseridas por meio de emendas constitucionais ao mencionado
art. 62, em vez de restringir, têm aumentado o número de medidas provisórias editadas,
e os problemas decorrentes da sua edição, sobretudo em relação ao disposto no §6º do
art. 62, que provoca o trancamento da pauta — vale dizer: ficam “sobrestadas, até que se
ultime votação, todas as demais deliberações legislativas” — da Casa Legislativa onde
estiver tramitando a medida provisória caso ela não seja apreciada em até quarenta e
cinco dias contados da sua publicação.
É importante e necessário que o chefe do executivo disponha de instrumento
constitucional como a medida provisória. As críticas feitas se dirigem à banalização
da sua utilização.
Caso fossem efetivamente observados os requisitos constitucionais de relevância
e urgência, bem como os demais indicados no §1º do art. 62 — que indica matérias que
não podem ser disciplinadas por meio de medida provisória (nacionalidade, cidadania,
direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, direito Penal, Processual Penal e
Processual Civil, organização do Poder Judiciário e do ministério Público, a carreira e
a garantia de seus membros, planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento
e créditos suplementares e adicionais, que vise à detenção ou sequestro de bens, de
poupança popular ou de qualquer outro ativo financeiro, reservada a lei complementar, já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso nacional e pendente
de sanção ou veto do Presidente da república) —, bem como os demais dispositivos
constitucionais pertinentes, a medida provisória seria instrumento útil para o sistema
democrático. Cumpre aos que devem zelar pelo cumprimento da Constituição Federal
— e não nos referimos aqui apenas ao supremo tribunal Federal, mas igualmente ao
Congresso nacional — a adoção de providências com vistas a evitar os abusos reiteradamente cometidos.
Além da edição de medida provisória, pode-se apontar o estado de defesa (CF, art. 136)
e o estado de sítio (CF, artigos 137 a 139) como situações previstas no texto constitucional e
que podem constituir algum tipo de restrição ao princípio da reserva de lei. isso se deve
à possibilidade de restrição de direitos admitida durante a vigência desses dois institutos
(CF, artigos 137, §1º, e 139).
3.6.1.2 impessoalidade
este princípio, em face das múltiplas formas de aplicação, é certamente o que
mais gera dificuldade de aplicação.
o princípio da impessoalidade admite seu exame sob os seguintes aspectos:
1. dever de isonomia por parte da Administração Pública;
83
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Curso de direito AdministrAtivo
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2. dever de conformidade ao interesse público;
3. imputação dos atos praticados pelos agentes públicos diretamente às pessoas
jurídicas em que atuam.
A partir da primeira perspectiva, o princípio da impessoalidade requer que a lei e
a Administração Pública confiram aos particulares tratamento isonômico, vale dizer,
não discriminatório. todos são iguais perante a lei e o estado. este é o preceito que se
extrai da impessoalidade quando examinado sob a ótica da isonomia.
A isonomia, ou o dever que a Constituição impõe à Administração Pública de conferir tratamento não diferenciado entre os particulares, é que justifica a adoção de procedimentos como o concurso público para provimento de cargos ou empregos públicos
ou a licitação para a contratação de obras, serviços, fornecimentos etc.17 existem, a rigor,
dois critérios admitidos para o provimento de cargos públicos: em comissão e em caráter
efetivo. O primeiro, como define a Constituição Federal (art. 37, II), é feito em função da
confiança que o dirigente do órgão possua na pessoa a ser nomeada. No provimento
em comissão, são obedecidos critérios pessoais e de confiança; o ocupante do cargo em
comissão é indicado porque o dirigente do órgão ou entidade pública o conhece e nele
confia. O segundo, no provimento em caráter efetivo, o cargo deve ser preenchido em
razão de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos. Para
o provimento do cargo efetivo, deve a Administração Pública publicar o edital, admitir
inscrição de todos os interessados que atendam às exigências nele contidas, aplicar provas,
divulgar os resultados e convocar para nomeação os candidatos aprovados a partir da sua
estrita ordem de classificação. A pergunta simples é a seguinte: qual dos dois provimentos
melhor realiza o princípio da isonomia? evidentemente que o provimento em caráter
efetivo, que se caracteriza pela necessidade de prévia aprovação em concurso público.
A Constituição, ainda que admita a nomeação em comissão, considera essa forma
de provimento excepcional na medida em que, no art. 37, v, determina que eles se destinam apenas ao exercício de atribuições de direção, chefia e assessoramento. somente essas
atividades podem justificar a criação de cargo em comissão, e o objetivo da Constituição
resta evidente: dado que o provimento de cargos em caráter efetivo, que pressupõe
prévia aprovação em concurso público, melhor realiza o princípio da isonomia, ele deve
ser adotado como regra; e o provimento em comissão, que atende a critérios pessoais
para escolha do ocupante, e que somente pode ser utilizado para cargos cujas atividades
ou funções sejam de direção, chefia ou assessoramento, é a exceção.18
o mesmo raciocínio acima é aplicável às contratações de empresas pela Administração Pública, sendo expressa a Lei nº 8.666/93 nesse sentido: o art. 3º, ao indicar
17
18
stF: “direito Constitucional e Administrativo. Concurso público. Princípio da isonomia. Provas de capacitação
física e investigação social. Ação direta de inconstitucionalidade do parágrafo 6º do art. 10 da Lei nº 699, de
14.12.1983, acrescentado pela Lei nº 1.629, de 23.03.1990, ambas do estado do rio de Janeiro, com este teor:
‘§6º Os candidatos integrantes do Quadro Permanente da Polícia Civil do Estado ficam dispensados da prova
de capacitação física e de investigação social a que se referem o inciso, i, in fine, deste artigo, e o §2º, in fine, do
artigo 11’. 1. não há razão para se tratar desigualmente os candidatos ao concurso público, dispensando-se, da
prova de capacitação física e de investigação social, os que já integram o Quadro Permanente da Polícia Civil do
estado, pois a discriminação implica ofensa ao princípio da isonomia. 2. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente pelo Plenário do stF” (Adi nº 1.072-rJ).
Fórmula encontrada para burlar a exigência constitucional de concurso público é a terceirização de mão de obra
na Administração. Ao invés de realizar o devido concurso para atividades que não têm natureza de chefia, direção
ou assessoramento, contrata-se empresa para fornecer pessoal sem que exista qualquer critério isonômico para a
indicação dos que irão ser escolhidos para trabalhar para o serviço público.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
os objetivos da licitação define que, além da busca pela proposta mais vantajosa, ela se
destina à realização da isonomia.
É fato relativamente comum, infelizmente, administradores que não realizam
licitação justificarem-se sob o argumento da obtenção de vantagens para a Administração. Ainda que não tenham ocorrido outros desvios, como fraudes, ou sobrepreços,
a não realização da licitação constitui em si violação de um princípio básico da Administração, o da isonomia, daí por que a não realização desse certame é tipificada pelo
art. 89 da Lei nº 8.666/93 como crime, e pela Lei nº 8.429/92, como ato de improbidade.
dado que a licitação realiza a isonomia, a própria Constituição Federal a impõe como
regra, admitindo que em face de situações especiais a lei possa criar as hipóteses de
contratação sem licitação (art. 37, XXi).
É sob a ótica da isonomia que mais suscitam dúvida quanto à aplicação do princípio da impessoalidade. Afinal, pode o edital de um concurso público estabelecer como
requisito para inscrição a comprovação de altura mínima ou de idade máxima? Como
aferir se as exigências do edital de uma licitação são necessárias à execução do objeto do
contrato ou, ao contrário, se essas exigências não ferem a isonomia entre licitantes — e
também o subprincípio da competitividade nas licitações? o sistema de cotas — de afro
descendentes, de deficientes, de mulheres — para as universidades públicas ou para o
serviço público realiza ou viola o princípio da isonomia?
Vê-se que a questão admite diversos enfoques e está longe de ser pacífica.
o ponto de partida para o exame deste aspecto da isonomia consiste em saber
que ela não constitui preceito formal, segundo o qual todos são iguais. o tratamento
jurídico isonômico pressupõe considerações acerca da realidade fática em relação à
qual os preceitos jurídicos são aplicados. são igualmente indispensáveis considerações
acerca dos fins buscados pela Administração.
em relação à adoção da altura ou da idade dos candidatos, existe alguma relevância na adoção desses critérios para provimento de cargos relacionados a atividades
de docência, por exemplo? o professor ser mais alto ou mais moço, de algum modo é
relevante para a atividade de docência? no caso de agente da polícia civil, ao contrário,
do qual se pode exigir esforço físico no exercício de sua atividade, é absolutamente
pertinente que se estabeleça alguma exigência de altura ou de idade.19
19
o stF, ao examinar questões relativas a exigências de editais de concurso público, estabelece três critérios necessários para legitimar tratamento discriminatório: 1. que haja pertinência entre o critério de discriminação e atividade do cargo; 2. que o critério seja fixado em parâmetros razoáveis; 3. que o critério tenha sido previsto em lei.
Assim, ainda que relevante para o exercício das atribuições e fixado em parâmetros razoáveis, a Administração
somente pode estabelecer qualquer critério discriminatório se houver previsão em lei. do contrário, a exigência
em editais resulta ilegal. nesse sentido, vide:
stF: “Concurso Público – Agente de Polícia – Altura mínima – viabilidade. em se tratando de concurso público
para agente de polícia, mostra-se razoável a exigência de que o candidato tenha altura mínima de 1,60m.
Previsto o requisito não só na lei de regência, como também no edital de concurso, não concorre a primeira
condição do mandado de segurança, que é a existência de direito líquido e certo” (re nº 148095/ms).
stF: “Agravo regimental no Agravo de instrumento. exigência de altura mínima para o ingresso nos quadros
da Polícia militar do distrito Federal. inexistência de lei formal restritiva de direito. Fixação em edital. impossibilidade. Concurso público para o cargo de policial militar do distrito Federal. Altura mínima. impossibilidade
de sua inserção em edital de concurso. norma restritiva de direito que somente na lei tem sua via adequada.
Agravo regimental a que se nega provimento” (Ai-Agr nº 518.863/dF).
stF: “Concurso público. Altura mínima. requisito. tratando-se de concurso para o cargo de escrivão de polícia,
mostra-se desarrazoada a exigência de altura mínima, dadas as atribuições do cargo, para as quais o fator altura é irrelevante. Precedente (re nº 150.455, rel. min. marco Aurélio, DJ, 07 maio 1999)” (re nº 194.952-ms, grifos nossos).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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o segundo enfoque para o exame do princípio da impessoalidade é o da realização
do interesse público. nesta hipótese, ele se equipara ao princípio da finalidade.
Sob a ótica da finalidade, sempre que o administrador praticar ato de favorecimento ou de perseguição, haverá violação ao princípio da impessoalidade porque não
se realizou o interesse público.
o terceiro enfoque da impessoalidade retira dos agentes públicos a responsabilidade
pessoal, perante terceiros, pelos atos que praticam.
se determinado agente público, no exercício da função pública, pratica ato, a
responsabilidade é atribuída diretamente à pessoa jurídica à qual o órgão em que o
agente esteja lotado está vinculado. A rigor, os atos praticados pelos agentes públicos
foram praticados diretamente pelas respectivas pessoas jurídicas. tomemos o exemplo
de agente público cuja investidura venha a ser futuramente anulada. seria possível a
terceiro anular os atos praticados pelo agente público sob o argumento de que ele não
poderia tê-los praticado? neste exemplo, a aplicação do princípio da impessoalidade
leva-nos à conclusão de que o ato não foi praticado pelo agente A ou pelo agente B, mas
que ele foi praticado pela Administração Pública, o que impede a sua anulação. não se
pode, a partir dessa situação, concluir que particular não possa suscitar incompetência
de agente público. efetivamente que sim. o que não é possível é a arguição de que a
perda da competência do agente invalide os atos praticados por este agente enquanto
detinha a competência para a sua prática.
este enfoque da impessoalidade suscita igualmente questionamentos quanto à
responsabilização da Administração pelos atos praticados pelos denominados servidores de fato.
3.6.1.3 moralidade
Poucos institutos jurídicos são de definição tão difícil quanto o princípio da moralidade. É certo que a moralidade administrativa, como afirma com correção Hely Lopes
Meirelles, não se confunde com a moralidade comum. Igualmente correta a afirmação
de Celso Antônio Bandeira de mello de que os administradores têm o dever de observar padrões éticos de comportamento.20 Todavia, quando se afirma que a moralidade
administrativa não se confunde com a moralidade comum, não se define nem uma nem
outra. Buscar na ética a solução para o conteúdo da moralidade administrativa também
não parece resolver o problema, pois saímos de um conceito abstrato, o de moralidade,
para outro tão ou mais abstrato ainda.
Desvio de finalidade, dever de honestidade, boa-fé são termos normalmente
utilizados para buscar alguma aproximação teórica com a moralidade administrativa.
Este princípio talvez se enquadre como alguns fenômenos impossíveis de definição. temos que compreendê-lo ou apreendê-lo apenas por meio da descrição de
condutas que afetem seu âmbito de atuação ou que sejam a ele contrárias.
A Lei nº 9.784, em seu art. 2º, parágrafo único, iv, exige “atuação segundo padrões
éticos de probidade, decoro e boa-fé”, o que, segundo maria sylvia Zanella di Pietro,
constitui “referência evidente aos principais aspectos da moralidade administrativa”.21
20
21
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 109.
di Pietro. Direito administrativo, p. 79.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
A dificuldade — ou mesmo impossibilidade — de definir a moralidade administrativa
levou a própria Constituição Federal (art. 37, §4º) a exigir a aprovação de lei para definir os
atos de improbidade administrativa, os quais “importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário”.
É certo que o princípio da moralidade não pode ser restringido por meio de lei,
quer se busque por meio dela apresentar uma definição do que seja moralidade, quer
se pretenda, por meio dela, apresentar-se uma lista de condutas contrárias à probidade
administrativa — como fez a lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92).
Quando a Constituição Federal expressamente menciona a moralidade administrativa e a eleva à qualidade de princípio distinto da legalidade, pretende que o
primeiro princípio não se confunda com o segundo. A moralidade administrativa é
o instrumento conferido pela Constituição Federal aos responsáveis pelo controle da
Administração Pública a fim de que se possa exigir da Administração, sob pena de
ilegitimidade dos atos decorrentes de condutas imorais, comportamento que, além
de cumprir as exigências legais, seja ético (conforme observa o ilustre Celso Antônio
Bandeira de mello), observe padrões de boa-fé, de honestidade, que não incorra em
desvio de finalidade etc.
Questão controvertida diz respeito à nomeação de parentes para ocupar cargos
em comissão no serviço público. existem, inclusive, leis que vedam essa prática. diante
desse quadro, surgem algumas questões.
1. É necessária a existência de lei para impedir essa prática reprovada por toda
a sociedade — exceto por aqueles que dela se beneficiam?
2. A criação de discriminação dessa ordem — no sentido de todos podem ocupar
o cargo em comissão exceto o filho, os parentes próximos ou o cônjuge do
titular do cargo — não importaria em violação ao princípio da isonomia?
resposta à primeira pergunta, por maior que seja o sentimento de reprovação a
essa prática, até recentemente, vinha sendo no sentido de que, onde não houvesse lei,
não seria vedada a nomeação de parentes para tais cargos de livre nomeação. esta visão
demonstrava que a moralidade, como conceito vago, isoladamente, sem que houvesse
lei, salvo em situações extremas, não impedia a prática de atos reprovados socialmente.
este contexto começou a mudar quando o Conselho nacional da Justiça, por
meio da resolução nº 7/05, vedou a nomeação de parentes para cargos em comissão em
todo o Poder Judiciário — inclusive no âmbito dos tribunais de Justiça dos estados em
que, salvo honrosas e raras exceções, em razão da ausência de lei proibitiva, imperava
o nepotismo —, e o stF, ao apreciar a Adi nº 3.617/dF, julgou legítima mencionada
resolução, independentemente de expressa previsão em lei.
mais recentemente o stF editou a súmula vinculante nº 13,22 publicada no dia
29 de agosto de 2008, sustentando que a vedação do nepotismo não exige a edição de
lei formal, uma vez que decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput,
da Constituição Federal, em especial o da moralidade. Assim, a nomeação de cônjuge,
companheiro ou parente até o terceiro grau tornou-se proibida em toda a administração
pública direta e indireta em qualquer dos poderes da união, dos estados, do distrito
federal e dos municípios.
22
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção,
chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada
na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da união, dos estados, do distrito federal e
dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
87
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Curso de direito AdministrAtivo
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em relação à segunda questão, não obstante a criação de efetiva discriminação —
afinal todos podem ser nomeados para os cargos de livre nomeação, exceto os parentes
do dirigente do órgão —, a vedação existe especificamente para realizar a moralidade.
nesse sentido, se a proibição de nomear parentes poderia ensejar dúvidas acerca do
princípio da isonomia, ela realiza o princípio da moralidade. trata-se de hipótese de
aparente conflito ou colisão de princípios, em que a realização de um requer restrição
na aplicação do outro princípio.
deve ser mencionado que tão ou mais reprovável que a nomeação direta de parentes
são as operações “casadas”, tão comuns no serviço público e, infelizmente, em tribunais
judiciários. Nessas operações, para fugir aos mecanismos de fiscalização, o dirigente
nomeia parente de dirigente de outro órgão, e vice-versa. em boa hora, a resolução
nº 7/05 do CnJ igualmente vedou essa possibilidade.
A decisão do stF no julgamento da Adi nº 3.617/dF é relevante porque admite
a plena efetividade da moralidade administrativa independentemente da existência
de lei que proíba a conduta reprovada. do contrário, teríamos reduzido a moralidade
à legalidade, o que não é o propósito da Constituição Federal, que separa e distingue
os dois princípios.23
no Brasil, somente em situações extremas de violação da moralidade tem ocorrido
a reprovação social e jurídica, independentemente da existência de lei. É o caso de avós,
servidores públicos, que, por meio de vergonhosos procedimentos de justificação judiciais, declaram que seus netos vivem sob sua dependência. o objetivo é um só: a fraude.
Buscam essas pessoas perpetuar pensões transferindo-as a seus netos, em evidente
burla ao instituto da pensão, prevista na Lei nº 8.112/90 e em diversas leis estatuais.24
não se exige dos administradores públicos o mero cumprimento da lei. de todos
os administradores, sobretudo daqueles que ocupam os cargos mais altos na estrutura
do estado, exige-se muito mais. exige-se — e se deve exigir — dos ocupantes dos altos
cargos do estado conduta impecável, ilibada, exemplar. se dos particulares podem ser
admitidos pequenos deslizes, pequenas falhas, que merecem a reprovação do direito —
como o chamado dever cívico de não pagar imposto —, tal postura não se pode admitir
dos administradores públicos. A moralidade cobra da Administração — e, repito, sobretudo dos ocupantes dos altos cargos de nosso País — conduta exemplar e inatacável.
23
24
sobre o tema, merece registro deliberação do stJ (Acórdão roms nº 15.166-BA) que admitiu, mesmo sem previsão legal específica, a desconsideração da personalidade jurídica feita pela própria administração, ao estender
a outra empresa os efeitos da sanção de inidoneidade para licitar cominada a determinada empresa, cujos sócios
atuaram fraudulentamente. Trecho do voto condutor: “A ausência de norma específica não pode impor à Administração um atuar em desconformidade com o Princípio da moralidade Administrativa, muito menos exigir-lhe
o sacrifício dos interesses públicos que estão sob sua guarda. em obediência ao Princípio da Legalidade, não pode
o aplicador do direito negar eficácia aos muitos princípios que devem modelar a atuação do Poder Público. Assim,
permitir-se que uma empresa constituída com desvio de finalidade, com abuso de forma e em nítida fraude à lei,
venha a participar de processos licitatórios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma tome parte em um contrato
firmado com o Poder Público, afronta aos mais comezinhos princípios de direito administrativo, em especial, ao
da moralidade Administrativa e ao da indisponibilidade dos interesses tutelados pelo Poder Público”.
tCu: Acórdão nº 586/05, Plenário. deliberação que negou provimento a agravo interposto contra medida cautelar
que suspendeu pagamento de pensão instituída por avó em favor do neto. trecho do voto condutor: “A busca
da guarda de netos, menores de 21 anos, por avós, sequiosos de prolongar a percepção do benefício econômicofinanceiro, configurado nas pensões pelas respectivas famílias, ostenta evidente conteúdo anti-social, nitidamente
ofensivo ao princípio da moralidade administrativa. entendo, pois, absolutamente dissonante com os princípios
que orientam o ordenamento jurídico, bem como com suas regras básicas, o comportamento consistente na
obtenção judicial da guarda de menores por avós, com o objetivo final de deixar-lhes a pensão. Nestes termos,
saliento que pensão não é herança, dela discrepando tanto na definição legal, como nos objetivos que alberga”.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
no momento em que aceitamos como inevitáveis, ou mais grave ainda, como
normais, determinadas condutas impróprias de nossos governantes, constatamos quão
frágil são nossa democracia e os valores morais que conduzem nossas consciências.
A violação da moralidade administrativa importa em ilegitimidade do ato. não
obstante se trate de conceito jurídico vago, sempre que em situações concretas for constatada a sua violação deve ser declarada, quer pela via judicial, quer pela via administrativa,
a nulidade do ato. se este ato, ademais, se enquadrar em uma das condutas descritas
pela Lei nº 8.429/92 como ato de improbidade, deve ser instaurada a competente ação
com vista à aplicação das sanções cabíveis.
relativamente à ação de improbidade, algumas considerações podem ser desde já
apresentadas.
A primeira observação diz respeito ao fato de que o ato de improbidade constitui ilícito civil. Punível por meio da aplicação de sanções de diversas ordens, inclusive
política, mas o ilícito é civil. não possui natureza penal em razão do próprio texto
constitucional (art. 37, §4º) que dispõe que a aplicação das sanções previstas em lei
ocorrerá “sem prejuízo da ação penal cabível”. A confirmação da natureza civil da ação
de improbidade está no fato de que o procedimento adotado para a sua tramitação
observa os padrões da lei da ação civil pública (Lei nº 7.347/85).
determinado ato pode ser considerado ato de improbidade — o que ensejará
a aplicação das sanções elencadas no art. 12 da mencionada Lei nº 8.429/92 —, ilícito
penal — o que importará na instauração do processo penal e eventual aplicação das
penas cabíveis — e ilícito administrativo disciplinar, com a consequente instauração
do processo administrativo disciplinar e aplicação da sanção disciplinar respectiva.
trata-se de instâncias distintas e autônomas, o que importa em dizer que pode haver
condenação em uma instância e absolvição em outra. somente haverá vinculação de
instâncias quando a decisão proferida em sede de processo penal concluir pela absolvição do acusado, e desde que o fundamento para a decisão for a negativa do fato ou
da autoria.25
As sanções aplicáveis aos atos de improbidade encontram-se elencadas no art. 12
da mencionada lei e compreendem a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade
dos bens, o ressarcimento ao erário, a aplicação de multa, a perda da função pública —
que abrange não apenas a função, mas também cargos e empregos públicos —, proibição
de contratar com a Administração Pública ou de receber benefícios fiscais ou creditícios,
dentre outras previstas em lei. deve ser considerado, todavia, que em função da gravidade e das circunstâncias que envolvem o ato, o juízo de ponderação pode levar o juiz
processante a aplicar somente uma ou algumas das sanções indicadas.
A legitimidade ativa para a propositura da ação é do ministério Público ou da pessoa
jurídica interessada (art. 17). entende-se por pessoa jurídica interessada uma daquelas
indicadas pelo art. 1º da lei e desde que o ato tenha ocorrido em seu âmbito. Caso a
ação seja proposta por esta pessoa jurídica, o mistério Público atuará necessariamente
como fiscal da lei (art. 17, §4º).
25
stF: “o Plenário do supremo tribunal Federal tem reiterado a independência das instâncias penal e administrativa afirmando que aquela só repercute nesta quando conclui pela inexistência do fato ou pela negativa de sua
autoria” (ms nº 23.188-rJ)
stF: “mandado de segurança. – É tranquila a jurisprudência desta Corte no sentido da independência das instâncias administrativa, civil e penal, independência essa que não fere a presunção de inocência, nem os artigos
126 da Lei 8.112/90 e 20 da Lei 8.429/92” (ms-Agr nº 22.899-sP).
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no polo passivo da ação de improbidade deve constar agente público, haja vista
a prática do ato de improbidade requerer necessariamente a participação de agente
público. não se pode entender com isso que somente o agente público possa praticar
ato de improbidade, mas que um particular, sem vínculo com o serviço público não
pratica ato de improbidade. A lei, em seu art. 2º, apresenta o conceito de agente público nos seguintes termos: “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem
remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma
de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função”.26
trata-se de conceito amplo que compreende não apenas servidores públicos,
mas igualmente agentes políticos e particulares que colaboram com a Administração,
incluídos nestes últimos os que mantenham vínculo meramente contratual. em relação
aos agentes políticos, deve ser considerada a existência de imunidades constitucionais,
o que impede, por exemplo, que por meio de ação de improbidade seja determinada a
perda de cargo de parlamentar.27
Questão tormentosa diz respeito ao exame da constitucionalidade da regra
inserida no Código de Processo Penal pela Lei nº 10.628/02 e que estendeu à ação de
improbidade o foro privilegiado que algumas autoridades possuem em processos
criminais. trata-se de questão controvertida, porque o stF já possui jurisprudência
pacífica no sentido de que a existência de foro privilegiado é matéria constitucional,
não sendo possível lei criar esse benefício (observação: o supremo tribunal Federal,
pelo seu Plenário, em 15.9.2005, no julgamento da Adi nº 2.797-dF e Adi nº 2.860-dF,
rel. min. sepúlveda Pertence, declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628, de
24.12.2002, que acresceu os parágrafos 1º e 2º ao art. 84 do Código de Processo Penal).28
são três as modalidades de ato de improbidade previstas na lei:
1. os que importam em enriquecimento sem causa (art. 9º);
2. os que causam prejuízo ao erário (art. 10); e
26
27
28
stJ: “1. são sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa, não só os servidores públicos, mas todos
aqueles que estejam abrangidos no conceito de agente público, insculpido no art. 2º, da Lei nº 8.429/92: ‘a Lei
Federal n. 8.429/92 dedicou científica atenção na atribuição da sujeição do dever de probidade administrativa
ao agente público, que se reflete internamente na relação estabelecida entre ele e a Administração Pública,
superando a noção de servidor público, com uma visão mais dilatada do que o conceito do funcionário público
contido no Código Penal (art. 327)’. 2. Hospitais e médicos conveniados ao sus que além de exercerem função
pública delegada, administram verbas públicas, são sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa.
3. Imperioso ressaltar que o âmbito de cognição do STJ, nas hipóteses em que se infirma a qualidade, em tese, de
agente público passível de enquadramento na Lei de improbidade Administrativa, limita-se a aferir a exegese
da legislação com o escopo de verificar se houve ofensa ao ordenamento” (REsp nº 416.329-RS).
di Pietro. Direito administrativo, p. 683.
o STJ, no julgamento da Rcl nº 2.790-SC, firmou orientação de que o foro por prerrogativa de função para as ações
penais é também extensível às ações de improbidade administrativa (rcl nº 2.790-sC, rel. min. teori Zavascki. DJ,
04 mar. 2010). nas palavras do relator, se “há prerrogativa de foro para infrações penais que acarretam simples
pena de multa pecuniária, não teria sentido retirar tal garantia para as ações de improbidade que importam, além
da multa pecuniária, também a perda da própria função pública e a suspensão dos direitos Políticos”. de acordo
com a conclusão a que chegou o ministro teori Zavascki (que merecidamente agora passa a ocupar cadeira na
suprema Corte) não se poderia reconhecer a “competência de juiz de primeiro grau para processar e julgar ação
civil pública por improbidade administrativa [de Governador de estado], que pode acarretar a perda de cargo
para o qual foi eleito por sufrágio popular, fonte primária de legitimação do poder (CF, art. 1º, parágrafo único)”.
stF: “Questão de ordem. Ação civil pública. Ato de improbidade administrativa. ministro do supremo tribunal
Federal. impossibilidade. Competência da Corte para processar e julgar seus membros apenas nas infrações penais
comuns. 1. Compete ao supremo tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros. 2. Arquivamento
da ação quanto ao ministro da suprema Corte e remessa dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos
demais” (Pet nº 3.211-Qo/dF, Plenário. rel. min. menezes direito. Julg. 13.03.2008. DJ, 27 jun. 2008).
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
3. os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).
de se observar que a prática do ato de improbidade não requer a intenção de
fraude, sendo admitida a sua modalidade dolosa e culposa (art. 5º). maiores considerações sobre a ação de improbidade administrativa são apresentadas no Capítulo 18,
relativo ao controle da Administração Pública.
3.6.1.4 Publicidade
o princípio da publicidade pode ser traduzido como o dever da Administração
de dar transparência aos seus atos. A divulgação dos atos e dos procedimentos administrativos realiza, ademais, a moralidade administrativa.
A publicidade é consequência direta do princípio democrático. somente em
regimes ditatoriais pode ser admitida — até porque não há outra opção — a prática
de atos secretos, sigilosos. É direito da população, e dever do administrador, divulgar os atos praticados pela Administração a fim de que possam os cidadãos tomar as
providências necessárias ao controle da legalidade, da moralidade, da eficiência das
atividades do estado.
se democracia é o governo do povo, pelo povo, é necessário que o povo saiba o
que ocorre nas entranhas das repartições públicas.
nos momentos atuais, a modernização dos meios de comunicação, sobretudo em
relação à transmissão e divulgação de informações por meios magnéticos, deve ser incorporada pela população como instrumento de acompanhamento e controle da atividade
administrativa do estado. É dever do estado o de desenvolver soluções em informática
que permitam o controle da Administração, sobretudo em relação à execução dos gastos
públicos. Quantas vezes não são liberados recursos públicos para execução de obras em
municípios, a obra não é executada e ninguém tem sequer ideia de que houve referida
liberação! somente a efetiva participação da população no controle da Administração
Pública, sobretudo em relação à execução dos gastos públicos, o que pode ser feito pela
adoção dos mecanismos de transparência a serem disponibilizados na internet, pode possibilitar o efetivo controle dos gastos públicos por meio do tão sonhado controle social.29
A Constituição Federal põe à disposição da população o instituto do habeas data
(art. 5º, LXXII), com a finalidade de:
1. Assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante,
constantes de registros ou banco de dados de entidades governamentais ou
de caráter público; e
2. Retificar dados, quando não prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou
administrativo.30
29
30
o tCu, pelo Acórdão nº 477/2008, Plenário, determinou à Petrobras que disponibilizasse em seu sítio na internet
(e mantivesse mensalmente atualizado) informações quanto a todos os patrocínios (nacionais e internacionais)
culturais, esportivos, institucionais da empresa, objetivando atender ao princípio da publicidade, entre outros.
A deliberação foi confirmada em grau de recurso (Acórdão nº 158/2009, Plenário). Trecho do voto condutor: “No
caso em tela, a legalidade se afirma no dever de dar publicidade a seus atos e contratos, com transparência, como
condição indispensável à realização de outros princípios; o da impessoalidade e da moralidade. em razão da
imensa discricionariedade da escolha das entidades a serem patrocinadas é que a publicidade se impõe maiúscula, a evitar desvios de finalidade neste tipo de procedimento”.
se o objetivo for a obtenção da informação ou a retificação de dados, o instrumento adequado é o habeas data. se o
objetivo for a obtenção de certidão em que constem referidos dados e o órgão ou entidade não a expedir, o instrumento a ser utilizado é o mandado de segurança.
91
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
92
o texto constitucional admite, todavia, poucas exceções ao princípio publicidade.
o art. 5º, XXXiii, dispõe que “todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas
no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.31 outro dispositivo que igualmente permite
alguma restrição à divulgação dos atos (art. 5º, LX) dispõe no sentido de que “a lei só
poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou
interesse social o exigirem”.
desses dois dispositivos podem ser extraídas algumas conclusões. A primeira
é no sentido de que não cabe ao administrador criar regras de sigilo. somente à lei é
dada essa possibilidade.
A segunda conclusão é no sentido de que a restrição legal somente pode ocorrer
em situações de:
1. segurança da sociedade e do estado;
2. Quando a intimidade ou o interesse social o exigirem. outras hipóteses de
restrição à divulgação de informações por parte do poder público não previstas
em lei e estranhas a essas duas hipóteses resultam em inconstitucionalidade.
Ainda em relação à publicidade, deve ser mencionado que ela não se confunde
com a publicação de atos. esta, a publicação, que salvo disposição legal em sentido
contrário deve ser entendida como publicação em órgão oficial (diário oficial), é uma
das formas possíveis de dar publicidade aos atos administrativos. são várias as outras
formas de publicidade existentes: notificação direta, afixação de avisos, internet etc.
A dúvida pode surgir no sentido de saber quais atos devem ser publicados em
diário oficial e quais podem admitir outra forma de divulgação.
o ponto de partida para a solução desse problema é a lei. se a lei que cuida do
ato indica a forma de divulgação, que se observe a lei. em matéria de licitação, por
exemplo, a Lei nº 8.666/93, art. 21, expressamente determina a publicação de editais
em diário oficial e em jornais de grande circulação. No caso do convite, uma das modalidades, a lei (art. 22, III) requer tão somente a afixação do instrumento convocatório
em local apropriado — leia-se: afixação em quadro de avisos. No caso do pregão, a Lei
nº 10.520/02, determina que em função do valor da contratação, a divulgação tenha que
ser feita por meio de diário oficial, jornal de grande circulação e pela internet. Desse
modo, quando a lei define a forma de divulgação, basta que o administrador observe
o que dispõe a lei.
Quando a lei não define a forma de divulgação dos atos, deve o administrador atentar
para a classificação dos atos quanto ao alcance, classificação que divide os atos em
duas categorias: internos e externos. Ato interno é aquele cujos efeitos são produzidos
dentro da Administração; ato externo, aquele cujos efeitos alcançam pessoas estranhas
31
stJ: “1. dentre os direitos e Garantias Fundamentais capitulados no art. 5º da Constituição Federal está inserido
o de que ‘todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo em geral, que serão prestados no prazo de lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do estado’ (inciso XXXiii). 2. inequívoco que os documentos cuja exibição foi requerida pelos impetrantes não estão protegidos pelo sigilo prescrito no art. 38 da Lei
1.595/64, sendo sua publicidade indispensável à demonstração da transparência dos negócios realizados pela
Administração Pública envolvendo interesses patrimoniais e sociais da coletividade como um todo. 3. recurso
ordinário conhecido e provido para, reformando o acórdão impugnado, conceder a segurança nos termos do
pedido formulado pelos recorrentes” (rms nº 10.131-Pr).
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
ao serviço público. os atos externos devem ser divulgados por meio de publicação em
órgão oficial de divulgação; os atos internos devem ser divulgados, mas não necessitam
de ser enviados para publicação em diário oficial, motivo que leva diversos órgãos
públicos a criarem seus boletins internos, cuja função, como o nome indica, é a de
divulgar atos internos.32 A nomeação de candidato aprovado em concurso público, por
exemplo, é ato externo, e não havendo na lei indicação específica quanto à forma como
deve ser divulgada, esta deve ocorrer por meio de publicação em diário oficial. Caso
esse mesmo servidor, uma vez empossado, solicite a averbação de tempo de serviço, o
ato que conceda ou negue sua pretensão é ato interno, motivo pelo qual não necessita
de publicação em diário oficial, mas de divulgação por outro meio, como a publicação
em boletim interno.
3.6.1.4.1 Lei de Acesso à informação (Lei nº 12.527/2011)
Com a entrada em vigor da Lei de Acesso à informação, o estado dá um grande
passo no que se refere à transparência administrativa, conferindo maior efetividade
ao direito fundamental de acesso à informação previsto no inciso XXXiii do art. 5º, no
inciso ii do §3º do art. 37 e no §2º do art. 216 da Constituição Federal.
Reflete, sem dúvida, o amadurecimento da democracia país, onde a publicidade
deve ser encarada como preceito geral e o sigilo como exceção. somente com a ampla
divulgação dos negócios do estado é que a atividade de controle encontra espaço para
se desenvolver eficazmente, sobretudo o controle social.
A Lei nº 12.527/2011 é uma lei federal de âmbito nacional, cujas disposições se
aplicam à administração direita e indireta das três esferas de governo (Federal, estadual e Municipal), bem como às entidades privadas sem fins lucrativas que recebem
recursos públicos, no que se refere especificamente à administração desses recursos.33
A lei exige postura proativa dos órgãos e entidades públicas na divulgação de
informações de interesse coletivo ou geral por eles custodiadas, determinando que tais
informações devem estar disponíveis ao cidadão em local de fácil acesso, sem que para
isso seja necessário qualquer tipo de requerimento. obriga a divulgação de informações
públicas em sítios oficiais da internet, dispensando de tal exigência os municípios com
população de até dez mil habitantes.
Com a nova legislação, os órgãos e entidades do poder público ficam obrigados a
criar o serviço de informações ao cidadão (siC), que deve estar preparados para (art. 9º,
inciso i):
a) atender e orientar o público quanto ao acesso a informações;
b) informar sobre a tramitação de documentos nas suas respectivas unidades; e
c) protocolizar documentos e requerimentos de acesso a informações.
A Lei nº 12.527/2011 também estabelece regras procedimentais para disciplinar
o atendimento de solicitações de acesso a informações dirigidas aos órgãos e entidades
públicas. o art. 10 dispõe que qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso
32
33
stF: “reforma Agrária – instrução normativa nº 8/93, do inCrA – Publicidade. tratando-se de instrução interna,
visando aos trabalhos administrativos, descabe a exigência de publicidade via Diário Oficial” (MS nº 25.022-DF).
digno de nota que, na esfera federal, a lei foi regulamenta pela Presidente da república que editou o decreto
nº 7.724, de 2012.
93
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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a informações, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do
requerente e a especificação da informação requerida. Neste particular, é interessante
notar que a solicitação não precisa estar acompanhada dos motivos determinantes que
fizeram o cidadão requerer as informações, havendo proibição expressa na norma de
qualquer exigência nesse sentido (art. 10, §3º).
Aliás, quando o acesso à informação não puder ser concedido de imediato, a lei
fixa prazo não superior a 20 dias para atendimento da solicitação, prorrogável por mais
10 dias. A administração deverá orientar o cidadão sobre a possibilidade de interposição
de recurso quando lhe for negado acesso à informação, a exemplo do que pode ocorrer
com a alegação de sigilo.
Como não poderia ser diferente, em observância ao que a Constituição Federal
dispõe sobre a matéria, a lei disciplina a restrição de acesso às informações que sejam
consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do estado.34 neste aspecto,
foram definidos três graus de sigilo, de modo que a informação poderá ser classificada
como ultrassecreta, secreta ou reservada, cujos prazos máximos de restrição de acesso
são de 25 anos; 15 anos; e cinco anos, respectivamente.
sem destoar da ordem constitucional, também neste particular, a lei preservou as
informações de caráter pessoal, estabelecendo que o seu tratamento deve ser conduzido
com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às
liberdades e garantias individuais. o art. 31, §1º, inciso i, esclarece que as informações
pessoais “terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo
prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos
legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”.
Questão polêmica envolvendo a aplicação da Lei de Acesso à informação e de
seu decreto regulamentador (decreto nº 7.724/2012) refere-se à divulgação nominal da
remuneração de autoridades e servidores nas páginas da internet de órgãos e entidades
públicas. A discussão gira em torno da necessidade de se expor o nome do servidor e
a correspondente remuneração ou se haveria forma alternativa de divulgação da folha
de pagamento que a um só tempo satisfizesse a finalidade contida na lei referente à
maior transparência da gestão pública e à necessidade de preservação da intimidade,
da vida privada, da honra e da imagem dos servidores.
Para aqueles que defendem posição contrária à divulgação de lista nominal, a
Administração alcançaria plenamente o propósito a que se dirige a lei, inclusive com a
exposição individualizada da remuneração, mas sem referência a nomes de servidores,
mediante a adoção de outros expedientes de divulgação, tais como matrícula, lotação,
34
o art. 23 da lei enumera oito hipóteses passíveis de receber tratamento sigiloso, isto é, quando a ampla divulgação da informação:
i - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
ii - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham
sido fornecidas em caráter sigiloso por outros estados e organismos internacionais;
iii - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;
v - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como
a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;
vii - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou
VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
cargo etc.. neste caso, o que se diz é que restaria assegurado o acesso a informações de
interesse geral e coletivo, dentro o espírito da lei de ampliar o controle social, sem que
houvesse, contudo, violação a direito fundamental do servidor por meio da divulgação
de informações de cunho estritamente pessoal, sem o seu prévio consentimento.
A questão foi submetida à apreciação do supremo tribunal Federal que, tanto em
âmbito judicial, quanto administrativamente, considerou lícita a divulgação nominal da
remuneração dos servidores.35 A compreensão da suprema Corte é no sentido de que a
divulgação da remuneração de servidores públicos não afrontaria os princípios da intimidade ou da vida privada. A esse respeito, cabe reproduzir a ementa da ss 3.902-Agr, de
relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, que bem ilustra o entendimento do STF, in verbis:
Suspensão de Segurança. Acórdãos que impediam a divulgação, em sítio eletrônico oficial,
de informações funcionais de servidores públicos, inclusive a respectiva remuneração.
deferimento da medida de suspensão pelo Presidente do stF. Agravo regimental.
Conflito aparente de normas constitucionais. Direito à informação de atos estatais, neles
embutida a folha de pagamento de órgãos e entidades públicas. Princípio da publicidade
administrativa. não reconhecimento de violação à privacidade, intimidade e segurança
de servidor público. Agravos desprovidos.
1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do
inciso XXXiii do art. 5º da Constituição. sua remuneração bruta, cargos e funções por eles
titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse
coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles,
vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte
derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXiii do art. 5º), pois o fato é que
não estão em jogo nem a segurança do estado nem do conjunto da sociedade.
2. não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos;
ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade”
(§6º do art. 37). e quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja
familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação
nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua
com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a Ci de cada servidor. no
mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um estado
republicano.
3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um
dos mais altaneiros modos de concretizar a república enquanto forma de governo. se,
por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o estado brasileiro, de
outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu estado republicanamente
administrado. o “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem”
administra — falaria norberto Bobbio —, e o fato é que esse modo público de gerir a
máquina estatal é elemento conceitual da nossa república. o olho e a pálpebra da nossa
fisionomia constitucional republicana.
4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no
caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública.
5. Agravos regimentais desprovidos.
35
No plano jurisdicional, vale conferir os seguintes julgados: Suspensão Liminar nº 630, Rel. Min. Carlos Ayres Britto;
Ag. reg. na medida Cautelar no ms nº 28.177-4, rel. min. marco Aurélio; Ag. reg. na suspensão de segurança
nº 3.902-SP, Rel. Min. Carlos Ayres Britto; Ação Cível Originária nº 1.993-DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa.
95
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Curso de direito AdministrAtivo
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no âmbito administrativo, em 22.05.2012, o supremo tribunal Federal decidiu
por unanimidade divulgar, nominalmente, salários e vantagens percebidos pelos seus
ministros e servidores. É inegável que tal iniciativa funciona como parâmetro para os
demais órgãos públicos, que, se ainda não abriram suas folhas de pagamento, tenderão
a fazê-lo em breve, a exemplo do que já ocorreu com o tribunal de Contas da união.
3.6.1.5 Eficiência
Antes de tratar deste princípio, podemos apresentar como exemplo situação não
tão hipotética quanto pode pensar o leitor. no início da década de noventa, determinado
órgão da Administração federal alugou edifício privado para uso próprio. A contratação
não decorreu de licitação, mas foi realizada pesquisa de preço e, nos termos do art. 24, Xi,
da Lei de Licitações, foi celebrado o aluguel com dispensa de licitação. Antes de iniciar o
efetivo uso, o órgão contratante constatou a necessidade de realização de licitação para
proceder à reforma de todo o sistema elétrico do edifício, que não comportava a rede
de computadores. Foi realizada a licitação e executado o contrato. decorridos alguns
meses de pagamento de aluguel, e após concluído e pago o contrato de reforma da rede
elétrica, antes porém de se iniciar o uso deste prédio, decidiu o órgão pela aquisição
de sede própria. em resumo, após o pagamento de algumas centenas de milhares de
reais — mas o que representa isso para um país tão rico quanto o Brasil? — por conta
da execução dos dois contratos — aluguel e reforma — o citado prédio nunca foi usado.
nunca! observados todos os procedimentos e requisitos legais e formais, jogou-se
dinheiro público fora. Conclusão: como a “queima” do dinheiro público observou as
exigências legais — das leis de licitações e orçamentárias — não foi possível impor
qualquer sanção ou punição aos gestores. observamos ao leitor que essa situação não
tão hipotética ocorreu no início da década de 1990.
Ainda que muito criticada por alguns setores — especialmente do direito — e
excessivamente valorizada por outros — da economia e da administração de empresas, sobretudo —, o princípio da eficiência é realidade que deve fazer parte do mundo
jurídico, que deve ser incorporado como instrumento de trabalho dos juristas e administradores públicos, assim como o são a legalidade, a publicidade, a moralidade etc.
A eficiência, que foi elevada pela Constituição Federal à categoria de princípio
geral da Administração Pública, é um dos aspectos da economicidade. esta, além da
eficiência, compreende a eficácia e a efetividade. Temos, portanto, que economicidade
é gênero do qual a eficiência, a eficácia e a efetividade são suas manifestações.36
Acerca da economicidade, a Constituição Federal dela trata no seu art. 70 quando
dispõe que a fiscalização a ser exercida pelo Congresso Nacional compreende a legalidade,
legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receita.
A eficiência requer do responsável pela aplicação dos recursos públicos o exame
da relação custo/benefício da sua atuação. o primeiro aspecto a ser considerado em
termos de eficiência é a necessidade de planejamento, de definição das necessidades
e a indicação das melhores soluções para o atendimento dessa necessidade pública. A
Lei nº 8.666/93, em seu art. 6º, apresenta a necessidade de elaboração do projeto básico
36
Informamos ao leitor que há importantes segmentos de nossa doutrina que equiparam a economicidade à eficiência. Trata-se de discordância meramente terminológica sem qualquer reflexo prático.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
e do projeto executivo para obras e serviços. A Lei nº 10.520/02, que trata do pregão, dá
importância especial à fase interna da licitação, aquela em que deve ocorrer a definição
dos parâmetros para que os contratos sejam executados não apenas em conformidade
com os formalismos que a lei apresenta, mas também que atendam às necessidades
da Administração de modo a apresentar resultados favoráveis com os menores custos
possíveis.
A área de informática dos diversos órgãos públicos certamente é uma das que
mais recursos consomem. Gastam-se centenas de milhões de reais anualmente com
bens e serviços de informática. será que existe algum planejamento ou programa de
informática nestes órgãos? ou, ao contrário, será que a Administração Pública, por
falta de planejamento, não está adquirindo o que interessa aos fornecedores desses
bens e serviços?
A constatação a que se chegou na década de 1990, em todos os países desenvolvidos — alguns já tinham chegado a essa constatação uma década antes, como Alemanha,
estados unidos e França — e em alguns países em desenvolvimento, foi a de que a
capacidade de arrecadação dos estados estava chegando a limites intransponíveis e,
por outro lado, a demanda da sociedade por novos serviços ou atividades — sobretudo
na área social, incluída a previdência e assistência social — continuava e continua em
crescimento. Como proceder? resposta: gerir melhor os recursos arrecadados. Aplicá-los
corretamente, o que pressupõe, necessariamente, o planejamento das atividades estatais
a serem desenvolvidas.
O primeiro passo para o desenvolvimento de atividades de modo eficiente corresponde à necessidade de planejamento dos gastos públicos; o segundo passo a ser
dado está ligado à definição das metas; e o terceiro passo corresponde ao exame dos
custos necessários à realização das metas.
Além do controle da eficiência, exige-se igualmente do administrador o exame da
eficácia e da efetividade de sua atuação, eis que o próprio texto constitucional estabeleceu
que a Administração Pública haverá de ser fiscalizada sob a ótica da economicidade,
consoante seu art. 70.
Por eficácia se deve entender o simples exame dos resultados. realizada qualquer
atividade estatal, deve-se buscar examinar em que medida aquela atividade gerou
benefícios para a sociedade.
o interesse público, reiteramos, deve ser realizado em diferentes níveis. o primeiro diz respeito ao dever de realização dos fins do Estado Democrático de Direito,
relacionado à satisfação das necessidades da população. O exame da eficácia, como
aspecto da economicidade, confere importância especial aos resultados decorrentes do
exercício de qualquer atividade estatal. tomemos um exemplo fora da Administração
Pública, mas dentro do Direito. Será eficaz a atividade de um juiz que, a pretexto de julgar
conforme sua consciência, tem todas a suas decisões corrigidas pelo tribunal? será que
a manutenção desse juízo realiza algum interesse para o estado ou para a sociedade?
O exame da eficácia requer do administrador público a avaliação dos resultados
que as atividades por ele desenvolvidas geram em favor da sociedade. se não houver
benefícios, devem os responsáveis por referido órgão corrigir os rumos por meio da
definição de novos modelos ou estratégias.
A efetividade, terceiro passo para a realização da economicidade, pressupõe o
cumprimento das duas etapas anteriores. Como parte da eficiência, foram definidas as
metas de atuação. No exame da eficácia, foram constatados os resultados da atividade
97
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Curso de direito AdministrAtivo
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administrativa. no exame da efetividade deve ser feita a comparação entre os objetivos
ou metas que haviam sido fixadas por ocasião do planejamento e os resultados efetivamente alcançados.
É certo que o amplo espectro de atividades administrativas do estado requer
diferentes abordagens. os modelos de economicidade de uma universidade pública,
por exemplo, não podem ser comparados com os de órgão responsável pela construção
de estradas.
Considerando suas particularidades, todas as atividades do estado podem, em
alguma medida, serem incluídas dentro da ótica da economicidade. uma universidade
pública, um posto de saúde, um departamento de trânsito, um órgão de arrecadação
tributária, enfim, todos os órgãos ou entidades públicos podem definir metas, avaliar
custos, verificar os resultados de atividade, comparar esses resultados com os fixados
por ocasião da fase de planejamento.
Há, todavia, limites à eficiência. O mais importante encontra-se na própria legalidade. “La famosa eficacia, si pretendiese hacerse a costa del Derecho y como una alternativa al mismo, no es más que la fuente de la arbitrariedad, como enseña la experiencia
humana ya más vieja y hoy vívidamente renovada.”37 em razão da impossibilidade de
arrecadação ilimitada do Estado para financiar os gastos públicos, e da própria moralidade administrativa, exige-se dos administrativos que sejam “econômicos” em suas
atividades. O limite insuperável nessa busca de soluções eficientes, eficazes e efetivas
é a lei. dentre as opções de atuação previstas em lei, deve o administrador encontrar
aquela que melhor satisfaça referidos parâmetros de economicidade.
Como exemplo de atuação eficiente, podemos apresentar solução adotada pelo
stF para a aquisição de veículos novos. se normalmente a Administração Pública não
compra muito bem, suas alienações, com muito mais frequência ainda, são realizadas
em condições ainda menos vantajosas para o poder público. no caso do stF, havia a
necessidade de adquirir novos veículos e de alienar os antigos. no próprio edital do
pregão para a aquisição dos novos veículos, foi estabelecido que parte do pagamento
a ser efetuado pela Administração em favor do vendedor contratado seria feita por
meio da entrega dos veículos antigos, que haviam sido previamente avaliados e cujos
preços constavam — a partir da avaliação prévia — igualmente no edital. desse modo,
além de serem obtidas condições vantajosas na venda dos veículos usados, evitou-se a
realização de leilão — ou seja, evitou-se a realização de outra licitação. economizaram-se
tempo, trabalho e dinheiro público. este exemplo apresenta solução perfeitamente legal
e extremamente eficiente.
Questão tormentosa consiste em saber se a falta de eficiência pode ser sancionada.
não nos referimos, aqui, evidentemente, à punição pelo direito Penal, que requer tipificação fechada, o que impossibilita o enquadramento das condutas ineficientes. Não
nos referimos, igualmente, a alguma sanção política — no sentido de que os gestores
sejam reprovados pela população nas eleições seguintes —, mesmo porque vários dos
gestores públicos não se submetem a eleições. Buscamos outra forma de punição.
não se deve pensar que os gestores que não alcançarem padrões excelentes de
eficiência devam ser sancionados. Não é esse o objetivo. Buscamos mecanismos que
sancionem, pela via administrativa, hipóteses absurdas de desperdício de dinheiro
público, ainda que isso não importe em violação de dispositivos legais específicos.
37
GArCíA de enterríA. Democracia, jueces y control de la administración, p. 105.
CAPítuLo 3
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do ponto de vista da ética, da moralidade, a fraude, o desvio de recursos públicos
é mais reprovável que a falta de eficiência. Quanto a isto não resta dúvida. Do ponto
de vista do resultado para a população, todavia, se a escola não ficou pronta, se a construção do hospital foi abandonada, se a estrada não leva a lugar algum porque não
foi concluída, se o programa de vacinação de crianças não pode ser cumprido porque
expirou o prazo de validade das vacinas, seja por motivo de fraude ou por falta de planejamento, de eficiência do administrador público, o resultado é um só: a população,
que paga impostos e mantém o Estado, não se beneficiará de referidos serviços.
A solução para a punição de hipóteses absurdas de falta de eficiência — e o instrumento adequado para proceder à identificação dessas hipóteses absurdas é o princípio da
razoabilidade — encontra-se na própria Constituição Federal. em seu art. 70, ao dispor
sobre o controle externo dos gastos públicos, cujo titular é o Congresso nacional, mas
cuja execução é constitucionalmente conferida ao tribunal de Contas da união (tCu),
refere-se ao controle da economicidade dos gastos públicos. no art. 71, viii, dispõe o
texto constitucional que ao tCu compete “aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá,
entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário”. vê-se que o texto
constitucional não prevê a aplicação de sanção pecuniária apenas para casos de ilegalidade, mas também para outras situações que importem em irregularidade de contas.
A lei que regulamentou esse dispositivo constitucional é a Lei nº 8.443/92, que
em seu art. 57 estatuiu que o tCu poderá aplicar ao responsável que for condenado a
reparar o prejuízo que causou ao erário multa de até cem por cento do valor atualizado
do dano causado. de igual modo, mencionada lei, nos termos de seu art. 58, inciso iii,
permite ao tCu a aplicação de multa de outra natureza — não mais proporcional ao
dano, mas com valor máximo fixado no próprio diploma legal — por ato de gestão
antieconômico.
A conclusão necessária é que tanto o texto constitucional quanto o texto legal
disponibilizam mecanismos de sanção pela falta de eficiência. Reiteramos, todavia,
que a punição não se deve aplicar aos que simplesmente não forem eficientes, mas aos que
adotarem soluções absurdamente ineficientes. Esse o propósito.
no campo judicial, a partir dos parâmetros desenvolvidos pelos tribunais de
Contas, órgão com maior capacidade técnica para aferir a falta de eficiência e único
competente para julgar contas, pode-se cogitar da utilização da ação de improbidade
administrativa — Lei nº 8.429/92, que em seu art. 11 prevê a prática de ato de improbidade pela violação de princípio da Administração Pública. o ministério Público pode,
a partir dos dados fornecidos pelos tribunais de Contas, propor ação de improbidade
com fundamento no art. 11 da lei, a fim de dar maior efetividade ao princípio da eficiência e punir as hipóteses absurdas de ineficiência na aplicação dos recursos públicos.
os princípios gerais da Administração não podem ser considerados meras cartas
de intenção. o cumprimento efetivo de todos eles deve ser considerado dever a ser
cumprido por todos os responsáveis pela gestão dos recursos públicos. na eventualidade de a lei facultar adoção de várias opções ou possibilidades de agir, deve ele adotar
aquela que melhor realize todos os princípios da Administração Pública. A rigor, se a
lei permite interpretação que possa ferir a moralidade, a impessoalidade, a eficiência
ou qualquer outro princípio, deve o administrador descartar essa interpretação porque
contrária ao Direito. A adoção de soluções eficientes, morais, impessoais é vinculante
para o administrador, e não pode se inserir em seu âmbito de discricionariedade. opção
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discricionária é aquela permitida pelo direito; opção arbitrária, aquela contrária à lei
ou a qualquer princípio da Administração. não concordamos, portanto, que se possa
conferir ao princípio da eficiência, ou ao da economicidade, status diferenciado dentro
do regime administrativo, no sentido de que o cumprimento dos demais princípios é
vinculante e o cumprimento da eficiência mera opção discricionária e, portanto, insusceptível de controle judicial ou de punição.
Não há, em todo o ordenamento jurídico, justificativa para a exclusão do princípio
da eficiência do mundo do Direito e para a sua transferência para o campo da discricionariedade como mera opção de conveniência ou de oportunidade. no momento em que
todos os que lidam com o direito Administrativo se conscientizarem da necessidade
de dar maior efetividade a todos os princípios, inclusive ao da economicidade, que
compreende além da eficiência a efetividade e eficácia, o cidadão brasileiro talvez possa
contar com serviços públicos compatíveis com a carga tributária praticada no nosso País.
3.6.2 Princípios implícitos
3.6.2.1 razoabilidade
Juntamente com a moralidade, a razoabilidade talvez seja o princípio mais difícil de definir. Em função do seu alto grau de abstração, mais fácil do que defini-lo, é
descrevê-lo. Para tanto, podemos apresentar o seguinte exemplo.
Consideremos que determinado servidor público federal, tendo se ausentado
injustificadamente por uma hora do serviço público, foi punido com a pena de advertência, nos termos da Lei nº 8.112/90, art. 129. duas semanas após a aplicação da pena,
voltou o servidor a se ausentar sem qualquer justificação ou consentimento de sua chefia. Nos termos da Lei nº 8.112/90 (art. 130), a reincidência no cometimento de infração
punível com advertência deve ser apenada com suspensão, que será de um a 90 dias.
no presente caso, consideremos que não houve qualquer outro prejuízo ou dano ao
erário ou a terceiro, poderia, ainda assim, a Administração aplicar ao servidor a pena de
suspensão de 90 dias? devemos lembrar que para servidor efetivo, mais grave do que a
suspensão de noventa dias, somente a de demissão. se se considera a questão em tese, é
evidente que a pena de suspensão de 90 dias pode ser aplicada ao servidor reincidente
no cometimento de infração punível com advertência. todavia, nas circunstâncias do
caso concreto — que não gerou nenhum dano ao erário ou a terceiro, os antecedentes
do servidor (que já foi punido pela primeira falta), a jurisprudência de processos disciplinares, que somente utiliza suspensão de 90 dias para infrações gravíssimas, mas
não tão graves a ponto de justificar a demissão — a conclusão é de que é descabida a
aplicação da pena. os que lidam com processos disciplinares sabem que, para esse tipo
de falta, a pena a ser aplicada talvez seja a suspensão de um, dois, no máximo três dias.
noventa dias, no entanto, é absurdo.38
38
stJ: “As regras de direito tributário devem ser aplicadas sem perquirir o intérprete a intenção do contribuinte.
diferentemente, as regras que impõem sanção administrativa devem ser aplicadas dentro dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, quando as circunstâncias fáticas, devidamente comprovadas, demonstram a nãointenção do agente no cometimento do ilícito. embarcação estrangeira que ingressa para permanência temporária
no país apenas para realização de obras e reparos necessários em estaleiro nacional, sem nenhuma intenção de
deixar internalizado o bem apreendido. Aplicação exacerbada e desproporcional da pena de perdimento. recurso
especial improvido” (resp nº 576.300-sC).
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
Qual o critério de que se deve utilizar o administrador, ou quem o controla, para
aferir se a solução é absurda e, sendo absurda, contrária à ordem jurídica? A resposta
se encontra no princípio da razoabilidade, cujo fundamento ou sede constitucional
reside no princípio do devido processo legal — daí por que a razoabilidade também é
denominada devido processo legal substantivo ou material.
o princípio da razoabilidade foi construído pelo direito Administrativo — e não
pelo direito Constitucional como certamente desejariam alguns constitucionalistas —
para controlar a legitimidade dos atos administrativos. A razoabilidade se apresenta
como mecanismo de controle da discricionariedade administrativa e pode ser representada pela seguinte expressão: adequação entre meios e fins.
É possível que a lei administrativa, considerada em tese, apresente ampla liberdade ao gestor. o processo de interpretação e aplicação, que parte da norma em tese,
e que resulta na construção da norma do caso, aquela que será aplicada à situação
concreta e que apresenta a solução normativa a ser adotada, deve considerar todas as
particularidades do caso que reclama solução. esse processo de construção da norma
do caso, que parte da norma em abstrato, resulta invariavelmente em restrição da
discricionariedade administrativa. Considerando o exemplo apresentado, se em tese é
possível afirmar que é legítima a aplicação de uma pena de suspensão de 90 dias a servidor público, na hipótese apresentada, a adoção de referida solução revela-se absurda.
todavia, e se se descobrir que o servidor do exemplo apresentado era médico, que estava
em seu horário de plantão, e que, em função de sua ausência, determinado paciente
faleceu por falta de atendimento? mais uma vez é o juízo de ponderação que nos leva a
concluir que a pena de suspensão de 90 dias certamente seria branda, devendo ser mais
adequado aplicar pena de demissão. Pode-se observar que, no direito Administrativo,
somente é possível utilizar o princípio da razoabilidade para situações concretas, com
o propósito de definir se a solução adotada é compatível com as peculiaridades que o
caso concreto comporta.
A importância prática da razoabilidade reside no fato de que ela permite o controle
de legitimidade da discricionariedade administrativa. o exame de razoabilidade não
importa em invasão do mérito; a solução contrária à razoabilidade não é inconveniente
ou inoportuna de modo que não se pode acusar aos que se utilizam desse princípio
para controlar a atividade administrativa discricionária de invadir o mérito dessa
atividade. A solução desarrazoada é ilegítima porque arbitrária. discricionariedade
significa a adoção de opções dentro dos limites permitidos pela lei. Adotada solução
não razoável, ela estará fora dos limites que a norma do caso faculta ou disponibiliza
ao administrador, o que importará em atuação arbitrária, haja vista ter-se extrapolado
os limites permitidos pelo direito, com base nos limites da norma do caso.
Alguns autores veem no princípio da razoabilidade o mecanismo para a indicação da solução ótima, aquela que se não for adotada pelo administrador importará na
prática de ato ilegítimo.
não nos parece ser essa a função do princípio da razoabilidade. no processo de
construção da norma do caso, o juízo de ponderação que guia o intérprete-aplicador
do direito deve levá-lo a descartar as soluções que se apresentem como absurdas.
Utilizando-nos mais uma vez do exemplo exposto, não nos parece correto afirmar que
em função do princípio da razoabilidade a solução ideal seja a aplicação de pena de um
dia, ou de dois dias. A função da razoabilidade é evitar a aplicação de pena de 90 dias,
ou de 80 dias, ou de qualquer outra que se mostre absurda em função do caso concreto.
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A importância do princípio da razoabilidade se deve, ademais, ao fato de que a
interpretação ou aplicação de qualquer outro princípio ou regra jurídica deve ser feita
considerando critérios de razoabilidade.39
Quando examinamos o princípio da impessoalidade, verificamos que a adoção
do critério de altura mínima como requisito à inscrição em concurso público deve
considerar, além da necessária previsão em lei, a existência de pertinência entre este
critério de discriminação e as atividades do cargo, bem como os necessários parâmetros
de razoabilidade, conforme jurisprudência do stF.40
nesse sentido, a função da razoabilidade, aplicada aqui como parâmetro para a
isonomia, é a de informar ao administrador e ao legislador que não pode ser adotada
altura incompatível com a realidade social. A função da razoabilidade, no caso, não é
a de fixar a altura ideal mínima para inscrição em concurso público em 1,60 metro de
altura, mas a de informar ao administrador, e ao próprio legislador, que se for exigida
altura mínima absurda, de que seria exemplo a fixação de 1,90 metro, o edital será ilegal
e a lei inconstitucional.
É o princípio da razoabilidade que guia o aplicador do direito e indica as soluções
adequadas, excluindo do âmbito de aplicação da norma do caso aquelas soluções que,
em função das circunstâncias da situação, seriam tidas como absurdas.
3.6.2.2 Proporcionalidade
em relação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade sempre haverá
dúvidas, inclusive de ordem terminológica. Há autores que defendem que os dois termos
são sinônimos,41 outros defendem a distinção entre ambos, no sentido de que a proporcionalidade não é senão uma faceta da razoabilidade.42 Adotamos a segunda tese.
A razoabilidade deve ser entendida em sentido amplo: sempre que o administrador tiver que exercer sua discricionariedade e houver mais uma opção possível
em função da norma em abstrato, as circunstâncias da situação concreta devem ser
consideradas para a construção da norma do caso, norma que irá restringir referida
discricionariedade.
A proporcionalidade é mecanismo a ser utilizado para conter o uso da imperatividade, atributo dos atos administrativos e do poder de polícia administrativa, com o
objetivo de conter ou limitar a reação da Administração Pública diante de determinadas
situações em que ela se vê obrigada, inclusive, ao uso da força física.
Considere que determinados manifestantes se decidem pela invasão de determinado prédio público: o Congresso nacional, por exemplo. deve a polícia administrativa
ser convocada a fim de manter a tranquilidade e a ordem públicas. Qual o limite para
o uso da força pela polícia? Pode ela usar arma de fogo para impedir a invasão? Basta
39
40
41
42
o stF, vislumbrando violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, suspendeu cautelarmente
lei estadual que determinava a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor, com pagamento imediato de
diferença a menor.
stF: “i - Pode a lei, desde que o faça de modo razoável, estabelecer limites mínimo e máximo de idade para ingresso em
funções, emprego e cargos públicos. interpretação harmônica dos artigos 7º, XXX, 39, §2º, 37, i, da Constituição
Federal” (re nº 177.570-BA).
di Pietro. Direito administrativo, p. 80.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 101.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
que se faça cordão de isolamento? A resposta a essas perguntas deve ser encontrada no
princípio da proporcionalidade, cuja aplicação segue o mesmo raciocínio utilizado no
direito Penal quando examina situações de excesso de legítima defesa. Até onde pode
ir a Administração no uso das suas prerrogativas — uso de força, aplicação de sanções
administrativas — é resposta que deve ser buscada na proporcionalidade.
Conforme defendemos a proporcionalidade nada mais é do que aspecto importante da razoabilidade. Por isso mesmo, para avaliar o atendimento ao primeiro princípio é necessário avaliar a existência de adequada correlação entre meios e fins. O STF
enfrentou interessante caso ao apreciar recurso em que o município de Blumenau e sua
Câmara municipal alegavam a inexistência de violação aos princípios da proporcionalidade e da moralidade no ato administrativo que criou cargos de assessoramento
parlamentar de livre provimento. o supremo — salientando que a criação de cargos
em comissão e confiança deve ter o caráter de exceção, vez que a regra é o concurso
público — entendeu que houve ofensa ao princípio da proporcionalidade, haja vista
que, dos 67 funcionários da Câmara dos vereadores, 42 exerceriam cargos de livre
nomeação e apenas 25, cargos de provimento efetivo.43
3.6.2.3 motivação
em regimes democráticos, em que o estado atua de modo a atender às necessidades da população e de modo a realizar fins compatíveis com os direitos fundamentais
e com a realização da Constituição, não se admite a prática de atos não motivados, não
justificados.
Ao motivar seus atos, deve o administrador explicitar as razões que o levam a
decidir, os fins buscados por meio daquela solução administrativa e a fundamentação
legal adotada.
Ao motivar, deve o administrador indicar as circunstâncias de fato e de direito
que o levam a adotar qualquer decisão no âmbito da Administração Pública.44
o dever de motivar não se restringe à prática de atos vinculados ou de atos
discricionários. todos os atos administrativos devem ser motivados, à exceção de um:
a exoneração de ocupante de cargo em comissão, a denominada exoneração ad nutum,
que possui tratamento constitucional próprio.
Conforme dispõe o texto constitucional (CF, art. 37, ii), os cargos em comissão
caracterizam-se por serem de livre nomeação e de livre exoneração. É da própria essência
43
44
stF: “Agravo interno. Ação direta de inconstitucionalidade. Ato normativo municipal. Princípio da proporcionalidade. ofensa. incompatibilidade entre o número de servidores efetivos e em cargos em comissão. i - Cabe ao
Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às
causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam. II - Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada
correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do
Poder Legislativo local. iii - Agravo improvido” (re nº 365.368-Agr/sC).
stJ: “1. A margem de liberdade de escolha da conveniência e oportunidade, conferida à Administração Pública,
na prática de atos discricionários, não a dispensa do dever de motivação. o ato administrativo que nega, limita
ou afeta direitos ou interesses do administrado deve indicar, de forma explícita, clara e congruente, os motivos de fato
e de direito em que está fundado (art. 50, i, §1º, da Lei 9.784/99). não atende a tal requisito a simples invocação da
cláusula do interesse público ou a indicação genérica da causa do ato. 2. no caso, ao fundamentar o indeferimento da autorização para o funcionamento de novos cursos de ensino superior na ‘evidente desnecessidade
do mesmo’, a autoridade impetrada não apresentou exposição detalhada dos fatos concretos e objetivos em que
se embasou para chegar a essa conclusão” (rms nº 19.210).
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do cargo em comissão a liberdade de que dispõe o titular do órgão para a adoção de
medida tendente a exonerar quem ocupa o referido cargo sem que haja necessidade
de ser dada qualquer justificação para o afastamento. É a própria Constituição Federal
que isenta a exoneração ad nutum do dever de motivação e o faz quando afirma que
são livres a nomeação e a exoneração do cargo.
Influenciados pela existência da exceção constitucional, e justamente pelo fato
dessa exceção ser ato discricionário, alguns autores, dentre eles Hely Lopes meirelles,
generalizaram suas conclusões relativas à exoneração ad nutum — máxima vênia —,
no sentido de que somente os atos vinculados devem ser motivados; e, portanto, que
se o ato for discricionário, o administrador motivará o ato somente se assim o desejar.
A motivação do ato discricionário é de fundamental importância para a ordem
jurídica. o ato discricionário não motivado se torna imune ao controle judicial, ou este
se exercerá de forma bastante precária. o controle judicial dos atos administrativos é
preceito básico do estado de direito. Admitir a desnecessidade de motivar qualquer ato,
em especial do discricionário, importa em retroceder 200 anos de evolução do direito
Público, importa em atacar postulados básicos do direito segundo os quais todos os atos
praticados pela Administração estejam sujeitos ao controle judicial (CF, art. 5º, XXXv).
A motivação dos atos discricionários levou a doutrina a construir a teoria dos
motivos determinantes.
A teoria dos motivos determinante preceitua que o ato discricionário, uma vez
motivado, vincula-se aos motivos indicados pelo administrador; vincula-se às circunstâncias de fato ou de direito que o levaram a praticar o ato, de modo que se esses
motivos não existirem ou se não forem válidos, o ato será nulo.
não se pode, a partir dessa teoria, concluir que todos os atos são vinculados.
Quando a lei, diante de determinado motivo — entendido este como a circunstância
de fato ou de direito que leva o administrador a adotar determinada solução —, faculta
ao administrador a adoção de mais de uma opção, ele está diante do ato discricionário.
tomemos o exemplo da Lei nº 8.112/90 que faculta à Administração conceder ao servidor
licença para tratar de interesse pessoal (art. 81, inciso vi). o motivo para a concessão é
a existência do requerimento do servidor que preencha todos os requisitos por meio do
qual ele solicita a concessão da licença. somente será concedida a licença se houver o
requerimento. todavia, a Administração pode ou não conceder. eis a discricionariedade.
não está a Administração obrigada a adotar a solução A, no sentido de conceder, ou a
solução B, de não conceder. Qualquer que seja a solução, deve ela ser motivada. deve
a Administração — negue ou conceda a licença — indicar os motivos da sua decisão, e
se esses motivos não forem válidos ou não existirem, o ato é nulo.
tomemos outro exemplo, de professor de universidade federal que solicite
afastamento para estudo no exterior (Lei nº 8.112/90, art. 95), com vista a cursar doutorado. Considere que a Administração adote como fundamento para negar o pedido
de afastamento o fato de que referido professor não dispõe do título de mestre. Caso
o referido solicitante demonstre que dispõe da referida titulação, o ato que negou sua
solicitação é nulo.
Isto não importa em afirmar, todavia, que o juiz ao anular o ato deva conceder o
afastamento. A decisão de conceder ou não o afastamento é da Administração Pública.
Anulado o ato discricionário pelo Poder Judiciário, o processo administrativo deve retomar seu curso e resultar na produção de nova decisão, que evidentemente deve-se pautar
na moralidade, na boa-fé, na impessoalidade a fim de evitar casuísmos ou perseguições.
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o controle judicial exercido em relação aos atos discricionários é de intensidade
mais branda do que o referente aos atos vinculados. nesta hipótese, de se tratar de
ato vinculado, pode o juiz determinar que o administrador decida e adote a solução
previamente definida pelo juiz ou, conforme particularidades do acaso, pode o próprio
juiz adotar a solução que o caso requer. diante de ato discricionário anulado judicialmente, deve o juiz tão somente restituir ao administrador o poder de tomar nova decisão, ciente este último, todavia, de que se, pelos mesmos fundamentos, for adotada a
solução anteriormente anulada, poderá incorrer em crime de desobediência. no caso
de ato discricionário, pode o juiz, se assim for solicitado pela parte, fixar prazo para a
adoção de nova solução.
Feitas essas considerações acerca do controle judicial do ato discricionário,
percebe-se a importância da motivação como elemento indispensável ao exercício do
controle judicial.
Ainda em relação à dúvida acerca da possibilidade de que somente determinados
atos devem ser motivados, cumpri-nos examinar a Lei nº 9.784/99, que em seu art. 50
dispõe nos seguintes termos:
Art. 50. os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos
fundamentos jurídicos, quando:
i - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
ii - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
iii - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;
iv - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;
v - decidam recursos administrativos;
vi - decorram de reexame de ofício;
VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres,
laudos, propostas e relatórios oficiais;
viii - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.
§1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração
de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou
propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.
§2º na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico
que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia
dos interessados.
§3º A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais
constará da respectiva ata ou de termo escrito.
vê-se que a técnica legislativa adotada na redação do dispositivo acima leva-nos
à conclusão de que nem todos os atos administrativos devem ser motivados. ora, se o
legislador efetivamente tivesse o objetivo de exigir do administrador público a motivação de todos os atos, teria a lei dito isto: todos os atos devem ser motivados. Ao invés,
apresentou-nos uma lista dos atos a serem motivados. Apesar da intenção do legislador,
a má técnica utilizada nos permite buscar na própria redação do dispositivo mencionado
a necessidade de motivação de todos os atos. A redação do inciso i do transcrito art. 50
— “neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses” — exige que todos os atos sejam
motivados. ora se o próprio conceito de ato administrativo, conforme será examinado
adiante, pressupõe que ele seja a manifestação de vontade da Administração Pública
tendente a criar, modificar, declarar direitos ou impor obrigações a si própria ou ao
particular, a conclusão é a de que todos os atos, em função do disposto no art. 50, i, da
105
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Curso de direito AdministrAtivo
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Lei nº 9.784/99, devem ser motivados. A redação do mencionado art. 50 é tão mal feita
que o inciso primeiro compreende todas as hipóteses dos demais incisos e muito mais.
A questão, porém, não se resolve no plano legal. A Lei nº 9.784/99 pode ser
mencionada apenas para ilustrar a necessidade de motivação dos atos administrativos.
o dever de motivar decorre, todavia, do conceito de estado de direito que requer a
possibilidade de controle judicial de todos os atos administrativos.
A questão que resta é a seguinte: se o ato administrativo não for motivado, ele é
irremediavelmente nulo, independentemente de qualquer outro vício?
A nulidade de qualquer ato administrativo se sujeita à regra básica de que não
haverá nulidade se não houver prejuízo. É de se exigir dos gestores a motivação dos
seus atos. todavia, se o ato não afetar direito ou interesse de quem quer que seja, não
há por que anulá-lo. se o ato não motivado, ao contrário, afetar direito ou interesse de
particular ou de servidor público, o só fato de não ter sido motivado, independentemente de qualquer outra violação, deve importar em sua anulação.
3.6.2.4 segurança jurídica
o fundamento constitucional do princípio da segurança jurídica reside no art. 5º,
XXXvi, que impede que lei possa retroagir para afetar direito adquirido, ato jurídico
perfeito e coisa julgada.
Por mais contraditório ou sem sentido que possa parecer, o princípio da segurança
jurídica surge para conter ou limitar a aplicação do princípio da legalidade administrativa, sobretudo em relação à possibilidade de a Administração Pública anular atos
ilegais que tenham, todavia, gerado benefícios favoráveis a terceiros.
Consideremos, por exemplo, que a Administração tenha realizado concurso
público para a contratação de servidores públicos e que, decorridos dez anos, decida
ela, em face da violação de normas legais ou mesmo constitucionais, anular seu ato.
seria isso possível? Ainda que o terceiro que será diretamente prejudicado não tenha
dado causa à ilegalidade?
Vê-se que entram em conflito dois princípios: o da legalidade, que impõe ao
administrador o dever de anular o ato; e o da segurança jurídica, que não permite que
as relações jurídicas possam ser indefinidamente revistas ou modificadas, ainda que o
fundamento para a modificação sejam razões de ilegalidade.45
A análise a ser empreendida deve buscar o ponto de equilíbrio entre os dois
grandes princípios que se contrapõem de maneira quase inconciliável quando se trata,
por exemplo, de rever ato administrativo em prejuízo do beneficiário.
45
o stF, no ms nº 22.357, fundamentado no princípio da segurança jurídica, deferiu o writ, contra deliberação do
tCu que determinara à infraero a regularização de admissões feitas sem concurso público logo após a CF de
1988. trecho da ementa: “transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança. 5. obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do estado
de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança
como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação
nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam:
a boa-fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da infraero,
vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto
à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a
alegada nulidade das contratações dos impetrantes”.
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no direito Positivo brasileiro, em período recente, duas leis, em especial, introduziram
regras concretas de respeito à segurança jurídica e à estabilidade das relações jurídicas: a Lei
nº 9.784/99 e a Lei nº 9.868/99.
A Lei nº 9.868/99, ao disciplinar o processo e julgamento das ações de controle
de constitucionalidade (Adi e AdC), abriu para o supremo tribunal Federal, “tendo
em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social”, a possibilidade
de declarar a inconstitucionalidade de ato normativo “com eficácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha ser fixado” (art. 27). Dessa forma,
procurou-se romper com o dogma do direito Constitucional brasileiro que associa a
declaração de inconstitucionalidade à nulidade ex tunc do ato viciado, com vistas a
garantir a intangibilidade dos atos concretos praticados com fundamento na norma
viciada antes da declaração pelo supremo. Percebe-se claramente a mitigação do princípio da legalidade, pela possibilidade de o supremo decidir sobre a conveniência de
se preservarem as relações jurídicas constituídas à luz de lei posteriormente declarada
inconstitucional.
A Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, elencou a “segurança jurídica” como princípio a ser observado
pela Administração, ao lado de outros, como a legalidade, a moralidade, a motivação.
nos artigos 53 a 55, inseridos no Capítulo Xiv, a lei tratou da anulação, da revogação e
da convalidação dos atos administrativos. O art. 54 fixou em cinco anos o prazo decadencial para que a Administração anule os atos administrativos de que decorram efeitos
favoráveis para os destinatários, salvo nos casos de comprovada má-fé.
o art. 53 utilizou o verbo “dever”, aparentemente para deixar claro que a anulação do ato ilegal não é mera faculdade da Administração, mas um dever. isso não
significa, todavia, prevalência absoluta do princípio da legalidade. Nos artigos seguintes, o princípio é mitigado: o art. 54 estabelece o prazo de decadência dentro do qual a
Administração poderá anular; e o art. 55 prevê as circunstâncias em que o ato poderá
— ou “deverá”, segundo alguns autores, como Weida Zancaner46 — ser convalidado.
A fixação de prazo dentro do qual a Administração exerça o seu poder-dever de
anular os seus próprios atos eivados de ilegalidade e dos quais decorram efeitos favoráveis para os administrados era exigência antiga de considerável parte da doutrina
e da jurisprudência, que não admitiam que o destinatário do ato vivesse em eterno
sobressalto, à espera de possível mudança de posicionamento da Administração.
Ainda em 1987, em artigo publicado na Revista de Direito Público com o sugestivo
título “Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no
estado de direito contemporâneo”, o Professor Almiro do Couto e silva analisou com
profundidade a questão relativa ao conflito entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica, e criticou a excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo,
especialmente no âmbito do direito Administrativo.47 esse artigo foi fonte fundamental
para outro mais recente, de 1997, do Professor márcio nunes Aranha, intitulado “segurança jurídica stricto sensu e legalidade dos atos administrativos: convalidação do ato
nulo pela imputação do valor de segurança jurídica em concreto à junção da boa-fé e
46
47
Cf. ZAnCAner. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos.
Couto e siLvA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito
contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 46-63.
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108
do lapso temporal”48 (grifamos). esse último artigo fez referência ao então projeto de
lei, que seria posteriormente convertido na Lei nº 9.784/99.
A questão — diga-se uma vez mais — não é trivial e envolve o sentimento de
justiça e de respeito ao princípio da isonomia. Por que, por exemplo, aposentadoria
concedida pela Administração com flagrante ofensa à lei, cujos proventos sejam muito
superiores aos que determina a lei, não poderia ser revista em razão do simples transcurso do tempo? Por que perpetuar situação ilegal ou mesmo não exigir o ressarcimento
de pessoa que receba proventos muito superiores aos de todos que se aposentaram na
mesma situação? Por que deveria a sociedade sustentar tais pagamentos, quando evidenciada a irregularidade do ato de concessão? É justo manter pagamento ilegal pelo
simples fato de os servidores estarem com suas remunerações ou proventos defasados?
essas questões práticas devem ser respondidas com equilíbrio.
Assim como a legalidade e a isonomia, a segurança jurídica é bem jurídico e
princípio a ser respeitado. valemo-nos de algumas passagens do artigo do Professor
Almiro do Couto e silva a que nos referimos.
se é antiga a observação de que justiça e segurança jurídica freqüentemente se completam,
de maneira que pela justiça chega-se à segurança jurídica e vice-versa, é certo que também freqüentemente colocam-se em oposição. Lembre-se, a propósito, o exemplo famoso
da prescrição, que ilustra o sacrifício da justiça em favor da segurança jurídica, ou da
interrupção da prescrição, com o triunfo da justiça sobre a segurança jurídica. institutos
como o da coisa julgada ou da preclusão processual, impossibilitando, definitivamente o
reexame dos atos do estado, ainda que injustos, contrários ao direito ou ilegais, revelam
igualmente esse conflito. (...)
No fundo, porém, o conflito entre justiça e segurança jurídica só existe quando tomamos
a justiça como valor absoluto, de tal maneira que o justo nunca pode transformar-se em
injusto e nem o injusto jamais perder essa natureza. A contingência humana, os condicionamentos sociais, culturais, econômicos, políticos, o tempo e o espaço — tudo isso impõe
adequações, temperamentos e adaptações, na imperfeita aplicação daquela idéia abstrata
à realidade em que vivemos, sob pena de, se assim não se proceder, correr-se o risco de
agir injustamente ao cuidar de fazer justiça. nisso não há nada de paradoxal. A tolerada
permanência do injusto ou do ilegal pode dar causa a situações que, por arraigadas e
consolidadas, seria iníquo desconstituir, só pela lembrança ou pela invocação da injustiça
ou da ilegalidade originária.
Do mesmo modo como a nossa face se modifica ou se transforma com o passar dos anos,
o tempo e a experiência histórica também alteram, no quadro da condição humana, a face
da justiça. na verdade, quando se diz que em determinadas circunstâncias a segurança
jurídica deve preponderar sobre a justiça, o que se está afirmando, a rigor, é que o princípio da
segurança jurídica passou a exprimir, naquele caso, diante das peculiaridades da situação
concreta, a justiça material. segurança jurídica não é, aí, algo que se contraponha à justiça; é
ela a própria justiça. Parece-me, pois, que as antinomias e conflitos entre justiça e segurança
jurídica, fora do mundo platônico das idéias puras, alheias e indiferentes ao tempo e à
história, são falsas antinomias e conflitos. Nem sempre é fácil discernir, porém, diante do
caso concreto, qual o princípio que lhe é adequado, de modo a assegurar a realização da
Justiça: o da legalidade da Administração Pública ou o da segurança jurídica? A invariável
aplicação do princípio da legalidade da Administração Pública deixaria os administrados,
48
ArAnHA. segurança jurídica stricto sensu e legalidade dos atos administrativos: convalidação do ato nulo pela
imputação do valor de segurança jurídica em concreto a função da boa-fé e do lapso temporal. Revista de Informação
Legislativa, p. 59-73.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
em numerosíssimas situações, atônitos, intranqüilos e até mesmo indignados pela conduta
do estado, se a este fosse dado, sempre, invalidar seus próprios atos — qual Penélope,
fazendo e desmanchando sua teia, para tornar a fazê-la e tornar a desmanchá-la — sob
o argumento de ter adotado uma nova interpretação e de haver finalmente percebido,
após o transcurso de certo lapso de tempo, que eles eram ilegais, não podendo, portanto,
como atos nulos, dar causa a qualquer conseqüência jurídica para os destinatários. (...)
Esclarece Otto Bachof que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos
anos 50, na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o principio da possibilidade
de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à
boa-fé e à segurança jurídica. informa ainda que a prevalência do principio da legalidade
sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por
meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua
responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido.
embora o confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da
segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa etc., o anulamento com eficácia
ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o
interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso
o anulamento quando se trata de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de
índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria. É este, com algumas
críticas, formuladas pelas autorizadas vozes de Forsthoff e Bachof, o status quaestionis na
Alemanha, como se pode ver dos manuais mais recentes.49
A influência do Direito alemão para a evolução do Direito Constitucional brasileiro, sobretudo no que se refere às técnicas de controle de constitucionalidade das
normas e dos efeitos das declarações de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade,
é indiscutível, sendo flagrante na Lei nº 9.868/99. Ao extrapolar o campo do controle
de constitucionalidade, essa influência se faz sentir também no Direito Administrativo,
sendo evidente na Lei nº 9.784/99.
Ao examinar o direito francês, Almiro do Couto e silva destaca que, desde o
affaire Dame Cachet, de 1923, os atos maculados de nulidade só podem “ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses” — “mesmo
prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a
invalide dos atos administrativos”. enfatiza que, do caso Cachet até hoje, nada se alterou no Direito francês em matéria de revogação e anulamento dos atos administrativos.
“rivero esclarece que a razão disto está em que ‘a jurisprudência considera a segurança
jurídica mais importante do que a própria legalidade’. Completamente uniformes, sobre
este tema, são as opiniões de Laubadere, Francis-Paul Benoit, George vedel e marcel
Waline”50 (grifamos).
o Professor Almiro do Couto e silva prossegue suas incursões no direito Comparado, e cita as soluções para o conflito entre os princípios da legalidade e da segurança
jurídica no direito italiano e no direito português.
em seguida, antes de analisar o problema no direito brasileiro, analisa a solução
dada para a antinomia entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica no direito Constitucional norte-americano, e conclui que, mesmo naquele sistema, do qual
49
50
Couto e siLvA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito
contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 54-56.
Couto e siLvA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito
contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 56-57.
109
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
110
herdamos o dogma de que a lei declarada inconstitucional seria null and void, cresce a
preocupação com a segurança jurídica, admitindo-se muitas exceções ao princípio da
nulidade da lei inconstitucional:
É o que exprimiu a suprema Corte americana ao sentenciar que “nem sempre o passado
pode ser apagado por uma nova declaração judicial. estas questões situam-se entre as
mais difíceis das que atraíram a atenção das cortes, estadual e federal, e resulta manifesta
de numerosas decisões que a afirmação inteiramente abrangente do princípio de uma
invalidade absolutamente retroativa não pode ser justificada”.
A orientação tradicional, como atesta o magnífico repositório do Direito norte-americano,
que é o Corpus Juris Secundum, é a de que “uma decisão de um tribunal competente no
sentido de que uma lei é inconstitucional tem o efeito de tornar essa lei null and void; o ato,
sob o ponto de vista legal, é tão inoperante como se nunca tivesse sido exarado ou como
se nunca tivesse sido escrito, é tido como inválido ou írrito, desde a data de sua emissão,
e não apenas da data na qual foi declarada inconstitucional”.
mas logo adiante registra a orientação mais recente, referindo numerosas decisões que têm
apreciado a questão: “de outro lado, tem sido sustentado que esta regra geral não é universalmente verdadeira ou nem sempre absolutamente verdadeira; que comporta muitas
exceções; que é afetada por muitas considerações; que uma visão realista tem erodido essa
doutrina; que tão amplo princípio deve ser entendido como [com] temperamentos e que
mesmo uma lei inconstitucional é um fato operativo, pelo menos antes da declaração de
inconstitucionalidade e que deve ter conseqüências as quais não podem ser ignoradas”.
Cresce de ponto o significado da penetração do princípio da segurança jurídica no Direito
norte-americano, em tema de inconstitucionalidade das leis, quando é sabido que lá
prepondera, em matéria de efeito retro-operante das decisões dos Tribunais, a ficção de
Blakstone, segundo a qual o juiz não faz outra coisa senão exprimir a verdadeira regra
jurídica tal como sempre existiu, desde as suas origens, mas que temporariamente não
se havia reconhecido.51
A solução adotada pelo legislador brasileiro para fixar o prazo de decadência
dentro do qual a Administração pode exercer o seu dever de autotutela é, essencialmente, a mesma adotada pelo Conselho de estado da França, desde o caso Cachet, de
1923. A diferença está apenas no dimensionamento do prazo, significativamente maior
no direito brasileiro, de cinco anos, quando, na França, é de apenas dois meses.
Nos dois sistemas, contudo, o critério foi o de fixar o prazo para a Administração anular os seus atos dos quais decorram benefícios indevidos para o administrado
idêntico ao prazo que o administrado tem para impugnar o ato administrativo que
considere que lhe é indevidamente prejudicial. no caso francês, o particular tem apenas
dois meses para impugnar o ato no contencioso administrativo. no caso brasileiro, a lei
fixa, como regra geral, o prazo de cinco anos das ações judiciais contra atos do poder
público (decreto nº 20.910, de 06.01.1932, art. 1º, com força de lei).
Aliás, no direito brasileiro, esse prazo de cinco anos tende a se estabelecer como
regra geral tanto para o cidadão quanto para o estado. Além dos dois normativos já
mencionados, podem ser citados o Código Tributário Nacional, que fixa no art. 174 o
prazo prescricional de cinco anos das ações judiciais do poder público para cobrança
de tributos e, no art. 173, igual prazo para a decadência do direito de constituir o crédito tributário; a Lei nº 9.873/99, que fixa “em cinco anos a prescrição da ação punitiva
51
Couto e siLvA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito
contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 58-59.
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia,
objetivando apurar infração à legislação em vigor (...)”; a Lei nº 4.717/65, que fixa em cinco
anos o prazo de prescrição da Ação Popular; a Lei nº 9.494/97, que fixa os mesmos cinco
anos para a ação visando à indenização por danos causados por pessoas jurídicas de
direito Público ou de direito Privado prestadora de serviços públicos. Há exceções,
como o prazo para impugnar atos referentes a concursos públicos, que é de um ano,
nos termos da Lei nº 7.144/83.
3.6.2.5 Continuidade do serviço público
o estado democrático de direito se notabiliza pela prestação de serviços à
população em segmentos da sociedade considerados sensíveis e necessários. Conforme
examinamos no Capítulo 2, é papel da Constituição Federal definir as atribuições do
estado e, dentro dessas atribuições, indicar os serviços a serem prestados pelos poderes
públicos. Ainda que a escolha dessas funções estatais seja matéria de política legislativa,
ela não ocorre de modo leviano. As atividades mais necessárias à população são elevadas à categoria de serviço público e, conforme define o texto constitucional (art. 175),
“incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão
ou de permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
A necessidade de prestação dos serviços públicos sem interrupções é igualmente
demonstrada pelo texto constitucional quando assegura ao servidor público civil o
direito de livre associação sindical (art. 37, vi), mas condiciona e admite restrição ao
exercício do direito de greve ao dispor que este direito “será exercido nos termos e nos
limites definidos em lei específica”.
o princípio da continuidade do serviço público foi objeto de exame em recente
decisão proferida pelo stF no julgamento do re nº 220.906 — acórdão que será melhor
examinado no Capítulo 4. na fundamentação do voto vencedor, em nome da realização desse princípio, o stF admitiu exceção ao sistema segundo o qual as prerrogativas
públicas aplicáveis às empresas públicas e sociedades de economia mista são somente
aquelas especificamente definidas pelo texto constitucional. Em nome desse princípio,
admitiu o stF que lei possa conferir a pessoa de direito privado, como é o caso dos
Correios, prerrogativa pública, correspondente à impenhorabilidade dos seus bens.
no exame do presente caso, ainda que possa ter ocorrido supervalorização do
princípio — que poderia justificar, independentemente de qualquer lei, tão somente
a impenhorabilidade dos bens imprescindíveis à prestação dos serviços dos Correios,
regra, aliás, aplicável a qualquer outra empresa pública ou privada que tenha a incumbência de prestar serviços públicos essenciais — demonstra-se a importância que o
princípio assume para a teoria Geral do direito Administrativo.
Tomemos outra situação, relacionada aos conselhos que fiscalizam o exercício
das profissões regulamentadas. Ao julgar a ADI nº 1.717/DF, o STF reafirmou a natureza
autárquica dessas entidades. ora, se são autarquias, a elas se aplica o dever constitucional de prover seus cargos e empregos por meio de concursos públicos, o que somente
ocorreu em raros casos. Como proceder diante das situações em que a contratação de
pessoal por parte dessas entidades não tenha sido precedida do devido concurso público? evidentemente, o primeiro princípio a ser utilizado em defesa da manutenção
do pessoal contratado sem concurso público é o da segurança jurídica, haja vista essas
111
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
112
contratações, até a data em que o stF se manifestou pela necessidade da realização
do concurso público, eram tidas como lícitas e regulares. o princípio da continuidade
do serviço público também pode ser considerado. dado que a grande maioria das
contratações de pessoal realizadas por mencionadas entidades não foi precedida de
concurso público, o afastamento de mencionado pessoal, que seria a solução apontada
pelo princípio da legalidade, importaria em paralisação das atividades desenvolvidas, verificar-se-ia o choque entre três princípios: de um lado a legalidade, do outro, a
segurança jurídica e a continuidade do serviço público. diante dessa aparente colisão, a
solução deve favorecer a realização dos dois últimos princípios.
também com apoio no princípio da continuidade do serviço público, o tribunal
de Contas da União, ao identificar falhas em certame licitatório que originou a contratação de determinada empresa para a prestação de serviços essenciais à Administração
Pública, tem, em determinadas situações, optado por determinar ao órgão ou à entidade
contratante que realize nova licitação para a contratação dos serviços, em vez de fixar
prazo para que o órgão anule o contrato, permitindo, com isso, a manutenção do contrato pelo tempo estritamente necessário à realização da nova contratação.52
3.6.2.6 Autotutela
este princípio decorre diretamente da supremacia do interesse público sobre os
interesses privados. Conforme examinamos neste capítulo, determinados interesses
gerais, em função de sua importância para a sociedade, são elevados à categoria de interesses públicos e acabam por gerar a existência de prerrogativas ou potestades públicas.
A autotutela decorre diretamente da supremacia do interesse público sobre os
interesses privados e, no Brasil, o seu reconhecimento verificou-se independentemente
de lei específica. Por meio da Súmula nº 473, o STF reconheceu à Administração Pública
o poder de anular ou de revogar seus próprios atos.
A anulação dos atos jurídicos ocorre, no mundo do direito Privado, necessariamente por meio da intervenção judicial. não é possível a um particular declarar nulo
ato ou contrato, haja vista essa prerrogativa ser privativa do estado. Quando o poder
público for parte de uma relação jurídica, ao contrário, independentemente de intervenção
judicial, ele tem a faculdade de, após assegurar direito ao contraditório e à ampla defesa,
anular seus atos ou contratos sem que seja necessária qualquer intervenção judicial.
Quanto à necessidade do contraditório e da ampla defesa, eles somente são
devidos em hipóteses de atos individuais, entendidos estes como os atos que afetam
pessoa ou pessoas determinadas. na hipótese de anulação de um concurso público, por
exemplo, que constitui processo composto por diversos atos gerais, não há necessidade
de ser assegurado contraditório ou candidatos. Considere, por hipótese, que se descobre que servidor do órgão teve acesso ao gabarito das provas e a elas deu divulgação
ilícita. diante da necessidade de anulação do certame, por que se deveria assegurar
aos candidatos inscritos direito ao contraditório ou de ampla defesa? Contraditório
52
tCu: “Acerta, a meu ver, a unidade instrutiva ao propor que o tribunal determine à iCC a imediata realização
de procedimento licitatório para a supressão da impropriedade acima referida e, ao mesmo tempo, sugerir a
continuidade da execução dos serviços por parte da atual prestadora. essa solução parece-me consentânea com
o princípio da continuidade do serviço público que não permite a interrupção dos serviços referidos, necessários
à preservação do patrimônio público” (Acórdão nº 57/00, Plenário)
CAPítuLo 3
reGime JurídiCo AdministrAtivo
ou ampla defesa contra o quê? Distinta situação se verifica quando a Administração
anula a inscrição de um candidato específico ou a sua nomeação, caso aprovado. Nessas
hipóteses, estamos diante de atos individuais, que afetam pessoas determinadas. Aqui,
a fim de que o poder público possa exercer sua prerrogativa de anular seus próprios
atos, será obrigatória a realização do contraditório e da ampla defesa.
A revogação dos atos administrativos, faculdade que igualmente decorre diretamente do princípio da autotutela e, indiretamente, da supremacia do interesse público,
está relacionada a aspectos de conveniência e de oportunidade. salvo hipóteses especiais
relacionadas a características de alguns atos que impedem a revogação destes, como
é a hipótese de se tratar de ato vinculado, de atos exauridos ou de ato individual que
tenha gerado direitos adquiridos (conforme será examinado no Capítulo 5), o poder
público, por força da supremacia do interesse público, dispõe da prerrogativa de desfazer
determinados atos que tenham produzido em razão de critérios de oportunidade ou de
conveniência. na eventualidade de ter sido praticado ato vinculado, a impossibilidade
de revogação decorre do simples fato de que ela ocorre por motivo de conveniência ou
de oportunidade, e o que notabiliza o ato vinculado é exatamente a não interferência
de motivos de conveniência ou de oportunidade na formação do ato. no caso do ato
exaurido, ou consumado, entendido este como aquele que já produziu todos os efeitos
que dele se poderia esperar, a impossibilidade de revogação se deve ao fato de que esta,
a revogação, não pode retroagir, não pode alcançar efeitos pretéritos. A revogação produz efeitos ex nunc. ora, se o ato consumado é aquele que já produziu todos os efeitos
que dele se poderia esperar, o resultado resta evidente: o poder da Administração de
revogar atos administrativos não alcança atos exauridos ou consumados, haja vista
todos os seus efeitos se encontrarem no passado.
À exceção dos atos acima indicados, a supremacia do interesse público gera o
poder, ou princípio, da autotutela e permite que o poder público possa, por exemplo,
conceder a particular determinada autorização e, posteriormente, revogá-la.
este poder se encontra atualmente expressamente previsto em lei. o art. 52 da
Lei nº 9.784/99 reproduziu quase literalmente o enunciado da súmula nº 473 do stF e,
em relação ao poder da Administração de anular seus atos, fixou prazo dentro do qual
pode ser exercida essa faculdade.
3.6.2.7 Controle judicial
Aliado ao princípio da autotutela, que permite à Administração Pública rever
seus atos, a inafastabilidade da apreciação judicial cria, na teoria Geral do direito Administrativo, o princípio do controle judicial da Administração Pública. evidentemente
a importância deste tema requer o seu tratamento em capítulo próprio (Capítulo 18).
Cumpre, agora, tão somente reiterar que todos os atos praticados pelo estado,
e aí se incluem os atos administrativos, estão sujeitos a controle judicial. este controle
examina a legalidade em sentido amplo dos atos administrativos, ou seja, a conformidade destes com todas as regras e princípios que compõem o ordenamento jurídico.
Fixada esta premissa — de que o Poder Judiciário examina a legalidade de todos
os atos administrativos — temos que desenvolver mecanismos que permitam o adequado
exame dos diversos atos praticados pelo estado no exercício da sua função executiva.
o Poder Judiciário não pode controlar a legalidade de ato praticado por entidade que
113
114
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
dispõe de ampla discricionariedade técnica servindo-se do mesmo instrumental de que
se vale para aferir a legitimidade de ato vinculado, por exemplo. Conceitos jurídicos
indeterminados, discricionariedade técnica, a necessidade de eficiência que se espera
da Administração, a existência dos atos de governo ou políticos são alguns desafios
que se apresentam aos juízes por ocasião do controle que exercem sobre a atividade
administrativa.
no Brasil, valoriza-se muito o controle judicial da atividade administrativa, o
que é salutar para a nossa democracia. nada mais absurdo ou antidemocrático do que
pretender que a natureza eletiva dos cargos ocupados pelos chefes do Poder executivo
lhes exima de controle. os representantes do povo são os legisladores, e a importante
função a ser exercida pelo Poder Judiciário no desempenho da sua atividade de controle
da Administração Pública é a de verificar se a vontade do povo, manifestada por meio
de seus representantes — os legisladores — está sendo respeitada. A função do juiz no
exercício do controle da Administração Pública é a de verificar o cumprimento da lei,
entendida esta em sentido amplo, no sentido de conformidade com todos os princípios
e regras que compõem o ordenamento jurídico.
valoriza-se, todavia, em demasia, a possibilidade de todos os atos serem a qualquer tempo, inclusive antes de se esgotar a instância administrativa, submetidos ao
controle judicial. esse excesso de acesso judicial sob a atividade administrativa — tudo
é levado à apreciação judicial, a qualquer tempo — acaba por comprometer a eficácia da
atividade administrativa e a própria capacidade dos juízes de responderem adequadamente às demandas da sociedade. tão importante — ou talvez ainda mais importante
ainda — quanto o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial é o princípio da
efetividade da tutela judicial. muitos de nossos tribunais, cada vez mais empenhados
em defender suas próprias competências ou seu campo de atuação, ampliam o controle
judicial da atividade administrativa e o resultado são milhares de ações judiciais não
julgadas.
A fim de defender o bom, correto, necessário e democrático controle judicial da
atividade administrativa, temos de fixar os limites desse controle de modo a impedir
que os juízes possam simplesmente substituir a atividade dos administradores públicos.
todas essas questões serão estudadas mais detalhadamente no Capítulo 18.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
4.1 As bases da Administração Pública
4.1.1 direito da organização Administrativa
A organização da Administração Pública ganha relevo especial na formação da
teoria Geral do direito Administrativo. sua importância se deve ao fato de que toda
atividade administrativa se desenvolve, direta ou indiretamente, ou ao menos se inicia,
por meio da atuação de órgãos ou de entidades públicas.
o estado moderno, de feição social e cooperativa, é chamado a interferir em todas
as áreas da sociedade. impossível imaginar área em que o estado não se faça, de algum
modo, direta ou indiretamente, presente. essa é uma característica das sociedades
modernas: o grande intercâmbio de informações e de atividades entre os setores público
e privado. Se é verdade que a atividade do Estado é cada vez mais influenciada pelo
direito Privado — a ponto de, em razão das reformas gerenciais empreendidas entre
nós ao longo da década de 1990, ter-se falado em processo de fuga do direito Administrativo — não se pode igualmente negar que as atividades privadas — empresariais
ou não — nunca sofreram tanta influência do Estado, ainda que a atividade estatal
hoje esteja muito mais voltada para a regulação, orientação, fornecimento de dados
e de apoio aos setores privados do que propriamente para a intervenção direta do
estado na sociedade. Considerando que o estado somente se torna capaz de atuar por
meio de suas unidades administrativas — entendidas estas como órgãos ou entidades
públicas —,1 devemos proceder ao estudo da organização do estado dentro de uma
1
A Constituição Federal, em seu art. 71, iv, confere competência ao tribunal de Contas da união para realizar
inspeções e auditorias “nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, executivo e Judiciário, e demais
entidades referidas no inciso ii”. na mesma linha, a Lei nº 9.784/98, que cuida do processo administrativo no
âmbito da Administração Pública federal, dispõe nos seguintes termos:
“Art. 1º (...)
§2º Para os fins desta Lei, consideram-se:
i - órgão – a unidade de atuação integrante da estrutura da Administração direta e da estrutura da Administração
indireta;
ii - entidade – a unidade de atuação dotada de personalidade jurídica; (...).”
em face da redação utilizada pelo texto da Constituição Federal e pela lei do processo administrativo, o termo
unidade administrativa é gênero, do qual são espécies as entidades, que se caracterizam pela existência de
personalidade jurídica própria, e os órgãos, como partes integrantes da estrutura das entidades.
116
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
perspectiva de que ele não é, em si, jamais, o fim, mas apenas o meio para a satisfação
das necessidades da população.
A organização da Administração Pública deve considerar que o estado não é
hermético, mas que está em constante comunicação com a sociedade. um papel a ser
desempenhado por esta parte do Direito Administrativo consiste, portanto, na definição
de como os particulares podem interagir — termos de parceria, convênios, concessões
permissões, parcerias público-privadas etc. — com a estrutura administrativa de modo
a desempenhar atividades de interesse geral da sociedade.
A esta parte do direito Administrativo nos reportaremos como o direito da
organização Administrativa. suas regras assumem importância central no sistema, pois
serão elas que irão disciplinar e permitir o desempenho de todas as atividades administrativas, sejam elas prestadas diretamente pelas próprias unidades administrativas,
sejam elas transferidas por meio de diferentes acordos de vontade aos particulares que
colaboram com o estado na execução das atividades públicas ou de interesse coletivo.
4.1.2 direito Constitucional e direito da organização Administrativa
Ao se inserir na teoria Geral do direito Administrativo, o direito da organização Administrativa passa a sofrer influência direta do Direito Constitucional em dois
aspectos principais. Em primeiro lugar, as regras básicas definidoras das funções do
estado, inclusive no que concerne à separação dos poderes, e da distribuição de atribuições ou de competências entre as diferentes esferas de governo — federal, estadual
e municipal —, têm estatura constitucional, o que obriga o legislador a ter de sempre
considerar essas normas constitucionais quando pretender interferir na organização
da Administração Pública.
A segunda grande influência exercida pelo Direito Constitucional sobre o Direito
da organização decorre do papel desempenhado pelos direitos fundamentais na defesa
de interesses individuais e gerais, tanto em relação à necessidade de o estado agir de
modo a assegurar a dignidade da pessoa humana — dever de atuação positiva —,
quanto em relação ao estabelecimento de limites à atuação estatal, o que lhe impõe o
dever de respeitar o âmbito das liberdades individuais em face de interferências estatais
impositivas — dever de atuação negativa.
4.1.3 organização da Administração Pública e princípios gerais da
Administração Pública
A interferência exercida pelo direito Constitucional sobre o direito da organização Administrativa reclama de toda atuação administrativa a necessária legitimidade
— decorrente da concepção de estado democrático de direito. essa legitimidade deve
ser buscada, inicialmente, na lei. Cabe a esta dar legitimidade às unidades administrativas, tanto em relação à sua criação quanto em relação à sua atuação. Quanto à atuação,
a legitimidade pode ser alcançada por outros meios democráticos, e não apenas pelo
caminho estrito da lei.
Neste ponto, o Estado de Direito parece entrar em conflito com o Estado Democrático. o primeiro reclama a necessária aprovação de lei para legitimar as interferências
estatais na sociedade; o segundo, pertinente à legitimidade, não prescinde da necessária
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
aprovação da sociedade relativamente a toda e qualquer interferência estatal. o ponto
de equilíbrio para esse aparente conflito deve ser encontrado na necessária edição de lei
como requisito formal imprescindível para legitimar a criação de toda e qualquer unidade
administrativa, bem como para definir, ainda que de forma genérica, suas atribuições.
Fere o princípio do estado de direito admitir a criação de unidades administrativas
por outro processo que não a lei. todavia, criada por lei, e desde que compatível com
suas atribuições genéricas, a atuação da unidade administrativa — dever de atuação
positiva — pode encontrar outras fontes de legitimação, como, por exemplo, a obtenção
de resultados benéficos para toda a sociedade.
se é certo que a concepção da necessária submissão da Administração Pública
à legalidade estrita desempenhou seu papel histórico de conter o estado império, de
impor-lhe limites, a fim de que as esferas privadas de liberdade fossem respeitadas,
também é certo que essa concepção não mais responde a todas as necessidades do
estado moderno, de atuação precipuamente social e cooperativa.
A lei continua a desempenhar função básica no direito da organização Administrativa. Cabe à lei definir a estrutura básica da Administração Pública, na medida
em que a criação de qualquer entidade ou órgão público necessita de lei. Cabe a ela
definir as atividades que, de acordo com a Constituição Federal, são desempenhadas
pelo estado e aquelas cuja execução será transferida a particulares. e, sobretudo, cabe
à lei dar racionalidade à organização da Administração Pública, garantido a devida
segurança jurídica ao particular que se relaciona com o estado.
A elevação do direito da organização Administrativa a nível constitucional cobra
legitimidade também em relação aos resultados a serem alcançados pela atividade
administrativa. A partir da concepção de que o estado moderno é instrumento para
a satisfação das necessidades da sociedade, a legitimidade democrática reclama das
diversas unidades administrativas, além da necessidade de observância ao princípio
da reserva da lei, a ideia de eficiência. A legitimidade da atividade administrativa não
se resume à estrita observância da legalidade institucional — que exige lei para criar e
autorizar o exercício de atividades administrativas. ela vai além. A partir dessa visão
instrumental do Estado moderno, deve haver transparência nos processos que definem
as diferentes funções do estado. esses processos devem estar sujeitos a mecanismos
de controle por parte do próprio estado e da sociedade, controle esse que, entre outros
aspectos, considera como requisito de legitimidade a relação custo/benefício para a
sociedade das diferentes atividades ou funções administrativas.
É evidente que o exame de eficiência não se restringe a aspectos financeiros.
Como seria possível, por exemplo, aferir, sob a exclusiva ótica financeira, a eficiência
de uma universidade, de uma escola fundamental, ou de um programa de governo
destinado a erradicar a pobreza ou a fome? Todavia, o aspecto financeiro, ainda que não
seja o único, é de fundamental importância e por isso deve ser levado em consideração.
Os custos financeiros gerados pela atividade estatal devem ser sopesados em função
dos benefícios sociais, econômicos, ambientais ou mesmo financeiros visados com o
desempenho das atividades estatais.
o direito da organização Administrativa deve cuidar do novo formato do estado,
que assume função subsidiária no que toca ao papel de suprir as necessidades da
sociedade, o que não importa, todavia, em redução de sua importância. tomemos o
caso dos serviços de telefonia, de competência da união, e que há poucos anos tinha
117
118
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
sua prestação realizada diretamente pela Administração Pública. nos atuais, o estado
mantém seu dever de assegurar à sociedade serviços de telefonia adequados (Lei
nº 8.987/95, art. 6º), mas a sua função deixou de ser prestadora e passou a ser a de agente
regulador e fiscalizador de referido serviço. Essa mudança de função não permite
qualquer conclusão acerca da redução da importância do estado. A forma de cumprir
sua atuação é que mudou; de prestador, passa o estado a ser garantidor de serviços
adequados. uma consequência natural desse processo é a criação de unidades administrativas especializadas (agências) na função de garantir a qualidade desses de serviços
e dotadas de elevada autonomia administrativa, financeira e gerencial.
esse novo quadro gera situações impossíveis de serem respondidas satisfatoriamente pela visão tradicional do direito Administrativo, que trabalha com regras
que asseguram à Administração Pública posição de supremacia presumida em face
dos particulares. não há como essas regras responderem às diversas situações fáticas
apresentadas e que afetam, por exemplo, as relações estabelecidas entre a Administração centralizada e as agências, entre as agências e as concessionárias, entre estas e os
usuários de referidos serviços, entre os usuários e os órgãos de controle (Judiciário e
tribunais de Contas) e, ainda, entre os usuários e as agências.
A criação de agências, o aumento da participação de empresas privadas na
prestação de serviços públicos, seja por meio de concessões, seja por meio de parcerias
público-privadas, e o incremento de relações entre a Administração Pública e entidades não governamentais são alguns exemplos da nova forma de atuação do estado.
este novo quadro impõe a adoção de um novo direito Administrativo, mais moderno,
capaz de responder de forma mais adequada, racional e eficiente à nova realidade da
sociedade. não se pode negligenciar, todavia, que esses novos mecanismos de atuação do estado ainda convivem com a estrutura tradicional da Administração Pública,
constituída pelas entidades da Administração direta (união, estados, distrito Federal
e municípios) e da Administração indireta (autarquias, fundações públicas, empresas
públicas e sociedades de economia mista).
As regras que compõem o direito da organização não admitem visão isolada.
elas devem ser examinadas, em primeiro lugar, em face da Constituição Federal e da
observância dos direitos fundamentais. em segundo lugar, deve ser considerado que
a atuação de todas as unidades administrativas está sujeita a exame de adequação de
resultados e de meios. em relação a este último, ganha relevo a observância das regras
do processo administrativo, haja vista a atuação de toda e qualquer unidade administrativa decorrer de processo administrativo. daí por que não se pode dissociar o estudo
do direito da organização das regras pertinentes ao processo administrativo. Ademais,
os resultados buscados e eventualmente obtidos pela atuação das diversas unidades
administrativas devem ser considerados no juízo de ponderação quanto à formação do
juízo de legalidade ou de conformidade com a ordem jurídica, sobretudo quando esses
resultados tiverem sido explicitados na motivação do ato administrativo e tiverem sido
determinantes como razão de decidir dos responsáveis pelas unidades administrativas.
Finalmente, devem também ser considerados no estudo do direito da organização os
demais princípios administrativos e as normas orçamentárias pertinentes.
4.1.4 reserva legal e reserva institucional
A visão tradicional de que se vale o direito Administrativo, e os seus operadores,
para definir a organização da Administração Pública não mais atende às expectativas
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
criadas em torno do papel a ser desempenhado pelo estado moderno. A principal
característica da moderna Administração é sua atuação multifacetada.
em algumas áreas, o estado assume função prestacional — estado social; em
outras, age como interventor em atividades econômicas, interfere no exercício de
direitos de particulares, impõe-lhes obrigações ou abstenções. não se pode conceber
que o instrumental jurídico que o estado utiliza em todas essas distintas tarefas seja o
mesmo. Constitui uma das grandes dificuldades para o Direito Administrativo cuidar de
situações tão diversas quando, muitas vezes, o instrumental jurídico posto à disposição
dos administradores é extremamente limitado. A atualidade do direito Administrativo
depende da verificação da sua capacidade de responder de forma efetiva às diferentes
formas de atuação do estado.
diante das inúmeras e tão variadas necessidades que as sociedades modernas
apresentam, diversos institutos do direito Administrativo devem ser reexaminados e
adaptados a essas distintas realidades, de modo a permitir que o estado possa mais
bem desempenhar sua função de atender às demandas e necessidades sociais.
o princípio da reserva de lei — segundo o qual a Administração somente pode
fazer o que a lei autoriza — é adequado para regular a atuação do estado intervencionista. essa visão tradicional do princípio da legalidade se mostra insatisfatória para
cuidar da atuação do estado prestacionista. A cada dia, a cada instante, surgem novas
e mais demandas sociais. Querer que todas essas atividades estatais tenham sido previamente autorizadas por lei formal é desnecessário e impossível. desnecessário, em
primeiro lugar, porque a prestação de serviços estatais não irá, na maioria das vezes,
interferir no âmbito de direitos individuais.
É conveniente que a Administração Pública, por meio de atos normativos, discipline todas as suas atividades de modo que toda atividade estatal possa ser controlada
a partir de parâmetros previamente definidos. Essa regulação deve ser feita por meio
de lei em sentido formal somente quando a interferência estatal impuser obrigação ou
abstenção aos particulares ou quando a Constituição Federal expressamente a exigir.
não se pode conceber, por exemplo, que o ministério das relações exteriores
somente possa realizar uma exposição de obras de arte em suas dependências se houver
prévia autorização legal. A lei em sentido formal é necessária quando a Constituição a
exigir. do contrário, ocorrerá indevida limitação da atividade administrativa do estado
e o maior prejudicado é a própria sociedade.
situação em que a Constituição Federal reclama lei em sentido formal diz respeito
à criação de órgãos ou de entidades públicas. A subsunção da estrutura administrativa
à lei, e que podemos denominar de reserva institucional, é ponto marcante no direito
da organização Administrativa. todavia, se essa vinculação da estrutura administrativa
à lei deve ser observada — o art. 61 da Constituição Federal, em seu §1º, ii, “b” e “e”,
confere competência privativa ao Presidente da república para a iniciativa de lei que
disponha sobre organização administrativa e criação de órgãos, bem como o art. 37, XiX,
requer lei para a criação, ou autorização para a instituição de entidades —, em relação
à atuação dessas mesmas unidades, a própria Constituição Federal mitiga a aplicação
do princípio da legalidade estrita ao permitir que o Presidente da república possa,
mediante decreto, dispor sobre a organização e o funcionamento dos órgãos.
vê-se que a criação de unidades administrativas, por força de disposições constitucionais expressas, observa estritamente o princípio da legalidade. o mesmo não se
119
120
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
verifica de forma tão estrita em relação à atuação dessas mesmas unidades, sendo cada
vez mais comum a técnica da legislação em branco.
Ao adotar essa técnica, o legislador define as atribuições básicas das unidades
administrativas e remete para normas infralegais o dever de detalhar sua atuação. A
técnica da legislação em branco vem ao encontro da necessidade de que a Administração
Pública deve estar preparada para responder mais adequadamente às novas demandas
sociais da sociedade.
A utilização de regulamentos para definir a atuação das unidades administrativas deve ter limites. em relação aos processos externos, que regulam o relacionamento
da unidade com os particulares e que afetem seus direitos ou interesses, o princípio
da segurança jurídica requer o seu tratamento por meio de lei. em relação à atuação
interna que não afete direitos ou pretensões de particulares é cada vez mais comum a
utilização de regulamentos para cuidar da atuação administrativa.
A visão estática e formal do direito da organização Administrativa é válida,
tão somente, para a definição da estrutura administrativa do Estado. As demandas
que a sociedade moderna apresenta não mais podem ser atendidas quando se adota a
visão tradicional, centralizada e hierarquizada de que toda e qualquer atuação estatal
depende de lei. esta continua a exercer papel fundamental na organização da atividade
administrativa, no sentido de regular a atuação estatal e, principalmente, de impor-lhe
limites. em alguns segmentos, em que o estado assume a função de agente mediador
de necessidades da sociedade, de agente cooperativo ou parceiro em atividades de
utilidade pública ou empresariais, de incentivador de atividades a serem desenvolvidas
pelos particulares, de agente regulador de serviços públicos cuja prestação tenha sido
delegada a particulares, deve ser reconhecido maior nível de informalidade à atuação
da Administração Pública, devendo o controle sobre essas atividades estatais pautar-se
sobretudo pela aferição dos resultados e pela observância de princípios da moralidade,
da impessoalidade, da publicidade etc.
o princípio da reserva legal, segundo o qual “ninguém é obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, ii), é apresentado
como distinto ou mesmo oposto à legalidade administrativa indicada no caput do art. 37
do texto constitucional. A legalidade da Administração, ao contrário, é tida como a
legalidade restrita ou estrita, no sentido de que a Administração Pública somente pode
praticar qualquer ato ou desenvolver qualquer atividade se houver lei que autorize ou
determine a prática desse ato ou a desempenho dessa atividade. essa visão tradicional, que opõe o princípio da reserva da lei ao da legalidade administrativa, parece-nos
equivocada. Possuem os dois dispositivos a mesma natureza e o mesmo alcance. o
artigo 5º da Constituição tem por destinatário o particular; o artigo 37, a Administração Pública. tratam os dois dispositivos apenas de enfoques distintos para o mesmo
princípio. Quando o texto constitucional, por força da própria separação de poderes,
impõe à Administração Pública (art. 37) a legalidade, visa a impedir que a Administração
imponha ao administrado qualquer obrigação — positiva ou negativa — sem que o faça
por meio de lei. Afirmar que ninguém, vale dizer, que os particulares somente podem
ser obrigados a fazer ou a deixar de fazer algo em função de lei tem o mesmo sentido
que afirmar que a Administração Pública somente pode intervir no âmbito de atuação
dos particulares impondo-lhes obrigações, condicionando-lhes o exercício de atividades, limitando-lhes o exercício de direitos, por exemplo, se se utilizar de lei. todavia,
nem toda atividade da Administração do estado importa em intervenção no âmbito de
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
atuação dos particulares, de modo que se pode concluir que a Administração Pública
possui certa margem de atuação que prescinde de lei. este instrumento — lei em sentido
formal, aprovada pelo Poder Legislativo — é necessário quando (1) o estado promover
intervenção no âmbito de atuação dos particulares e (2) quando a Constituição Federal
expressamente o exigir — por exemplo, a criação de órgãos ou entidades públicas ou a
realização de despesa pública, que pressupõe previsão orçamentária. se a atividade a
ser desempenhada pela função executiva do estado não importar em invasão na esfera
privada dos particulares ou não se enquadrar em hipótese para a qual a Constituição
tenha expressamente exigido lei, não há como se concluir que toda e qualquer atividade
administrativa do estado estejam a depender de lei prévia autorizativa.
As privatizações, as concessões e permissões de serviços públicos, a utilização pelo
estado, cada vez mais frequente, de organizações não governamentais para desempenhar atividades de interesse social, a constatação de que o estado moderno atua muitas
vezes como incentivador, e não como interventor direto, de atividades desenvolvidas
em parceria ou colaboração com a sociedade impõem a revisão da concepção tradicional e amplamente aceita de que toda atividade administrativa do estado depende de
expressa previsão legal. A realidade atual reclama a pronta atuação do estado em novas
áreas ou setores — o acesso à internet, o apoio à inclusão social, o apoio a gestantes,
idosos ou a pessoas com deficiências etc. —, e não se pode formalizar excessivamente a
atuação da Administração Pública no desempenho dessas atividades que não importam
em qualquer intervenção ou limitação de direito de particular. tomemos o exemplo de
município que tenha a pretensão de desenvolver programa social que objetive informar
à população desempregada as oportunidades de emprego disponíveis no mercado.
desde que sejam indicados os recursos orçamentários necessários e que exista órgão
público com competência genérica para desenvolver programas sociais — uma secretaria
de ação social ou do trabalho —, a execução desse programa de governo independe
de previsão expressa em lei. reconhecer certa margem de informalidade à capacidade da
Administração de desenvolver determinadas atividades de interesse social apenas justifica a razão de ser e de existir do Estado: instrumento de satisfação das necessidades
da sociedade, em especial no que relaciona à dignidade da pessoa humana.
A lei, em seu sentido formal, continua a desempenhar papel fundamental no
direito Administrativo. Cabe a ela conferir racionalidade e segurança à sociedade.
Todavia, é de se reconhecer a necessidade de mais flexibilidade e de liberdade ao Estado
para exercer sua função executiva. surge, desse modo, o que se pode denominar Administração Pública informal.
4.1.5 Administração informal
A grande dificuldade em se reconhecer a existência de certo nível de informalidade na atuação da Administração Pública decorre da concepção dominante quanto à
aplicação do princípio da legalidade. Conforme examinado, a legalidade administrativa
não nos pode levar ao exagero de estabelecer como requisito de legitimidade de que
todo e qualquer ato administrativo tenha sido prévia e detalhadamente disciplinado em
lei. esta, a lei, exerce papel fundamental para o desempenho da função administrativa
do Estado, sobretudo para a definição de soluções racionais, para evitar conflito de
atribuições entre diferentes unidades administrativas, e para conferir segurança jurídica
à sociedade e ao próprio estado.
121
122
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Há áreas ou atividades administrativas em que a informalidade deve ser tida como
totalmente descabida. não se pode admitir informalidade, por exemplo, na condução
de processos restritivos de direitos, de que seria exemplo o processo disciplinar, que
devem observar o devido processo “legal”. igualmente não se pode admitir informalidade em processos que permitem à Administração Pública a imposição de obrigações
aos particulares, para criar órgãos ou entidades, para desempenhar atividades para os
quais a Constituição Federal imponha a necessidade de lei ou para delegar atividades
estatais a particulares.
A informalidade administrativa não se presta para invadir a esfera privada dos
particulares, impondo-lhes obrigações ou restringindo-lhes o exercício de direitos. todavia,
na condução de inúmeras atividades administrativas internas, que não afetam a liberdade
ou o âmbito de direitos dos particulares, negar informalidade, além de ausência de fundamentação jurídica, demonstra total desconhecimento da realidade administrativa. A
fim de confirmar a existência dessa informalidade pode ser utilizado como exemplo a
lei de licitações, que determina que nas contratações sem licitação deve ser justificado
o preço do contrato. Como deve proceder o administrador público para definir o valor
de referência a ser utilizado nessas contratações? Diante do dever de justificar o preço
contratado, exigência imposta pela legislação, e da inexistência de parâmetros legais para
proceder a essa justificação, como esperar que o administrador siga trâmites formais se
não há qualquer legislação dispondo quanto a esse formalismo?
A existência de informalidade na atividade administrativa não importa em conferir carta-branca ao administrador. impõe-se a este o dever de motivar seus atos, além
de ter de realizar interesse público. A adoção de soluções informais não pode impedir,
restringir ou criar embaraços ao exercício dos mecanismos e procedimentos de controle quanto à sua conformidade com a ordem jurídica — moralidade, transparência,
motivação, eficiência, razoabilidade etc. Informalidade não importa, desse modo, em
liberdade absoluta ou em imunidade aos mecanismos de controle.
É entendimento corrente que todo ato somente pode ser praticado se houver
expressa previsão legal.
É contra esse entendimento, com a devida vênia, que nos insurgimos. É certo
que as atividades ou os programas a serem empreendidos pela Administração Pública
devem encontrar fundamento em competência genérica prevista em lei ou na própria
Constituição. não é necessário que todo ato ou contrato a ser praticado com vista à
realização de determinada finalidade ou ao exercício de certa atividade que pode ser
licitamente desenvolvida por órgão ou entidade pública necessite de expressa previsão legal. em relação à celebração de contratos, inclusive no que concerne àqueles
regidos pelo direito Privado, não se exige e jamais se questionou a necessidade de lei
que autorize a celebração de cada contrato, de forma específica, conforme preceitua o
entendimento dominante. A fim de que determinada unidade administrativa cumpra
suas atribuições, devem ser celebrados todos os contratos ou praticados todos os atos
necessários, independentemente de expressa previsão em lei. tomemos o exemplo de
unidade administrativa cujo prédio onde funciona seja embargado pela defesa civil por
razões de segurança. somente será possível a esta unidade contratar a reforma de suas
instalações, alugar outro edifício, contratar seguros etc. se houver sido expressamente
autorizada a celebrar esses contratos? Qual a lei, que de forma expressa ou implícita,
autoriza as unidades administrativas a contratar a assinatura de jornais ou revistas,
por exemplo? desde que se indique a fonte orçamentária da qual podem ser buscados
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
os recursos para a realização das despesas, nenhum desses contratos poderá ter sua
legitimidade questionada por falta de autorização legal, porque são eles necessários
ao exercício das atribuições do órgão ou entidade pública. e se esse entendimento,
quanto à possibilidade de serem celebrados contratos pela Administração sem que haja
expressa e específica previsão legal, é inquestionável, não há por que não se admitir o
mesmo para os atos a serem praticados pela Administração, desde que observados os
parâmetros apresentados — de que não criem obrigação aos particulares, não restrinjam
o exercício de atividades etc.
A fim de conferir racionalidade, eficiência e maior segurança à sociedade e à
própria Administração, ainda que possa ser dispensada a aprovação de lei específica,
convém à Administração valer-se de normas ou de regulamentos para regular o exercício de suas atividades informais.
A informalidade administrativa não pode ser confundida com a discricionariedade administrativa, ainda que não se possa negar que se trate de áreas extremamente
próximas. A discricionariedade decorre da lei e deve ser exercida nos limites da lei.
A informalidade na condução de determinadas atividades administrativas decorre,
ao contrário, da ausência de lei. todavia, encontrando-se o administrador obrigado a
cumprir determinadas finalidades institucionais, vê-se ele obrigado a seguir certos procedimentos, praticar atos ou celebrar contratos não autorizados ou disciplinados em lei.
desse modo, ainda que sujeito a controvérsias, deve ser reconhecida a existência
de informalidade em atividades administrativas cujos efeitos são sentidos pela sociedade, desde que não importem em restrição ou interferência no âmbito de direitos ou
de interesses privados. Se for identificado fundamento em competência constitucional
genérica para o exercício de atividades por parte de determinada unidade administrativa, é legítima a realização de políticas públicas ou programas de governo a serem
implementados por meio de atos ou de contratos não previstos ou disciplinados em lei
específica. Tomemos o seguinte exemplo: o Ministério dos Esportes — idêntico raciocínio vale para uma secretaria estadual ou municipal — deseja desenvolver atividades
ou programas de incentivo à participação de pessoas deficientes em atividades de seu
âmbito de atuação. essas atividades somente poderão ser desenvolvidas se houver
expressa previsão legal? A resposta, parece-nos, é negativa. A criação do ministério
ou da secretaria em questão decorre de lei. esta confere competências genéricas para
o exercício de atividades no âmbito de atuação do ministério ou da secretaria. observados os parâmetros aqui indicados, e desde que haja previsão orçamentária, é legítimo à
Administração, independentemente de lei autorizativa específica, desenvolver atividades
que extrapolem os limites internos da Administração e que afetem a sociedade, desde
que isto importe em benefícios ou em vantagens para a sociedade.
4.1.6 Administração Pública em sentido orgânico e em sentido funcional
A divisão das funções do estado — executiva, legislativa e judicial — constitui
aspecto fundamental do estado moderno e o ponto de partida para o estudo do direito
Administrativo. este tem por objetivo disciplinar a atuação da Administração Pública,
tanto em relação a suas atividades internas — quando cuida do regime jurídico dos
servidores públicos, por exemplo —, quanto em relação às relações estabelecidas entre
a Administração e os particulares — concessão de licenças, regime jurídico de contratos
123
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
administrativos, concessões e permissões etc. Cumpre, portanto, determinar o âmbito
de atuação da Administração Pública a fim de que possa estabelecer o objeto do próprio
direito Administrativo.
A expressão Administração Pública pode ser entendida em sentido orgânico ou
em sentido funcional. do ponto de vista orgânico, a Administração Pública compreende
as diversas unidades administrativas (órgãos e entidades) incumbidas de cumprir os
fins do Estado, incluídos aqueles afetos às funções legislativas ou judiciais.
os órgãos incumbidos de exercer essas atividades — legislativas e judiciais —,
no exercício de suas atividades fins, não se sujeitam ao Direito Administrativo. Eles
integram, todavia, a Administração Pública e submetem-se ao direito Administrativo em
todos os demais aspectos de sua atuação. desse modo, as Casas Legislativas — Câmara
dos deputados, senado Federal, Assembleias Legislativas e Câmaras de vereadores —
e os tribunais judiciários — supremo tribunal Federal, tribunais regionais Federais,
tribunais de Justiça etc. — integram as administrações diretas em suas respectivas
esferas de governo e, nesta condição, submetem-se a regras do direito Administrativo.
Fixada essa premissa, o direito Administrativo passa a ter por objeto regular e
disciplinar toda e qualquer atividade desenvolvida pelo estado, excetuadas aquelas que,
em função de determinação constitucional ou legal, tenham sido conferidas aos órgãos
judiciais ou legislativos. A definição da natureza judicial, legislativa ou administrativa
das atividades estatais, bem como saber se existiriam atos praticados pelo estado não
sujeitos ou não passíveis de enquadramento nestas três funções, constitui objeto de
intermináveis discussões doutrinárias.
4.1.7 estado federado e estado unitário
A Constituição de qualquer estado moderno possui dois objetivos primordiais:
1. reconhecer e positivar os direitos fundamentais; e
2. Definir a organização administrativa do Estado.
no Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 18, dispõe que “a organização político-administrativa da república Federativa do Brasil compreende a união, os
estados, o direito Federal e os municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. A importância do sistema de organização do Estado brasileiro é confirmada
quando o próprio texto constitucional (art. 60, §4º, i) insere dentre as denominadas
cláusulas pétreas e, portanto, veda “proposta de emenda” constitucional tendente a
abolir “a forma federativa de estado”.
no processo constitucional de organização do estado, uma das tarefas mais
difíceis é a de definir as atribuições ou atividades estatais, os limites para a atuação do
estado e como este irá exercer suas atribuições.
Nos Estados unitários, a questão se simplifica, haja vista todas as competências
públicas serem conferidas a um único ente.
nos estados federados, de que é exemplo o Brasil, cabe à Constituição, além de
definir o que é público e o que é privado, distribuir atribuições públicas às unidades
que integram a federação, processo que temos denominado de descentralização vertical.
As atribuições ou funções do Estado não restam, desse modo, dispersas ou fluidas.
Quando a Constituição Federal ou a lei prevê determinada competência estatal, esta não
é conferida ou atribuída ao “estado” ou ao “Poder Público” de maneira indeterminada
ou genérica. Ocorre, no âmbito da organização do Estado, o processo de personificação
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
das organizações públicas, que são constituídas, à semelhança do direito Privado, em
pessoas jurídicas, sujeitos, portanto, de direitos e obrigações.
Ao definir as atribuições do Estado, a Constituição as distribui entre as diferentes
entidades ou entes que integram as administrações públicas diretas nos diferentes níveis
de governo: federal, estadual, distrital e municipal. É importante notar que o conceito
de entidade administrativa está diretamente ligado ao de pessoa jurídica, sendo possível definir entidade como a unidade administrativa dotada de personalidade jurídica,
simplesmente.
As entidades que recebem atribuições diretamente da Constituição Federal, e que,
nos termos e limites da Constituição Federal, exercem atribuições políticas, sobretudo
atribuições de legislar e de tributar, podem ser denominadas de entidades políticas ou
primárias.
no processo de organização do estado, a primeira etapa corresponde à distribuição de atribuições entre essas entidades políticas, que compõem as administrações
públicas diretas. se todas as atribuições do estado são conferidas a uma única entidade
primária, que poderá, eventualmente, distribuí-las a terceiras entidades vinculadas e,
portanto, sujeitas a algum mecanismo de controle político a ser exercido pela primeira,
teremos o estado unitário. Ao contrário, se a Constituição distribui atribuições públicas
diretamente a entidades primárias em diferentes níveis, autônomas entre si, o modelo
adotado é o do estado federado. É evidente que essa distribuição de atribuições não
segue padrão único. É possível, dentro do modelo do Estado federado, identificar a
existência de diferentes gradações. Há situações em que, não obstante seja adotado
o modelo federativo de distribuição de atribuições, quase todas as atribuições, ou ao
menos aquelas que realmente desempenham ou exercem importância política, social
ou econômica, são conferidas ao ente central, restando poucas e insignificantes competências a serem exercidas pelas unidades federadas. em outros casos, ao contrário, a
maior parte das atribuições é outorgada pela Constituição às unidades descentralizadas,
o que se verifica no modelo de federalismo adotado nos Estados Unidos da América.
experiência jurídica muito interessante e rica ocorre na união europeia. Até
o momento, em função das peculiaridades verificadas no processo de unificação da
Europa, não foi possível definir a natureza jurídica desta entidade supranacional. Não é
ainda certo se se trata de confederação de estados, de estado federado ou de realidade
nunca antes verificada ou diagnosticada no mundo jurídico. É tema ainda aberto que,
em função da riqueza de informações e de sua importância política, econômica, social
etc., certamente tende a se repetir, inclusive no âmbito do mercosul — caso venha a ser
tornar politicamente viável.
4.1.8 descentralização vertical e horizontal
o processo de descentralização administrativa ocorre quando se distribui competências materiais entre unidades administrativas dotadas de personalidades jurídicas
distintas. Este processo é identificado com maior frequência dentro de uma mesma esfera
de governo. nesta hipótese, a entidade primária, integrante da Administração Pública
direta — união, estado, município ou distrito Federal —, por meio de lei (CF, art. 37,
XiX), transfere alguma ou algumas de suas atribuições a entidades que irão compor as
suas respectivas administrações indiretas. este processo de distribuição de atribuições,
125
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
126
e que resulta na criação de entidades autárquicas, fundacionais ou de empresas estatais,
corresponde à descentralização horizontal. Ganha esta denominação em função de a
distribuição de atribuições ocorrer em um mesmo nível de governo.
não obstante se trate de questão de pura semântica, entendemos que o termo
descentralização administrativa possa ser também utilizado para indicar a distribuição
de atribuições estatais entre entidades de diferentes níveis. neste caso, ocorre a descentralização vertical quando a própria Constituição Federal promove a distribuição
de atribuições entre as diferentes entidades políticas ou primárias — união, estados,
municípios e distrito Federal.
também por razões terminológicas temos que esclarecer que utilizamos as
expressões Administração Pública “direta” e “centralizada” como sinônimas, e que
o mesmo ocorre com os termos “indireta” e “descentralizada”. o decreto-Lei nº 200,
de 1967, como observa Celso Antônio Bandeira de mello,2 buscou diferenciá-los. nos
termos daquele decreto-lei, dentro da Administração descentralizada seriam também
incluídos os particulares que prestam serviços públicos, como concessionários e permissionários, o que não ocorreria com a Administração indireta.
entendemos, todavia, que em face do modelo de organização administrativa
adotado pela Constituição Federal de 1988, não seja possível incluir os particulares que,
nessa qualidade, prestam serviços à população em categoria alguma de Administração
Pública, independentemente da adjetivação utilizada. diante dessa nova realidade
constitucional, que exclui qualquer possibilidade de incluir particulares que colaboram
com o estado no âmbito da Administração Pública, os termos podem ser apresentados
como sinônimos.
Feitos esses esclarecimentos de ordem terminológica, devemos prosseguir no
exame da descentralização administrativa.
os critérios utilizados para promover a distribuição de potestades públicas entre
as entidades primárias são de ordem política e, eventualmente, técnica. desse modo,
a Constituição Federal promove tal distribuição entre união, estados e municípios
a partir de critérios casuísticos e sujeitos a eventuais alterações. Sendo definida pela
Constituição Federal, qualquer modificação nesta distribuição depende de alteração
do texto constitucional.
Como já antes mencionado, dentre as matérias constantes do rol das denominadas
“cláusulas pétreas” encontra-se a vedação de emenda à Constituição “tendente a abolir”
a forma federativa de estado (CF, art. 60, §4º, i). A existência desta vedação impede a
adoção, entre nós, do modelo de Estado unitário. Não impede, todavia, a definição de
novos modelos ou critérios de distribuição de atribuições. É perfeitamente compatível
com a Constituição emenda cujo propósito seja o de, por exemplo, transferir a municípios atribuições dos estado ou da união.
dentro de nosso modelo de federação, questão curiosa diz respeito à criação de
órgãos de atuação em âmbito nacional e dotados de competência para interferir nas
órbitas federal e estadual. seria exemplo o Conselho nacional da magistratura criado
pela emenda Constitucional nº 45, de 2005. não obstante este órgão integre formalmente a estrutura da união, possui ele atribuições que extrapolam os limites desta
esfera, exercendo, conforme observa o relator da Adi nº 3.367/dF, min. Cezar Peluso,
2
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 142.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
atribuições de âmbito nacional. de acordo com a pretensão dos responsáveis pela sua
criação, esse órgão tem atuação suprafederativa, e, ainda que administrativamente
vinculado à estrutura federal, ele paira acima de todas as esferas ou níveis de governo
e exerce atribuições em relação a todos estes diferentes níveis. trata-se de inovação em
nosso modelo jurídico que deve ser examinada e acompanhada com muito cuidado. A
perspectiva de criação de órgãos dessa natureza pode permitir que a esfera federal possa,
de modo disfarçado, interferir nas outras esferas sob o pretexto de que a interferência
estaria sendo exercida não pela união, mas por órgão “suprafederativo”.
Feitas essas considerações acerca da descentralização vertical, cumpre observar
que bem mais usual é a descentralização verificada dentro de uma mesma esfera de
governo. A rigor, sempre que o termo descentralização for utilizado de modo isolado,
sem qualquer adjetivação, ele deve ser entendido como o processo de distribuição de
atribuições entre pessoas jurídicas distintas verificado dentro de uma mesma esfera
de governo.
o instrumento próprio para a descentralização horizontal é a lei em sentido
formal. Somente mediante lei específica pode ser criada autarquia ou autorizada a
instituição de fundações públicas, de empresas públicas ou de sociedades de economia mista. de igual modo, o processo de centralização administrativa ocorre quando,
igualmente por meio de lei específica, determinada atribuição anteriormente descentralizada é devolvida à Administração direta. A centralização pode ser parcial ou total.
Verifica-se a centralização parcial quando o deslocamento de atribuição da entidade
descentralizada para a entidade centralizada ou direta é feito sem que isto importe em
extinção da entidade descentralizada. se apenas algumas atribuições são centralizadas
e é preservada a personalidade da entidade descentralizada para exercer as atribuições
restantes, verifica-se a centralização parcial. Quando a centralização ocorre de modo a
transferir todas as atribuições da entidade descentralizada para a entidade centralizada,
o que importa em extinção da pessoa jurídica descentralizada, verifica-se a centralização
total. nesta última hipótese, a entidade centralizada sucede a entidade extinta em todos
os seus direitos e obrigações, independentemente de disposição legal nesse sentido. A
transferência de direitos e de obrigações decorre diretamente da própria extinção da
pessoa jurídica extinta. desde que não haja prejuízo para os credores da pessoa descentralizada extinta, a lei que tenha determinado a centralização total poderá adotar outra
forma de liquidação de obrigações, o que ocorreria com a designação de inventariante
para liquidar essas obrigações, o que em nada afasta a responsabilidade subsidiária da
entidade política centralizada — união, estado etc.
Ao afirmar que lei cria autarquia e autoriza a instituição das demais entidades
mencionadas, a Constituição cria a reserva institucional. Por meio desta reserva, impõe-se
a necessidade de prévia aprovação de lei como requisito necessário ao processo de descentralização horizontal.
no caso da autarquia, a lei cria a pessoa jurídica. não há necessidade de qualquer outra providência administrativa ou regulamentar para que a autarquia possa
ser considerada sujeito de direitos e de obrigações, salvo se a própria lei dispuser em
sentido contrário. isto poderia ocorrer se a própria lei exigir a sua regulamentação como
condição para o surgimento da pessoa jurídica. em relação às demais entidades — sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações públicas —, a Constituição
Federal, à semelhança do que se verifica em relação às autarquias, exige lei. Todavia, o
texto constitucional dispõe que para essas hipóteses a lei irá, tão somente, autorizar a
127
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
instituição dessas entidades. em face deste tratamento diferenciado, a conclusão a que
se pode chegar é no sentido de que a lei, ainda que necessária, não é suficiente para criar
estas últimas pessoas. outras providências tornam-se necessárias, entre elas o registro
em junta comercial ou em cartório, conforme a entidade a ser criada tenha por objeto
social a exploração de atividade empresarial ou não. Caso o objeto seja empresarial, o
registro far-se-á em junta comercial; se não for empresarial o objetivo social, o registro
ocorrerá em cartório. A necessidade de registro relaciona-se ao fato de estas serem pessoas de Direito Privado, afirmação que, em relação às fundações públicas, será adiante
objeto de exame mais detalhado, haja vista ser possível a criação de fundações públicas
de natureza pública, hipótese em que o registro é dispensado, ou de fundação pública
de direito privado, conforme disponha a lei que a crie ou autorize a sua instituição.
o rigor relacionado à criação ou à autorização para a instituição de autarquias,
empresas públicas, sociedades de economia mista ou fundações públicas, previsto no
texto constitucional (art. 37, XIX), que pressupõe a prévia aprovação de lei específica,
é aparentemente estendido pela redação do artigo 37, XX, à criação de entidades subsidiárias àquelas (CF, art. 37, XX: “depende de autorização legislativa, em cada caso,
a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a
participação de qualquer delas em empresa privada”).
em relação à criação dessas subsidiárias, a primeira observação a ser feita diz
respeito ao fato de que por autorização legislativa deve-se entender lei, ou seja, o instrumento hábil a ser utilizado pelo Poder Legislativo para autorizar a criação de subsidiárias
é lei. A segunda observação relaciona-se à jurisprudência do supremo tribunal Federal.
o, repito, aparente rigor da expressão “em cada caso” contido no mencionado art. 37,
XX, do texto constitucional foi mitigado pela jurisprudência do stF (Adi nº 1.649/dF).
Ao julgar esta ação, o STF firmou entendimento de que “é dispensável a autorização
legislativa para a criação de empresas subsidiárias, desde que haja previsão para esse
fim na própria lei que instituiu a empresa de economia mista matriz, tendo em vista
que a lei criadora é a própria medida autorizadora”.
nesses termos, ainda que se possa criticar a interpretação conferida pelo stF ao
texto constitucional (CF, art. 37, XX), é esta a interpretação a ser seguida pelas empresas
estatais na eventualidade de decidirem pela criação de subsidiárias ou pela participação
em capital social de empresas privadas. se a lei que autorizou a criação da empresa
pública ou da economia mista tiver autorizado a criação de subsidiárias ou a realização
de participações societárias, não há necessidade de nova autorização legislativa, sendo
suficiente a adoção das providências previstas pelo Direito Privado.
A descentralização horizontal se verifica dentro de determinada esfera de governo
e tem como instrumento a lei; a descentralização vertical opera-se mediante a criação
de diferentes níveis de governo.
estas entidades resultantes do processo de descentralização vertical integram
a Administração direta em cada nível de governo: união, estados, distrito Federal e
municípios.
vê-se que o estudo do direito da organização da Administração Pública tem o
seu ponto de partida no processo de descentralização vertical, cujo instrumento é o
próprio texto da Constituição Federal.
O ordenamento constitucional define, desse modo, as atividades ou atribuições
a serem exercidas pelo estado e as distribui entre as diferentes entidades políticas.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
estas entidades — união, estados, municípios, distrito Federal — podem optar por
que suas atribuições sejam exercidas diretamente por essas mesmas entidades, ou seja,
podem optar pela centralização da prestação dos serviços ou exercício de atribuições
que lhes são conferidas. Ao contrário, em função de razões de conveniência política,
técnica, administrativa etc., pode cada uma das diversas entidades políticas preferir a
descentralização (horizontal) de atribuições que lhes foram conferidas pela Constituição.
A título de exemplo, pode ser examinada a competência estatal para a emissão
de moeda (CF, art. 21, vii). no processo de descentralização vertical empreendido pela
Constituição, trata-se de competência da união. diante dessa realidade, pode a própria
união, pessoa de direito Público, prestar esse serviço ou, por hipótese, de acordo com
critérios políticos, técnicos, administrativos etc. transferir essa atribuição para outra
entidade sujeita a controle político da própria união. A opção da união, no caso, foi
pela descentralização horizontal dessa atribuição, tendo sido criada a Casa da moeda
do Brasil, como autarquia, e, posteriormente, transformada em empresa pública (Lei
nº 5.895/73).
4.1.9 Limites à descentralização horizontal
Aspecto relacionado à descentralização administrativa que merece atenção diz
respeito ao fato de que a Constituição Federal somente autoriza as entidades políticas
a criar autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia
mista (art. 37, XiX). Ainda que seja utilizada lei, não é possível a criação de entidades
de natureza distinta destas, vedação que decorre diretamente do princípio da reserva
institucional.
essa sistemática não tem sido, todavia, cumprida. tomemos o exemplo da Agência
Brasileira de desenvolvimento institucional (ABdi), criada pela Lei nº 11.080, de 2004.
dispõe o art. 1º desta lei nos seguintes termos:
Art. 1º Fica o Poder executivo autorizado a instituir serviço social Autônomo com
a finalidade de promover a execução de políticas de desenvolvimento industrial,
especialmente as que contribuam para a geração de empregos, em consonância com as
políticas de comércio exterior e de ciência e tecnologia.
§1º o serviço social Autônomo de que trata o caput deste artigo, pessoa jurídica de direito
privado sem fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública, denomina-se
Agência Brasileira de desenvolvimento industrial – ABdi.
Conforme será examinado adiante, não existe, até o momento, qualquer definição
acerca da natureza jurídica das entidades que compõem o denominado sistema “s”
(sesi, sesC, senAC etc.). sabe-se, todavia, que o enquadramento de uma entidade
como integrante do Serviço Social Autônomo não lhe define a natureza.
no caso acima, a união, por meio de lei, autoriza a criação de uma entidade
como serviço social Autônomo. trata-se não apenas de anomalia jurídica, mas de
efetiva inconstitucionalidade cujo propósito é evidente: fugir aos ditames do direito
Administrativo. no momento em que a união cria entidade que não integra a Administração Pública direta ou indireta, esta entidade fica automaticamente liberada do
cumprimento dos deveres impostos pelo art. 37 do texto constitucional às entidades e
órgãos da Administração Pública. referida entidade não se submete ao dever de licitar
da Lei nº 8.666/93, não realiza concurso público para a contratação de pessoal etc.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
não se pretende, aqui, impedir, ou mesmo questionar, a legitimidade do poder
público de criar entidade cuja finalidade seja a “de promover a execução de políticas de
desenvolvimento industrial”. deve ser observado, no entanto, que se o poder público
pretende criar entidade para a execução desta ou de qualquer outra finalidade pública,
deve fazê-lo por meio de autarquia, fundação pública, empresa pública ou sociedade
de economia mista. do contrário, incorrerá em evidente inconstitucionalidade.
4.1.10 Conflitos de atribuição
A distribuição de atribuições entre as entidades que compõem as diferentes esferas
da Administração Pública está sujeita a inúmeras possibilidades de conflitos. A existência
de crises institucionais, de conflitos de competência positivos — que se verificam quando
uma entidade reconhece a sua competência para o exercício de determinada atividade
pública em detrimento da competência de outra entidade — ou negativos — verificado
quando nenhuma entidade pública reconhece sua competência pública e a atribui a outra
entidade —, além de afetarem a capacidade de atuar do estado, contribui para a baixa
legitimidade da Administração Pública perante a população. A rigor, poucos fatores
afetam de modo tão direto a legitimidade do estado quanto à existência de crises ou de
conflitos entre entidades públicas. Para a população, o Estado é um só. A existência de
diversas entidades primárias (união, estados etc.) e secundárias (autarquias, fundações
públicas etc.) que compõem a estrutura da Administração não é fenômeno facilmente
compreendido para grande parte da população. À população interessa que o estado
atenda a suas necessidades. se essas necessidades não são atendidas por conta de crises
de competência positivas ou negativas, o resultado é o afastamento da população em
relação ao estado, que, em alguns casos, passa a ser considerado inimigo da população.
Diante da imensa possibilidade de surgimento de conflitos, as diversas entidades
públicas devem desenvolver mecanismos que permitam a sua rápida solução. essas
crises devem ser solucionadas, em primeiro lugar, com base em critérios de coordenação
e de subordinação.
A via administrativa deve ser utilizada, se possível, de modo preventivo. se for
detectada a possibilidade da ocorrência de conflito, antes mesmo de ele ocorrer, devem
as entidades envolvidas buscar a sua solução por meio de acordos de cooperação de
modo a definir as atribuições das diversas entidades envolvidas no processo e evitar
que o conflito se instale. Quando o conflito se verifica, a via administrativa deve ser
igualmente buscada. Se houver a possibilidade de composição do conflito entre os
envolvidos, a solução administrativa, em que as entidades definem como as atribuições públicas serão exercidas, é sempre mais rápida e adequada do que a outra opção
existente: a via judicial. se as entidades envolvidas são de uma mesma esfera de governo —
entre a união e uma autarquia federal, ou entre uma autarquia federal e uma empresa
pública federal, por exemplo — deve-se buscar nos mecanismos de controle político
existentes a solução de conflitos. Ainda que não exista relação de subordinação entre
as entidades primárias e as entidades secundárias de mesma esfera, estas últimas estão
vinculadas administrativamente às primeiras. Por meio desta vinculação — que permite à entidade primária indicar e afastar os dirigentes das entidades secundárias — é
possível identificar a fonte do conflito e compor a sua solução.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
É igualmente imprescindível a cooperação entre as entidades públicas, ainda
que vinculadas a diferentes níveis ou esferas de governo. Acerca dessa necessidade de
cooperação, a Constituição Federal (art. 23, parágrafo único) dispõe que leis complementares fixarão as normas para a cooperação entre a União, Estados, Municípios e
distrito Federal, e, ainda que não tenham sido aprovadas referidas leis complementares,
é indiscutível a importância que o texto constitucional confere ao tema.
Com base no princípio da cooperação, deve-se, em primeiro lugar, evitar a existência de conflitos. Identificada a existência ou a perspectiva da ocorrência de conflito,
deve-se buscar a sua solução. todavia, diante da impossibilidade de se compor, pela via
administrativa, por meio da cooperação que deve existir entre as entidades integrantes
da Administração Pública, para a solução do conflito, a própria Constituição Federal
aponta o Poder Judiciário como o caminho a ser buscado para a solução de conflitos
dessa natureza. A via judicial deve, no entanto, ser a última a ser buscada. Certamente
as questões administrativas terão solução mais rápida e adequada se esta solução for
buscada no âmbito das próprias entidades públicas, por meio de cooperação. Verificado impasse entre “a união e os estados, a união e o distrito Federal, ou entre uns e
outros, inclusive as respectivas entidades da Administração indireta”, a Constituição
(art. 102, i, “f”) aponta o supremo tribunal Federal – stF, como competente para a sua
solução. Se o conflito envolver “autoridades administrativas e judiciárias da União, ou
entre autoridades judiciárias de um estado e administrativas de outro ou do distrito
Federal, ou entre as deste e da união”, a competência para processar e julgar será do
superior tribunal de Justiça – stJ (CF, art. 105, i, “g”).
4.1.11 descentralização de competência: limites
Questão tormentosa consiste em buscar definir limites ao processo de descentralização horizontal, isto é, se haveria matérias que pela sua natureza ou âmbitos de atuação
exigiriam a intervenção obrigatória das entidades da Administração Pública direta.
Conforme examinado no Capítulo 3, do princípio da reserva legal decorre o subprincípio da reserva institucional. diversas limitações ao processo de descentralização
administrativa decorrem deste último. de modo direto, a primeira limitação imposta
por este princípio ao processo de descentralização relaciona-se ao fato de que somente
podem ser criadas entidades mediante lei específica.
A segunda conclusão reside no fato de que, da descentralização, somente podem
ser criadas as entidades expressamente mencionadas pela Constituição Federal. Como
decorrência ampla do princípio da reserva legal, o poder público somente está autorizado a fazer o que lhe foi autorizado. Partindo-se desta premissa, o poder público fica
proibido de criar entidades estranhas àquelas mencionadas no texto constitucional (CF,
art. 37, XiX). Como a Constituição Federal somente autoriza a criação de autarquias, de
fundações públicas, de empresas públicas e de sociedades de economia mista, a consequência direta está na impossibilidade de o poder público, ainda que se utilize de lei,
criar ou autorizar a criação de entidades estranhas a estas, da reserva legal. impõe-se a
tipicidade institucional. Assim sendo, não pode o estado criar entidade com natureza
diversa destas.
Há estados que, de modo equivocado e inconstitucional, têm criado entidades
denominadas “organizações sociais”. A criação destas entidades relaciona-se muito
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
mais à tentativa de fugir aos rigores que a Constituição Federal impõe às entidades
integrantes da Administração Pública, tais como a licitação obrigatória, o concurso
público como requisito ao provimento de cargos ou de empregos públicos etc.
No plano federal, existem entidades privadas que podem ser qualificadas pelo
poder público como organizações sociais, conforme dispõe a Lei nº 9.637/98. trata-se de
entidades privadas que, qualificadas como organizações sociais, podem firmar contratos
de gestão com o poder público de modo a viabilizar o repasse de recursos públicos
para a realização de atividades de interesse público — ensino, pesquisa, preservação
do meio ambiente, cultura etc.
As organizações sociais lícitas são entidades privadas, criadas sem fins lucrativos
pelos particulares e que desempenham atividades de colaboração com o estado. totalmente diversa é a situação de entidade criada pelo poder público, que recebe repasse
de recursos diretamente dos orçamentos estaduais, e que não integraria, segundo a
pretensão do legislador, as Administrações indiretas estaduais. A rigor, o fato de estas
ou de quaisquer outras entidades não terem tido sua criação autorizada pela Constituição Federal não faz com que, uma vez criadas, essas entidades sejam consideradas
estranhas à Administração Pública. este raciocínio está equivocado. o fato de não haver
autorização constitucional para a criação dessas entidades deve conduzir ao impedimento
constitucional para a sua instituição. eis em que consiste a tipicidade institucional.
tendo sempre como parâmetro o princípio da reserva legal, é de se concluir
que as atividades legislativas e judiciais não podem ser descentralizadas. Por meio da
descentralização, transfere-se a outra pessoa jurídica competência para o exercício de
atividade de competência originária da entidade política. este processo somente obteve
autorização constitucional para atribuições administrativas, tanto que se encontra
inserido no capítulo relativo à Administração Pública. Assim sendo, não havendo
qualquer permissivo constitucional que legitime a criação de autarquias ou mesmo de
fundações públicas no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário, deve-se concluir
pela impossibilidade de ocorrer esta descentralização.
resta a dúvida de saber se haveria matérias de competência do Poder executivo
que, pela sua própria natureza, não poderia ser objeto de descentralização.
em primeiro lugar, deve ser observado que há determinadas matérias que, em
função de dispositivos constitucionais expressos, não podem ser descentralizadas. A
competência da união para declarar guerra (CF, art. 21, ii), por exemplo, não pode ser
objeto de delegação haja vista a própria Constituição Federal (art. 84, XiX) conferir esta
atribuição, de forma privativa, ao Presidente da república. impossível, portanto, admitir-se
a criação de entidade autárquica para cuidar de atribuição inerente ao exercício do
cargo do Presidente da república. excetuadas, no entanto, as matérias a que a própria
Constituição Federal tenha de forma expressa conferido a órgão ou a autoridade expressamente nominada, as demais poderiam ser descentralizadas. A própria competência
da união para manter relações com estados estrangeiros (CF, art. 21, i), por exemplo,
poderia ser descentralizada e conferida a uma autarquia sem que se impusesse qualquer
impedimento de ordem material ou formal.
4.1.12 desconcentração administrativa
o direito Administrativo buscou no direito Privado a solução para o exercício
das atividades administrativas. As atribuições são definidas e distribuídas a diferentes
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
pessoas jurídicas. estas atuam por meio de unidades de organização denominadas
órgãos, e nestas unidades, nos órgãos, são lotados os agentes responsáveis pela prática
dos atos que imputam responsabilidade diretamente à pessoa jurídica. Quando a autoridade competente dentro da organização da estrutura administrativa do estado pratica
determinado ato, este ato foi praticado pela pessoa jurídica em cujo órgão o agente ou
autoridade está lotado. A teoria do órgão ou da imputação de responsabilidade utilizada
amplamente pelo direito Privado é perfeitamente compatível com a necessidade do
estado de se organizar e de atuar.
desse modo, paralelamente à descentralização, o processo de desconcentração
administrativa assume grande importância prática para o exercício das inúmeras atividades estatais. A organização da estrutura administrativa do estado baseia-se, portanto,
na existência de entidades. estas se encontram subdivididas em inúmeros órgãos.
Conforme examinado no item anterior, o processo de descentralização administrativa resulta na criação de entidades dotadas, portanto, de personalidade jurídica
distintas. trata-se de processo externo, por meio do qual se transfere determinada
atribuição pública a outra pessoa.
o processo de descentralização horizontal tem sido utilizado no Brasil de forma
ampla. É certo, todavia, que inúmeras atribuições das entidades políticas ou primárias
são mantidas dentro desta mesma entidade. nela permanecem e são executadas pelas
próprias pessoas jurídicas integrantes da Administração direta. teremos, no caso, a
centralização administrativa.
essas atribuições restantes, que permanecem dentro da entidade política, não
restam desorganizadas. se é certo, por exemplo, que o ministério dos transportes
integra a estrutura da união, é igualmente certo que nem todas as atribuições que
permaneceram centralizadas na união podem ser exercidas por este órgão federal.
É necessário que se proceda à organização interna dessas diversas potestades. A esse
fenômeno interno de distribuição ou organização interna de atribuições denomina-se
desconcentração administrativa.
diferentemente da descentralização, que é fenômeno externo, haja vista transferir
atribuições a outra pessoa, a desconcentração é processo interno de organização e de
definição das unidades internas, a quem será atribuída a competência para a prática de
certos atos ou o exercício das diferentes atribuições da pessoa jurídica.
o resultado concreto decorrente da desconcentração administrativa é a criação de
diferentes órgãos, entendidos estes como unidades administrativas desprovidas de personalidade jurídica. não sendo titular de personalidade jurídica própria, o órgão integra
a estrutura da própria pessoa jurídica originária e, ao atuar, imputa responsabilidade
a esta pessoa jurídica. o órgão não é, portanto, sujeito de direito e de obrigações. isto
não significa que o órgão não possa praticar atos que importem na criação de direitos
ou obrigações, mas que estes direitos e estas obrigações são titularizados pela pessoa
jurídica em cuja estrutura o órgão se insere.
A criação de órgãos pode observar dois critérios básicos: o material ou o territorial.
Quando são criados órgãos distintos para o exercício de atribuições de natureza distinta,
tem-se a desconcentração de acordo com o critério material. A criação do ministério da
defesa, do ministério da saúde, do ministério dos transportes etc., por exemplo, segue
o critério material. Ao contrário, quando são criados órgãos distintos em função de sua
localização territorial, observa-se a desconcentração territorial (delegacia da receita
Federal no estado de são Paulo, no distrito Federal, no estado do rio de Janeiro etc.).
133
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
À semelhança da descentralização horizontal, a criação de órgão também necessita
de lei de iniciativa do chefe do Poder executivo (CF, art. 61, §1º, ii, “e”). Já a organização e o funcionamento destes mesmos órgãos podem ser feitos por meio da edição de
simples decretos (CF, art. 84, vi, “a”).
4.1.13 descentralização horizontal e desconcentração: distinções
os dois processos em exame, a descentralização horizontal e a desconcentração
administrativa, como traço em comum, constituem mecanismos de distribuição de
competências ou de potestades públicas, e necessitam de lei. importante observar que
tanto a criação de órgãos quanto de entidades necessita de lei em sentido formal. A
organização e o funcionamento dos órgãos, todavia, desde que não importem em aumento
de despesa, poderão ocorrer por meio de simples decreto (CF, art. 84, vi, “a”).
As distinções entre os dois processos são, todavia, nítidas.
A descentralização é processo externo; a desconcentração é organização interna de
atribuições. A descentralização cria entidades; a desconcentração, órgãos. surge, assim,
a mais importante distinção entre os dois processos: a descentralização cria unidades
administrativas dotadas de personalidade jurídica; enquanto a desconcentração cria
unidades administrativas sem personalidade jurídica.
Verificada a descentralização, a relação entre a entidade primária ou política
criadora e a entidade secundária ou administrativa resultante da criação é de vinculação
administrativa. isto importa em que o controle a ser exercido pela entidade primária
em relação à entidade secundária não é de natureza hierarquizada. não existe por parte
da entidade primária poder de dar ordens, de rever atos, de avocar atribuições etc. da
entidade secundária. Constituindo a relação entre a entidade primária e a secundária
mera vinculação administrativa, o controle a ser exercido pela primeira em relação à
segunda será de natureza política, mediante a possibilidade de indicação ou de afastamento a qualquer tempo dos dirigentes das entidades secundárias e, em alguns casos,
de natureza orçamentária. Seria incorreto afirmar que não existe controle na vinculação
administrativa. Este controle, todavia, é de âmbito mais reduzido do que o verificado
nas relações hierarquizadas. Assim, se a entidade secundária não seguir as orientações
emanadas da entidade primária, o que resta a esta última é a possibilidade de designar
novos dirigentes a fim de que estes cumpram referidas orientações.
os mecanismos de controle político encontram-se ainda mais mitigados quando
lei confere aos dirigentes de algumas das entidades secundárias mandato, o que ocorre,
por exemplo, em algumas agências reguladoras. nestas hipóteses, a legislação somente
admite o afastamento dos dirigentes antes de findo seus mandatos se houver prévia
autorização pela maioria dos membros do senado Federal. esta questão será mais bem
examinada adiante.
o produto da desconcentração administrativa, como dito, é a criação de novos
órgãos, diferentemente da descentralização, que cria entidades. não é correto falar-se
em relação entre o órgão e a entidade pública. Aquele integra a estrutura da entidade.
Criado determinado órgão, passa ele a compor a estrutura interna da entidade. esta, a
entidade, passa a agir por meio de seus órgãos, e a subordinação de um órgão se verifica
em relação a outro que lhe seja hierarquicamente superior, e não em relação à entidade
que ele integra. encontrando-se hierarquicamente subordinado a outro órgão, o titular
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
do órgão subordinado está obrigado a cumprir ordens, a rever decisões, estará sujeito
à fiscalização etc. a partir de determinações emanadas do agente titular do órgão que
lhe seja superior.
outro aspecto que diferencia o órgão da entidade diz respeito à capacidade processual. os órgãos, não possuindo personalidade jurídica própria, não podem, salvo
raras exceções, estar em juízo. Quando o órgão precisa propor alguma ação, esta deve
ser proposta pela entidade que ele integra. em relação às demandas a serem propostas
contra os órgãos, o mesmo ocorre. tomemos o exemplo de particular que se envolva
em acidente com veículo de tribunal de Justiça de determinado estado e decida pedir
indenização pelos prejuízos sofridos. A ação de indenização não será proposta contra o
tribunal de Justiça, que é órgão, mas contra o próprio estado. A defesa deste será feita
pela advocacia ou procuradoria do estado, e não pelo órgão a quem incumbe o dever
de fornecer os elementos necessários à defesa.
Para melhor compreensão deste aspecto da distinção entre órgão e entidade,
podemos ainda apresentar a situação de dois servidores públicos que propõem ações
judiciais para a incorporação de vantagens remuneratórias. Caso o primeiro servidor
esteja lotado no ministério das relações exteriores, que é órgão da união, e o segundo
no Banco Central do Brasil, que é autarquia federal, a ação do primeiro servidor será
proposta contra a união, ao passo que a ação do Banco Central deve ser proposta contra
o próprio Banco Central, que é entidade.
salvo exceções, os órgãos não possuem capacidade processual e devem estar em
juízo representados pelas pessoas jurídicas que eles integram. Algumas exceções, todavia, conforme dito, existem. A jurisprudência do stF3 admite que alguns órgãos possam
propor mandado de segurança para a defesa de suas prerrogativas ou atribuições. nem
todos os órgãos possuem essa legitimidade, mas somente aqueles que integram a cúpula
do estado (órgãos independentes) e os que lhe são hierarquicamente subordinados
(órgãos autônomos). Órgãos independentes são os que exercem as atribuições básicas
do estado — julgar, legislar e administrar — além do ministério Público e dos tribunais
de Contas — que não se subordinam hierarquicamente a qualquer outro órgão ou autoridade, ao passo que são autônomos aqueles que estão imediatamente subordinados
aos independentes. neste sentido, o ministério da Fazenda é órgão independente e a
receita Federal, autônomo; o ministério da Justiça, independente; a Polícia Federal, que
está imediatamente subordinado àquele, autônomo. o stF tem reconhecido a estes a
legitimidade para propor mandado de segurança, fato que pode ser atribuído à circunstância de que, em muitas ocasiões, o órgão independente ou autônomo vê-se envolvido
em conflito com a própria entidade que ele integra ou com órgão daquela mesma esfera.
esta hipótese ocorreu quando o tCu decidiu realizar auditoria na receita Federal, e
esta, sob o argumento de ser descabida a auditoria, propôs mandado de segurança a
fim de ser suspensa referida auditoria. O mandado de segurança apresenta, pois, esta
outra particularidade, além de poder ser proposto por determinados órgãos, pode ser
também proposto contra o órgão. A rigor, no polo passivo do mandado de segurança
figura a autoridade pública (CF, art. 5º, LXIX). Esta autoridade contra quem a ação será
proposta pode ser um agente — o ministro de estado, por exemplo —, um órgão, caso
o ato seja atribuído ao ministério e a não ao agente (ministro), ou à própria entidade
3
RDA, rio de Janeiro, 15/46.
135
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
136
(união). nesse contexto, caso a prática do ato seja atribuída ao órgão, o mandado de
segurança deve ser proposto contra o próprio órgão.
vê-se, assim, que em matéria de mandado de segurança existe a possibilidade
de órgãos figurarem tanto no polo passivo quanto no polo ativo.4
Além disso, o stF, mitigando a ausência de capacidade processual do tCu,
entende que o representante jurídico daquele tribunal de contas pode atuar mediante
sustentação oral em defesa do órgão, sempre que eventual mandado de segurança verse
sobre sua competência.5
em outras raras situações também se admite legitimidade processual de órgão,
como a que se verifica, por exemplo, quando a Mesa da Câmara dos Deputados ou do
senado Federal propõe ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade.
ressalvadas essas hipóteses, nega-se ao órgão capacidade processual, sendo esta
reconhecida apenas às entidades que aqueles integram.
4.1.14 delegação de competência: aspectos relevantes e distinções
com os processos de desconcentração e de descentralização
administrativa
As distinções entre desconcentração e descentralização foram examinadas no item
anterior. no presente item examinaremos outro processo que envolve transferência de
competência, a delegação de competência.
na desconcentração, por meio de lei, é indicada a unidade administrativa competente para o exercício de atribuição pública da entidade direta ou política. não envolve
a desconcentração, a rigor, uma transferência, mas, tão somente, uma definição ou
organização interna de competências. na descentralização administrativa, ao contrário,
é feita a transferência de competência a fim de que a entidade que recebe a atribuição
a exerça como sua. esta outorga se deve ao fato de que o instrumento utilizado para a
transferência é a lei, que pode transferir não apenas a incumbência da prestação, mas a
própria titularidade da potestade. desse modo, outorgada determinada competência,
isto é, realizada a descentralização, não pode a entidade centralizada simplesmente
avocá-la. somente por meio de nova lei será possível o retorno da atribuição outorgada
à entidade política.
4
5
no sentido de que a excepcional personalidade judiciária reconhecida aos órgãos autônomos e independentes
restringe-se à defesa de suas prerrogativas institucionais:
“1. doutrina e jurisprudência entendem que as Casas Legislativas — câmaras municipais e assembleias legislativas — têm apenas personalidade judiciária, e não jurídica. Assim, podem estar em juízo tão somente na defesa
de suas prerrogativas institucionais. não têm, por conseguinte, legitimidade para recorrer ou apresentar contrarrazões em ação envolvendo direitos estatutários de servidores. 2. tratando-se de ação ordinária em que os
autores, servidores do quadro de pessoal da Assembleia Legislativa do estado de Goiás, postulam a equiparação
de seus vencimentos, a qual fora julgada procedente, a legitimidade recursal recai na Fazenda Pública do estado
de Goiás, tendo em vista que tal matéria extrapola a mera defesa das prerrogativas institucionais da Assembleia
Legislativa, assim compreendidas aquelas eminentemente de natureza política. Precedentes do stJ” (stJ, Agrg
no Aresp nº 44.971-Go, 1ª turma. rel. min. Arnaldo esteves Lima. Julg. 22.05.2012. DJe, 05 jun. 2012).
decisão: Preliminarmente, por unanimidade, o tribunal resolveu a questão de ordem formulada pelo min. marco
Aurélio, relator do mandado de segurança nº 25.181, e decidiu que o Consultor Jurídico do tribunal de Contas
da união pode, em nome deste, sustentar oralmente as razões do tribunal, quando esteja em causa controvérsia
acerca da competência do Órgão. Cf. stF. ms nº 25.181-dF, Pleno. rel. min. marco Aurélio. Julg. 10.11.2005. DJ,
16 jun. 2006.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
na delegação de competência, é transferida apenas a incumbência para a prestação
do serviço. A titularidade da atribuição é mantida com o delegante, de modo que, a qualquer
tempo, poderá a atribuição ser avocada.
A delegação, ao menos enquanto não revogada ou avocada, impede o delegante
de exercer a atribuição delegada. delegada determinada competência, salvo disposição
expressa em sentido contrário no termo de delegação, resta o delegante impedido de
exercer a sua atribuição, de modo que o ato praticado pelo delegante, sem que tenha
ocorrido a prévia revogação da delegação, pode ser anulado ante a falta de competência
para a sua prática.
Na desconcentração administrativa, verifica-se a criação de órgãos; na descentralização, a criação de entidades. na delegação de competência, ao contrário, não se
cria qualquer nova unidade administrativa (órgão ou entidade). ocorre tão somente a
transferência de atribuição para a prática de determinado ato ou exercício de atividade
entre órgãos ou entre entidades já existentes.
o instrumento próprio para a descentralização ou para a desconcentração é a
lei. somente mediante a provação de lei em sentido formal é possível criar órgãos ou
entidades no âmbito da Administração Pública. A delegação de competência opera-se
mediante ato unilateral ou por meio de acordos de vontade como os convênios. A delegação de competência pode ser formalizada por meio de ato unilateral quando houver
hierarquia entre o delegante e o delegado, haja vista o exercício do poder hierárquico
conferir àquele competência para referida delegação independentemente do consentimento ou concordância do órgão ou autoridade delegada. Caso não haja hierarquia,
a delegação somente será efetiva se houver a concordância por parte do delegado. É
por meio de convênio que, por exemplo, os detrAns estaduais, que são autarquias,
podem delegar competência às polícias militares estaduais — órgãos da Administração
direta dos estados — para o exercício das funções de polícia de trânsito de veículos,
inclusive para a aplicação de multas.
Para outras considerações acerca da delegação de competência, remetemos o
leitor ao Capítulo 5.
4.2 Administração Pública direta
4.2.1 organização das entidades, dos órgãos e dos agentes públicos
essa primeira divisão de atribuições cria as entidades que compõem as administrações públicas diretas, a que aqui nos temos referido como entidades políticas ou
primárias: união, estados, distrito Federal e municípios.
Parte das atribuições constitucionais dessas entidades são, em função de critérios
políticos, técnicos, gerenciais etc., transferidas, por meio de lei, a outras pessoas que
compõem, em cada nível ou esfera de governo, as diversas entidades administrativas ou
secundárias (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista).
estas entidades compõem, em cada nível de governo, as respectivas administrações
públicas indiretas. A este processo temos nos referido como descentralização horizontal.
esse modelo acima apresentado corresponde ao processo ou ao mecanismo pelo
qual a entidade que conhecemos como estado — ou ao menos o estado brasileiro — se
137
138
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
organiza para exercer suas atribuições: em entidades políticas (união, estados, distrito
Federal e municípios), independentes entre si; e em entidades administrativas (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista), que se
sujeitam a controle político a ser exercido pelas entidades políticas a que se vinculam.
Conforme já observado, o direito Público buscou no direito Privado os mecanismos de organização e funcionamento do estado.
de acordo com o modelo adotado e testado pelo direito Privado — que por meio
de inúmeras teorias desenvolvidas ao longo dos dois últimos séculos tem buscado,
talvez em vão, explicar como a uma entidade fictícia pode ser atribuída a aptidão para
ser sujeito de direito e de obrigações —, as pessoas jurídicas se subdividem em unidades de competência, e, por meio dessas unidades internas, se manifestam, praticam
atos, celebram contratos, enfim, podem expressar-se e agir para adquirir direitos ou
contrair obrigações.
no direito Privado, a teoria mais aceita para explicar o processo de formação de
vontade das pessoas jurídicas é a teoria do órgão. de acordo com essa teoria, o órgão é
uma unidade integrante de uma pessoa jurídica, e quando age, a responsabilidade por
sua atuação é atribuída diretamente à pessoa jurídica. não se trata de regra de representação ou mandato. o órgão não é representante nem possui mandato para agir em
nome da pessoa jurídica. Quando o órgão atua, é a própria pessoa que atuou. Cria-se,
assim, a ideia de imputação de responsabilidade, núcleo da teoria do órgão.
essa ideia organicista do direito Privado foi aceita e é utilizada pelo direito
Público na organização do Estado sem maiores dificuldades. Conforme examinamos
no item referente ao processo de desconcentração administrativa, as atribuições das
entidades políticas não restam dispersas ou fluidas. Elas são conferidas a unidades de
competência denominadas órgãos públicos.
do ponto de vista do direito Administrativo, o estudo da Administração Pública
direta nada mais é do que o estudo do órgão público, que pode ser apresentado como
unidade administrativa, sem personalidade jurídica própria, em que são lotados os agentes responsáveis pelo exercício das diversas potestades públicas.
no âmbito do direito Administrativo, os órgãos são unidades de lotação de cargos públicos. o cargo, a seu turno, pode ser apresentado como o lugar ocupado pelo
agente na organização da Administração Pública.
no estudo do processo de formação da vontade do estado, ou de qualquer outra
pessoa jurídica, é necessário chegar ao agente, que é uma pessoa física. este, o agente,
até hoje, é o único ser capaz de se expressar, de se comunicar e de efetivamente praticar
atos com a aptidão para criar direitos e gerar obrigações jurídicas.
o modelo de organização das entidades políticas pode ser apresentado nos
seguintes termos: os agentes ocupam seus cargos; os cargos são distribuídos entre os
diferentes órgãos; estes constituem as unidades em que as entidades políticas se subdividem. desse modo, quando um agente ocupante de cargo lotado em determinado
órgão exerce atribuição inerente a sua função — que nada mais é do que o conjunto de
atribuições afetos ao cargo —, a responsabilidade pelo exercício dessa atividade e dos
atos dela decorrentes é atribuída diretamente à pessoa jurídica, no caso a entidade política. Assim, quando um servidor lotado no ministério das relações exteriores, agindo
nessa qualidade, pratica determinado ato, este considera-se como praticado pela união,
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
que é a pessoa jurídica. Quando motorista da Câmara dos deputados se envolve em
acidente automobilístico e causa prejuízo a particular, este deve propor ação de indenização contra a união, que é quem responde pelos atos praticados por seus agentes.
4.2.2 Órgãos independentes
dentro da estrutura das entidades políticas, os órgãos encontram-se organizados
a partir de critérios de hierarquia. na cúpula, exercendo as funções estatais básicas de
legislar, julgar e administrar, são identificados os denominados órgãos independentes ou
constitucionais. estes não se subordinam a quem quer que seja. são eles, no âmbito do
Poder executivo, a Presidência da república e respectivos ministérios, os gabinetes
dos governadores estaduais e do distrito Federal e suas secretarias de governo e os
gabinetes dos prefeitos municipais, bem como suas respectivas secretarias municipais.
Há órgãos que não integram a estrutura do Poder executivo, são responsáveis
pelo exercício de atribuições definidas diretamente pela Constituição Federal e não se
encontram hierarquicamente subordinados a ninguém.
A rigor, hierarquia é relação verificável tão somente no âmbito do Poder Executivo ou no desempenho de atribuições de natureza executiva. Assim, no âmbito do
Poder Judiciário, por exemplo, somente se verifica hierarquia em relação aos órgãos
responsáveis pelo exercício de atividades administrativas. no âmbito de tribunal de
Justiça estadual, é correto afirmar que a diretoria geral está subordinada à presidência
do tribunal, ou que a diretoria de pessoal é subordinada à diretoria geral. totalmente
descabido falar, ao contrário, que no exercício de atividades judiciárias o juiz substituto
esteja subordinado ao presidente do seu tribunal. Administrativamente, o próprio juiz
se encontra subordinado à presidência do seu respectivo tribunal. Assim, cabe a este
último conceder-lhe férias, autorizar-lhe os afastamentos ou licenças legais. todavia,
no exercício da sua função jurisdicional, não pode o presidente do tribunal dar ordens,
rever decisões ou avocar atribuições do juiz, haja vista essas prerrogativas estarem
ligadas e decorrerem do exercício do poder hierárquico, inexistente fora do exercício
das atividades administrativas ou executivas do estado.
idêntico raciocínio pode ser adotado no âmbito do Poder Legislativo. o servidor
da Câmara dos deputados que exerce atribuições administrativas se subordina aos seus
superiores. os deputados federais, ao contrário, ao exercerem suas atividades políticas
não se subordinam a qualquer outro órgão ou autoridade. isto não lhes desobriga, todavia,
de terem de observar as regras constitucionais e legais relativas, por exemplo, à fidelidade
partidária, que não impõe regras de subordinação, mas de mera sujeição a regras de
comportamento político-partidário fixadas em lei ou na própria Constituição Federal.
Além dos órgãos independentes do Poder executivo, Legislativo e Judiciário,
chama atenção a situação de dois órgãos independentes e de estatura constitucional: o
ministério Público e os tribunais de Contas.
o Procurador-Geral da república, por exemplo, não se encontra subordinado ao
Presidente da república. este pode, por exemplo, dar ordens a seus ministros de estado
haja vista a relação de hierarquia estabelecida. não exerce o Presidente da república
qualquer poder hierárquico sobre o Procurador-Geral da república ou sobre quaisquer dos membros do ministério Público. Aliás, à semelhança do que se disse quanto
à inexistência de hierarquia no exercício da atividade judicial, o mesmo se pode dizer
139
140
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
em relação ao exercício da atividade de todos os membros do ministério Público, que
têm como um de seus princípios institucionais a independência funcional reconhecida
expressamente pela Constituição Federal (art. 127, §1º).
situação peculiar na organização do estado é assumida pelos tribunais de Contas. Ao dispor sobre o controle externo de gastos públicos, a Constituição Federal, em
seu art. 71, afirma que este será exercido pelo Congresso Nacional “com o auxílio do
tribunal de Contas da união, ao qual compete (...)”.
o termo auxílio mencionado pelo texto constitucional gerou alguma dúvida quanto
à existência de eventual subordinação do tCu ao Congresso nacional, dúvida já superada pelo supremo tribunal Federal. A existência de eventual subordinação do tCu ao
Congresso nacional permitiria que este último pudesse dar ordens, rever decisões, avocar
atribuições etc. De modo diverso, ainda que o texto da Constituição defina o controle externo
como “a cargo do Congresso nacional”, esse texto também determina que as atribuições
tendentes ao exercício deste mesmo controle (julgamento de contas de administradores e
demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, realização de inspeções ou de
auditorias nas unidades dos Poderes Legislativo, executivo e Judiciário etc.) são de competência do próprio tCu. este não atua por delegação, e nenhum de seus atos ou decisões
pode ser revisto pelo Congresso, o que torna totalmente descabida qualquer tentativa de
submeter este órgão de controle ao Congresso.
em termos orgânicos, ou de mero enquadramento institucional, encontra-se o
tCu no âmbito do Poder Legislativo. isto se deve ao simples fato de que, sendo esse o
Poder responsável pela aprovação dos orçamentos públicos, a esse mesmo Poder deve
caber a tarefa de acompanhar a execução orçamentária. se formalmente integra o tCu o
Poder Legislativo, seus atos não têm natureza legislativa. Ao contrário, exerce o tCu
jurisdição administrativa e, portanto, são administrativos os atos por ele praticados. É
certo que em função do sistema jurídico-constitucional que serve de amparo para as
decisões do tCu — que legitima inclusive a competência para julgar contas (CF, art. 71,
ii) — estes atos administrativos recebem do ordenamento jurídico tratamento especial
e diferenciado em relação aos demais atos administrativos. estão as decisões do tCu
sujeitas a controle de legalidade por parte do Poder Judiciário. o próprio supremo
tribunal Federal, todavia, reconhece a necessidade de que o controle judicial seja efetivado de modo menos invasivo.
não se encontrando submetido ou subordinado ao Poder Legislativo, mas integrando tão somente a sua organização formal, o TCU, à semelhança do que se verifica
com o ministério Público, é órgão independente ou constitucional. em termos organizacionais, o tCu, o ministério Público, a Presidência da república, as duas Casas
que compõem o Congresso nacional, todos os órgãos da estrutura do Poder Judiciário
da união (stF, stJ, trFs, juízes federais etc.) são órgãos independentes, haja vista
não se subordinarem administrativamente a qualquer outro órgão. Verifica-se que a
subordinação ou hierarquia é inerente ao exercício de atividades administrativas. no
âmbito dos demais Poderes — Legislativo e Judiciário — e dos órgãos independentes
— Ministério Público e Tribunais de Contas —, a subordinação somente se verifica em
relação ao exercício de suas atividades meio, o que confirma a regra geral de que relações
hierarquizadas somente se verificam no exercício das funções administrativas do Estado.
A fim de que os órgãos independentes dos Poderes Legislativo e Judiciário possam bem desempenhar suas funções constitucionais, necessitam de plena autonomia
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
ou independência funcional. isto afasta totalmente a subordinação destes órgãos e de
seus titulares a qualquer outro órgão ou autoridade. importante observar, todavia, que
a independência funcional não afasta a possibilidade de que os agentes responsáveis
pelo exercício das atribuições desses órgãos não possam ser responsabilizados por
ilegalidades ou abusos que pratiquem. Ausência de subordinação hierárquica significa,
tão somente, que os agentes incumbidos de exercerem as potestades dos referidos órgãos
não estão obrigados a cumprir ordens ou determinações de quem quer que seja. todavia,
esses mesmos agentes se vinculam às leis e à própria Constituição Federal, de modo que
podem ser chamados a responder civil, administrativa e criminalmente por eventuais
ilícitos cometidos.
4.2.3 Classificação dos órgãos
4.2.3.1 Classificação em razão da posição do órgão na estrutura da
Administração
Quando se estuda a classificação dos órgãos públicos, o primeiro critério busca
identificar em que posição se localiza o órgão na estrutura da organização da Administração Pública.
A partir de critérios de hierarquia, uma vez identificados os órgãos que compõem a cúpula ou no ápice da estrutura governamental — que, conforme vimos no
item anterior, são os órgãos independentes —, poderemos verificar a posição de todos
os demais, a partir de critérios de subordinação. de acordo com esse critério, os órgãos
classificam-se em:
1. Órgãos independentes;
2. Órgãos autônomos;
3. Órgãos superiores; e
4. Órgãos subalternos.
os órgãos independentes localizam-se no ápice do organograma do estado. os
órgãos autônomos se subordinam diretamente aos independentes. nesse sentido, o
ministério da Fazenda pode ser apontado como órgão independente; a receita Federal,
órgão autônomo. o mesmo vale para o ministério da Justiça — que é independente
— e para a Polícia Federal — que é autônomo — posto que subordinado diretamente ao
primeiro.
descendo no organograma do estado, encontraremos os órgãos superiores e, logo
abaixo destes, os subalternos. A exemplo disso, tem-se que as secretarias de controle
interno e os departamentos financeiros são órgãos superiores e a seção de pagamento
de inativos, órgão subalterno.
A particularidade desta classificação reside no fato de que, conforme jurisprudência do stF já mencionada,6 reconheceu-se tão somente aos órgãos independentes
e autônomos capacidade para a propositura de mandado de segurança para a defesa
de suas atribuições.
6
RDA, rio de Janeiro, 15/46.
141
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
4.2.3.2 Classificação quanto à estrutura
Os órgãos, de acordo com essa classificação, dividem-se em:
1. simples; e
2. Compostos.
são simples aqueles que não sofrem nenhum tipo de subdivisão interna — hipótese somente verificável em órgãos pequenos ou subalternos, de que seria exemplo uma
divisão de inativos de um ministério ou de uma Casa Legislativa. Órgãos compostos
são aqueles que se subdividem internamente em outros órgãos, que têm sua estrutura
composta de outros órgãos. A Câmara dos deputados, por exemplo, de acordo com o
presente critério, é órgão composto, dado que se subdivide em diretorias legislativa e
administrativa, divisões de pessoal etc.
4.2.3.3 Classificação quanto à composição
em função da composição, os órgãos são:
1. singulares; e
2. Colegiados.
Este critério de classificação objetiva examinar a formação da vontade do órgão.
Mais especificamente, este critério procura identificar quantas manifestações de quantos
agentes são necessárias para formar a manifestação do órgão. Afirmar que um órgão é
singular não significa necessariamente afirmar que nele se encontra lotado apenas um
agente, mas apenas que o órgão é titulado por um só agente. É o caso de um ministério, por exemplo. ele é órgão singular porque, em nome do órgão, fala um só agente,
o ministro de estado, não obstante existam inúmeros agentes lotados no órgão. o
Conselho de Contribuintes da receita Federal, por outro lado, é órgão composto. Para
que se possa identificar a manifestação do Conselho são necessárias as manifestações
dos diversos agentes — Conselheiros.
A Constituição Federal, ao dispor sobre a composição da Justiça Federal (art. 106),
definiu como “órgãos” os Tribunais Regionais Federais e os “juízes federais”. A rigor,
a menção feita ao juiz federal como órgão é uma impropriedade. ele não é órgão, mas
simplesmente o agente que titula o órgão singular que é o juízo federal de primeiro grau.
4.2.3.4 Classificação quanto à atuação funcional
Esta classificação normalmente apresenta os órgãos em três diferentes categorias:
1. Ativos;
2. Consultivos; e
3. de controle.
A terminologia adotada praticamente dispensa qualquer outra explicação: órgãos
ativos são aqueles cujas competências os levam a praticar atos administrativos de execução de atividades estatais; órgãos consultivos são os que apresentam pareceres com
o fundamento de subsidiar as decisões dos órgãos ativos; e órgãos de controle exercem
atribuições de fiscalização das atividades praticadas pelos órgãos ativos.
Questão curiosa relacionada à atuação dos órgãos consultivos, e de interesse
especial para as consultorias jurídicas de órgãos públicos, foi objeto de exame pelo stF.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
o tCu, utilizando-se de dispositivo constitucional — art. 71, ii, que determina
que devem ser responsabilizados, além dos gestores públicos, todos “aqueles que derem
causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário” —,
passou em seus acórdãos a responsabilizar, solidariamente com o gestor, o responsável pelo parecer jurídico que serviu de fundamento pelo ato ilegal que tenha causado
prejuízo.
A questão, é certo, não tardou a ser levada em mandado de segurança ao stF,
que a examinou por ocasião do julgamento do ms nº 24.073.7 Ao argumento de que os
advogados são imunes em suas opiniões, adotou o stF a tese de que qualquer cidadão
que cause prejuízo ao erário federal pode ser responsabilizado pelo tCu, exceto os
advogados. o argumento de que se valeu o stF não foi o de se tratar apenas de órgão
consultivo, mas de se tratar de manifestação de advogado. ou seja, se um contador
produzir manifestação técnica, na condição de órgão consultivo, que sirva para a
prática de desfalque ao erário, o contador pode ser responsabilizado; o advogado ou
procurador público, não.
o que resta discutir é a própria serventia da manifestação do órgão jurídico. se
ele não é, salvo raríssimas exceções previstas em lei, vinculante para o gestor,8 ou seja,
independentemente do que diga o jurídico, o gestor pode fazer o que quiser, para que
serve esse parecer? A resposta é a seguinte: esse parecer pela legalidade — e sempre há
como se obter parecer pela legalidade — será utilizado na defesa do gestor que pratica
ato ilegal. este sempre alega que tendo agido com fundamento em parecer do jurídico
que lhe atestava a legalidade, não pode ser responsabilizado. em outras palavras, se for
7
8
stF: “Constitucional. Administrativo. tribunal de Contas. tomada de contas: Advogado. Procurador: Parecer.
C.F., art. 70, parág. único, art. 71, ii, art. 133. Lei nº 8.906, de 1994, art. 2º, §3º, art. 7º, art. 32, art. 34, iX. i. – Advogado
de empresa estatal que, chamado a opinar, oferece parecer sugerindo contratação direta, sem licitação, mediante
interpretação da lei das licitações. Pretensão do tribunal de Contas da união em responsabilizar o advogado
solidariamente com o administrador que decidiu pela contratação direta: impossibilidade, dado que o parecer não
é ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração consultiva, que visa a informar, elucidar, sugerir
providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa. Celso Antônio Bandeira de
mello, ‘Curso de direito Administrativo’, malheiros ed., 13ª ed., p. 377. ii. – o advogado somente será civilmente
responsável pelos danos causados a seus clientes ou a terceiros, se decorrentes de erro grave, inescusável, ou de
ato ou omissão praticado com culpa, em sentido largo: Cód. Civil, art. 159; Lei 8.906/94, art. 32. iii. – mandado de
segurança deferido” (ms nº 24.073-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 6.11.2002. DJ, 31 out. 2003).
Hipótese que nos parece vinculante está prevista na Lei nº 8.666/93, que em seu art. 38, parágrafo único, requer
manifestação de órgão jurídico como condição para a realização da licitação. esse entendimento encontra
respaldo em precedente atual do supremo tribunal Federal, consubstanciado no julgamento do mandado de
segurança nº 24.631-dF (rel. min. Joaquim Barbosa. DJ, 1º fev. 2008), cuja ementa se segue:
“Constitucional. Administrativo. Controle externo. Auditoria pelo tCu. responsabilidade de procurador de
autarquia por emissão de parecer técnico-jurídico de natureza opinativa. segurança deferida. i. repercussões
da natureza jurídico-administrativa do parecer jurídico: (i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não
se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão
consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como
submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da
apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer; (iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz
de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídica deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá
decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir. ii. no caso de que cuidam os autos, o parecer
emitido pelo impetrante não tinha caráter vinculante. sua aprovação pelo superior hierárquico não desvirtua
sua natureza opinativa, nem o torna parte de ato administrativo posterior do qual possa eventualmente decorrer
dano ao erário, mas apenas incorpora sua fundamentação ao ato. iii. Controle externo: É lícito concluir que é
abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e
o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro,
submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização
do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa. mandado de segurança
deferido” (grifos nossos).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
144
utilizado parecer de órgão consultivo jurídico para atestar, por exemplo, a legalidade
de contratação sem licitação em situação em que deveria ser instaurado o procedimento
licitatório, não será responsabilizado o procurador ou advogado que produziu o parecer
que amparou a ilegalidade em face da jurisprudência do stF, assim como também será
utilizado esse mesmo parecer para tentar afastar a responsabilidade do gestor.
no Capítulo 18, que trata do controle da Administração Pública, outras considerações são apresentadas acerca da responsabilidade do que emite parecer jurídico.
4.3 Administração Pública indireta
4.3.1 entidades administrativas
o direito Administrativo, cuja existência e autonomia somente foram reconhecidas há pouco mais de dois séculos, tempo muito curto, sobretudo quando comparado
ao direito Civil, foi buscar neste os mecanismos para organizar a estrutura do estado.
esse ente conhecido como estado adotou as formas privatistas de subjetivação, segundo
o modelo criado pelo direito Privado, e adotou o modelo de pessoas jurídicas.
A ideia de conferir personalidade jurídica ao estado, conforme observa García
de enterría, nada mais é do que uma tentativa de esconder uma verdade: o estado é
apenas um instrumento de dominação do homem pelo homem.9
Quando examinamos o processo de descentralização horizontal, vimos que as
atribuições conferidas pela Constituição às entidades políticas podem, a critério destas,
ser transferidas a outras pessoas que se vinculam administrativamente às primeiras.
É constitucionalmente prevista e disciplinada (art. 37, XiX e XX) a possibilidade de
criação das entidades administrativas, desde que o façam por meio de lei específica.
A descentralização administrativa está diretamente relacionada à busca pela eficiência no desempenho das atividades estatais. A ideia básica relacionada ao processo
de descentralização horizontal é a de que a criação de uma pessoa jurídica dotada de
autonomia administrativa, gerencial e financeira, bem como de pessoal especializado,
permite a realização de atribuições de modo mais eficiente.
o processo de descentralização relaciona-se à concepção de especialização e de
autonomia, que evidentemente não é absoluto. sempre haverá relação de vinculação
administrativa entre a pessoa política criadora, que será sempre entidade política ou
primária, e a pessoa jurídica resultante do processo, a entidade administrativa ou secundária, vinculação que assegura à primeira mecanismos de controle sobre a segunda.
no processo de descentralização horizontal devem ser considerados fatores de
ordem técnica, administrativa, social, econômica, jurídica, territorial. o aspecto político,
todavia, é o mais importante. A decisão de criar entidade administrativa é eminentemente política.
9
O próprio autor mitiga suas afirmações quando procede ao estudo da formação do Estado Democrático de Direito
e sua sujeição ao princípio da legalidade: “La Ley no es simplemente, como la Ley del rey absoluto, un mandato
general, un iussum; por el contrario, es instrumento adecuado para articular precisamente las libertades, que siendo
propias de todo hombre son entre sí recíprocas. (...) He aquí por qué la Ley expresa la esencia misma de la democracia: la libertad, la igualdad, la auto disposición de la sociedad sobre sí misma” (GArCíA de enterríA. Democracia,
jueces y control de la administración, p. 35-36).
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
Conforme examinado anteriormente, as atribuições estatais são distribuídas entre
as diferentes entidades políticas — processo que aqui temo-nos referido como descentralização vertical — que compõem, em cada nível ou esfera de governo, as respectivas
administrações públicas diretas (união, estados, distrito Federal e municípios).
Cabe a cada uma dessas entidades políticas, sempre por meio de lei, criar ou
autorizar a instituição de entidades administrativas ou secundárias que irão compor
suas respectivas administrações públicas indiretas.
A Constituição Federal não autoriza a criação de outras entidades fora as quatro
expressamente indicadas (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista – art. 37, XiX), bem como de suas subsidiárias – art. 37, XX.
Afora estas, as entidades políticas não podem criar qualquer outra entidade, sob pena
de incorrem na prática de atos inconstitucionais. A criação, pelo poder público, de
entidades que não integram a Administração indireta — cujo objetivo normalmente é
de fugir à aplicação das normas de concurso público, de licitação, de Lei de responsabilidade Fiscal etc. — não é autorizada pela Constituição Federal. referimo-nos, aqui,
expressamente, às entidades que compõem os serviços sociais Autônomos, conhecido
como sistema “s”. são entidades criadas pelo poder público, mantidas com recursos
públicos por meio do recolhimento de contribuições parafiscais, mas que não integram a
Administração Pública. mais do que contradição, a criação e a existência dessas entidades trata-se de verdadeiras inconstitucionalidades.10 não se questiona a importância da
atividade que algumas delas desempenham, mas a impossibilidade de o poder público
criar entidade fora da Administração Pública, ainda que o instrumento utilizado seja
lei em sentido formal.
observados os parâmetros constitucionais para a criação das entidades integrantes da Administração Pública indireta, critério a ser observado, conforme afirmado,
para indicar se a entidade a ser criada terá natureza autárquica, fundacional ou estatal é
eminentemente político. deve ser considerado, todavia, o fato de que as autarquias são
indicadas para o desempenho de atividades típicas de estado; as fundações públicas,
para o desempenho de atividades de utilidade pública; e caso o poder público opte pela
exploração de atividades empresariais, devem ser criadas empresas estatais (empresas
públicas ou sociedades de economia mista).
evidente que o critério da natureza da atividade como indicativo da entidade
a ser criada está sujeito a inúmeras controvérsias. Inicia-se a discussão pela definição
do que é atividade típica de estado. não existe parâmetro constitucional ou legal para
essa definição. Flutuamos, aqui, ao sabor de concepções políticas sujeitas a mutações ao
longo do tempo e do espaço. A defesa do território nacional, a manutenção de relações
com outros países, a emissão de moeda, por exemplo, podem ser apontadas como atividades típicas de Estado. Esta afirmação, todavia, baseia-se em conceitos metajurídicos,
10
no título iX da Constituição Federal, relativo às disposições transitórias, o art. 240 faz expressa referência às
“atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical (...)”. Essa referência importa
em convalidação tácita da criação das entidades componentes do denominado sistema “s”, desde que essa
criação tenha ocorrido antes do advento da Constituição de 1988. nessas hipóteses, sanado o vício de criação,
é perfeitamente válida a existência do sesi, por exemplo. A partir da vigência do texto constitucional de 1988,
qualquer entidade a ser criada pelas entidades políticas deve necessariamente enquadrar-se em uma das quatro
modalidades mencionadas pelo art. 37, XiX, vale dizer, deve ser autarquia, fundação pública, empresa pública
ou sociedade de economia mista.
145
146
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
impossíveis de serem questionados ou demonstrados com base em critérios de direito.
sabemos apenas que não há país no mundo onde essas atividades sejam exploradas por
particulares. Em outras palavras, a definição do que é típico de Estado decorre mais de
constatações fáticas do que de conceitos ou de regras jurídicas estabelecidas.
Entre nós, firmou-se o entendimento de que o exercício do poder de polícia se
caracteriza como atividade tipicamente estatal. nem lei, nem mesmo a própria Constituição Federal assim dispõem de modo expresso. Todavia, esta afirmação, de que o
poder de polícia constitui atividade típica de estado, tem sido bastante para a declaração
de inconstitucionalidade de leis que, de alguma forma, busquem transferir a entidades
privadas atividades desta natureza. Ao julgar a Adi nº 1.717/dF, por exemplo, o stF
firmou o entendimento de que os conselhos que fiscalizam o exercício das profissões
regulamentadas possuem natureza autárquica, haja vista a atividade por eles desenvolvida envolver o exercício do poder de polícia e este ser insuscetível de delegação,
ainda que por lei, a entidades de direito privado.
em função da natureza de cada uma dessas entidades — pública ou privada —
podemos ainda, como será visto em seguida, afirmar que não se admite que autarquia,
em face de sua personalidade jurídica ser de direito Público, possa explorar atividade
empresarial ou, ao contrário, que uma empresa estatal, que é pessoa de direito Privado,
possa explorar atividade típica de estado.
Passaremos ao estudo de cada uma das entidades da Administração Pública
indireta, onde voltaremos a tratar da questão da atividade a ser explorada por cada
uma das entidades administrativas.
4.3.2 Autarquias
4.3.2.1 Principais características
A principal característica das autarquias consiste na natureza da atividade que
desenvolvem. É certo que existem autarquias cujas atividades não se podem considerar
exclusivas do estado. A universidade de são Paulo (usP), por exemplo, desempenha
atividade de ensino, pesquisa e extensão universitárias, que não são consideradas típicas de estado. todavia esta universidade é uma autarquia. se existem, desse modo,
entidades autárquicas cujas atividades não são exclusivas ou típicas do estado, sempre
que as entidades políticas descentralizam atividades desta natureza, típicas de estado,
a entidade a ser criada é uma autarquia.
o fato de serem criadas para desempenharem atividades típicas de Estado pode ser
apontado como a primeira característica das autarquias, característica que irá marcar
todas as demais.
A segunda característica das autarquias diz respeito à natureza de sua personalidade jurídica, que é de Direito Público. ora, se as autarquias são criadas para desempenhar atividades típicas das entidades primárias (união, estados etc.), é certo que o
ordenamento jurídico deve conferir-lhes personalidade de mesma natureza jurídica,
vale dizer, de direito Público.
Definida a personalidade como de Direito Público, a característica seguinte das
autarquias será a sua sujeição a regime jurídico de Direito Público. A rigor, um aspecto
conduz ao outro. Quando se afirma que determinada pessoa jurídica é de Direito Público ou de Direito Privado, a consequência necessária será a definição da natureza das
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
normas a serem observadas por essa pessoa tanto em relação a suas questões internas
quanto em relação a aspectos externos.
sendo a autarquia pessoa de direito Público, o seu regime jurídico será de direito
Público. A situação das autarquias, em relação ao seu regime jurídico, é a mesma da
entidade política a que ela esteja vinculada. neste sentido, se para regular determinada
situação não disciplinada pelo direito Administrativo, de que seria exemplo a celebração
de contrato de locação de imóvel em que a autarquia figure como locatária, a entidade
política necessitar servir-se do direito Privado, o mesmo ocorrerá com a autarquia.
em relação ao regime jurídico do seu pessoal, a situação ganha contornos diferenciados. Cabe à lei criar empregos ou cargos públicos e, neste último caso, definir
o regime jurídico desses servidores. Com o fim do Regime Jurídico Único decretado
pela emenda Constitucional nº 19, de 1998, lei poderia, por exemplo, estabelecer que o
pessoal de determinada autarquia observará o regime de emprego público, conforme
disciplinado pela Consolidação das Leis do trabalho (CLt), ao passo que o pessoal
da Administração Pública direta daquela mesma esfera de governo poderá adotar ou
manter regime jurídico estatutário.
em relação à adoção do regime da CLt para a Administração Pública direta ou
indireta, a única restrição constitucional existente diz respeito à natureza da atividade a
ser desempenhada pelo agente. não existe, a rigor, impedimento constitucional à adoção
do regime da CLt para agentes lotados em autarquias ou mesmo em órgãos da própria
entidade política.11 Não é em função da lotação do agente que se verifica o impedimento
constitucional. este se deve à natureza da atividade a ser desempenhada pelo agente.
A emenda Constitucional nº 19, de 1998, teve a pretensão de criar no Brasil
carreiras típicas de estado, a serem indicadas em lei complementar, e que, à exceção
destas, todas as demais carreiras passariam a ser regidas pelo regime da CLt. esta lei
nunca foi editada — e certamente jamais o será.
A ausência dessa legislação não impede, não obstante, que se reconheça que determinadas atividades são típicas de estado, como a Polícia Federal, a receita Federal ou
o tCu. reconhecidas essas atividades como típicas de estado, seria inconstitucional a
adoção da CLt para disciplinar os servidores lotados em referidos órgãos.
A sujeição das autarquias ao mesmo regime jurídico das entidades da Administração Pública direta importa em que as prerrogativas conferidas pelo ordenamento
jurídico a estas últimas também alcançam e beneficiam as autarquias.
Podem ser apresentadas como prerrogativas aplicáveis às autarquias:
- Prazos processuais especiais (para recorrer ou contestar);
- Pagamento de dívidas decorrentes de condenações judiciais efetuado por meio
de precatórios (CF, art. 100);
- Possibilidade de inscrição de seus créditos em dívida ativa e a sua respectiva
cobrança por meio de execução fiscal (Lei nº 6.830/80);
- impenhorabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade de seus bens;
11
ocorre, todavia, que o supremo tribunal Federal, no julgamento da Adi nº 2.135-mC/dF, declarou inconstitucional liminarmente o art. 39, caput, da Lei maior, segundo a redação que lhe foi atribuída pela emenda Constitucional nº 19/98, em razão de vício relacionado ao processo legislativo de aprovação das emendas constitucionais.
nesse cenário, o julgamento cautelar da Adi nº 2.135-dF acarretou o retorno da obrigatoriedade do regime jurídico único originalmente previsto pela Constituição de 1988 no âmbito da Administração direta, Autárquica e
Fundacional. essa questão será analisada com mais profundidade no Capítulo 15 (agentes públicos).
147
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
148
- vedação à união, estados, municípios e distrito Federal de instituir impostos
incidentes sobre o patrimônio, renda ou serviços vinculados a finalidades
essenciais das autarquias ou delas decorrentes (CF, art. 150, §2º).
em relação a esta última prerrogativa — a imunidade tributária —, é de se observar que ela não é aplicável de forma plena às autarquias. Caso a união seja proprietária
de imóvel que não esteja, de qualquer modo, vinculado ao exercício de atividade fim
da Administração federal, ainda assim não haverá a incidência do iPtu. Caso este
mesmo imóvel pertença a uma autarquia — federal, estadual ou municipal — haverá
a incidência do imposto incidente sobre a propriedade urbana, cobrança a ser efetuada
por município. Caso o imóvel urbano pertença a uma autarquia (ou fundação pública),
somente não haverá a incidência do imposto se ele estiver ligado a atividade fim ou
decorra de exercício de atividade fim desta autarquia.12
vê-se que as prerrogativas das entidades políticas são plenamente aplicáveis às
suas autarquias, à exceção da regra da imunidade recíproca (CF, art. 150,vi, “a”), que
somente favorece as autarquias e fundações públicas em relação aos bens, serviços e
rendas vinculados às suas atividades fins ou dela decorrentes (CF, art. 150, §2º).
última característica das autarquias está ligada à sua criação, que depende de
lei específica. Nos termos da Constituição Federal (art. 37, XIX), somente por meio de lei
específica será criada a autarquia.
O texto da Constituição dispõe que “somente por lei específica poderá ser criada
a autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia
mista e de fundação (...)”. A distinção entre as duas expressões — lei cria autarquia e
lei autoriza a instituição de empresa pública etc. — reside no fato de que, para a criação
de todas as entidades secundárias ou administrativas, há necessidade de lei específica.
todavia, no caso de autarquia, basta a lei. salvo se esta criar outras exigências ou condições, ao entrar em vigência a lei, a autarquia reputa-se criada, dotada de personalidade
jurídica própria e, portanto, apta a contrair direitos e obrigações.
Conceito muito pouco preciso em nosso direito Administrativo corresponde ao
de autarquia em regime especial. Esta qualificação está ligada ao nível de autonomia da
autarquia e decorreria da própria lei que a criou. A rigor, a expressão constitui uma
deturpação do conceito de autarquia, pois, em princípio, a autonomia administrativa
deveria ser característica de toda e qualquer autarquia, e não apenas das que sujeitam
a “regime especial”. É certo que a definição do nível de autonomia a ser reconhecido
a uma autarquia decorre de fatores de natureza política, sendo perfeitamente possível
que a entidade política responsável pela criação da autarquia não tenha a intenção de
lhe conferir, por exemplo, plena autonomia orçamentária.
A expressão autarquia em regime especial deveria indicar a existência de plena
autonomia administrativa, gerencial, orçamentária financeira etc., o que, na prática,
não se verifica. A rigor, algumas autarquias federais em regime especial necessitam de
autorização da Administração direta até para poderem contratar pessoal e se sujeitam
a contingenciamentos orçamentários tão rigorosos que sua própria efetividade fica
comprometida. o reconhecimento em lei de que determinada autarquia possui essa
12
enunciado da súmula nº 724 do stF: “ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao iPtu o imóvel
pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, vi, ‘c’, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades”.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
natureza indica tão somente a vontade ou intenção do legislador de que os dirigentes
da autarquia pudessem tomar determinadas medidas independentemente da vontade
da Administração direta, ou até mesmo contra a vontade desta. Como as leis que conferem essa atribuição normalmente não indicam como essa autonomia se expressa, se
manifesta ou se exerce, leis acabam por se transformarem em letra morta.
Historicamente, coube à lei criadora da autarquia a função de indicar alguns
parâmetros para o exercício de sua autonomia. A partir da emenda Constitucional
nº 19/98, esse papel vem sendo substituído e exercido pelo contrato de gestão. nos termos
da Constituição Federal (art. 37, §8º) “a autonomia gerencial, orçamentária e financeira
dos órgãos e entidades da Administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante
contrato (...), que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho (...)”.
A redação do dispositivo acima indica o objetivo preciso de busca por uma
maior flexibilização dos instrumentos que podem ser utilizados para definir o nível
de autonomia dos órgãos e entidades da Administração Pública. se o instrumento é a
lei, a entidade política perde a liberdade para, em determinados momentos, ampliar
e, em outros, restringir a autonomia das entidades da Administração Pública indireta,
bem como dos próprios órgãos da Administração direta com os quais será celebrado
o contrato de gestão.
não obstante a perspectiva de celebração de um contrato entre a entidade política
— integrante da Administração direta — e um órgão desta mesma entidade constitua
pura heresia jurídica, haja vista se tratar de contrato celebrado consigo mesmo, temos
observado em alguns casos a existência e a correta execução desses contratos. existe,
por exemplo, contrato de gestão firmado entre os Comandos das Forças Armadas —
exército, marinha e Aeronáutica — e a união, com o propósito de dar maior autonomia
àqueles órgãos.
A ideia básica do contrato de gestão, ideia que se mostra evidente quando a
Constituição Federal fala em “fixação de metas de desempenho”, é a da busca pela
eficiência, de que a autonomia conferida à entidade ou ao órgão irá permitir que essas
unidades administrativas possam melhor cumprir sua função. Definidas as metas, o
controle a ser efetuado pela entidade política, controle que, em termos práticos, será
executado por meio do ministério a que a entidade administrativa se vincula, passa a
ser de resultados. A ideia é conferir autonomia aos gestores da entidade administrativa
ou do órgão, afastando-se a interferência de quem exerce supervisão ministerial, no caso
de entidade administrativa, ou controle hierárquico, no caso de órgão, de modo que
esses gestores respondam pelos resultados de sua atuação, responsabilidade política que
poderá resultar em afastamento desses dirigentes caso as metas não sejam alcançadas.
importante observar que a autonomia a ser conferida pelo contrato de gestão não
tem o poder de afastar a incidência das normas de direito Administrativo. o contrato
não pode, por exemplo, definir que o órgão ou a entidade contrate pessoal sem o prévio
concurso público ou firme contratos sem a incidência da lei de licitações. O contrato
de gestão pode, tão somente, autorizar a prática de determinados atos ou execução de
certas despesas, tais como a realização de concursos públicos para a contratação de
pessoal ou a celebração de contratos, por exemplo, independentemente de autorização da entidade política que integre, no caso de órgão, ou a que esteja vinculada, no
caso de entidade. Para tornar a questão mais clara, podemos apresentar a situação da
Administração Pública federal, onde a contratação de pessoal em todos os órgãos
do Poder executivo e em diversas entidades administrativas — incluídas várias
149
150
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
agências — depende de autorização do ministério do Planejamento. Firmado o contrato
de gestão entre o Comando do exército e a união, poderá ser autorizado esse órgão a
contratar seu pessoal sem que haja necessidade da prévia manifestação ou autorização
do ministério do Planejamento. vê-se que, ainda que na teoria o contrato de gestão
firmado com o órgão possa caracterizar a estranha figura do contrato consigo mesmo,
situação impossível de ser admitida pelo direito, na prática, afastadas as questões de
ordem teórica, o contrato pode até produzir bons efeitos.
importante notar que o contrato de gestão também tem sido utilizado em situação totalmente distinta e com objetivos distintos. Quando ele é firmado com entidade
privada qualificada como organização social, o seu objetivo, conforme veremos adiante,
é viabilizar o repasse de dinheiro público, a fim de que essas entidades possam executar
atividades de utilidade pública, nos termos da Lei nº 9.637/98.
4.3.2.2 Agências reguladoras
no Brasil, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1990, constatou-se
o que diversos países europeus já haviam verificado na década anterior: a incapacidade
do modelo de estado até então adotado de atender às expectativas da população. dentro
do modelo de reforma proposto, o estado assume novo papel, e, não obstante conserve
a titularidade para o exercício de inúmeras atividades e potestades públicas, ele perde
a primazia na prestação de inúmeros serviços, ainda que, como se disse, conserve a
titularidade desses serviços. isto importa em dizer que o estado deixa de ser prestador de inúmeros serviços e, em relação a esses, assume a posição de garantidor de sua
prestação de forma adequada à população. A prestação dos serviços é transferida por
diferentes meios ou instrumentos jurídicos a entidades privadas (concessionárias e
permissionárias de serviços públicos, organizações sociais, organizações da sociedade
civil de interesse público etc.). diante dessa nova forma de prestação de alguns serviços,
sobretudo aqueles que possam ser explorados por entidades privadas como atividades
empresariais, surge no Brasil o modelo de agências e se atribui a estas o novo papel do
Estado brasileiro em inúmeras áreas. Apenas para exemplificar, a Agência Nacional
de energia elétrica (AneeL) não tem competência para prestar serviços de energia
elétrica, mas de assegurar que os diversos agentes privados envolvidos no processo
de geração, transmissão, distribuição etc. de energia elétrica — e o mesmo ocorreu em
outros setores como telefonia, manutenção de estradas e rodovias — prestem serviços
adequados, nos termos da legislação pertinente.
Fator de grande influência na definição do novo modelo a ser adotado é certamente a grande velocidade com que as inovações tecnológicas são operadas, o que exige
do estado respostas rápidas e tecnicamente adequadas. diante desse quadro, em que
a intervenção direta do estado cede espaço à atuação de empresas privadas, e cientes
de que esses setores não poderiam ser relegados aos desígnios do mercado, surge a
necessidade de regulação setorial. Enfim, surge a figura do Estado regulador — o que
tem levado alguns autores a falarem em “direito da regulação”.
É certo que a alta complexidade das matérias objeto desse processo não poderia
encontrar respostas na mera criação de órgãos integrantes da estrutura das entidades
políticas, sujeitos que são a fortes influências hierarquizadas e à flutuação de conveniências políticas. A atuação das entidades políticas não atenderia às necessidades do
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
setor regulado ou mesmo da própria população usuária dos serviços. A necessidade de
profissionalismo, de capacidade técnica, de autonomia administrativa e, sobretudo, de
eficiência, indicou que somente por meio dos mecanismos de descentralização administrativa seria possível ao poder público buscar fórmulas para atender às demandas
surgidas a partir da implantação desse novo modelo de estado. A criação do modelo
de agências não constitui, portanto, grande inovação em nosso direito Administrativo.
são elas apenas o produto ou o resultado do processo de descentralização horizontal
da Administração Pública. As agências possuem natureza de autarquia em regime
especial, o que, conforme visto, indica a vontade do legislador de que lhes sejam conferidos mecanismos de autonomia administrativa, financeira, gerencial etc. a fim de
que possam atingir seus objetivos, dentre eles o de assegurar a prestação de serviços
públicos adequados.
As novidades do modelo de agências podem ser identificadas em alguns fatores,
haja vista a criação da autarquia ser feita para reduzir o tamanho do estado e não para
ampliar suas atribuições, bem como nas funções que elas assumem, de regulação de
importantes áreas da economia e dos serviços públicos.
A maior inovação verificada nesse novo modelo de organização administrativa
talvez seja a ampliação da autonomia dessas entidades administrativas, autonomia assegurada sobretudo pela existência de mandato definido em lei para os seus dirigentes.
A criação do modelo das agências, em especial das reguladoras, no Brasil, está
diretamente relacionada à imperiosa necessidade de que seja criado campo seguro,
confiável e, portanto, propício à realização de pesados investimentos, fato que talvez
tenha contribuído para alguns identificarem como objetivo primordial da atuação
de algumas agências a defesa dos interesses dos agentes privados responsáveis pela
realização desses investimentos. Ao contrário, o que se quer buscar é a criação de um
modelo em que as regras passem a ser definidas de modo claro e rápido, que sejam
regras tecnicamente adequadas.
no Brasil, o marco inicial para a implantação do modelo de regulação setorial
sob a responsabilidade das agências se verificou com a vigência da Lei nº 9.491/97,
que redefine o Plano Nacional de Desestatização. Em nível constitucional, a criação
desses novos espaços regulatórios estatais deu-se com a promulgação das emendas
Constitucionais nº 8 e nº 9, ambas de 1995, que tratam dos setores de telecomunicações
e petrolífero, respectivamente.
no plano legal, o passo seguinte foi a edição das Leis nº 9.472, que cuida do setor
de telecomunicações e cria a AnAteL; a Lei nº 9.427, relativa a energia, cria a AneeL;
Lei nº 9.478, que regula o setor petrolífero e cria a AnP; e a Lei nº 10.233, que cuida do
setor de transportes e cria a AntAQ e a Antt.
A rigor, o termo “agência”, ainda que transmita a ideia de flexibilidade e autonomia, está a requerer maior estudo jurídico. maria sylvia Zanella di Pietro entende
que “o vocábulo agência é um dos modismos introduzidos no direito brasileiro no
movimento da globalização. Foi importado do direito norte-americano, onde tem sentido mais amplo, que abrange qualquer autoridade do governo dos estados unidos”.13
A rigor, não obstante a terminologia adotada no Brasil tenha sido importada do
direito norte-americano, não se pode falar em coincidência de formas de atuação. A rigor,
13
di Pietro. Direito administrativo, p. 385.
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Curso de direito AdministrAtivo
152
nos euA, agência indica a existência de unidade administrativa — entidade ou órgão
público — dotada de competência para produzir ou criar normas, além de não necessariamente atuarem em regulação de mercado. No Brasil, a qualificação de entidades
como agências, que pode decorrer da lei que cria ou altera o funcionamento da entidade
administrativa, como igualmente de eventual contrato de gestão celebrado com órgão
ou entidade pública, não faz com que a entidade tenha sua natureza alterada. daí é de
se concluir que essa autonomia não pode, por exemplo, afastar a aplicação das normas
e princípios da Administração, de que seriam exemplos a licitação e o concurso público.
traço distintivo e peculiar na atuação das agências diz respeito à independência
que lhes é conferida e que visa garantir atuação imparcial, ou ao menos mais imparcial
do que a que seria exercida por órgãos governamentais mais sujeitos a interferências e
flutuações de humores políticos ocasionais.
Essa independência encontra-se definida de forma explícita e indelével no §2º do
art. 8º da Lei nº 9.472/97, que, ao dispor sobre a ANEEL, afirma, in verbis:
Art. 8º. (...)
§2º A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência
administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes
e autonomia financeira. (grifos nossos)
Ao comentar sobre as agências — a quem se refere quase sempre em tom crítico
— Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que a independência destas entidades releva-se
em relação aos três poderes do estado do seguinte modo: “(a) em relação ao Poder
Legislativo, porque dispõem de função normativa, que justifica o nome de órgão regulador ou agência reguladora; (b) em relação ao Poder executivo, porque suas normas e
decisões não podem ser alteradas ou revistas por autoridades estranhas ao seu próprio
órgão; (c) em relação ao Poder Judiciário, porque dispõe de função quase jurisdicional
no sentido de que resolvem (...) litígios entre os vários delegatários e entre estes e os
usuários dos serviços públicos”.14
A própria autora, todavia, afirma que essa independência, sobretudo em relação
aos Poderes Legislativo e Judiciário, deve ser entendida de forma mitigada. em relação ao
primeiro, o Legislativo, por força, sobretudo, da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial exercida pelo Congresso nacional, com o auxílio
do tribunal de Contas da união, conforme dispõe o art. 70 do texto da Constituição
Federal;15 em relação ao Judiciário, tendo em vista a inafastabilidade da atuação judiciária, definida no art. 5º, XXXV, do mesmo texto constitucional.
14
15
di Pietro. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 131.
o tribunal de Contas da união, ao apreciar recurso acerca de concessão de serviços públicos na área de rodovias, deixou assente na oportunidade que compete ao tCu fazer determinações às agências reguladoras em
geral e, no caso concreto, à Agência nacional de transportes terrestres (Antt), exceto quanto àquilo que diga
respeito à conveniência e oportunidade de atos praticados no âmbito discricionário de tais entidades, para os
quais caberiam recomendações. o voto condutor coube ao ministro relator Benjamin Zymler que, a respeito,
assim se pronunciou, verbis:
“(...) entendo que compete a este Tribunal recomendar a adoção das providências que se fizerem necessárias
para tornar mais eficiente a atuação finalística e discricionária das agências reguladoras. De maneira semelhante
a que se verifica nas auditorias operacionais, agora tão freqüentes nesta Corte, o produto final das auditorias
realizadas nessas atividades deve ser um conjunto de propostas e recomendações, cuja implementação propiciará uma maior qualidade na prestação de serviços públicos. Porém, quando for detectado o descumprimento
de uma norma jurídica, o tCu pode e deve determinar a adoção das medidas tendentes a ilidir essa irregularidade” (Pedido de reexame no tC-006.931/2002-0. Acórdão nº 1.703/04, Plenário. rel. min. Benjamin Zymler.
sessão de 3.11.2004. Ata n. 41/04. DOU, 17 nov. 2004).
CAPítuLo 4
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Aliado à independência administrativa, orçamentária, política e financeira, o
poder normativo conferido às agências — que ao expedirem normas técnicas e setoriais
muitas vezes inovam no mundo jurídico — confere-lhe traço peculiar e exige muito
cuidado, posto essas normas estarem sujeitas a eventuais confrontos com normas editadas pela Administração centralizada. não se pode confundir o poder normativo de
algumas agências, o poder de regular determinados segmentos, com a competência do
Poder executivo para regulamentar a lei mediante a edição de decreto, pois, consoante o
que dispõe a Constituição Federal, art. 84, iv, compete privativamente ao Presidente da
república “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e
regulamentos para sua fiel execução”. Esse dispositivo constitucional impede qualquer
agência de editar norma que possa se sobrepor à lei ou ao respectivo e eventual decreto
editado pelo chefe do executivo.
o poder regulamentar de que dispõem os chefes do executivo decorre de forma
genérica da Constituição Federal, e no caso específico da lei a ser regulamentada.
somente pode ser exercida essa potestade por parte do chefe do executivo se, quando e
nos limites definidos pela lei a ser regulamentada. Todavia, regulamentada a lei, todas as
unidades administrativas responsáveis pela aplicação desta lei devem obrigatoriamente
observar o que dispõe o decreto que a regulamentou. em outras palavras, a agência se
sujeita ao poder regulamentar do chefe do executivo a que esteja vinculada.
o poder das agências de regular determinado segmento de mercado não se inclui
no poder regulamentar, de que é titular exclusivo o chefe do Poder executivo. o poder
das agências de regular determinado segmento de mercado insere-se, ao contrário,
no poder discricionário conferido ao administrador público por lei, a ser exercido,
portanto, nos estritos limites legais, tendo em consideração a impossibilidade de o
legislador definir a priori a melhor solução a ser adotada para todas as situações concretas possíveis de serem apresentadas ao administrador público. o mérito da atuação
administrativa, vale dizer, o juízo de conveniência e oportunidade a ser adotado para
definir o conteúdo da manifestação do administrador, no caso das normas expedidas
pelas agências, deve estar em estrita sintonia com a adoção de soluções que, sob o
ponto de vista técnico, econômico e social, sejam consideradas mais adequadas para a
realização do interesse público.
inserir o poder das agências de regular determinado segmento do mercado no
campo da discricionariedade, e não do regulamentar, não importa em outorga-lhes independência absoluta. Ao contrário, há muito se discute a possibilidade de ser exercido, não
apenas pelos tribunais de Contas, mas também pelo próprio Poder Judiciário controle
de legitimidade sobre a atuação discricionária do administrador, podendo o princípio
da razoabilidade ser apontado como apenas um dos instrumentos adequados para tal
mister. sob a ótica do Poder Legislativo, o poder de que dispõe o Congresso nacional,
por meio de seu braço operante, que é o tCu, de realizar auditorias operacionais permitiria a fiscalização da atuação das agências sob ótica mais ampla, incluindo além de
aspectos de legalidade e de legitimidade, aspectos de economicidade — o que importaria, segundo abalizada doutrina, exame do próprio mérito da atuação administrativa.
A rigor, o termo discricionariedade técnica — tão importante para o tema que
ora examinamos — foi utilizado pela primeira vez na áustria,16 e a sua justificativa está
16
Conforme di Pietro. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras
formas, p. 195.
153
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Curso de direito AdministrAtivo
diretamente relacionada à necessidade de que certas decisões administrativas devem
considerar tal nível de especialização que somente aquele órgão ou entidade teria elementos necessários para a valoração da melhor solução a ser adotada.
Ademais, o poder discricionário conferido às agências é ampliado pelo fato de
que as leis que definem suas atribuições utilizam, muitas vezes, conceitos genéricos, e
tratam as questões que lhes são apresentadas apenas como princípios, fixando apenas
standards ou parâmetros a serem observados pelas agências no exercício do poder de
regular determinados setores. surge, assim, o amplo espaço de atuação das agências
e que certamente irá resultar em conflitos com as entidades políticas a que estejam
vinculadas, caso não haja absoluta sintonia entre a atuação das agências e a atuação,
ou falta de atuação, do Poder Central.
Na definição das potestades conferidas às agências, há uma que não lhe é conferida: a de definir ou de formular políticas públicas. Essa tarefa é inerente às entidades
políticas. Cabe à união, aos estados, aos municípios e ao distrito Federal formularem
as políticas para os diversos setores regulados, cabendo às suas respectivas agências o
papel de executá-las. Tomemos aqui o exemplo do setor energético a fim de verificarmos
as causas de tantas desavenças entre o setor regulado, o poder central e as agências
reguladoras.
A Lei nº 9.478/97, a lei do petróleo, além de criar a Agência nacional do Petróleo
(AnP), criou o Conselho nacional de Política energética (CnPe), órgão integrante da
Administração direta, cuja função é a de sediar o debate, de forma multidisciplinar,
sobre a problemática energética em nosso País. Temos, assim, que o CNPE fica com o
encargo de definir a política energética, enquanto a regulação e execução dessas políticas
ficam sob a responsabilidade das agências ligadas a essa área: ANEEL e ANP.
devem as agências regular os setores sob sua responsabilidade; não devem
elas, todavia, desempenhar a função do Poder Central de formular políticas públicas,
função que deve ser definida em nível ministerial, com a efetiva participação do chefe
do executivo e do respectivo Poder Legislativo.
Nesse contexto, insere-se, por exemplo, a necessidade de definição, pelas entidades políticas, da política tarifária a ser seguida pelas agências. os mecanismos de
revisão e os parâmetros a serem adotados por ocasião das revisões tarifárias devem
ser fixados de modo claro pelo Poder Executivo, devendo estar expressos nos editais
de licitações e nos próprios contratos de concessão ou de permissão de serviços públicos.
A discricionariedade a ser utilizada pelas agências, como agentes de implementação
dessas políticas, deve estar definida em lei, sob pena de se subverter a própria lógica
do sistema, que pressupõe normas claras e previamente definidas, de modo a que os
investidores possam agir com a certeza de que não haverá alterações inesperadas nos
rumos definidos para os setores regulados.
se é certo que as estruturas tradicionais da centralização administrativa mostram-se
inadequadas para responder às demandas da população e do próprio setor regulado em
matérias tão sensíveis social, econômica e politicamente, a implantação desse novo modelo
de atuação do estado deve ser acompanhada com muito cuidado por todos os que zelam
pelo império do interesse público. Acerca das dificuldades dessa solução apontada pelo
modelo gerencial, a doutrina norte-americana busca definir o relacionamento entre as
agências e o setor regulado por meio de ciclos. no início, a agência responde à demanda
que resultou na sua criação; na segunda fase, trabalha com vigor, ainda livre das forças
corruptivas no seu entorno; na terceira etapa, denominada de “porta giratória”, ocorre
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troca de pessoal entre a agência e o setor regulado, e, na quarta, a agência passa a ser
inteiramente dominada pelo setor regulado.
4.3.2.3 Agências executivas
As agências reguladoras têm desempenhado importante função no modelo de
organização do estado brasileiro implantado a partir das reformas administrativas
ocorridas nos últimos anos no Brasil. A sua importância está no fato de regularem atividades públicas que foram transferidas a empresas privadas. diante do incremento
dessa forma de proceder do estado, que cada vez mais se utiliza de particulares para
executar atividades estatais, a tendência é que essas entidades assumam importância
cada vez maior em nosso modelo de estado.
em relação às agências executivas, todavia, o cenário não lhes é muito animador.
Até o momento não tem sido possível sequer identificar em que consistem ou qual a
sua função.
elas são disciplinadas pelos decretos nº 2.487 e nº 2.488, ambos de 1998. nos termos
desses normativos, autarquias e fundações, inclusive as já existentes, podem ser qualificadas pelo Ministério a que se vinculem como agências executivas, desde que tenham
“celebrado contrato de gestão” e que apresentem plano estratégico “para a melhoria da
qualidade de gestão e para a redução de custos”. Qualificada como agência executiva,
a autarquia ou fundação pública estaria sujeita a “regime especial”.
A ideia de agência executiva não está ligada, portanto, ao exercício de atividade
específica. Qualquer autarquia ou fundação pública, independentemente de sua área
de atuação, pode vir a se qualificar como agência executiva a fim de se submeter a
“regime especial”. o que, até o momento, não se explicou é em que consiste referido
regime especial.
A única referência feita em nossa legislação acerca das agências executivas
consta da Lei nº 8.666/93. em seu art. 24, §1º, com a redação que lhe foi dada pela Lei
nº 9.648/98, é estabelecido que as agências executivas, assim como os consórcios públicos, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, podem contratar, sem
licitação, obras e serviços de engenharia de valor não superior a r$30.000,00, e compras
e demais serviços de até r$16.000,00, em razão de dispensa. esses valores correspondem
ao dobro do limite de dispensa aplicável aos demais órgãos e entidades públicos. se é
este o tratamento que a lei confere às agências executivas, ele não tem absolutamente
nada de especial.
Quanto à possibilidade de o contrato de gestão conferir às autarquias ou às fundações públicas maior autonomia, isto independe de elas serem ou não qualificadas
como agências executivas. vê-se, pois, que as agências executivas constituem tema
absolutamente irrelevante em nosso direito Administrativo.
4.3.2.4 Autarquias corporativas
Este tema sempre foi objeto de infindável discussão entre os juristas. Afinal,
qual é a natureza jurídica da ordem dos Advogados do Brasil (oAB),17 dos Conselhos
17
no julgamento da Adi nº 3.026-dF, o eg. supremo tribunal Federal, sem negar a natureza autárquica dos conselhos de fiscalização das profissões regulamentadas, afirmou que a Ordem dos Advogados do Brasil não é
155
156
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
regionais ou Federais de medicina, odontologia, de educação Física etc.? A particularidade dessas entidades consiste no fato de que são criadas por lei, desempenham
atividade típica de Estado, correspondente ao poder fiscalizar o exercício de atividades
profissionais, gozam de prerrogativas típicas das entidades de Direito Público (tais como
imunidade tributária relativa a seus bens, rendas e serviços e possibilidade de cobrança
de seus créditos por meio de execução fiscal), sem que, todavia, estejam vinculadas ou
subordinadas direta ou indiretamente a qualquer entidade política.
em termos de direito Positivo, a questão poderia ser considerada esgotada com
o julgamento da ADI nº 1.717/DF, haja vista o STF ter confirmado com este julgamento
a natureza autárquica destas entidades. estamos, porém, longe de qualquer consenso
sobre o tema.
relativamente ao dever de prestar contas ao tribunal de Contas da união,
parece-nos questão superada. A natureza pública de seus recursos — as contribuições
dos profissionais para manutenção das entidades são contribuições parafiscais — e o
autarquia. resta saber, em razão dessa decisão, se as seccionais da ordem continuarão isentas de pagar os
impostos incidentes sobre seu patrimônio, renda e serviço haja vista a imunidade se basear exatamente na natureza autárquica antes reconhecida à oAB. ressalvada, portanto, a possibilidade de lei estadual ou municipal
criar isenções, não subsiste mais fundamento para o não pagamento de iPtu, iPvA e iss pela oAB. importa
ainda observar que o casuísmo dessa decisão não pode conduzir à conclusão de que entidades privadas possam
exercer poder de polícia, atividade exclusiva das pessoas de direito público. o acórdão proferido foi ementado
nos seguintes termos:
“Ação direta de inconstitucionalidade. §1º do artigo 79 da Lei n. 8.906, 2ª Parte. ‘servidores’ da ordem dos
Advogados do Brasil. Preceito que possibilita a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha do regime
jurídico no momento da aposentadoria. indenização. imposição dos ditames inerentes à administração pública
direta e indireta. Concurso público (art. 37, ii, da Constituição do Brasil). inexigência de concurso público para
a admissão dos contratados pela oAB. Autarquias especiais e agências. Caráter jurídico da oAB. entidade
prestadora de serviço público independente. Categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes
no direito brasileiro. Autonomia e independência da entidade. Princípio da moralidade. violação do artigo 37,
caput, da Constituição do Brasil. não ocorrência.
1. A Lei n. 8.906, artigo 79, §1º, possibilitou aos ‘servidores’ da oAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção
pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria.
2. não procede a alegação de que a oAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública direta e indireta.
3. A oAB não é uma entidade da Administração indireta da união. A ordem é um serviço público independente,
categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro.
4. A oAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como ‘autarquias especiais’
para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ‘agências’.
5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração,
nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária.
6. A oAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja
finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência
entre a oAB e qualquer órgão público.
7. A ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida
como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional.
8. embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da oAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente.
9. improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação conforme o artigo 37, inciso ii, da
Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei n. 8.906, que determina a aplicação do regime trabalhista aos
servidores da oAB.
10. incabível a exigência de concurso público para admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela oAB.
11. Princípio da moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao
âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. desvio de poder ou de finalidade.
12. Julgo improcedente o pedido” (stF. Adi nº 3.026-dF, Pleno. rel. min. eros Grau. Julg. 8.6.2006. DJ, 29 set.
2006, grifos nossos).
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
fato de serem autarquias constituem, individualmente, motivos suficientes para terem
de se submeter à fiscalização do TCU.
A ordem dos Advogados do Brasil, que deveria ser a primeira a cumprir seu
dever republicano de prestar contas, realizar concursos públicos e licitações, vergonhosa
e injustificadamente não o faz — máxima vênia. Utiliza-se, ao contrário, do argumento
de que exerce função política — e mais ainda de seu poder político — para obter decisões judiciais e administrativas sem fundamentação jurídica sólida que justifique a sua
liberação desses misteres. se o Presidente da república, a Câmara dos deputados, o
senado Federal, o próprio supremo tribunal Federal, que exercem, cada qual a seu
modo, funções políticas, prestam contas, por que a oAB não o faria? A resposta deve
ser buscada no mundo político, e não em fundamentações jurídicas.
Assim, à exceção da OAB, todas as demais entidades responsáveis pela fiscalização do exercício das profissões regulamentadas, além de prestarem contas, têm sido
obrigadas a fazer licitação e concurso público. outras questões restam pendentes, tais
como: a elas se aplica a Lei de responsabilidade Fiscal? devem observar as normas
relativas à execução orçamentária previstas na Lei nº 4.320/64?
É ponto pacífico em nossa doutrina e jurisprudência que o poder de polícia
somente pode ser exercido por pessoa de direito Público. ora, se as únicas entidades
dotadas de personalidade jurídica de direito Público admitidas em nosso ordenamento
jurídico são as entidades políticas (união, estados, distrito Federal e municípios) e as
autarquias (aí incluídas as fundações autárquicas), a única opção de enquadramento
jurídico possível que sobra às entidades responsáveis pela fiscalização das profissões
regulamentadas é na forma de autarquias.
dado que são autarquias, a elas se aplica o direito Público, porém, em função
de particularidades que lhes são próprias, de forma mitigada. A Constituição Federal
dispõe, por exemplo, que a criação de cargos, empregos ou funções públicas depende
de lei. seria, portanto, necessária a aprovação de lei federal para criar um emprego de
secretária ou de ascensorista ou qualquer outro para o Conselho de educação Física,
por exemplo?
Parece-nos que a observância das normas públicas não pode ocorrer de forma
plena ou absoluta sob pena de se mostrar, por vezes, totalmente absurda.
são autarquias especiais. A sua especialidade — e neste ponto não podem ser
confundidas com as autarquias em regime especial — está no fato de que não integram
a Administração Pública. elas não se subordinam ou vinculam a nenhuma outra entidade. no desempenho de suas atribuições, devem dispor de plena e absoluta liberdade
administrativa, gerencial, financeira e orçamentária, tendo como limite a lei que as criou
e os princípios constitucionais.
dado este fato, ao se relacionarem com o mundo exterior, vale dizer, quando
contratam empresas ou empregados, devem observar, dentre outros, o princípio da
impessoalidade. isto importa na necessidade de realização de licitações e de concursos públicos.18 Quando exercem suas atribuições de fiscalização, devem observar, em
especial, os princípios do contraditório e da ampla defesa. nestes aspectos, sujeitam-se
18
enunciado da súmula nº 277 do tCu: “Por força do inciso ii do art. 37 da Constituição Federal, a admissão de
pessoal nos conselhos de fiscalização profissional, desde a publicação no Diário de Justiça de 18.05.2001 do acórdão proferido pelo stF no mandado de segurança 21.797-9, deve ser precedida de concurso público, ainda que
realizado de forma simplificada, desde que haja observância dos princípios constitucionais pertinentes”.
157
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
158
às normas de direito Público. mas ao desempenharem atribuições internas que não
importem em violação de qualquer dos princípios constitucionais, não se justifica a
aplicação de normas de direito Público.
essas autarquias especiais devem, assim, em suas contrações realizarem a prévia
licitação. Estas não necessitam, todavia, observar fielmente as regras previstas na Lei
nº 8.666/93. As licitações das autarquias corporativas devem observar regras eventualmente editadas previamente por elas mesmas, regras que busquem realizar a impessoalidade, a publicidade, a moralidade, a eficiência etc.
À OAB, ao CREA, aos Conselhos de Contabilidade etc. não se justifica a aplicação da Lei de responsabilidade Fiscal — Lei Complementar nº 101/02 — ou da Lei
nº 4.320/64. estas leis existem para disciplinar e limitar os gastos públicos efetuados
pelas entidades da Administração Pública. dado que as autarquias corporativas não
integram a Administração Pública, a elas não se aplicam essas leis. A necessidade de
que os cargos, empregos ou funções a serem criados na Administração Pública decorra
de lei é forma de controle a ser exercido pelo Legislativo sobre o executivo. em relação
às autarquias corporativas, que dispõem de plena autonomia administrativa, gerencial,
financeira etc., não se justifica a necessidade de lei para criar empregos. O dever de realizarem concurso público e licitação decorre da aplicação dos princípios constitucionais
de moralidade, de impessoalidade, de publicidade etc.
4.3.3 Fundações públicas
em relação às fundações públicas (mantidas pelo poder público, instituídas e
mantidas pelo poder público, ou seja qual for a forma como a Constituição Federal a
elas se refere), existe uma grande dúvida: qual a sua natureza jurídica? são elas pessoas
de direito Público ou de direito Privado?
inicialmente, o decreto-Lei nº 200, de 1967, com a redação dada pela Lei nº 7.596/87,
ao dispor sobre a organização da Administração Pública, conferiu-lhes personalidade
de direito Privado. o supremo tribunal Federal, independentemente de qualquer
declaração de inconstitucionalidade de referido decreto-lei, firmou o entendimento de
que as fundações públicas em nada se diferenciavam das autarquias, e lhes conferiu
personalidade de direito Público.19 esse entendimento do stF — de que as fundações
públicas possuem natureza autárquica — decorria do fato de que sempre que a Constituição Federal fazia qualquer menção em relação a uma, à autarquia, referia-se à outra,
à fundação pública, em idênticos termos (CF, arts. 22, XXvii; 37, Xvii e XiX; 150, §2º,
dentre outros).
o enquadramento das fundações públicas como pessoas de direito Público
por equiparação com as autarquias justifica, por exemplo, que até os atuais fundações
públicas como a Fundação nacional do índio – FunAi, sejam julgadas pela Justiça
Federal. ora, se a Constituição Federal, em seu art. 109, i, determina que aos juízes
federais compete processar e julgar “as causas em que a união, entidade autárquica
ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes
(...)” e não faz qualquer menção expressa à competência para julgar fundações públicas
federais, como se justifica que estas sejam julgadas por estes mesmos juízos? A resposta
19
stF. re nº 101.126-rJ, Pleno. rel. min. moreira Alves. Julg. 24.10.1984. DJ, 1º mar. 1985.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
está no simples fato de que, para todos os fins, inclusive de competência, as fundações
públicas federais seriam autarquias federais.
A questão parecia superada até que a emenda Constitucional nº 19/98 deu nova
redação ao art. 37, XiX, e conferiu tratamento distinto às duas entidades. determinou
que somente por meio de lei específica poderá ser “criada autarquia” e “autorizada a
instituição de empresa pública, sociedade de economia mista e de fundação”. temos,
portanto, que o texto constitucional vigente determina que as fundações públicas
observem todas as normas pertinentes às autarquias, exceto em relação a um aspecto,
relativo à criação dessas entidades. neste ponto, as normas a serem aplicadas às fundações públicas são aquelas pertinentes às empresas públicas e sociedades de economia
mista, que são, indiscutivelmente, pessoas de direito Privado.
A pergunta a ser feita é a seguinte: o fato de as fundações públicas observarem, em
todos os seus aspectos, exceto em relação a um (CF, art. 37, XiX), as regras constitucionais
pertinentes às autarquias afeta a definição da natureza da sua personalidade jurídica?
Essa única modificação do texto constitucional justifica modificação no tratamento que
o supremo tribunal Federal lhes conferiu, de pessoas jurídicas de direito Público?
A abertura dada pelo mencionado dispositivo constitucional, conforme ensina
maria sylvia Zanella di Pietro,20 justifica a separação das fundações em duas categorias.
elas podem ser de direito Público ou Privado, conforme dispuser a lei que a tenha
criado ou autorizado sua instituição.
A criação ou a autorização para instituição de fundação pública depende sempre
de lei. Cabe a esta lei, em função da atividade a ser desempenhada, definir se a fundação
pública será de direito público ou de direito privado, conforme ensina a ilustre autora.
se o legislador optar pela criação de fundação pública com personalidade jurídica
de Direito Público, ela nada mais será do que uma autarquia. nesta hipótese, em que
estaremos diante de uma autarquia fundacional, a sua criação decorre da própria lei.
Não haverá necessidade de qualquer outra providência a fim de que seja considerada
constituída a pessoa jurídica, salvo se a lei criar ou exigir essa providência, de que
poderia ser exemplo a necessidade de regulamentação da lei.
Criada a fundação pública com natureza autárquica, hipótese em que seria,
a rigor, mais correto falar tão somente em autarquia fundacional, todas as regras e
explicações pertinentes às autarquias apresentadas anteriormente neste capítulo lhes
serão aplicáveis (normas de direito Público, impenhorabilidade de bens, pagamento
de dívidas decorrentes de condenações judiciais por meio de precatório, cobrança de
seus créditos por meio de execução fiscal etc.).
se em função da atividade a ser atribuída à fundação pública a ela for conferida
personalidade jurídica de Direito Privado, o seu regime jurídico será o direito Civil,
sendo-lhe aplicável as normas do direito Civil, inclusive aquelas pertinentes à necessidade de registro em cartório (Código Civil, art. 62, caput), às áreas em que as fundações
privadas podem atuar (Código Civil, art. 62, parágrafo único) e à fiscalização a ser feita
pelo ministério Público (Código Civil, art. 66). não lhe são aplicáveis as normas privatistas somente quando forem expressamente derrogadas pela Constituição Federal.
A regra da imunidade tributária prevista no art. 150, §2º, do texto constitucional,
por exemplo, deve ser-lhe aplicável ainda que se trate de fundação pública de direito
20
Cf. di Pietro. Direito administrativo.
159
160
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Privado, haja vista a Constituição não estabelecer, nesta e em várias outras hipóteses,
qualquer distinção entre fundação pública de direito Público e de direito Privado. o
mesmo vale para a vedação de acumulação de cargos ou de empregos públicos (CF,
art. 37, Xvii), para a obrigatoriedade de realização de licitação (CF, art. 22, XXvii),
para a necessidade de contratação de pessoal por meio de concurso público (CF, art. 37,
ii), que são alguns exemplos de situações em que a Constituição Federal determina a
aplicação de normas de direito Público, independentemente de se tratar de fundação
pública de direito Público ou de direito Privado.
em outras hipóteses, ao contrário, as normas constitucionais somente alcançariam
as fundações públicas de direito Público. o art. 100 da Constituição Federal, ao dispor
sobre os precatórios, menciona a expressão fazenda pública, expressão que não inclui
pessoas de direito Privado. desse modo, as fundações públicas de direito Público,
cujos bens são impenhoráveis, teriam a prerrogativa de pagamento de suas dívidas
decorrentes de condenação judicial por meio de precatório. idêntico raciocínio se aplica
ao foro privilegiado do art. 109 do texto constitucional, que trata da competência dos
juízes federais. somente as fundações públicas federais de direito Público, dado que
estão equiparadas às autarquias federais, poderiam beneficiar-se desse foro, devendo
as fundações públicas federais de direito Privado serem processadas e julgadas pelos
juízos comuns estaduais.
Aspecto importante dessa discussão consiste em saber se as fundações públicas
de direito Privado seriam entidades administrativas ou secundárias e integrariam,
portanto, a Administração Pública indireta em sua respectiva esfera de governo. A
resposta parece ser positiva. não existe qualquer razão para que as fundações públicas
de direito Privado sejam excluídas do âmbito da Administração Pública indireta. A
existência de legislação anterior à vigência da Constituição Federal de 1988 que tenha
tido a pretensão de excluir do âmbito da Administração Pública indireta as fundações
públicas de direito Privado (decreto-Lei nº 900/69) deve ser considerada revogada pelo
texto constitucional. As normas relativas ao direito da organização Administrativa são
de estatura eminentemente constitucional e servem de parâmetro para a interpretação
de todas as leis pertinentes ao tema. não havendo qualquer dispositivo constitucional
que permita concluir que as fundações públicas de direito Privado não integram a
Administração, deve-se afastar essa interpretação.
A criação de fundações públicas de direito Privado fora do âmbito da Administração Pública, de que são tristes exemplos as fundações de apoio de várias universidades
federais, decorreu nada mais do que de tentativas de fugir dos mecanismos de controle
estatais existentes. Em nome de uma maior flexibilidade gerencial para o desempenho
de atividades acadêmicas, o que se tem verificado em inúmeros casos é a pura e simples
malversação de recursos públicos e a utilização das referidas fundações de apoio para
fugir ao dever constitucional de licitar e de fazer concurso público.
Último aspecto controvertido das fundações públicas diz respeito à fiscalização
a ser empreendida pelos tribunais de Contas e pelo ministério Público.
toda fundação pública, qualquer que seja a natureza de sua personalidade, integra
a Administração Pública indireta. isto nos parece inquestionável. não é possível querer
afastar a fiscalização a ser empreendida por parte do respectivo Tribunal de Contas, em
função do que dispõe o art. 71, ii e iv, da Constituição Federal.
em relação ao ministério Público, a questão deixa de ser tão simples. em primeiro lugar, deve-se deixar assente que os atos dos dirigentes das fundações públicas,
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
independentemente da sua natureza, podem ser impugnados por meio de ações civis
públicas, ações populares, ações de improbidade etc. propostas pelo ministério
Público competente. essa possibilidade de atuação do ministério Público não pode ser
questionada e não é dela que se pretende falar. A fiscalização do Ministério Público em
relação às fundações a que aqui nos referimos diz respeito àquela prevista no Código
Civil (art. 66). Esta forma de fiscalização que o Ministério Público dos Estados exerce
de forma sistemática sobre todas as fundações privadas deve alcançar as fundações
públicas de direito Privado de igual modo. Assim sendo, quando se discute sobre a
fiscalização das fundações públicas, não se afasta em hipótese alguma a competência
dos tribunais de Contas ou a possibilidade de atuação do ministério Público por meio
das ações penais e civis cabíveis. em relação às fundações públicas de direito Privado, a
particularidade está no fato de que, além de se sujeitarem a essas formas, estão submetidas à fiscalização sistemática a ser empreendida pelo Ministério Público dos Estados,
conforme dispõe o Código Civil.
4.3.4 empresas estatais
A primeira questão a ser enfrentada no estudo das empresas estatais é de caráter
terminológico. Até muito recentemente, as expressões empresas estatais e paraestatais
eram apresentadas como sinônimas. A Lei nº 8.666/93, em seu art. 17, inciso 1º, ao dispor
sobre alienação de imóveis, por exemplo, faz referência às entidades “paraestatais”. A
rigor, o exame sistemático da lei leva à conclusão de que o legislador utilizou esse termo para fazer referência às empresas públicas e às sociedades de economia mista, que
atualmente não mais se consideram paraestatais, mas empresas estatais. A adoção de
um ou de outro termo se trata de mera convenção terminológica independentemente
de qualquer previsão legal específica.
É importante o leitor saber que aqui, utilizaremos as expressões em sentidos
distintos. o termo empresa estatal aplica-se às empresas públicas e às sociedades de
economia mista, que são entidades administrativas que compõem a Administração
Pública indireta da união, dos estados, do distrito Federal ou dos municípios. As paraestatais são entidades que se encontram fora do âmbito da Administração Pública. elas
desempenham atividades de interesse da Administração, são mantidas exclusiva ou
predominantemente com recursos públicos, mas não são entidades administrativas
ou secundárias. são exemplos de paraestatais as organizações sociais, as organizações
da sociedade civil de interesse público e os serviços sociais autônomos, e delas nos
ocuparemos no item seguinte.
Feitas essas considerações, deve ficar esclarecido que, sempre que for utilizada
a expressão empresa estatal, estaremos nos referindo às empresas públicas e às sociedades de economia mista.
4.3.4.1 regime jurídico e características das empresas estatais
As empresas estatais são pessoas jurídicas dotadas de personalidade jurídica de
Direito Privado (decreto-Lei nº 200/67), somente por meio de lei específica poderá ser autorizada sua instituição (CF, art. 37, XiX), sujeitam-se ao regime jurídico de Direito Privado
(CF, art. 173, §1º, ii), ressalvadas as hipóteses previstas na Constituição Federal. relativamente à sua finalidade, podem desenvolver atividades de natureza empresarial ou
161
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Curso de direito AdministrAtivo
162
prestar serviços públicos. As empresas estatais não necessariamente se prestam para
explorar atividades empresariais; todavia sempre que as entidades políticas decidirem
pela exploração dessas atividades, será criada empresa estatal.
essas são características típicas das empresas estatais. outras também lhe são
aplicáveis, ainda que, a rigor, sejam comuns a todas as entidades administrativas como a
sujeição a controle estatal, e vinculação aos fins definidos na lei que lhes autorizou a instituição.
Em relação a essas entidades, a maior dúvida reside na definição do seu regime
jurídico. É certo que sendo pessoas de direito Privado, o regime jurídico a ser-lhes aplicável
é o direito Privado. integram, todavia, a Administração Pública indireta, o que impõe-lhes
a observância, por força do disposto no art. 37 da Constituição Federal, dos princípios
da impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade etc. A observância dos princípios
gerais da Administração Pública é inafastável. não é possível, todavia, presumir que a
aplicação dos princípios importe em conferir às empresas estatais prerrogativas públicas,
de que seria exemplo a anulação administrativa dos contratos que firme.
A discussão acerca do regime jurídico a ser observado pelas empresas estatais
se torna evidente quando se examina a possibilidade de os atos dos dirigentes serem
questionados por meio de mandado de segurança. no caso de concurso público realizado
por órgão público integrante da estrutura de pessoa de direito Público, por exemplo,
não há dúvida de que é cabível a segurança. se o concurso público é realizado por
empresa pública, a jurisprudência do stJ entende igualmente cabível;21 se se trata de
concurso público realizado por sociedade de economia mista exploradora de atividade
empresarial, sob o argumento de que se trata de ato de gestão, o stJ não admite o cabimento da ação.22 em relação aos atos praticados por empresas estatais na condução
de licitação, o entendimento do STJ é pacífico no sentido de que se tratam de atos de
império23 passíveis de serem atacados por meio de mandado de segurança.
21
22
23
nesse sentido, stJ: “Processual Civil e Administrativo. recurso especial. mandado de segurança. Legitimidade
passiva. Agente da Caixa Econômica Federal. Decadência. Inocorrência. Idade mínima fixada para concurso
público. i - Ao se submeter a normas de direito público para seleção e contratação de servidores, instituindo concurso e convocando-os pela ordem de classificação, a empresa pública sujeita-se a controle através de mandado
de segurança” (REsp nº 588.017-DF, 5ª Turma. Rel. Min. Felix Fischer. Julg. 13.4.2004. DJ, 07 jun. 2004).
nesse sentido, stJ: “Administrativo. Banco de Brasília. seleção de empregados. Concurso público. Ato de gestão. exclusão do mandado de segurança. 1. sociedade de economia mista que explora atividade econômica,
como por exemplo o Banco regional de Brasília, sujeita-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas,
estando, portanto, seus dirigentes excluídos, em princípio, do âmbito do mandado de segurança. A seleção de
empregados através de concurso público não exterioriza ato de autoridade e nem exercício de competência delegada, mas simples ato de gestão. 2. recurso especial não conhecido” (resp nº 164.443-dF, 6ª turma. rel. min.
vicente Leal. rel p/ acórdão min. Fernando Gonçalves. Julg. 14.9.1999. DJ, 28 fev. 2000).
nesse sentido, stJ: “Processual Civil. recurso especial. mandado de segurança. Ato coator praticado por diretor
de sociedade de economia mista (Banrisul). Licitação. Cabimento. 1. Consoante a doutrina clássica e a jurisprudência dominante, o conceito de autoridade coatora deve ser interpretado da forma mais abrangente possível. 2.
Sob esse ângulo, a decisão proferida em processo de licitação em que figure sociedade de economia mista é ato de
autoridade coatora, alvo de impugnação via mandado de segurança, nos moldes do §1º, do art. 1º da Lei 1.533/51.
Precedente: resp 598.534/rs, rel. min. eliana Calmon, DJ, 19 set. 2005. 3. É cediço na Corte que o ‘dirigente
de sociedade de economia está legitimado para ser demandado em mandado de segurança impetrado contra
ato decisório em licitação’. (resp 122.762/rs, rel. min. Castro meira, DJ, 12 set. 2005) 4. deveras, a doutrina
do tema não discrepa desse entendimento, ao revés, reforça-o ao assentar: ‘Cumpre, ademais, que a violação
do direito aplicável a estes fatos tenha procedido de autoridade pública. este conceito é amplo, entende-se por
autoridade pública tanto o funcionário público, quanto o servidor público ou o agente público em geral. vale
dizer: quem quer que haja praticado um ato funcionalmente administrativo. daí que um dirigente de autarquia,
de sociedade de economia mista, de empresa pública, de fundação pública, obrigados a atender, quando menos
aos princípios da licitação, são autoridades públicas, sujeitos passivos de mandado de segurança em relação aos
atos de licitação (seja quando esta receber tal nome, seja rotulada concorrência, convocação geral ou designações quejandas, não importando o nome que se dê ao certame destinado à obtenção de bens, obras ou serviços)’
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
A incidência das prerrogativas do direito Público às empresas estatais somente se
verifica nas hipóteses expressamente previstas em lei, conforme já afirmado, pressupõe
o exercício de atividade estatal, como a prestação de serviço público, e que a empresa
estatal não atue em regime concorrencial.24 em relação a esta última exigência, é de se
concluir que se uma empresa estatal presta serviços públicos e o faz em regime de concorrência com a iniciativa privada (por exemplo: empresa pública municipal que presta
serviço de transporte público de passageiros em regime de competição com empresas
privadas permissionárias de serviço público), não é legítimo ser assegurado à empresa
estatal prerrogativa que não tenha sido estendida às empresas privadas permissionárias.
Admitimos como legítimo o exercício de potestade pública por parte de empresa
estatal. esse exercício deve ser admitido somente em situação excepcional. As empresas estatais devem observar os princípios gerais da Administração Pública e pautarem
24
(Licitações, pág. 90) (Celso Antônio Bandeira de mello, citado pelo e. min. demócrito reinaldo, no julgamento
do resp nº 100.168/dF, DJ, 15 maio 1998) (resp 639.239/dF. relator: min. Luiz Fux. DJ, 06 dez. 2004). 5. recurso
especial provido” (resp nº 683.688-rs, 1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki. rel. p/ acórdão min. Luiz
Fux. Julg. 4.5.2006. DJ, 25 maio 2006).
A distinção acerca do regime jurídico da empresa estatal exploradora de atividade econômica e daquelas que em
regime não-concorrencial, vide a seguinte decisão do stF:
“desapropriação, por estado, de bem de sociedade de economia mista federal que explora serviço público privativo da união.
1. A união pode desapropriar bens dos estados, do distrito Federal, dos municípios e dos territórios e os estados, dos Municípios, sempre com autorização legislativa especifica. A lei estabeleceu uma gradação de poder
entre os sujeitos ativos da desapropriação, de modo a prevalecer o ato da pessoa jurídica de mais alta categoria,
segundo o interesse de que cuida: o interesse nacional, representado pela união, prevalece sobre o regional,
interpretado pelo estado, e este sobre o local, ligado ao município, não havendo reversão ascendente; os estados
e o distrito Federal não podem desapropriar bens da união, nem os municípios, bens dos estados ou da união,
decreto-Lei n. 3.365/41, art. 2., par. 2.
2. Pelo mesmo princípio, em relação a bens particulares, a desapropriação pelo estado prevalece sobre a do
município, e da união sobre a deste e daquele, em se tratando do mesmo bem.
3. doutrina e jurisprudência antigas e coerentes. Precedentes do stF: re 20.149, ms 11.075, re 115.665, re 111.079.
4. Competindo a união, e só a ela, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, art. 21, XII, f, da CF, esta caracterizada a natureza pública do serviço de docas.
5. A Companhia docas do rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço
portuário em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo estado.
6. inexistência, no caso, de autorização legislativa.
7. A norma do art. 173, par. 1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem atividade econômica em regime
de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas que, embora exercendo atividade
econômica, gozam de exclusividade.
8. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço
público, reservado a União.
9. O artigo 173, par. 1., nada tem a ver com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas públicas ou
sociedades de economia mista; seu endereço e outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas
que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades
privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante.
10. o disposto no par. 2., do mesmo art. 173, completa o disposto no par. 1., ao prescrever que ‘as empresas
publicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos as do setor
privado’.
11. Se o serviço de docas fosse confiado, por concessão, a uma empresa privada, seus bens não poderiam ser
desapropriados por estado sem autorização do Presidente da republica, súmula 157 e decreto-Lei n. 856/69;
não seria razoável que imóvel de sociedade de economia mista federal, incumbida de executar serviço público
da união, em regime de exclusividade, não merecesse tratamento legal semelhante.
12. não se questiona se o estado pode desapropriar bem de sociedade de economia mista federal que não esteja
afeto ao serviço. imóvel situado no cais do rio de Janeiro se presume integrado no serviço portuário que, de
resto, não e estático, e a serviço da sociedade, cuja duração e indeterminada, como o próprio serviço de que esta
investida.
13. re não conhecido. voto vencido” (re nº 172.816-rJ, Pleno. rel. min. Paulo Brossard. Julg. 9.2.1994. DJ, 13 maio
1994, grifos nossos).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
sua conduta com base no direito Privado. evidente que em hipóteses em que o direito
Privado entre em conflito com princípio geral, este deve prevalecer. Deve ser dito, uma
vez mais, que a necessidade de observar a moralidade, a impessoalidade, a publicidade
etc. não permite ou legitima, por si só, o exercício de prerrogativas públicas.
Não obstante a aparente simplicidade, a definição das situações em que deve ser
aplicado o regime público ou o privado gera inúmeras controvérsias práticas, sobretudo
em relação àquelas que exploram atividades empresariais.
nos termos do art. 173 da Constituição Federal, as empresas estatais exploradoras
de “atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de
serviços” se sujeitam “ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto aos
direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”.
A aplicação dos preceitos de ordem pública, todavia, já se mostra presente no
caput do próprio art. 173 quando dispõe que a “exploração direta de atividade econômica pelo estado só será permitida quando necessária aos imperativos de segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo”. este dispositivo constitucional basta para
que se conclua que a empresa estatal, ainda que explore atividade empresarial, está
ligada em sua própria existência a finalidades que não têm a ver com a obtenção de
vantagens financeiras para o Estado, mas a “imperativos de segurança nacional” ou a
“relevante interesse coletivo”. Por mais liberal ou permissiva que seja a interpretação
deste dispositivo, ela nos conduz a duas conclusões imediatas: 1. não resta dúvida de
que o texto constitucional torna excepcional a intervenção direta do estado na atividade empresarial; e 2. o Estado precisa justificar a criação de empresa estatal sob um
dos argumentos indicados — “segurança nacional” e “relevante interesse coletivo”.
Não nos parece correto, ademais, afirmar que desde que a entidade política decidiu
pela exploração direta de atividade empresarial, os requisitos constitucionais estarão
satisfeitos. Parece-nos perfeitamente legítimo o questionamento e exame, pela via
judicial, do preenchimento de ao menos um dos requisitos. demonstrado que nenhum
dos dois se faz presente, a lei que tenha autorizado a instituição de empresa estatal é
inconstitucional.
outro importante aspecto relativo à aplicação do direito Público decorre da
inclusão das empresas estatais como entidades integrantes da Administração Pública
indireta, nas disposições do art. 37 da Constituição Federal pertinentes à Administração
Pública. desse modo, ainda que submetidas como regra ao direito Privado, devem, em
primeiro lugar, observar todos os princípios gerais da Administração Pública expressos
(moralidade, impessoalidade, publicidade, legalidade e eficiência) e implícitos. Em
decorrência da aplicação das normas de direito Público às empresas estatais, não obstante sejam pessoas com personalidade de direito Privado e sujeitas ao regime jurídico
privado, podem, excepcionalmente, exercer alguma prerrogativa pública.
Pelos atos ilícitos civis praticados por seus agentes que causem prejuízos a terceiros, a responsabilidade civil das empresas estatais é subjetiva, nos termos do Código
Civil, o que exigirá daquele que pede a indenização a comprovação de que houve culpa
por parte de quem agiu em nome da empresa estatal.
As regras básicas relativas à responsabilidade civil do estado estão previstas no
art. 37, §6º, do texto constitucional. Ali é definido que somente as pessoas de Direito Público, situação que não se aplica às empresas estatais, ou as pessoas de direito Privado,
prestadoras de serviços públicos, situação em que podem eventualmente se enquadrar as empresas estatais, respondem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
causarem a terceiros, independentemente de culpa. nesse sentido, a empresa estatal
pode assumir responsabilidade civil objetiva. esta condição decorre da atividade que
ela venha a explorar, no caso de ser serviço público, e não de sua condição de empresa
estatal. esta última condição importa, ao contrário, em princípio, em que sua responsabilização se verifique com base em critérios de responsabilidade civil subjetiva, conforme definidos pelo Código Civil. A Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica
Federal, apenas para citar alguns poucos exemplos de empresas estatais, posto que não
prestam serviços públicos, não assumem a responsabilidade civil objetiva prevista no
citado dispositivo constitucional. A empresa Brasileira de Correios, ao contrário, que
presta serviços públicos essenciais e contínuos — conforme jurisprudência do stF —,
responde objetivamente pelos prejuízos que seus agentes causem a terceiros.
o pagamento de suas dívidas ocorrerá por meio de penhora de bens. A Constituição
Federal (art. 100) dispõe que os pagamentos devidos à Fazenda federal, estadual ou
municipal, em decorrência de sentença judiciária, observará a ordem de apresentação
do precatório.25 o pagamento far-se-á, nesta hipótese, mediante a apresentação do
precatório cujo valor é de inclusão obrigatória no orçamento das entidades de direito
Público, conforme dispõe o §1º deste mesmo dispositivo constitucional.
evidente, portanto, que essa regra constitucional não se aplica às empresas
estatais. todavia, o decreto-Lei nº 509/69, que cuida da empresa Brasileira de Correio
e telégrafos (eCt), dispõe que seus bens são inalienáveis. este dispositivo teve sua
validade questionada perante o stF que, ao julgar o re nº 220.906, decidiu pela sua
constitucionalidade.26 esta decisão cria exceção ao que temos defendido, e que, até então
era tido como ponto pacífico na doutrina e jurisprudência: somente a Constituição
Federal pode conferir à empresa estatal prerrogativa de direito Público. A decisão do
stF teve por fundamento o princípio constitucional da continuidade do serviço público.
A rigor, caso a penhora de determinado bem de qualquer empresa estatal ponha em
risco a continuidade na prestação de serviço público essencial, independentemente
de ser ou não a eCt, deve o juízo recusar o pedido de penhora desse bem. trata-se de
hipótese de colisão de direitos. de um lado o direito do credor de satisfazer seu crédito
mediante a penhora do bem; do outro, a continuidade da prestação de serviço essencial à população. No caso da ECT, ainda que determinado bem seja de insignificante
25
26
A única exceção à regra do precatório para a Fazenda pública está prevista no §3º do art. 100 da Constituição Federal
e está relacionada aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor — que atualmente corresponde a 60 salários mínimos. no caso de o crédito ter natureza alimentícia, ainda assim o precatório faz-se necessário,
salvo se o valor for inferior aos 60 salários mínimos. não obstante o texto do caput do citado art. 100 considerar que
referidos créditos alimentícios constituem exceção, entendeu o stF que a ressalva diz respeito tão somente à ordem
de apresentação do precatório, e não à desnecessidade do precatório. Criam-se, assim, duas filas, uma relativa aos
precatórios de natureza alimentícia e outra relativa aos demais créditos. outro aspecto curioso do pagamento do
precatório diz respeito ao fato de, não obstante seja obrigatória a sua inclusão no orçamento, caso não haja disponibilidade financeira, ele não será pago e, afinal de contas, nada ocorrerá com a entidade pública.
stF: “recurso extraordinário. Constitucional. empresa Brasileira de Correios e telégrafos. impenhorabilidade
de seus bens, rendas e serviços. recepção do artigo 12 do decreto-Lei nº 509/69. execução. observância do regime
de precatório. Aplicação do artigo 100 da Constituição Federal. 1. À empresa Brasileira de Correios e telégrafos,
pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas
e serviços. recepção do artigo 12 do decreto-Lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173,
§1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades
que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações
trabalhistas e tributárias. 2. empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da
competência da união Federal e por ela mantido. execução. observância ao regime de precatório, sob pena de
vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. recurso extraordinário conhecido e provido” (re
nº 220.906-dF, Pleno. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 16.11.2000. DJ, 14 nov. 2002).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
importância técnica ou operacional e não ponha em risco a prestação dos serviços
desta empresa estatal, esse bem não pode ser penhorado. Com a decisão do stF, todos
os bens da eCt são impenhoráveis, o que importa em dizer que haverá necessidade
de ser emitido precatório, ou criado algum sistema semelhante ao do precatório, para
viabilizar o pagamento das dívidas da eCt.
A conclusão do stF em relação à eCt não vale para as demais empresas estatais
prestadoras de serviços públicos, salvo em relação aos bens que estejam diretamente
ligados à prestação do serviço e a sua penhora possa importar em solução de continuidade desse serviço. em outras palavras, todos os bens da eCt são impenhoráveis; os
bens de outras empresas estatais somente o serão se estiverem diretamente ligados à
prestação de serviços essenciais e sua penhora puser em risco a prestação do serviço.
A discussão em relação à eCt demonstra que a regra de que as empresas estatais
se submetem ao regime jurídico do direito Privado somente é válida para as empresas
estatais que explorem atividade empresariais. Caso a empresa estatal preste serviço
público, lei poderá conferir-lhe prerrogativas do direito Público não necessariamente
previstas na Constituição. Assim, pode lei definir que os servidores de empresa estatal
prestadora de serviço público se submetam a regime administrativo, e não ao regime
da CLT, ou que os seus bens sejam impenhoráveis, por exemplo. Enfim, em função do
que foi decidido pelo stF no julgamento do mencionado re nº 220.906, a prestação de
serviço público justifica a criação de prerrogativa pública para a empresa estatal por
meio de lei.
em relação à aplicação de regras constitucionais de direito Público às empresas
estatais, podemos apresentar as seguintes:
- Possibilidade de que atos de seus dirigentes sejam questionados judicialmente
por meio de ação popular – “qualquer cidadão é parte legítima para propor
ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade
de que o estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural (...)” (CF, art 5º, LXXiii);
- Aplicação dos princípios gerais da Administração Pública – “a Administração
Pública direta e indireta de qualquer dos poderes da união, dos estados, do
distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)” (CF, art. 37, caput);
- obrigação de contratação de empregados por meio de concurso público – “a
investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em
concurso publico de provas ou de provas e títulos (...)” (CF, art. 37, ii);
- vedação da acumulação de empregos, cargos ou funções públicas, ressalvadas
as hipóteses expressamente indicadas na Constituição – “é vedada a acumulação
de cargos públicos, exceto quando houver compatibilidade de horários (...)”
(CF, art. 37, Xvi); “a proibição de acumular estende-se a empregos e funções
e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia
mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente,
pelo poder público” (CF, art. 37, Xvii);
- necessidade de lei para autorizar a instituição de empresa estatal – “somente por
lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa
pública, de sociedade de economia mista e de fundação (...)” (CF, art. 37, XiX);
- necessidade de autorização legislativa para a criação de subsidiária de empresa
estatal ou de sua participação em empresa privada (CF, art. 37, XX);
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
- Aplicação da regra do teto constitucional de remuneração prevista no art. 37,
Xi, às empresas estatais que recebam recursos públicos para pagamento de
pessoal ou de custeio em geral – “o disposto no inciso Xi aplica-se às empresas
públicas e às sociedades de economia mista, e suas subsidiárias, que receberem
recursos da união, dos estados, do distrito Federal ou dos municípios para
pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral” (CF, art. 37, §9º);
- Fiscalização direta do Congresso nacional (CF, art. 49, X);
- submissão aos limites globais e às condições para as operações de crédito
externo e interno fixados pelo Senado Federal (CF, art. 52, VII);
- Vedação para os deputados federais e senadores de “firmar ou manter contrato
com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade
de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando
o contrato obedecer a cláusulas uniformes” (CF, art. 54, i, “a”);
- Sujeição à fiscalização pelo Tribunal de Contas da União (CF, artigos 70 e 71,
ii e iv);
- Sujeição à Lei Orçamentária Anual, que compreenderá o orçamento fiscal, o
orçamento de investimento e o orçamento da seguridade social (CF, art. 165, §5º);
- necessidade de prévia dotação orçamentária para a concessão de qualquer
vantagem ou aumento de remuneração, bem como para a própria criação de
empregos (CF, art. 169, §1º).
4.3.4.2 serviço público e atividade empresarial
Constitui erro comum a apresentação da exploração de atividade empresarial
como uma característica das empresas estatais. efetivamente, sempre que uma entidade política decidir intervir diretamente em atividade econômica, deverá fazê-lo por
meio de empresa estatal. As autarquias, que são pessoas de direito Público e têm como
característica a prestação de serviços típicos de estado, não se prestam a essa função. As
fundações públicas são criadas para desempenharem atividades de utilidade pública.
restam as empresas estatais como opção para a exploração de atividades de produção
de bens ou de prestação de serviços de caráter empresarial. existem, todavia, inúmeras
empresas estatais — sobretudo as empresas públicas — que se dedicam a atividade
que não mantém qualquer relação com o mundo empresarial e que prestam serviços
tipicamente públicos — como a limpeza e conservação das vias públicas, por exemplo.
Neste ponto, o maior desafio é o de tentar separar a atividade empresarial dos
serviços públicos, tarefa que, se em alguns casos pode parecer simples (manutenção de
relações com outros países ou a defesa do território nacional, por exemplo), em outras
situações suscita dúvidas infindáveis: serviços postais, serviços de telecomunicação,
manutenção e conservação de estradas e rodovias etc.
Não obstante a definição do que seja serviço público ou atividade empresarial
possa parecer tarefa inalcançável, haja vista essa definição depender de contextualizações de tempo e de espaço, além de envolver considerações ou convicções de ordem
política, a Constituição Federal pode ser utilizada como parâmetro para auxiliar nessa
tentativa. Conforme examinamos no Capítulo 11, podem ser consideradas como serviço
público as tarefas de natureza prestacional conferidas pela Constituição às entidades
políticas (união, estados etc.), no sentido de que são comodidades ou utilidades que o
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
poder público tem o dever de pôr à disposição da população. Qualquer outra atividade
é privada e, se puder ser explorada como atividade de risco e com fins econômicos ou
lucrativos, é atividade privada empresarial. vê-se que a primazia no atendimento das
necessidades da população foi conferida pela Constituição Federal (art. 1º, iv; art. 170
et seq.) ao setor privado, cabendo ao estado exercer determinadas atividades, entre elas
a prestação dos serviços públicos.
não obstante a falta de clareza dessa distinção, não resta dúvida de que, em função
do que dispõe a Constituição, os serviços postais (CF, art. 21, X), de telecomunicações
(CF, art. 21, Xi), de radiodifusão (CF, art. 21, Xii, “a”), de energia elétrica (CF, art. 21, Xii,
“b”), são serviços públicos. Conferir a essas atividades a natureza de serviços públicos
retira-lhes, por acaso, a possibilidade de serem exploradas como atividades empresariais?
nos termos do Código Civil, considera-se empresa “a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (art. 966). nos termos do
vigente Código ou da própria Constituição Federal, não se verifica qualquer empecilho
para que determinada atividade qualificada como serviço público pela Constituição
possa ser explorada em caráter empresarial, ou seja, se a atividade de distribuição de
energia elétrica, por exemplo, indicada pela Constituição como serviço público pode
ser explorada de forma organizada com fins econômicos, de obtenção e de distribuição
de lucros, ela é atividade empresarial. o fato de a Constituição Federal ter-lhe atribuído
natureza de atividade pública (serviço público), o que pode ser atribuído a razões de
ordem técnica, social e econômico ou simplesmente à vontade política do constituinte,
não retira dessa atividade o caráter de atividade empresarial, mas tão somente atribui
ao estado a titularidade do serviço, bem como sua respectiva prestação, prestação que
pode, nos termos da própria Constituição Federal (art. 175), ser transferida a particulares
que a explorarão como atividade empresarial.
Atividade empresarial e serviço público não são atividades opostas ou incompatíveis. O que buscamos afirmar é que há determinados serviços públicos que, sem
perder essa característica, podem ser explorados por empresas privadas como atividades
empresariais.
A possibilidade de que determinados serviços possam ser transferidos (ou
delegados) a empresas privadas depende tão somente da vontade do legislador e da
própria natureza da atividade, que em alguns casos, como, por exemplo, a competência
para assegurar a defesa nacional ou para a emissão de moeda (CF, art. 21, ii e vii), não
permitem a sua exploração com fins econômicos. Até o momento não se cogita que
uma empresa possa se organizar e explorar com fins lucrativos os serviços de defesa
nacional — ainda que já existam países que o façam. É a impossibilidade de que esse
serviço seja explorado como atividade empresarial — e não por qualquer outro motivo
de ordem jurídica — que faz com que essa atividade não possua natureza empresarial.
mais importante do que distinguir os serviços públicos das atividades empresariais é saber quais serviços públicos são prestados por empresas estatais em regime
concorrencial ou em caráter exclusivo, ou não concorrencial. Caso uma empresa estatal
explore atividade sem que haja qualquer outra empresa privada atuando em regime
de concorrência, é possível que lei lhe assegure prerrogativas de direito Público além
daquelas expressamente previstas na Constituição Federal. todavia, se a empresa
estatal explora atividade em regime de concorrência com empresas privadas, em que
elas disputam clientela ou mercado, a aplicação do disposto no art. 173 do texto constitucional impede a concessão de prerrogativas públicas, ressalvadas as que tenham
sido previstas no próprio texto da Constituição.
CAPítuLo 4
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tomemos o caso do Banco do Brasil. trata-se de empresa estatal que explora
atividade empresarial, tão somente. não é prestadora de serviços públicos porque a
titularidade dos serviços que presta, serviços financeiros, não é definida pela Constituição como serviço público. trata-se de empresa estatal que não pode receber qualquer
prerrogativa de direito Público por dois motivos:
1. não é prestadora de serviço público; e
2. explora atividade empresarial em regime concorrencial.
Consideremos, todavia, hipótese distinta. A situação de empresas públicas municipais criadas para prestar, em regime concorrencial, serviços públicos de transporte
coletivo de passageiros (CF, art. 30, v). Poderia a lei, em função de se tratar de prestadora
de serviço público, conferir a essa empresa estatal prerrogativas de direito Público não
extensível às empresas privadas que atuam no mesmo setor? A resposta, aqui, mais uma
vez deve ser negativa. não obstante haver, neste caso, a prestação de serviço público, o
simples fato de haver concorrência entre essa empresa estatal e outras empresas privadas impede a concessão de prerrogativas à empresa estatal não extensíveis às demais
empresas privadas — de que seria exemplo a isenção de imposto sobre serviços (iss).
A terceira hipótese é de empresa estatal que desempenha atividade em regime
não concorrencial com empresas privadas. vê-se que nesta terceira hipótese a atividade
desempenhada pode ser considerada serviço público ou não. tomemos o exemplo de
empresa pública existente no distrito Federal cujo objeto consiste na Administração
de imóveis pertencentes ao próprio distrito Federal, a Companhia imobiliária do distrito Federal (terracap). não presta essa empresa serviços públicos. não há, todavia,
qualquer forma de competição entre ela e empresas privadas, de modo que eventuais
benefícios de natureza pública, que o distrito Federal queira, por lei, conferir a essa
empresa estatal é absolutamente irrelevante ou indiferente ao setor privado — por
exemplo, a concessão de isenção de iPtu.
nesta terceira situação, pode lei conferir prerrogativas públicas à empresa estatal,
haja vista não ser aplicável o disposto no art. 173 da Constituição Federal.
esse dispositivo constitucional (art. 173) também não se aplica, é evidente, às
situações em que o poder público atue em regime de monopólio (art. 177), por razões
óbvias e que se incluem na terceira hipótese acima apresentada.
Não queremos afirmar que o fato de empresa estatal prestar serviço público seja
irrelevante ou que não possa produzir efeitos jurídicos diversos. se se trata de uma
empresa estatal que preste serviço público, isto importará, por exemplo, em que a sua
responsabilidade civil pelos atos praticados por seus agentes que causem prejuízos aos
usuários dos serviços será objetiva. o mesmo, todavia, ocorre caso o serviço público
seja prestado por empresa privada — é a hipótese de serviços públicos prestados por
empresas privadas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos, que também
assumem responsabilidade civil objetiva.
vê-se, em conclusão, que mais importante do que examinar se a empresa estatal
explora atividade empresarial ou presta serviço público — distinção que vimos ser
irrelevante para os fins que aqui examinamos — é buscar a existência de competição
entre a empresa estatal e o setor privado. se houver essa competição, o regime jurídico
da empresa estatal deve ser idêntico àquele adotado pelas empresas privadas, ressalvadas as hipóteses constitucionalmente previstas. se não houver competição entre a
empresa estatal e o setor privado, poderão ser concedidos, por lei, benefícios de direito
Público às empresas estatais.
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Curso de direito AdministrAtivo
esse entendimento, infelizmente, não foi adotado pelo stF. Ao julgar o re
nº 220.906, já mencionado, o fundamento utilizado pelo relator do acórdão que concluiu pela constitucionalidade, e consequente recepção do decreto-Lei nº 509/69 que
reconhecia à eCt a impenhorabilidade de bens, foi o fato de que essa empresa pública
federal presta serviços públicos:
vê-se, pois, que a legitimidade da participação do estado na economia se fundamenta
em três conceitos fundamentais: segurança nacional, serviço público econômico e interesse público. 13. A Constituição Federal, em seu artigo 173, cuida da exploração direta
de atividade econômica pelo estado. A respeito da matéria escreveu o constitucionalista
CeLso riBeiro BAstos que “por tais atividades deve entender-se toda função voltada
à produção de bens e serviços, que possam ser vendidos no mercado, ressalvada aquela
porção das referidas atividades que a própria Constituição já reservou como próprias do
Estado, por tê-las definido como serviço público nos termos dos incisos XI e XII do artigo
21 do texto Constitucional. ou então quando forem reservadas a título de monopólio da
União (CF, art. 177). Tal circunstância é que justifica a inserção da cláusula ‘ressalvados
os casos previstos nesta Constituição’” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º v, p. 75). 14.
Assim, a exploração de atividade econômica pela eCt – empresa Brasileira de Correios e
telégrafos não importa sujeição ao regime jurídico das empresas privadas, pois sua participação neste cenário está ressalvada pela primeira parte do artigo 173 da Constituição
Federal (“ressalvados os casos previstos nesta Constituição...”), por se tratar de serviço
público mantido pela união Federal, pois seu orçamento, elaborado de acordo com as
diretrizes fixadas pela Lei nº 4.320/64 e com as normas estabelecidas pela Lei nº 9.473/97 (Lei
de diretrizes orçamentárias), é previamente aprovado pelo ministério do Planejamento
e orçamento – secretaria de Coordenação e Controle das empresas estatais, sendo sua
receita constituída de subsídio do Tesouro Nacional, conforme extrato do Diário Oficial
da união acostado à contracapa destes autos. Logo, são impenhoráveis seus bens por
pertencerem à entidade estatal mantenedora. Ante o exposto, tenho como recepcionado
o decreto-Lei nº 509/69, que estendeu à empresa Brasileira de Correios e telégrafos os
privilégios conferidos à Fazenda Pública, dentre eles o da impenhorabilidade de seus
bens, rendas e serviços, devendo a execução fazer-se mediante precatório, sob pena de
vulneração ao disposto no artigo 100 da Constituição de 1988. (stF. re nº 220.906-dF,
Pleno. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 16.11.2000. DJ, 14 nov. 2002)
Com a devida vênia, a expressão contida na parte inicial do caput do art. 173 da
Constituição Federal — ressalvados os casos previstos nesta Constituição — não diz respeito
a situações em que a exploração direta de atividade empresarial pelo estado não se
submete ao direito Privado. sempre que o estado explorar atividade empresarial em
regime concorrencial, deve submeter-se ao direito Privado, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Constituição. vê-se que a ressalva diz respeito a situações em que o próprio
texto constitucional afasta o direito Privado e impõe a aplicação de regra de direito
Público — o que ocorre quando a Constituição determina a realização de concurso
público (art. 37, ii), a observância de princípios da Administração Pública (art. 37, caput), a
vedação da acumulação de cargos, empregos ou funções públicos (art. 37, Xvi e Xvii) etc.
A interpretação adotada pelo stF — que acreditamos será corrigida — permite
o surgimento de situações em que o estado intervenha em determinadas atividades
em regime de concorrência com empresas privadas, assegure a si próprio prerrogativas ou vantagens comparativas e acabe por tornar a competição inviável, afastando as
empresas privadas do setor. essa possibilidade parece-nos incompatível com a vontade
da Constituição Federal que confere ao estado papel subsidiário no atendimento das
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
necessidades da população. o regime constitucional adotado pela Constituição de 1988
dispõe que a república Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos “a
livre iniciativa” (art. 1º, iv) e, ao dispor sobre a ordem econômica (art. 170), estabelece
que ela se fundamenta “na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e tem
como um de seus fundamentos a livre concorrência (art. 170, iv).
Propomos a adoção de concepção de um novo modelo de estado, que denominamos de cooperativo. o raciocínio adotado pelo stF no julgamento do citado recurso
extraordinário seria compreensível na época em que ele foi editado, em pleno regime
militar, em que o modelo de intervenção direta do estado na economia era visto pelo
regime como a única solução para o desenvolvimento do Brasil. nos atuais, com os
fundamentos constitucionais adotados pela Constituição de 1988, impõe-se a adoção
de nova visão do estado, da sociedade e da economia.
4.3.4.3 empresas estatais e regime jurídico de seus empregados
nas empresas privadas, os empregados não costumam propor reclamações
trabalhistas contra seus empregadores. normalmente o fazem contra seus ex-empregadores, e caso o façam contra seus empregadores, terão grande chance de se tornarem
ex-empregados.
Caso o empregado de empresa estatal proponha reclamação trabalhista contra
seu empregador, poderia este sob este motivo, ou mesmo imotivadamente, demiti-lo,
ainda que lhe pague todas as indenizações relativas à sua demissão sem justa causa?
A necessidade de observância dos princípios da moralidade, da impessoalidade e da
motivação, a necessidade de que todos os atos da Administração Pública tenham de ser
justificados à luz da realização do interesse público tornam irremediavelmente nulo o
citado ato de demissão.
o regime jurídico dos empregados das empresas estatais que exploram atividades empresariais é o direito do trabalho (CF, art. 173). isto não afasta, todavia, a
aplicação das regras e, principalmente, dos princípios do direito Público. A demissão
de empregado de empresa estatal deve ser sempre motivada, e se o fundamento para
a demissão for comportamento ou conduta desabonadora, deve ser-lhe assegurado o
contraditório. Ao contrário, consideremos, por exemplo, situação em que o Banco do
Brasil decida fechar agências deficitárias ou com reduzido movimento de clientes e,
para tanto, vê-se obrigado a demitir empregados. desde que a demissão seja motivada,
que haja o pagamento dos direitos trabalhistas, e que sejam observados critérios de
impessoalidade, parece-nos que o ato de demissão seria legítimo, independentemente
de contraditório, posto que não se atribui ao empregado demitido qualquer conduta
contra a qual ele deva ou possa se defender.
outro aspecto relacionado ao regime jurídico dos empregados das empresas
estatais exploradoras de atividades empresariais ou prestadoras de serviços públicos
diz respeito à necessidade de prévio concurso público de provas ou de provas e títulos
(CF, art. 37, ii). neste ponto preocupa-nos o fato de que algumas empresas estatais têm
publicado editais de “seleção pública” de empregados, e não de concurso público. A
rigor, o nome que se dá ao certame é o que menos importa. desde que sejam observados
critérios de ampla publicidade, de impessoalidade, de moralidade, que haja classificação
a partir da aplicação de provas ou de provas e títulos, pouco interessa se é feita seleção
171
172
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
pública ou concurso público. Por detrás dessa terminologia o que efetivamente causa
preocupação é a existência de intenções não necessariamente legítimas. É de se observar
que a única nulidade que decorre direta e expressamente da Constituição Federal está
relacionada à não realização de concurso público (art. 37, §2º).
em relação aos dirigentes das empresas, a primeira observação a ser feita é a de
que eles não são empregados. A eles, ou a qualquer outro dirigente de empresa privada,
não se aplicam as regras da CLt. A relação entre o diretor de uma sociedade anônima
e a própria sociedade anônima é de direito Privado, disciplinada diretamente pelas
regras da Lei nº 6.404, de 1976, que cuida das sociedades anônimas.
Alguns poderiam ser inadvertidamente levados a crer que esses dirigentes ocupariam cargos em comissão ou, mais absurdo ainda, empregos em comissão — figura
absurdamente estranha ao nosso direito Constitucional. em uma empresa estatal que
explore atividade empresarial, todos são empregados, exceto os dirigentes. todos,
portanto, precisam se submeter a prévia aprovação em concurso público, à exceção
dos presidentes, diretores e membros dos conselhos de administração e fiscal, que se
sujeitam integralmente às regras do direito Privado e podem ser nomeados ou afastados
a qualquer tempo de suas atribuições, nos termos da Lei nº 6.404/76.
em algumas empresas estatais têm sido criados cargos de nível inferior ao de
diretoria — em nível de gerência — de livre nomeação. esta prática não se coaduna
com a regra constitucional do concurso público. A rigor, não pode haver cargo em
comissão em empresa estatal que adote o regime da CLt. o cargo em comissão é de
natureza eminentemente administrativa e, em função do que dispõe a Constituição
Federal (art. 173, §1º, ii), o regime jurídico a ser observado pelas estatais exploradoras
de atividades empresariais é o próprio das empresas privadas. em relação ao emprego
em comissão, a absoluta falta de previsão constitucional impede a adoção desse regime.
desse modo, ressalvados os dirigentes — que são o presidente, diretores e membros dos conselhos de administração e fiscal —, que se regem pelas normas de Direito
Comercial, em especial pela Lei nº 6.404/76, todos os que trabalhem em empresas estatais
que explorem atividades empresariais são empregados e se sujeitam à necessidade de
prévia aprovação em concurso público.
É de se observar, todavia, que se a empresa estatal for prestadora de serviço
público, não se lhe será aplicável o art. 173 da Constituição Federal, sendo permitido
que lei adote, inclusive para o seu pessoal, regras de direito Público.
4.3.4.4 empresas estatais e regime jurídico de licitações e contratações
talvez em nenhum outro aspecto o regime jurídico das empresas estatais suscite
tantas indagações e dúvidas quanto em relação ao que ora enfrentaremos. A razão de
tantos questionamentos está no fato de que deveria ter sido editada lei que, nos termos
do art. 173 da Constituição Federal, viria a disciplinar o estatuto jurídico das empresas
estatais exploradoras de atividades empresariais, lei que, até o presente momento, não
foi editada.
A Constituição Federal, em seu art. 22, XXvii, confere à união competência privativa para aprovar duas leis distintas, contendo, ambas, normas gerais em matéria de
licitação e contratação. A primeira dessas leis, que deve observar o que dispõe o art. 37,
XXi, do texto constitucional, serve para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Cabe à Lei nº 8.666/93 essa
primeira função. A segunda, a ser utilizada pelas empresas estatais, iria observar o disposto no art. 173, §1º, III; lei, como afirmado, de que até o momento não se têm notícias.
diante da omissão legislativa, a conclusão evidente é de que a Lei nº 8.666/93
deve ser utilizada por todas as entidades da Administração Pública, e que qualquer
tentativa de fugir a esta regra importa em violação de regras constitucionais e legais.
o intuito da Constituição Federal é evidente: as empresas estatais, em especial
as que exploram atividades empresariais necessitam de um regime jurídico de contratação mais flexível, mais ágil do que aquele utilizado pelas entidades autárquicas ou
mesmo pelas entidades políticas. É evidente que a Petrobras não pode, no exercício
de sua atividade fim, empresarial, se submeter ao mesmo regime do qual se utiliza a
administração do stF para comprar veículos.
Diante dessa realidade, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União firmou
entendimento de que no exercício de suas atividades fins, as empresas estatais estão
sujeitas ao regime jurídico do direito Privado. esta solução lhes desobriga de observar
os procedimentos ou formalidades da Lei nº 8.666/93, mas não de serem fiscalizadas e
de terem de justificar as soluções adotadas em função de princípios constitucionais, em
especial o da eficiência. Quando, por exemplo, o Banco do Brasil contrata a construção
de um prédio, o que não se inclui em seus fins, deve licitar a partir dos parâmetros da
Lei nº 8.666/93; quando o Banco do Brasil realiza atividade financeira, o regime jurídico
aplicável é o direito Privado — o que não afasta, todavia, a necessidade de serem observados os princípios constitucionais de moralidade, impessoalidade, publicidade etc.
Buscou-se, no presente caso, encontrar solução intermediária de aplicação equilibrada
de preceitos constitucionais que, aparentemente, estariam em colisão. A solução encontrada impõe às empresas estatais exploradoras de atividades empresariais a observância
dos princípios constitucionais previstos no art. 37, pertinentes à aplicação de regras e
princípios do direito Público, princípios que devem ser observados, inclusive, quando
essas empresas estiverem no exercício de suas atividades empresariais.27 Assegurou-lhes,
todavia, a liberdade de contratação com base no direito Privado, liberando-as do dever
de observarem a Lei nº 8.666/93 quando celebrarem contratos diretamente ligados às
27
o tribunal de Contas da união, examinando representação contra irregularidades ocorridas no Banco do Brasil
S/A relativamente a atos de gestão inseridos na atividade finalística do banco praticados de forma contrária aos
princípios constitucionais e legais da moralidade e publicidade administrativa, firmou entendimento de que
o controle do TCU não conflita com o controle exercido pelo Banco Central e pela CVM. Nesse sentido o Voto
condutor do Acórdão, prolatado nos seguintes termos:
“35. em que pese o fato de o art. 173, §1º, da Constituição Federal poder causar certa impressão contrária ao
acenar com o regime jurídico de direito privado às sociedades de economia mista, na verdade tal parágrafo
deve ser interpretado em conjunto com os demais dispositivos constitucionais, em especial com o art. 37. As
empresas estatais nunca estarão submetidas a um regime puramente de direito privado. o regime delas sempre
será misto, com forte influência do direito público. (...)
39. Ademais, e uma vez que a fiscalização do Banco Central é específica para assuntos correlacionados com o
sistema Financeiro nacional, conforme Lei nº 4.565/64 e resolução Bacen nº 1.065/85, enquanto a da Comissão
de valores mobiliários volta-se para o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários, especialmente
com vistas à proteção dos direitos dos acionistas minoritários, na forma da Lei nº 6.385/76, a exclusão do
Controle Externo redundaria na desertificação do controle das ações administrativas do Banco do Brasil. (...)
44. Na inspeção a que procedeu a 2ª Secex com vistas a sanear o presente processo foram verificados atos
que têm repercussão direta no fechamento do balanço do Conglomerado Banco do Brasil e afetam a apuração
do lucro e o patrimônio líquido daquela instituição, estando, portando, inseridos na competência deste tCu
de realizar fiscalização contábil, financeira, operacional e patrimonial de entidade da administração indireta
prevista nos arts. 70 e 71, inciso iv, da Constituição Federal” (representação no tC-006.542/2003-0. Acórdão
nº 399/04, Plenário. rel. min. Benjamin Zymler. sessão de 7.4.2004. Ata n. 11/04. DOU, 20 abr. 2004).
173
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
174
suas atividades empresariais, fundamentado no art. 173, que determina a aplicação de
normas de direito Privado às empresas estatais.28
em matéria de licitação, a questão pode ser apresentada, portanto, nos seguintes
termos:
1. todas as empresas estatais estão obrigadas a licitar;
2. o procedimento da licitação deve observar o que dispõe a Lei nº 8.666/93;
3. As empresas estatais que explorem atividades empresariais, somente quando
celebrarem contratos diretamente relacionados ao exercício de atividade fim,
estão desobrigadas de observarem a Lei nº 8.666/93, devendo, no entanto, seguir
os princípios constitucionais de impessoalidade, moralidade, eficiência etc.
impõe-se às empresas estatais, observada a ressalva acima, o cumprimento dos
preceitos da Lei nº 8.666/93, tanto em relação às suas licitações quanto em relação aos
contratos que celebrem.29
Em relação aos contratos firmados com base na Lei nº 8.666/93, há ainda importante aspecto a ser considerado.
o art. 58 da citada Lei de Licitações dispõe que os contratos administrativos
caracterizam-se pela presença de determinadas cláusulas que asseguram à Administração contratante uma série de prerrogativas, dentre elas a de modificar unilateralmente
os contratos, de rescindi-los unilateralmente, de aplicar sanções ao contratado etc. As
prerrogativas da Lei nº 8.666/93 relativas à Administração contratante não se esgotam
no mencionado art. 58. dispõe ainda a Administração Pública do poder de anular
seus contratos (art. 59), de exigir que o contratado mantenha a execução do contrato
ainda que ocorra atraso de até 90 dias (art. 78, Xv). essas prerrogativas ou potestades
materializam-se em cláusulas denominadas exorbitantes, que recebem este nome pelo
simples fato de que extrapolam o direito comum e conferem prerrogativas públicas a
uma das partes do contrato, no caso, a Administração contratante. A questão que aqui se
coloca é a de saber se as empresas estatais, que são pessoas jurídicas de direito Privado,
podem se beneficiar de prerrogativas do Direito Público. Parece-nos que não. Isto não
importa em afastar a Lei nº 8.666/93, mas tão somente em impedir que uma empresa
estatal, em especial as que exploram atividades empresariais e que, no exercício dessas
atividades estão submetidas ao Direito Privado, possam se beneficiar de potestades
típicas do direito Público. Caso a Petrobras ou o Banco do Brasil celebrem contratos
28
29
A esse respeito cumpre ainda lembrar o teor da súmula tCu nº 61: “o controle externo exercido pelo Congresso
nacional, com o auxílio do tribunal de Contas da união, bem como o controle interno exercido pelos órgãos
competentes do sistema de Administração Financeira, Contabilidade e Auditoria, têm objetivos distintos da
fiscalização a cargo do Banco Central do Brasil, sobre as instituições financeiras públicas que se situem na órbita
da Administração Federal”.
Quanto à polêmica discussão acerca da obrigatoriedade ou não de a Petrobras se submeter à Lei n.º 8.666/1993
nas suas contratações, a posição do TCU é firme no sentido de que a estatal deve se submeter, sim, aos ditames
daquela lei, pelo menos até que o Congresso nacional edite a lei a que se refere o artigo 173, §1º, da Constituição,
ou até que supremo tribunal Federal decida sobre a constitucionalidade do artigo 67 da Lei nº 9.478/1997 e,
consequentemente, de sua regulamentação, mediante o Decreto nº 2.745/1998 (o qual prevê regime simplificado
de contratação para a Petrobras).
A questão voltou a ser discutida recentemente no âmbito do tCu, nos autos do tC 009.364/2009-9, tendo a Corte
de Contas reafirmado seu entendimento “quanto à inconstitucionalidade do Decreto nº 2.745/1995, utilizado
pela Petrobras como parâmetro na realização de suas licitações, em detrimento da Lei nº 8.666/1993, enquanto
o stF não decidir o mérito da matéria” (excerto extraído do voto condutor ao Acórdão nº 2.811/2012, Plenário).
esclareça-se que existem, no stF, 19 mandados de segurança impetrados pela Petrobras, todos com liminares
deferidas, para suspender decisões do tCu que exigiram da empresa o cumprimento da Lei nº 8.666/93.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
com seus fornecedores que, posteriormente, venham a reputar ilegais, podem abrir
processos administrativos e declararem estes contratos nulos? A resposta mais uma vez
deve ser negativa. devem essas empresas buscar o Poder Judiciário competente para
declarar a nulidade de atos que pratiquem ou de contratos que celebrem. Quer se trate
de contrato celebrado com fundamento na Lei nº 8.666/93, quer se trate de contrato de
direito Privado, o fato de que todas as empresas estatais são pessoas privadas impede-lhes
o exercício de potestades típicas das pessoas de direito Público.
o exame mais cuidadoso da decisão proferida pelo stF no julgamento do re
nº 220.906 leva à conclusão de que uma empresa estatal somente pode exercer prerrogativa de direito Público se:
1. se tratar de prestadora de serviço público; e
2. Houver lei que lhe tenha expressamente conferido determinada prerrogativa.
tomemos o exemplo de empresa pública estadual distribuidora de energia elétrica, que é prestadora de serviço público. se a lei que a criou não lhe tiver conferido
competência para anular seus contratos, para modificar ou rescindi-los unilateralmente,
ou para exercer qualquer outra prerrogativa que extrapole o direito comum, ela não
poderá valer-se da Lei nº 8.666/93 para exercer essa potestade.
em conclusão, a Lei nº 8.666/93, que dispõe sobre licitação e contratos administrativos, deve, como regra, ser utilizada pelas empresas estatais. Caso se trate de empresa
estatal exploradora de atividade empresarial, não há necessidade de serem observados
os procedimentos relativos à licitação, devendo a empresa estatal se pautar pelo direito
Privado e, em especial, pelos princípios da Administração Pública. em qualquer caso,
trate-se ou não de exploração de atividade empresarial, não podem as empresas estatais
se utilizar das cláusulas exorbitantes que a Lei nº 8.666/93 assegura à Administração
contratante, salvo se lei especial lhe tiver conferido essa prerrogativa.
o exercício de prerrogativas públicas por parte das pessoas de direito Privado,
o que compreende as empresas estatais, deve ser admitido somente em caráter excepcional, em situações que envolvam a prestação de serviços públicos. não podem essas
prerrogativas ser utilizadas em situações de regime concorrencial, haja vista a Constituição Federal vedar tratamento jurídico diferenciado que resulte em detrimento das
entidades empresariais privadas.
4.3.4.5 Falência de empresas estatais
A presente questão poderia ser simplificada pela simples apresentação da Lei
nº 11.101/05, que dispõe sobre falência e sobre os processos de recuperação de empresas e
que expressamente exclui as empresas públicas e as sociedades de economia mista de seu
âmbito de incidência (art. 2º, ii). o tema, todavia, torna-se um pouco mais complexo em
função de envolver dispositivos de estatura constitucional, no caso o art. 173, §1º, ii, que
determina que as empresas estatais que explorem atividades empresariais devem-se sujeitar ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações mercantis.
Celso Antônio Bandeira de mello expressamente defende a inconstitucionalidade
de qualquer dispositivo legal que impeça a decretação de falência de estatal exploradora
de atividade empresarial.30
30
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 191.
175
176
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
A questão parece-nos — máxima vênia — ainda mais complexa. em primeiro
lugar, a falência não é, como apresenta o ilustre autor, uma obrigação mercantil. trata-se de
processo de execução coletiva contra devedor insolvente. o argumento de que o regime
jurídico relativo às obrigações das empresas privadas deve ser aplicado às empresas
estatais não justifica a decretação da falência haja vista esta possuir natureza processual. Conforme ensinam os autores do direito Comercial, a falência tem sido estudada
no âmbito desta disciplina pelo fato de, originariamente, ser instituto privativo de
comerciantes, e, atualmente, de empresários. As obrigações mercantis (ou comerciais)
são de natureza privada, decorrem da aplicação dos contratos e das demais fontes de
obrigações do direito Comercial ou Civil, e nunca do direito falimentar.
A questão mais importante decorre do fato de que a criação da empresa estatal
decorre de lei e somente se justifica “quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo” (CF, art. 173, caput). ora, se a criação de
uma empresa estatal precisa ser justificada em função de circunstâncias de tão elevada
magnitude, poderia um juiz, a fim de satisfazer direito de credor, declarar a falência
e, portanto, a extinção dessa entidade? Caso o credor não obtenha a satisfação de seu
crédito pelos meios convencionais de uma execução disciplinada pelo Código de Processo Civil, deve ser suscitada a responsabilidade subsidiária da entidade política a que
a empresa estatal esteja vinculada.
A responsabilização subsidiária das entidades políticas parece ser solução mais
adequada do que a decretação da falência da estatal, tanto para o credor, quanto para
a Administração Pública e para a própria população, que não se verá privada das atividades desempenhadas pela estatal.
nesse sentido, a regra contida na mencionada Lei nº 11.101/05 é perfeitamente
constitucional. Se a criação da empresa estatal decorre de lei específica, que lhe autoriza
a instituição, somente outra lei poderá determinar a sua extinção.
4.3.4.6 Controle de empresas estatais
um dos argumentos normalmente apresentados para justiçar a criação de qualquer entidade administrativa é o de que essa entidade irá dispor de maior autonomia
e que essa maior liberdade lhe permitirá melhor realizar suas funções.
dentro da Administração Pública direta, a relação entre órgãos se estabelece a
partir de critérios de hierarquia, que permitem ao que exerce esse poder dar ordens,
rever decisões, sancionar o não cumprimento de ordens dadas etc.
A percepção generalizada, e quase sempre verdadeira, é a de que a autonomia
surgida pelo processo de descentralização, que mantém a entidade administrativa
livre dos mecanismos do controle hierarquizado, permite o melhor desempenho de
suas atribuições. nesse sentido, as empresas estatais, à semelhança de todas as demais
entidades da Administração indireta, dispõem de autonomia administrativa, financeira,
gerencial etc.
Criada uma entidade, o controle decorrente da relação de vinculação administrativa a ser exercido pela entidade política sobre a entidade administrativa se efetiva
mediante a possibilidade de designação e de afastamento dos dirigentes da entidade
administrativa.
o primeiro controle a ser executado sobre as empresas estatais é, portanto, o
controle político exercido diretamente pelas entidades políticas a que se vinculam.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
Caso a empresa estatal adote forma de sociedade anônima, de capital aberto,
aplicar-se-ão os mecanismos determinados pelas normas pertinentes ao mercado de
capital e sujeitar-se-á à fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Haja
vista estarem sujeitas ao regime jurídico do direito Privado, aplicam-se essas normas
que exigirão publicação de demonstrações financeiras, contratação de auditorias independentes etc.
A maior dúvida relativa ao controle das empresas estatais diz respeito à competência dos tribunais de Contas.
o texto da Constituição Federal, ao dispor sobre a competência do tCu, estabelece
em seu art. 71, ii, que esta compreenderá o julgamento das “contas dos administradores
e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da Administração direta e
indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público
federal, e as contas daqueles que derem causa que derem causa a perda, extravio ou
outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público”.
não obstante o dispositivo fazer várias referências a entidades da Administração
indireta ou a sociedades instituídas e mantidas pelo poder público, o stF ao julgar o
mandado de segurança nº 23.627-dF, ao argumento de que os bens dessas entidades
são privados, entendeu que o TCU não teria competência para “fiscalizar” as empresas
estatais.
Alguns erros podem ser identificados neste julgado. O primeiro está no fato de
que a competência para julgar contas (CF, art. 71, II) não esgota a competência fiscalizatória do tCu. o mesmo texto constitucional, no art. 71, iv, confere competência ao
TCU para realizar auditorias e inspeções de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial “nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo,
executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso ii”.
Assim, ainda que se entenda que não haja competência do tCu para julgar
contas dos gestores das empresas estatais, é indiscutível a competência do tCu para
fiscalizá-las.
em relação à própria competência do tCu para julgar contas dos gestores da
empresa estatal, máxima vênia, algumas considerações rápidas podem ser apresentadas
para demonstrar a necessidade de mudança na jurisprudência do stF.
É certo que os bens pertencentes às empresas estatais, em especial às que exploram atividades empresariais, são bens privados — ainda que afetados a imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput). Todavia, a fim de
constituir a empresa estatal, de lhe formar o patrimônio, houve a necessária transferência
de bens públicos para compor o capital social dessas mesmas empresas estatais — apenas a título ilustrativo, basta lembrar que no ano de 1998 o capital social do Banco do
Brasil foi aumentado em valores equivalentes a us$6 bilhões (seis bilhões de dólares
norte-americanos) por meio da emissão de títulos do tesouro nacional. A pergunta a ser
feita, então, é a seguinte: esse dinheiro público utilizado para compor, majoritariamente
o capital social de uma sociedade de economia mista, ou exclusivamente o capital de
uma empresa pública, acaso deixa de existir? ele simplesmente desaparece?
A resposta, evidentemente, é negativa. sempre há dinheiro público no capital
social das empresas estatais. É esse dinheiro, exclusiva ou majoritariamente público,
que assegura às empresas estatais a sua própria natureza de entidade integrante da
Administração Pública e, às entidades políticas, controle sobre as empresas estatais.
177
LuCAs roCHA FurtAdo
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178
vê-se que, salvo por razões de puro voluntarismo político e sem qualquer respaldo
de ordem jurídica, não existe razão para as empresas estatais não se sujeitarem à fiscalização do tCu, inclusive no que concerne ao dever de prestar contas.31
A particularidade a ser considerada no exercício desse controle é o regime jurídico
dessas entidades, inclusive quanto ao fato de que algumas delas atuam em mercados
extremamente competitivos. o instrumental de que se deve utilizar o tCu, ou mesmo
o Poder Judiciário, quando examine os atos praticados pelos dirigentes de empresas
estatais é o do direito Privado. deve-se dar maior consideração a aspectos de economicidade do que de pura e simples legalidade. não que os gestores dessas empresas não
tenham de observar, em especial, os princípios da Administração Pública; mas se deve
ter em conta que algumas medidas a serem adotadas pelos gestores são atos mercantis
e sob essa ótica deve ser a sua avaliação, de legitimidade ou de ilegitimidade.
A tese da incompetência do TCU para fiscalizar empresas estatais foi — felizmente —
revista pelo STF. No julgamento do MS nº 25.092-DF, o Plenário do STF definiu que “o
tribunal de Contas da união, por força do disposto no art. 71, ii, da CF, tem competência
para proceder à tomada de contas especial de administradores e demais responsáveis
por dinheiros, bens e valores públicos das entidades integrantes da administração
indireta, não importando se prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade
econômica”, conforme artigo publicado no Informativo STF, n. 408.
4.3.4.7 distinções entre empresa pública e sociedade de economia mista
Até o presente momento, todas as observações feitas são aplicáveis indistintamente às duas espécies que compõem o gênero empresa estatal. Cumpre-nos, agora,
estabelecer as devidas distinções entre a empresa pública e a sociedade de economia
mista.
A primeira e mais importante distinção diz respeito à formação do capital social.
nas empresas públicas, e é exatamente daí que surge seu nome, o capital é exclusivamente público. este fato, de que o capital de uma empresa pública é totalmente
público, na prática, faz com que quase todas as empresas públicas tenham um único
sócio. o que caracteriza a empresa pública, todavia, não é a existência de um só sócio,
mesmo porque existem empresas públicas com mais de um sócio. Apenas a título de
exemplo podemos apresentar a Companhia imobiliária do distrito Federal (terracap),
cujo capital social se encontra dividido entre dois sócios: a União, que detém 49%, e
o Distrito Federal, com participação majoritária de 51% no capital social da empresa,
o que assegura ao distrito Federal o controle e torna a citada empresa uma entidade
administrativa integrante da Administração indireta do distrito Federal.
A fim de compor uma empresa pública é necessário que os sócios sejam, todos
eles, pessoas de direito Público. Caso uma pessoa de direito Público e outra de direito
Privado se reúnam para criar nova empresa, esta não será empresa pública. Caso o controle pertença à pessoa de direito Público, ela será uma sociedade de economia mista.
31
em relação às contas, a Lei orgânica do tCu, Lei nº 8.443/92, dispõe que podem ser instaurados processos de
tomada de Contas especial (tCe) pelo próprio tCu ou pela entidade ou órgão da Administração sujeito à
fiscalização do TCU.
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As sociedades de economia mista pressupõem igualmente participação pública
em seu capital, de modo a assegurar à entidade de direito Público controle societário,
mas se exige igualmente participação de particulares neste mesmo capital social. são,
portanto, dois os requisitos para que exista uma sociedade de economia mista:
1. Controle societário pertencente a uma pessoa de direito Público;
2. Participação de particulares no capital social da sociedade de economia mista.
Curioso observar que os conceitos de controle societário e de participação majoritária no capital social não se confundem. diante da possibilidade de existirem ações sem
direito a voto, é possível que determinado sócio, que no caso seria a pessoa de direito
Público, não detenha a maioria do capital social mas seja o controlador, situação que
pode ser constatada se esse sócio for capaz de eleger a maioria dos administradores da
sociedade. Assim, no caso de uma sociedade de economia mista, o que se exige é que o
controle societário pertença a uma pessoa de direito Público, ainda que eventualmente
essa pessoa de direito Público não detenha a maioria das ações.
Ainda em relação ao aspecto do capital social, é importante observar que a natureza pública dos bens que formam o capital social da empresa pública, ou mesmo da
sociedade de economia mista, não afeta a natureza dos bens da própria empresa pública,
ou da sociedade de economia mista. tomemos a Caixa econômica Federal como exemplo
de empresa pública federal. o seu capital é exclusivamente público e pertence à união.
os bens que pertencem à Caixa, que compõem o ativo da empresa, e que não se podem
confundir com aqueles que foram utilizados pela união para realizar o capital social
da própria Caixa, são bens privados e penhoráveis.
Caso seja criada empresa pública com o propósito de prestar serviços públicos,32
diante da possibilidade de serem aplicáveis regras de direito Público, pode a lei que
a tenha criado determinar que seus bens sejam públicos e, portanto, impenhoráveis.
o segundo critério a ser utilizado na distinção entre empresa pública e sociedade
de economia mista diz respeito à forma de organização societária.
enquanto a empresa pública pode adotar qualquer forma de organização societária, inclusive a de sociedade anônima, a sociedade de economia mista deve obrigatoriamente adotar esta forma, de sociedade anônima (decreto-Lei nº 200/67, art. 5º).
Para melhor esclarecer essa distinção, podemos comparar a Caixa econômica
Federal e o Banco do Brasil. A Caixa, que é empresa pública, é organizada conforme
dispõem seus estatutos. Ela não se submete a qualquer forma específica de organização
societária fixada em lei. O Banco do Brasil, que é sociedade de economia mista, adota
a forma obrigatória de sociedade anônima. o Banco do Brasil, no caso, submete-se às
exigências da Lei nº 6.404/76 e deve ter o capital dividido em ações, manter conselho
fiscal, diretoria, assembleia-geral de acionistas e todas as outras formas definidas pela
citada lei. À semelhança do Banco do Brasil s/A, todas as demais sociedades de economia mista igualmente adotam a forma de companhia – Petróleo do Brasil s/A etc.
o terceiro critério de distinção entre empresa pública e sociedade de economia
mista somente é aplicável no plano federal. As empresas públicas federais gozam de foro
privilegiado na Justiça Federal (CF, art. 109, i), ao passo que as sociedades de economia
mista federais não possuem essa prerrogativa e são julgadas pela Justiça Comum dos
32
Vide comentários anteriormente apresentados referentes ao regime jurídico das empresas estatais e ao re nº 220.906
do stF.
179
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
180
estados. Assim, utilizando mais uma vez os exemplos da Caixa econômica Federal e
do Banco do Brasil, a primeira, que é empresa pública federal, executa seus devedores
na Justiça Federal; e o segundo, que é sociedade de economia mista federal, não possui
qualquer foro especial e deve propor ação idêntica na Justiça Comum estadual.33
Conforme afirmado, esse critério de foro não se aplica às demais esferas de
governo. não há qualquer distinção de competência de foro em razão de se tratar de
empresa pública ou de sociedade de economia mista estadual, distrital ou municipal.34
4.4 Paraestatais e terceiro setor
4.4.1 entidades do terceiro setor e o estado
A fim de determinar o âmbito que buscamos alcançar quando utilizamos o termo
paraestatal, devemos considerar que aqui nos referimos a entidades que não integram a
Administração Pública direta ou indireta; colocam-se ao lado da Administração (e, como
observa maria sylvia Zanella di Pietro, do lado de fora da Administração) e desenvolvem atividades complementares àquelas afetas à Administração, e, em alguns casos, em
efetiva substituição às atividades que deveriam ser desenvolvidas por entidades públicas.
no âmbito do processo de reforma do estado empreendido no Brasil durante
a segunda metade da década de noventa, e diante da incapacidade do estado de responder de modo satisfatório às novas demandas sociais, viu-se na redução do estado
e na transferência de atividades estatais para o setor privado a solução para a baixa
eficiência e eficácia das atividades estatais.
o estado burocrático, como foi denominado pelos defensores dessas reformas
gerenciais, mostrava-se grande, ineficiente e, portanto, incapaz de atender às expectativas e necessidades da sociedade. A solução evidente consistia em transferir para
o setor privado empresarial as atividades até então desenvolvidas pelo estado e que
permitissem a sua exploração como atividades de risco — é aí onde se inclui o processo
de desestatização, que compreende a simples alienação de ativos (privatização) e as
concessões e permissões de serviços públicos — e para o setor privado não empresarial
atividades que não pudessem ser exploradas como atividades de risco ou econômicas.
das concessões e permissões de serviço público nos ocuparemos em capítulo
mais adiante. Por enquanto devemos examinar a relação surgida durante esse processo
de reforma, e cuja tendência indica forte crescimento para o futuro, entre entidades de
Direito Privado, sem fins lucrativos, e o Estado.
33
34
deve o leitor atentar para as exceções à competência da Justiça Federal previstas no art. 109, i, da Constituição
Federal. Assim, mantendo o mesmo exemplo de empresa pública federal de que temos nos servido, as ações em
que a Caixa econômica Federal for autora, ré, assistente ou oponente serão julgadas pela Justiça Federal, salvo
as de “falência, as de acidente de trabalho, e as sujeitas à Justiça eleitoral e à Justiça do trabalho”.
no caso do Distrito Federal, verifica-se certa imperfeição legislativa que, todavia, não importa em tratamento
diferenciado entre empresa pública e sociedade de economia do dF. ocorre que a Lei de organização Judiciária
do dF confere competência às varas de Fazenda Pública para processar e julgar ações contra empresas públicas
e sociedades de economia mista do DF. Trata-se, como afirmado, de imperfeição na medida em que empresas
públicas e sociedades de economia mista, que são pessoas de direito Privado, não integram o conceito de
fazenda pública. não obstante o erro, essa sistemática tem sido adotada pela Justiça do dF. Assim, ação contra
o BrB, Banco de Brasília, que é sociedade de economia mista do dF, deve ser julgada pela Justiça comum do
dF, em vara de Fazenda Pública. Ação contra o Banco do Brasil, que é sociedade de economia mista federal,
referente a fato que em razão de critério territorial justifique a atuação da Justiça comum do DF, será julgada por
vara cível da Justiça do dF.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
nesse ponto, cumpre estabelecer distinção conceitual entre as entidades paraestatais
e o denominado terceiro setor, que, desde já advertimos, não apresentam conceitos excludentes.
o terceiro setor corresponde a entidades privadas, necessariamente surgidas
no âmbito privado, porém sem fins lucrativos ou econômicos. O seu nome (terceiro)
surge por exclusão: o primeiro setor é o estatal; o segundo setor, o privado empresarial.
em face de nosso vigente Código Civil, integram o terceiro setor as associações
— que somente podem ser constituídas para fins “não econômicos” (Cód. Civil, art. 53,
caput) — e as fundações — que somente podem ser constituídas para desenvolver fins
“religiosos, morais, culturais ou de assistência”(Cód. Civil, art. 62, parágrafo único).
não incluímos nesse âmbito as cooperativas, ou como prefere o Código Civil
(art. 1.053 et seq.), as sociedades cooperativas. estas entidades, que têm em si escopo
empresarial, existem para atender aos interesses privados de seus cooperados ou sócios.
Ainda que o acesso ao trabalho seja um interesse coletivo e do estado, não se pode confundir esse interesse geral do estado de propiciar a todos os cidadãos o pleno acesso
ao trabalho, com o interesse individual de cada cidadão de ter o seu trabalho e de ser
dignamente remunerado, que é aquele buscado pelas cooperativas.35 As cooperativas se
incluem nesta segunda categoria, daí por que não podem ser consideradas integrantes
do terceiro setor. mesmo que suas atividades possam ser coincidentes com a do estado,
de propiciar o acesso ao trabalho digno, o dever e interesse estatal é amplo e deve ser
realizado de modo impessoal, ao passo que o objetivo das cooperativas é simplesmente
atender ao interesse individual de cada cooperado.
As entidades do terceiro setor não precisam manter qualquer vínculo com o poder
público. Se mantiver, que seria, por exemplo, o caso de uma associação que se qualifica
como organização social para receber repasse de recursos públicos, essa entidade do
terceiro setor passa a ser considerada paraestatal — o que igualmente não a exclui do
terceiro setor. se uma entidade privada desenvolver atividade não econômica de interesse do estado e, apesar disso, não mantiver qualquer vínculo com o estado, ela seria
uma entidade do terceiro setor, mas não uma paraestatal, qualificação que pressupõe
a existência de algum vínculo com o poder público.
são paraestatais:
1. organizações sociais (os);
2. organizações da sociedade civil de interesse público (osCiP); e
3. serviços sociais autônomos (ssA).
4.4.2 organizações sociais (os)
As organizações sociais encontram-se regidas pela Lei nº 9.637/98, que, além de
dispor sobre a qualificação de entidades privadas como OS, criou o processo que se
denominou de publicização.
35
Acerca das denominadas cooperativas de mão de obra, muitas dúvidas têm sido suscitadas, e a Justiça do trabalho, provocada pelo ministério Público do trabalho, tem adotado entendimento de que muitas cooperativas nada
mais são do que instrumentos disfarçados de burla à legislação trabalhista. em vez de o empregador contratar
seu empregado e reconhecer-lhes todos os direitos trabalhistas, contrata-se com uma cooperativa, que nada mais
faz do que intermediar mão de obra sem pagar a seus “sócios” qualquer direito trabalhista. se o trabalho a ser
exercido exigir pessoalidade, habitualidade e subordinação — requisitos de uma relação de emprego — a contratação de cooperativas para fornecer mão de obra deve ser repudiada e considerada ilegítima.
no âmbito da Administração Pública, devem os editais de licitação para a contratação de serviços expressamente
conter cláusulas que impeçam a participação de cooperativas caso o serviço a ser prestado exija pessoalidade,
habitualidade e cria subordinação.
181
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
182
o processo de publicização se insere no âmbito das reformas do estado empreendidas
ao longo da década de noventa. nesse contexto, as atividades estatais que permitissem a
sua exploração como atividade empresarial seriam transferidas aos particulares por meio
da alienação de ativos e das concessões ou permissões de serviço público; as atividades
estatais que não admitissem esse modus de exploração — como atividades “dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do
meio ambiente, à cultura e à saúde” (Lei nº 9.637/98, art. 1º) — poderiam ser transferidas a
particulares por meio do processo de publicização.
Assim, ao invés de o poder público montar um hospital público ou um posto de
saúde, poderia buscar no setor privado entidade privada sem fim lucrativo que atuasse
nesse setor, a qualificaria como organização social e, por meio de um contrato de gestão,36
repassaria à entidade privada os recursos públicos necessários à prestação dos serviços
à população.
A ideia de utilizar entidades privadas na prestação de serviços de utilidade pública
é boa. todavia, a absoluta falta de critérios de impessoalidade para a escolha da entidade que irá receber os recursos públicos tem sido fonte de constante questionamento
quanto à sua constitucionalidade. A rigor, há situações em que entidades privadas são
criadas com o único propósito de receberem esses recursos, em evidente violação aos
princípios da moralidade e da impessoalidade. A absoluta discricionariedade — que
por ser absoluta se converte em arbitrariedade — na escolha da entidade privada a ser
qualificada como OS, aliada à falta de transparência nas prestações de contas, que são
encaminhadas à própria entidade ou órgão que repassa referidos recursos, têm comprometido todo o processo de publicização. urge aprimorar a legislação de modo a
desenvolver mecanismos impessoais de escolha da entidade que irá receber os recursos
e a definir de modo mais claro e transparente o processo de prestação de contas.
Quanto à prestação de contas, quando se tratar de recursos federais, o tCu decidiu que elas devem ser, após o exame do órgão repassador, repassadas ao tribunal. A
peculiaridade do exame dessas contas consiste em que o exame é feito apenas com base
nos resultados alcançados pela os. Como se trata de entidade privada não integrante
da Administração Pública, a ela não se aplicam os deveres básicos de licitar ou de realizarem concurso público, por exemplo. desse modo, são aspectos formais de legalidade
a serem examinados nas prestações de contas; esse exame considera, antes, aspectos de
resultados. O contrato de gestão a ser firmado com a OS deve fixar as metas a serem
alcançadas pela entidade, e o julgamento das contas objetiva verificar em que medida
essas metas foram realizadas.
A Lei nº 9.637/98 explicita a sua intenção de extinguir determinadas entidades
públicas — em especial fundações públicas —, de criar em seu lugar entidades privadas
que não integrariam a Administração Pública, de transferir a atividade pública desempenhada pela entidade extinta para a nova entidade, de qualificar esta como OS e de
mantê-la com recursos públicos transferidos por meio de contrato de gestão.
36
Apesar de utilizar o mesmo nome, o contrato de gestão firmado com OS não tem qualquer relação com o acordo —
igualmente denominado contrato de gestão — previsto no texto da Constituição Federal (art. 37, §8º) a ser firmado
com órgão ou entidade pública com vista à ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e financeira do órgão
ou entidade. Desse modo, a Lei nº 9.637/98 em nada se aplica aos contratos de gestão firmados com órgãos ou
entidades públicos cujo objetivo seja ampliar a autonomia destes. são situações totalmente distintas, reguladas por
acordos com idêntico nome: o contrato de gestão, celebrado com fundamento no art. 37, §8º, da Constituição Federal, objetiva ampliar a autonomia de órgãos e entidades públicos; o contrato de gestão celebrado com fundamento
na Lei nº 9.637/98, com organizações sociais, objetiva fixar metas de desempenho e repassar recursos públicos.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
essa intenção parece-nos inconstitucional. temos defendido (vide Capítulo 10)
que o princípio da legalidade administrativa gera no âmbito a existência do princípio da
reserva institucional, segundo o qual a Administração Pública somente está autorizada
a criar as entidades expressamente mencionadas no texto constitucional (art. 37, XiX e
XX). duas conclusões decorrem desse preceito:
1. o estado somente pode criar autarquias, fundações públicas, empresas
públicas e sociedades de economia mista (art. 37, XiX), bem como eventuais
subsidiárias destas (art. 37, XX); e
2. o estado não pode criar entidade que não seja integrante da Administração
Pública indireta.
não pode o estado, ainda que o queira fazer por meio de lei, criar associação,
fundação privada (que não pode ser confundida com a fundação pública de direito
Privado) ou sociedade simples ou empresária fora do âmbito da Administração indireta.
Ademais, a entidade a ser criada no âmbito da Administração indireta será uma daquelas mencionadas nos dispositivos constitucionais mencionados (CF, art. 37, XiX e XX).
4.4.3 organização da sociedade civil de interesse público (osCiP)
A segunda entidade paraestatal é a organização da sociedade civil de interesse público,
regulada pela Lei nº 9.790/99.
À semelhança do que se verifica com a lei das OS, além de exigir a ausência de
fim lucrativo ou econômico, a Lei nº 9.790/99 requer que a entidade a ser qualificada
como osCiP tenha pelo menos uma das seguintes atividades:
i - promoção da assistência social;
ii - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
iii - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação
das organizações de que trata esta Lei;
iv - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação
das organizações de que trata esta Lei;
v - promoção da segurança alimentar e nutricional;
vi - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento
sustentável;
vii - promoção do voluntariado;
viii - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza;
iX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas
alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;
X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica
gratuita de interesse suplementar;
Xi - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de
outros valores universais;
Xii - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades
mencionadas neste artigo. (art. 3º)
Verifica-se incrível semelhança entre a OS e a OSCIP. O simples exame das duas
leis — que à exceção de pequenos detalhes formais como, por exemplo, o processo de
habilitação da osCiP, que tramita no ministério da Justiça (art. 5º, da Lei nº 9.790/99)
ou de que com a osCiP não se celebra contrato de gestão, mas termo de parceria (art. 10
183
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
184
da Lei nº 9.790/99) — não permite identificar a razão da existência desses dois modelos
— de os e de osCiP.
A prática tem revelado que a efetiva distinção se encontra no âmbito de alcance dos
acordos firmados com essas entidades. O contrato de gestão firmado com a OS vincula
a entidade em toda a sua atuação. Toda a atuação, toda a atividade, enfim, tudo o que a
entidade com a qual se celebra o contrato de gestão faz ou deixa de fazer é definido neste
instrumento, assim como a os passa a depender integralmente dos recursos públicos que
lhe serão repassados. no caso da osCiP, o termo de parceria irá igualmente permitir
o repasse de recursos públicos, mas apenas para a execução de determinados projetos
ou programas. em outras palavras, o contrato de gestão vincula a os em todas as suas
atuações; o termo de parceria viabiliza o repasse de recursos públicos para projetos
específicos, sem, todavia, comprometer a autonomia ou independência da OSCIP.
o termo de parceria mostra-se muito próximo dos convênios. distingue-se destes
apenas pelo seu objeto. Nos convênios, o objeto é definido no tempo (construção de
hospital, de quadra poliesportiva etc.), ao passo que nos termos de parceria o objeto é
atividade de prazo indeterminado (a manutenção de reserva ambiental, o desenvolvimento de programa de inserção de jovens no mercado de trabalho), o que não importa,
em absoluto, que os termos de parceria sejam firmados por prazo indeterminado. Essa
distinção parece-nos, todavia, tão sutil que não há qualquer inconveniente de ser utilizado um no lugar do outro. de se notar apenas que se o instrumento utilizado for o
convênio, o regime jurídico a ser observado é o decreto nº 6.170/2007, regulamentado
pela Portaria interministerial nº 507/2011, ao passo que o termo de parceria se rege pela
mencionada Lei nº 9.790/99.
A crítica feita aos contratos de gestão, quanto à falta de transparência, imoralidade administrativa e falta de impessoalidade na escolha da entidade que irá receber
recursos públicos, é do mesmo modo aplicável aos termos de parceria e aos convênios.37
nos últimos anos, bilhões de reais em recursos públicos — e a tendência é de crescimento — têm sido repassados por meio desses três instrumentos a entidades privadas.
Conforme observa maria sylvia Zanella di Pietro, essa legislação deveria ser alterada
“para imprimir ao instituto um mínimo de moralidade que se espera na Administração da res publica”.38 O primeiro passo é definir de modo mais objetivo e controlável a
entidade que irá receber os recursos públicos, a fim de evitar escolhas políticas e totalmente dissociadas da capacidade técnica da entidade de executar o objeto do acordo.
o segundo passo é disciplinar a própria execução dos recursos repassados a essas
entidades, exigindo delas o mínimo de moralidade, transparência e impessoalidade
na aplicação desses recursos. não parece ser o caso de defender a escolha da entidade
por meio de licitação regida pela Lei nº 8.666/93. muito menos que a entidade privada
se submeta, no momento de firmar os contratos necessários à execução do acordo, ao
37
38
Especificamente quanto aos convênios, houve, no âmbito da Administração Pública federal, importante
iniciativa para reduzir a subjetividade na seleção das entidades privadas para formação de parcerias. o decreto
nº 6.170/2007, acima já referido, impõe, consoante o art. 4º, a prévia realização de “chamamento público”, ao
qual deverá ser dada publicidade, nos termos do respectivo §1º, e que estabelecerá “critérios objetivos visando à
aferição da qualificação técnica e capacidade operacional do convenente para a gestão do convênio”, de acordo
com o que determina o art. 5º do mesmo normativo. Não obstante essa evolução seja significativa, está restrita
aos órgãos e entidades da Administração Pública federal e permanece sujeita à competência regulamentar do
Chefe do Poder executivo.
di Pietro. Direito administrativo, p. 421.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
dever de licitar. mas apenas que haja um mínimo de objetividade e de motivação na
escolha das entidades com as quais são celebrados convênios, termos de parceria ou
contratos de gestão. Que se explicite, em razões de critérios técnicos e objetivos, por que
determinada entidade privada foi escolhida para receber vultosos recursos públicos.
se não afasta, ao menos reduz clientelismos, nepotismos, favoritismos e tantos outros
“ismos” tão conhecidos e nefastos a nossa sociedade.
4.4.4 serviços sociais autônomos (ssA)
A terceira categoria de entidade paraestatal compreende os serviços sociais autônomos, comumente denominados sistema “s”.
são exemplos de entidades integrantes do sistema “s” o sesi, o senAi, o senAC,
o sesC, o seBrAe, dentre tantos outros.
São pessoas de Direito Privado, sem fins econômicos, criadas por lei para desempenhar atividades assistenciais ou de ensino a determinadas categorias profissionais,
e são mantidas com recursos públicos, normalmente arrecadados por meio de contribuições parafiscais. A maior particularidade dessas entidades reside no fato de que
são criadas pelo estado, mas não integram a Administração Pública direta ou indireta.
Haja vista serem públicos os recursos que as mantêm, devem prestar contas ao
tCu. mas como não integram a Administração Pública, não se submetem à obrigatoriedade de realizarem concurso público.39 em relação ao dever de licitar, algumas
considerações devem ser feitas. Como não integram a Administração Pública, não se
submetem às exigências da Lei nº 8.666/93; o tCu, todavia, tem obrigado referidas entidades a aprovarem regulamentos próprios que devem ser utilizados para disciplinar
suas licitações e contratações. não obstante estarem fora da Administração Pública,
são essas entidades mantidas exclusiva ou eminentemente com recursos públicos. As
empresas que atuam na área industrial, por exemplo, são obrigadas a recolher contribuições parafiscais em favor do SESI. Daí a necessidade de serem observadas por essas
entidades condutas compatíveis com a realização dos princípios constitucionais de
moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência etc.40
39
40
Faço referência a duas decisões do tribunal de Contas da união em que a Corte, embora não imponha a realização de concurso público às entidades do sistema “s”, exige que, nas admissões de pessoal, devam ser observados os princípios constitucionais constantes do art. 37, caput, da Constituição Federal, principalmente os da
impessoalidade, moralidade, legalidade e publicidade.
“Prestação de contas simplificada. Exercício de 2005. Contratação de pessoal sem observância aos princípios
constitucionais previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal. irregularidade das contas, com aplicação de
multa. regularidade das contas dos demais. As contratações de pessoal realizadas pelas entidades do sistema s
devem ser precedidas de processo seletivo, observando-se os princípios constitucionais da publicidade, impessoalidade, moralidade, finalidade e igualdade” (Acórdão nº 588/2010, 1ª Câmara).
“representação. Possível prática de nepotismo. Conhecimento e procedência parcial. A contratação de parente,
em linha reta, colateral ou por afinidade, até 3º grau para ocupar cargo no Senac fere os princípios constitucionais da moralidade, bem como o regulamento e o regimento interno do senac, sendo considerada prática de
nepotismo” (Acórdão nº 5.620/2012, 1ª Câmara).
A exemplo do entendimento firmado pelo TCU acerca do tratamento dispensado às entidades do Sistema “S”,
cite-se o Acórdão nº 2.562/2008, sumariado nos seguintes termos: “representação. Processo seletivo instaurado
por conselho regional de fiscalização do exercício profissional. Inobservância do disposto no art. 37, inciso II, da
Constituição Federal. Determinações. A respeito dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, a
farta jurisprudência desta Corte é no sentido de que tais entidades têm natureza autárquica sui generis; arrecadam e gerenciam recursos públicos de natureza parafiscal; sujeitam-se aos princípios constitucionais aplicáveis
à Administração Pública; integram, por força constitucional e legal, o rol dos jurisdicionados deste tribunal;
185
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
186
o limbo jurídico em que se encontram essas entidades — que são privadas em
sua personalidade e na sua gestão, mas públicas em sua criação e nos vultosos recursos
que as mantêm — decorre do fato de que elas são incompatíveis com o ordenamento
constitucional pelas razões a seguir indicadas.
4.4.5 entidades do terceiro setor criadas pelo estado
temos em reiterados trechos deste trabalho defendido a impossibilidade de o
poder público criar entidade estranha à Administração Pública. se o poder público
quer desempenhar, diretamente, atividades assistenciais como as que desempenham
os serviços sociais autônomos, deve criar fundações públicas. se o poder público quer
incentivar entidades privadas a desenvolver essas atividades, que firme termos de
parceria, convênios, contratos de gestão ou qualquer instrumento de natureza pública
e repasse os recursos públicos necessários. todavia, o poder público criar entidade e
querer que ela não integre a Administração Pública parece-nos incompatível com a
própria razão de ser do estado, além de ferir o texto constitucional.
Ao longo do presente trabalho temos defendido a maior participação da sociedade
civil — empresarial ou não — no desempenho das atividades do estado. esse maior
intercâmbio, desde que se verifique a partir de parâmetros jurídicos bem definidos e
sujeitos à fiscalização — apenas benefícios trará para a sociedade. O propósito aqui não
é o de criticar as parcerias entre o setores público e o privado. Ao contrário, devem esses
mecanismos ser ampliados e aperfeiçoados. Há atividades que, efetivamente, são mais
bem desempenhadas quando a sua execução é transferida à gestão privada.
não negamos, ademais, em absoluto, a possibilidade de o poder público criar
entidade de direito Privado, desde que ela integre a Administração e se sujeite às normas constitucionais pertinentes — como é o caso das empresas públicas, sociedades de
economia mista, e, eventualmente, de fundações públicas de direito Privado.
A rigor, a criação pública, por meio de lei, de entidades instrumentais estranhas à
Administração do estado está ligada a uma única verdade: busca-se fugir aos controles
a que se sujeita a Administração Pública. sob o argumento de que a gestão privada dos
recursos públicos importa em solução mais efetiva, abrem-se as portas para todo tipo
de malversação e abuso com os recursos públicos.
nessa mesma linha de argumentação, a ilustre professora maria sylvia Zanella
di Pietro faz referência às entidades de apoio41 como entidades criadas por servidores
públicos para a “prestação, em caráter privado, de serviços sociais não exclusivos do
estado, mantendo vínculo jurídico com entidades da Administração direta ou indireta,
em regra por meio de convênio”. A própria autora cita como exemplos de entidade de
apoio as fundações de apoio que surgiram vinculadas às instituições de ensino superior.
mais uma vez, o propósito subjacente à criação dessas entidades de apoio não
tem nada de digno. A verdade, mais uma vez, é uma só: foram criadas as (mal)ditas
fundações de apoio — como entidades privadas, porém com fundos que lhes foram
41
estão obrigadas a realizar concurso público previamente à contratação de pessoal; e devem observar a licitação
prévia para as obras, serviços, compras, alienações e locações” (Acórdão nº 2.562/2008, Plenário. rel. min. substituto André Luis de Carvalho. sessão de 12.11.2008).
di Pietro. Direito administrativo, p. 416-418.
CAPítuLo 4
orGAniZAção AdministrAtivA
ilegalmente transferidos pelas próprias universidades federais — para intermediar as
contratações das universidades, burlando a lei de licitação. em vez de a universidade
contratar diretamente determinado serviço, o que exigiria a devida licitação, ela contrata
a sua fundação de apoio — com fundamento em dispensa de licitação (Lei nº 8.666/93,
art. 24, Xiii) e esta subcontrata livremente, sem que tenha de dar qualquer satisfação
do que faz ou deixa de fazer. são igualmente utilizadas para burlar regras de concurso
público: em vez deste, a universidade firma convênio com sua fundação de apoio para
fornecimento de mão de obra. não bastassem essas irregularidades, são ainda utilizadas
essas entidades para violar regimes de dedicação exclusiva a que se submetem inúmeros
professores.
vê-se que sob o pretexto de desenvolvimento de atividades de pesquisa, ensino
ou de extensão universitária, muito se esconde.
Enfim, as irregularidades que cercam essas entidades de apoio impedem a sua
inclusão no rol das entidades paraestatais.
187
PArte ii
AtividAde AdministrAtivA
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
5.1 Atividade administrativa
o estado moderno, como atualmente o conhecemos, formou-se a partir das
revoluções liberais. As suas funções básicas, conforme o modelo clássico da separação
dos poderes, são as de julgar, de legislar e de administrar. Ainda que não se possa falar
em um único, mas em vários modelos de separação de poderes, a existência de órgãos
estatais responsáveis pelo exercício das três funções básicas é uma característica de
todos os estados modernos. utilizamos esta expressão — estado moderno — para
designar aqueles constituídos como estados democráticos de direito, sujeitos a regras
jurídicas claras e previamente definidas e que adotam como elemento essencial de seu
ordenamento a busca pela realização dos direitos fundamentais.
A necessidade de a população obter bens e serviços se intensifica a cada dia em
função do surgimento de novas tecnologias e dos novos cenários surgidos com o fenômeno da globalização. impõe-se a discussão da importância do estado e da sua função
executiva. nesse contexto, o que se percebe é a demanda crescente pela presença estatal,
em razão do reconhecimento de que os mercados, por mais organizados ou avançados
que sejam, jamais serão capazes de, sozinhos, atender a todas as demandas por bens e
serviços essenciais à vida e à dignidade da pessoa humana.
independentemente do modelo político ou econômico vigente em cada país,
se mais ou menos intervencionista, o estado é sempre uma das instituições mais
importantes — provavelmente a mais importante de todas. nos estados unidos, país
sempre mencionado como modelo de estado mínimo ou não intervencionista, não
há, nem nunca houve, entidade ou instituição privada comparável ao estado, seja em
termos de tamanho, de importância para a sociedade, de organização e, sobretudo, de
volume de recursos financeiros geridos. Ainda que sua função seja dirigida a garantir
o bom funcionamento das regras do livre mercado, o estado assume cada vez maior
importância para a sociedade. nunca é demais lembrar que foram os estados unidos,
no início do século XiX, que desenvolveram as regras básicas relacionadas ao direito
econômico ou anti-trust.
Cumpre-nos examinar a atividade administrativa, ou executiva, do estado, o que
nos levou a chamar a atenção do leitor, no início deste capítulo, para a importância do
192
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
estado, e em especial da Administração Pública, porque o ato administrativo constitui
a forma básica da Administração do estado se manifestar, de interferir na sociedade.
É certo que as relações surgidas a partir da concepção de estado cooperativo —
desenvolvida nos capítulos 1 e 2 — requerem a criação de novos mecanismos estatais
de atuação — convênios, termos de parceria, contratos de concessão etc. o ato administrativo continua a ser a forma básica do estado atuar. As outras formas de manifestação
estatal, que não sejam impostas unilateralmente pela Administração Pública, mas definidas consensualmente entre os particulares e o poder público, sempre dependem da
prévia prática de inúmeros atos preparatórios, que têm natureza de atos administrativos.
Feitas essas considerações iniciais acerca da importância do ato administrativo,
passemos ao seu exame.
5.2 Considerações necessárias à conceituação dos atos administrativos
5.2.1 Ato legislativo, ato judicial e ato administrativo
nos capítulos iniciais deste trabalho, temos utilizado a expressão “ato administrativo” para nos referir a toda manifestação de vontade do estado no exercício de
sua função administrativa. no Capítulo 2, dividimos e apresentamos as três funções
básicas do estado e, em função de o ato ter sido praticado pelo estado no exercício de
uma ou de outra função típica, será ele reputado administrativo, legislativo ou judicial.
vimos também no Capítulo 2 que ato judicial é aquele praticado por órgão
inserido no âmbito do Poder Judiciário e regido por normas de direito Processual; ato
legislativo é aquele praticado no âmbito do processo legislativo, ainda que quem o
pratique não seja órgão legislativo. neste sentido, desde a propositura do projeto de lei à
sua sanção, promulgação e publicação, todos os atos que integram o processo legislativo
são atos legislativos.
Para identificar a função administrativa do Estado, temos seguido o critério
residual: se os atos praticados não são legislativos ou judiciais, eles serão administrativos, ainda que praticados por órgãos inseridos no âmbito dos Poderes Legislativo e
Judiciário. Assim, apresenta-se como perfeitamente lógico que o senado Federal, ao
publicar edital relativo à realização de concurso público, ou que o supremo tribunal
Federal, ao adjudicar o objeto de determinada licitação em favor da empresa licitante
vencedora do certame, praticam atos administrativos típicos.
5.2.2 Ato administrativo e fato administrativo
o ato administrativo deve decorrer de uma manifestação de vontade do estado.
Fatos concretos, materiais, ainda que produzam efeitos no mundo jurídico e no âmbito
da Administração Pública, não são atos administrativos.
Historicamente, e sempre buscando soluções já sedimentadas no direito Privado,
o direito Administrativo tem-se servido da clássica divisão civilista entre atos e fatos
jurídicos e, a partir desses dois conceitos, tem construído os de ato administrativo e de
fato administrativo.
essa distinção é relevante, dentre outros aspectos, porque a Administração
Pública dispõe da faculdade de anular suas manifestações de vontade contrárias ao
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
direito e de revogar aquelas que se mostrem inconvenientes ou inoportunas. ora, se
a premissa para a anulação é a existência de manifestação de vontade ilegítima, e da
revogação, de manifestação de vontade inconveniente ou inoportuna, e mais, se ciente
de que determinados efeitos jurídicos foram produzidos no âmbito da Administração
Pública independentemente de qualquer manifestação de vontade — o que se verifica
em relação aos fatos jurídicos — estes se apresentam como imunes ao poder de revogação ou de anulação.
valendo-nos dos exemplos clássicos apresentados pela doutrina, a morte de um
servidor público, por exemplo, não decorre de qualquer manifestação de vontade, mas
pode gerar inúmeros efeitos jurídicos — direito de terceiro de receber pensão, vacância
do cargo etc. uma cirurgia realizada em um hospital público pode ser apresentada
como outro exemplo de fato administrativo. ela, a cirurgia, não é, em si, manifestação
de vontade de coisa alguma. trata-se de atos ou fatos concretos ou materiais produzidos
em âmbito público, que podem gerar efeitos jurídicos para a Administração Pública, de
que seria exemplo o direito do paciente de pedir indenização do estado por eventual
erro verificado durante o procedimento cirúrgico indicado.
5.2.3 Ato administrativo e ato de direito Privado
A doutrina pátria apresenta os atos da Administração como gênero do qual seriam
espécies os atos administrativos e os atos de direito Privado.
A distinção acima apontada decorre do fato de que os primeiros, os atos administrativos, seriam regulados pelo direito Administrativo e, portanto, seria a Administração
Pública colocada em posição de supremacia em relação àqueles com quem se relaciona,
ao passo que os atos de direito Privado, como indica o próprio nome, seriam regulados por normas que asseguram aos agentes que se sujeitam a este regime igualdade
de tratamento. são normalmente apresentados pela doutrina como exemplos de atos
de direito Privado praticados pela Administração Pública “a simples locação de uma
casa para nela instalar-se uma repartição” (Celso Antônio Bandeira de mello), “doação,
permuta, compra e venda” (maria sylvia Zanella di Pietro).
A primeira observação é no sentido de que os exemplos de atos de direito Privado apresentados pelos ilustres mestres, e repetidos por vários outros consagrados
autores nacionais, não são atos administrativos; trata-se de contratos. vê-se, portanto,
que utilizam a expressão ato de Direito Privado no sentido amplo que lhe atribui o direito
Civil, a partir do conceito de ato jurídico.
A segunda observação a ser feita afeta a própria existência de referidos atos de
direito Privado praticados pela Administração Pública.
todos os exemplos mencionados de atos de direito Privado são de contratos
celebrados pela Administração Pública e que não se encontram regidos por normas de
Direito Administrativo específicas ou próprias.
É absolutamente lícito aos órgãos e entidades públicos praticarem atos não disciplinados especificamente pelo Direito Administrativo. Se para a realização de suas
atribuições, determinado órgão público necessita locar imóvel, fazer seguro de veículos,
fazer a permuta de imóvel etc. — desde que haja a necessária previsão orçamentária — é
lícito a esse órgão utilizar-se do direito Privado para disciplinar essas relações jurídicas.
193
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
194
ocorre, todavia, que a utilização das normas do direito Privado nunca afasta as
normas do direito Público, nunca. se não houver, e somente onde não houver norma
de direito Público, será lícito ao administrador público valer-se do direito Privado.
no caso dos mencionados contratos — apresentados como exemplos de atos de
direito Privado praticados pela Administração Pública —, a Lei nº 8.666/93, em seu art. 62,
§3º, i, estabelece expressamente a aplicação, a estes contratos a serem regulados em seu
conteúdo pelo direito Privado, de normas de direito Público e, dentre elas, expressamente
menciona a aplicação a esses contratos das prerrogativas contidas nos artigos 58 e 59
da própria lei de licitações. o art. 58 permite que o poder público possa, dentre outras
prerrogativas, modificar ou rescindir unilateralmente seus contratos e aplicar sanções
ao contratado. o art. 59 autoriza que a Administração Pública anule seus contratos. ora,
se o que caracteriza o ato de direito Privado praticado pela Administração Pública seria
a não aplicação ou a não existência de prerrogativas por parte do poder público, e se os
exemplos mencionados pelos renomados autores — contratos de locação, de permuta
etc. — por expressa disposição legal admitem o exercício de inúmeras prerrogativas — e
dentre elas as prerrogativas mais importantes — como anulação administrativa, a rescisão
unilateral e a modificação contratual unilateral — ou esses contratos não podem ser
apresentados como exemplos de atos de direito Privado praticados pela Administração
Pública, ou simplesmente não existem essas espécies de atos.
o contrato de locação de imóvel em que o poder público é o locatário, apresentado por praticamente toda a doutrina pátria como exemplo de ato de direito Privado
praticado pela Administração Pública, pode ser anulado, rescindido ou modificado
unilateralmente pelo poder público, observados os limites, procedimentos e condições
fixados pela Lei nº 8.666/93. O mesmo vale para todos os demais contratos ou atos denominados de direito Privado praticados pela Administração Pública.
A verdade é que os atos praticados pelas entidades de direito Público são sempre disciplinados, em alguma medida, por normas de direito Público de aplicação
inafastável. nunca um particular estará em igualdade jurídica em face de pessoa de
direito Público. Ainda que esta última tenha ou possa socorrer-se do direito Privado
para regular situações especiais, o que tem ocorrido com frequência cada vez maior,
a aplicação dessas normas verifica-se sempre em caráter suplementar em relação às
de direito Público, e sempre haverá normas de direito Público a serem aplicadas com
primazia sobre aquelas privadas, normas públicas que conferem ou reconhecem algum
tipo de prerrogativa aos órgãos e entidades públicos. não admitimos a existência de
atos de direito Privado praticados pelas pessoas de direito Público ou por órgãos que
integram a estrutura destas pessoas porque sempre há norma de direito Público a ser
aplicada, decorra essa norma de princípio constitucional ou diretamente de lei.
essas prerrogativas públicas, temos defendido reiteradamente ao longo deste
trabalho, não são presumidas e jamais conferem poderes ilimitados aos entes públicos.
tem sido, todavia, uma constante em nosso ordenamento jurídico-administrativo a
presença dessas normas públicas cuja aplicação, em muitos casos, decorre diretamente
da Constituição Federal.
rejeitamos, desse modo, a possibilidade de pessoas jurídicas de direito Público
praticarem atos regidos inteiramente ou exclusivamente pelo direito Privado.1 essa
1
no sentido de que mesmo quando a Administração celebra contrato sob regime jurídico predominantemente privado ela não se afasta da finalidade pública, Hely Lopes Meirelles afirma que “contrato administrativo é o ajuste
que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma com particular ou outra entidade administrativa
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
impossibilidade não decorre da condição da pessoa ser de direito Público, mas do regime
jurídico-administrativo vigente em nosso País. A forma como o direito Administrativo
disciplina o funcionamento e a atuação das pessoas de direito Público, sejam elas pessoas
políticas ou autárquicas, em todos os níveis de governo, resulta sempre na concessão
de prerrogativas. desse modo, quando repelimos a existência dos denominados atos
de direito Privado praticados pela Administração Pública não o fazemos em razão da
impossibilidade dessas pessoas se servirem do direito Privado — o que, reiteramos,
tem sido um fato cada vez mais frequente em nosso País. rejeitamos a apresentação
desses atos de direito Privado como sendo aqueles em que o poder público se equipara aos particulares. A sujeição inicial dessas entidades ao direito Administrativo e a
consequente criação de prerrogativas que lhes são conferidas impedem que elas atuem
em igualdade de condições jurídicas com os particulares.
5.2.4 empresas estatais e atos administrativos
Questão distinta da que foi acima tratada consiste em saber se pessoas de direito
Privado, e aqui nos referimos especificamente às empresas estatais, podem praticar
atos administrativos.
A prática de ato administrativo pelas empresas estatais tem sido objeto de exame
pela jurisprudência. O objetivo desse exame tem finalidade específica: verificar o cabimento de mandado de segurança contra atos dos dirigentes das empresas estatais. A
conclusão a que tem chegado a jurisprudência é no sentido de que nas situações em
que as empresas estatais sirvam-se do direito Público e, nessa condição, pratiquem
atos de autoridade, o ato será tido como administrativo e será admissível o mandado
de segurança, caso ele viole direito líquido e certo.2
2
para a consecução de objetivos de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração. (...)
A Administração pode realizar contratos sob normas predominantes do direito Privado — e freqüentemente os
realiza — em posição de igualdade com o particular contratante, como pode fazê-lo com supremacia do Poder
Público. Em ambas as hipóteses haverá interesse e finalidade pública como pressupostos do contrato, mas no
primeiro caso, o ajuste será de natureza semipública (contrato administrativo atípico, como já conceituou o
extinto trF), e somente no segundo haverá contrato administrativo típico. daí a necessária distinção entre contrato semipúblico da Administração e contrato administrativo propriamente dito, como já o fez a lei (art. 62, §3º,
i)” (Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 194-196).
stJ: “recurso especial – mandado de segurança contra ato de sociedade de economia mista – Cabimento –
Licitação pública – Art. 37, XXi, da Constituição Federal – Lei n. 8.666/90 – Precedentes. As empresas de economia
mista sujeitam-se a processo de licitação pública para aquisição de bens e contratação de obras e serviços de
terceiros (art. 37, XXi, da Constituição Federal). destarte, os atos administrativos que envolvem a promoção de
licitação pública por empresa de economia mista são atos de autoridade, submetidos ao regime de direito Público
(Lei n. 8.666/93), passíveis de questionamento por mandado de segurança” (resp nº 533.613-rs, 2ª turma. rel.
Min. Franciulli Netto. Julg. 4.9.2003. DJ, 03 nov. 2003).
stJ: “Processo Civil – recurso especial – mandado de segurança – Concurso público – Aprovado preterido
em sua nomeação e posse e, posteriormente, anistiado – omissão no cumprimento pelo dirigente de sociedade
de economia mista – Banco de Brasília - BrB – Ato de autoridade e não de gestão – Legitimidade passiva ad
causam reconhecida – Prejudicial afastada. 1 - o dirigente da sociedade de economia mista submete-se, quando
pratica atos típicos do direito Público, aos princípios que vinculam toda a Administração, como a moralidade,
legalidade, impessoalidade, etc. Logo, tais atos não podem ser classificados como meros atos de gestão, o que
descaracterizaria a simbiose de sua personalidade jurídica. sendo o Banco de Brasília – BrB um ente paraestatal
e seu administrador nomeado, inclusive, pelo Poder Público, a impugnação do ato omissivo que não acatou a
anistia homologada, a qual determinou a nomeação e posse do recorrente, aprovado em concurso público para
o cargo de economista, é passível de impugnação através do remédio constitucional do mandado de segurança.
inteligência do art. 1º, da Lei nº 1.533/51. 2 - recurso conhecido e provido para, reformando in totum o v. acórdão
de origem, rejeitar a preliminar que declarou incabível o mandado de segurança e determinar o retorno dos
195
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
196
As empresas públicas e sociedades de economia mista se sujeitam a regime
jurídico privado, sendo-lhes aplicável o direito Administrativo somente nas hipóteses
e situações expressamente previstas na Constituição Federal (Capítulo iv).3 nestas
hipóteses, de a empresa pública ou sociedade de economia mista servir-se, em face de
disposição constitucional expressa, de norma de direito Administrativo, o ato praticado
reputa-se ato administrativo. ressalvadas essas situações, em que por força da aplicação
direta de disposição constitucional a empresa estatal se utilize do direito Administrativo
para regular algum aspecto de sua atividade, os atos praticados pelas empresas estatais
são atos privados, regulados, portanto, pelo direito Privado e insuscetíveis de serem
enquadrados como atos administrativos.
Como consequência dessa afirmação, tem-se que as empresas estatais não podem
exercer qualquer poder de supremacia em relação aos particulares com que se relacionam, ressalvadas as situações definidas pela Constituição Federal. Em relação aos
contratos por ela firmados, por exemplo, não podem as empresas estatais rescindi-los
ou modificá-los unilateralmente.
As prerrogativas dos contratos administrativos não alcançam as empresas estatais, o que não importa em que a Lei nº 8.666/93 não lhes seja aplicável. o art. 173, §1º,
do texto constitucional estabelece que lei definirá o regime jurídico dessas empresas,
dispondo, inclusive, sobre seu regime jurídico de licitação e contratação. não tendo sido
até o presente momento regulado este dispositivo constitucional, devem as empresas
estatais observar as regras constantes do regime jurídico aplicável às demais entidades
e órgãos da Administração Pública, no caso a Lei das Licitações. não se lhes aplicam,
todavia, as disposições que conferem prerrogativas ao poder público (Lei nº 8.666/93,
artigos 57, 58, 79, i etc.), haja vista as empresas estatais serem pessoas de direito Privado. enquanto não for regulado o art. 173, §1º, da Constituição Federal, submetem-se
as empresas estatais ao regime jurídico da Lei nº 8.666/93.
5.2.5 Ato administrativo e contrato administrativo
Antes de prosseguirmos no enfrentamento da questão relativa aos elementos
definidores do ato administrativo, temos que repisar e esclarecer que não se incluem
no âmbito do conceito de ato administrativo aqueles praticados pelo estado no exercício das funções judiciais ou legislativas, bem como aqueles fatos ou atos materiais,
denominados de fatos administrativos, que não decorrem de manifestação de vontade
do estado. nesse sentido, as manifestações ou declarações de vontade das pessoas de
direito Público, ou das pessoas de direito Privado regidas pelo direito Administrativo
— de que seriam exemplos a licitação ou o concurso público —, podem ser consideradas
atos administrativos.
No que concerne especificamente à distinção entre ato administrativo e contrato
administrativo, fazem-se necessárias as seguintes considerações.
3
autos ao tribunal de a quo, para que julgue o mérito da impetração” (resp nº 413.818-dF, 5ª turma. rel. min.
Jorge scartezzini. Julg. 27.5.2003. DJ, 23 jun. 2003).
A sujeição das empresas estatais ao regime jurídico privado não afasta a aplicação dos princípios gerais da Administração Pública. A necessidade de empresa pública ou de sociedade de economia mista observarem padrões de
moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade, motivação ou de qualquer outro princípio não
importa em reconhecer as mencionadas entidades prerrogativas públicas.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
no direito Privado, o conceito de ato jurídico compreende tanto as manifestações
unilaterais de vontade quanto os negócios jurídicos, nestes incluídos os contratos. em
outras palavras, no direito Privado, o contrato é considerado ato jurídico.
no direito Administrativo, ao contrário, somente as manifestações unilaterais
de vontade do poder público podem ser conceitualmente reconhecidas como atos
administrativos.
A restrição do conceito de ato administrativo às manifestações unilaterais da
Administração Pública decorre de mera convenção histórica e doutrinária, convenção
que não nos parece necessário modificar.
esclareça-se que alguns poucos efeitos concretos decorrem da exclusão dos contratos administrativos do âmbito dos atos administrativos, mas, na maior parte das vezes,
essa distinção é de natureza meramente terminológica.
um contrato administrativo, por exemplo, por razões de interesse público pode
ser “rescindido” unilateralmente pela Administração Pública (Lei nº 8.666/93, artigos 77,
78 e 79, i); ao passo que o ato administrativo, por razões de conveniência ou de oportunidade, e sempre em nome da realização do interesse público, poderá ser “revogado”
pela Administração Pública (Lei nº 9.784, art. 52). As eventuais distinções derivadas da
revogação do ato administrativo e da rescisão administrativa ou unilateral do contrato
administrativo se encontram em pequenos detalhes decorrentes do fato de serem esses
dois institutos (revogação do ato unilateral e rescisão do contrato) regidos por leis distintas e da terminologia adotada, tão somente.
5.2.6 Ato de governo
Com a implantação do sistema de separação de poderes na França, definiu-se que
os atos administrativos — entendidos estes, inicialmente, como qualquer manifestação
ou atuação da Administração Pública — não estariam sujeitos à apreciação por parte
do Poder Judiciário.
Para exercer essa atribuição, foram criados, no âmbito da própria Administração,
órgãos responsáveis pelo controle da legalidade desses atos. A competência para controlar os atos administrativos, de acordo com o modelo francês, havia sido conferida
ao Conselho de estado (arrêt Laffitte, de 1822) que, temeroso de que sua existência fosse
questionada em função da queda de Napoleão, afirmou que determinados atos estariam
fora do seu âmbito de competência e, portanto, isentos de controle, em função do seu
elevado conteúdo político. As principais características desses atos de governo seriam:
1. o elevado nível de discricionariedade política; e
2. A competência decorrente diretamente da Constituição.
os atos ditos políticos ou de governo surgiram com propósito certo: escapar de
qualquer mecanismo de controle administrativo ou judicial.
em função do princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação judicial
(CF, art. 5º, XXXv, que dispõe in verbis: “lei não excluirá da apreciação do Poder judiciário lesão ou ameaça a direito”), a existência desta categoria de atos se torna, em nosso
regime jurídico, desprovida de sentido. isto não impede, todavia, que a existência dos
atos de governo seja um dos temas mais discutidos pela doutrina ao longo dos últimos
dois séculos.
determinados atos praticados pelo Presidente da república, como o veto ou a
apresentação de projeto de lei, ou a edição de medida provisória, normalmente apresentados como atos de governo em função de serem disciplinados diretamente pela
197
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
198
Constituição Federal, sujeitos a elevado nível de interferência política em sua formação,
são de difícil enquadramento. Esta dificuldade conduz à solução simplista de defini-los
como categoria fora das três funções do estado, solução que carece, máxima vênia, de
fundamentação jurídica e, como visto, de sentido prático.
o fato de esses atos serem regulados diretamente por normas constitucionais em
nada impede a possibilidade de serem enquadrados como atos administrativos, legislativos ou mesmo judiciais. Conforme defendemos no Capítulo 1, o sistema de direito
Administrativo compreende a teoria Geral do direito Administrativo, cujas normas
são de estatura constitucional. desse modo, o fato de o ato ser regido por norma constitucional e não por meio de lei em nada o afasta, de per si, do direito Administrativo
ou da possibilidade de ele ser ato administrativo.
A esse respeito, podemos considerar um dos exemplos apresentados por todos os
autores que reconhecem o ato de governo como espécie autônoma, para atestar a inexistência desta categoria: a apresentação de projeto de lei pelo Presidente da república.
Em relação a este ato, basta apenas verificar que o Supremo Tribunal Federal
também dispõe de competência para a sua prática (CF, art. 93). o disciplinamento do
projeto de lei encaminhado pelo stF ao Congresso nacional em nada se distingue do
regime jurídico que cuida da iniciativa do projeto de lei de competência do Presidente
da república. É de se indagar: teríamos, então, que outros órgãos, além dos órgãos da
cúpula do Poder executivo, também praticariam atos de governo? um órgão do Poder
Judiciário também praticaria ato de governo? entendo que não.
o Governo — entendido como produto da vontade da população, como opção
política ou critério para a fixação dos objetivos do Estado — atua por meio das diversas
unidades que compõem a Administração Pública. não existem órgãos de governo fora
da Administração. Ao promover a indicação de pessoas ligadas ao programa político
do Governo para chefiar essas unidades, o Governo interfere na Administração, mas
atua por meio desta e dela não se afasta. de acordo com essa lógica, a Administração
é o meio necessário para o Governo atuar ou praticar seus atos.
desse modo, os atos praticados pelo estado são de natureza administrativa,
legislativa ou judicial, não havendo razão para a criação de atos de natureza distinta
destas três e imunes ao controle judicial.
No Capítulo 2 deste trabalho, adotamos critério residual para definir a atividade
administrativa do estado: os atos que não possam ser enquadrados como legislativos
ou judiciais são administrativos (ou atos da Administração Pública).
É certo que não se pode confundir o conceito de governo com o de Administração. “A Administração é o instrumental de que dispõe o estado para pôr em prática as
opções políticas do governo”.4 o mesmo autor, nesta sua consagrada obra, defende que
governo é atividade política e discricionária; Administração, atividade neutra. Governo,
segundo o autor, é conduta independente; Administração é conduta hierarquizada.
A distinção entre governo e Administração Pública não nos permite concluir
que exista ato de governo como categoria própria, distinta dos atos administrativos,
legislativos ou judiciais. isto importa em reconhecer que o Governo não pode agir ou
atuar por outros meios, à parte da Administração Pública. Admitir o contrário importaria em reconhecer a existência de órgãos de governo próprios, fora da estrutura da
4
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 61.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
Administração Pública, o que nos levaria à conclusão ilógica de que existiriam órgãos
executivos, legislativos, judiciais e governamentais.
A importância dessa discussão está relacionada, em grande parte, à busca pela
definição do regime jurídico a ser aplicado aos diversos atos praticados pelo Estado,
regime a ser utilizado pelo Poder Judiciário para verificar a legitimidade do ato. Desse
modo, se algum ato tradicionalmente apresentado como governamental se insere
no âmbito do processo legislativo, ele é ato legislativo e será regulado pelas normas
constitucionais e pelos regimentos das respectivas Casas Legislativas concernentes ao
processo legislativo; se praticado por órgão judicial com base em direito Processual,
será ato judicial. Caso contrário, o ato é administrativo, e será regido por norma ou
princípio do direito Administrativo de estatura constitucional, legal ou infralegal.
não se pode aceitar que o fato de o ato ser disciplinado por norma de estatura
constitucional e de essas normas conferirem às autoridades que o praticam ampla
margem discricionária de decisão possa justificar a criação de categoria de ato estranho à teoria da separação dos poderes do estado e, mais grave ainda, de ato imune ao
controle judicial.
o ato por meio do qual o Presidente da república encaminha projeto de lei ao
Congresso nacional, dentro desta perspectiva, é ato legislativo e deve ser disciplinado
com base nas normas pertinentes ao processo legislativo. Pergunta-se: caso o projeto de
lei trate de matéria cuja iniciativa seja estranha às atribuições do Presidente da república, é necessário que o projeto seja convertido em lei para que somente então possa
ser questionada a validade do ato inicialmente praticado? É evidente que este projeto
será examinado pelas Comissões da Câmara dos deputados e do senado Federal que
podem rejeitá-lo sob argumento de inconstitucionalidade, exames mais políticos que
técnicos. o que nos resta saber é se o ato de apresentação do projeto de lei poderia ter
sua validade questionada judicialmente, antes mesmo de sua aprovação, ou independentemente desta.
demonstrados o interesse de agir, a legitimidade do autor da ação e a lesão ou
ameaça de lesão que o ato possa provocar, aplica-se o princípio da inafastabilidade da
apreciação judicial (CF, art. 5º, XXXv), de modo a que se possa examinar a legitimidade
deste ato independentemente de sua estatura constitucional ou da liberdade de que se
valeu a autoridade para praticá-lo. Caso seja proposta a ação, e, no seu curso, o projeto
de lei seja rejeitado, a ação simplesmente perderia seu objeto.
5.2.7 Atos normativos
trata-se de mais um dos inúmeros aspectos históricos em relação aos quais a
doutrina jamais se pôs de acordo: os atos normativos são atos administrativos?
Algumas distinções podem ser identificadas entre os atos praticados pela Administração Pública que objetivam regular uma situação concreta, específica, e aqueles
em que a Administração Pública busca regular determinada situação em abstrato,
definindo as soluções ou a solução a ser adotada pela própria Administração Pública
em eventuais situações futuras.
evidentemente que ao nos reportamos aos atos abstratos, incluímos qualquer
proposição emanada da Administração Pública que tenha por objetivo regular ou disciplinar com caráter geral ou abstrato, e não apenas os atos normativos editados pelo
Presidente da república a título de regulamentação de lei.
199
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
200
Algumas distinções podem ser observadas entre os atos de efeito concreto e os
atos abstratos ou de caráter normativo praticados pelo estado:
1. os atos normativos editados pela Administração Pública podem ser objeto
de ações direta de inconstitucionalidade e de ações declaratórias de constitucionalidade; o que não vale para os atos de efeito concreto;
2. os atos abstratos, ainda que tenham gerado direito adquirido para seus
destinatários, podem ser revogados pelo poder público, desde que sejam
preservadas as situações constituídas; os atos de efeito concreto que tenham
gerado direito adquirido tornam-se irrevogáveis;
3. não cabe mandado de segurança contra o ato abstrato. somente os atos concretos podem ser diretamente atacados pela via do mandamus e, reconhecida
a sua ilegitimidade, será ele extinto do mundo jurídico; no caso de se tratar
de ato abstrato, questionada a sua legitimidade ou a de seus efeitos, a consequente declaração jurisdicional de ilegitimidade somente afeta e afasta do
mundo jurídico os efeitos do ato abstrato, e não o próprio ato abstrato que
somente será extinto após a sua revogação pelo poder público ou eventual
declaração de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes.
A questão consiste em saber se a existência dessas distinções justifica a exclusão
dos atos normativos ou abstratos do conceito de ato administrativo.
os dois atos — o abstrato e o de efeito concreto — têm em comum o fato de que
emanam de autoridades administrativas, de que são disciplinados pelo direito Administrativo e de que são praticados com o objetivo de dar ou de permitir a execução da
competência ou atribuição conferida pela lei ou por dispositivo constitucional a essa
autoridade ou a quem lhe seja hierarquicamente subordinado.
maria sylvia Zanella di Pietro5 exclui do âmbito do ato administrativo os atos
normativos ao propor a seguinte definição para o primeiro: “declaração do Estado ou
de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei,
sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”. em
sentido contrário, Celso Antônio Bandeira de mello6 ao conceituar ato administrativo
como “declaração do estado, no exercício de prerrogativas públicas, manifestada
mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento,
e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional” adota concepção ampla
do ato administrativo e inclui o ato normativo.
diante da divergência doutrinária, preferimos a concepção ampla de ato administrativo, e incluímos como tal os atos normativos ou abstratos emanados do estado
no exercício de sua função executiva. Adotamos essa solução não por mero capricho,
mas porque o regime jurídico dos atos administrativos de efeito concreto e dos atos
administrativos abstratos é o mesmo. As pequenas distinções indicadas entre essas
duas espécies justificam apenas a criação de classificação dos atos administrativos de
modo a considerar as particularidades existentes entre uma e outra categoria, mas não
a exclusão dos atos abstratos do âmbito do conceito de ato administrativo.
5
6
di Pietro. Direito administrativo, p. 188.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 352.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
5.2.8 Controle jurisdicional
os conceitos de ato administrativo apresentados pelos ilustres autores maria
sylvia Zanella di Pietro e Celso Antônio Bandeira de mello fazem menção expressa à
sua sujeição ao controle jurisdicional.
este aspecto, de que todos os atos administrativos se sujeitam ao controle judicial,
parece-nos indiscutível. não são, todavia, apenas os atos administrativos que se sujeitam ao controle judicial. todo e qualquer ato, emane ou não do estado, que ameace ou
provoque lesão a direito, está sujeito ao controle judicial por disposição constitucional
expressa (art. 5º, XXXv). desse modo, ainda que concordemos com os ilustres autores
no sentido de que todo ato administrativo está sujeito a controle judicial, esta observação é desnecessária para a elaboração do conceito de ato administrativo. Ademais, a
sujeição ao controle judicial não é elemento necessário à formação do ato administrativo,
mas consequência deste. ou seja, o ato administrativo não existe porque está sujeito ao
controle judicial, mas dado que exista, se sujeita a esse controle.
5.2.9 Conceito de ato administrativo
o leitor deve ter percebido que não nos apraz apresentar conceitos jurídicos. Ao
invés, preferimos descrever os fenômenos objeto de nossos estudos, cientes de que a
correta descrição do fenômeno ou do instituto estudado é mais proveitosa ou útil do
que qualquer conceito a ser formulado.
A importância do tema tratado força-nos a apresentar um conceito de ato administrativo — o que fazemos a muito contragosto.
Ato administrativo é toda declaração unilateral de vontade do Estado, ou de quem tenha
recebido delegação deste, excetuadas aquelas provenientes do exercício das funções judicial ou
legislativa, regida por norma de Direito Administrativo.
A exigência de que o ato tenha que ser regido por norma de direito Administrativo para ser reputado administrativo somente se justifica em face da possibilidade
de pessoas de direito Privado praticarem atos administrativos. em relação às pessoas
de direito Público, a referência à sujeição do ato ao direito Administrativo é totalmente
desnecessária. Quando definimos o âmbito de aplicação do Direito Administrativo
(Capítulo 2), verificamos que ele se aplica a todas as atividades estatais, ressalvadas
aquelas relacionadas ao exercício das funções legislativa ou judicial. Assim, em relação
às pessoas de Direito Público, definir ato administrativo como sendo aquele sujeito ao
direito Administrativo seria mero pleonasmo haja vista um estar diretamente ligado
ao outro: ato administrativo é aquele sujeito ao direito Administrativo; e direito
Administrativo é aquele que regula os atos relacionados à atividade administrativa
do estado — que a rigor compreende toda e qualquer atividade estatal, ressalvadas as
atividades legislativa ou judicial.
5.3 Perfeição, validade e eficácia do ato administrativo
etapa importante do estudo do ato administrativo corresponde ao exame de três
aspectos do ato administrativo: a perfeição, a validade e a eficácia.
A perfeição, distintamente do que pode indicar, no direito Administrativo é apresentada como sinônimo de existência. Ato perfeito não é aquele que se conforme com
201
202
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o ordenamento jurídico, mas aquele que existe, aquele que se formou ou que passou
por todas as etapas necessárias à sua existência. Assim, dentro da classificação dos atos
administrativos quanto à sua formação, os atos complexos, por exemplo, são aqueles
que somente se tornam perfeitos — ou seja, que se formam — quando houver a conjugação da manifestação de vontade de órgãos distintos de modo a formar um só ato.
Ato administrativo que não tenha sido publicado, por exemplo, quando a lei
houver expressamente exigido essa forma de divulgação, é ato perfeito? se ele passou
por todas as etapas necessárias à sua formação, o que não inclui a publicidade do ato,
ele é perfeito. A publicidade a ser dada ao ato não é etapa necessária à formação do
ato, mas para sua eficácia.
É importante identificar a perfeição do ato porque somente então ele existe no
mundo jurídico. Antes disso, não se pode sequer ser questionada a sua validade, dado
que o ato sequer existe. tomemos o exemplo do decreto, cuja formação requer a manifestação de vontade do Presidente da república e do ministro de estado competente.
Quando este último se manifesta e assina o decreto, sem que este tenha sido assinado
pelo Presidente da república, não existe ato administrativo. o decreto não se formou, de
modo que alguém que pretenda questionar sua validade somente poderá fazê-lo quando
o ato se formar, vale dizer, somente após a assinatura do Presidente da república, salvo
se as circunstâncias do caso concreto já estiverem a ameaçar direito, hipótese em que
poderá ser proposta ação judicial preventiva contra a ameaça existente.
A eficácia do ato está ligada à sua aptidão para produzir ou gerar efeitos. Como
manifestação ou declaração de vontade da Administração Pública, todo ato administrativo tem objetivo determinado. não existe ato administrativo sem motivo ou sem
objetivo. A eficácia examina os efeitos do ato. A este aspecto, Hely Lopes Meireles
acrescentou a exequibilidade como a eficácia imediata. Nesse sentido, ato eficaz é aquele
que possui aptidão para produzir efeitos; ato exequível, o que produz efeitos ou que está
a produzir efeitos.
Apresentado o ato eficaz, devemos igualmente mencionar o ato consumado, ou
exaurido, como aquele que já produziu todos os efeitos. Aquele do qual não se pode
esperar qualquer novo efeito.
essas distinções têm importância prática. A revogação do ato administrativo, por
exemplo, pressupõe que ele seja eficaz. Conforme será examinado ainda neste capítulo, a
revogação, a rigor, somente impede a produção de novos efeitos do ato, daí por que ela
é apresentada com eficácia ex nunc. dado que a revogação somente impede a produção
de novos efeitos, e que o ato exaurido é aquele que já produziu todos os efeitos que
dele se poderia esperar, a conclusão lógica, que independe de qualquer norma jurídica
expressa, é de que o ato exaurido não pode ser revogado.
o último dos três importantes aspectos que ora examinamos é a validade, ou legitimidade. este aspecto se relaciona à necessidade de adequação do ato ao ordenamento
jurídico, entendido como o conjunto formado por todas as normas que compõem o
sistema jurídico vigente em determinado estado, decorram essas normas de regras ou
de princípios. os termos validade e legitimidade, em direito Administrativo, são apresentados como sinônimos e, portanto, um pode ser utilizado em substituição ao outro
sem qualquer dificuldade. Distinto se apresenta o termo legalidade. Este normalmente é
tido como o mero cumprimento da lei. desse modo, o que é legal não necessariamente é
legítimo ou válido. solução que observe as estritas exigências da lei, mas que viole outro
princípio da Administração Pública pode ser legal, mas não será válida ou legítima.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
A discussão acerca do que é válido ou legítimo é da mais alta importância para
o direito. isto se deve ao fato de que ao Judiciário somente é dado controlar a atividade
administrativa do estado quanto à sua validade ou legitimidade. A consequência desta
discussão está no fato de que se determinado aspecto do exame da atividade administrativa não for considerado sob a ótica da validade, este aspecto não pode ser objeto
de exame judicial.
A questão da eficiência, por exemplo, se for considerada estranha à validade do ato
não pode ser objeto de controle judicial. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a eficiência
é elemento ligado ao juízo de oportunidade ou de conveniência do administrador e
somente poderia ser objeto de controle por parte dos tribunais de Contas (CF, art. 70).
Discordamos, com a devida vênia, dessa conclusão. A eficiência, assim como
todos os demais princípios que compõem o ordenamento jurídico, deve ser observada
e cumprida sob pena de o ato que a viole ser inválido.
Do ponto de vista do controle da legitimidade, a eficiência não existe para indicar a melhor solução, a mais eficiente dentre todas as soluções possíveis. Certo é que
a escolha de uma solução dentre as inúmeras soluções de eficiência possíveis se insere
no âmbito da discricionariedade administrativa. no entanto, sob a ótica do controle
(Judicial ou Externo), a eficiência é violada e, portanto, a solução administrativa adotada
é inválida quando ela for absurdamente ineficaz.
O objetivo do controle judicial da eficiência não é a punição do gestor, papel a ser
exercido pelos tribunais de Contas. seu propósito é afastar do mundo jurídico a solução
absurdamente ineficiente por meio da declaração de nulidade do ato ou dos atos que
a tenham gerado.
5.4 requisitos de validade do ato administrativo
A indicação dos requisitos de validade dos atos administrativos, no Brasil, é
feita de modo expresso pela Lei nº 4.717/65, que disciplina a ação popular. o art. 2º
da lei indica os atos nulos e menciona os elementos ou requisitos de validade do ato
administrativo: competência, finalidade, forma, motivo e objeto.
5.4.1 Competência
o primeiro dos requisitos de validade dos atos administrativos — igualmente
denominado por parte de nossa doutrina de sujeito — tem relação direta com o princípio
da legalidade administrativa. Falar em competência como requisito de validade do ato
administrativo importa em exigir que a autoridade, órgão ou entidade administrativa
que pratique o ato tenha recebido da lei a atribuição necessária à sua prática.
diversamente do direito Privado, em que o elemento de validade do ato jurídico está relacionado à sua capacidade jurídica plena, esta, no direito Administrativo
é pressuposta. A fim de verificar a validade de determinado ato administrativo, não
se vai perquirir sobre a capacidade jurídica do agente que o praticou, mas sobre a sua
competência para praticá-lo.
Aspecto curioso da competência diz respeito ao exame do denominado servidor
ou funcionário de fato e de saber se a Administração Pública responde pelos atos que
este pratique.
203
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
204
As normas administrativas estabelecem mecanismos necessários à investidura
dos agentes públicos em seus cargos, empregos ou funções públicas. evidente que se
particular se dirige a uma repartição pública e é atendido por pessoa que atua como
agente público, a Administração Pública será chamada a responder por seus atos. se,
todavia, pessoa não investida em função pública, sem que exista qualquer situação
criada, permitida ou consentida pela Administração Pública, pratica ato em nome
desta, não existe qualquer ato administrativo. Teríamos aqui a figura do ato administrativo inexistente — expressão contraditória, porém amplamente utilizada no direito
Administrativo.
A fim de saber se a atuação do funcionário de fato enseja responsabilidade para
a Administração Pública é necessário proceder ao exame das circunstâncias em que o
ato foi praticado, verificar se havia a aparência de se tratar de ato administrativo, e se
essa aparência foi ensejada por ação ou omissão imputável à Administração Pública.
se, todavia, o fraudador cria situação da qual a Administração não tinha conhecimento
ou em relação à qual não poderia tomar qualquer providência para impedir, ou seja, se
o fraudador cria toda uma ilusão para levar o particular a crer que se trata de agente
público e lhe causa prejuízo, a Administração Pública não pode ser responsabilizada
por estes atos que não são atos administrativos ou, se preferir, são atos administrativos
inexistentes.
de se observar que se para a prática do ato pelo funcionário de fato tiver havido
conivência da Administração o ato deve ser em regra anulado, não obstante devam
ser observados os direitos do destinatário — seja no sentido de serem eventualmente
preservadas as situações constituídas, seja no sentido de se indenizar este destinatário,
caso ele não tenha contribuído para a ilegalidade.
outro importante aspecto do estudo da competência como requisito de validade
do ato administrativo diz respeito à possibilidade de delegação.
na delegação de competência, é transferida apenas a incumbência para a prestação
do serviço. A titularidade da atribuição é mantida com o delegante, de modo que, a
qualquer tempo, poderá a atribuição ser avocada.
A delegação, ao menos enquanto não revogada ou avocada, impede o delegante
de exercer a atribuição delegada.7 delegada determinada competência, salvo disposição expressa em sentido contrário no termo de delegação, permanece o delegante
impedido de exercer a sua atribuição, de modo que ato praticado pelo delegante, sem
que tenha ocorrido a prévia revogação da delegação, pode ser anulado em razão da
falta de competência.
A delegação de competência pode ser formalizada por meio de ato unilateral
quando houver hierarquia entre o delegante e o delegado, e se torna efetiva independentemente do consentimento ou concordância do órgão ou autoridade delegada. Caso
não haja hierarquia, a delegação somente será efetiva se houver concordância por parte
do delegado. exemplo: é por meio de convênio que os detrAns estaduais, que são
autarquias, podem delegar competência às Polícias militares estaduais — órgãos da
Administração direta dos estados — para o exercício das funções de polícia de trânsito
de veículos, inclusive para a aplicação de multas.
7
em sentido contrário, considerando que o “ato de delegação não retira a competência da autoridade delegante, que
continua competente cumulativamente com a autoridade delegada”, vide CArvALHo FiLHo. Manual de direito
administrativo, 14. ed., p. 96.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
A Lei nº 9.784/99 que regula o processo administrativo no âmbito da união estabelece
regras a serem observadas nas delegações de competência, como, por exemplo, a necessidade de publicação em meio oficial do ato de delegação, assim como da sua respectiva
revogação (art. 14).
Alguma dificuldade de interpretação tem surgido em função da redação do art. 11
da citada lei, que afirma ser a competência irrenunciável.
A renúncia de competência não se confunde com a delegação, assim como a
delegação não importa em renúncia. esta ocorre quando o órgão ou a autoridade se
recusa a exercer atribuição que lhe tenha sido conferida por lei. A delegação pressupõe,
ao contrário, que a autoridade ou órgão delegante se reconheça competente e transfira
o exercício da atribuição a outro órgão ou autoridade.
Aspecto ainda mais controvertido diz respeito à necessidade de expressa autorização legal para a delegação. Conforme mencionado no art. 11 (“a competência é
irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria,
salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos” – grifos nossos), a delegação
somente é legítima se houver lei que expressamente a autorize. o art. 12, caput (“um
órgão administrativo e seu titular poderão, se não houver impedimento legal, delegar (...)”),
ao contrário, admite a delegação se não houver impedimento legal. Afinal, a delegação
é legítima se lei expressamente a autorizar ou se não houver impedimento em lei?
A interpretação dos dois dispositivos leva à conclusão de que deve ser dada
prevalência à regra contida no art. 12, no sentido de que, se não houver impedimento
legal, a delegação é lícita.8 isto se deve, em primeiro lugar, ao fato de que o art. 11 da Lei
nº 9.784/99 trata de renúncia de competência, e não de delegação, ao passo que o art. 12
é específico para a delegação. Em segundo lugar, o art. 13 indica situações genéricas em
que a delegação é defesa. ora, se a delegação de competência somente fosse possível
nas hipóteses expressamente previstas em lei, qual seria o sentido do art. 13 que indica
situações de proibição de delegação (“Art. 13. não podem ser objeto de delegação: i - a
edição de atos de caráter normativo; ii - a decisão de recursos administrativos; iii - as
matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade”)?
em face do exposto, parece-nos que ressalvadas as hipóteses expressamente
previstas em lei específica ou indicadas no art. 13 acima citado, a competência pode
ser delegada:
1. Quando for conveniente, em razão de circunstâncias de índole técnica, social,
econômica, jurídica ou territorial (art. 12);
2. Ainda que não haja relação de hierarquia; e
3. desde que não haja impedimento legal.
o art. 15 da Lei do Processo Administrativo admite “em caráter excepcional e
por motivos relevantes devidamente justificados a avocação temporária de competência
atribuída a órgão hierarquicamente inferior”. Conforme visto, a delegação pode ocorrer
8
no mesmo sentido, maria sylvia Zanella di Pietro ensina que embora o art. 11 “(...) dê a impressão de que a
delegação somente é possível quando a lei a permita, na realidade, o poder de delegar é inerente à organização
hierárquica que caracteriza a Administração Pública (...). A regra é a possibilidade de delegação; a exceção é a
impossibilidade, que só ocorre quando se trate de competência outorgada com exclusividade a determinado
órgão” (Direito administrativo, p. 197). em sentido contrário, entendendo que a competência só pode ser delegada se as normas regulamentares da Administração permitirem, “porque ela é elemento vinculado de todo
ato administrativo, e, pois, insuscetível de ser fixada ou alterada ao nuto do administrador e ao arrepio da lei”
(meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 134).
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Curso de direito AdministrAtivo
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em relações hierarquizadas ou não. na hipótese de haver hierarquia, em que a delegação
se formaliza por meio de ato unilateral, é possível a avocação temporária. esta não é
admitida quando não houver hierarquia em função de que somente se for modificado
o instrumento utilizado para delegar poderá ser permitido ao delegante praticar o ato
delegado — salvo se o termo da delegação houver adotado solução diversa. nesta última hipótese, o fato de alguns detrAns delegarem atribuições às Polícias militares
para o exercício de atividades de polícia de trânsito não impede que os agentes dessas
autarquias apliquem multas de trânsito. deve-se, em qualquer caso, examinar o termo
de delegação e verificar as atribuições delegadas bem como aquelas que podem ser
exercidas pelo delegante independentemente de avocação ou revogação.
Importante aspecto da delegação consiste na definição da competência para julgar
mandado de segurança contra ato praticado no exercício de competência delegada. Caso
o ato praticado pela autoridade delegante esteja sujeito a foro especial, esse foro se
mantém ainda que o ato seja praticado pela autoridade delegada? Caso o Presidente da
república delegue competência a ministro de estado, por exemplo, e este pratique ato
no exercício desta competência, eventual mandado de segurança deve ser julgado pelo
supremo tribunal Federal (competente para julgar mandado de segurança contra ato do
Presidente – CF, art. 102, i, “d”) ou pelo superior tribunal de Justiça (competente para
julgar mandado de segurança contra ato de ministro de estado – CF, art. 105, i, “b”)?
essa matéria é tratada pela súmula stF nº 510, que dispõe no sentido de que,
“praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ela cabe
o mandado de segurança ou mandado judicial”.
na mesma linha da citada súmula, o stF ao julgar o ms nº 24.732-mC/dF voltou
a enfrentar a questão e a reafirmar a tese de que o foro da autoridade delegante, ou para
julgamento de ato contra esta autoridade, não se transmite à autoridade delegada.9 A
resposta para a situação acima apresentada — em que se examina se o mandado de
segurança contra ato praticado por ministro de estado, no exercício de competência
delegada pelo Presidente da república, deve ser julgado pelo stF ou pelo stJ — é no
sentido de se afirmar a competência deste último, ou seja, do STJ.
5.4.2 Finalidade
no âmbito da Administração Pública, não existe atuação ou atividade vãs, praticadas ao acaso. Todos os atos administrativos têm fim específico, imediato, direto.
Este fim imediato buscado pelo poder público deve-se conformar com o fim mediato
de todas as atividades estatais: o interesse público. Temos, portanto, duas finalidades
nos atos administrativos: uma mediata e outra imediata. A finalidade mediata corresponde à necessidade de que o interesse público seja realizado; a finalidade imediata, ao
resultado material ou jurídico que o administrador busca alcançar com a prática do ato.
Quando se examina a legitimidade dos atos administrativos sob a ótica deste
requisito de validade deve-se verificar a conformação dos fins imediatos buscados pelos
9
em igual sentido, stF: “i. mandado de segurança: praticado o ato questionado mediante delegação de competência, é o delegado, não o delegante, a autoridade coatora. ii. Ato administrativo: delegação de competência: sua
revogação não infirma a validade da delegação, nem transfere ao delegante a responsabilidade pelo ato praticado na vigência
dela” (ms nº 23.411-Agr/dF, Pleno. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 22.11.2000. DJ, 09 fev. 2001, grifos nossos).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
administradores com os fins mediatos do Estado. Nesse sentido, a finalidade, como
requisito de validade do ato administrativo, exige que eles se conformem ao interesse
público, ou seja, que os fins buscados pelo administrador estejam em conformidade
com aqueles indicados na Constituição Federal e nas leis.
A exigência de conformação dos atos administrativos ao interesse público não
importa em que interesses privados não possam ser realizados no âmbito da Administração Pública, mas que a realização dos interesses privados pressupõe a sua adequação
ao interesse público.
o processo para a realização do interesse público deve ser examinado em três
planos sequenciais, conforme examinamos no Capítulo 3:
1. Plano constitucional – ou dos direitos humanos;
2. Plano legal; e
3. Plano econômico – ou da economicidade.
o primeiro plano de realização do interesse público reside na busca pela efetividade
dos direitos humanos, sobretudo em relação ao princípio da valorização da dignidade da
pessoa humana. esse é o ponto de partida para o exame do interesse público.
o segundo plano em que o interesse público deve-se realizar é no nível legal. A
lei, nos regimes democráticos, é a expressão de vontade da maioria representada nos
parlamentos. Ainda que se verifique certa perda na importância da lei na formação do
regime administrativo, perda que se pode atribuir em grande parte à maior importância
que se tem atribuído aos textos constitucionais, ela continua a desempenhar função
da mais alta relevância no sistema jurídico administrativo. A função da lei, em várias
situações, é a de fixar limites ou de definir a forma ou o procedimento a ser observado
pelo administrador na utilização de prerrogativas definidas diretamente pela Constituição Federal.
tomemos, aqui, a súmula nº 473 do stF, que reconheceu à Administração Pública
o poder de anular ou revogar seus atos, independentemente de intervenção judicial.
o poder da Administração de anular seus próprios atos deve estar sujeito a
limites. Antes mesmo da edição da Lei nº 9.784/99 já era reclamada a fixação de limite
temporal para a Administração poder exercer o poder de anular atos administrativos,
haja vista ser incompatível com o princípio da segurança jurídica a possibilidade de o
poder público exercer essa prerrogativa a qualquer tempo. Coube à lei a fixação do limite
de cinco anos para o exercício da prerrogativa pública – art. 54 da citada Lei nº 9.784/99.
em matéria de desapropriação, a prerrogativa da Administração de invocar
necessidade ou utilidade pública ou interesse social e privar alguém de sua propriedade
decorre do texto constitucional (art. 5º, XXiv). os procedimentos a serem observados
pela Administração se encontram definidos em lei.
Lei pode criar prerrogativa para o poder público, independentemente de previsão
constitucional expressa. Isso se verifica, por exemplo, no poder da Administração de
unilateralmente rescindir seus contratos (Lei nº 8.666/93, artigos 58, ii, 77, 78 e 79, i).
A grande maioria das prerrogativas necessárias à realização dos interesses públicos decorre, todavia, de maneira explícita (poder de desapropriar, por exemplo) ou
implícita (presunção de legitimidade dos atos administrativos), da própria Constituição
Federal, cabendo à lei papel secundário no processo de criação das prerrogativas públicas, de regulação do exercício das prerrogativas decorrentes do texto constitucional.
não se pode admitir a criação de prerrogativas públicas por meio de instrumentos
infralegais. Aceitamos que decretos, resoluções ou instruções normativas sejam fonte
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Curso de direito AdministrAtivo
do direito Administrativo. Falta-lhes, todavia, a legitimidade constitucional para criar
qualquer prerrogativa pública (CF, art. 5º, ii).
deve-se, aqui, ter muito cuidado para que o legislador, a pretexto de conferir
discricionariedade, ou por meio de legislação em branco, não transfira ao Executivo
o poder de criar prerrogativas públicas. Qualquer prerrogativa pública que importe
em exercício de supremacia sobre particulares somente é legítima se tiver sido criada
e definida na Constituição Federal ou em lei. A esta cumpre, inclusive, a fixação dos
limites para o exercício da prerrogativa.
o terceiro plano para a realização do interesse público corresponde à obtenção de
vantagens para a Administração Pública.
A finalidade de qualquer órgão ou entidade da Administração não é, jamais, a
simples obtenção de lucros ou de vantagens econômicas, regra igualmente aplicável
às empresas estatais exploradoras de atividades econômicas, que, nos termos da Constituição Federal (art. 173, caput), podem ser criadas como instrumento necessário aos
imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo.
não se deve enxergar no dispositivo constitucional vedação à obtenção de lucro.
Não é o fim lucrativo, no entanto, que justifica ou legitima a criação de entidades pelo
poder público para explorar atividades empresariais. o Banco do Brasil, por exemplo,
pode agir de modo a obter lucro. ele não existe, todavia, para lucrar, mas para realizar
outras finalidades relevantes definidas pela Constituição Federal.
impõe-se aos gestores públicos a obrigação de considerar a atuação das unidades
administrativas sob a ótica da economicidade, que compreende três diferentes aspectos:
1. A eficiência;
2. A eficácia; e
3. A efetividade.
o exame da eficiência obriga-nos a considerar a relação custo benefício da atuação administrativa. deve o agente público considerar o volume de insumo necessário
à produção do resultado que se busca. o controle de eficácia dá relevo aos resultados.
Busca-se verificar apenas se a atividade administrativa produz os resultados esperados.
O exame da eficácia restringe-se tão somente aos resultados da atuação administrativa.
em relação à efetividade, busca-se verificar se os resultados programados ou planejados
para determinada atividade administrativa foram alcançados.
tomemos o exemplo de certo programa de governo que tenha por objetivo
criar emprego para jovens. O exame da eficiência requer a ponderação de quantos
recursos serão necessários para produzir determinados resultados (Quantos recursos
são necessários para alcançar os objetivos pretendidos?). A eficácia do programa pode
ser medida examinando os resultados do programa (Quantos empregos foram efetivamente criados?). e o controle de efetividade examina se os resultados projetados
ou planejados foram alcançados (os empregos que o programa buscava criar foram
efetivamente criados?).
Atuação vantajosa para a Administração é aquela que considera os diversos
aspectos da economicidade na Administração Pública. Planejamento, definição de estratégias, fixação de metas, avaliação de metas, controle de custos, controle de resultados são os
aspectos a serem considerados para que seja realizado o terceiro plano do interesse público.
É evidente que os agentes devem buscar contratações mais vantajosas — o que não
significa, necessariamente, contratações mais baratas —, por exemplo. A redução dos
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
custos é apenas uma das tarefas a ser cumprida pelos administradores para a realização
do terceiro plano do interesse público.
Para a anulação em razão do desvio de finalidade não se faz necessária a presença de
qualquer outro elemento invalidante, como a violação dos princípios da moralidade ou da impessoalidade; basta que a finalidade do ato seja incompatível com o interesse público. desse modo,
a falta de conformidade do fim imediato do ato com qualquer dos níveis de realização
do interesse público deve importar em sua anulação.
5.4.3 Forma
o terceiro requisito de validade dos atos administrativos está relacionado à forma
como o ato se manifesta, ao modo como ele se exterioriza.
É conveniente, antes de avançarmos no estudo da forma, apresentar a distinção
entre alguns conceitos que lhe são próximos, como o de procedimento e o de processo
administrativo.
Processo é o conjunto de atos ordenados e tendentes a determinado resultado.
Fala-se assim em processo legislativo como o conjunto de atos ordenados e tendentes
à deliberação e eventual aprovação de leis, emendas constitucionais, decretos legislativos; em processo judicial, como o conjunto de atos tendentes a uma manifestação a
ser produzida por órgão integrante do Poder Judiciário e disciplinada por norma de
Direito Processual; e, finalmente, em processo administrativo, como o conjunto de
atos ordenados entre si — no sentido de que um ato justifica e permite a prática do ato
seguinte — tendentes à prática do ato administrativo ou à celebração de um contrato.
Nesse sentido, a licitação — não obstante a lei a ela se refira como ato formal
— é um processo administrativo. A Administração Pública publica o edital, habilita
os licitantes, julga as propostas, adjudica o objeto em favor do vencedor do certame,
homologa a licitação, convoca o adjudicatário para assinar o contrato. trata-se de atos
distintos, todos, todavia, interligados e vinculados a um fim específico: a escolha da
empresa a ser contratada pelo poder público. o mesmo se pode dizer, por exemplo, do
concurso público para provimento de cargos ou do processo disciplinar.
Procedimento é o rito a ser observado na tramitação do processo. em que ordem os
atos devem ser praticados, quem possui competência para praticar cada ato, quais atos
do processo podem ser objeto de recurso, dentro de que prazo o ato deve ser praticado,
por exemplo, são perguntas a serem respondidas pelo procedimento.
A possibilidade de o Poder Judiciário rever os atos administrativos justificou o
florescimento de teorias que negavam a existência do processo administrativo, de sorte
que este se restringiria a mero “procedimento”.
É certo que os atos administrativos podem ser revistos pelo Poder Judiciário. A
chamada coisa julgada administrativa (examinada no Capítulo 19, referente ao processo
administrativo) opera efeitos perante a Administração Pública, impedindo, em alguns
casos, que a própria Administração revise o seu ato. A coisa julgada administrativa
não produz efeito perante o Poder Judiciário. A possibilidade de revisão ou de controle
judicial dos atos administrativos em nada justifica, todavia, a negação da existência do
processo administrativo ou a sua redução à categoria de “mero” procedimento. no
âmbito do direito Administrativo, existem o processo e o procedimento administrativos
como conceitos distintos e complementares, no sentido de que o procedimento define
o rito a ser observado pelo processo.
209
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
210
A licitação é um processo administrativo. As modalidades de licitação (concorrência,
tomada de preços, pregão etc.) definem o procedimento a ser observado pela licitação.
A forma diz respeito a cada ato e à materialização destes atos. saber como o
ato deve-se exteriorizar ou manifestar é questão que decorre do exame da forma do ato
administrativo.
No Direito Privado, a forma, salvo exceções previstas em lei, é definida conforme
a exclusiva conveniência das partes interessadas no ato. se determinado contrato de
compra e venda vai ser formalizado por escrito por meio de escritura pública, por escritura particular, ou se ele será um contrato verbal é problema afeto aos contratantes. no
âmbito privado, cabe às partes adotar qualquer uma das formas possíveis conforme sua
conveniência.
no âmbito da Administração Pública, o direito Administrativo adota solução
inversa. A regra é a imposição de forma previamente determinada. no setor privado,
a prática de atos independe de qualquer previsão legal e, ainda que haja norma legal
para regular determinadas situações, o que se verifica com os contratos típicos, a lei
apresenta regras dispositivas aplicáveis somente na eventualidade de as partes não
terem definido solução diversa.
A técnica do direito Privado vale igualmente para questões relacionadas à forma
dos atos jurídicos, o que implica dizer que cabe ao arbítrio das partes envolvidas nos
negócios privados a adoção da forma que melhor lhes convenha. É o princípio da forma
livre (art. 107 do Código Civil).
no direito Administrativo, ao contrário, a prática de atos administrativos pressupõe que lei tenha conferido ao agente, órgão ou entidade a necessária competência.
Ademais, essas normas normalmente indicam a forma a ser obrigatoriamente adotada
para cada ato.
A Lei de Licitações pode ser utilizada mais uma vez como exemplo. em seu art. 60,
caput, é exigida a forma escrita para os contratos administrativos,10 e no parágrafo único
do mesmo artigo é dito que é nulo o contrato verbal salvo as pequenas compras. vê-se
que a regra é a lei estabelecer a forma; e a exceção é a liberdade de forma. Assim, se
a Administração celebra contrato de pequeno valor, o que nos termos da lei é aquele
de até r$4.000,00 (quatro mil reais), e desde que dele não resultem obrigações futuras,
pode ser utilizada a forma escrita ou verbal. neste caso, a lei confere liberdade ao administrador para adotar forma escrita ou, preferindo, para mantê-lo sob forma verbal.11
A Lei nº 9.784/99, art. 22, caput, e §1º, trata do tema nos seguintes termos:
Art. 22. os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão
quando a lei expressamente a exigir.
§1º os atos do processo devem ser produzidos por escrito, em vernáculo, com a data e o
local de sua realização e a assinatura do responsável.
10
11
A Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), em seu art. 62, §3º, i, determina que os contratos regidos pelo direito Privado celebrados pela Administração Pública devem observar algumas regras, dentre elas a contida no art. 60.
desse modo, qualquer contrato celebrado pela Administração Pública, disciplinado ou não pela Lei nº 8.666/93,
deve ser formalizado nos termos do art. 60 desta mesma lei.
Por razões meramente terminológicas, entendemos que essa liberdade de escolha de forma não se insere no
âmbito do conceito de discricionariedade. esta, a discricionariedade, corresponde à liberdade conferida ao administrador para definir o conteúdo ou objeto do ato em razão dos motivos ou das circunstâncias de fatos ocorridas.
A liberdade para a adoção de forma, que depende igualmente de lei, não se circunscreve, portanto, no âmbito do
conceito da discricionariedade administrativa.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
A redação do caput do artigo 22 acima transcrito pode levar a crer que o direito
Administrativo adota solução idêntica à do direito Privado, vale dizer, a liberdade de
formas. essa liberdade é desmentida pelo §1º do mesmo art. 22, que impõe a forma
escrita aos atos do processo administrativo.
o caput do art. 22 mencionado deve ser interpretado como vedação ao formalismo exagerado, aquele que confere maior importância às formas ou formalismos
do processo do que aos resultados visados. Pequenas falhas formais que não tenham
causado prejuízo à Administração, ao interessado ou a terceiros devem ser superadas,
desde que os objetivos visados pelo ato sejam alcançados.
devemos evitar que ocorra com o direito Administrativo e com o processo
administrativo o que se verificou com os processos judiciais, em que, salvo exceções,
os responsáveis por sua aplicação dão às formas processuais importância maior que
ao direito material. no processo judicial, esquecem seus aplicadores do objetivo do
processo e passam a discutir tão somente os incidentes processuais. A importância
desmedida que os órgãos judiciais conferem aos formalismos processuais em detrimento do direito material é certamente uma das causas da eternização dos processos
e, portanto, da baixa efetividade da atuação judicial em nosso País.
devemos valorizar as formas na medida em que elas viabilizam a realização de
direitos mais elevados, relacionados ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla
defesa, à publicidade etc., em que funcionam como meio para a obtenção dos fins objetivados pela Administração Pública e pelo interesse público, e não como um fim em si.
A forma, como requisito do ato administrativo, objetiva, portanto, verificar se
o ato se exterioriza ou se materializa nos termos exigidos pelo ordenamento jurídico.
Aspecto curioso dessa discussão consiste em saber se a falta de motivação constitui vício de forma. Parece-nos que sim. na medida em que o ato deve-se exteriorizar
(ou formalizar) de modo a permitir que nele seja identificada a circunstância de fato
que autorizou a sua prática — como consequência do princípio da motivação — e essa
informação não esteja contida nessa manifestação exterior do ato, estaremos diante de
vício de forma. A falta de motivação do ato deve importar em sua anulação em razão
de constituir vício de forma.12
5.4.4 motivo
da mesma forma como os atos administrativos são praticados visando à realização de fim específico, determinado, eles requerem a existência de um motivo. Não
existe ato administrativo sem motivo ou sem finalidade determinados, reais, efetivos.
o exame do motivo como requisito de validade do ato administrativo se traduz como
adequação dos fatos ao objeto do ato.
Por motivo do ato administrativo temos de entender as circunstâncias de fato e de direito
que levam o administrador a praticar determinado ato.
o motivo para a concessão de aposentadoria compulsória é o implemento da
idade; para a concessão de aposentadoria voluntária, a existência de requerimento por
12
sobre o tema, José dos santos Carvalho Filho adverte que, “quando a motivação do ato for obrigatória, porque
assim o impõe a lei, o vício nele existente pode situar-se no elemento forma, desde que haja descompasso entre o
que a lei exige e o que consta do ato” (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 104).
211
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
212
parte de servidor que preenche os requisitos legais; de licença para servidor tratar de
interesse pessoal, a existência de requerimento de servidor que preencha as exigências
legais; de licença maternidade, o nascimento ou adoção da filha ou filho da servidora;
de autorização para porte de armas, requerimento por parte de quem preenche os
requisitos legais.
A apresentação dos exemplos acima permite demonstrar a importância do estudo
do motivo não apenas como requisito necessário à validade do ato, mas igualmente
para a compreensão e distinção entre ato discricionário e ato vinculado.
A lei confere aos diversos órgãos, entidades ou agentes públicos competência
para a prática dos atos administrativos necessários ao cumprimento das atribuições
ou objetivos que justificaram a criação do órgão ou entidade pública. Esses atos serão
praticados pelo administrador em função da ocorrência de determinados motivos. Assim,
se servidora tiver um filho — ou se o adotar — terá direito à licença maternidade. O
nascimento ou a adoção são motivos para a prática do ato. diante desses motivos, e dos
termos dispostos em lei, poder-se-ia argumentar que o administrador concede a licença
se quiser, vale dizer, se julgar oportuno ou conveniente concedê-la?
Conclui-se que a concessão de licença maternidade à servidora é ato vinculado
porque o seu objeto, isto é, o conteúdo da manifestação de vontade a ser produzida pela
Administração Pública, é definido pela lei e sua prática independente de qualquer juízo
de conveniência ou de oportunidade por parte do administrador público.
Verificado o nascimento ou a adoção, não pode a Administração decidir não
conceder a licença, ou concedê-la em oportunidade que lhe pareça mais adequada.
diante do motivo indicado, o conteúdo do ato decorre da lei sem que o administrador
disponha de qualquer liberdade para interferir nesse conteúdo.
tomemos outro exemplo: concessão de licença a servidor para tratar de interesse
pessoal.13 nos termos da Lei nº 8.112/90, somente será concedida a licença se o servidor
não estiver em estágio probatório e se ele requerer a licença. A rigor, o motivo para a
concessão dessa licença é o requerimento do servidor que atenda ao requisito legal.
Assim sendo, se determinado servidor que preenche o requisito legal requerer a concessão da licença, a lei confere à Administração a liberdade para definir o conteúdo do
ato em função de razões de conveniência e de oportunidade, o que importa em dizer
que a licença será concedida se a Administração Pública julgar conveniente, e que ela
será concedida no momento em que a Administração julgar mais oportuno.
A primeira conclusão acerca do que acima se expôs é a de que a prática de atos
discricionários decorre da lei. É a lei que confere à Administração Pública a competência para conceder licença para servidor tratar de interesse pessoal. É equivocada a
conclusão de que a discricionariedade decorre da ausência de lei. É a lei que confere ao
administrador a prerrogativa para, diante de determinados motivos, praticar certos atos
e para definir o conteúdo destes, em razão do juízo de conveniência ou de oportunidade.
A distinção entre ato vinculado e discricionário reside na relação entre motivo
e objeto. essa distinção deve ser examinada em função do que dispõe a lei que regula
a prática do ato. se diante de certo motivo a lei indica o objeto a ser realizado e não
13
A Lei nº 8.112/90 dispõe nos seguintes termos: “Art. 91. A critério da Administração, poderão ser concedidas ao
servidor ocupante de cargo efetivo, desde que não esteja em estágio probatório, licenças para o trato de assuntos
particulares pelo prazo de até três anos consecutivos, sem remuneração. Parágrafo único. A licença poderá ser
interrompida, a qualquer tempo, a pedido do servidor ou no interesse do serviço”.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
permite que razões de conveniência ou de oportunidade administrativas interfiram na
prática do ato, o ato é vinculado. Ao contrário, se diante de determinadas circunstâncias, lei permite que o administrador defina o conteúdo ou objeto do ato em razão do
seu juízo de conveniência ou de oportunidade, estaremos diante do ato discricionário.
A fim de que se possa afirmar que determinado ato é vinculado ou discricionário,
o ponto de partida é a identificação do motivo desse ato. Assim, qual o motivo para a
concessão de aposentadoria compulsória a servidor público? resposta: ele completar 70
anos. diante deste motivo, indaga-se: dispõe a Administração Pública de liberdade para,
considerando inconveniente ou inoportuna a prática do ato, deixar de conceder referida
aposentadoria compulsória, ou concedê-la em momento mais oportuno? É evidente que
a resposta será negativa, o que nos leva à conclusão de que se trata de ato vinculado.
no caso de aposentadoria voluntária, qual seria o motivo para a concessão?
resposta: o requerimento do servidor que atenda às exigências legais e constitucionais. Caso o servidor preencha todos os requisitos — de idade, de tempo de serviço,
de tempo no cargo, de tempo na carreira etc. — e requeira sua aposentadoria, diante
do que dispõe a lei, poderia a Administração Pública deixar de concedê-la por razão
de conveniência? Poderia a Administração argumentar que a falta de pessoal tornaria
inconveniente a concessão da aposentadoria e, portanto, negar o requerimento? diante
de nova resposta negativa, a conclusão é de que a concessão de aposentadoria voluntária
se trata igualmente de ato vinculado.
A autorização para porte de arma pode ser utilizada como exemplo de ato
discricionário. ela está prevista em lei que estabelece que somente será concedida a
quem a requerer e preencher os requisitos legais. trata-se de ato discricionário porque
indivíduo que preencha todos os requisitos legais pode requerer a autorização e ter o
pedido negado por razões de conveniência.
outra indagação: a concessão de férias a servidores públicos é ato discricionário
ou vinculado?
o motivo para a concessão de férias é o exercício do cargo pelo período de um
ano. dado esse motivo, a Administração está obrigada a conceder férias ao servidor.
A lei confere à Administração, todavia, a competência para indicar o momento mais
oportuno para o gozo das férias pelo servidor. trata-se, portanto, de ato discricionário.
É evidente que a Administração está obrigada a conceder férias ao servidor, o
que não ocorre com a licença para tratar de interesse pessoal. A liberdade conferida
pela lei para que a Administração defina o momento mais oportuno para o gozo das
férias leva-nos a concluir que se trata de ato discricionário. A liberdade, isto é, a discricionariedade atribuída pela lei à Administração, neste caso, é mais restrita ou reduzida
do que a verificada em outras situações, como é o caso da licença para servidor tratar
de interesse pessoal. nesta, a Administração Pública concede se julgar conveniente e
no momento que considere mais oportuno. no caso de férias, a Administração deve
concedê-las, mas somente no momento que julgue mais oportuno.
A concessão de férias a servidores públicos é exemplo interessante, porque nos
permite concluir que a liberdade que a lei confere à Administração Pública para a prática dos diversos atos administrativos varia de caso a caso. Há hipóteses em que essa
liberdade é ampla; em que a lei sequer indica o motivo necessário para a prática do
ato, de que seria exemplo a exoneração de cargo em comissão. em outras hipóteses,
a lei confere liberdade para o administrador utilizar razões de conveniência ou de
213
214
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
oportunidade para definir apenas alguns aspectos do conteúdo do ato, restando outros
aspectos vinculados ao que define a lei.
A distinção entre atos administrativos discricionários e vinculados é de grande
importância no estudo do Direito Administrativo. Essa distinção define, dentre outros
aspectos, a postura a ser adotada pelo Poder Judiciário por ocasião do exercício do
controle de legalidade do ato. Assim, diante da omissão do administrador na prática do
ato vinculado, o juiz deve expedir determinação em que indica o conteúdo do ato a
ser praticado. na eventualidade de omissão na prática de ato administrativo discricionário, confirmada a mora administrativa, a determinação judicial a ser expedida
deve restringir-se a fixar prazo para que o ato seja praticado, sem que, todavia, possa
o Judiciário definir o objeto do ato administrativo.
idêntico raciocínio deve ser adotado na hipótese de anulação do ato. A anulação
do ato discricionário não permite que o juiz indique o conteúdo do novo ato a ser praticado. Por exemplo: se for anulado ato por meio do qual se aplicou ao servidor público
a pena disciplinar de demissão, em razão da falta de razoabilidade na aplicação dessa
sanção, o juiz não pode indicar que a pena correta a ser aplicada seja a de suspensão
ou de advertência. Verificada a ilegalidade na aplicação da pena de demissão, deve o
juiz restringir sua atuação ao exercício do controle de legalidade, anulando o ato por
meio do qual foi aplicada a pena de demissão, devendo ainda informar sua decisão à
Administração a fim de que esta decida acerca da nova pena a ser aplicada.
Sempre que a lei conferir ao administrador a liberdade para definir o conteúdo
do ato com base em seu juízo de conveniência ou de oportunidade, estaremos diante de
ato discricionário. nesta hipótese, o conteúdo somente pode ser preenchido pelo administrador público, nunca pelo juiz. isso explica por que nas situações em que o Poder
Judiciário anula ato discricionário, a providência judicial não pode permitir que o juiz
defina o conteúdo do novo ato, papel a ser exercido exclusivamente pelo administrador.
importante aspecto sobre o tema em exame diz respeito à distinção entre motivo
e motivação. Verificamos que não obstante esses conceitos estejam intrinsecamente
ligados, um não pode ser confundido com o outro (vide Capítulo 3).
A invalidação do ato em razão de vício de motivo ocorre quando o ato tiver sido
praticado sem a efetiva ocorrência dos fatos ou das circunstâncias exigidas pela lei
(exemplo: se tiver sido concedida aposentadoria voluntária sem que o servidor tenha
requerido a sua aposentação). na falta de motivação, ou seja, quando o administrador
pratica o ato sem indicar essas circunstâncias ou situações de fato que justificam a prática
do ato, estaremos diante de vício de forma.
5.4.5 objeto
o objeto, ou conteúdo, do ato administrativo corresponde à própria manifestação
unilateral de vontade a ser produzida pela Administração Pública.
o objeto do ato corresponde ao próprio ato administrativo, ao conteúdo da
manifestação de vontade produzida pela Administração Pública. Assim, por exemplo,
o objeto do ato administrativo que nomeia candidato aprovado em concurso público
para provimento de cargo é a própria nomeação, do ato que concede aposentadoria é
a própria concessão de aposentadoria.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
5.5 Atributos do ato administrativo
5.5.1 Atividade administrativa e prerrogativas públicas
toda e qualquer atividade do estado deve necessariamente estar voltada à consecução do interesse público. Ainda que o poder público não seja o único legitimado à
realização desses interesses, ele é indiscutivelmente o que está mais bem aparelhado para
o seu exercício. Aliás, a própria existência do estado moderno é reconhecida não como
um fim em si, mas como instrumento necessário à realização desses interesses gerais,
dentre os quais se pode dar destaque especial à concreção dos direitos fundamentais.
A fim de permitir a realização dos fins que justificam a própria existência do
estado, o direito Administrativo irá conferir à Administração Pública uma série de
prerrogativas.
A atuação do Estado tem-se diversificado cada vez mais. Convênios, contratos
de gestão, concessões e permissões de serviço público, termos de parceria são apenas
alguns dos instrumentos de que o estado moderno tem-se utilizado para permitir o
exercício das suas funções e para a realização dos seus objetivos. A forma mais comum
de o estado exercer sua função administrativa continua a ser, todavia, a prática de atos
unilaterais de vontade traduzidos por meio dos atos administrativos.
dado que os atos administrativos são o meio mais comum de que dispõe a
Administração Pública para exercer suas atividades e de cumprir suas atribuições
constitucionais e legais, é necessário que o ordenamento jurídico confira a esses atos
determinados atributos que facilitem o exercício dessas atividades estatais.
se alguém invade e ocupa propriedade privada, ressalvada a hipótese do desforço
imediato, prevista no §1º do art. 1210 do Código Civil, o proprietário terá que obter
ordem judicial para poder promover a desocupação da área. Agora, se alguém invade e
monta acampamento em praça pública, a Administração, para promover a desocupação
da área, não necessitará de ordem judicial; poderá fazê-lo por seus próprios meios.
Com o objetivo de tornar mais ágil a atuação estatal, que deve estar voltada para
a realização dos interesses mais relevantes da sociedade, o ordenamento confere aos
atos administrativos atributos.
os atributos dos atos administrativos normalmente apresentados são: a presunção de legitimidade, a auto-executoriedade e a imperatividade. Além desses, outros
atributos têm sido apontados, como a exigibilidade e a tipicidade.
em relação à tipicidade, algumas restrições devem ser apresentadas ao seu enquadramento como atributo do ato administrativo.
É certo que a Administração Pública não pode praticar atos não previstos em
lei, não disciplinados pela lei. A partir da aplicação do princípio da legalidade à Administração e, portanto, a seus atos, é de se concluir que somente os atos previstos em lei
podem ser praticados pela Administração Pública (concessão de alvará, autorização
para uso de bem público, nomeação de servidor, designação de servidor para exercer
função de confiança, demissão de servidor, homologação de licitação, adjudicação de
licitação, aplicação de sanções administrativas, concessão de aposentadoria, concessão
de licenças etc.).
Aplica-se aos atos administrativos, é certo, o conceito de tipicidade, que pode
ser traduzido como limitação imposta pelo princípio da legalidade à prática dos atos
administrativos. discordamos, todavia, que essa característica seja considerada atributo
do ato administrativo.
215
216
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Por atributo devemos entender uma prerrogativa que o ordenamento jurídicoadministrativo confere à Administração Pública. A tipicidade, ainda que seja característica
dos atos administrativos, não importa na criação de prerrogativa, mas, ao contrário, em
uma limitação à atuação da Administração Pública na medida em ela somente poderá
praticar os atos previstos em lei. trata-se de verdadeira garantia para os particulares que
não serão surpreendidos com a prática de ato não disciplinado ou não regulado por lei. isto
não se traduz, todavia, em qualquer prerrogativa para a Administração, diferentemente
do que se verifica com os atributos da presunção de legitimidade, da auto-executoriedade
e da imperatividade. desse modo, não inserimos a tipicidade dentre os atributos do ato
administrativo.
5.5.2 Presunção de legitimidade
A importância da presunção de legitimidade está ligada à consequência que dela
decorre. Quando se afirma que o ato administrativo se presume legítimo, conclui-se
que tanto os administradores públicos quanto os particulares afetados pelo ato devem
dar-lhe cumprimento. todos estão obrigados a cumprir os atos administrativos, porque
eles se presumem legítimos, legitimidade que se mantém até que seja afastada por
decisão judicial ou pela própria Administração Pública.
Caso determinado ato que afete um particular tenha sido praticado com excesso
de poder ou com desvio de finalidade, o particular — ou qualquer administrador público
— não pode simplesmente se recusar a dar-lhe cumprimento sob o fundamento de
que o ato é abusivo e, portanto, nulo e insusceptível de gerar efeitos jurídicos válidos.
o reconhecimento da falta de validade do ato pressupõe manifestação formal
da Administração Pública, daquela de onde o ato foi emanado, ou do Poder Judiciário.
Verifica-se que a presunção que favorece os atos administrativos conferindo-lhes o
atributo da legitimidade é uma presunção relativa, iures tantum.
todos os atos administrativos gozam desse atributo. Há uma única situação no
direito Administrativo em que a consequência desse atributo é afastada, isto é, em que
o destinatário do ato administrativo não necessita obter declaração de ilegitimidade do
ato para estar autorizado a negar-lhe cumprimento: trata-se de ordem manifestamente
ilegal dada a servidor público.
uma das obrigações dos servidores públicos decorrente do poder hierárquico
é a de cumprir as ordens de seus superiores, “salvo quando manifestamente ilegais”
(Lei nº 8.112/90, art. 116, iv). na hipótese de se tratar de ordem manifestamente ilegal — não que ela se presuma ilegítima — o servidor tem não apenas o direito, mas a
obrigação de se recusar a dar-lhe cumprimento independentemente de precisar obter
declaração da Administração Pública ou do Poder Judiciário quanto à ilegalidade do ato
administrativo. se ao servidor público é dada ordem para ser descortês com os particulares que busquem informações junto à sua unidade administrativa, este servidor não
precisa propor ação judicial ou protocolar petição perante sua unidade administrativa
solicitando a declaração de ilegalidade do ato. em face da evidente ilegalidade do ato,
o servidor deve simplesmente recusar-se a cumprir a ordem e, se a cumprir, isto é, se
for descortês, deverá ser chamado a responder, juntamente com aquele que lhe deu a
ordem, a processo administrativo disciplinar por violação do seu dever funcional de
tratar as pessoas com urbanidade (Lei nº 8.112/90, art. 116, Xi).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
Desse modo, a fim de não sofrer as consequências decorrentes da prática de
atos abusivos emanados da Administração Pública, devem os destinatários desses
atos buscarem, em primeiro lugar, a própria Administração Pública, solicitando-lhe a
declaração de ilegitimidade do ato, e diante de qualquer lesão ou de ameaça de lesão
a direito socorrer-se dos mecanismos de controle judicial possíveis.
A presunção de legitimidade é atributo do próprio ato. vimos, porém, que os atos
administrativos somente podem ser praticados se tiver ocorrido o motivo previsto em
lei e necessário à sua prática. se a Administração concede aposentadoria compulsória
a determinado servidor é porque ele completou 70 anos. esse é o motivo necessário à
prática do ato. nesse sentido, foi desenvolvida teoria que, além de presumir a legitimidade do ato, presume igualmente verídicos os motivos alegados pela Administração
e que justificaram a sua prática. Se a Administração Pública concede aposentadoria
compulsória, presume-se como verdade que o servidor completou a idade exigida. A
esse aspecto do atributo da presunção de legitimidade do ato se denomina presunção
de veracidade dos motivos invocados pela Administração Pública.
trata-se de presunção igualmente relativa. se alguém questiona a validade de
certo ato sob o argumento da inexistência ou da ilegitimidade dos motivos de que se
serviu a Administração para praticá-lo, esse indivíduo terá o ônus de demonstrar, na
via administrativa ou na via judicial, que o motivo não existe ou que não é válido.
A aplicação de multa de trânsito pode ser utilizada como exemplo. se indivíduo
questiona multa de trânsito aplicada pelo detrAn por excesso de velocidade, o ônus de
que o veículo não estava em velocidade irregular cabe ao particular, e não ao detrAn.
se este último observou os procedimentos necessários à aplicação da multa, ocorrerá
inversão do ônus da prova de modo que cabe ao particular demonstrar que o motivo
alegado pelo poder público não é verdadeiro ou que não é válido.
5.5.3 Auto-executoriedade
o segundo atributo do ato administrativo, a auto-executoriedade, ainda que não
se confunda com a presunção de legitimidade, dela decorre diretamente.
A auto-executoriedade pode ser traduzida como a prerrogativa de que dispõe a
Administração Pública de executar seus atos sem que para tanto necessite de ordem
ou de autorização judicial.14
dado que os atos administrativos são legítimos por presunção, legitimidade
que somente pode ser afastada se houver declaração da Administração Pública ou do
Poder Judiciário, qual o sentido ou a necessidade de se obter declaração judicial para
permitir a execução desses atos? De nada serviria afirmar que os atos administrativos
são legítimos se a cada momento ou para dar executoriedade a cada ato a Administração
Pública necessitasse obter autorização judicial.
14
sobre o tema, stJ: “Administrativo – recurso especial – Fechamento de prédio irregular – Auto-executoriedade
do ato administrativo – desnecessidade de invocar a tutela judicial. 1. A Administração Pública, pela qualidade do
ato administrativo que a permite compelir materialmente o administrado ao seu cumprimento, carece de interesse
de procurar as vias judiciais para fazer valer sua vontade, pois pode por seus próprios meios providenciar o fechamento de
estabelecimento irregular. 2. recurso especial improvido” (resp nº 696.993-sP, 2ª turma. rel. min. eliana Calmon.
Julg. 6.12.2005. DJ, 19 dez 2005, grifos nossos).
217
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Curso de direito AdministrAtivo
218
o exemplo apresentado anteriormente relativo à prerrogativa de que dispõe a
Administração Pública para desocupar praça pública que tenha sido invadida ilustra
bem a auto-executoriedade.
evidentemente esse poder da Administração de agir sem que tenha que obter
ordem judicial encontra limites. tomemos outro exemplo: se órgãos responsáveis pela
vigilância sanitária interditam estabelecimento empresarial, não há necessidade de
ordem judicial para a interdição. se, ao invés de interditar, que seria sanção mais drástica, é simplesmente aplicada multa aos particulares, não poderão os responsáveis por
este órgão executar a multa pela via administrativa. Caso os devedores não paguem
voluntariamente a sanção aplicada, haverá necessidade de inscrição dos devedores em
dívida ativa (Lei nº 6.830/80), e a execução da multa deverá ser feita pela via judicial.
somente servidor do Poder Judiciário, em cumprimento de decisão judicial, poderá
penhorar os bens necessários ao pagamento da dívida.
um dos limites à auto-executoriedade da atividade administrativa é o patrimônio
do particular. Para satisfazer seus créditos, decorram de multas ou de prejuízos causados
ao erário, não pode a Administração Pública invadir o patrimônio dos particulares e,
contra a vontade destes, privar-lhes da propriedade dos seus bens ou dos salários, o
que costuma ocorrer com servidores públicos.
A jurisprudência do stF reconhece a existência de limites ao poder da Administração Pública de dar executoriedade a seus próprios atos.
Ao julgar o mandado de segurança nº 24.182/dF,15 proposto por servidor da
Câmara dos deputados contra este órgão legislativo, decidiu o stF que, não obstante
demonstrada a responsabilidade do servidor que deu causa a prejuízo à Câmara dos
deputados, não poderia este órgão, sem o consentimento do servidor, promover a indenização do prejuízo por meio de processo administrativo que resultaria em desconto
em contracheque, sendo necessária a propositura de ação judicial.
de forma aparentemente contraditória, em outra oportunidade, o mesmo stF,
ao julgar o ms nº 24.544/dF,16 indeferiu pedido de impetrante contra ato emanado do
tribunal de Contas da união que determinara à Câmara dos deputados o desconto da
dívida na remuneração do responsável, sendo dispensável a sua manifestação de vontade, haja vista a autorização emanada do tCu ter decorrido de processo de tomada de
15
16
stF: “mandado de segurança. 2. desaparecimento de talonários de tíquetes-alimentação. Condenação do impetrante, em processo administrativo disciplinar, de ressarcimento ao erário do valor do prejuízo apurado. 3. decisão
da mesa diretora da Câmara dos deputados de desconto mensais, em folha de pagamento, sem a autorização do
servidor. 4. responsabilidade civil de servidor. Hipótese em que não se aplica a auto-executoriedade do procedimento administrativo. 5. A Administração acha-se restrita às sanções de natureza administrativa, não podendo
alcançar, compulsoriamente, as conseqüências civis e penais. 6. À falta de prévia aquiescência do servidor, cabe
à Administração propor ação de indenização para a confirmação, ou não, do ressarcimento apurado na esfera
administrativa. 7. o art. 46 da Lei nº 8.112, de 1990, dispõe que o desconto em folha de pagamento é a forma
como poderá ocorrer o pagamento pelo servidor, após sua concordância com a conclusão administrativa ou a
condenação judicial transitada em julgado. 8. mandado de segurança deferido” (ms nº 24.182-dF, Pleno. rel. min.
maurício Corrêa. Julg. 12.2.2004. DJ, 03 set. 2004).
stF: “Legitimidade – mandado de segurança – Ato do tribunal de Contas da união. imposição de valor a ser
ressarcido aos cofres públicos e previsão de desconto, considerado o que percebido pelo servidor, geram a legitimidade do Tribunal de Contas da União para figurar no mandado de segurança como órgão coator. Proventos – Desconto – Leis nº 8.112/90 e 8.443/92. decorrendo o desconto de norma legal, despicienda é a vontade do servidor, não
se aplicando, ante o disposto no artigo 45 da Lei nº 8.112/90 e no inciso i do artigo 28 da Lei nº 8.443/92, a faculdade
de que cuida o artigo 46 do primeiro diploma legal — desconto a pedido do interessado” (ms nº 24.544-dF, Pleno.
rel. min. marco Aurélio. Julg. 4.8.2004. DJ, 04 mar. 2005).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
contas especial no qual foi observado o direito de ampla defesa, bem como cumprida a
exigência de notificação prévia ao impetrante do desconto, de acordo com o art. 46, da
Lei nº 8.112/90.
Ao considerar legítimo o desconto em folha promovido pela Câmara dos deputados decorrente de processo conduzido pelo tCu, e ilegítimo o mesmo desconto
quando oriundo de processo administrativo conduzido no âmbito da própria Câmara
dos deputados, o stF deixa inequívoco o seu entendimento acerca da existência de
limites para a atuação judicial, todavia, não define precisamente quais são esses limites,
questão ainda em aberto em nosso ordenamento jurídico.
em relação a esse tema, muito se discute acerca da legitimidade de medidas criadas pela Administração Pública com o intuito de forçar os particulares a quitarem suas
dívidas. exemplo desse tipo de medida seria a impossibilidade de se promover junto
aos detrAns a transferência da propriedade de veículos caso haja débitos pendentes.
A realidade consiste em que a execução judicial desses débitos é absolutamente
impraticável. o valor da grande maioria dos débitos para com o erário, ao menos no
caso de débitos junto aos órgãos de controle de trânsito de veículos, é muito inferior ao
custo da execução judicial requerida. ou seja, ainda que a execução seja bem-sucedida,
o que é improvável, o valor obtido não cobre as despesas necessárias à execução judicial. A dúvida consiste em saber se são legítimas as medidas administrativas — de que
seriam também exemplos a inclusão do nome do devedor em listas de mal pagadores, a
impossibilidade de abertura ou de movimentação de conta corrente bancária, bloqueio
de CPF — que objetivem criar embaraço aos particulares a fim de forçar-lhes a pagar
seus débitos.
desde que essas medidas estejam previstas em lei, observem os princípios do
contraditório e da ampla defesa, quer em relação à constituição do débito, quer em
relação à própria imposição das medidas administrativas tendentes a forçar o particular a quitar seu débito, e desde que observem parâmetros de razoabilidade, é de se
reconhecer que se trata de medidas legítimas.
observados esses parâmetros, não há fundamento jurídico para negar legitimidade à
adoção, em lei, de medidas administrativas tendentes a forçar os devedores a pagar suas dívidas.
5.5.4 imperatividade
A imperatividade, como atributo do ato administrativo, pode ser examinada sob
dois aspectos distintos.
em primeiro lugar, ela pode ser considerada fundamento para a criação de
obrigações para os particulares. no direito Privado, os atos unilaterais de vontade são
considerados fonte de obrigação somente para quem produz a manifestação de vontade.
É inconcebível, no âmbito das relações privadas, que particular pratique ato ou produza
manifestação unilateral de vontade e que esse ato crie obrigação para terceiro. no âmbito do direito Administrativo, ao contrário, a imperatividade, que constitui mais um
atributo dos atos administrativos, permite que a Administração Pública pratique o ato
e que a obrigação surgida seja imputada a terceiro. exemplo dessa forma de conceber
a imperatividade se verifica com a emissão de certidão de dívida ativa. A emissão de
dívida ativa independe do consentimento ou pode ser praticada contra a vontade do
particular. Praticado o ato unilateral pela Administração, a obrigação criada é do particular, e não da Administração.
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Não se quer com este exemplo afirmar que o ato administrativo somente crie
obrigação para os particulares. É evidente que haverá inúmeras situações em que o ato
irá criar obrigação para a própria Administração que o pratica.
Há circunstâncias que legitimam a Administração Pública a ir além da simples
aplicação de multa ou da imposição de obrigação de efetuar determinado pagamento
aos particulares.
Há hipóteses em que a Administração dispõe da prerrogativa de exigir do particular uma conduta, uma obrigação de fazer. A essa prerrogativa da Administração de
exigir do particular uma atuação positiva, alguns autores denominam exigibilidade.17
uma vistoria realizada pelo Corpo de Bombeiros, por exemplo, pode resultar em
determinação dirigida ao proprietário de um cinema ou de uma casa de espetáculos
para a construção de saída de emergência, para a colocação de novos extintores de
incêndio ou para a demolição de algumas paredes.
A essa prerrogativa da Administração, que vai além da simples imposição de obrigação
de natureza pecuniária e que se manifesta por meio de atos administrativos, denomina-se exigibilidade. esse novo atributo, a rigor, nada mais é do que uma manifestação do atributo
da imperatividade.
A exigibilidade não é estranha à imperatividade. É tão somente uma manifestação especial deste último atributo. Por meio da imperatividade a Administração
Pública dispõe da prerrogativa de impor unilateralmente obrigações aos particulares;
se esta obrigação possui natureza de fazer e exige dos particulares uma atuação positiva, teríamos uma manifestação especial do atributo da imperatividade que pode ser
denominada de exigibilidade.
outro enfoque possível da imperatividade diz respeito ao uso da força, inclusive
policial, para dar executoriedade aos atos administrativos.
no item anterior vimos que a auto-executoriedade está ligada à capacidade da
Administração de agir e de executar seus atos independentemente de autorização judicial. um dos exemplos que apresentamos da auto-executoriedade foi a interdição de
estabelecimento empresarial pela vigilância sanitária. ora, de que adiantaria admitir
a auto-executoriedade se diante de qualquer ameaça de reação por parte do particular
a atividade administrativa tivesse que ser suspensa? A fim de permitir que a Administração possa executar seus próprios atos sem que necessite obter ordem judicial, é
necessário que os atos administrativos possuam outro atributo, a imperatividade. o
uso da força, inclusive física, em inúmeras situações mostra-se como o meio necessário
à execução de diversas atividades administrativas.
servindo-nos uma vez mais do exemplo da interdição do estabelecimento, vemos
que os atributos do ato administrativo são complementares: dado que o ato de interdição
presume-se legítimo (presunção de legitimidade), a Administração não necessita obter
ordem judicial para agir (auto-executoriedade); se para dar executoriedade ao ato for
necessária a utilização de força policial (imperatividade), é legítimo esse uso, desde que
observados parâmetros de proporcionalidade (ou razoabilidade).
17
Para maria sylvia Zanella di Pietro, a diferença entre exigibilidade e executoriedade “está apenas no meio coercitivo; no caso da exigibilidade, a Administração se utiliza de meios indiretos de coerção, como a multa ou outras
penalidades administrativas impostas em caso de descumprimento do ato. na executoriedade, a Administração
emprega meios diretos de coerção, compelindo materialmente o administrado a fazer alguma coisa, utilizando-se
inclusiva da força” (Direito administrativo, p. 192). em sentido contrário, José dos santos Carvalho Filho coloca a
exigibilidade como consectário natural da imperatividade (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 108).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
em inúmeras situações, o exercício das atividades administrativas vê-se contraposto
por interesses dos particulares que se manifestam por meio de atos contrários ao direito e
à ordem jurídica. uma violenta manifestação pública pode ser apresentada como exemplo de situação em que o uso da força pela Administração se faz necessário. É evidente
que o uso da força pela Administração deve ser limitado e condicionado à necessidade
de realização do interesse público. o uso da força que extrapole os limites que a situação concreta requer deve ser punido judicial e administrativamente. se para reprimir a
manifestação de rua a polícia faz uso de armas de fogo e atira nos manifestantes, ainda
que a situação justifique o uso da força, a falta de proporcionalidade entre a ação dos
manifestantes e a reação da polícia pode resultar no enquadramento da conduta como
crime de homicídio ou de lesões corporais, conforme o caso. se, todavia, for demonstrado
que a manifestação era conduzida por pessoas armadas, que punham em risco a vida ou
a integridade física de outros particulares ou dos agentes públicos, a reação da polícia
deve ser proporcional e o uso de armas pode ser legítimo. vê-se que o reconhecimento
da proporcionalidade e, portanto, da legitimidade do uso da imperatividade que pode
traduzir-se pelo uso da força na atuação da Administração Pública, depende do exame
das circunstâncias do caso concreto.
5.6 Classificação dos atos administrativos
Os atos administrativos admitem inúmeras classificações. Apresentaremos aqui
algumas das diferentes categorias de atos administrativos, cientes de que a apresentação
dessas categorias presta-se não apenas para fins acadêmicos ou didáticos, mas que o
conhecimento das particularidades relativas a cada espécie é de fundamental importância para o bom andamento da atividade administrativa e para a abordagem a ser dada
pelo Poder Judiciário na eventualidade do ato administrativo ser objeto de impugnação.
5.6.1 Classificação do ato administrativo quanto ao destinatário
Sob a ótica da identificação das pessoas a serem alcançadas pelos efeitos do ato
administrativo, estes podem ser divididos em:
- Ato individual; e
- Ato geral.
o ato individual não é aquele que alcança apenas uma pessoa; é aquele cujos
efeitos afetam pessoa ou pessoas previamente identificadas.
Se pelo exame do ato for possível identificar o rol de pessoas afetadas pelo ato,
estaremos diante do ato individual. Ao contrário, se o exame do ato não permite identificar quem são os afetados, tratar-se-á de ato administrativo geral.
o edital de concurso para provimento de cargos públicos, por exemplo, é ato
geral. O exame do ato não permite identificar os que são por ele alcançados. A nomeação de candidato aprovado em concurso público, ao contrário, permite pelo exame do
próprio ato identificar o interessado, aquele afetado pela prática do ato.
o primeiro aspecto relevante da distinção entre ato individual e ato geral diz respeito à anulação: em ambos os casos devem ser assegurados o contraditório e a ampla defesa?
o contraditório e a ampla defesa, conforme previstos na Constituição Federal
(art. 5º, Lv), são de observância obrigatória em processos administrativos e judiciais.
trata-se de garantia básica decorrente do conceito de estado democrático e de direito.
221
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
222
A jurisprudência do stF é farta em relação à necessidade de observância desses
princípios não apenas em processos disciplinares ou tendentes à aplicação de sanções,
mas igualmente em relação a processos administrativos cujo objetivo seja a anulação
de ato administrativo.18
A Lei nº 9.784/99, em seu art. 26, dispõe sobre a necessidade de que os interessados em decisões a serem proferidas em processos administrativos sejam intimados
“para ciência de decisão ou a efetivação de diligências” e em seu art. 28 é definido que
“devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em
imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades
e os atos de outra natureza, de seu interesse”.
vê-se que a jurisprudência do stF e a legislação pertinente ao processo administrativo são uníssonas em relação à necessidade de ser assegurado contraditório e
ampla defesa aos interessados em processos administrativos, e que se deve entender
por interessado aquele cujos interesses individuais sejam afetados.19
Feitas essas considerações, resta inquestionável que a anulação pela Administração Pública do ato individual, daquele que afete interesse individual, necessita de
prévia observância do contraditório e de ampla defesa. nesta hipótese, quer a ilegalidade seja imputável ao particular, quer seja ela imputável à Administração, devem ser
observados mencionados princípios.
18
19
Cf. stF. ms nº 23.550-dF, Pleno. rel. min. marco Aurélio. rel. p/ acórdão min. sepúlveda Pertence. Julg.
4.4.2001. DJ, 31 out. 2001. A jurisprudência do supremo tribunal Federal em relação à necessidade de observância do contraditório e da ampla defesa em processos encontra-se em constante evolução. Até recentemente — re
nº 213.513-sP, 1ª turma. rel. min. ilmar Galvão. Julg. 8.6.1999. dJ, 24 set. 1999; e re nº 224.283-sP, 1ª turma. rel.
min. ellen Gracie. Julg. 11.9.2001. DJ, 11 out. 2001 —, o entendimento adotado acerca da interpretação do art. 5º,
Lv, da Constituição Federal era no sentido de que a aplicação desse dispositivo “pressupõe litígio ou acusação,
não se aplicando, assim, à espécie, já que se trata de ato de nomeação nulo, passível de revogação pela própria
Administração” (re nº 224.283-sP). Precedente citado: Informativo STF, n. 241.
recente jurisprudência do stF tem adotado nova interpretação do dispositivo constitucional no sentido de que
o contraditório e a ampla defesa devem ser observados em quaisquer processos administrativos tendentes a
afetar interesses individuais, conforme se depreende do julgamento do RE nº 158.543, onde ficou assentado que,
“tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseja a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de legitimidade do
ato administrativo praticado que não pode ser afastada unilateralmente, porque é comum à Administração e ao
particular” (re nº 158.543-rs, 2ª turma. rel. min. marco Aurélio. Julg. 30.8.1994. DJ, 06 out. 1995). no mesmo
sentido, vide ms nº 24.268-ed/mG, Pleno. rel. min. Gilmar mendes. Julg. 3.5.2006. DJ, 09 jun. 2006.
nesse sentido, vide:
stF: “Administrativo. mandado de segurança. transporte coletivo interestadual. Ajuste de itinerário. decreto
nº 952/93. Permissão. nova linha. Art. 175 da Constituição Federal. Anulação de ato administrativo. súmula
473/stF. devido processo legal. não cabe ao Judiciário, em mandado de segurança, reapreciar prova técnica,
complexa, produzida na esfera administrativa, para decidir se, na espécie, houve simples ajuste de itinerário, ou
concessão de nova linha sem o processo licitatório exigido pelo art. 175 da Constituição Federal. no exercício do
poder de autotutela, pode o administrador, de ofício, anular ato considerado ilegal, desde que tenha competência para tanto e conceda oportunidade de defesa à parte interessada. Hipótese em que as contra-razões da recorrente
foram apresentadas a destempo no processo administrativo, inocorrendo descumprimento ao princípio do
devido processo legal. recurso ordinário a que se nega provimento” (rms nº 23.518-dF, 1ª turma. rel. min.
ilmar Galvão. Julg. 12.9.2000. DJ, 10 nov. 2000, grifos nossos).
stF: “recurso extraordinário. Constitucional. Administrativo. Cumulação de cargos. Bloqueio de vencimentos.
defesa prévia. obrigatoriedade. 1. Ato do secretário de saúde do estado do Ceará que determinou o bloqueio
dos vencimentos da recorrida, por entender que ela acumulava ilegalmente dois cargos públicos. 2. A jurisprudência desta Corte sempre reconheceu o poder da Administração rever seus atos para, observada alguma
irregularidade, anulá-los (súmulas stF nº 346 e 473). Essa capacidade, todavia, não pode ser exercida de forma arbitrária, devendo respeitar os ditames constitucionais e garantir aos atingidos a devida defesa. 3. recurso extraordinário
conhecido e improvido” (re nº 292.586-Ce, 2ª turma. rel. min. ellen Gracie. Julg. 15.2.2005. DJ, 04 mar. 2005,
grifos nossos).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
em nenhum precedente enfrentado pelo stF se tratou, todavia, da questão relativa à
anulação de ato geral. A lei que regula o processo administrativo (Lei nº 9.784/99) igualmente
não apresenta qualquer distinção entre ato geral ou ato individual para fins de anulação.
de tudo o que foi exposto, no entanto, não se pode inferir que a anulação do ato
geral necessite do contraditório para a sua validade. se as razões que levam a Administração a anular ato que afete interesses gerais, de pessoas não identificadas, são imputáveis à Administração Pública, não há razões de direito que justifiquem a abertura
de contraditório ou de ampla defesa. se se trata de ato geral, não há, ademais, como
viabilizar a notificação pessoal exigida pela Lei nº 9.784/99 em face da evidente impossibilidade de identificação daqueles a serem afetados pelo ato.
Pode-se concluir, portanto, que se a Administração identificar ilegalidade em
edital publicado para provimento de cargos públicos ou em nomeação de determinado
candidato para cargo público, deverá ela assegurar aos possíveis afetados direito ao
contraditório e à ampla defesa apenas na segunda hipótese. na primeira hipótese, dado
que não se atribui aos particulares a ilegalidade que afeta o ato, não se faz necessário
o contraditório ou a ampla defesa.
A divisão dos atos administrativos em individuais e gerais interessa igualmente
ao exame da possibilidade de revogação do ato.
nos termos da súmula stF nº 473, a revogação dos atos administrativos deve
ocorrer em observância aos direitos adquiridos. Qual a consequência ou o alcance dessa
afirmação? Tanto o ato geral quanto o individual que tenham gerado direito adquirido
se tornam irrevogáveis? A resposta, parece-nos, é negativa.
em relação ao ato individual, aquele que afeta pessoa ou pessoas determinadas, a
aplicação da regra de que a sua revogação não pode ocorrer se houver violação de direitos
adquiridos importa em tornar o ato irrevogável. não há como respeitar ou observar o
direito adquirido decorrente de ato individual com a supressão do ato. A revogação do ato
individual importaria em violação do direito que dele decorreu. exemplo: a investidura
em cargo público. A nomeação de candidato aprovado em concurso público se trata de
ato discricionário. todavia, uma vez empossado em seu cargo, dá-se a investidura e o
servidor passa a ter direito adquirido ao exercício. desse modo, investido o servidor no
cargo, perde a Administração a prerrogativa de revogar o ato de nomeação, haja vista
esta revogação importar em violação do direito adquirido do servidor de exercer as
atividades do cargo.
no caso do ato geral, de uma instrução normativa editada por órgão público, por
exemplo, não obstante possa ser fonte de direitos adquiridos, a Administração pode
revogar ou modificar o ato. Evidente que a revogação do ato geral não poderia retroagir e
afetar direitos adquiridos, mas impediria que outras pessoas viessem a adquirir direitos.
em resumo, o ato individual que tenha gerado direito adquirido se torna irrevogável; o ato geral, não obstante tenha gerado direito adquirido, pode ser revogado,
desde que sejam observados esses direitos.
5.6.2 Classificação do ato administrativo quanto ao alcance
De acordo com esta classificação, os atos podem se dividir em:
- Atos internos; e
- Atos externos.
223
224
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
A classificação dos atos administrativos quanto ao alcance objetiva definir se os
efeitos produzidos pelo ato afetam apenas os que se encontram no âmbito da Administração Pública ou se exploram os limites desta e afetam pessoas estranhas a ela. A
nomeação de candidato aprovado em concurso público, por exemplo, é ato externo
porque afeta pessoa estranha à Administração. uma vez empossado, se esse mesmo
servidor solicita à Administração o reconhecimento de determinada vantagem pessoal,
o ato pelo qual a Administração defere ou nega a solicitação é ato interno.
O interesse prático dessa classificação está ligado à forma como se deve dar
publicidade ao ato.
em observância ao princípio da publicidade, a Administração tem o dever de
divulgar os atos que pratica. A pergunta seguinte consiste em saber como a divulgação
deve ser feita. A publicidade dos atos deve necessariamente ser realizada por meio de
publicação em órgão oficial de divulgação (diário oficial)? Se nem todos os atos devem
ser publicados, quais devem observar essa forma de divulgação?
Em relação à divulgação dos atos, o primeiro passo consiste em verificar se a lei
que regula indica a forma pela qual o ato deve ser divulgado. se a lei indica a forma de
divulgação, que seja observada a lei, independentemente de se tratar de ato interno ou
externo. As modalidades de licitação podem ser utilizadas como exemplo. não obstante
se tratem de atos externos, haja vista afetarem pessoas estranhas à Administração Pública,
a lei define precisamente como deve ser feita a publicidade dos atos convocatórios de
cada uma das modalidades. em relação à concorrência, tomada de preços, leilão e concurso, a Lei nº 8.666/93 (art. 21) determina a publicação de edital em diário oficial e em
jornal de grande circulação. no caso do convite, a lei apenas requer a divulgação de seu
instrumento, que no caso é a carta-convite, mediante “afixação em local apropriado”
(art. 20, III), o que pode ser traduzido pela simples afixação da carta-convite em quadro de
avisos mantido pela Administração para esse fim. Em relação ao pregão, a Lei nº 10.520/02
e o Decreto nº 3.555/00 determinam a sua divulgação obrigatória em diário oficial e pela
internet e, em função do valor do pregão, pode ainda ser obrigatória a sua publicação
em jornal de grande circulação de âmbito local ou de âmbito territorial ou nacional.
vê-se que se a lei indica a forma de publicidade a ser observada pelo ato, basta
seguir o que ela dispõe. todavia, na maioria dos casos, a lei é omissa em relação a como
os atos devem se divulgados. Nesta hipótese, é importante verificar se se trata de ato
interno ou externo. na primeira hipótese, de se tratar de ato interno, não obstante a
publicidade seja obrigatória, não se faz necessária a publicação do ato em órgão oficial.
É necessário que seja dada divulgação suficiente ao ato a fim de que seus destinatários
possam dele tomar conhecimento e adotar as providências cabíveis. A fim de dar publicidade aos atos internos, boa parte dos órgãos públicos cria seus boletins internos, cuja
função é dispensar o envio de todos os seus atos para diários oficiais.
na hipótese de se tratar de ato externo, todavia, salvo se a lei dispuser em sentido
contrário — que ocorreria em situações em que se exija notificação pessoal do interessado
(Lei nº 9.784/99, art. 28), por exemplo — a publicidade do ato deve ser feita mediante
publicação em órgão oficial de divulgação.
5.6.3 Classificação do ato administrativo quanto ao conteúdo
De acordo com este histórico critério de classificação, os atos administrativos
podem ser divididos em:
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
- Atos de império;
- Atos de gestão; e
- Atos de expediente.
Esta classificação desempenhou importante papel na evolução da teoria da responsabilidade civil do estado.
em razão da regra da irresponsabilidade civil do estado adotada pelas monarquias absolutistas, a primeira tentativa de responsabilizar o poder público teve por
fundamento a divisão dos atos administrativos em atos de império e atos de gestão. os
primeiros seriam aqueles praticados pela Administração Pública em posição de supremacia em relação aos particulares; os atos de gestão, os praticados pela Administração
em igualdade de condições com os particulares. essa divisão dos atos permitiu, em
determinado momento, responsabilizar o estado pelos prejuízos causados a particulares
em razão da prática de atos de gestão, restando isento o estado do dever de ressarcir
qualquer prejuízo produzido pela prática de ato de império.
Não obstante sua importância histórica, atualmente essa classificação se mostra
inútil. A rigor, discordamos da própria existência de atos administrativos de gestão.
Conforme já examinamos neste capítulo, ainda que haja situações não reguladas pelo
direito Administrativo, este nunca se afasta totalmente da atividade administrativa
do estado. desse modo, ainda que certos atos praticados pela Administração Pública
possam sofrer regulação pelo direito Privado, em alguma medida, sempre haverá prerrogativas públicas interferindo na atividade administrativa do estado e impedindo que
a Administração Pública atue em igualdade de condições com os particulares.
Ato administrativo é aquele regulado pelo direito Administrativo, e este se
caracteriza por conferir prerrogativas ao poder público. desse modo, a expressão ato
administrativo de império nos parece pleonástica na medida em que todo ato administrativo, por definição, é ato de supremacia. Ato administrativo de gestão, ao contrário, é
uma contradição. se o ato administrativo se caracteriza pela existência de prerrogativas
conferidas à Administração Pública, como se pode admitir ato administrativo de gestão?
o ato de gestão, portanto, não é uma espécie de ato administrativo. As empresas estatais,
por exemplo, que são pessoas de direito Privado, praticam atos de gestão, entendidos
estes como atos de direito Privado e não como atos administrativos.
Dentro dessa classificação resta, finalmente, examinar os atos de expediente,
entendidos como aqueles de mera tramitação processual. deles não resulta qualquer
direito ou obrigação, mas simplesmente o encaminhamento do processo administrativo
para instrução. Quando, por exemplo, servidor protocola requerimento dirigido ao
diretor-geral do órgão ou entidade onde se encontra lotado e os agentes responsáveis
pelo protocolo fazem o encaminhamento do processo a esta autoridade, o ato de encaminhamento é ato administrativo de expediente.
É de se observar, todavia, que a crítica que apresentamos à classificação no que
concerne ao seu elemento essencial — a divisão dos atos administrativos em atos de
gestão e atos administrativos de império — torna desnecessário qualquer outro comentário sobre o tema.
5.6.4 Classificação do ato administrativo quanto ao regramento
Este critério de classificação apresenta duas importantes categorias de atos administrativos:
225
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
226
- Atos vinculados; e
- Atos discricionários.
Por ocasião do exame relativo aos requisitos de validade do ato administrativo,
especialmente ao estudo dos requisitos do motivo e do objeto, verificamos que da relação desses dois requisitos será possível identificar se se trata de ato vinculado ou de
ato discricionário.
o ato vinculado deve ser entendido como aquele para o qual, dada determinada
situação ou circunstância fática ou jurídica, a própria lei indica o objeto ou conteúdo
do ato. diante de ato vinculado, a lei não permite que razões de conveniência ou de
oportunidade do administrador interfiram no objeto do ato a ser praticado. Uma aposentadoria compulsória, a expedição de alvará para construir, licença maternidade são
alguns exemplos de atos vinculados, porque razões de mérito, vale dizer, de conveniência ou de oportunidade não podem interferir na prática do ato. A aposentadoria, por
exemplo, não pode deixar de ser concedida pelo fato de a Administração a considerar
inconveniente ou inoportuna.
os atos mencionados são vinculados porque a lei impõe à Administração a sua
prática sem que o administrador possa deixar de praticá-los ou possa praticá-los com
conteúdo diverso ou em oportunidade diversa daquela definida em lei.
Ato discricionário, ao contrário, é aquele cujo conteúdo foi definido, em alguma
medida, em razão de a Administração Pública ter reputado a sua prática conveniente
ou oportuna.
Se a lei confere liberdade para a Administração definir o conteúdo ou o momento
em que o ato deve ser praticado, trata-se de ato discricionário.
os termos vinculados ou discricionários dizem respeito à existência de possível
vinculação definida em lei entre o motivo e o objeto do ato.
A fim de que se possa afirmar se determinado ato é vinculado ou discricionário,
o ponto de partida é o exame da legislação pertinente ao tema.
A nomeação de candidato aprovado em concurso público se trata de ato vinculado ou discricionário? o primeiro passo para responder a essa pergunta consiste
em identificar o motivo do ato de nomeação que, no caso, é a aprovação do candidato
no concurso público. diante desse motivo, a Administração dispõe de liberdade para
definir se nomeia o candidato, ou quando nomeia? Se a resposta para qualquer dessas
duas perguntas for afirmativa, estaremos diante de ato discricionário.
no caso de nomeação de candidato aprovado em concurso, o supremo tribunal
Federal20 entendia se tratar de matéria discricionária e que, portanto, caberia exclusivamente à Administração decidir se nomearia e quando nomearia o candidato. diante
dessa realidade, a nomeação de candidato aprovado em concurso público seria ato
discricionário.
20
nesse sentido, cita-se o julgamento da Adi nº 2.931: “o Plenário, por maioria, julgou procedente pedido de
ação direta proposta pelo Procurador-Geral da república para declarar a inconstitucionalidade do inciso vii do
art. 77 da Constituição do estado do rio de Janeiro, que assegura aos aprovados em concurso público, dentro
do número de vagas fixado no respectivo edital, o direito ao provimento no cargo no prazo máximo de cento e
oitenta dias, contado da homologação do resultado. Com base no entendimento fixado no RE 229.450/RJ (DJU,
31 ago. 2001) no sentido de que a CF apenas assegura ao candidato aprovado o direito subjetivo à nomeação de
acordo com a respectiva ordem de classificação e no prazo da validade do concurso, ficando o ato de provimento
adstrito ao poder discricionário da Administração Pública, entendeu-se que a norma impugnada viola os arts. 2º
e 37, iv, da CF. reconheceu-se, ademais, a afronta à reserva de iniciativa do Chefe do Poder executivo prevista no
art. 61, §1º, ii, c, da CF. vencidos os ministros marco Aurélio, Celso de mello e sepúlveda Pertence, que julgavam
improcedente o pedido” (STF. ADI nº 2.931-RJ, Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 24.2.2005. DJ, 29 set. 2006).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
não obstante a antiga orientação, o stF, no recente julgado relativo ao re
nº 598.099, em 10.08.2011, com repercussão geral reconhecida, evoluiu seu entendimento
no sentido de que a aprovação em concurso público assegura, durante seu prazo
de validade, direito subjetivo à nomeação, quando o edital fixa número determinado de
vagas. Esta obrigação só pode ser afastada diante de excepcional justificativa, motivada
de acordo com o interesse público.21 22 deixa de ser discricionário e passa a ser vinculado
o ato de nomeação de candidato aprovado em concurso público, o que gera para a Administração Pública a obrigação de nomear e para o candidato direito subjetivo de ser
nomeado, se houver preterição da ordem de classificação do concurso.23
5.6.5 Classificação do ato administrativo quanto à formação
Este critério de classificação busca verificar o número de manifestações de
vontade necessário para formar o ato administrativo. de acordo com este critério, são
apresentadas três espécies de atos, a saber:
- Ato simples;
- Ato complexo; e
- Ato composto.
21
22
23
stF: “Por vislumbrar direito subjetivo à nomeação dentro do número de vagas, a turma, em votação majoritária, desproveu recurso extraordinário em que se discutia a existência ou não de direito adquirido à nomeação
de candidatos habilitados em concurso público – v. informativo 510. entendeu-se que, se o estado anuncia em
edital de concurso público a existência de vagas, ele se obriga ao seu provimento, se houver candidato aprovado.
Em voto de desempate, o Min. Carlos Britto observou que, no caso, o Presidente do TRF da 2ª Região deixara
escoar o prazo de validade do certame, embora patente a necessidade de nomeação de aprovados, haja vista que,
passados 15 dias de tal prazo, fora aberto concurso interno destinado à ocupação dessas vagas, por ascensão
funcional. vencidos os ministros menezes direito, relator, e ricardo Lewandowski que, ressaltando que a
suprema Corte possui orientação no sentido de não haver direito adquirido à nomeação, mas mera expectativa
de direito, davam provimento ao recurso” (re nº 227.480-rJ, 1ª turma. rel. min. menezes direito. rel. p/ acórdão min. Cármen Lúcia. Julg. 16.9.2008. DJe, 20 ago. 2009).
stF. re nº 598.099, com repercussão geral reconhecida, Pleno. rel. min. Gilmar mendes. Julg. 10.08.2011: “dentro
do prazo de validade do concurso, a Administração poderá escolher o momento no qual se realizará a nomeação,
mas não poderá dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa a constituir um direito do
concursando aprovado e, dessa forma, um dever imposto ao poder público. uma vez publicado o edital do concurso com número específico de vagas, o ato da Administração que declara os candidatos aprovados no certame
cria um dever de nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado pelo
candidato aprovado dentro desse número de vagas (...)”.
Por ofensa ao art. 37, iv, da CF (“durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado
em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados
para assumir cargo ou emprego, na carreira”), a turma deu provimento a recurso extraordinário para assegurar
a nomeação de candidatos aprovados em concurso público para o cargo de professor assistente da universidade
de São Paulo (USP). Considerou-se que, no caso concreto, ficara comprovada a necessidade da Administração
no preenchimento das vagas, haja vista que a universidade de são Paulo contratara, no prazo de validade do
concurso, dois professores para exercerem o mesmo cargo, sob o regime trabalhista — sendo um deles candidato
aprovado do mesmo concurso. Afastou-se, ainda, a fundamentação constante do acórdão recorrido no sentido de
que seria necessária a abertura de novo concurso pela Administração para a comprovação da existência das vagas.
Cf. stF. re nº 273.605-sP, 2ª turma. rel. min. néri da silveira. Julg. 23.4.2002. DJ, 28 jun. 2002.
em idêntico sentido, stF: “Concluído o julgamento de recurso extraordinário em que se discutia sobre se candidatos aprovados em concurso público teriam, ou não, direito subjetivo à nomeação. Por maioria de votos, a
turma entendeu que, não tendo sido preenchidas todas as vagas previstas no edital, os candidatos aprovados
teriam direito de ser nomeados no prazo de validade do concurso. Com base nesse entendimento, o re interposto
pelos candidatos foi conhecido e provido ‘para assegurar aos recorrentes a imediata nomeação pelo tribunal
de Justiça do estado do Piauí, para os cargos de Juiz de direito Adjunto’” (re nº 192.568-Pi, 2ª turma. rel. min.
marco Aurélio. Julg. 23.4.1996. DJ, 13 set. 1996).
227
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
228
Feitas, desde já, algumas reservas quanto à existência do ato composto, cumpre-nos
examinar cada uma das categorias acima.
Ato simples é aquele que se forma a partir da manifestação de vontade de um
único órgão, seja ele órgão singular ou colegiado. A fim de identificar o ato simples é
importante verificar o número de órgãos cujas manifestações são necessárias para que
o ato se aperfeiçoe. na eventualidade de se tratar de órgão colegiado, por exemplo,
em que a manifestação do órgão depende da manifestação de vontade dos agentes
que o integram, podemos verificar a prática de ato simples quando, por exemplo, o
conselho de contribuintes da receita Federal decide recurso administrativo. trata-se
de ato simples porque a existência ou a eficácia do ato não depende da manifestação
de vontade de qualquer outro órgão.
Ato complexo é aquele para cuja formação é necessária a conjugação das manifestações de vontade de mais de um órgão. o exemplo apresentado por maria sylvia
Zanella di Pietro é preciso: o decreto presidencial.24 nos termos da Constituição Federal,
o decreto deve ser assinado pelo ou pelos ministros de estado afetados pelo decreto
e pelo Presidente da república. tomemos o exemplo de ato afeto à competência do
ministério da Justiça: quando o ministro da Justiça assina a minuta de decreto, a sua
manifestação de vontade não basta para que exista o ato administrativo. este somente
se forma quando houver a conjugação da manifestação de vontade dos dois órgãos
envolvidos — o ministério da Justiça e a Presidência da república. sem a assinatura
do Presidente da república, a manifestação de vontade do ministro da Justiça não
forma qualquer ato.
Hely Lopes meirelles apresenta como exemplo de ato complexo a investidura
de servidor em cargo público “consubstanciada na nomeação feita pelo chefe do executivo e complementada pela posse e exercício dados pelo chefe da repartição em que
vai servir o nomeado”.25
24
25
stF: “1. intervenção de terceiro. Assistência. mandado de segurança. inadmissibilidade. Preliminar acolhida.
inteligência do art. 19 da Lei nº 1.533/51. não se admite assistência em processo de mandado de segurança.
2. Legitimidade para a causa. Passiva. Caracterização. mandado de segurança. impetração preventiva contra
nomeação de juiz de tribunal regional do trabalho. Ato administrativo complexo. Presidente da república.
Litisconsorte passivo necessário. Competência do stF. Preliminar rejeitada. Aplicação dos arts. 46, i, e 47, caput,
do CPC, e do art. 102, i, ‘d’, da CF. o Presidente da república é litisconsorte passivo necessário em mandado
de segurança contra nomeação de juiz de tribunal regional do trabalho, sendo a causa de competência do
supremo tribunal Federal. 3. mandado de segurança. Caráter preventivo. impetração contra iminente nomeação de juiz para tribunal regional do trabalho. Ato administrativo complexo. decreto ainda não assinado pelo
Presidente da república. decadência não consumada. Preliminar repelida. Em se tratando de mandado de segurança
preventivo contra iminente nomeação de juiz para Tribunal Regional do Trabalho, que é ato administrativo complexo,
cuja perfeição se dá apenas com o decreto do Presidente da República, só com a edição desse principia a correr o prazo de
decadência para impetração. 4. magistrado. Promoção por merecimento. vaga única em tribunal regional Federal.
Lista tríplice. Composição. escolha entre três únicos juízes que cumprem todos os requisitos constitucionais.
indicação de dois outros que não pertencem à primeira quinta parte da lista de antiguidade. recomposição
dessa quinta parte na votação do segundo e terceiro nomes. inadmissibilidade. não ocorrência de recusa, nem
de impossibilidade do exercício do poder de escolha. ofensa a direito líquido e certo de juiz remanescente da
primeira votação. nulidade parcial da lista encaminhada ao Presidente da república. mandado de segurança
concedido, em parte, para decretá-la. Inteligência do art. 93, II, ‘b’ e ‘d’, da CF, e da interpretação fixada na
Adi nº 581-dF. ofende direito líquido e certo de magistrado que, sendo um dos três únicos juízes com plenas
condições constitucionais de promoção por merecimento, é preterido, sem recusa em procedimento próprio e
específico, por outros dois que não pertencem à primeira quinta parte da lista de antiguidade, na composição
de lista tríplice para o preenchimento de uma única vaga” (ms nº 24.414-dF, Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg.
3.9.2003. DJ, 21 nov. 2003, grifos nossos).
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 154-155.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
o exemplo do ilustre mestre talvez tenha sido uma das razões da existência de
tantas controvérsias acerca do ato complexo. A investidura, ou seja, o preenchimento do
cargo, nos termos da Lei nº 8.112/90, art. 5º, dá-se com a posse. isto não importa, com a
devida vênia, em concluir que nomeação e posse formem um só ato, a investidura. Ao
afirmar que a investidura ocorre com a posse, a lei define o momento em que o cargo
é considerado ocupado, provido. É com a posse, por exemplo, que se deve verificar
eventual acumulação ilegal de cargos, e não com a nomeação ou o exercício. nomeação e posse são atos distintos. Pode-se questionar a validade de um ato ou do outro
de forma absolutamente autônoma e distinta, haja vista se tratarem de atos distintos
e não de um só ato, requisito necessário para a caracterização do ato como complexo.
Questão talvez mais intrincada consista em classificar o ato administrativo, que
concede aposentadoria, reforma ou pensão e o ato do tribunal de Contas, que aprecia a
legalidade do ato concessório. nos termos da Constituição Federal (art. 71, iii), compete
ao TCU “apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal,
(...), bem como a das concessões de aposentadoria, reformas e pensões”. indaga-se: as
duas manifestações — a da Administração, que concede a aposentadoria, e a do tCu,
que registra o ato — concorreriam para a formação de um só ato complexo? embora essa
polêmica seja conhecida da doutrina e da jurisprudência do supremo tribunal Federal
desde, pelo menos, a Constituição de 1934, ela não foi elucidada de forma satisfatória.
Ao longo da história e em face dos diversos textos constitucionais (federais e estaduais), vários foram os julgados em que o supremo tribunal Federal considerou atos
complexos, as concessões de aposentadorias, reformas e pensões, assim como outros
atos que a Administração deveria submeter aos tribunais de Contas.26
o supremo tribunal Federal, mesmo não tendo aprofundado a análise quanto à
natureza jurídica dos atos de concessão, firmou o entendimento de que os atos administrativos já aprovados e registrados pelo tCu podem ser revogados ou anulados pela
Administração; a revogação ou a anulação pela Administração, todavia, somente produzem efeitos depois de referendadas pelo tCu, conforme expresso pela súmula nº 6
do stF: “a revogação ou anulação, pelo Poder executivo, de aposentadoria, ou qualquer
outro ato aprovado pelo tribunal de Contas, não produz efeitos antes de aprovada por
aquele tribunal, ressalvada a competência revisora do Judiciário”.27
Ao fundamentar a tese que resultou na elaboração da mencionada súmula nº 6, o
stF não fez qualquer alusão a ato complexo. Fundamentou-se no fato de que a Administração se subordina ao tribunal de Contas, não podendo descumprir suas decisões. tal
subordinação decorre da posição constitucional do tribunal, que não integra a própria
Administração, mas é o seu fiscal. Se a Administração não concorda com o que decidiu
o tribunal de Contas, pode recorrer ao Poder Judiciário, mas não pode pura e simplesmente desconhecer o que lhe foi determinado. “essa subordinação decorre da hierarquia
26
27
no sentido de que a concessão de aposentadoria e o seu registro no tCu constituem ato complexo, stF: “Aposentadoria – Ato administrativo do Conselho da magistratura – natureza – Coisa julgada administrativa – inexistência. o ato de aposentadoria exsurge complexo, somente se aperfeiçoando com o registro perante a Corte
de Contas. insubsistência da decisão judicial na qual assentada, como óbice ao exame da legalidade, a coisa
julgada administrativa” (re nº 195.861-es, 2ª turma. rel. min. marco Aurélio. Julg. 26.8.1997. DJ, 17 out. 1997,
grifos nossos).
A súmula do supremo tribunal Federal registra como precedentes do enunciado nº 6 os seguintes recursos de
mandado de segurança: rms nº 8.657-es (DJ, 09 nov. 1961); rms nº 9.076-Pr (DJ, 09 nov. 1961); rms nº 9.225-Pr
(DJ, 30 nov. 1961); rms nº 8.610-es (DJ, 17 abr. 1962); e rms nº 10.454-Pr (DJ, 18 abr. 1963).
229
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
230
mesma do tribunal de Contas, no mecanismo, porque ele não é órgão administrativo; é
órgão estabelecido pela Constituição, de permeio entre os poderes executivo e legislativo
— e é essa a teoria do instituto — e destinado a controlar a execução do orçamento. As
autoridades administrativas estão subordinadas às decisões do tribunal de Contas. se
ele defere a um dado parente a pensão, esta decisão poderá não ser conclusiva para o
Judiciário mas terá de sê-lo, necessariamente, para a Administração”.28
Ou seja: o Tribunal de Contas tem a palavra final sobre a Administração Pública,
com a ressalva de que esta pode levar a questão ao Poder Judiciário. Assim, se o ato de
concessão já foi apreciado pelo órgão constitucional fiscalizador, a revisão pela Administração, sem que o mesmo órgão aprecie o ato revisor, significaria descumprimento
da palavra final dada pelo Tribunal.
A nosso ver, o ato pelo qual o tribunal de Contas aprecia o ato de concessão é
ato de controle (externo), que não integra nem completa o ato de concessão, mas que
converte a executoriedade precária (porque condicionada) da concessão em executoriedade definitiva.29
Feitas essas considerações acerca do ato complexo, cumpre-nos enfrentar o ato
composto.
ele tem sido apresentado tradicionalmente pela doutrina como aquele “que
resulta da vontade única de um órgão, mas depende da verificação por parte de outro,
para se tornar exeqüível. exemplo: uma autorização que dependa do visto de uma autoridade superior. em tal caso a autorização é o ato principal e o visto é o complementar
que lhe dá exeqüibilidade”.30
A grande dificuldade conceitual relativa ao ato composto consiste no fato de que
ele não é um ato; o ato composto compõe-se de dois atos: um principal e outro acessório.
maria sylvia Zanella di Pietro o distingue do processo administrativo sob o argumento de que o processo administrativo compõe-se de vários atos, ao passo que o ato
composto é formado por somente dois atos.
diante da fragilidade — máxima vênia — dos argumentos apresentados em
defesa da existência do ato composto, e da falta de interesse prático no reconhecimento
desta categoria autônoma de ato administrativo, preferimos adotar a tese de que o ato
composto não existe como realidade autônoma. trata-se de dois atos, que podem ou
não compor um processo administrativo. são dois atos, um principal e outro acessório,
que por serem dois, jamais poderão ser um só.
28
29
30
min. Castro nunes. Apelação Cível nº 8.442, em julgamento encerrado na sessão de 3.7.1944.
em decisão mais recente, de 10.9.1997, o supremo tribunal Federal, ao apreciar o ms nº 22.658-7, seguiu voto do
Relator, Min. Sepúlveda Pertence, e reafirmou a tese consubstanciada no Enunciado nº 6 da Súmula do Supremo
tribunal Federal e foi além: afirmou que a ordem judicial que obriga a Administração a praticar ato concessório com determinada amplitude não se impõe ao tribunal de Contas: “o ponto está em saber se a força da res
judicata, que cobriu a concessão da segurança, é oponível ao tribunal de Contas de modo a compeli-lo, de sua
vez, a desconstituir a decisão que julgara legal e registrara o segundo ato de aposentadoria, a fim de registrar o
terceiro; entendo que não”.
A ementa do julgado foi a seguinte: “tribunal de Contas; registro de aposentadoria: mandado de segurança
posterior para compelir a autoridade administrativa a alterar ato concessivo já registrado não impõe ao tribunal
de Contas deferir o registro da alteração: aplicação da súm. 6/stF, não elidida pela circunstância de o ato administrativo subseqüente ao registro ter derivado do deferimento de mandado de segurança para ordenar sua
prática à autoridade competente retificar a aposentadoria que concedera, mas não para desconstituir a decisão
anterior do tribunal de Contas”.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 155.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
A crítica acima não se aplica ao ato complexo. este, em seu conceito, se diferencia
do ato composto pelo fato de que as duas ou mais manifestações de vontade formam
um só ato. no ato composto, ao contrário, cada manifestação de vontade formaria ato
distinto, sendo sua particularidade o fato de um dos atos, o principal, somente produzir
efeitos após a prática do ato acessório.
5.6.6 outras categorias de atos administrativos
As categorias a seguir apresentadas não constituem espécies de um único critério
de classificação de ato administrativo. Há grande interesse prático e didático em sua
apresentação de modo que listamos algumas categorias de atos, a saber:
5.6.6.1 Ato perfeito e ato inexistente
A perfeição do ato administrativo está relacionada à sua existência. Ato perfeito
é aquele que se formou e que, portanto, pode vir a produzir efeitos. Ato inexistente, ao
contrário, é aquele que não se formou, que não se completou. É importante distinguir o
ato inexistente do ato nulo. este último, não obstante contenha vício, é perfeito, vale dizer,
existe e, gozando de presunção de legitimidade, enquanto não for declarado nulo pode
produzir todos os seus efeitos. o ato inexistente — expressão a rigor contraditória —
indica aquele que pode apresentar a mera aparência de ato administrativo, mas que não
preenche os requisitos necessários à formação do ato. seria exemplo de ato inexistente
aquele praticado por pessoa totalmente estranha à Administração Pública. não é correto
equiparar o ato inexistente ao ato nulo. este se formou, é um ato administrativo e goza
de todos os atributos que o direito Administrativo confere aos atos administrativos; o
ato inexistente, ao contrário, não pode ser convalidado, revogado ou mesmo anulado,
posto que não se anula o que não existe. no máximo, a Administração Pública pode,
diante de questionamento acerca do ato inexistente, negar-lhe autenticidade.
5.6.6.2 Ato válido e ato nulo
Ato válido, ou legítimo, é aquele praticado em conformidade com o ordenamento.
A validade não se resume ao cumprimento das exigências legais. vai além. somente é
válido o ato que além da lei se conforma com todos os princípios do ordenamento jurídico. Ato nulo, ao contrário, é aquele que viola princípio ou preceito legal. no direito
Privado, apresenta-se de forma cristalina a existência do ato anulável.
Quando se discute, todavia, no direito Administrativo, a existência do ato administrativo anulável, tem-se em vista a possibilidade de convalidação do ato, pois que,
na esfera privada, tal providência saneadora somente é admitida para esta categoria
de ato (anulável), e nunca para o ato nulo.
Atualmente, não mais se discute a possibilidade de determinados atos administrativos serem convalidados, prerrogativa prevista na Lei nº 9.784/99 (art. 55).
o direito Administrativo não apresenta como requisito à convalidação o ato
ser anulável. A Lei nº 9.784/99 requer tão somente que a decisão pela convalidação
não acarrete lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiro e que o ato apresente
defeitos sanáveis.
231
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
232
nesse sentido, poder-se-ia até concluir que o ato administrativo que apresente
defeito sanável seria o ato anulável e que o ato com defeito insanável seria nulo. no
direito Administrativo, todavia, a discussão acerca da existência do ato anulável em
oposição ao ato nulo é de muito pouca ou mesmo de nenhuma importância o que permite utilizar indistintamente uma ou outra expressão. Acerca da distinção entre atos
nulos e anuláveis teceremos maiores considerações adiante.
5.6.6.3 Ato eficaz, ato exequível e ato consumado ou exaurido
Ato eficaz é aquele que possui aptidão para a produção de efeitos jurídicos. A
eficácia do ato não se confunde com a sua perfeição. Esta tem como elemento principal
a existência do ato, não obstante também faça referência à perspectiva ou possibilidade
de o ato produzir efeitos. A eficácia diz respeito diretamente à produção, ou ao menos
à possibilidade de produção de efeitos jurídicos.
A exequibilidade seria categoria especial dentro da eficácia. Por exequibilidade
pode ser entendida a produção imediata de efeitos. se o ato está produzindo efeitos,
além de eficaz ele é exequível. Se o ato tem a aptidão para produzir efeitos, mas ainda
não os está produzindo, o ato é eficaz, mas ainda não exequível. Exemplo: a decisão
de comissão de licitação que inabilita licitante. É ato eficaz, porque tem a aptidão para
excluir do processo referido licitante, mas enquanto não expirado o prazo para recurso
ou, caso este tenha sido interposto, enquanto não for julgado, o ato não é exequível.
Consumando ou exaurido é o ato que já produziu todos os efeitos que dele se
pode esperar. se uma licença concedida a servidor para tratar de interesse pessoal já foi
integralmente gozada, trata-se de ato consumando. o efeito prático ou consequência
de se constatar a consumação do ato é a impossibilidade de revogação. somente pode
ser revogado o ato eficaz posto que a revogação não opera efeitos retroativos. No caso
do ato consumado, em que todos os efeitos se encontram no passado, a consequência
lógica é a impossibilidade de revogação.
5.6.6.4 Ato constitutivo, ato declaratório, ato modificativo e ato extintivo
Ato administrativo constitutivo é aquele que cria nova realidade jurídica antes
não existente, realidade que faz com que surjam direitos ou obrigações para a Administração Pública ou para os particulares. o ato declaratório simplesmente atesta situação
jurídica já existente sem que importe na criação de qualquer nova relação jurídica. Pode
ser apresentado como exemplo de ato declaratório a expedição de certidão de débitos
tributários.31 O ato modificativo não cria, mas, como o nome indica, modifica situações
jurídicas já existentes. Ato extintivo, desconstitutivo ou constitutivo negativo é aquele
por meio do qual se põe fim a relação jurídica existente.
31
A recusa de órgão público de expedir certidões com informações de interesse de particulares deve ser atacada
por meio de mandado de segurança, e não de habeas data. este, nos termos da Constituição Federal (art. 5º, LXii),
serve para “assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros
ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público” e “para a retificação de dados”.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
5.6.6.5 Atos restritivos de direito e atos ampliativos de direito
esta distinção se faz necessária na medida em que os atos restritivos de direito
têm sua validade pendente da observância do contraditório e da ampla defesa. A anulação de ato que havia outorgado alguma vantagem para particular ou a aplicação de
sanções (os atos sancionatórios podem ser inseridos no âmbito dos atos restritivos de
direito) são exemplos de atos restritivos e que, portanto, devem observar contraditório
e ampla defesa. os que ampliam direitos não necessitam da observância desses procedimentos. exemplo: se um particular solicita alvará de construção e a Administração
entende que este deva ser concedido, não há qualquer necessidade de ser aberto prazo
para qualquer manifestação do particular.
5.7 revogação, anulação e convalidação
5.7.1 desfazimento do ato e interesse público
nos regimes democráticos, a elevação de determinados interesses à categoria
de interesse público se submete, como regra, ao processo legislativo, sendo a lei o
instrumento adequado para definir: 1) as prerrogativas necessárias à realização desses
interesses e 2) as pessoas legitimadas ao seu exercício.
Na prática, afirmar que o interesse público se sobrepõe ao interesse privado
importa em reconhecer ao estado uma série de prerrogativas. este fenômeno se traduz
em uma das características mais proeminentes do direito Administrativo: a supremacia
do interesse público sobre o interesse privado.
se é certo que o estado não é o único legitimado ao exercício dos interesses públicos — basta mencionar a capacidade de qualquer cidadão de propor ação popular para a
defesa dos interesses públicos (CF, art. 5º, LXiii) —, ele é certamente o destinatário mais
frequente das potestades conferidas pelo ordenamento positivo para o exercício dos
referidos interesses. daí por que se costuma confundir interesse público com interesse da
Administração Pública, confusão que em muitas oportunidades se mostra equivocada.
sendo o estado o principal titular do interesse público, uma das potestades que
lhe é conferida é a de rever seus próprios atos administrativos independentemente de
ação judicial.
A prerrogativa da Administração Pública de desfazer determinados atos, seja
em razão de ilegalidade, seja em razão de motivos de oportunidade ou conveniência,
se denomina poder, ou princípio, de autotutela.
o poder da Administração Pública de anular e de revogar seus atos se trata de
potestade tipicamente pública, disciplinada pelo direito Administrativo, da qual não
podem fazer uso as pessoas de direito Privado.
A anulação e a revogação dos atos administrativos são apresentadas como mecanismos de que dispõe a Administração Pública para desfazer seus atos, ao passo que
a convalidação, como se verá a seguir, apresenta-se como opção à anulação e constitui
a prerrogativa reconhecida à Administração para corrigir eventuais ilegalidades de
pequena importância verificadas em certos atos.
examinaremos, a seguir, cada um desses institutos.
233
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
234
5.7.2 Anulação
5.7.2.1 direito Administrativo e direito Civil
o vigente Código Civil, de 2002, em seu art. 104, apresenta como requisitos
necessários à validade dos negócios jurídicos:
1. Agente capaz;
2. objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e
3. Forma prescrita ou não defesa em lei.
merecem ainda referência especial os requisitos de validade constantes dos
arts. 421 e 422 do Código Civil, que exigem para a validade dos contratos a observância
da sua função social e dos princípios da probidade e da boa-fé. trata-se de inovações que
se devem à forte influência exercida pelo Direito Administrativo sobre o Direito Privado.
o Código Civil mantém a divisão clássica dos negócios jurídicos inválidos em:
- negócio jurídico nulo (artigos 166 e 167); e
- negócio jurídico anulável (art. 171).
Ademais, são indicados os fatores que importam na nulidade e na anulabilidade
dos negócios jurídicos32 e são apresentadas as distinções entre o ato nulo e o anulável,
como a possibilidade de convalidação (que o Código denomina de confirmação) do
ato anulável (art. 172), confirmação não admitida para o ato nulo (art. 169) e a legitimidade para impugnar a validade do ato, que no caso dos atos anuláveis está restrita
aos interessados (art. 177).
À semelhança do que se verifica em diversos outros institutos, o Direito Administrativo foi buscar no direito Privado os fundamentos para a anulação dos atos administrativos.
Nota-se, contudo, que na matéria de invalidação dos atos se verificam incompatibilidades entre os regimes público e privado.
A primeira grande distinção entre os dois regimes decorre do fato de que no direito
Privado somente ao juiz é dado anular o negócio jurídico, não sendo facultado aos particulares declararem a nulidade ou a anulabilidade dos seus negócios.
A posição privilegiada conferida pelo direito Administrativo à Administração
Pública permite que ela possa, de ofício ou mediante provocação, anular seus atos
unilaterais e contratos, sendo exigido dela apenas a observância do devido processo
legal, o que importa em ter que assegurar aos interessados direito ao contraditório e
à ampla defesa.
A prerrogativa da Administração Pública de anular seus próprios atos em razão
de ilegalidades verificadas foi inicialmente reconhecida em nosso ordenamento pela
súmula stF nº 346: “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios
atos”. essa potestade pública voltou a ser objeto de nova súmula do stF (de nº 473),
que acrescentou aspectos acerca da anulação e admitiu a possibilidade de revogação
dos atos administrativos nos seguintes termos:
32
os dispositivos do Código Civil dispõem nos termos seguintes: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: i - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; ii - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; iii - o motivo
determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; iv - não revestir a forma prescrita em lei; v - for preterida
alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; vi - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
vii - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Art. 167. É nulo o negócio
jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. (...) Art. 171. Além
dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: i - por incapacidade relativa do agente;
ii - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores”.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência
ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a
apreciação judicial.
A redação da súmula nº 473 foi repetida de forma praticamente literal pela Lei
nº 9.784/99, que em seu art. 53 dispõe nos seguintes termos:
Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de
legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados
os direitos adquiridos.
em outros aspectos a teoria da invalidação dos atos administrativos se distingue
da teoria desenvolvida no direito Privado:
1. os prazos prescricionais adotados pelo Código Civil relativos à invalidação
dos negócios jurídicos não se aplicam à anulação pela Administração Pública
de seus próprios atos, haja vista a Lei nº 9.784/99 conter disposição específica
sobre o tema;
2. A regra contida no art. 182 do CC (“Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as
partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las,
serão indenizadas com o equivalente”) deve ser igualmente aplicada ao direito
Administrativo com alguma reserva. A Lei nº 8.666/93, que trata dos contratos
administrativos, dispõe em seu art. 56, parágrafo único, que anulado o contrato,
o contratado somente terá direito à indenização na eventualidade de o vício não
lhe ser imputável.33
A existência de distinções entre os dois regimes não impede, todavia, a utilização
das regras constantes do Código Civil acerca da invalidação do negócio jurídico em
caráter suplementar às normas públicas, desde que não sejam incompatíveis com as
regras e os princípios do direito Administrativo.
A aplicação subsidiária do direito Privado ao direito Administrativo se mostra
possível em situações como a contida no art. 184 do CC, que trata da invalidação parcial
do negócio jurídico. exemplo: a Administração por meio de um único ato embarga a
construção de determinada obra realizada por particular e lhe aplica multa. Caso não
haja fundamento legal para a aplicação da multa, o ato administrativo será anulado
parcialmente, ou seja, invalidado tão somente em relação a este aspecto (a multa), mas
permanecerá válido quanto ao embargo da obra.
33
A regra contida no art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93 (“a nulidade não exonera a Administração do
dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros
prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade
de quem lhe deu causa” – grifos nossos) deve ser interpretada com alguma cautela. não se deve entender que
Administração não tenha o dever de pagar pelo que foi efetivamente executado, ainda que o vício que resultou
na anulação da avença seja imputável ao contratado. deve-se entender apenas que o contrato não deve mais ser
o parâmetro para o pagamento e que, quaisquer vantagens que beneficiariam o contratado, como a sua margem
de lucro (ou Bdi – benefícios e despesas indiretas), contidas no contrato não devem ser pagas. nesta hipótese,
deve a Administração verificar o valor do custo efetivamente realizado e pagar à contratada, não a título de
execução do contrato, que já foi anulado, mas como indenização por despesas realizadas.
235
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
236
5.7.2.2 Ato administrativo nulo e ato administrativo anulável
o direito Privado apresenta de forma nítida a distinção entre atos nulos e anuláveis; no âmbito público, essa distinção não é, todavia, objeto de qualquer consideração
pela súmula nº 473, pela Lei nº 9.784/99 ou por qualquer outra norma pública.34 Quando
muito, o direito Administrativo menciona a existência de atos anuláveis — o que se
verifica no art. 3º da Lei nº 4.717, de 1965, que regula a ação popular —, sem, no entanto,
indicar as razões que justifiquem a distinção entre uma categoria e outra. Essa omissão
do direito Administrativo no tratamento do tema sempre gerou muita discussão acerca
da existência de distinção entre atos administrativos nulos e anuláveis.
Haja vista o Direito Civil somente admitir a convalidação, ou confirmação, dos
atos anuláveis, seria de se concluir que o direito Administrativo somente poderia conferir
à Administração Pública essa potestade de corrigir, com efeitos retroativos, os vícios
presentes em seus atos, se fosse admitida a existência do ato administrativo anulável
como categoria distinta do ato administrativo nulo.
Percebe-se aqui, no entanto, evidente inversão na ordem dos fatores relacionados
à definição do ato anulável e ao estabelecimento dos requisitos necessários à convalidação desse ato.
no direito Privado, o ato somente pode ser convalidado se for ato anulável. não
se define o ato anulável pela possibilidade de ele ser convalidado, mas em razão da
natureza do vício que ele contenha (incapacidade relativa do agente ou ocorrência de
erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores – CC, art. 171). no
Direito Privado, portanto, a convalidação não é requisito à definição do ato anulável,
mas consequência de se reconhecer determinado ato como anulável.
no direito Administrativo, em sentido contrário, buscou-se construir a teoria
que reconhece a existência do ato anulável em razão da possibilidade de determinados
atos administrativos serem convalidados.
34
A Lei da Ação Popular, Lei nº 4.717/65, restringe-se a indicar, de forma genérica, os atos nulos. não faz a lei, todavia,
qualquer referência à existência dos atos administrativos anuláveis. dispõe a mencionada lei nos seguintes termos:
“Art. 2º são nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:
a) incompetência;
b) vício de forma;
c) ilegalidade do objeto;
d) inexistência dos motivos;
e) desvio de finalidade.
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:
a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou;
b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato;
c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro
ato normativo;
d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é
materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;
e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.
Art. 3º os atos lesivos ao patrimônio das pessoas de direito público ou privado, ou das entidades mencionadas
no art. 1º, cujos vícios não se compreendam nas especificações do artigo anterior, serão anuláveis, segundo as
prescrições legais, enquanto compatíveis com a natureza deles.
Art. 4º são também nulos os seguintes atos ou contratos, praticados ou celebrados por quaisquer das pessoas ou
entidades referidas no art. 1º.” (grifos nossos)
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
Verifica-se, assim, evidente equívoco ou inversão entre o que é requisito e o que é
efeito da convalidação: no Direito Privado, dado que o ato é anulável, ele pode ser convalidado;
no Direito Administrativo, dado que certos atos podem ser convalidados, eles seriam anuláveis.
A possibilidade de convalidação dos atos administrativos é disciplinada pelo
direito Administrativo por meio da Lei nº 9.784/99, que, em seu art. 55, dispõe nos
termos seguintes:
Art. 55. em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem
prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados
pela própria Administração.
A lei apresenta como requisito para a convalidação dos atos administrativos,
além de ele não acarretar prejuízo a terceiro, a existência de defeito sanável. desse modo,
sem que a lei tenha sequer mencionado a existência do ato anulável, sem que a lei tenha
indicado quais são os vícios sanáveis, ou o que é um vício sanável, não nos parece possível concluir pela existência do ato administrativo anulável como categoria distinta
do ato administrativo nulo.
importa consignar que a discussão acerca da existência do ato administrativo
anulável como categoria específica não é meramente terminológica.
em razão da aplicação subsidiária do direito Privado ao direito Administrativo,
e da existência de regras específicas sobre o ato anulável no âmbito do Direito Privado,
como por exemplo, a impossibilidade de ser a anulabilidade do ato declarada de ofício
por órgão judicial, ou de que os seus efeitos somente aproveitam a quem a alegou (CC,
art. 177), a matéria assume grande importância para o direito Administrativo.
A forma como o direito Administrativo trata do tema da invalidação dos atos
administrativos nos permite concluir pela inexistência do ato anulável como categoria distinta do ato nulo pelas seguintes razões:
1. não há, no direito Administrativo, qualquer indicação das circunstâncias que
tornariam o ato administrativo anulável ou nulo, mas a simples indicação
genérica de que “a Administração deve anular seus próprios atos, quando
eivados de vício de legalidade” (Lei nº 9.784/99, art. 53);
2. não são estabelecidas quaisquer consequências que importariam em tratamento
jurídico diferenciado entre o ato nulo e o ato anulável, como faz o Código Civil
(exemplo: no direito Privado, o ato nulo (CC, art. 169) “não se convalesce pelo
decurso do tempo”, ao passo que para o ato anulável são fixados prazos decadenciais diferenciados; no Direito Administrativo, é fixado o prazo genérico de
cinco anos para a Administração Pública anular seus atos, independentemente
da gravidade da ilegalidade que o contamina, ressalvados os casos de comprovada má-fé do destinatário do ato).
A simples referência feita pela Lei nº 9.784/99 à existência de defeitos sanáveis,
entendidos estes como aqueles que permitem à Administração corrigir os vícios e convalidar o ato, não nos permite concluir, sem que a lei indique quais são esses defeitos ou
em que outros aspectos a existência desses defeitos implicaria a adoção de tratamento
diferenciado entre o ato anulável e o ato nulo, pela existência de duas categorias distintas de atos inválidos.35
35
em sentido contrário, entendendo que atos nulos e anuláveis apresentam regime jurídico diferente quanto à
possibilidade de convalidação e à arguição do vício que possuem, vide BAndeirA de meLLo. Curso de direito
administrativo, 8. ed., p. 439.
237
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
238
nesse sentido, a distinção entre ato nulo e anulável existente no direito Privado
não se transfere ao direito Administrativo, salvo se se considerar que o só fato de haver
atos administrativos passíveis de convalidação seja elemento suficiente para admitir a
categoria do ato administrativo anulável.
Admitida a afirmação acima como verdadeira, teríamos que no Direito Privado
o ato anulável se diferencia do ato nulo em razão da natureza do vício e dos diferentes
efeitos que a lei confere a um e ao outro. no direito Administrativo, ao contrário, sem
que lei dê tratamento distinto ao ato administrativo nulo e ao ato administrativo anulável, e sem que ela indique a natureza do vício que torna o ato administrativo nulo ou
anulável, teríamos que admitir essas duas categorias tão somente em razão de alguns
atos, em razão de conterem defeitos sanáveis constituiriam categoria distinta daqueles
outros atos cujos defeitos não seriam passíveis de sanatória.
Parece-nos que o só fato de a lei admitir a convalidação do ato administrativo
não seja suficiente para admitir a distinção entre o ato anulável e o ato nulo no âmbito
do direito Administrativo. Ao contrário, parece-nos, indiferente utilizar o termo nulo
ou anulável para indicar que o ato administrativo contém vício sanável ou insanável.
Aqui, o ato administrativo é válido ou inválido, sendo, repetimos, indiferente se nos
referirmos ao ato inválido como ato nulo ou como ato anulável.
A presença de defeitos sanáveis em atos administrativos, que poderíamos denominar de irregularidades, permite que a Administração Pública, tendo o objetivo de realizar
o interesse público, possa:
1. Corrigir o ato por meio da convalidação;
2. Anulá-lo; ou
3. se se tratar de irregularidade meramente formal, irrelevante pela sua natureza,
simplesmente desconsiderar existência36 dessa irregularidade.
exemplo: a Lei nº 8.666/93 (art. 60, parágrafo único) dispõe que é nulo o contrato
verbal firmado com a Administração Pública, ressalvadas as pequenas compras, que
admitem a forma verbal. No Direito Privado, diante da afirmação de que o vício de
forma importa em nulidade do ato, tratar-se-ia de vício não passível de convalidação.
no direito Administrativo, em razão da falta de qualquer parâmetro para distinguir
o ato nulo do anulável, não se pode concluir que o vício de forma do contrato importe
necessariamente em sua anulação. o exame do caso concreto pode indicar que, não
obstante a existência do vício de forma, pela ausência de qualquer outra ilegalidade
(fraude à licitação, superfaturamento, favorecimento, direcionamento, prejuízo para
terceiros etc.), o contrato não tenha que ser anulado.
em resumo, é possível concluir que, não obstante seja admitida a convalidação do
ato administrativo que contenha defeitos sanáveis, esse fato, de per si, não é suficiente
para justificar duas categorias distintas de atos administrativos inválidos.
5.7.2.3 dever ou poder de anular?
em razão das considerações até o momento apresentadas, a pergunta a ser feita
consiste em saber se a presença de irregularidades, ou de defeitos sanáveis em ato administrativo é invalidante. deve a Administração anular ato que contenha irregularidade
36
Cf. stF. RDP, v. 10, p. 159.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
de menor importância ou, ao contrário, possui ela a faculdade de anular o ato somente
se assim entender conveniente?
A resposta às perguntas acima não é fácil. desde já antecipamos o nosso ponto
de vista de que a presença de irregularidade ou ilegalidade em ato administrativo é
invalidante. essa é a regra que, como veremos em seguida, comporta duas exceções.
A súmula nº 473 do stF utiliza o verbo poder para fazer referência a essa potestade da Administração Pública — “a Administração pode anular” —, ao passo que a Lei
nº 9.784 dispõe que “a Administração deve anular”.
A potestade da Administração de anular seus atos eivados de vício de legalidade deve ser traduzida como dever, como obrigação. Quando o stF editou as
súmulas nº 346 e nº 473, discutia-se a existência ou não dessa potestade. Foi utilizado
o verbo poder não como indicativo de opção ou de faculdade a ser utilizada caso a
Administração julgue conveniente ou oportuno. Foi utilizado o verbo poder no sentido
de que a Administração tem o poder de anular, e não de que dispõe da opção de anular.
Por meio das referidas súmulas foi superada a discussão até então existente em nosso
direito de que a Administração Pública não podia anular seus próprios atos e que, à
semelhança de qualquer particular, teria de se submeter ao Poder Judiciário, único
legitimado ao exercício desse mister.
A prerrogativa de que dispõe a Administração de anular atos viciados não pode
ser entendida como juízo discricionário. esta é a regra que se impõe à Administração:
verificada a ilegalidade ou irregularidade, o ato deve ser anulado. Se, todavia, as circunstâncias do caso concreto justificarem a manutenção do ato e a simples correção dos
vícios, tem a Administração Pública o dever de convalidar o ato. Verificada a presença
de defeito sanável, se for demonstrado que a solução que melhor realiza o interesse
público é a manutenção do ato, tem o administrador o dever de convalidá-lo. Ao contrário, se o ato contiver vício sanável, e for demonstrado que a simples correção do vício
e a consequente convalidação do ato violam o interesse público ou causam prejuízo a
terceiro, a Administração tem o dever de anulá-lo.37
A regra de que verificada ilegalidade deve a Administração anular o ato vai
encontrar duas exceções:
1. se em razão das particularidades do caso concreto for demonstrado que a
correção dos vícios e a convalidação do ato é a solução que melhor realiza
interesse público; e
2. o decurso de lapso temporal superior a cinco anos que, conforme será examinado adiante, impede a Administração de anular atos viciados.
somente nessas duas situações a regra segundo a qual a Administração Pública
tem o dever de anular o ato pode ser afastada. na primeira hipótese, a Administração Pública deve, por meio de decisão motivada, indicar porque é mais conveniente
convalidar do que anular o ato; na segunda hipótese, em que já teria decorrido prazo
37
Na lição de Weida Zancaner a “Administração deve invalidar quando o ato não comportar convalidação”. Afirma a
autora que “(...) quando possível a convalidação dos atos viciados, a Administração não poderá negar-se a fazê-lo.
não haveria, nessa situação, discricionariedade quanto ao dever de convalidar ou invalidar. não lhe parece plausível, segundo adverte, (...) que possa fica a critério do administrador invalidar atos, relações jurídicas ou ambos,
se existe a possibilidade de convalidá-los, pois a convalidação atende não só o princípio da legalidade mas, sobretudo, ao da segurança jurídica, ressalvada a hipótese de ato discricionário maculado por vício de competência” (Da
convalidação e da invalidação dos atos administrativos, p. 57-59).
239
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
240
superior a cinco anos da prática do ato, nenhuma medida se impõe à Administração
Pública, tendo ocorrido a convalidação em razão do decurso do prazo.
5.7.2.4 Fundamentos para anulação
o fundamento básico para a anulação do ato administrativo é a falta de conformação com a ordem jurídica, ou seja, não apenas a ilegalidade, mas a ilegitimidade do
ato.38 A violação de dispositivo legal ou de princípio da Administração Pública deve
importar em anulação do ato.
são circunstâncias que podem resultar em anulação do ato:
- Falta de competência do agente – o primeiro requisito de validade dos atos
administrativos está relacionado ao princípio da legalidade no sentido de que
somente pode praticar ato administrativo a autoridade, órgão ou entidade
pública que tenha recebido da lei a necessária competência. Assim, se o ato é
praticado por autoridade material ou territorialmente incompetente, o ato deve
ser anulado;
- Vício de forma – A lei impõe forma aos atos administrativos tendo em vista,
dentre outros aspectos, a necessidade de controle. se os atos não observam as
formas legais impostas, o ato deve ser anulado;
- Desvio de finalidade – Qualquer ato administrativo vinculado ou discricionário
deve sempre se conformar com o interesse público em seus três níveis de realização (constitucional, legal e econômico). independentemente de qualquer
outro vício, se o ato foi praticado contrariando a finalidade legal que justificou
a outorga de competência para a prática do ato, ele é nulo;
- Falta de pressuposto de fato para a prática do ato (motivo) – salvo exceções, como
a verificada na exoneração de ocupante de cargo em comissão, a lei indica as
circunstâncias que justificam a prática do ato. Quer se trate de ato discricionário, quer se trate de ato vinculado, a lei indica o motivo que deve justificar
prática. inexistente ou nulo o motivo indicado pela Administração, o ato é nulo.
motivo nulo deve ser entendido, nos termos da Lei nº 4.717/65, como aquele
juridicamente inadequado ao resultado obtido. de se observar, todavia, que a presunção de veracidade dos atos administrativos requer daqueles que preiteiam
a invalidação o ônus de provar a inexistência ou a nulidade dos motivos;
- Vício de conteúdo (objeto) – se diante de determinadas circunstâncias a lei requer
da Administração a prática de determinado ato com conteúdo previamente
estabelecido na própria lei. Se isto não se verifica, o ato da Administração é
nulo e passível de correção pela via administrativa ou judicial. se o objeto, ou
seus efeitos, for impossível ou indeterminável, o ato também será nulo;
- Violação de preceito legal ou de princípio da Administração Pública – É possível que
o ato seja praticado com a observância de todos os pressupostos à sua validade
(autoridade competente, sem qualquer desvio de finalidade, revestido das
formalidades legais, e sem qualquer vício em relação ao motivo ou ao objeto)
38
utilizamos o termo legitimidade em sentido mais amplo que legalidade. esta se restringe à observância das
exigências contidas em lei. Por ilegitimidade temos que entender a violação não apenas de dispositivo legal, mas
de qualquer outro preceito contido em princípio ou mesmo em norma infralegal.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
e, no entanto, seja nulo. Esta situação pode ocorrer se for verificada violação
de princípio da Administração Pública. o ato que observe todas as exigências
legais, mas que atente contra a moralidade administrativa ou contra a economicidade não é ato inconveniente, mas sim ato nulo;
- Vício verificado no processo – A procedimentalização que se tem verificado no
direito Administrativo faz com que no exame da validade de determinados atos
(a nomeação de candidato aprovado em concurso público, por exemplo) deva-se
considerar a validade dos atos do processo administrativo que antecederam
a este ato de nomeação (no caso, os atos do próprio concurso). Certo é que a
nomeação para o cargo público, individualmente considerada, pode-se revestir
de todas as exigências legais. Porém, se se confirma que o edital do concurso
não observou os parâmetros de publicidade necessários, a nomeação, como
resultado da anulação do concurso público, será igualmente nula. regra como
esta se verifica na Lei nº 8.666/93 (art. 49, §2º): “A nulidade do procedimento
licitatório induz à do contrato”.
5.7.2.5 Prazo para anulação do ato pela Administração
(legalidade x segurança jurídica)
Ainda em 1987, em artigo publicado na Revista de Direito Público com o sugestivo
título “Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no
estado de direito contemporâneo”, o Professor Almiro do Couto e silva analisou com
profundidade a questão relativa ao conflito entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica, e criticou a excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo,
especialmente no âmbito do direito Administrativo.39
no direito Positivo brasileiro, o dever de anulação — como consectário do princípio da legalidade — tem encontrado alguns obstáculos no próprio sistema jurídico.
Questões atinentes aos princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações
jurídicas foram objeto de especial preocupação do legislador por ocasião da edição
da Lei nº 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da Administração
Pública federal, e da Lei nº 9.868/99.
A Lei nº 9.868/99, ao disciplinar o processo e julgamento das ações de controle
de constitucionalidade (Adi e AdC), abre para o supremo tribunal Federal, “tendo em
vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social”, a possibilidade de
declarar a inconstitucionalidade de ato normativo “com eficácia a partir de seu trânsito
em julgado ou de outro momento que venha ser fixado” (art. 27). Dessa forma, com
vistas a garantir a intangibilidade dos atos concretos praticados com fundamento na
norma viciada antes da declaração pelo supremo procura-se romper com o dogma do
direito Constitucional brasileiro que associa a declaração de inconstitucionalidade à
nulidade ex tunc do ato viciado.
Percebe-se claramente a mitigação do princípio da legalidade pela possibilidade
de o supremo decidir sobre a conveniência de se preservarem as relações jurídicas
constituídas à luz de lei posteriormente declarada inconstitucional.
39
Couto e siLvA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito
contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 46-63.
241
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
242
A Lei nº 9.784/99 elenca a segurança jurídica como princípio a ser observado pela
Administração ao lado de outros como a legalidade, a moralidade, a motivação e, nos
termos do art. 54, fixa em cinco anos o prazo para que a Administração anule os atos
administrativos “de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, salvo nos casos
de comprovada má-fé” (grifos nossos).
A primeira conclusão que se pode tirar da redação da lei é no sentido de que
a fixação do prazo para anulação somente se aplica aos atos ampliativos de direito. se o
ato, ao contrário, houver promovido restrição de direitos, de que seria exemplo ato
que aplicou sanção, a Administração pode a qualquer tempo anulá-lo. o prazo legal
de cinco somente é aplicável aos atos que tenham gerado efeitos favoráveis aos seus
destinatários e, nos termos do art. 54, §1º, se se tratar de ato que tenha gerado “efeitos
patrimoniais contínuos”, o prazo “contar-se-á da percepção do primeiro pagamento”.
A Lei nº 9.784/99, conforme já observamos, em seu art. 53 utiliza o verbo “dever”
com o objetivo de deixar evidente que a anulação do ato ilegal não é mera faculdade
da Administração, mas obrigação. Isso não significa, todavia, prevalência absoluta do
princípio da legalidade. nos artigos seguintes, o princípio é mitigado: o art. 54 estabelece o prazo de decadência dentro do qual a Administração poderá anular; e o art. 55
prevê as circunstâncias em que o ato poderá — ou “deverá”, segundo alguns autores,
como Weida Zancaner40 — ser convalidado.
A fixação de prazo para a Administração exercer o seu poder-dever de anular os
seus próprios atos eivados de ilegalidade e dos quais decorram efeitos favoráveis para
os administrados era exigência antiga de considerável parte da doutrina e da jurisprudência, que não admitiam que o destinatário do ato vivesse em eterno sobressalto, à
espera de possível mudança de posicionamento da Administração.
Importante observar que a Lei nº 9.784/99, ao fixar o prazo de cinco anos, objetiva estabelecer o ponto de equilíbrio entre os princípios da legalidade e da segurança
jurídica.
segundo a jurisprudência do stJ, o prazo de cinco anos do art. 54 da Lei nº 9.784/99
não pode ser aplicado de forma retroativa, entendendo-se como termo inicial para a
contagem do prazo prescricional o início da vigência da lei.41
Em face dessa constatação, o prazo fixado em lei — que não possui natureza
decadencial, mas prescricional42 haja vista o disposto no art. 54, §2º, da Lei nº 9.784/99
(“Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato”) — deve ser considerado como o
ponto de partida para a aplicação dos princípios da legalidade, que impõe a anulação do
ato, e da segurança jurídica e da boa-fé, que requerem a preservação do ato. decorridos
40
41
42
ZAnCAner. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos.
stJ: “Agravo regimental. recurso especial. Administrativo. Anulação de ato da administração. Art. 54 da Lei
nº 9.784/99. Prazo decadencial. termo a quo. Aplicação irretroativa. Consoante o entendimento da Corte especial deste tribunal, prolatado no julgamento dos mandados de segurança nº 9.112/dF, 9.115/dF e 9.157/dF, da
sessão de 16.2.2005, a aplicação da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, deverá ser irretroativa. Logo, o termo
a quo do qüinqüênio decadencial, estabelecido no art. 54 da mencionada Lei, contar-se-á da data de sua vigência, e não da data em que foram praticados os atos que se pretende anular. Agravo regimental desprovido”
(Agrg no resp nº 679.405-rs, 5ª turma. rel. min. Felix Fischer. Julg. 19.4.2005. DJ, 13 jun. 2005).
se se tratasse de prazo decadencial, a anulação deveria ocorrer dentro dos cinco anos. Ao contrário, a lei estabelece que este é o prazo para que o ato seja impugnado, o que nos leva a caracterizá-lo como prescricional. Fixada
sua natureza como prescricional, as interrupções devem ser admitidas e os critérios de interrupção devem ser
adotados, nos termos do Código Civil.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
cinco anos da prática do ato, é necessário que a Administração demonstre a má-fé do
destinatário a fim de que seja promovida a sua anulação. A consequência, em relação
aos atos praticados de má-fé, é a da imprescritibilidade, ou seja, a qualquer tempo a
Administração poderá rever atos nulos, desde que seja provada a má-fé daquele que
se beneficiou com a prática do ato.43
Importa verificar que os princípios da segurança jurídica e da boa-fé interferem
no exame da invalidação do ato em dois diferentes aspectos:
1. impedindo a própria anulação do ato na eventualidade de ele ter sido praticado há mais de cinco anos e;
2. Permitindo que, não obstante o ato seja anulado, posto que praticado dentro
do prazo de cinco anos, determinados efeitos dele decorrentes possam ser
preservados.
Na primeira situação, que se verifica quando o ato tiver sido praticado há mais
de cinco anos, se o destinatário de ato ampliativo de direito tiver agido de boa-fé, que
se presume e somente desaparece se o poder público demonstrar a existência de má-fé,
desaparece o poder da Administração de anular o ato. não se trata de situação que requeira
a convalidação do ato. A rigor, o decurso do lapso temporal é, em si, o elemento de
convalidação.
A segunda situação ocorre quando o ato viciado tiver sido praticado dentro do
período prescricional de cinco anos. nesta hipótese, não obstante a boa-fé do destinatário, impõe-se o dever de anulação.
Deve-se, aqui, verificar tão somente a possibilidade de que alguns efeitos decorrentes do ato nulo possam ser preservados a fim de realizar os princípios da segurança
jurídica e da boa-fé do destinatário. tomemos o seguinte exemplo: servidor público
requer licença sem vencimento de cargo público A para tomar posse em outro cargo B,
possibilidade que, durante muito tempo, foi admitida e, atualmente, é tida como ilícita.
decorridos alguns meses e sem que Administração Pública tenha tomado qualquer
providência para impedir referida acumulação ilegal, o servidor pede exoneração do
novo cargo B e retorna ao antigo cargo A. A rigor, caracterizada a acumulação dos cargos, a investidura no cargo B é nula. A anulação do ato impõe, como regra, que todos
os efeitos dela decorrentes sejam igualmente anulados. diante dessa situação, o tempo
de serviço relativo ao exercício do cargo B não poderia ser considerado para nenhum
fim? Ou, ao contrário, em nome da boa-fé do servidor, esse tempo pode ser considerado
para fim de aposentadoria, de férias, de licenças etc.?
no exemplo, a boa-fé do servidor permite que a anulação do ato não importe
em desconstituição dos efeitos que possam ser preservados. desse modo, o tempo de
serviço do servidor pode ser contado para todos os fins legais. Último aspecto relativo
ao prazo de cinco anos diz respeito à sua inaplicabilidade aos processos judiciais.
tanto a Administração quanto o Poder Judiciário possuem competência para
anular o ato administrativo. A Lei nº 9.784/99, que fixa o prazo prescricional para a
Administração anular seus atos, regula o processo administrativo. este argumento basta
43
em sentido contrário, sérgio Ferraz, citado por raquel melo urbano de Carvalho, esclarece que a interpretação
de que a má-fé possibilitaria à Administração anular o ato a qualquer tempo importaria em reconhecer que “a
cláusula final ‘salvo comprovada má-fé’ é inconstitucional, por isso que afrontosa ao princípio da razoabilidade.
e não vale, aqui, pretender o primado absoluto do princípio da legalidade. dúvida não temos em dizer que,
pelo correr do tempo, a segurança jurídica coloca entre parênteses o princípio da legalidade” (Curso de direito
administrativo: parte geral, intervenção do estado e estrutura da administração, p. 544).
243
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
244
para que se conclua pela não aplicação do citado prazo às impugnações judiciais dos
atos administrativos. Ademais, ao dispor sobre anulação, revogação e convalidação, a
lei trata do poder de autotutela da Administração Pública. Define a lei os parâmetros
legais a serem utilizados pela Administração quando ela própria exerça o controle em
relação aos seus atos. este argumento se estende ao controle a ser exercido pelo tribunal
de Contas da união sobre os atos da Administração Pública. ora, se a Lei nº 9.784/99
cuida do poder de autotutela da Administração, e se o tCu exerce controle externo
da atividade administrativa (CF, arts. 70 e 71), a conclusão deve ser no sentido de que
o referido prazo de cinco anos é aplicável às circunstâncias em que a própria unidade
administrativa de onde o ato emanou cogite de anulá-lo, no exercício do seu poder de
autotutela. esse prazo não se aplica aos órgãos responsáveis pelo controle externo da
atividade administrativa, seja esse controle externo exercido pelo Poder Judiciário, seja
ele exercido pelo tCu.44
em relação ao Poder Judiciário, os prazos aplicáveis são os previstos nas legislações processuais respectivas. desse modo, se for atacado ato administrativo por meio
de mandado de segurança, o prazo decadencial para sua interposição é de “cento e
vinte contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado” (Lei nº 1.533/51); se
for questionada a validade do ato por meio de ação popular, o prescricional é de cinco
anos (Lei nº 4.717/65); na eventualidade de ser utilizada a ação de improbidade, o prazo
prescricional é igualmente de cinco anos (Lei nº 8.429/92).
Proposta dentro do prazo prescricional ou decadencial aplicável à espécie, não
existe prazo para o juiz julgar a ação.
todas as considerações acima expostas não impedem, todavia, a aplicação do
princípio constitucional de segurança jurídica ao processo judicial. tomemos o seguinte
exemplo: no ano de 1989, portanto na vigência da Constituição Federal de 1988, são
providos cargos efetivos sem o necessário concurso público. o ministério Público propõe ação civil pública para anular o ato dentro do correspondente prazo prescricional.
Caso o juiz somente venha a proferir sentença no ano de 2006, isto é, decorridos 18
anos da prática do ato, sem que jamais tivesse sido concedida qualquer cautelar para
afastar os servidores nomeados ilegalmente, poderia ser determinada a anulação do ato
de provimento de mencionados cargos? A resposta parece-nos negativa. não se aplica
ao caso a Lei nº 9.784/99, que trata de processo administrativo. A impossibilidade de
revisão do ato decorre da aplicação direta do princípio da segurança jurídica.
5.7.2.6 Anulação e colisão de princípios
Algumas questões tormentosas relativas aos fundamentos para a anulação dos
atos administrativos devem ser enfrentadas. Como proceder na eventualidade de ato
praticado diante da colisão de princípios administrativos, por exemplo? deve ser anulado o ato que para realizar dispositivo legal (princípio da legalidade) viola o princípio
da moralidade, ou que visando à realização da eficiência viola a lei?
44
nesse sentido, stF: “Afastou-se, em seguida, a alegação de decadência administrativa, em razão de o ato de aposentadoria ser ato administrativo complexo que só se aperfeiçoa com registro perante o tCu, sem o qual não se operam
os efeitos da decadência. no mérito, na linha do que decidido pelo Pleno no ms 24.742/dF” (ms nº 25.090-dF, Pleno.
rel. min. eros Grau. Julg. 2.2.2005. DJ, 1º abr. 2005).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
em nada se deve diferenciar a abordagem a ser dada ao exame da validade do
ato administrativo praticado diante da aparente colisão de princípios da Administração
Pública em relação às soluções apresentadas pelo direito constitucional para exame da
constitucionalidade de leis.
nessas hipóteses, o direito Administrativo deve utilizar as soluções apresentadas
pelo Direito Constitucional para a solução de conflitos em que se verifique colisão de
princípios. O exame deve ser casuístico. Para cada ato em que se verifique a possibilidade de violação de um princípio como meio necessário à realização de outro, deve-se
proceder à ponderação dos valores jurídicos envolvidos e verificar, em cada caso, a
solução que melhor se coaduna ao interesse público.
Procedido a esse exame, a conclusão acerca da colisão de princípios pode ser no
sentido de confirmar a validade do ato ou a da sua anulação. Importante observar que
na primeira hipótese, de ser confirmada a validade do ato, não obstante a aparente violação de princípio constitucional, não se trata de situação que requeira a convalidação.
A convalidação deve ser utilizada caso seja confirmada a existência de vício sanável em
ato administrativo, e não de colisão de princípio.
tomemos o exemplo de contratação sem licitação realizada com o objetivo de
obter proposta mais vantajosa pela Administração. Poderíamos observar, no exemplo,
a realização do interesse público em seu plano econômico com a obtenção de vantagens
para a Administração. A não realização da licitação fora das hipóteses de dispensa e de
inexigibilidade previstas em lei, todavia, além de ferir o interesse público em seu plano
legal, viola dispositivos constitucionais e os princípios básicos da impessoalidade e da
moralidade. o resultado, no caso, deve ser a anulação do ato.
5.7.2.7 efeitos da anulação
Antes de se proceder ao exame das consequências da anulação do ato administrativo, devem ser verificados os fundamentos para a anulação e o momento em que
surgiram os vícios que justificam a anulação.
Ato administrativo nulo é aquele praticado sem a observância das exigências
legais ou constitucionais. o exame da nulidade é, portanto, retroativo. volta-se à
origem do ato para verificar se no momento em que foi praticado foram observados
os requisitos para sua validade. se neste momento for constatada a presença de vício
invalidante, o ato deve ser anulado e todos os efeitos dele decorrentes devem, como
regra, ser igualmente desconstituídos.
Discordamos frontalmente de qualquer afirmação — comum no âmbito do Direito Privado — no sentido de que o ato nulo não gera efeitos. o ato nulo efetivamente
produz efeitos. todavia, uma vez reconhecida e declarada formalmente sua nulidade,
os efeitos que dele tenham decorrido são igualmente nulos e devem ser desfeitos. eis
a razão pela qual a anulação administrativa ou judicial do ato administrativo opera
efeitos ex tunc. Anulado o ato, seus efeitos serão desconstituídos pelo ato anulatório.
ou seja, a anulação do ato é apenas a primeira etapa do processo que objetiva eliminar
do mundo jurídico todos os efeitos decorrentes do ato nulo.
Esta eficácia retroativa encontra, no entanto, algumas exceções.
A primeira exceção decorre da aplicação direta dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica. Verificada a boa-fé do destinatário do ato ou de terceiro, não obstante o
245
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
246
ato seja anulado, caso ele tenha sido praticado dentro do período de cinco anos, alguns
efeitos dele decorrentes podem ser preservados.45
Outra situação normalmente apresentada como exceção à eficácia ex tunc da anulação está ligada à teoria do fato consumado. efetivamente, se o ato gerou situação de
fato que, por maiores que sejam os esforços da Administração, não possa ser revertida,
resta pouco a fazer a não ser manter esses efeitos. todos os operadores do direito, aí
incluída a Administração Pública, devem lutar contra a teoria dos fatos consumados
que, quase sempre, constituem absurdos jurídicos consumados.46
em nome do interesse público, devemos procurar nos contrapor, com todas
nossas forças, à teoria do fato consumado, adotada com infeliz frequência pelo Poder
Judiciário. no âmbito judicial, não são incomuns odiosas situações criadas pela concessão de medidas cautelares e, decorridos anos, por ocasião do julgamento do mérito,
argumenta-se com base nesta teoria a impossibilidade de se reverter o quadro verificado.
5.7.2.8 Consequências da anulação do ato anulatório
É por meio de ato administrativo ou judicial que se anula o ato administrativo
ilegal. A questão que se apresenta é a de saber o que ocorrerá caso o ato anulatório
contenha vício e venha a ser anulado. Podemos considerar a seguinte situação: caso o
ato A seja anulado pelo ato B — denominado ato anulatório —, e o ato B venha a ser
anulado por novo ato C, o ato A volta a vigorar?
em matéria de processo legislativo, a revogação de lei que havia revogado outra
não importa em que a primeira, aquela que fora inicialmente revogada, volte a vigorar,
salvo se houver disposição legal expressa.
no direito Administrativo, a solução parece ser diferente. A razão da distinção
reside no fato de que a revogação de leis, salvo situações excepcionais, não retroage. A
anulação de atos administrativos, ao contrário, importa como regra eficácia retroativa.
nesse sentido, anulado o ato B pelo ato C, desconstitui-se o ato B desde sua origem. daí
se concluir que o ato A volta a vigorar.47 seria igualmente correto argumentar, ademais,
45
46
47
stJ: “Administrativo – Ato Administrativo: revogação – decadência – Lei 9.784/99 – vantagem funcional – direito
adquirido – devolução de valores. Até o advento da Lei 9.784/99, a Administração podia revogar a qualquer tempo
os seus próprios atos, quando eivados de vícios, na dicção das súmulas 346 e 473/stF. A Lei 9.784/99, ao disciplinar o processo administrativo, estabeleceu o prazo de cinco anos para que pudesse a Administração revogar os
seus atos (art. 54). A vigência do dispositivo, dentro da lógica interpretativa, tem início a partir da publicação da
lei, não sendo possível retroagir a norma para limitar a Administração em relação ao passado. ilegalidade do ato
administrativo que contemplou a impetrante com vantagem funcional derivada de transformação do cargo efetivo
em comissão, após a aposentadoria da servidora. Dispensada a restituição dos valores em razão da boa-fé da servidora no
recebimento das parcelas. segurança concedida em parte” (ms nº 9.112-dF, Corte especial. rel. min. eliana Calmon.
Julg. 16.2.2005. DJ, 14 nov. 2005, grifos nossos).
no sentido de preservar o fato consumado, stF: “Concurso público – delegado de polícia – exame psicotécnico.
se a lei exige, para a investidura no cargo, o exame psicotécnico, não pode este ser dispensado, sob pena de
ofensa ao art. 37, i, da Constituição. não pode, a circunstância de ter sido a liminar deferida, sanar a inconstitucionalidade da sua concessão. recurso extraordinário provido” (re nº 275.159-sC, 1ª turma. rel. min. ellen
Gracie. Julg. 11.10.2001. DJ, 11 out. 2001, grifos nossos).
em sentido contrário, stF: “Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. recurso que não demonstra o desacerto da decisão agravada. 3. matéria prequestionada. 4. Concurso público. Auditor Fiscal do tesouro nacional.
Aplicação da teoria do fato consumado. Impossibilidade. Precedentes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento”
(re nº 462.909-Agr/Go, 2ª turma. rel. min. Gilmar mendes. Julg. 4.4.2006. DJ, 12 maio 2006, grifos nossos).
de se observar que o raciocínio adotado para a anulação de atos é o mesmo da declaração de inconstitucionalidade.
nesse sentido, stJ: “Contribuição previdenciária patronal. empresa agroindustrial. inconstitucionalidade. efeito
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
que em razão dos vícios verificados no ato B, o ato A não foi validamente retirado do
mundo jurídico. desse modo, não haveria que se falar em repristinação, mas em efeito
repristinatório, pois a anulação do ato B não fez com que o ato A voltasse a existir, mas
a produzir efeitos. Ao que parece é a mesma situação quando se declara a inconstitucionalidade de uma lei revogadora. A lei revogada volta a produzir efeitos, uma vez
que a revogação não se operou validamente.48
o raciocínio a ser adotado para o exame dos efeitos da anulação do ato anulatório é exatamente oposto ao que se utiliza para o processo legislativo. A anulação do
ato anulatório resulta na vigência plena do ato inicialmente anulado, salvo declaração
expressa em sentido contrário. exemplo: tendo sido constatado que o ato A foi anulado
pelo ato B em razão de desvio de finalidade e, posteriormente, tendo sido verificado
que o ato B contém vício de forma, ou de competência, este será anulado pelo ato C. A
regra é que isto importa em que o ato A volte a vigorar. A fim de evitar o retorno do ato
A, cujo vício não foi sanado ou deixou de existir, deve ser expressamente mencionado
que a anulação do ato A é mantida.
Conforme mencionado, o mesmo raciocínio adotado para a anulação do ato
anulatório pela via administrativa deve ser utilizado quando esta se dê por meio judicial. Caso decisão judicial anule ato anulatório, a sentença deve expressamente indicar
a solução acerca da vigência do ato inicialmente anulado. do contrário, este primeiro
ato volta a ter vigência plena.
5.7.2.9 Anulação e dever de indenizar
A fim de se verificar a responsabilidade civil do Estado diante da anulação do ato
administrativo deve ser considerada a existência de boa-fé ou de má-fé do particular
que sofra eventuais prejuízos em razão do desfazimento do ato.
demonstrada a boa-fé do particular, impõe-se à Administração o dever de indenizar os prejuízos sofridos pelo particular, ainda que os dispêndios realizados pelo
particular não aproveitem à Administração. se, por exemplo, for contratada a execução
de obra pública sem a obtenção das necessárias licenças ambientais, a contratação deverá
ser anulada. Caso a empresa contratada tenha realizado despesas de mobilização e de
desmobilização, despesas essas que não aproveitam à Administração Pública, deverão
elas, ainda assim, serem indenizadas.
48
repristinatório. Lei de introdução ao Código Civil. 1. A declaração de inconstitucionalidade em tese, ao excluir
do ordenamento positivo a manifestação estatal inválida, produz efeito repristinatório, conduzindo à restauração de
eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. 2. o chamado efeito repristinatório da
declaração de inconstitucionalidade não se confunde com a repristinação prevista no art. 2º, §3º, da LiCC, sobretudo porque, no primeiro caso, não há sequer revogação no plano jurídico. 3. recurso especial não-provido” (resp
nº 491.009-Pr, 2ª turma. rel. min. João otávio de noronha. Julg. 18.5.2006. DJ, 03 ago. 2006, grifos nossos).
nesse sentido, stJ: “Constitucional. tributário. revogação e declaração de inconstitucionalidade. efeitos. 1. A
revogação, por ter como objeto norma válida, produz seus efeitos para o futuro. dessa maneira, as situações advindas da incidência da norma no período compreendido entre a edição e a revogação permanecem inalteradas. Por
sua vez, a declaração de inconstitucionalidade resulta na nulidade, desde a origem, da norma, que nem chegou a
ter incidência. Retorna-se à situação anterior, validando-se a legislação pretérita, porque eficaz. 2. ‘A declaração de
inconstitucionalidade da lei revogadora produz efeitos repristinatórios, restabelecendo-se a eficácia da lei revogada, o que não se
confunde com a repristinação prevista no art. 2º, §3º, da LICC, sobretudo porque, no primeiro caso, não há sequer revogação no
plano jurídico’ (AGA nº 545.156. rel. min. João otávio de noronha, DJU de 14.06.2004). 3. recurso especial improvido” (resp nº 652264-sC, 2ª turma. rel. min. Castro meira. Julg. 14.9.2004. DJ, 03 nov. 2004, grifos nossos).
247
248
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
se, ao contrário, for demonstrado que o particular concorreu para a prática do
vício, ainda que haja culpa concorrente de algum agente público, deve ser considerada
a existência de duas diferentes circunstâncias:
1. As despesas realizadas pelo particular aproveitam à Administração Pública; ou
2. As despesas realizadas pelo particular não aproveitam à Administração Pública.
Comprovada a má-fé do particular, somente é possível falar em direito de obter
indenização da Administração se for comprovado que os dispêndios realizados aproveitaram à Administração. se a atividade resultante do ato nulo tiver gerado algum
benefício direto e material para a Administração Pública, que poderia consistir na
prestação de serviços, execução de obras, recebimento de bens, não se pode utilizar
a nulidade do contrato como fundamento para não indenizar. Comprovada a má-fé
do particular, ele deve ser punido penal, administrativa e civilmente. se, todavia, for
demonstrado benefício para a Administração, no sentido de que as despesas realizadas
pelo particular foram apropriadas pelo estado, deve haver indenização ao particular a
fim de não caracterizar enriquecimento sem causa do poder público. Exemplo: considere
que determinada empresa é contratada sem licitação apresentando atestado falso de
exclusividade (Lei nº 8.666/93, art. 25, i). se os bens objeto do contrato foram entregues
à Administração, a anulação do contrato não legitima o não pagamento pela entrega
dos bens — pagamento que deve ser expurgado de quaisquer benefícios e despesas
indiretas. Deve ser quantificado o valor que efetivamente aproveita à Administração e
este valor deve ser pago ao particular.
A situação acima já se encontra pacificada pela jurisprudência em relação à anulação de nomeação de cargos públicos. efetivamente, este dever de indenização que se
impõe constitui exceção à eficácia retroativa da anulação do ato administrativo. Aplicada
com frieza a regra de que de ato nulo não se pode esperar efeito válido, dever-se-ia cogitar
de se restituírem aos cofres públicos os valores pagos ao servidor, caso sua nomeação ou
posse sejam anuladas. É de se observar, todavia, que o pagamento da indenização, nestas
circunstâncias, não é consequência direta da investidura no cargo ou da celebração do
contrato. o pagamento está ligado à contraprestação pelos serviços desempenhados pelo
servidor e, no caso de empresa contratada, pelo fornecimento dos bens, pela execução
da obra, pela prestação do serviço ou fornecimento do bem.
no caso de servidor público, anulado o ato de nomeação, os valores pagos não
devem ser restituídos, não por conta de remuneração ou de pagamento de salário, mas
como indenização em razão dos serviços efetivamente prestados. o mesmo raciocínio
aplicável aos servidores públicos que tenham suas nomeações anuladas pode ser utilizado em favor de empresas contratadas pela Administração Pública cujos contratos
venham a ser anulados.
5.7.2.10 Órgãos competentes para a anulação
Conforme indicado pela súmula nº 473 do stF, tanto a Administração Pública
quanto o Poder Judiciário dispõem de competência para anular atos administrativos.
em alguns aspectos o exercício dessa potestade se diferencia quando ela é exercida pela Administração ou pela via judicial. A primeira diz respeito ao fato de que a
Administração pode agir de ofício ou por provocação, ao passo que a anulação do ato
administrativo pela via judicial necessita de provocação.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
As ações mais frequentemente utilizadas para a obtenção da anulação pela via
judicial são, além a própria ação anulatória, o mandado de segurança, a ação civil
pública, a ação popular, a ação de improbidade administrativa, e, caso se trate de ato
normativo, a ação direta de inconstitucionalidade.
outro aspecto em que a anulação judicial e administrativa se diferenciam é em
relação aos prazos a serem observados: a anulação administrativa observa o prazo
prescricional de cinco anos da data em que o ato foi praticado, ao passo que a anulação
judicial deve ser proposta nos prazos prescricionais ou decadenciais pertinentes à ação
utilizada.
importa observar que além da Administração e do Poder Judiciário, o tribunal
de Contas da união possui competência constitucional (art. 70) expressa para examinar a legalidade dos atos praticados pela Administração Pública direta e indireta.
Nesse sentido, “verificada ilegalidade em ato ou contrato, o TCU deve, inicialmente,
assinar prazo para que o órgão ou entidade adote providências necessárias ao exato
cumprimento da lei” (CF, art. 71, IX). Caso o órgão não cumpra a determinação fixada
pelo Tribunal, deve-se verificar se se trata de ato ou de contrato. No primeiro caso, de
ser verificada ilegalidade em ato administrativo, caso o órgão ou entidade não adote a
providência determinada, o próprio tCu deve promover a sua anulação (CF, art. 71, X).
se, ao contrário, se tratar de contrato, esgotado o prazo indicado pelo tribunal sem que
tenha sido adotada qualquer providência, deve ser informado o Congresso nacional,
competente para a sustação.49
o tCu, não obstante sua estatura constitucional, é tribunal administrativo e a
sua atuação não pode ser considerada como decorrente do poder de autotutela de que
dispõe a Administração Pública. no exercício do seu poder de autotutela, a autoridade
administrativa dispõe da potestade de anular ou de revogar atos administrativos. o
exame a ser realizado pelo tCu, que pode agir de ofício ou mediante provocação, está
ligado tão somente a razões de legalidade, legitimidade e economicidade da atividade administrativa.50 não pode o tCu determinar a revisão do ato em razão de eventual juízo
desenvolvido pelo tribunal quanto à falta de oportunidade ou de conveniência de ser
mantido o ato ou de seu desfazimento. O TCU deve restringir sua fiscalização — em
auditorias, inspeções, denúncias, representações, processos de tomadas ou de prestações
de contas — ao exame da conformidade do ato com o ordenamento jurídico. não exerce
o tCu, portanto, qualquer controle de mérito, mas tão somente de legitimidade (aqui
incluído o exame da economicidade da atividade administrativa).
A natureza administrativa dos processos conduzidos no tCu — regidos pela Lei
nº 8.443/92 e pelo seu regimento interno — permite a aplicação, em caráter supletivo,
da Lei nº 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da Administração
Pública federal, conforme jurisprudência do stF que tem como precedente o ms
nº 23.550 (min. rel. sepúlveda Pertence). Como requisito à anulação de atos administrativos, o tCu deve assegurar o pleno exercício do contraditório, da ampla defesa etc.
49
50
Parece-nos que o termo “sustação” utilizado pela Constituição Federal no art. 71, X e §1º, deve ser interpretado
como gênero do qual são espécies a suspensão da execução do contrato ou a sua anulação, podendo ser utilizada
uma ou outra medida conforme o tCu ou o Congresso nacional entendam mais conveniente para a espécie.
não obstante o texto constitucional (art. 70) ter utilizado os três termos — legalidade, legitimidade e economicidade — para se referir ao exame a ser realizado pelo tCu, entendemos que eles podem-se reduzir a um só:
legitimidade. o ato ilegal e o ato antieconômico não são inconvenientes ou inoportunos; eles são atos ilegítimos.
249
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
250
No que toca ao prazo para a anulação, conforme definido no art. 54 da Lei nº 9.784/99,
a prescrição de cinco anos consta como limitação à autotutela administrativa. Como o
tCu não se utiliza do poder de autotutela para rever os atos e contratos celebrados pela
Administração Pública federal, mas de competência constitucional própria decorrente
da função de controle externo, ele pode exercer suas atribuições e, se for o caso, proceder à anulação independentemente de o ato ter sido praticado há mais de cinco anos.
Verificada a existência de vício de legalidade e confirmada a boa-fé do beneficiário do ato, o tCu deve proceder a exame casuístico. o tribunal deve examinar as
particularidades inerentes a cada ato ou contrato objeto da fiscalização e, procedendo à
ponderação entre o princípio da legalidade, de um lado, e da segurança jurídica e boa-fé,
do outro, definir se é caso de determinar a anulação ou se é possível a manutenção dos
atos ou contratos em que tenham sido verificadas as irregularidades.51 Caso a conclusão
seja no sentido de ser procedida à anulação do ato, as particularidades de cada caso
devem ser igualmente consideradas a fim de verificar a possibilidade de serem mantidos alguns efeitos decorrentes do ato. ou seja, a boa-fé do particular — ou servidor
público — pode interferir em dois aspectos no exame da validade do ato:
1. no momento em que se cogite da anulação ou não do ato; e
2. Caso a conclusão seja no sentido de se proceder à anulação, no exame da
desconstituição ou preservação dos efeitos decorrentes do ato anulado.
5.7.2.11 Anulação do ato de aposentadoria e restituição dos
proventos pagos
os atos concessão de aposentadoria ou de pensão, bem como os de admissão de
pessoal, nos termos da Constituição Federal (art. 71, iii), sujeitam-se ao registro pelo
tCu. em face desta particularidade, a anulação desses atos obriga o administrador a
51
Acerca do tema, transcrevemos trecho do voto proferido pelo min. Gilmar mendes, relator do ms nº 24.268:
“impressiona-me, ademais, o fato de a cassação da pensão ter ocorrido passados 18 anos de sua concessão — e
agora já são 20 anos. não estou seguro de que se possa invocar o disposto no art. 54 da Lei nº 9.784, de 1999 (Lei
nº 9.784, de 29.1.1999): ‘Art. 54. o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram
efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo
comprovada má-fé. §1º no caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. §2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade
administrativa que importe impugnação à validade do ato.’ — embora tenha sido um dos incentivadores do
projeto que resultou na aludida lei —, uma vez que, talvez de forma ortodoxa, esse prazo não deva ser computado
com efeitos retroativos. Mas, afigura-se-me inegável que há um ‘quid’ relacionado com a segurança jurídica
que recomenda, no mínimo, maior cautela em casos como o dos autos. se estivéssemos a falar de direito real,
certamente já seria invocável a usucapião. A propósito do direito comparado, vale a pena ainda trazer à colação
clássico estudo de Almiro do Couto e silva sobre a aplicação do princípio da segurança jurídica: ‘É interessante
seguir os passos dessa evolução. o ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura
jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública,
o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa-fé e a confiança
(Treue und Glauben) dos administrados’. (...) Esclarece Otto Bachof que nenhum outro tema despertou maior
interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o princípio da possibilidade
de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança
jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá
quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de
procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts,
Tübingen 1966, 3. Auflage, v. 1, p. 257 et seq.; v. 2, 1967, p. 339 et seq.)” (ms nº 24.268-ed/mG, Pleno. rel. min. Gilmar
mendes. Julg. 3.5.2006. DJ, 09 jun. 2006).
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
observar alguns procedimentos especiais, não aplicáveis à anulação dos demais atos
administrativos. A matéria não é simples, o que pode ser constatado pela existência de
inúmeras súmulas editadas pelo stF e pelo tCu.
Passemos ao exame das questões relativas à possibilidade e aos limites para que
a Administração possa rever os seus atos de concessão de aposentadoria ou de pensão.
Constatada ilegalidade na concessão de aposentadoria, pensão ou reforma o
primeiro aspecto a ser considerado pela Administração com vistas à anulação do ato
é a verificação da ocorrência de registro no TCU, ou no respectivo Tribunal de Contas
estadual,52 no caso de se tratar de ato praticado pelas Administrações estaduais ou
municipais.
A primeira condição para a Administração rever o seu ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão é que o tCu ainda não tenha apreciado o ato, conforme
preconizam a súmula nº 6 da Jurisprudência do stF e a súmula nº 199 do tCu.
não tendo o ato de concessão sido apreciado pelo tribunal, é preciso distinguir os
casos em que fique comprovada má-fé — que, conforme já observado, não se sujeitam
ao prazo de cinco anos fixado no art. 54 da Lei nº 9.874/99 — e os casos em que haja
boa-fé, que se sujeitam ao prazo prescricional
Comprovando-se a má-fé (em processo administrativo que tenha assegurado a
ampla defesa e o contraditório nos termos da Lei nº 9.784/99) e não tendo sido o ato
apreciado pelo tCu, a Administração poderá anulá-lo ainda que praticado há mais de
cinco anos.
não se comprovando a má-fé e não tendo o ato sido apreciado pelo tribunal, a
Administração poderá revê-lo desde que tenha sido praticado há menos de cinco anos. A
má ou boa-fé do administrado irá interferir apenas na possibilidade de o ato ser anulado
após a expiração do prazo de cinco anos. Ainda que tenha havido boa-fé por parte do
administrado, se o ato foi praticado dentro do citado prazo, deverá a Administração
proceder à sua invalidação.
Na segunda hipótese, que se verifica caso o ato já tenha sido registrado pelo
tribunal, a Administração deverá submeter o processo administrativo de revisão ao
TCU, a fim de que o Tribunal delibere sobre a matéria, conforme determina a Súmula
nº 6 do stF.
sendo possível a revisão pela própria Administração (com efeitos desfavoráveis
ao beneficiário independente de reapreciação pelo TCU), a regra é que deverá ser providenciado o ressarcimento, salvo se presentes as circunstâncias referidas no enunciado
nº 249 da Jurisprudência do tCu.53 A necessidade de restituição dos valores pagos se
deve ao fato de que o ato não apreciado pelo Tribunal não gera para o beneficiário
segurança jurídica oponível contra o estado. esse o aspecto fundamental a ser considerado: somente após a apreciação pelo tribunal de Contas de ato sujeito a registro,
52
53
incluídos também, conforme o caso, os tribunais de Contas dos municípios e os tribunais de Contas dos municípios de são Paulo e do rio de Janeiro.
súmula nº 106: “o julgamento, pela ilegalidade, das concessões de reforma, aposentadoria e pensão, não implica
por si só a obrigatoriedade da reposição das importâncias já recebidas de boa-fé, até a data do conhecimento da
decisão pelo órgão competente”; e súmula nº 249: “É dispensada a reposição de importâncias indevidamente percebidas, de boa-fé, por servidores ativos e inativos, e pensionistas, em virtude de erro escusável de interpretação
de lei por parte do órgão/entidade, ou por parte de autoridade legalmente investida em função de orientação e
supervisão, à vista da presunção de legalidade do ato administrativo e do caráter alimentar das parcelas salariais”.
251
252
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
será conferida ao seu beneficiário a segurança jurídica que impedirá a eficácia ex tunc
do ato de invalidação.
O ressarcimento, nessas hipóteses, deverá ser feito conforme fixado pelo art. 46
da Lei nº 8.112/90.
examinadas as situações em que a Administração Pública deverá rever seus atos
de concessão de aposentadoria, passamos às questões referentes às possibilidades e aos
limites de revisões aplicáveis ao próprio tCu.
Inicialmente, deve ser observado, conforme orientação pacífica do STF (MS nº 25.090),
o decurso do prazo de cinco anos entre a concessão da aposentadoria ou da pensão pelo
órgão de origem e o seu exame pelo tCu. É de se notar que o decurso desse prazo não
impede que o tribunal negue registro ao ato de aposentadoria.
situação distinta consiste em saber se, uma vez registrado o ato pelo tCu, poderá
este tribunal a qualquer tempo rever o seu ato, ou terá de respeitar o prazo de cinco
anos da Lei nº 9.784/99? em outras palavras: o tCu está sujeito à Lei nº 9.784/99 quando
rever o seu próprio ato de registro de aposentadoria ou de pensão?
o ato por meio do qual o tCu registra concessão de aposentadoria se trata de
ato de controle da Administração Pública. evidenciado o erro inicial, o tribunal tem o
dever de revisar a sua decisão, ainda que da revisão decorra prejuízo para o beneficiário. trata-se de poder-dever decorrente do princípio da legalidade, que é prerrogativa
e dever geral da Administração Pública aplicável também ao tCu.
Assim, não comprovada a má-fé do beneficiário da aposentadoria ou pensão,
o TCU se sujeita ao prazo fixado no art. 54 da Lei nº 9.784/99, podendo rever os seus
atos de apreciação de concessões praticados há menos de cinco anos. desse modo,
em respeito ao princípio da segurança jurídica que opera em favor do beneficiário, a
prerrogativa de rever o seu ato prescreve também para o tribunal de Contas em cinco
anos, nos termos do art. 54 da Lei nº 9.784/99.
Comprovada a má-fé, não pode o beneficiário invocar a segurança jurídica em
seu proveito, podendo a deliberação que apreciou a legalidade do ato de concessão ser
revista mesmo se ocorrida há mais de cinco anos. Assim, no caso de má-fé do aposentado ou pensionista, a deliberação do tribunal poderá ser revista a qualquer tempo.
A revisão de ofício das deliberações do tCu em matéria de registro de aposentadoria se submete aos parâmetros gerais utilizados pela Administração para a anulação
dos atos administrativos em razão da aplicação subsidiária da Lei nº 9.784/99 à Lei
orgânica do tCu (Lei nº 8.443/92). nesses termos, nos casos em que não se comprove
má-fé, a revisão da deliberação que inicialmente apreciou a concessão deverá ter efeitos apenas ex nunc, com a suspensão total ou parcial do pagamento do benefício sem
exigência de devolução dos pagamentos anteriores.
trata-se de aplicação do princípio da segurança jurídica. Já apreciado o ato pelo
Tribunal, que visa a transformar em definitiva situação que até então era instável, deve
o beneficiário ter proteção maior do que aquele cujo ato não foi ainda apreciado. Essa
proteção não chega, ainda, a inviabilizar a própria revisão — o que só ocorre após o
prazo de cinco anos da apreciação pelo Tribunal —, mas assegura ao beneficiário a
intangibilidade do que tenha recebido indevidamente, respaldado pela Administração
e pelo tCu.
nos casos de comprovada má-fé (observado, claro, o devido processo legal, com
todas as suas garantias) o tCu poderá a qualquer tempo rever o ato e determinar a
restituição dos valores pagos, haja vista a inaplicabilidade do princípio da segurança
jurídica.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
Podemos, então apresentar as seguintes conclusões acerca da anulação de atos
que tenham concedido aposentadoria, pensões ou reformas:
a) A primeira condição para que a Administração possa rever o seu ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão, com efeitos desfavoráveis ao
beneficiário, independentemente de nova apreciação pelo Tribunal de Contas,
é que o tCu ainda não tenha apreciado o ato, conforme preconizam a súmula
nº 6 da Jurisprudência do supremo tribunal Federal e a súmula nº 199 do
tribunal de Contas da união;
b) nesta hipótese, não tendo o ato de concessão sido apreciado pelo tribunal,
é preciso distinguir os casos em que fique comprovada má-fé (que não se
sujeitam ao prazo decadencial fixado no art. 54 da Lei nº 9.784/99) e os casos
em que não se comprove a má-fé (que se sujeitam ao prazo de decadência);
c) não se comprovando a má-fé e não tendo o ato sido apreciado pelo tribunal, a
Administração poderá revê-lo desde que o ato tenha sido praticado há menos
de cinco anos;
d) Comprovando-se a má-fé (em processo administrativo em que tenha sido
assegurada a ampla defesa e o contraditório nos termos da Lei nº 9.784/99) e
não tendo sido o ato apreciado pelo tribunal, a Administração poderá revê-lo
mesmo se praticado há mais de cinco anos;
e) Caso o ato já tenha sido apreciado pelo tribunal, a Administração deverá submeter o processo administrativo de revisão ao TCU, a fim de que o Tribunal
delibere sobre a matéria;
f) sendo possível a revisão pela própria Administração (com efeitos desfavoráveis ao beneficiário independente de reapreciação pelo TCU), a regra é que
deverá ser providenciado o ressarcimento ao erário, salvo se presentes as
circunstâncias referidas no enunciado nº 249 da jurisprudência do tribunal
de Contas da união, porque o ato não apreciado pelo tCu não gera para o
beneficiário segurança jurídica oponível contra o Estado;
g) O ressarcimento deverá ser feito, sempre que possível, conforme fixado pelo
art. 46 da Lei nº 8.112/90;
h) não sendo possível a adoção do procedimento de ressarcimento previsto
no art. 46 da Lei nº 8.112/90, deverá ser observado o §1º do art. 122 da Lei
nº 8.112/90.
5.7.2.12 Anulação, cassação e caducidade
A anulação e a cassação têm alguns aspectos em comuns e ocorrem em razão de
ilegalidade. distinguem-se, em primeiro lugar, em razão do momento em que a ilegalidade
se verifica. no caso da anulação, a ilegalidade ocorre no momento em que o ato é praticado; a cassação se deve a fatos supervenientes à prática do ato, mas que justificam a
sua suspensão. em razão desta distinção, a anulação é forma de desconstituição do ato;
a cassação não desconstitui o ato, posto que não ataca sua origem, mas apenas impede
que continue a produzir efeitos. nesse sentido, em relação à eficácia, a cassação mais se
aproxima — como será examinado em seguida — da revogação, desta se distinguindo
porque a revogação ocorre por motivo de conveniência e oportunidade ao passo que a
cassação ocorre por motivo de ilegalidade.
253
254
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Para melhor demonstrar as diferenças entre a cassação e a anulação, podemos
examinar situações relativas à concessão de aposentadoria: caso tenha sido concedida
aposentadoria com violação das exigências legais — utilização de certidão falsa de
tempo de serviço, por exemplo — deve ser anulada a concessão. Ao contrário, caso
seja constatado que após a concessão de aposentadoria o servidor, ainda na atividade,
havia cometido infração administrativa punível com pena de demissão, deve ser instaurado processo disciplinar com vistas à cassação da aposentadoria deste servidor (Lei
nº 8.112/90, art. 134). deve ser observado que a aposentadoria, nesta segunda hipótese,
é válida. o servidor que a obteve preenchia todos os requisitos legais à sua obtenção.
Caso seja instaurado processo disciplinar e seja aplicada a pena de cassação de aposentadoria, os efeitos não retroagem à concessão. tendo sido cassada a aposentadoria, os
efeitos de sua concessão deixam de existir. o que motiva a cassação da aposentadoria é
a condenação decorrente de processo disciplinar (fato superveniente) e não a existência
de ilegalidade na concessão, daí por que seus efeitos são distintos da anulação: a cassação
opera com eficácia ex nunc; a anulação, com eficácia ex tunc.
A caducidade constitui hipótese de extinção de ato administrativo decorrente da
superveniência de norma jurídica que passa a impedir a permanência de uma situação
jurídica anteriormente reconhecida pela Administração. A doutrina cita como exemplo
a caducidade de uma permissão para uso de um bem público, em decorrência de uma
lei posterior que proíbe tal uso privativo por particulares.
5.7.3 revogação
5.7.3.1 Fundamentos
A possibilidade de revisão dos atos administrativos não se restringe a razões
de natureza legal. Fatores relacionados à conveniência ou à oportunidade permitem
igualmente, em algumas situações, a revisão pela Administração Pública dos seus atos.
essa potestade foi reconhecida em nosso sistema jurídico, inicialmente, pelo supremo
tribunal Federal por meio da súmula nº 473 — “A Administração pode anular seus
próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se
originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados
os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial” (grifos
nossos) —, e posteriormente confirmada pela Lei nº 9.784/99.
são razões de mérito que permitem a revogação do ato. esta regra gera uma série
de condicionantes para a revisão do ato.
de se observar, em primeiro lugar, que a revogação de qualquer ato deve ser
necessariamente motivada (Lei nº 9.784/99, art. 50) e justificada como meio necessário
à realização do interesse público. A potestade de revogar seus atos não confere à Administração carta branca para a prática de atos de perseguição ou de favorecimento. não
pode a revogação, sob pena de invalidação do ato revocatório, ser instrumento para a
violação da impessoalidade, da moralidade, da finalidade ou de qualquer outro princípio ou preceito legal.
outro aspecto relacionado ao poder de revogar atos como mecanismo de controle
de mérito diz respeito à competência para revogação: somente a Administração Pública pode
revogar seus atos. A rigor, apenas a autoridade que praticou o ato, ou aquela que lhe seja
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
hierarquicamente superior, dispõe de competência para revogar atos administrativos. o
Poder Judiciário ou o tCu não podem, sob qualquer argumento, determinar a revisão
de atos administrativos sob o pretexto de conveniência ou de oportunidade.
Importa uma vez mais destacar que a economicidade, a razoabilidade e a finalidade não são elementos inerentes ao mérito, mas à legitimidade do ato. os atos
antieconômicos, desarrazoados ou com vício de finalidade não são inconvenientes ou
inoportunos; eles são ilegítimos e suscetíveis ao controle judicial e àquele efetuado
pelos tribunais de Contas.
5.7.3.2 efeitos
A revogação do ato administrativo produz eficácia ex nunc. A explicação para a
não retroatividade da revogação decorre da validade do ato a ser revogado. se o ato,
ao ser praticado, contrariou a ordem jurídica, ele não pode ser revogado. se em sua
origem é identificado vício invalidante, ele deve ser anulado.
A impossibilidade de serem desconstituídos os efeitos já produzidos pelo ato a
ser revogado está diretamente ligada ao princípio da segurança jurídica. A anulação
dos atos administrativos opera efeitos retroativos porque do ato nulo não se podem
esperar efeitos jurídicos válidos, daí a necessidade de que a anulação produza eficácia
ex tunc. em relação à revogação, que, ao contrário, pressupõe a validade do ato, não se
admite a sua retroatividade.
A revogação, a bem da verdade, não desconstitui o ato revogado, ela não o
suprime do mundo jurídico; ela simplesmente impede que ele produza novos efeitos.
isto explica por que o termo revogação é tão pouco utilizado na prática administrativa,
sendo bem mais frequente a expressão “sustação dos efeitos”. Quando o administrador susta os efeitos de determinado ato, ele o revogou. do ponto de vista técnico, a
revogação não é a revisão do ato em si, mas tão somente a suspensão dos efeitos do
ato com eficácia ex nunc.
5.7.3.3 Atos irrevogáveis
outro importante aspecto relacionado à revogação dos atos administrativos diz
respeito à existência de um rol de atos que, por distintas razões, não se sujeitam ao
controle de mérito.
Não são passíveis de revogação
- Ato vinculado – A vinculação administrativa está ligada ao fato de que, diante
de determinada circunstância, a Administração vê-se obrigada a praticar o ato
com o conteúdo definido em lei. Assim sendo, razões de conveniência ou de
oportunidade, que não interferiram por ocasião da prática do ato, não podem ser
consideradas para desfazê-lo. exemplo: em determinada unidade administrativa, existe uma servidora que obteve licença maternidade (ou gestante) e outra
que solicitou e lhe foi concedida licença para tratar de interesse pessoal. Caso a
servidora tenha ou adote um filho, a Administração está obrigada a conceder
a licença, porque se trata de ato vinculado. em relação à licença concedida à
segunda servidora para tratar de interesse pessoal, a concessão decorreu do
juízo de conveniência da Administração Pública. se for constatado problema
de carência de pessoal em referida unidade, a Administração poderia revogar
255
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
256
a concessão das duas licenças? em relação à primeira licença, haja vista se
tratar de ato vinculado, a Administração não pode revogá-la, por mais inconveniente que considere o afastamento da servidora. O mesmo não se verifica
em relação à licença para a segunda servidora tratar de interesse pessoal. esta
foi concedida porque a Administração a considerou conveniente. se circunstâncias posteriores afetam esse juízo, a Administração pode, desde que o faça
de forma fundamentada, revogar o ato. em resumo: dado que razões de mérito
somente interferem na formação do ato discricionário, os atos vinculados não
se sujeitam ao juízo de revogação da Administração Pública;
- Ato exaurido (ou consumado) – Ato exaurido é aquele cujos efeitos se encontram
no passado. ora, se a revogação não pode retroagir, se ela não pode alcançar
efeitos já produzidos pelo ato, a consequência lógica e necessária dessa afirmação é a de que esta categoria de atos não pode ser revogada;
- Ato individual que gere direito adquirido – Ato individual é aquele que afeta
pessoa ou pessoas determinadas. É aquele em que o simples exame do ato,
independentemente de quaisquer outros fatores, permite indicar os seus destinatários. Por direito adquirido devemos entender o que legitima alguém a
exigir de outrem o adimplemento de obrigação positiva ou negativa. se o ato
individual gerou direito adquirido, desaparece a prerrogativa da Administração
de revogá-lo. essa impossibilidade consta de modo expresso tanto na súmula
stF nº 473 quanto no art. 53 da Lei nº 9.784/99. A nomeação de candidato
aprovado em concurso público, por exemplo, se trata de ato discricionário, o
que, em princípio, não lhe impede a revogação. se o candidato toma posse,
ele adquire direito ao exercício das atribuições e, estando legitimado a exigir
da Administração o cumprimento de determinadas providências, já não mais
poderá o provimento do cargo ser revogado. em relação ao ato geral, aquele
cujos destinatários são indefinidos, não obstante ele possa gerar direitos adquiridos, a Administração pode revogá-los a qualquer tempo. A revogação do
ato geral não objetiva afetar ou desconstituir as situações já constituídas ou
aperfeiçoadas, mas apenas impedir o surgimento de novas relações jurídicas.
nesse sentido, o ato administrativo geral, não obstante tenha gerado direitos,
sujeita-se à revogação, desde que os direitos já constituídos sejam respeitados,
conforme observam a súmula stF nº 473 e a Lei nº 9.784/99 mencionadas.
em relação à revogação, e aos limites ao exercício dessa potestade, algumas
interessantes questões são apresentadas.
5.7.3.4 revogação e interesse público
Questão interessante reside em saber como deve proceder a Administração Pública
caso determinado ato válido (o que impede a sua anulação) tenha gerado direito adquirido (fato que impede a sua revogação) e se mostre inconveniente ou inoportuno para
o poder público. o exemplo mais freqüentemente apresentado deste tipo de situação
pela doutrina diz respeito à obra licenciada, mas não executada, que venha a violar
os padrões urbanísticos fixados em lei aprovada após a expedição da licença.54 não
54
esse exemplo é apresentado por meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 186. o ilustre autor,
em nota de rodapé, menciona Caio tácito que, em conferência proferida no i Congresso Brasileiro de direito
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
se pode, no caso, falar em invalidação superveniente do ato. Ao contrário, expedida a
licença em conformidade com os normativos vigentes naquela oportunidade, não poderia a lei posterior retroagir para fulminar o ato jurídico perfeito, em razão de expressa
vedação constitucional (CF, art. 5º, XXXvi). não se pode falar igualmente em cassação
da licença. esta somente pode ser utilizada quando expressamente prevista em lei, e se
circunstâncias posteriores — e jamais mudança legislativa — vierem a afetar a validade
do ato. os requisitos para a revogação também não se mostram presentes. dado que
a concessão da licença gerou para o titular direito adquirido à construção do imóvel,
é abusivo o ato de revogação em nome de interesse público. este somente se realiza se
o ordenamento jurídico for observado. dado que a expedição da licença observou as
exigências legais, como se poderia alegar interesse público como fundamento para a
sua revogação?
Ademais, permitir a revogação de atos em situações como a que examinamos
importaria em dar retroatividade à lei em evidente violação ao princípio da segurança
jurídica, ao direito adquirido e em detrimento do ato jurídico perfeito, protegidos, como
visto, pela Constituição Federal como direitos e garantias individuais.
segundo Hely Lopes meirelles, para situações em que o “ato operante e irrevogável tornar-se inconveniente ao interesse público”, a solução seria a “supressão do
ato mediante indenização completa dos prejuízos suportados pelo seu beneficiário”.55
ousamos discordar do ilustre autor. Alegar que a revogação deve, nessas hipóteses, ser precedida de indenização ao particular que sofra prejuízos não é solução. não é
a possibilidade de indenizar o particular que legitima a revogação do ato. e mais, não é
a substituição do termo “revogação” pelo de “supressão” que modifica as circunstâncias
e a forma de proceder da Administração. Com a expedição da licença, o beneficiário
obteve o direito de construir em sua propriedade, e não o de ser indenizado caso sua
licença venha a ser revogada.
A única opção de que dispõe a Administração Pública para impedir a construção
diante das circunstâncias apontadas — em que foi licitamente concedido alvará que,
de acordo com legislação superveniente, não poderia ser expedido — seria, conforme
apontado por Caio tácito, a Administração Pública seguir todos os procedimentos
com vista a promover a desapropriação do imóvel a ser edificado.56 trata-se de opção
a ser utilizada discricionariamente pelo poder público nesta ou em qualquer outra
circunstância em que haja necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, pela
desapropriação, conforme definido no texto constitucional (art. 5º, XXIV).
5.7.3.5 revogação de atos processuais
Discussão igualmente interessante diz respeito à revogação dos atos não definitivos do processo, daqueles atos intermediários que não põem fim ao processo administrativo. Os atos não definitivos do processo se tornam preclusos à medida que sejam
55
56
Administrativo, realizado em Curitiba, em 1975, sugeriu que para essas situações deveria a Administração
Pública promover a desapropriação do imóvel.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 186.
Apud meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 186.
257
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
258
praticados os atos que lhes são subsequentes, conforme observa maria sylvia Zanella di
Pietro.57 se não ocorreu a preclusão do ato, e ele não se insere em alguma das categorias
de ato não revogável acima indicadas, é possível a sua revogação.
Afigura-se-nos igualmente possível a revogação do próprio processo administrativo, e não apenas de atos administrativos em duas hipóteses:
1) quando a lei tiver expressamente conferido ao administrador a competência
para essa revogação (exemplo: a revogação de licitação – Lei 8.666/93, art. 49);58
2) quando do processo administrativo resultar ato discricionário. se é legítimo
à Administração Pública revogar o ato discricionário, ela poderá ir além e
revogar todo o processo do qual resultou referido ato discricionário.
5.7.3.6 Prazo para revogação
Alguns questionamentos surgem acerca da inexistência de prazo legal para a
Administração revogar seus atos.
Poder-se-ia, inicialmente, cogitar da necessidade de ser fixado prazo ou de ser,
por analogia, utilizado o prazo de cinco anos para anulação do ato constante do art. 54
da Lei nº 9.784/99.
não há, todavia, prazo legal aplicável à revogação e não pode ser utilizada a
referida analogia. A impossibilidade de utilização do prazo de cinco anos decorre do
simples fato de que a grande maioria dos atos se torna irrevogável pelo simples fato de
que eles se consumam e, tendo sido produzidos todos os efeitos que deles se esperavam,
não mais podem ser revogados.
os atos administrativos são praticados com o objetivo de produzir efeitos certos e
determinados. É raro se encontrar ato administrativo cuja eficácia permaneça em suspenso
por prazo indefinido. Assim sendo, em relação ao ato ilegal, a Administração perde
o poder de anulá-lo em razão do decurso do prazo de cinco anos, salvo comprovada
má-fé; em relação aos atos que venham a se mostrar inconvenientes ou inoportunos, a
Administração não mais pode revogá-los em razão do esgotamento dos seus efeitos.
A revogação pressupõe a eficácia do ato, pressupõe que ele mantenha a aptidão para
produzir novos efeitos. se essa situação não mais se mostra possível, perde a Administração a potestade de revogar o ato.
5.7.3.7 revogação e dever de indenizar
É comum encontrarmos afirmações genéricas no sentido de que a revogação
gera, como regra, o dever para a Administração Pública de indenizar prejuízos sofridos
pelos beneficiários do ato.
57
58
di Pietro. direito administrativo, p. 239.
A Lei nº 8.666/93, em seu art. 49, dispõe nos seguintes termos:
“Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por
razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente
para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante
parecer escrito e devidamente fundamentado.”
A revogação da licitação, nos termos da lei, pressupõe a presença dos seguintes requisitos: interesse público,
“fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta” e motivação.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
A regra em relação ao dever de indenizar deve ser inversa. se a Administração
está legitimada a revogar atos tão somente em situações que não importem em violação
de direitos adquiridos, e sem que possam ser desconstituídos efeitos até então produzidos, não há que se falar, em regra, em dever de indenizar.
O beneficiário de ato revogável se encontra em situação precária. Desse modo,
eventuais prejuízos que venha a sofrer não serão, em regra, indenizáveis.
A possibilidade de indenização pode surgir somente em situações particulares
e excepcionais. exemplo: se determinado indivíduo obtém autorização de uso de área
pública por prazo determinado e, antes de expirado o prazo fixado, a Administração
decide revogar a autorização. se na legislação aplicável ou se no próprio ato não tiver
sido expressamente afastado o dever da Administração de indenizar, ela deverá ressarcir os prejuízos sofridos pelo beneficiário do ato. Situações como esta, em que a
revogação gera para a Administração o dever de ressarcir prejuízos, são exceção. A
regra a ser observada é a de que a possibilidade de revogação de atos administrativos
está condicionada à não violação de qualquer direito dos beneficiários, daí por que
não é cabível estabelecer que o dever da Administração de indenização seja a ser regra
utilizada para a revogação.
outro exemplo de indenização seria a revogação de permissão de serviço público,
conforme previsto no art. 40 da Lei nº 8.987/95.
não obstante a permissão se formalize mediante “contrato de adesão”, suas
principais características são a precariedade e a revogabilidade unilateral. ela pode,
assim, não conter prazo definido, hipótese em que caberá ao poder público revogá-la
a qualquer tempo, independentemente de indenização. Caso ela tenha sido formalizada com prazo certo — o que é de todo recomendável — o poder público mantém
a prerrogativa de revogá-la a qualquer tempo. nesta última hipótese, porém, caso o
poder público decida revogar a permissão antes de findo o prazo fixado, poderá fazê-lo
desde que pague prévia indenização ao permissionário. e mais, se o interesse público
o justificar, poderá ser revogada a permissão, e o pagamento da indenização ser feito a
posteriori, assegurado direito de contraditório e de ampla defesa no que toca à fixação
do valor a ser pago como indenização.
5.7.4 distinções entre anulação e revogação
A título de resumo, apresentamos o quadro a seguir com as principais distinções
entre anulação e revogação.
Anulação
Revogação
de legitimidade
de mérito
Fundamento
desconformidade com a ordem jurídica
raçoes de conveniência
e de oportunidade
Eficácia
Ex tunc
Ex nunc
Competência
Poder Judiciário / Administração Pública
Administração Pública
Natureza do
controle
259
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
260
5.7.5 Convalidação
durante muito tempo, a doutrina nacional discutiu a necessidade de ser reconhecida à Administração Pública a potestade de convalidar atos que apresentassem
defeitos sanáveis. Ante a ausência de norma específica de Direito Administrativo (ramo
do direito Público), buscava-se no direito Privado a distinção entre atos nulos e atos
anuláveis e procurava-se adotar essa gradação de invalidação dos atos jurídicos como
meio para permitir que a própria Administração Pública pudesse corrigir determinadas
falhas ou vícios de menor gravidade em atos administrativos.
Admitir que atos administrativos possam ser convalidados importa em permitir
que as falhas presentes no ato possam ser corrigidas com eficácia retroativa.59 Convalidado
o ato, ele passa a ser considerado válido desde sua origem. isto é, a convalidação opera
eficácia ex tunc. esta é a grande importância da convalidação e a razão que a distingue
da simples anulação do primeiro ato e a prática de novo ato. Praticado novo ato, ele
somente produziria efeitos deste momento em diante. Convalidado o ato, a convalidação
retroage e lhe confere validade desde sua origem.
A possibilidade de convalidação dos atos administrativos somente foi reconhecida
em caráter definitivo com a vigência da Lei nº 9.784/99. Em seu art. 55,60 foi admitida a
possibilidade de a Administração Pública sanar vícios verificados em seus atos desde
que presentes os seguintes requisitos:
- A decisão não lese o interesse público;
- não haja prejuízo a terceiro; e
- o ato contenha defeitos sanáveis.
em razão da redação excessivamente lacônica utilizada pela lei, muitas dúvidas
têm sido suscitadas quanto às situações em que a convalidação pode ser adotada.
A primeira dessas dúvidas diz respeito a saber quais são os “defeitos sanáveis”.
Celso Antônio Bandeira de mello61 afirma que a falta de competência do agente constitui
vício sanável. maria sylvia Zanella di Pietro62 admite a possibilidade de convalidação
do ato que apresente vício de competência desde que não se trate de violação de competência exclusiva ou quando “haja incompetência em razão da matéria; por exemplo,
quando um ministério pratica ato de competência de outro ministério, porque, nesse
caso, também existe exclusividade de atribuições”.
59
60
61
62
stJ: “mandado de segurança. Constitucional. Administrativo. Ascensão funcional. inconstitucionalidade. Posterior realização de concurso público. Convalidação. Alcance retroativo. Cômputo do tempo de serviço anterior.
1. Com o advento da nova Constituição Federal, passou-se a exigir, mui acertadamente, a aprovação em concurso
público, como ato-condição, para toda e qualquer investidura em cargo ou emprego público. 2. A convalidação,
ou seja, o suprimento da invalidade do ato administrativo com a correção do defeito invalidante, pode se dar
por iniciativa do interessado, mediante a reprodução do ato sem o vício que o eivava, alcançando retroativamente
o ato inválido, de modo a legitimar os seus efeitos pretéritos. 3. É de se reconhecer a convalidação em hipóteses tais
como a dos autos, excepcional, em que o servidor, que alcançou o cargo público mediante ascensão funcional por
aprovação em concurso interno, busca o suprimento da alegada invalidade do ato de sua nomeação, submetendo-se
a concurso público em harmonia com a vigente Constituição da República, requerendo a vacância e tomando posse no mesmo cargo que ocupava, sem solução de continuidade, de modo a realizar o ato-condição constitucionalmente exigido” (ms
nº 7.411-dF, 3ª seção. rel. min. Hamilton Carvalhido. Julg. 10.8.2005. DJ, 06 fev. 2006, grifos nossos).
o art. 55 da Lei nº 9.784/99 dispõe nos seguintes termos: “Art. 55. em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser
convalidados pela própria Administração”.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 434.
di Pietro. Direito administrativo, p. 237.
CAPítuLo 5
Ato AdministrAtivo
Todas essas dúvidas identificadas em nossa doutrina se justificam em razão da
falta de precisão com que o tema foi tratado pela legislação.63
À distinção dos ilustres autores mencionados, não tendo a lei apresentado
qualquer lista ou relação de atos com a indicação dos defeitos sanáveis e dos defeitos
insanáveis, acreditamos somente ser possível apresentar situações de convalidação a
título meramente exemplificativo, sem qualquer possibilidade ou pretensão de esgotar o
tema. não tendo a lei apresentado a distinção de forma absoluta entre defeitos sanáveis,
e, portanto, passíveis de convalidação, e defeitos insanáveis, entendidos estes como os
que devem importar necessariamente em anulação do ato, mas tendo sido simplesmente
apresentados alguns requisitos genéricos (interesse público, ausência de prejuízo para
terceiros etc.) para a convalidação, não pode a doutrina por meio de listas taxativas
atribuir a determinados vícios o caráter inexpugnável de insanável ou de sanável.
Fora do contexto em que tenha sido praticado, a riqueza de situações práticas que
podem ser apresentadas aos administradores impede qualquer tentativa doutrinária
de atribuir a determinado vício natureza sanável ou insanável.
o papel da doutrina consiste, sim, em apresentar situações em que seja possível
a convalidação do ato, mas sem que isto passe a constituir norma cogente ou de caráter
absoluto para o administrador público.
As particularidades do caso concreto devem indicar a solução a ser adotada pelo
administrador. Por meio de decisão sempre motivada, o administrador deve explicitar
as razões e os fundamentos para a convalidação ou para a anulação do ato.
Se é possível afirmar que a violação da competência exclusiva do agente deve ser
considerada, em regra, defeito insanável, haverá situações em que o interesse público
aponte para a necessidade de convalidação. exemplo: suponhamos que determinado
estado realize licitação para transferir, por meio de permissão, a exploração de porto
fluvial a particular, matéria que, nos termos da Constituição Federal (art. 21, XII, “f”),
é da competência exclusiva da união. evidentemente seria caso de anulação de todo
o procedimento licitatório. imagine, por hipótese, que a união por meio de lei posteriormente editada delegue a competência para a exploração de portos aos estados
— situação que, aliás, tem-se verificado com alguma frequência para a exploração de
algumas rodovias federais. É de se perguntar, então, se a violação da competência da
união, no exemplo, importaria em dever de anulação da licitação e do contrato dela
decorrente, ou, ao contrário, se diante da delegação posteriormente verificada, não se
poderia admitir a convalidação dos atos praticados, considerando-os válidos, haja vista
ser esta a solução que, além de não violar direito de terceiro, melhor realiza o interesse
público (em seu aspecto econômico).
O desvio de finalidade é igualmente apresentado como vício insanável — e assim
deve ser tratado. vimos que o interesse público deve ser realizado em três níveis: constitucional, legal e econômico. vamos supor que certo ato tenha sido praticado com
63
Acerca da falta de motivação ser falha sanável e, portanto passível de convalidação, stJ: “Agravo regimental em
recurso ordinário – mandado de segurança – exoneração de servidor público efetivo em estágio probatório –
motivo de contenção de despesa de pessoal – motivação extemporânea – Ato vinculado – Vício sanável – direito
à ampla defesa violado – segurança concedida em sede de recurso ordinário – Agravo regimental desprovido.
1. Quando se trata de ato administrativo vinculado, a ausência de motivação é vício que pode ser convalidado, com a motivação posterior à prática do ato. 2. A exoneração de servidor público efetivo, em estágio probatório, independe de
processo administrativo, sendo imprescindível, destarte, o exercício do direito à ampla defesa, como espécie
de procedimento sumário. Precedentes” (Agrg no rms nº 16.546-sP, 6ª turma. rel. min. Paulo medina. Julg.
27.10.2005. DJ, 20 fev. 2006, grifos nossos).
261
262
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
flagrante violação da finalidade prevista em lei. Exemplo: servidor que é demitido por
perseguição. Antes de ter sido sequer impugnada a demissão, descobre-se que referido
servidor cometera ato de improbidade, ou crime contra a Administração Pública. diante
desta constatação, seria caso de reintegrar o servidor no serviço público, indenizá-lo
pelos salários não pagos e, em seguida, voltar a demiti-lo? Advogados de defesa provavelmente diriam que sim. o interesse público talvez aponte no sentido contrário.
vícios de procedimento também constituem motivo para a anulação. A aplicação a servidor de pena de demissão, ou de qualquer outra sanção disciplinar, sem o
necessário contraditório constitui motivo para a anulação do processo, bem como da
consequente sanção. não obstante a falta de contraditório no processo disciplinar, caso
o fato imputado ao servidor, fato que justificou a sua demissão, tenha resultado em
posterior denúncia criminal, e que, ao longo do processo judicial, não obstante ter sido
assegurada ampla defesa e contraditório, reste comprovado o ilícito de modo a justificar
a condenação criminal do servidor, seria ainda assim caso de anular o processo administrativo disciplinar? Ou, ao contrário, a confirmação dos fatos no processo criminal não
poderia sanar a falta de contraditório e de ampla defesa no processo administrativo?
os exemplos apresentados buscam demonstrar que sempre haverá a possibilidade de que, diante de determinadas circunstâncias, a convalidação de determinados
atos possa ser justificada, não obstante os vícios neles verificados sejam, como regra,
apresentados pela doutrina como insanáveis.
Aspecto relevante acerca do tema consiste em saber se a Administração Pública,
em face de vício sanável, tem o dever de convalidar ou pode, a seu critério, anular o ato.
A falta de precisão da lei não permite concluir que a decisão de anular ou de
convalidar o ato seja discricionária.
Constado que determinado ato contém vício sanável, o administrador deve buscar
sempre a solução que melhor realize o interesse público, respeitados eventuais direitos
de terceiros. se a solução pela anulação for a que mais se adapte ao interesse público,
o administrador estará obrigado a anular o ato; caso a convalidação se mostre mais
consentânea com o interesse público, o ato deve ser convalidado, devendo a decisão,
em um ou no outro caso, ser sempre motivada.
Há requisito não previsto em lei que deve estar presente a fim de tornar possível
a convalidação dos atos administrativos: o destinatário não ter questionado a validade do ato.
Caso seja aplicada a servidor sanção disciplinar por autoridade incompetente — situação descrita como sanável, uma vez impugnado o ato, perde a Administração Pública
a prerrogativa de corrigir o vício. impugnado o ato, quer pela via administrativa, quer
pela via judicial, não é razoável permitir que o vício possa ser sanado. os princípios da
boa-fé e da segurança jurídica impedem que a Administração, advertida do vício pelo
destinatário do ato, corrija o ato.
Alguns termos são apresentados como sinônimos ou assemelhados à convalidação, tais como ratificação, confirmação e conversão.
A ratificação e a confirmação podem ser consideradas espécies de convalidação. se
a autoridade que convalida o ato é a mesma que o praticou, teremos a ratificação; se, ao
contrário, a convalidação for feita por autoridade superior, ocorrerá a confirmação.
A conversão, ao contrário, não busca sanar vício algum. trata-se de simples modificação do ato originariamente praticado. Exemplo: uma desapropriação parcial de
imóvel pode ser convertida em desapropriação total, hipótese em que o decreto que
havia declarado que interesse social apenas parte de determinado imóvel é modificado
de modo a incluir toda a extensão do bem.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
6.1 Contratos celebrados pela Administração Pública – fundamento
constitucional
A atividade material da Administração Pública não se desenvolve apenas por
meio de atos unilaterais de vontade. Historicamente, os atos administrativos constituem
o principal instrumento de atuação da Administração Pública. esta se tem utilizado,
todavia, com cada vez mais frequência de novos instrumentos para formalizar o seu
relacionamento com os particulares.
Desde há muito, a Administração sente a necessidade de firmar acordos com
entidades privadas com vista ao desempenho das suas necessidades relacionadas à
realização de obras, à aquisição de bens ou à prestação de serviços. o objetivo desses
acordos de vontade era e continua a ser em grande medida o de atender às demandas
internas da Administração Pública, que sempre necessitou da colaboração dos particulares para o fornecimento de bens e de serviços.
nos dias atuais, o fortalecimento do conceito de estado democrático e social de
direito a partir da perspectiva de estado cooperativo leva a Administração Pública a
assumir com cada vez mais intensidade novas atribuições externas. diante dessa nova
realidade, especialmente no que concerne à prestação de novos serviços públicos ou de
utilidade pública e ao desempenho das atividades de fomento, os acordos de vontade
têm sido considerados os instrumentos mais adequados para permitir que os particulares colaborem com o desempenho das novas atividades estatais.
os contratos de concessão e de permissão de serviços públicos, as parcerias
público-privadas, os convênios, os contratos de gestão, os termos de parceria, dentre
outros acordos de vontade, assumem papel cada vez mais importante no desempenho
das novas e variadas atividades estatais. Por meio desses instrumentos são transferidas
a entidades privadas empresariais e não empresariais incumbências públicas de importância fundamental para a população.
o fundamento constitucional para celebração dos contratos pela Administração Pública é o mesmo aplicável às licitações. A Constituição Federal, em seu art. 37,
XXI, dispõe que “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços,
compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que
assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”. em relação às concessões
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
264
e às permissões de serviço público, a matéria é tratada de forma genérica pelo art. 175
nos termos seguintes: “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob
regime de concessão ou de permissão de serviço público, sempre através de licitação,
a prestação de serviços públicos”. As parcerias público-privadas e os convênios não
são objeto de disposição constitucional expressa, sendo disciplinados por meio de lei
e de normativos regulamentares.
no presente capítulo trataremos tão somente dos contratos regulados pela Lei
nº 8.666/93, dos convênios, dos termos de parceria e dos contratos de gestão. no próximo capítulo serão examinadas as licitações e nos dois capítulos seguintes trataremos
das concessões e permissões de serviço público e das parcerias público-privadas, respectivamente.
6.2 normas gerais sobre licitações e contratos administrativos
A Constituição Federal, em seu art. 22, inciso XXvii, com a redação dada pela
emenda Constitucional nº 19, confere à união competência privativa para legislar sobre
normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. dispõe o texto constitucional
nos seguintes termos:
Art. 22. Compete privativamente à união legislar sobre:
XXvii - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as
administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da união, estados, distrito
Federal e municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXi, e para as empresas públicas
e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, §1º, iii;
A fim de dar cumprimento à determinação constitucional, deveriam vigorar
dois diplomas legais, ambos dispondo sobre normas gerais e aprovados pela união.
o primeiro seria aplicável às “administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da união, estados e municípios;” o segundo, “relativo às empresas públicas e
sociedades de economia mista”.1
o objetivo dessa separação no tratamento a ser dado às licitações e aos contratos
firmados pelas entidades referidas pelo art. 37, XXI (Administração direta, autarquias
e fundações públicas) e àqueles realizados pelas entidades referidas pelo art. 173, §1º
(empresas públicas e sociedades de economia mista), todos da Constituição Federal, é
indiscutivelmente o de buscar para as empresas estatais que exploram atividade econômica regras menos rígidas que aquelas previstas na Lei nº 8.666/93.
Até o presente momento, a lei referida pelo art. 173, §1º, não foi aprovada. nesse
sentido, enquanto não for elaborada essa nova legislação, todas entidades da Administração Pública direta, autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de
economia mista de todas as esferas de governo (federal, estadual ou municipal) deverão
continuar a seguir as regras contidas na Lei nº 8.666/93. A inexistência de lei específica
1
No sentido de ser cabível mandado de segurança para questionar ilegalidade verificada em licitações realizadas
por empresas públicas ou sociedades de economia mista, vide stJ. resp nº 202.157-Pr, 1ª turma. rel. min.
Humberto Gomes de Barros. Julg. 18.11.1999. DJ, 21 fev. 2000.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
relativa às empresas públicas e sociedades de economia mista referida pelo art. 173, §1º,
da Constituição Federal, obriga a que todas as entidades e órgãos da Administração
Pública submetam-se ao que preceitua a Lei nº 8.666/93.2
A grande dificuldade a ser enfrentada nesse momento é a de saber o que realmente
seriam as mencionadas normas gerais sobre licitações. essa observação é importante
porque a Lei nº 8.666/93, em seu art. 1º, determina que todas as normas nela contidas
terão esse caráter geral. essa discussão é importante porque a união somente possui
competência para interferir nas licitações e nos contratos a serem celebrados por estados e municípios por meio de normas gerais. A esses últimos incumbe a elaboração de
suas normas especiais. essa discussão tem gerado inúmeras controvérsias, inclusive
judiciais. Em não poucas ocasiões verificamos alguns Estados acusando a União de, a
pretexto de elaborar normas gerais, ter invadido a competência dos estados e elaborado
normas especiais.3
Feitos esses esclarecimentos, devemos entender que as regras contidas na Lei
nº 8.666/93 são aplicáveis à Administração Pública direta e indireta de todos os poderes da união, estados, municípios e distrito Federal.4 devem igualmente observar os
parâmetros da Lei nº 8.666/93 os conselhos responsáveis pela fiscalização das profissões
regulamentadas em função de sua natureza autárquica.5
2
3
4
5
Deve-se atentar para o caso específico da Petrobras. A estatal possui regime próprio de licitações e contratos, segundo
as regras estatuídas no decreto nº 2.745/98 (e no art. 67 da Lei nº 9.478/97). A jurisprudência do tCu, contudo, é
pacífica no sentido de considerar inconstitucionais o art. 67 da Lei nº 9.478/1997 e o Decreto nº 2.745/1998 e de
determinar à Petrobras que observe os ditames da Lei nº 8.666/1993, ao argumento de que o referido decreto não
seria instrumento normativo idôneo para dispor sobre o estatuto jurídico diferenciado para as empresas públicas,
sociedades de economia mista e suas subsidiárias, em matéria de licitação, a que alude o art. 173, §1º, inciso iii, da
Carta magna (Acórdão nº 920/2007, Plenário; Acórdão nº 1.257/2005, Plenário; e Acórdão nº 1.678/2007, Plenário,
entre outros). o supremo tribunal Federal, todavia, tem deferido medidas liminares a favor a Petrobras em
diversos mandados de segurança, como, por exemplo, os de números 24.610, 26.783 e 25.888, suspendendo,
cautelarmente, os acórdãos do tribunal de Contas da união que obrigam a estatal observar a Lei de Licitações,
permitindo, pois, a utilização do procedimento simplificado do Decreto nº 2.745/98.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 927/RS, concedeu liminar a fim de que a expressão
“permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de
governo”, contida no art. 17, i, “b” e ii, “b”, não seja aplicável a estados e municípios. entendeu o e. stF que
a união, neste caso, não legislou sobre normas gerais, invadindo, em consequência, a competência daquelas
unidades para legislar para si próprias em matéria de licitações, no que concerne a normas especiais. de
qualquer forma, o mesmo dispositivo foi considerado constitucional na análise procedida pelo stF apenas em
relação à própria Administração Pública federal. trata-se de hipótese de declaração de inconstitucionalidade
sem redução de texto, haja vista o referido texto legal somente ser considerado inconstitucional em relação
a estados e municípios, não o sendo em relação à união. essa circunstância decorre do fato de esta última, a
união, possuir competência para estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos administrativos para
todas as esferas de governo, podendo ela legislar sobre normas especiais apenas para si própria.
No sentido de que as entidades que fiscalizam as profissões regulamentadas não estão obrigadas a seguir os
parâmetros de licitação previstos na Lei nº 8.666/93, vide stJ. CC nº 21.923-mG, 2ª seção. rel. min. Cesar Asfor
rocha. Julg. 22.3.2000. DJ, 02 maio 2000. Cumpre observar, porém, que o fundamento para a decisão proferida
pela eg. stJ foi a circunstância de que referidas entidades possuiriam natureza de direito privado, não integrando
a Administração Pública. essa questão, no entanto, é controvertida, inclusive junto aos tribunais superiores. no
sentido de que referidas entidades fiscalizadoras de profissões regulamentadas são de Direito Público, vide stF.
Adi nº 1.717-dF, Pleno. rel. min. sidney sanches. Julg. 7.11.2002. DJ, 28 mar. 2003, através da qual foi declarada
a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 9.649/98, por entender que a atividade de referidas entidades
envolve poder de polícia e punição insusceptíveis de serem delegados a entidades de direito Privado.
todos os conselhos, à exceção da ordem dos Advogados do Brasil, estão obrigados a observar as normas de
direito Administrativo relativas às licitações e aos concursos públicos. esse dever decorre de inúmeras decisões
emanadas do TCU e confirmadas por jurisprudência do STF (MS nº 21.797-RJ, Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso.
Julg. 9.3.2000. DJ, 18 maio 2001). no Caso da oAB, a existência de decisão proferida pelo antigo tribunal Federal
de recursos nos idos de 1951 foi utilizada como fundamento jurídico para se afastar o controle do tribunal de
Contas da união sobre os atos de gestão administrativa daquela entidade. sobre essa questão, o tCu deliberou:
265
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
266
não estão obrigados a seguir a Lei nº 8.666/93 os serviços sociais Autônomos,6
que se submetem aos seus próprios regulamentos.
6
“9.1. nos termos dos incisos vi e vii, do artigo 69, da resolução/tCu nº 136/2000, conhecer das representações
formuladas pelos interessados indicados no item 3 supra, para, no mérito, considerá-las improcedentes; 9.2.
firmar o entendimento de que o Conselho Federal e os Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil
não estão obrigados a prestar contas a este tribunal, em respeito à coisa julgada, decorrente da decisão proferida
pelo tribunal Federal de recursos nos autos do recurso de mandado de segurança nº 797; 9.3. arquivar o
presente processo.” (Acórdão nº 1.765/2003, Plenário. sessão: 19.11.2003. DOU, 28 nov. 2003)
recentemente, por meio dos julgados cujas ementas são a seguir transcritas, o superior tribunal de Justiça e o
supremo tribunal Federal manifestaram-se acerca da posição da oAB perante a Administração Pública:
“Processual civil. tributário. ordem dos Advogados do Brasil – oAB. Lei nº 8.906/94. Anuidades. natureza
jurídica. Lei de Execução Fiscal. Inaplicabilidade. 1. Embora definida como autarquia profissional de regime
especial ou sui generis, a OAB não se confunde com as demais corporações incumbidas do exercício profissional.
2. As contribuições pagas pelos filiados à OAB não têm natureza tributária. 3. O título executivo extrajudicial,
referido no art. 46, parágrafo único, da Lei nº 8.906/94, deve ser exigido em execução disciplinada pelo Código de
Processo Civil, não sendo possível a execução fiscal regida pela Lei nº 6.830/80. 4. Não está a instituição submetida
às normas da Lei nº 4.320/64, com as alterações posteriores, que estatui normas de direito financeiro dos orçamentos
e balanços das entidades estatais. 5. Não se encontra a entidade subordinada à fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial, realizada pelo tribunal de Contas da união. 6. embargos de divergência
providos” (stJ. eresp nº 503.252-sC, 1ª seção. rel. min. Castro meira. Julg. 25.8.2004. DJ, 18 out. 2004).
“Ação direta de inconstitucionalidade. §1º do artigo 79 da Lei nº 8.906, 2ª parte. ‘servidores’ da ordem dos
Advogados do Brasil. Preceito que possibilita a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha do
regime jurídico no momento da aposentadoria. indenização. imposição dos ditames inerentes à administração
pública direta e indireta. Concurso público (art. 37, ii da Constituição do Brasil). inexigência de concurso público
para a admissão dos contratados pela oAB. Autarquias especiais e agências. Caráter jurídico da oAB. entidade
prestadora de serviço público independente. Categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes
no direito brasileiro. Autonomia e independência da entidade. Princípio da moralidade. violação do artigo 37,
caput, da Constituição do Brasil. não ocorrência. 1. A Lei nº 8.906, artigo 79, §1º, possibilitou aos ‘servidores’ da
oAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização
a ser paga à época da aposentadoria. 2. não procede a alegação de que a oAB sujeita-se aos ditames impostos
à Administração Pública direta e indireta. 3. A oAB não é uma entidade da Administração indireta da união.
A ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes
no direito brasileiro. 4. A oAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido
como ‘autarquias especiais’ para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ‘agências’.
5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração indireta, a oAB não está sujeita a controle da
Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. essa não-vinculação é formal e materialmente
necessária. 6. A oAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente
privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [art. 133 da CB/88]. É entidade cuja
finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência
entre a oAB e qualquer órgão público. 7. A ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia
e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não
está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional. 8. Embora decorra de
determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da oAB não é compatível com a entidade,
que é autônoma e independente. 9. improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação
conforme o artigo 37, inciso ii, da Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei nº 8.906, que determina
a aplicação do regime trabalhista aos servidores da oAB. 10. incabível a exigência de concurso público para
admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela oAB. 11. Princípio da moralidade. Ética da legalidade
e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao âmbito da ética da legalidade, que não pode
ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. 12. Julgo
improcedente o pedido” (stF. Adi nº 3.026-dF, Pleno. rel. min. eros Grau. Julg. 8.6.2006. DJ, 29 set. 2006).
Por meio da Decisão nº 907/97, Plenário, o TCU firmou o entendimento de que as entidades integrantes do Sistema “s” — sesC, senAi, senAC etc. — não se encontram submetidas ao dever de licitar:
“o tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo relator, deCide:
1. conhecer da presente denúncia, uma vez satisfeitos os requisitos de admissibilidade previstos no art. 213 do
ri/tCu, para, no mérito, considerá-la:
1.1 - improcedente, tanto no que se refere à questão da “adoção”, pelo senAC/rs, da praça pública daltro Filho,
em Porto Alegre-rs, quanto no que tange aos processos licitatórios, visto que, por não estarem incluídos na lista
de entidades enumeradas no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 8.666/93, os serviços sociais autônomos não
estão sujeitos à observância dos estritos procedimentos na referida lei, e sim aos seus regulamentos próprios
devidamente publicados.”
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
6.3 Terceirização de atividades fins: impossibilidade
A Administração Pública pode satisfazer suas necessidades por meio de seus
próprios instrumentos, hipótese em que se verifica a execução direta de serviços, de
obras etc. (Lei nº 8.666/93, art. 6º, vii). outra opção que se abre à Administração Pública
é a de realizar o mesmo objetivo por meio da celebração de contratos administrativos
com empresas privadas que fornecerão a mão de obra, os bens, os serviços e as obras
necessárias à realização do fim que se busca — o que caracteriza a execução indireta
(Lei nº 8.666/93, art. 6º, viii). Quando a execução indireta envolve o fornecimento de
pessoal (mão de obra) para desempenhar tarefas nas próprias unidades administrativas
(serventes, telefonistas, motoristas, vigilantes etc.), denomina-se esse processo de terceirização haja vista ele importar na transferência de atividades administrativas a terceiros.
o tribunal de Contas da união possui entendimento no sentido de que somente
é possível a contratação de empresas para a prestação de serviços a entidades e órgãos
da Administração Pública se esses serviços não estiverem incluídos dentre aqueles especificados como sendo atribuição de cargos de carreira e que não venham a caraterizar
terceirização de atividade fim do órgão ou entidade administrativa contratante.7 8 essa
regra, no entanto, tem sido mitigada pelo próprio tCu em face de situações especiais
devidamente justificadas. O objetivo principal é o de evitar que seja burlada a regra
da obrigatoriedade da realização de concurso público para a investidura em cargos e
empregos públicos (CF, art. 37, ii).
Constatando-se que os serviços a serem terceirizados correspondem a tarefas
permanentes, contínuas, inerentes e indispensáveis à atividade fim da Administração,
ainda que seja realizada licitação, a contratação é tida por ilegal, importando em violação
do dever de realizar concurso público.
o professor marçal Justen Filho oferece a seguinte interpretação a respeito desse
tema:
não cabe, ao contrário do que o texto literal induz, a aplicação do regime da Lei
nº 8.666/93 à contratação de todos os “serviços” de terceiros. somente quando se tratar
de serviços esporádicos ou temporários, desenvolvidos por exceção, incidirá tal regime.
Quando o serviço corresponder a cargo ou emprego público, aplicam-se os dispositivos
constitucionais acerca dos servidores públicos (CF, art. 37, incs. ii e iv).9
o primeiro inciso citado (CF, art. 37, ii) pelo ilustre autor consagrou a obrigatoriedade da realização de prévio concurso público para o preenchimento de cargos e
7
8
9
nesse sentido, vide decisão tCu nº 680/95, Plenário. DOU, 28 dez. 1995.
dispõe nesse mesmo sentido o decreto nº 2.271, de 7.7.1997, sobre a contratação de serviços pela Administração
Pública Federal direta, autárquica e fundacional, a saber:
“Art. 1º no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de
execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.
§1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência,
objeto de execução indireta.
§2º não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo
plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo
extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.”
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 21.
267
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
268
empregos públicos; o outro (CF, art. 37, iv) trata do prazo para convocação dos candidatos
habilitados nesse tipo de certame. nesse sentido, na medida em que a contratação de mão
de obra, como regra, gera vínculo diretamente com o contratante, conforme jurisprudência
da Justiça do trabalho sobre a terceirização,10 esta conduziria à burla ao dever de realizar
concurso público na medida em que as atividades que deveriam ser realizadas por agentes
investidos em cargos ou empregos públicos passam a ser exercidas por empregados da
empresa contratada.
A respeito da terceirização, outro ponto que frequentemente é fonte de dor de
cabeça para a Administração refere-se ao recolhimento das verbas trabalhistas em relação aos empregados da empresa contratada alocados para a prestação dos serviços ao
poder público.
A responsabilidade do contratado pelos encargos decorrentes da execução do
contrato, que inclui os encargos trabalhistas, é disciplinada pelo art. 71 da Lei nº 8.666/93,
cujo caput apresenta a seguinte redação:
Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e
comerciais resultantes da execução do contrato.
§1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e
comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento,
nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e
edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
Quando a Administração contrata e paga a empresa ou o profissional para o
fornecimento de bens, para a prestação de serviços ou para a execução de obras, ela
transfere ao contratado toda e qualquer responsabilidade pelos encargos derivados da
execução do contrato.
A despeito do disposto no §1º do art. 71 da Lei nº 8.666/93, no que se refere aos
créditos trabalhistas, o Tribunal Superior do Trabalho havia firmado entendimento de
que, nos contratos de terceirização, o inadimplemento das obrigações concernentes
ao vínculo de emprego, por parte do empregador (entidade contratada), acarretaria
a responsabilização subsidiária do tomador dos serviços, ainda que este último seja
órgão ou entidade da Administração Pública. essa orientação constava do enunciado
da súmula tst nº 331.
Certo é que o debate sobre o art. 71, §1º, da Lei nº 8.666/93 e a súmula tst nº 331
ganhou novos contornos com o julgamento pelo supremo tribunal Federal da Ação
declaratória de Constitucionalidade (AdC) nº 16. na sessão de 24.11.2010, o Plenário do
stF julgou procedente pedido formulado em ação declaratória de constitucionalidade
movida pelo Governador do distrito Federal para declarar a constitucionalidade do
art. 71, §1º, da Lei 8.666/93.
no referido julgado, embora tenha havido o reconhecimento de que a mera
inadimplência do contratado não é capaz de transferir à Administração Pública a responsabilidade pelos encargos trabalhistas, ressalvou-se que o poder público não está
10
o enunciado nº 331 do tribunal superior do trabalho dispõe que “a contratação de trabalhadores por empresa
interposta é ilegal”, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho
temporário (Lei nº 6.019, de 3.1.1974), admitindo, como exceção, essa modalidade de contratação apenas para os
serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.6.1983), de conservação e limpeza, bem como para os serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
isento de responsabilização se ficar comprovada a omissão da Administração Pública
quanto ao dever que possui de fiscalizar o cumprimento das obrigações do contratado.11
Nesse quadro, é preciso ficar claro que a orientação firmada pela Suprema Corte
no julgamento da AdC nº 16 não dispensou o poder público de continuar a exigir do
contratado, podendo fazê-lo por meio de cláusula expressa (no edital da licitação e no
respectivo instrumento de contrato), a comprovação do cumprimento dos encargos laborais do contratado como condição, inclusive, para o pagamento das faturas devidas,
diante da reconhecida possibilidade de responsabilização da Administração no caso de
omissão culposa da Administração Pública no seu dever de fiscalizar o cumprimento
das obrigações trabalhistas pelo prestador de serviços.
diante da decisão do supremo tribunal Federal, o tst alterou a redação do
enunciado da súmula nº 331 em 31.5.2011, de maneira a compatibilizá-la com o que
restou decido no julgamento da AdC nº 16 (atribuiu nova redação ao item iv e acrescentou os itens v e vi), in verbis:
sum-331. ContrAto de PrestAção de serviços. LeGALidAde
i - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo
diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019,
de 03.01.1974).
ii - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo
de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37,
ii, da CF/1988).
iii - não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância
(Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e
a subordinação direta.
iv - o inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a
responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde
que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
v - os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem
subsidiariamente, nas mesmas condições do item iv, caso evidenciada a sua conduta
culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na
11
“Quanto ao mérito, entendeu-se que a mera inadimplência do contratado não poderia transferir à Administração Pública a responsabilidade pelo pagamento dos encargos, mas reconheceu-se que isso não significaria que
eventual omissão da Administração Pública, na obrigação de fiscalizar as obrigações do contratado, não viesse
a gerar essa responsabilidade. registrou-se que, entretanto, a tendência da Justiça do trabalho não seria de analisar a omissão, mas aplicar, irrestritamente, o enunciado 331 do tst. o min. marco Aurélio, ao mencionar os
precedentes do tst, observou que eles estariam fundamentados tanto no §6º do art. 37 da CF quanto no §2º do
art. 2º da CLt (‘§2º sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica
própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial
ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas’). Afirmou que o primeiro não encerraria a obrigação solidária do Poder Público quando recruta mão de obra, mediante prestadores de serviços, considerado
o inadimplemento da prestadora de serviços. enfatizou que se teria partido, considerado o verbete 331, para
a responsabilidade objetiva do Poder Público, presente esse preceito que não versaria essa responsabilidade,
porque não haveria ato do agente público causando prejuízo a terceiros que seriam os prestadores do serviço.
no que tange ao segundo dispositivo, observou que a premissa da solidariedade nele prevista seria a direção, o
controle, ou a administração da empresa, o que não se daria no caso, haja vista que o Poder Público não teria a
direção, a administração, ou o controle da empresa prestadora de serviços. Concluiu que restaria, então, o parágrafo único do art. 71 da Lei 8.666/93, que, ao excluir a responsabilidade do Poder Público pela inadimplência do
contratado, não estaria em confronto com a Constituição Federal.” (stF. AdC nº 16-dF, Pleno. rel. min. Cezar
Peluso. Julg. 24.11.2010. DJe, 09 set. 2011)
269
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
270
fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço
como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento
das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
vi - A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas
decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.
6.4 Contrato administrativo e ato administrativo
em algumas situações a Administração impõe, unilateralmente, sua vontade aos
particulares. É o caso, por exemplo, de uma desapropriação. em face do processo de
desapropriação, o que se permite ao particular é discutir o valor da indenização a ser
paga, e caso não haja consenso quanto a este valor, ele será fixado por juiz. A desapropriação aperfeiçoa-se e produz seus efeitos independentemente do consentimento do
proprietário do bem desapropriado.
Ao contrário, quando determinado órgão público necessita adquirir veículos
de serviço, deve, salvo hipótese de dispensa ou inexigibilidade, realizar a licitação.
será, portanto, publicado edital convocando interessados; estes apresentarão suas
propostas na licitação; e a Administração escolherá aquela que, preenchidas as exigências constantes no edital ou convite, apresente o menor preço. vê-se que a aquisição
do bem decorreu de acordo de vontades. divulgado o instrumento convocatório, os
interessados em fornecer bens ou serviços apresentam suas propostas que, se aceitas
pela Administração, irão resultar na celebração do contrato. Através deste, as partes,
em decorrência de seu acordo de vontades, irão obrigar-se uma para com a outra ao
cumprimento do que livremente pactuaram.
o contrato administrativo não é considerado ato administrativo, porque somente
se aperfeiçoa, obrigando os interessados (Administração Pública contratante e particular
contratado), se eles consentirem, se manifestarem sua vontade a ser materializada no
instrumento do contrato. o ato administrativo, ao contrário, aperfeiçoa-se e está apto
a produzir seus efeitos com a simples manifestação de vontade da Administração.
6.5 Conceito de contrato administrativo
Celso Antônio Bandeira de Mello define-o como “um tipo de avença travada entre
a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo
de objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a
cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do
contratante privado”.12
na mesma linha é a lição de Carlos Ari sundfeld sobre a matéria:
É perfeitamente natural ao contrato administrativo a faculdade de o estado introduzir
alterações unilaterais. trata-se de instrumentá-lo com os poderes indispensáveis à persecução do interesse público. Caso a Administração ficasse totalmente vinculada pelo que
avençou, com o correlato direito de o particular exigir a integral observância do pacto,
eventuais alterações do interesse público — decorrentes de fatos supervenientes ao contrato — não teriam como ser atendidas. em suma, a possibilidade de o Poder Público
12
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 401.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
modificar unilateralmente o vínculo constituído é corolário da prioridade do interesse
público em relação ao privado, bem assim de sua indisponibilidade.13
Para fins práticos, adotamos o conceito de contrato administrativo apresentado
pela Lei nº 8.666/93 que, em seu art. 2º, parágrafo único, estabelece que “para os fins
desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da
Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontade para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação
utilizada”.
6.6 outros acordos de vontade
6.6.1 Convênios celebrados pelo poder público
o art. 1º, §1º, i, do decreto nº 6.170, de 25.7.2007, que dispõe sobre as normas
relativas às transferências de recursos da união mediante convênios e contratos de
repasse, define convênio, para os fins daquele decreto, nos seguintes termos:
Convênio – acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência
de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade
social da união e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração
pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração
pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas
sem fins lucrativos, visando a execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em
regime de mútua cooperação.
Faz-se nítida a distinção entre convênio e contrato pelo fato de se reconhecer que
este último objetiva realizar interesses diversos e opostos entre os participantes: de um
lado o objeto do contrato (o serviço, obra ou fornecimento a serem executados) e, do
outro, a contraprestação correspondente, ou seja, o preço a ser pago.
no convênio, presume-se regime de mútua cooperação. o executor tem interesse
em prestar o serviço que lhe compete realizar em razão da afinidade de objetivos entre
as partes convenentes. Assim, como condição para a existência do convênio tem-se
que seu objeto deve representar objetivo comum das partes, o qual, uma vez atingido,
possa ser usufruído por ambas.14
13
14
sundFeLd. Contratos administrativos: acréscimo de obras e serviços: alteração. Revista Trimestral de Direito
Público, p. 152. Parecer.
nesse sentido, vale transcrever trechos do relatório proferido por ocasião de julgamento realizado pelo tCu,
em que se examinou situação em que a entidade, para fins de não realizar licitação, utilizou indevidamente o
convênio quando deveria usar de contrato administrativo:
“35. e é difícil enxergar a aquisição de passagens aéreas como um atendimento de objetivos comuns. o BB
precisa que seus funcionários se desloquem rapidamente dentro do País, ou mesmo para o exterior, a serviço, e,
portanto, precisa adquirir passagens aéreas. Para a BBtur, não faz qualquer diferença quem viajará ou porque,
ela deseja, simplesmente, vender passagens aéreas. inexiste, portanto, objetivo comum.
36. Por suas características, trata-se de clara e inquestionável compra e venda, na qual uma empresa fornece um
bem, as passagens aéreas, que a outra necessita, ou seja, uma parte vende e a outra compra. os objetivos são
contrapostos, não comuns. ora, compras e vendas são realizadas por contratos, e no âmbito da Administração
pública direta ou indireta, conforme a Lei de Licitações e Contratos. (...)
271
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
272
o que mais caracteriza o convênio, e neste ponto ele é particular, é ser instrumento
de que se vale o poder público para realizar objetivos de interesse comum com outros
órgãos ou entidades administrativas ou mesmo com particulares. A principal característica do convênio consiste na busca de objetivos comuns. Para melhor entendermos,
podemos comparar um convênio de cooperação técnica, por exemplo, com um contrato
de prestação de serviços. neste, um dos contratantes presta o serviço e o outro o remunera pelos serviços prestados. no convênio, ao contrário, as partes buscam a realização
do mesmo fim. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, procurando o aperfeiçoamento de suas atividades, celebra com os seus congêneres dos estados e dos municípios
convênios para a troca de informações. temos, vê-se pelo exemplo, atuações paralelas.
A Lei nº 8.666/93 (art. 116),15 além de estabelecer diversas diretrizes em relação
aos convênios, impõe, ainda, serem a eles aplicáveis as disposições daquela lei. mas
15
39. de se destacar que a própria Lei ressalta que a denominação errônea não há de descaracterizar o negócio realizado. Assim, e mesmo se denominado de convênio, o negócio sob enfoque nos autos é um contrato de compra
e venda de passagens aéreas.” (tCu. decisão nº 686/98, Plenário. DOU, 19 out. 1998)
dispõe o art. 116, da Lei nº 8.666/93, nos seguintes termos:
“Art. 116. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração.
§1º A celebração de convênio, acordo ou ajuste pelos órgãos ou entidades da Administração Pública depende de
prévia aprovação de competente plano de trabalho proposto pela organização interessada, o qual deverá conter,
no mínimo, as seguintes informações:
I - identificação do objeto a ser executado;
ii - metas a serem atingidas;
iii - etapas ou fases da execução;
IV - plano de aplicação dos recursos financeiros;
v - cronograma de desembolso;
VI - previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da conclusão das etapas ou fases programadas;
vii - se o ajuste compreender obra ou serviço de engenharia, comprovação de que os recursos próprios para
complementar a execução do objeto estão devidamente assegurados, salvo se o custo total do empreendimento
recair sobre a entidade ou órgão descentralizador.
§2º Assinado o convênio, a entidade ou órgão repassador dará ciência do mesmo à Assembléia Legislativa ou à
Câmara municipal respectiva.
§3º As parcelas do convênio serão liberadas em estrita conformidade com o plano de aplicação aprovado, exceto
nos casos a seguir, em que as mesmas ficarão retidas até o saneamento das impropriedades ocorrentes:
i - quando não tiver havido comprovação da boa e regular aplicação da parcela anteriormente recebida, na forma
da legislação aplicável, inclusive mediante procedimentos de fiscalização local, realizados periodicamente pela
entidade ou órgão descentralizador dos recursos ou pelo órgão competente do sistema de controle interno da
Administração Pública;
II - quando verificado desvio de finalidade na aplicação dos recursos, atrasos não justificados no cumprimento
das etapas ou fases programadas, práticas atentatórias aos princípios fundamentais da Administração Pública
nas contratações e demais atos praticados na execução do convênio, ou o inadimplemento do executor com
relação a outras cláusulas conveniais básicas;
iii - quando o executor deixar de adotar as medidas saneadoras apontadas pelo partícipe repassador dos recursos ou por integrantes do respectivo sistema de controle interno.
§4º os saldos de convênio, enquanto não utilizados, serão obrigatoriamente aplicados em cadernetas de poupança de instituição financeira oficial se a previsão de seu uso for igual ou superior a um mês, ou em fundo
de aplicação financeira de curto prazo ou operação de mercado aberto lastreada em títulos da dívida pública,
quando a utilização dos mesmos verificar-se em prazos menores que um mês.
§5º As receitas financeiras auferidas na forma do parágrafo anterior serão obrigatoriamente computadas a crédito do convênio e aplicadas, exclusivamente, no objeto de sua finalidade, devendo constar de demonstrativo
específico que integrará as prestações de contas do ajuste.
§6º Quando da conclusão, denúncia, rescisão ou extinção do convênio, acordo ou ajuste, os saldos financeiros
remanescentes, inclusive os provenientes das receitas obtidas das aplicações financeiras realizadas, serão devolvidos à entidade ou órgão repassador dos recursos, no prazo improrrogável de 30 (trinta) dias do evento, sob
pena da imediata instauração de tomada de contas especial do responsável, providenciada pela autoridade
competente do órgão ou entidade titular dos recursos.”
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
esta aplicação é apenas subsidiária, como esclarece o próprio dispositivo legal.16 Assim,
estendem-se aos convênios as diretrizes básicas previstas na Lei nº 8.666/93 tendentes
a preservar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da probidade administrativa, mas prevalecem, em relação a eles, as normas
específicas sobre aqueles instrumentos.17
A distinção entre convênio e contrato é importante porque, não obstante os convênios sejam disciplinados, subsidiariamente, pelas regras previstas na Lei nº 8.666/93,
efetivamente, a celebração de convênio não exige a prévia realização de licitação. o
convênio é firmado entre dois ou mais entes em vista de seu interesse comum, e apenas se suas respectivas expectativas individuais estiverem atendidas. esse é o aspecto
caracterizador do convênio. tratando-se de interesses comuns e atendimento das
expectativas individuais, não há que se falar em “melhor proposta”, mas apenas em
rateio de custos e benefícios entre todos os partícipes. daí por que não se faz licitação
para a celebração de convênios.
oportuno trazer os ensinamentos da Professora maria sylvia Zanella di Pietro
acerca da inaplicabilidade da prévia licitação à celebração de convênios:
enquanto os contratos abrangidos pela Lei n. 8.666 são necessariamente precedidos de
licitação — com as ressalvas legais — no convênio não se cogita de licitação, pois não há
viabilidade de competição quando se trata de mútua colaboração, sob variadas formas,
como repasse de verbas, uso de equipamentos, de recursos humanos, de imóveis, de
“know-how”. não se cogita de preços ou de remuneração que admita competição.18
nas edições anteriores deste livro, destaquei o fato de que vultosos recursos públicos são repassados por meio desses instrumentos (convênios, contratos de gestão e
termos de parceria) e critiquei a absoluta falta de mecanismos para a escolha da entidade
privada pelo poder público. Chamava a atenção, com efeito, o fato de a Administração
Pública ter de instaurar procedimento licitatório com vista à escolha da proposta mais
vantajosa para adquirir um bem no valor de r$20.000,00, por exemplo, mas não adotar
critério objetivo ou impessoal para a escolha da entidade privada com a qual seria firmado um convênio no valor de r$10 milhões. no entanto, embora a legislação vigente
sobre convênios confira, em flagrante omissão inconstitucional, discricionariedade
ampla para a indicação da entidade a ser escolhida, houve, no âmbito da Administração Pública federal, importante iniciativa para reduzir a subjetividade na seleção
das entidades privadas para formação de parcerias. o decreto nº 6.170/2007,19 acima
já referido, impõe, consoante o art. 4º, a prévia realização de “chamamento público”,
ao qual deverá ser dada publicidade, nos termos do respectivo §1º, e que estabelecerá
16
17
18
19
Acerca da observância das disposições da Lei nº 8.666/93 por particular gerenciador de recursos públicos decorrente de convênio firmado, vide informativo do tCu sobre Licitações e Contratos nº 116: “As entidades privadas
que recebem recursos oriundos de convênios celebrados com entes da Administração Pública Federal não estão
obrigadas a realizar licitação propriamente dita para aquisição de bens e serviços. Podem adotar procedimentos
simplificados, desde que observem os princípios da igualdade, legalidade, moralidade, publicidade e eficiência
administrativa” (mencionando Acórdão tCu nº 1.907/2012, Plenário).
sobre a distinção entre convênio e contrato, vide tCu. decisão nº 278/96, Plenário. DOU, 17 jun. 1996.
In: di Pietro et al. Temas polêmicos sobre licitações e contratos.
A Portaria interministerial nº 507, de 24 de novembro de 2011, constitui ato conjunto dos ministros de estado
do Planejamento, orçamento e Gestão, da Fazenda e Chefe da Controladoria-Geral da união para execução do
disposto no decreto nº 6.170/2007.
273
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
274
“critérios objetivos visando à aferição da qualificação técnica e capacidade operacional
do convenente para a gestão do convênio”, de acordo com o que determina o art. 5º
do mesmo normativo.
Não obstante essa evolução seja significativa, está restrita aos órgãos e entidades
da Administração Pública federal e permanece sujeita à competência regulamentar do
Chefe do Poder executivo. o concurso público para provimento dos cargos públicos e
a licitação para a escolha das empresas a serem contratadas pela Administração Pública
não são um fim em si. São meios para a realização do princípio da impessoalidade e da
moralidade. urge, em face desses mesmos valores, a criação em nosso sistema legislativo de mecanismos objetivos e impessoais que permitam ao poder público escolher
a entidade privada com a qual são firmados convênios, termos de parceria ou outros
acordos congêneres. A inexistência desses mecanismos legais constitui um dos maiores
ralos de dinheiro público e constante fonte de corrupção, fraudes, desvios etc.20 não
defendemos a instauração de licitação do tipo menor preço que, como visto, seria inaplicável à escolha da entidade com a qual é firmado o convênio. Propomos para a escolha
dessa entidade a adoção de mecanismos semelhantes aos do concurso, nos termos do
art. 22, §4º, da Lei nº 8.666/93. seria publicado edital em que o poder público indicaria
os aspectos gerais do projeto — objeto, valor a ser repassado pelo poder público, contrapartida da entidade privada etc. seriam ainda indicados os requisitos gerais relativos
à capacidade técnica da entidade a ser escolhida. As entidades privadas interessadas
apresentariam suas propostas e uma comissão designada pela Administração Pública
indicaria, por meio de decisão motivada, aquela com a qual seria firmado o convênio.
entendemos que a redução da discricionariedade do administrador público,
discricionariedade que no presente caso beira a arbitrariedade, e a exigência de escolhas motivadas reduziriam significativamente as fraudes existentes em nosso País no
relacionamento entre as entidades do terceiro setor e o poder público.
6.6.2 Contratos de gestão
6.6.2.1 Contratos de gestão e organizações sociais
A partir da década de 1990, o Governo Federal implementou reformas com vistas à
redefinição do seu papel e da sua participação no processo produtivo e no campo social.
esse processo foi realizado por intermédio de privatizações de empresas estatais e pela
transferência de atribuições a entidades não estatais, como é o caso das organizações
sociais, instituídas pela Lei nº 9.637/98.
20
Acerca da não obrigatoriedade da realização de licitação para a celebração de contratos de gestão vide stF:
“iniciado o julgamento de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido dos
trabalhadores – Pt e o Partido democrático trabalhista – Pdt, contra a Lei 9.637/98 — que dispõe sobre a qualificação como organizações sociais de pessoas jurídicas de direito privado, a criação do Programa Nacional de
Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que mencionam, a absorção de suas atividades por organizações
sociais, e dá outras providências —, e contra o inciso XXiv do art. 24 da Lei 8.666/93, com a redação dada pelo
art. 1º da Lei nº 9.648/98, que autoriza a celebração de contratos de prestação de serviços com organizações
sociais, sem licitação. o min. ilmar Galvão, relator, proferiu voto no sentido de indeferir o pedido cautelar por
entender, à primeira vista, inexistir incompatibilidade da norma impugnada com CF. Após, o julgamento foi
adiado em virtude do pedido de vista do min. nelson Jobim, 5.8.99” (Adi nº 1.923-mC/dF, Pleno. rel. min.
ilmar Galvão. rel. p/ acórdão min. eros Grau. Julg. 1º.8.2007. DJe, 21 set. 2007).
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
essa forma organizacional, criada pelo Programa nacional de desestatização
(Pnd), buscou reduzir a participação do estado na produção voltada para o mercado.
nesse contexto, surgiu a nova concepção de organização administrativa, com a
ideia de “publicização”, através da qual serviços públicos de interesse social passariam
a ser executados por entes não estatais, tais como associações ou consórcios de usuários,
fundações e organizações não governamentais sem fins lucrativos, a serem qualificadas
como organizações sociais.
os serviços a serem delegados a estas organizações são aqueles que não permitem sua exploração como atividades empresariais, lucrativas ou de risco.21 Para estas
atividades empresariais, o modelo a ser seguido, dentro do processo de desestatização,
será a sua delegação a particulares por meio de contratos de concessão ou de permissão
de serviço público, nos termos do art. 175 da Constituição Federal e pela Lei nº 8.987/95,
ou, eventualmente, por meio das parcerias público-privadas (Lei nº 11.079/04). nesses
termos, os serviços que possam ser explorados por particulares sob regime empresarial,
como atividade lucrativa, serão desestatizados (privatizados) por meio de concessões
ou permissões de serviço público (Lei nº 8.987/95). os serviços de utilidade pública,
igualmente denominados de atividades não exclusivas do estado, podem ser desestatizados — dentro do processo de publicização — pela sua transferência a entidades
qualificadas como organizações sociais (OS).22
Aspecto distintivo relevante entre os serviços a serem privatizados e os serviços
a serem publicizados diz respeito à origem dos recursos que irão manter a prestação
desses serviços. no caso dos serviços empresariais — processo de privatização —, a
remuneração pela prestação do serviço incumbe ao usuário que irá pagar a tarifa ao
concessionário ou permissionário; no caso dos serviços de utilidade pública, ou não
exclusivos do estado, inseridos no processo de publicização, a remuneração pela sua
prestação incumbe ao próprio poder público, que deverá repassar recursos orçamentários à os por meio do contrato de gestão.
A concepção das organizações sociais23 apresenta-se indissociável da ideia de
controle externo de resultados, periódico e a posteriori, tendo por fim a verificação do
21
22
23
observe que a Lei nº 9.637/98, em seu art. 1º, estabelece uma lista de atividades que poderão permitir a sua transferência a organizações sociais: ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, preservação e proteção
do meio ambiente, cultura e saúde.
As organizações sociais estão qualificadas como pessoas jurídicas de Direito Privado. Nesse sentido, vide o seguinte
julgado do stF: “recurso – Aplicabilidade estrita da prerrogativa processual do prazo recursal em dobro (CPC,
art. 188) – Paraná Previdência – entidade paraestatal (ente de cooperação) – inaplicabilidade do benefício extraordinário da ampliação do prazo recursal – intempestividade – recurso não conhecido. – As empresas governamentais
(sociedades de economia mista e empresas públicas) e os entes de cooperação (serviços sociais autônomos e organizações sociais) qualificam-se como pessoas jurídicas de direito privado e, nessa condição, não dispõem dos benefícios processuais inerentes à Fazenda Pública (união, estados-membros, distrito Federal, municípios e respectivas
autarquias), notadamente da prerrogativa excepcional da ampliação dos prazos recursais (CPC, art. 188)” (Ai
nº 349.477-Agr/Pr, 2ª turma. rel. min. Celso de mello. Julg. 11.2.2003. DJ, 28 fev. 2003).
É importante observar que as organizações sociais existem para a prestação de serviços à população. infelizmente, já
se tem verificado o desvirtuamento desse instituto, que tem sido indevidamente utilizado para suprir falta de mão
de obra em alguns órgãos e entidades públicos. Assim, a Administração Pública, em vez de proceder à realização de
concursos públicos ou, eventualmente, à contratação, mediante licitação, de empresas para o fornecimento de mão
de obra (conforme examinamos no início do presente capítulo, nem todas as atividades da unidade administrativa
poderão ser terceirizados), utiliza o contrato de gestão para repassar dinheiro público a certas organizações sociais
para que estas contratem, sem concurso público ou licitação, pessoal para suprir mão de obra que deveria ser
recrutada, conforme o caso, mediante concurso público ou licitação. Verificando-se esse tipo de situação, devem os
órgãos de controle agir no sentido de obter a nulidade desse tipo de desvirtuamento do contrato de gestão.
275
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
276
cumprimento do contrato de gestão. no caso das os, esse controle é exercido imediatamente pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada e, de forma mediata, pelo tribunal de Contas24 da respectiva esfera de
governo. A atividade fiscalizadora deverá adequar-se à verificação de resultados, tendo
em conta a não submissão das os ao regime jurídico de direito Público, inclusive quanto
ao dever de licitar, de celebrar contratos administrativos ou realizar concursos públicos.
Dessa flexibilização decorre que o controle da legalidade deve ceder ao controle
de resultados ou finalístico. A aferição dos resultados e, sobretudo, a satisfação do
usuário devem ser o parâmetro da atividade dessas entidades.
Essa orientação para os resultados deverá estar fixada em parâmetros concretos
e objetivados no contrato de gestão. o padrão avaliador a ser utilizado pelo controle
externo passa a ser o fiel cumprimento do contrato de gestão, pois nele devem estar
fixados adequadamente os objetivos e metas da entidade, bem como os critérios e parâmetros de avaliação quantitativa e qualitativa (indicadores de desempenho).
6.6.2.2 Contrato de gestão celebrado entre entidades ou órgãos
públicos
Conforme examinamos no tópico anterior, o contrato de gestão é celebrado entre
o poder público e entidades qualificadas como organizações sociais com vistas à prestação de serviços de interesse público à população. neste caso, o contrato de gestão será
o instrumento que irá definir as metas a serem alcançadas pela referida organização e,
igualmente, viabilizar o repasse de dinheiro público.
o contrato de gestão possui, no entanto, outro âmbito de aplicação. Pode ele
ser igualmente celebrado entre órgãos ou entidades da Administração Pública. essa
hipótese encontra-se prevista no próprio texto constitucional. Ainda que o art. 37, §8º,
da Constituição Federal, não indique de forma expressa que esteja sendo disciplinado
o contrato de gestão, é evidente que é deste contrato que cuida a Constituição.
essa outra hipótese de adoção do contrato de gestão, que visa, conforme dispõe o próprio texto constitucional, a conferir maior autonomia gerencial, financeira e
orçamentária à unidade administrativa com a qual venha a ser celebrado o contrato,
dentro da nova concepção de organização administrativa, irá constituir instrumento
para a supervisão ministerial. Nesse caso, o contrato de gestão irá definir as metas a
serem alcançadas pela unidade administrativa (seja ela órgão ou entidade), e a fim de
tornar possível o atendimento de tais metas, irá conferir autonomia gerencial, financeira
24
Quanto à possibilidade de serem as organizações sociais contratadas sem licitação, mediante dispensa (Lei
nº 8.666/93, art. 24, XXiv), é evidente que os serviços a serem contratados deverão ser esporádicos ou eventuais
(como por exemplo, a contratação de organização social para a elaboração de determinado projeto de pesquisa).
em hipótese alguma poderão as organizações sociais ser utilizadas para suprir carência de pessoal de órgãos
ou entidades públicas.
Acerca do dever das organizações sociais de prestarem contas aos tribunais de Contas, vide tCu: “o tribunal
Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: (...) 8.1 firmar o entendimento de que as contas anuais
das entidades qualificadas como organizações sociais, relativamente ao contrato de gestão, são submetidas a
julgamento pelo tribunal, nos termos do parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal, com a redação dada
pela emenda Constitucional nº 19/98, dos arts. 6º e 7º, c/c o art. 5º, inciso vi, da Lei nº 8.443/92 e arts. 8º, §§2º e
3º, e 9º da Lei nº 9.637/98” (decisão tCu nº 592/98, Plenário. BTCU, n. 63/98).
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
ou orçamentária.25 Apenas a título de ilustração, a união, por meio do ministério das
Telecomunicações, celebrou contrato de gestão com a ANATEL a fim de definir metas
de atuação para esta entidade, conferindo-lhe a autonomia necessária à consecução de
tais metas. neste caso, o contrato de gestão foi celebrado entre duas entidades: união
e ANATEL. Verificamos, no entanto, a existência de contratos de gestão celebrados
entre órgãos e a própria pessoa jurídica que ele integra: união e ministério da defesa.
6.6.2.3 termos de parceria e organizações da sociedade civil de
interesse público
Os requisitos legais necessários à qualificação de entidades privadas sem fins
lucrativos como organizações da sociedade civil de interesse público – osCiPs (Lei
nº 9.790/99) são muito semelhantes aos estabelecidos para as organizações sociais – os
(Lei nº 9.637/98).
Nos termos da Lei nº 9.790/99, somente podem ser qualificadas como OSCIP as
pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham
pelo menos uma das seguintes finalidades:
i - promoção da assistência social;
ii - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
iii - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação
das organizações de que trata esta Lei;
iv - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação
das organizações de que trata esta Lei;
v - promoção da segurança alimentar e nutricional;
vi - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento
sustentável;
vii - promoção do voluntariado;
viii - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza;
iX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas
alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;
X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica
gratuita de interesse suplementar;
Xi - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de
outros valores universais;
Xii - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades
mencionadas neste artigo.
se comparadas as duas legislações mencionadas, relativas às osCiPs e às os,
salvo pequenos detalhes procedimentais, não é possível identificar distinções entre uma
e outra entidade, dificuldade que se estende, em consequência ao contrato de gestão,
firmado com OS, e ao termo de parceria, firmado com OSCIP.
25
o nível ou grau de autonomia a ser conferido irá depender dos termos pactuados no contrato. essa autonomia,
no entanto, jamais poderá ser utilizada para desobrigar o órgão ou entidade pública do cumprimento das regras
constitucionais inseridas no art. 37 da Constituição Federal, inclusive quanto ao dever de realizar licitações e
concursos públicos.
277
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
278
A grande distinção entre um instrumento e o outro diz respeito ao alcance de
cada um. O contrato de gestão alcança toda a atividade da entidade qualificada como
OS. Tudo o que a entidade fará ou deixará de fazer será definido por meio do contrato
de gestão, instrumento que viabilizará o repasse dos recursos públicos para a execução dos fins previstos no acordo. No caso do termo de parceria, a entidade qualificada
como osCiP busca apenas alguma ajuda do poder público para o desenvolvimento
da atividade de interesse comum, sem que haja prejuízo de a entidade privada buscar outras fontes de recursos ou de desenvolver outras atividades em seu âmbito de
atuação. o contrato de gestão é mais amplo e envolve todas as atividades da os; o
termo de parceria é o instrumento que viabiliza o repasse de dinheiro público a título
de colaboração para a entidade privada desenvolver alguma atividade ou projeto de
interesse ou de utilidade pública.
os termos de parcerias mais se assemelham aos convênios,26 sendo possível, em
muitas situações, ser utilizado um indistintamente no lugar do outro.27 Poderíamos
indicar o convênio, contudo para atividades ou programas que possam ser definidos
no tempo, como a construção de uma quadra poliesportiva. os termos de parcerias,
26
27
No sentido de que não exige licitação a firmatura de termo de parceria por órgãos ou entidades da Administração Pública com organizações da sociedade Civil de interesse Público, conferir informativo de Jurisprudência
sobre Licitações e Contratos do tCu nº 59, in verbis:
“Em representação formulada ao Tribunal, foram apontadas diversas irregularidades em convênios firmados
entre o ministério do trabalho e emprego (mte) e uma organização da sociedade Civil de interesse Público
(oscip). em face delas, sugeriu a unidade instrutiva que o tribunal determinasse ao mte e ao ministério do Planejamento, orçamento e Gestão que utilizassem o termo de parceria, previsto no art. 9º da Lei 9790/1999, para a
execução de projetos ou programas, mediante serviços sociais prestados por entidades privadas, sempre que o
objeto a ser executado se enquadrasse em um dos casos listados no art. 3º do referido normativo, sugerindo, ainda,
para a firmatura do pacto, prévio e obrigatório procedimento licitatório para a escolha da entidade-parceira. O
relator, todavia, deixou de acolher a parte final da proposta, que exigia licitação para a firmatura de termo de
parceria. Segundo o relator, ‘é certo que o ajuste a ser firmado entre um órgão público e uma Oscip é o termo de
parceria, nos termos da Lei nº 9.790, de 1999’. entretanto, ‘não há nessa lei, nem no decreto que a regulamenta
(decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999), qualquer disposição que obrigue os órgãos e entidades da Administração Pública a instaurar procedimento licitatório, nos termos da Lei nº 8.666, de 1993, para selecionar as oscips
interessadas em firmar o referido termo de parceria’. Além disso, destacou o relator disposição constante do art. 23
do Decreto 3.100/1999, que fixa a realização, a depender de decisão discricionária do gestor, de concurso de
projetos pelo órgão estatal interessado em construir parceria com oscips para obtenção de bens e serviços e para
a realização de atividades, eventos, consultorias, cooperação técnica e assessoria. Ainda para o relator, ‘embora
seja bastante recomendável a instauração desse procedimento — que privilegia os princípios constitucionais da
moralidade e da impessoalidade —, não há como exigir que os gestores públicos promovam licitação para selecionar oscips, visto que o ordenamento jurídico não traz esse tipo de mandamento’. Por conseguinte, em face,
também, do decidido nos Acórdãos 1777/2005 e 2066/2006, do Plenário, votou por que se dirigisse alerta ao mte
e ao MPOG, para que observem o correto instrumento (termo de parceria) ao firmarem ajustes com Oscips, nos
termos da Lei nº 9.790, de 1999, preferencialmente precedido por concurso de projetos, o que foi acolhido pelo
Plenário” (Acórdão nº 1.006/2011, Plenário. tC-019.538/2006-9. rel. min. ubiratan Aguiar. sessão: 20.4.2011.
DOU, 28 abr. 2011).
esses institutos são, porém, regulados por normas distintas. A jurisprudência do tCu ampara entendimento
no sentido de os termos de parceria firmados entre a Administração Pública e as OSCIPs não se submeterem às
regras da Lei nº 8.666/93 e da in stn nº 01/97, que trata de convênios. vejamos o Acórdão nº 1.777/05, Plenário
(DOU, 22 nov. 2005):
“ACordAm os ministros do tribunal de Contas da união, reunidos em sessão Plenária, diante das razões
expostas pelo Relator, em: 9.1 adotar, para fins de fiscalização deste Tribunal e orientação dos órgãos e entidades da Administração Pública, as seguintes conclusões: 9.1.1. as organizações da sociedade Civil de interesse
Público – oscips, contratadas pela Administração Pública Federal, por intermédio de termos de Parceria, submetem-se ao regulamento Próprio de contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de
recursos provenientes do Poder Público, observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, economicidade e da eficiência, nos termos do art. 14, c/c o art. 4º, inciso I, todos da Lei 9.790/99;
9.1.2. não se aplicam aos termos de Parceria celebrados entre a Administração Pública Federal e as oscips as
normas relativas aos Convênios, especificamente a IN 01/97-STN”.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
não obstante devam igualmente ter prazo de vigência certo, são mais indicados para
atividades de prazo indefinido, como costumam ser os projetos de desenvolvimento
ambiental, cultural ou de natureza social.
6.6.2.4 Parcerias público-privadas, concessões de serviço público,
termos de parceria e contratos de gestão: distinções
As parcerias público-privadas — a serem estudas adiante (Capítulo 9) — são
indicadas para o desenvolvimento de atividades relacionadas à prestação de serviços
públicos que requeiram a realização de investimento em infraestrutura básica — execução de obras ou instalação de bens.
se os serviços a serem prestados pelo “parceiro privado” apresentarem viabilidade de exploração como atividades empresariais, em que a tarifa paga pelo usuário
seja suficiente para remunerar os serviços e as obras eventualmente executadas, deve
ser utilizado o sistema de concessão ou de permissão de serviços públicos disciplinado
pela Lei nº 8.987/95. se a prestação do serviço não puder ser remunerada por meio de
tarifa paga pelo usuário, se ela não for autossustentável, quer em razão da sua natureza
— construção e/ou manutenção de prisões, hospitais, escolas etc. —, quer em razão da
baixa lucratividade do empreendimento — construção e/ou manutenção de estradas,
de ferrovias, de portos, de pontes, de usinas hidrelétricas que não possam ser pagas ou
remuneradas exclusivamente por meio de tarifas, e que demandem o aporte de recursos
públicos, devem ser utilizadas as parcerias público-privadas.
se, ao contrário, os serviços a serem prestados estiverem relacionados a programas
na área social, ambiental, científica, devem ser utilizados os convênios, os termos de
parceria ou os contratos de gestão. serão as particularidades e o nível de envolvimento
do parceiro privado que indicarão, dentre esses três instrumentos — convênios, termos
de parceria ou contrato de gestão — o mais indicado ao caso concreto.
É importante observar que esses três instrumentos não se destinam à execução
de obras ou à instalação de bens de infraestrutura. Para esse fim, devem ser utilizadas
as concessões ou permissões de serviço público ou as parcerias público-privadas.
6.7 distinção entre contratos administrativos e contratos celebrados
pelos particulares
os contratos celebrados pela Administração Pública se distinguem daqueles
celebrados no âmbito privado porque estes têm como um de seus principais elementos
caracterizadores a disponibilidade de vontade das partes. no campo do direito Privado, têm as partes ampla liberdade de contratar, ao passo que ao celebrar contratos
a Administração Pública deve ter toda sua atuação vinculada à plena realização do
interesse público.
É bem verdade que também no campo do Direito Privado se verifica cada vez
maior tutela, maior interferência do estado. isto resta evidente, por exemplo, no direito
do trabalho e nos contratos regidos pelo Código de defesa do Consumidor.
os contratos administrativos são regidos por normas de direito Administrativo,
que tem como principais características a indisponibilidade do interesse público e a
279
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
280
supremacia do interesse público sobre o interesse privado.28 não obstante as diferenças
existentes entre o regime do direito Privado e o regime jurídico administrativo, os contratos administrativos são considerados modalidade de contrato, nada diferindo, em
sua essência, dos contratos do direito Privado. os contratos administrativos apresentam
como maior particularidade, e nesse ponto são originais, a circunstância de sua disciplina
jurídica estar totalmente subordinada à busca da plena realização do interesse público.
os contratos administrativos, nos termos do art. 54 da Lei nº 8.666/93, “regulam-se
pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito Público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”.
eles são tratados de acordo com as regras constantes na Lei nº 8.666/93. esse
o texto jurídico básico a ser utilizado para disciplinar a celebração e a execução dos
contratos firmados pela Administração Pública.
É bem verdade, como visto na própria redação do art. 54 anteriormente mencionado, que os princípios e as regras do direito Privado poderão ser aplicados supletivamente aos contratos administrativos. isto ocorrerá quando:
1. A Lei nº 8.666/93 não tiver tratado de determinada questão que exija solução
decorrente da execução de contratos administrativos; e
2. não seja encontrada a solução que se busca dentro do próprio direito Administrativo.
A fim de melhor entender a aplicação subsidiária do Direito Privado ao contrato
administrativo, podemos criar a seguinte situação hipotética: imaginemos que a Administração Pública haja adquirido determinado imóvel. Após celebrada a avença, terceiro
28
o tCu considera ilegal a previsão, em contrato administrativo, da adoção de juízo arbitral para a solução de
conflitos, visto a indisponibilidade do interesse público. Ver Acórdão nº 537/06, 2ª Câmara (DOU, 17 mar. 2006).
discordamos deste entendimento em razão dos argumentos que apresentamos no Capítulo 18. eis a decisão do
tCu: “representação. Pedido de reexame. inclusão de cláusulas ilegais em contrato administrativo. negado
provimento. É ilegal a previsão, em contrato administrativo, da adoção de juízo arbitral para a solução de conflitos, bem como a estipulação de cláusula de confidencialidade, por afronta ao princípio da publicidade”.
em seu voto, o ministro relator apresentou os seguintes argumentos:
“examinadas as razões apresentadas pelos recorrentes, consoante transcrito no relatório que precede a este
voto, manifesto-me inteiramente de acordo com o posicionamento defendido pela secretaria de recursos, no
sentido de que não existe amparo legal para a adoção de juízo arbitral nos contratos administrativos — e administrativos são os contratos celebrados pela CBee com os Pie, conforme demonstrado à saciedade.
Esse entendimento coaduna-se com o juízo firmado na Decisão 286/93-Plenário, proferida por esta Corte de
Contas em sede de consulta formulada pelo exmo. sr. ministro de minas e energia. naquela oportunidade, o
tribunal manifestou-se no sentido de que ‘o juízo arbitral é inadmissível em contratos administrativos, por falta
de expressa autorização legal e por contrariedade a princípios básicos de direito público (princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, princípio da vinculação ao instrumento convocatório da licitação e à
respectiva proposta vencedora, entre outros).
Como bem ressaltado pela instrução da unidade técnica especializada, corroborado pela manifestação do ministério Público, a Lei 9.307/96, que dispõe de modo geral sobre a arbitragem, não supre a necessária autorização legal
específica para que possa ser adotado o juízo arbitral nos contratos celebrados pela CBEE.
A Lei 10.433/02, por sua vez, trata da atuação de empresas no mercado Atacadista de energia (mAe), não se
aplicando ao caso concreto. Frise-se que no caso das empresas com atuação no mAe, a própria Lei 10.433/02
estipula, no §5º do art. 2º, que se consideram disponíveis os direitos relativos a créditos e débitos decorrentes
das operações realizadas naquele mercado, situação diferente da versada nestes autos, em que os direitos são
indisponíveis.
Portanto, não havendo amparo legal para a previsão do instituto da arbitragem e tratando-se de direitos patrimoniais indisponíveis, não há como tolerar a manutenção da cláusula 47 nos contratos celebrados, sendo adequada
a determinação de celebração de termo aditivo para sua exclusão.”
Ainda sobre o tema, vale examinar posição do stJ: “Administrativo. mandado de segurança. Permissão de área
portuária. Celebração de cláusula compromissória. Juízo arbitral. sociedade de economia mista. Possibilidade.
Atentado” (Agrg no ms nº 11.308-dF, 1ª seção. rel. min. Luiz Fux. Julg. 28.6.2006. DJ, 14 ago. 2006).
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
ingressa com ação de usucapião em que alega haver adquirido a propriedade do bem e
que isto havia ocorrido antes mesmo da celebração do contrato com a Administração.
Julgada procedente a ação de usucapião, a Administração perde a propriedade do bem
que havia adquirido. em face dessa situação, observa-se que a Lei nº 8.666/93 não dá
solução para essa questão. o Código Civil disciplina o instituto da evicção e, em seu
art. 447, determina que “nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção”. A
evicção é o instituto que obriga o alienante a assegurar a propriedade do bem alienado
ao adquirente. este instituto não foi disciplinado pela Lei de Licitações, mas com ela
é perfeitamente compatível. nada obsta, portanto, que, no caso acima citado, a Administração, que havia adquirido o imóvel e, em seguida perdido a sua propriedade,
socorra-se das regras relativas à evicção de modo a obrigar o alienante a indenizá-la,
nos termos do Código Civil.
6.8 Contrato de direito Público e contrato de direito Privado
de acordo com o entendimento doutrinário majoritário, não é o simples fato
de a Administração Pública figurar como parte em um contrato que o transforma em
contrato administrativo.
Celso Antônio Bandeira de mello ensina que a Administração Pública estabelece
contratos que podem ser:
a) contratos de direito Privado da Administração; ou
b) contratos administrativos.29
A distinção entre ambos residiria na disciplina do vínculo: os contratos de direito
Privado celebrados pela Administração seriam regulados em seu conteúdo pelas normas
de direito Privado — ressalvadas as condições e formalidades para estipulação e aprovação, disciplinadas pelo direito Administrativo —; enquanto os contratos administrativos
sujeitar-se-iam às regras e princípios estabelecidos no direito Público, admitida, tão só,
a aplicação supletiva de normas privadas compatíveis com a índole pública do instituto.
dentre as peculiaridades do contrato administrativo, leciona o mestre, destacar-se-ia
a possibilidade da Administração “instabilizar” o vínculo, seja alterando unilateralmente
o que fora pactuado a respeito das obrigações do contratante, seja mesmo extinguindo
unilateralmente esse vínculo, constituindo ambas as formas de instabilização direito
da Administração, ressalvadas a identidade do objeto da avença e a plena garantia dos
interesses patrimoniais da outra parte. Se a possibilidade aqui retratada não se verificar
na avença, não se poderia falar em contrato administrativo.
A opinião de Cretella Júnior sobre o assunto pode ser examinada pela leitura do
seguinte trecho:
os contratos celebrados pelo estado ou são públicos, abrigando cláusulas atípicas, “derrogatórias” e “exorbitantes” do direito comum (concessão de serviço público, utilização
privada de bem público, realização de obras e trabalhos públicos), submetendo-se, nesse
caso, a regime jurídico de direito Público, ou são privados, sujeitos às normas prescritas
pelo direito Civil (compra e venda, locação, fornecimento, realização de obras e trabalhos
sob regime de empreitada comum). Em qualquer destes casos, a Administração figura
29
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 377-378.
281
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
282
como parte da relação jurídica contratual, ora ocupando posição vertical, usufruindo então
os privilégios e prerrogativas, decorrentes de entidade detentora de “potestade pública”,
o que lhe garante aquela singular colocação, ora ocupando posição horizontal, tratando
com o particular no mesmo plano, com ele nivelando-se, perdendo então grande parte
daquelas prerrogativas, oriundas de sua condição específica de poder público.30
Hely Lopes meirelles, ao examinar esse aspecto dos contratos celebrados pela
Administração, adota idêntica linha de raciocínio:
Contrato Administrativo é o ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade,
firma com particular ou outra entidade administrativa para a consecução de objetivos
de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração. (...) A
Administração pode realizar contratos sob normas predominantes do direito Privado — e
freqüentemente os realiza — em posição de igualdade com o particular contratante, como
pode fazê-lo com supremacia do Poder Público. em ambas as hipóteses haverá interesse e
finalidade pública como pressupostos do contrato, mas no primeiro caso, o ajuste será de
natureza semipública (contrato administrativo atípico, como já conceituou o extinto tFr),
e somente no segundo haverá contrato administrativo típico. daí a necessária distinção
entre contrato semipúblico da Administração e contrato administrativo propriamente
dito, como já o fez a lei (art. 62, §3º, i).31
Convém observar que o art. 62 da Lei nº 8.666/93, que trata dos instrumentos a
serem utilizados na formalização dos contratos administrativos, em seu §3º, cuida de
matéria que, a rigor, não diz respeito à formalização dos contratos administrativos.
esse dispositivo trata, antes, do conteúdo dos contratos tipicamente de direito Privado
eventualmente celebrados pela Administração Pública.
tomemos o exemplo de um contrato de locação em que o poder público seja o
locatário. A Lei nº 8.666/93 não disciplina o seu conteúdo. Assim sendo, nos termos do art. 54
da Lei de Licitações (que determina que “os contratos administrativos de que trata esta
Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes,
supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”), ao contrato serão aplicadas as regras do direito Privado, previstas na legislação
sobre locação para fins não residenciais.
Ocorre que o art. 62, §3º, I, determina que “aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo
seja regido, predominantemente, por norma de direito privado” aplica-se o disposto
nos artigos 55 e 58 a 61 da Lei de Licitações, e demais normas gerais, no que couber.
o art. 55 trata das cláusulas obrigatórias para os contratos administrativos, o art. 58
indica as cláusulas exorbitantes (e que irão caracterizar os contratos administrativos por
conferirem à Administração posição de supremacia em relação ao contratado), e o art. 61
dispõe sobre a formalização dos contratos administrativos. esses artigos contêm regras
tipicamente de direito Administrativo.
ora, se os tradicionalmente denominados contratos de direito Privado, tais como
seguro, financiamento, locação etc., celebrados pela Administração estão subordinados
30
31
CreteLLA Júnior. Licitações e contratos do Estado, p. 76.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 194-196.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
aos artigos mencionados (artigos 55 e 58 a 61), eles deixam de ser contratos de direito
Privado e passam a apresentar a principal característica dos contratos administrativos:
a presença de cláusulas exorbitantes. nesses termos, se durante a execução ou formalização dos contratos indicados houver qualquer dúvida entre a aplicação das normas,
regras ou dos princípios do direito Privado ou do direito Administrativo, deverão ser
aplicados esses últimos e, somente em caráter supletivo, serão aplicadas as regras e
princípios do direito Privado.
essa linha é a orientação de toshio mukai:
De nossa parte, já observamos: verifica-se que os contratos regidos predominantemente
por normas de direito privado não podem ser contratos de direito privado puros, pela
incidência sobre eles de tantas disposições e normas gerais típicas do direito público.
Daí confirmar-se nossa posição, ou seja, de que a Administração Pública celebra, tão-só,
a partir do dec.-lei nº 2.300/86, contratos de direito público: contratos administrativos
puros e contratos administrativos de figuração privada.
A Lei nº 8.666/93 confirma o Dec.-lei nº 2.300/86, ao mandar aplicar normas típicas do
contrato administrativo (arts. 55 e 58 a 61) e demais normas gerais aos “contratos cujo
conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado”.
destarte, no direito público brasileiro não há falar em contrato privado celebrado pela
Administração. todos os contratos ajustados pela Administração Pública são públicos
(administrativos ou semipúblicos).32
nesses termos, além dos contratos administrativos, regidos por normas de
direito Público, nos quais se inserem cláusulas exorbitantes do direito comum em
favor da Administração, conferindo a esta privilégios em face do particular, firma a
Administração contratos outros cujo conteúdo é disciplinado predominantemente por
norma de direito Privado. Porém, mesmo em relação a estes últimos, a prevalência
da Administração Pública deve fazer-se presente por meio das cláusulas exorbitantes.
Em resumo, pode a Administração Pública firmar contratos regidos predominantemente por normas de direito Público e contratos nos quais predominam as regras
de direito Privado. de fato, não importa o nome que se dê a este segundo tipo: contrato privado, contrato semipúblico ou contrato administrativo de figuração privada.
Haja vista a Administração contratante, em qualquer caso, sempre assumir posição
de supremacia, podendo anulá-lo, por força do disposto no art. 59 da Lei nº 8.666/93,
modificá-lo e rescindi-lo unilateralmente, fiscalizar sua execução e aplicar sanções administrativas ao contratado, observados, sempre, os limites legais, é de se concluir que as
potestades que caracterizam os contratos administrativos estarão sempre presentes em
todos os contratos firmados pelas pessoas de Direito Público. Ora, se é a presença dessas
potestades que caracteriza o contrato administrativo, cláusulas que possibilitam, como
observa Celso Antônio Bandeira de mello, à Administração Pública “instabilizar” seus
contratos, é de se concluir que todos os contratos em que seja parte pessoa de direito
Público é contrato administrativo. A aplicação supletiva, ou subsidiária, das regras e
dos princípios privatistas a todos os contratos firmados pela Administração Pública não
faz com que alguns contratos possam ser reputados privados em oposição a outros que
teriam natureza administrativa.
32
muKAi. Contratos públicos: as prerrogativas da administração e os direitos das empresas contratadas, segundo as
leis n. 8.666/93 e 8.883/94, p. 24.
283
284
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
O método a ser utilizado para a definição do regime jurídico dos contratos celebrados
pelas pessoas de direito Público é, em qualquer caso, sempre o mesmo: busca-se, em primeiro lugar, aplicar a referidos contratos o direito Administrativo; esgotada a aplicação
das normas do direito Público, deve ser buscada nas regras e nos princípios do direito Privado compatíveis com as primeiras a solução para quaisquer questões jurídicas surgidas.
se o método de aplicação do direito é, em relação a qualquer contrato celebrado pela
Administração Pública, sempre o mesmo, se o traço mais característico dos contratos administrativos é a presença de cláusulas exorbitantes, e se as cláusulas exorbitantes devem,
em razão de expressa determinação legal (Lei nº 8.666/93, art. 62, §3º, i), estar presentes
em todos os contratos, inclusive naqueles cujo conteúdo seja regido pelo direito Privado,
todos os contratos celebrados pela Administração Pública são contratos administrativos.
Feitas essas considerações, observamos, ainda, que a Lei nº 8.666/93, em seu art. 62,
§3º, i, não determina que os contratos ali mencionados devam submeter-se ao disposto no
art. 57, que cuida da fixação dos prazos de vigência dos contratos administrativos. Assim,
nada impede, por exemplo, que a Administração alugue imóvel por prazo superior ao
do exercício financeiro.
6.9 Cláusulas exorbitantes
os contratos administrativos têm como sua maior particularidade a presença
constante da busca pela realização do interesse público. isto faz com que as partes do
contrato administrativo (Administração contratante e terceiro contratado) não sejam
colocadas em situação de igualdade. o contrato somente vincula as partes se elas
concordarem com a sua celebração. se não houver a concordância do particular, o
contrato administrativo não o obriga. Porém, uma vez firmado o acordo, em nome da
supremacia do interesse público são conferidas à Administração Pública prerrogativas
que lhe colocam em patamar diferenciado, de superioridade em face do particular que
com ela contrata.
essa supremacia irá manifestar-se por meio de determinadas cláusulas contratuais denominadas “cláusulas exorbitantes”. essa terminologia decorre do simples
fato de que elas conferem poderes exorbitantes à Administração contratante em face
do particular contratado.
o art. 58 da Lei nº 8.666/93, que trata dessas cláusulas, dispõe nos seguintes
termos:
Art. 58. o regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à
Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse
público, respeitados os direitos do contrato;
II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta Lei;
III - fiscalizar-lhes a execução;
iv - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;
v - nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, na hipótese da necessidade de acautelar
apuração administrativa de faltas contratuais pelo contrato, bem como na hipótese de
rescisão do contrato administrativo.
estudaremos, a seguir, cada uma das principais cláusulas exorbitantes.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
6.9.1 Mutabilidade contratual: modificações unilaterais
A primeira das cláusulas exorbitantes relaciona-se às modificações que a Administração pode introduzir, unilateralmente, em contratos administrativos.
o interesse público é não só o fundamento da mutabilidade nos contratos administrativos, como também irá definir o seu real limite. É exatamente em nome dessa
mutabilidade dos contratos administrativos que a Administração, buscando sempre
a realização do interesse público, poderá promover alterações contratuais unilaterais,
dentro dos limites indicados no art. 65, §1º, da Lei nº 8.666/93, que dispõe nos seguintes
termos:
Art. 65. (...)
§1º O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos
ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por
cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício
ou de equipamento, até o limite de 50% (cinqüenta por cento) para os seus acréscimos.
As modificações unilaterais a que se sujeitam os contratos administrativos dividem-se
em duas categorias: alterações contratuais quantitativas e as alterações contratuais qualitativas.33
Antes de prosseguirmos no estudo deste complexo tema, devemos observar que
em hipótese alguma, em nome de se alterar quantitativa ou qualitativamente contrato
administrativo, pode ser transformada a aquisição de bicicletas em compra de aviões, ou
a prestação de serviços de marcenaria em serralheria. isso não é alteração quantitativa,
ou mesmo qualitativa. isso implica a celebração de outro contrato com outro objeto.34
Nas modificações quantitativas, a dimensão do objeto pode ser modificada,
conforme mencionado, dentro dos limites previstos no §1º do art. 65 da Lei nº 8.666/93,
isto é, pode ser adquirida uma quantidade de bicicletas maior do que o originalmente
previsto, desde que o acréscimo, em valor, não ultrapasse 25% do valor inicial atualizado
do contrato.
se foi celebrado contrato no valor de r$10.000,00 para a aquisição de 100 bicicletas,
poderia a Administração obrigar o vendedor a entregar quantidade maior de bicicletas,
que não poderia superar a 25% do valor do contrato.35 essa seria hipótese de alteração
33
34
35
“Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
i - unilateralmente pela Administração:
a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos;
b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa
de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei.” (grifos nossos)
As cláusulas dos contratos administrativos podem ser divididas em regulamentares, igualmente denominadas
de serviço, e econômico-financeiras. As primeiras definem o próprio objeto do contrato; as segundas, a forma de
remuneração do contratado. essa distinção é importante porque as alterações unilaterais que a Administração
pode realizar nos contratos administrativos referem-se apenas às cláusulas regulamentares, observados os limites
legais. Ademais, sempre que a alteração unilateral, que como visto, somente pode referir-se a cláusula regulamentar, provocar algum tipo de alteração no equilíbrio financeiro do contrato, deverá ser restabelecido esse equilíbrio.
essas regras constam nos parágrafos 1º e 2º do art. 58 da Lei nº 8.666/93, que dispõem nos seguintes termos:
“Art. 58. (...)
§1º As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas
sem prévia concordância do contratado.
§2º Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para
que se mantenha o equilíbrio contratual.”
em licitações cujos objetos referem-se a fornecimento de produtos e estão divididos em itens, os acréscimos e
supressões deverão ser efetuados proporcionalmente a cada item.
285
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
286
quantitativa, e demonstra, claramente, a supremacia da Administração em face do
contratado. É evidente que a Administração, nesse caso, será obrigada a pagar quantia
mais elevada ao contratado, proporcionalmente ao aumento quantitativo do contrato.
As alterações qualitativas, por sua vez, decorrem de modificações necessárias ou
convenientes nas obras ou serviços sem, entretanto, implicarem mudanças no objeto
contratual, seja em natureza ou dimensão.36
Essas alterações qualitativas podem derivar tanto de modificações de projeto ou
de especificação do objeto quanto da necessidade de acréscimo ou supressão de obras,
serviços ou materiais, decorrentes de situações de fato vislumbradas após a contratação.
Conquanto não seja modificado o objeto contratual, em natureza ou dimensão,
essas alterações implicam, em regra, mudanças no valor original do contrato. imagine,
como exemplo desse tipo de alteração, que foi contratada a execução de 100km de
asfalto. Após assinado o contrato, descobre-se, ou torna-se disponível, nova tecnologia
que permitiria a execução da obra em menor tempo e com durabilidade bem maior.
nessa hipótese, a Administração poderia decidir, unilateralmente, adotar essa nova
tecnologia. seria exemplo de alteração qualitativa do contrato, haja vista o objeto do
contrato — execução de 100 km de asfalto — não ter sofrido qualquer modificação.
outro exemplo seria a construção de barragem que utilizaria terra para represar a água,
e, após iniciada a execução da obra, a Administração optasse pela utilização da tecnologia de cimento compactado. A barragem seria a mesma; alterou-se apenas a tecnologia
para a sua execução.
A dúvida maior seria a de saber se os limites do §1º do art. 65 seriam também
aplicáveis às alterações qualitativas, haja vista a lei tratar expressamente de limites apenas
quando se refere às alterações quantitativas.
de início, é de ver que fere não só o direito como também o senso comum a hipótese
de alterações contratuais ilimitadas no âmbito administrativo, sobretudo as unilaterais.
os limites genéricos importam o respeito ao direito dos contratados e a interdição da
fraude à licitação.
o respeito ao contratado — explicitamente exigido no art. 58, i, da Lei nº 8.666/93
— consubstancia-se na manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, na
intangibilidade do objeto e, nas alterações unilaterais, na imposição objetiva de limite
máximo aos acréscimos e supressões. evidente que, nas alterações consensuais, o contratado manifesta sua vontade, podendo rejeitar acréscimos ou supressões indesejáveis,
dentro dos limites legais. não estaríamos, nesta hipótese, diante de cláusula exorbitante,
haja vista haver o consentimento do contratado. A maior dificuldade seria a de saber
se, de modo unilateral, poderia a Administração impor alterações qualitativas sem que
existissem quaisquer limites.
nas alterações unilaterais quantitativas, previstas no art. 65, i, “b”, da Lei nº 8.666/93,
a referência aos limites é expressa, uma vez que os contratos podem ser alterados unilateralmente “quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de
acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei”.
estão eles previstos no §1º do referido artigo.37
36
37
súmula tCu nº 261: “em licitações de obras e serviços de engenharia, é necessária a elaboração de projeto básico
adequado e atualizado, assim considerado aquele aprovado com todos os elementos descritos no art. 6º, inciso iX,
da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, constituindo prática ilegal a revisão de projeto básico ou a elaboração de
projeto executivo que transfigurem o objeto originalmente contratado em outro de natureza e propósito diversos”.
A jurisprudência do tCu construiu pensamento no sentido de que, para efeito dos limites de alterações contratuais previstos no art. 65 da Lei nº 8.666/1993, o conjunto de reduções e o conjunto de acréscimos devem ser
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
Assim, em relação às alterações unilaterais quantitativas (art. 65, i, “b”), não se
tem dúvida sobre a incidência dos limites legais.
nas alterações unilaterais qualitativas, consubstanciadas no art. 65, i, “a”, da
aludida lei, não há referência expressa, como visto, a esses limites, pois os contratos
podem ser alterados “quando houver modificação do projeto ou das especificações,
para melhor adequação técnica aos seus objetivos”.
nas opiniões de alguns doutrinadores, como Caio tácito, marçal Justen Filho e
Antônio marcelo da silva, não se aplicam às alterações qualitativas unilaterais os limites
previstos no §1º do art. 65 da lei, porque a mencionada alínea “a” não lhes faz referência.
nesse ponto, preferimos a orientação de Hely Lopes meireles, Jessé torres Pereira
Junior, toshio mukai — como faz referência marçal Justen Filho38 —, bem como a de
Carlos Ari sundfeld, in verbis:
2.1 Modificação unilateral
Genericamente previsto no art. 58-i, está condicionado por seu objetivo: a “melhor
adequação às finalidades de interesse público”.
Pode decorrer da modificação do projeto ou das especificações para, segundo o art. 65-I,
“melhor adequação técnica aos seus objetivos”. Essa alteração encontra, contudo, barreiras e
condicionantes. De um lado, nos direitos do contratado, a quem se assegura a intangibilidade do
equilíbrio econômico-financeiro e da natureza do objeto do contrato, além de um limite máximo de
valor para os acréscimos e supressões (art. 65-§1º).39 (grifos nossos)
mesmo que se entenda que não se possa extrair diretamente do art. 65, i, “a”, essa
conclusão, em virtude da não referência aos limites máximos de acréscimo e supressão de
valor, a inexistência desses limites não se coaduna com o direito, pois pode ser deduzida
a partir do art. 58, i, da Lei de Licitações e Contratos.
A hipótese de supressão ilimitada no valor contratual é que nos leva a compreender melhor os excessos que podem advir da inexistência dessas barreiras.
imagine-se, como exemplo, a disponibilidade de nova tecnologia que pudesse
reduzir os custos de determinada obra em 80%. Seria possível à Administração impor
ao contratado, unilateralmente, a obrigação de ele adotá-la na execução da obra, reduzindo o valor inicial do contrato na mesma proporção, sem considerar a manifestação
de sua vontade ou recusa?
evidente que se trata de supressão de valor contratual desarrazoada. mas o que
seria razoável? 70%? 60%? 50%... 25%? A fixação desse limite, pensamos, inclui-se na
discricionariedade do legislador.
38
39
sempre calculados sobre o valor original do contrato e avaliados de forma isolada, aplicando-se a cada um desses
conjuntos, individualmente e sem nenhum tipo de compensação entre eles, os limites de alteração estabelecidos no
referido dispositivo legal, a exemplo do que foi consignado no item 9.2 do Acórdão nº 749/2010, Plenário, in verbis:
“9.2. determinar ao departamento nacional de infraestrutura de transportes que, em futuras contratações, para
efeito de observância dos limites de alterações contratuais previstos no art. 65 da Lei n. 8.666/1993, passe a considerar as reduções ou supressões de quantitativos de forma isolada, ou seja, o conjunto de reduções e o conjunto
de acréscimos devem ser sempre calculados sobre o valor original do contrato, aplicando-se a cada um desses
conjuntos, individualmente e sem nenhum tipo de compensação entre eles, os limites de alteração estabelecidos
no dispositivo legal;”.
Justen FiLHo. Limites às alterações de contratos administrativos. ILC – Informativo de Licitações e Contratos, p. 611.
sundFeLd. Licitação e contrato administrativo: de acordo com as leis 8.666-93 e 8.883-94, p. 227-228.
287
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
288
Cumpre, aqui, esclarecer que, a fim de não submeter o contratado a alteração
contratual unilateral que não seja razoável ou proporcional, a opção que restaria à
Administração seria a de rescindir unilateralmente o contrato, nos termos do art. 78,
Xii, da Lei nº 8.666/93, e proceder a nova licitação contratando o novo objeto.
referidos limites, em nossa opinião, têm que ser claros, objetivos e preestabelecidos em lei, pois é a partir deles que o possível contratado dimensiona os riscos que
deve suportar, na hipótese de alteração unilateral imposta pela Administração.
Poucos contratariam com a Administração se não houvesse limites objetivos,
claros e fixados em lei, a esse poder de alteração unilateral a ela concedido.
entendemos, assim, que é correta a tese de que as alterações unilaterais qualitativas estão sujeitas aos mesmos limites escolhidos pelo legislador para as alterações
unilaterais quantitativas, previstos no art. 65, §1º, da Lei nº 8.666/93, não obstante a falta
de referência a eles no art. 65, i, “a”.
Fundamentamo-nos na necessidade de previsão de limites objetivos e claros em
lei, no princípio da proporcionalidade e no respeito aos direitos do contratado, prescrito
no art. 58, i, da Lei nº 8.666/93.
A supressão, por parte da Administração, de obras, serviços ou compras, que
excedam os limites previstos no art. 65, §1º, é também causa de rescisão do contrato,
por inexecução pela Administração, conforme prevê o art. 78, Xiii, da Lei nº 8.666/93. o
que reforça a nossa tese de observância a esses limites nas alterações unilaterais, sejam
quantitativas ou qualitativas.
Isso não significa, entretanto, que, na busca da realização do interesse público, a
Administração não possa, em caráter excepcional, ultrapassar referidos limites.
em nossa opinião, poderia fazê-lo, em situações excepcionalíssimas, na hipótese
de alterações qualitativas, revisando, não unilateralmente, mas consensualmente, as
obrigações e o valor do contrato.40
40
o Tribunal de Contas da União firma entendimento no sentido de que as alterações qualitativas têm como limites
aqueles estabelecidos no §1º do art. 65 da Lei nº 8.666/93, exceto em circunstâncias excepcionais, devidamente
fundamentadas, como se pode denotar dos termos da decisão Plenária nº 215/99 (DOU, 21 maio 1999), que se
reproduz a seguir:
“o tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo relator, deCide:
8.1. com fundamento no art. 1º, inciso Xvii, §2º da Lei nº 8.443/92, e no art. 216, inciso ii, do regimento interno
deste tribunal, responder à Consulta formulada pelo ex-ministro de estado de estado do meio Ambiente, dos
recursos Hídricos e da Amazônia Legal, Gustavo Krause Gonçalves sobrinho, nos seguintes termos:
a) tanto as alterações contratuais quantitativas — que modificam a dimensão do objeto — quanto as unilaterais
qualitativas — que mantêm intangível o objeto, em natureza e em dimensão, estão sujeitas aos limites preestabelecidos nos §§1º e 2º do art. 65 da Lei nº 8.666/93, em face do respeito aos direitos do contratado, prescrito no
art. 58, i, da mesma Lei, do princípio da proporcionalidade e da necessidade de esses limites serem obrigatoriamente fixados em lei;
b) nas hipóteses de alterações contratuais consensuais, qualitativas e excepcionalíssimas de contratos de obras e
serviços, é facultado à Administração ultrapassar os limites aludidos no item anterior, observados os princípios
da finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, além dos direitos patrimoniais do contratante privado,
desde que satisfeitos cumulativamente os seguintes pressupostos:
i - não acarretar para a Administração encargos contratuais superiores aos oriundos de uma eventual rescisão
contratual por razões de interesse público, acrescidos aos custos da elaboração de um novo procedimento
licitatório;
II - não possibilitar a inexecução contratual, à vista do nível de capacidade técnica e econômico-financeira do
contratado;
III - decorrer de fatos supervenientes que impliquem em dificuldades não previstas ou imprevisíveis por ocasião
da contratação inicial;
IV - não ocasionar a transfiguração do objeto originalmente contratado em outro de natureza e propósito diversos;
v - ser necessárias à completa execução do objeto original do contrato, à otimização do cronograma de execução
e à antecipação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes;
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
tais alterações devem ser efetuadas por acordo mútuo — bilaterais —, pois dessa
maneira evita-se a excessiva onerosidade nas obrigações do contratado, uma vez que o
novo pacto passa a depender da manifestação de sua vontade.
Além de consensuais, sustentamos que tais alterações devem ser necessariamente
qualitativas. Estas, diferentemente das quantitativas — que não configuram embaraços
à execução do objeto como inicialmente avençado —, ou são imprescindíveis ou viabilizam a realização do objeto.
Além de bilaterais e qualitativas, entendemos que tais alterações sejam excepcionalíssimas, no sentido de que sejam realizadas quando a outra alternativa — a rescisão
do contrato, seguida de nova licitação e contratação — significar sacrifício insuportável
do interesse coletivo a ser atendido pela obra ou serviço. Caso contrário, poder-se-ia estar
abrindo precedente para, de modo astucioso, contornar-se a exigência constitucional
do procedimento licitatório e a obediência ao princípio da isonomia.
6.9.2 rescisão unilateral
São diversos os dispositivos legais a serem considerados de modo a justificar a
rescisão unilateral do contrato por parte da Administração.
em primeiro lugar, temos o próprio art. 58, ii. tratam igualmente da possibilidade
de ser o contrato desfeito pela manifestação unilateral da Administração os artigos 78,
i a Xii, Xvii e Xviii, e 79, i.
A primeira observação é no sentido de alertar para o fato de que a Administração
não poderá desfazer contratos que tenha celebrado sem que haja fundamento legal para
tanto. A Administração assume, é bem verdade, posição de supremacia em face do contratado. isso não importa, no entanto, em conferir à Administração poderes ilimitados.
A possibilidade de a Administração, de modo unilateral, extinguir o contrato
administrativo é, indiscutivelmente, poder exorbitante que deverá ser utilizado dentro
das hipóteses autorizadas em lei. essas hipóteses suportam ser divididas em quatro
categorias, conforme se aprende dos ensinamentos da professora maria sylvia Zanella
di Pietro. teríamos, de acordo com os ensinamentos da ilustre autora, as seguintes
hipóteses de rescisão unilateral:
1. As hipóteses indicadas nos incisos i a viii e Xviii do art. 78 — que poderiam
ser enquadradas em um primeiro grupo de situações que legitimam a rescisão contratual — estão relacionadas à inexecução do contrato, a atrasos, a paralisações etc. atribuíveis ao contratado. enquadram-se nessa primeira modalidade de rescisão unilateral
as seguintes hipóteses:
I - o não-cumprimento de cláusulas contratuais, especificações, projetos ou prazos;
II - o cumprimento irregular de cláusulas contratuais, especificações, projetos ou prazos;
iii - a lentidão do seu cumprimento, levando a Administração a comprovar a impossibilidade
da conclusão da obra, do serviço ou do fornecimento, nos prazos estipulados;
vi - demonstrar-se — na motivação do ato que autorizar o aditamento contratual que extrapole os limites legais
mencionados na alínea “a”, supra — que as conseqüências da outra alternativa (a rescisão contratual, seguida de
nova licitação e contratação) importam sacrifício insuportável ao interesse público primário (interesse coletivo)
a ser atendido pela obra ou serviço, ou seja gravíssimas a esse interesse; inclusive quanto à sua urgência e
emergência.”
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290
IV - o atraso injustificado no início da obra, serviço ou fornecimento;
v - a paralisação da obra, do serviço ou do fornecimento, sem justa causa e prévia
comunicação à Administração;
vi - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem,
a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não
admitidas no edital e no contrato;41
vii - o desatendimento das determinações regulares da autoridade designada para
acompanhar e fiscalizar a sua execução, assim como as de seus superiores; e
viii - o cometimento reiterado de faltas na sua execução, anotadas na forma do §1º do
art. 67 desta Lei. (...)
Xviii - descumprimento do disposto no inciso v do art. 27, sem prejuízo das sanções
penais cabíveis.
2. no segundo grupo, teremos situações que irão legitimar a rescisão unilateral do
contrato em decorrência de circunstâncias que afetam a pessoa do contratado. Podem
ser enquadradas nesse grupo as hipóteses a seguir indicadas:
iX - a decretação de falência ou a instauração de insolvência civil;
X - a dissolução da sociedade ou o falecimento do contratado;
XI - a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa, que
prejudique a execução do contrato.
3. no terceiro grupo, a rescisão unilateral do contrato será declarada pela Administração Pública em decorrência de razões de interesse público, conforme dispõe o
dispositivo legal a seguir transcrito:
XII - razões de interesse público, de alta relevância e amplo conhecimento, justificadas e
determinadas pela máxima autoridade da esfera administrativa a que está subordinado
o contratante e exaradas no processo administrativo a que se refere o contrato.
4. no último grupo, a rescisão unilateral decorrerá de caso fortuito ou força
maior, nos seguintes termos:
Xvii - a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada,
impeditiva da execução do contrato.
Consideramos importante observar que o art. 79, §2º, determina que se:
(...) a rescisão ocorrer com base nos incisos Xii a Xvii do artigo anterior, sem que haja
culpa do contratado, será este ressarcido dos prejuízos regularmente comprovados que
houver sofrido, tendo ainda direito a:
i - devolução de garantia;
ii - pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão;
iii - pagamento do custo da desmobilização.
41
Acerca da vedação à subcontratação, vide considerações constantes da decisão tCu nº 516/00, Plenário. DOU, 10
jul. 2000. vide, ainda, Acórdão tCu nº 238/98, 2ª Câmara. DOU, 24 jul. 1998, através do qual o tCu considerou
ilegal a subcontratação parcial de objeto de contrato ante a ausência de previsão no edital e no próprio contrato
para tanto. sobre impossibilidade de subcontratação quando tiver ocorrido contratação sem licitação, vide tCu:
decisão nº 138/98, Plenário. DOU, 7 abr. 1998; e Acórdão nº 690/05, 2ª Câmara. DOU, 13 maio 2005.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
Finalmente, cumpre observar que o art. 78 da Lei nº 8.666/93, em seu parágrafo
único determina que “os casos de rescisão contratual serão formalmente motivados nos
autos do processo, assegurado o contraditório e a ampla defesa”.
Se a rescisão ocorrer em decorrência da verificação de qualquer das hipóteses
indicadas nos dois primeiros grupos, a Administração não deverá efetuar qualquer
pagamento a título de ressarcimento pela rescisão do contrato. Ao contrário, o contratado é que estará sujeito às consequências da inexecução do contrato (responsabilidade
civil e administrativa).
em relação aos dois últimos grupos (rescisão em decorrência de interesse público e nas hipóteses de caso fortuito ou força maior), o mencionado §2º acima citado
determina que a Administração deva indenizar o contratado. em relação à rescisão
decorrente de interesse público superveniente, nenhum inconveniente se verifica em que
a Administração seja obrigada a ressarcir o contratado.42 Porém, em relação à rescisão
decorrente de caso fortuito e de força maior, julgamos mais uma vez absolutamente
pertinentes os ensinamentos da professora maria sylvia Zanella di Pietro que discorre
nos seguintes termos:
não tem sentido a norma do art. 79, §2º, dar idêntico tratamento à rescisão por motivo
de interesse público e à rescisão por motivo de caso fortuito ou força maior, no que se
refere ao ressarcimento dos “prejuízos regularmente comprovados”; o caso fortuito ou de
força maior corresponde a acontecimentos imprevisíveis, estranhos à vontade das partes e
inevitáveis, que tornam impossível a execução do contrato. não sendo devidos a nenhuma
das partes, o contrato se rescinde de pleno direito, não se cogitando de indenização; não
tem qualquer sentido a Administração indenizar o particular por um prejuízo a que não
deu causa. A norma contida nesse dispositivo reverte toda a teoria do caso fortuito e de
força maior que, embora consagrada no artigo 158 do Código Civil, pertence à teoria geral
do direito, abrangendo todos os ramos do direito.
Feitas essas considerações, passamos a analisar a cláusula exorbitante seguinte:
fiscalização do contrato.
6.9.3 Fiscalização da execução do contrato
Ao se examinar a fiscalização da execução do contrato, deve ser enfatizada outra
distinção existente entre os contratos administrativos e os contratos celebrados no âmbito
do Direito Privado. Neste último, como regra, incumbe às partes verificar se a outra
cumpriu o resultado esperado, se o objeto contratual foi de fato cumprido. interessa
aos contratos do direito Privado basicamente a obtenção do resultado esperado. no
âmbito dos contratos administrativos, ao contrário, a Administração terá não apenas
o direito, mas igualmente o dever de acompanhar a perfeita execução do contrato.
Fala-se, assim, em poder-dever da Administração de promover a devida fiscalização
da execução do contrato.
em decorrência da supremacia do interesse público, não pode a Administração
assumir posição passiva e aguardar que o contratado cumpra todas as suas obrigações
42
no sentido de que é devida “a indenização por lucros cessantes, resultantes do rompimento injusto do contrato”
por parte da Administração, vide stJ. resp nº 190.354-sP, 1ª turma. rel. min. Humberto Gomes de Barros. Julg.
9.11.1999. DJ, 14 fev. 2000.
291
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Curso de direito AdministrAtivo
292
contratuais. Não pode a Administração aguardar o fim do termo do contrato para
verificar se o seu objetivo foi efetivamente alcançado. Durante a execução do contrato
deverá ser verificado se o contratado cumpre todas as etapas e fases do contrato. Essa
forma de agir preventiva apenas benefícios traz para a Administração.43
Em face do poder-dever da Administração de promover a fiscalização da execução de seus contratos, ela deverá designar representante (agente) para promover esse
acompanhamento.44 deverá ele anotar tanto o cumprimento do objeto (ou de partes
do objeto) do contrato, como eventuais falhas ou irregularidades na sua execução. na
eventualidade de esse representante verificar, por exemplo, fato que justifique a aplicação de multa, não será ele quem irá determinar a aplicação dessa multa. Cabe a ele,
tão somente, promover as anotações necessárias, o mais detalhadamente possível, de
modo a permitir que a autoridade competente determine a aplicação de penalidades,
ou suste o pagamento a ser realizado.45
Conforme a complexidade do objeto do contrato, ou seu vulto, a opção a ser
adotada pela Administração, cumulativamente à designação de servidor para acompanhar a execução do contrato, consiste na contratação de empresa especializada para
promover o gerenciamento desses contratos. essa opção é recomendada em grandes
obras de engenharia, sobretudo. essa contratação decorrerá da complexidade do objeto
do contrato, haja vista ser impossível, em algumas hipóteses, ao representante (agente)
43
44
45
Além de ser mencionada no art. 58, III, da Lei nº 8.666/93, a prerrogativa da Administração de fiscalizar seus
contratos é igualmente disciplinada pelo art. 67, que dispõe nos seguintes termos:
“Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração
especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição.
§1º o representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a
execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados.
§2º As decisões e providências que ultrapassarem a competência do representante deverão ser solicitadas a seus
superiores em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes.”
determinações do tCu têm sido no sentido de que sejam formalmente indicados representantes da Administração para o acompanhamento e fiscalização dos contratos, à vista do que dispõe o caput do art. 67 da Lei
nº 8.666/93 (ver decisão nº 314/95, 2ª Câmara. DOU, 28 nov. 1995; Acórdão nº 1.823/04, Plenário. DOU, 24 nov.
2004; e Acórdão nº 212/2009, 2ª Câmara. DOU, 6 fev. 2009). Por meio da decisão nº 618/02, Plenário (DOU, 24
jun. 2002), o tCu ainda determinou ao órgão auditado que inserisse “nos processos o ato de designação do representante da Administração com a incumbência de acompanhar e fiscalizar a execução do contrato, consoante
determinado no art. 67 da Lei nº 8.666/93”.
Sobre a atuação do fiscal do contrato, destaca-se acórdão do TCU, por meio do qual se afastou a responsabilidade
do fiscal, ao argumento de ele não possuía condições apropriadas para o desempenho de suas atribuições. É o que
se verifica do Informativo de Jurisprudência sobre Licitações e Contratos do TCU, n. 57, in verbis:
“O fiscal do contrato não pode ser responsabilizado, caso ‘Demonstrado nos autos que a responsável pela fiscalização do contrato tinha condições precárias para realizar seu trabalho (...)’. Foi a essa uma das conclusões a que
chegou o tCu ao apreciar recursos de reconsideração em sede, de originariamente, tomada de contas especial,
na qual foram julgadas irregulares as contas de diversos responsáveis, relativas à execução do Plano nacional
de Qualificação do Trabalhador (Planfor), no Distrito Federal, no exercício de 1999. (...). Ao examinar a matéria,
a unidade instrutiva consignou que o DF não houvera proporcionado à servidora responsável pela fiscalização
da avença ‘condições adequadas para o desempenho de tal função, ao mesmo tempo em que sabia que eventual
inexecução do contrato seria de responsabilidade desse executor técnico’. (...). em vista da situação, a unidade
técnica, com a anuência do relator, propôs a elisão da responsabilidade da recorrente, sem prejuízo da aplicação
de penalidades de outros responsáveis pela gestão do Planfor, no dF, ao tempo dos fatos. nos termos do voto do
relator, o Plenário manifestou seu consentimento” (Acórdão nº 839/2011, Plenário. tC-003.118/2001-2. rel. min.
raimundo Carreiro. sessão: 6.4.2011. DOU, 13 abr. 2011). Convém, por outro lado, apontar também precedente
no qual o TCU responsabilizou o fiscal do contrato pela ausência de “providências tempestivas a fim de suspender pagamentos ao primeiro sinal de incompatibilidade entre os produtos e serviços entregues pelo contratado
e o objeto do contrato”, condenando-o à reparação do dano solidariamente com a instituição privada contratada
(Acórdão nº 1.450/2011, Plenário).
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
da Administração promover o acompanhamento de toda a execução do contrato. em
face dessa opção, seria celebrado, por hipótese, contrato de obra, e paralelamente a este,
outro contrato, de gerenciamento. o contratado, no contrato de obra, teria o dever de
executar a obra; no segundo caso, no de gerenciamento, o contratado iria acompanhar
a execução da obra, reportando-se e relatando à Administração todos os fatos relacionados à sua execução.
6.9.4 Aplicação de sanções
o art. 58, iv, da Lei nº 8.666/93, dispõe que o regime jurídico dos contratos administrativos46 conferirá à Administração a prerrogativa de “aplicar sanções motivadas pela
inexecução total ou parcial do ajuste”.
A aplicação de penalidades a que se refere o art. 58, iv, da Lei nº 8.666/93 é disciplinada pelo art. 87, que dispõe nos seguintes termos:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida
a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
i - advertência;
ii - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
iii - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com
a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
iv - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública
enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida
a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida
sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após
decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Questão que tem suscitado controvérsia acerca do art. 87 da lei refere-se ao alcance
das sanções previstas nos seus incisos iii e iv. isso se dá porque, quando a norma trata
da suspensão temporária, o impedimento ali mencionado é para com a “Administração”,
ao passo que, na declaração de inidoneidade, esse impedimento diz respeito à proibição
daquele que assim foi sancionado de licitar e contratar com a “Administração Pública”.
A dúvida reside em saber se o fato de a lei valer-se de expressões diferentes para o
impedimento de que trata os incisos iii e iv implica também conferir consequências
distintas às referidas sanções quanto ao alcance de cada uma delas.
A compreensão que vinha prevalecendo no tribunal de Contas da união era a de
que a suspensão temporária restringe-se à entidade ou órgão que a aplicou, enquanto
a declaração de inidoneidade atingiria a Administração como um todo, nos termos do
art. 6º, incisos Xi e Xii, da Lei das Licitações (Acórdão nº 1.539/2010, Plenário; Acórdão
nº 1.727/2006, 1ª Câmara; e Acórdão nº 3.858/2009, 2ª Câmara).47
46
47
o tCu no âmbito de suas competências constitucionais e no exercício do controle externo da gestão dos recursos
públicos tem a prerrogativa de declarar inidôneo licitante que venha fraudar procedimento licitatório, conforme
o art. 46 da Lei orgânica do tCu (Lei nº 8.443/92), que assim prescreve:
“Art. 46. Verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, o Tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na Administração Pública Federal.”
“Art. 6º (...) Xi - Administração Pública – a administração direta e indireta da união, dos estados, do distrito
Federal e dos municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob
293
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Curso de direito AdministrAtivo
294
defendo igual posicionamento, por considerar que a lei, no seu art. 6º, Xi e Xii,
estabeleceu definições precisas para as expressões “Administração Pública” e “Administração”, o que evidencia a nítida preocupação do legislador com o teor técnico dos termos
ali colocados. ora, caso desejasse que a sanção de suspensão temporária do direito de
licitar fosse estendida a toda a Administração Pública, certamente o legislador teria feito
referência expressa nesse sentido. Como não o fez, e tratando-se de matéria que cuida
de aplicação de penalidade, a regra de hermenêutica impõe a interpretação restritiva.
ocorre que, no julgamento do tC-025.430/2009-5, na sessão de 12.4.2011, a 1ª
Câmara do TCU, mediante o Acórdão nº 2.218/2011, modificou a orientação até então
pacificada na Corte de Contas sobre o assunto, entendendo que a suspensão temporária
de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração prevista
no inciso iii do art. 87 da Lei nº 8.666/93 estende-se a toda Administração Pública,
seguindo, no ponto, julgados do superior tribunal de Justiça, no sentido de que seria
irrelevante a distinção entre os termos Administração Pública e Administração, uma vez
que tanto a sanção de declaração de inidoneidade quanto a de suspensão temporária
inabilitariam o sujeito para participar de licitação e contratar com qualquer órgão da
Administração Pública.
A cautela que, no entendimento dessa matéria, deve ser dispensada ao citado
Acórdão tCu nº 2.218/2011 é no sentido de que se trata de deliberação proferida pela 1ª
Câmara (a jurisprudência que se firmou em sentido contrário conta com manifestações
plenárias), sendo a primeira manifestação do tribunal destoante da sua jurisprudência,
não se podendo apontar, ainda, ter havido efetiva mudança de posicionamento da Corte
de Contas sobre a questão que ora se coloca.48
48
controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas; Xii - Administração – órgão, entidade
ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente; (...).”
Quanto às razões de decidir que fundamentam o Acórdão nº 2.218/2011, vale conferir Informativo de Jurisprudência sobre Licitações e Contratos do TCU, n. 58, in verbis:
“‘A vedação à participação em licitações e à contratação de particular incurso na sanção prevista no inciso iii do
art. 87 da Lei 8.666/1993 estende-se a toda a Administração direta e indireta’. esse foi um dos entendimentos
do tribunal ao apreciar pedido de reexame interposto pela empresa Brasileira de infraestrutura Aeroportuária
(infraero), contra o Acórdão nº 1.166/2010-tCu-1ª Câmara, o qual determinou que não fossem incluídas nos
editais de licitação da empresa cláusulas impedindo a participação de interessados suspensos por ente distinto
da Administração Pública e de empresas de cujo ato constitutivo façam parte diretores, sócios ou dirigentes
que tenham participado de outra pessoa jurídica suspensa. Para o relator do feito, ministro José múcio, como
o tribunal entende que a sanção prevista no art. 87, inciso iii, da Lei nº 8.666/1993 restringe se à entidade que a
aplicou, não haveria razão para reforma da deliberação originária. Todavia, o Ministro-Revisor, Walton Alencar
rodrigues, dissentiu do encaminhamento proposto. Para ele, que fora, inclusive, relator da deliberação anterior,
e que, na ocasião, defendeu tese idêntica à apresentada pelo relator do recurso em exame, caberia ao tribunal
rever seu posicionamento. Assim, ‘a proibição de contratação de particular que já revelou ser indigno de ser
contratado pela Administração, descumprindo obrigações anteriormente pactuadas, como é o caso do particular
punido com a sanção prevista no inciso iii do art. 87, tem o nítido propósito de evitar fraudes e prejuízos ao erário’. Por isso, citando julgado do superior tribunal de Justiça, destacou que o entendimento de que a suspensão
imposta por um órgão administrativo, ou um ente federado, não se estende aos demais, não estaria em harmonia com o objetivo da Lei nº 8.666/93, de tornar o processo licitatório transparente e evitar prejuízos e fraudes
ao erário, inclusive impondo sanções àqueles que adotarem comportamento impróprio ao contrato firmado ou
mesmo ao procedimento de escolha de propostas. Portanto, a interpretação adequada quanto à punição prevista no inciso iii do art. 87 da Lei 8.666/1993 seria pelo alcance para toda a Administração, não se restringindo
aos órgãos ou entes que as aplicarem. A se pensar de outra maneira, seria possível que uma empresa, que já
mantivera comportamento inadequado outrora, pudesse contratar novamente com a Administração durante o
período em que estivesse suspensa, tornando a punição desprovida de sentido. Após o voto ministro-revisor
Walton Alencar Rodrigues, o relator reajustou seu voto, para acompanhá-lo e considerar legal a inserção, pela
infraero, de cláusula editalícia impeditiva de participação daqueles incursos na sanção prevista no inciso iii
da Lei 8.666/1993, mesmo quando aplicada por outros órgãos ou entidades públicos, o que foi aprovado pelo
colegiado.” (Acórdão nº 2218/2011, 1ª Câmara. TC-025.430/2009-5. Rel. Min. José Múcio. Revisor Min. Walton
Alencar rodrigues. sessão: 12.4.2011. DOU, 19 abr. 2011)
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
A supremacia da Administração na aplicação de sanções, ainda que deva assegurar
ao contratado ampla defesa,49 permitindo-lhe que possa ter acesso às acusações de descumprimento do contrato que lhe são imputadas, e delas defender-se, consiste no fato de
que a própria Administração que aplica a sanção tem o poder de executar-lhe diretamente,
sem necessidade de intervenção judicial — no caso de aplicação de multa, por exemplo, a
Administração pode apropriar-se diretamente da garantia prestada. observe, ainda, que
não sendo a garantia suficiente, poderá a Administração descontar o valor da multa dos
valores devidos (art. 86, §3º, da Lei nº 8.666/93). A prestação de garantias, que constitui
outro exemplo de cláusula exorbitante, será examinada em seguida.
6.9.5 outras cláusulas exorbitantes
Além das prerrogativas expressamente indicadas no art. 58 da Lei nº 8.666/93,
outras constam do texto legal de forma dispersa.
6.9.5.1 retenção de créditos e exigência de garantias
É inegável que o contratado pode, eventualmente, no curso da execução do
contrato, causar prejuízos à Administração contratante. É igualmente possível que no
curso do contrato possa ser aplicada multa (art. 87, ii) ao contratado, em decorrência
de inexecução total ou parcial. não existissem garantias prestadas pelo contratado, a
opção que restaria à Administração seria a cobrança das quantias devidas pelo contratado em juízo.
o art. 80, iv, prevê que em caso de rescisão, e apenas nas hipóteses do inciso i do
art. 79, a Administração pode promover, além das providências indicadas nos incisos
i a iii do art. 80, que cuidam, inclusive, da execução de garantias, a “retenção dos créditos decorrentes do contrato até o limite dos prejuízos causados à Administração”.50
49
50
Acerca da impossibilidade de ser utilizado o mandado de segurança para desconstituir sanção aplicada em
decorrência de violação de cláusula contratual, vide stJ: “Administrativo. mandado de segurança. Contrato
de prestação de serviços. irregularidades apuradas. Punição aplicada. suspensão da pena. Ausência de direito
líquido e certo. 1. o mandado de segurança não se presta para questionar a apuração dos fatos, em procedimento administrativo regular no qual foi assegurada ao impetrante ampla defesa, a fim de afastar a penalidade
imposta. 2. segurança denegada à míngua do alegado direito líquido e certo” (ms nº 5.633-dF, Corte especial.
rel. min. Peçanha martins. Julg. 19.8.1998. DJ, 19 out. 1998).
Conforme o seguinte julgado do stJ, não pode ser aplicada como sanção à contratada a retenção dos seus créditos:
“Administrativo. Contrato. eCt. Prestação de serviços de transporte. descumprimento da obrigação de manter
a regularidade fiscal. Retenção do pagamento das faturas. Impossibilidade. 1. A exigência de regularidade
fiscal para a participação no procedimento licitatório funda-se na Constituição Federal, que dispõe no §3º do
art. 195 que “a pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não
poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”, e deve
ser mantida durante toda a execução do contrato, consoante o art. 55 da Lei 8.666/93. 2. o ato administrativo, no
estado democrático de direito, está subordinado ao princípio da legalidade (CF/88, arts. 5º, ii, 37, caput, 84, iv),
o que equivale assentar que a Administração poderá atuar tão-somente de acordo com o que a lei determina. 3.
deveras, não constando do rol do art. 87 da Lei 8.666/93 a retenção do pagamento pelos serviços prestados, não
poderia a eCt aplicar a referida sanção à empresa contratada, sob pena de violação ao princípio constitucional
da legalidade. destarte, o descumprimento de cláusula contratual pode até ensejar, eventualmente, a rescisão
do contrato (art. 78 da Lei de Licitações), mas não autoriza a recorrente a suspender o pagamento das faturas
e, ao mesmo tempo, exigir da empresa contratada a prestação dos serviços. 4. Consoante a melhor doutrina, a
supremacia constitucional ‘não significa que a Administração esteja autorizada a reter pagamentos ou opor-se
ao cumprimento de seus deveres contratuais sob alegação de que o particular encontra-se em dívida com a
Fazenda nacional ou outras instituições. A administração poderá comunicar ao órgão competente a existência
295
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
296
tendo sido exigida a prestação de garantias do contratado, nos termos do art. 56,
e havendo débito do contratado para com a Administração, decorra este débito de prejuízos causados à Administração contratante ou de multas aplicadas ao contratado, pode
a Administração apropriar-se diretamente da garantia prestada, independentemente da
propositura de qualquer ação judicial.
É evidente que se a garantia prestada não bastar para satisfazer o valor da dívida
do contratado, deverá a Administração adotar todos os meios de cobrança cabíveis,
inclusive a via judicial.51 Ademais, deverá o contratado sempre ser chamado a repor a
garantia se durante a execução do contrato ela tiver se exaurido.
6.9.5.2 exceção de contrato não cumprido
o direito Civil adota o princípio, em matéria de direito Contratual, de que uma
das partes do contrato não pode exigir que a outra parte cumpra sua obrigação, se a
primeira não tiver cumprido sua própria obrigação. isto importa dizer que se foi celebrado contrato entre A e B, caso o primeiro venha a exigir do segundo o cumprimento
de sua obrigação, B poderá argüir o fato de A não ter cumprido sua própria obrigação.
essa é a exceção do contrato não cumprido.
tradicionalmente, no âmbito do direito Administrativo, entendia-se que em
face do princípio da continuidade do serviço público, não poderia o contratado opor
essa exceção contra a Administração. Isso significa, na prática, dizer que ainda que a
Administração não cumpra sua parte no contrato, isto é, ainda que a Administração não
pague o contratado, este não poderia interromper a prestação do serviço, a execução da
obra, o fornecimento dos produtos etc. somente em casos que levassem o contratado a
situação de insolvência poderia ele deixar de cumprir sua parte no contrato.
essa regra, de que não se pode opor a exceção do contrato não cumprido contra
a Administração, encontra-se hoje mitigada. o art. 78, inciso Xv, determina expressamente que constitui motivo para a rescisão do contrato “o atraso superior a 90 dias dos
pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento,
ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública,
grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de
optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a
situação”.
Verifica-se que a lei permite, havendo atraso nos pagamentos devidos pela Administração superior a 90 dias, que o contratado possa optar pela rescisão ou pela suspensão do
contrato. O que já não se pode exigir do contratado é que ele permaneça indefinidamente
obrigado a cumprir sua parte no contrato, ainda que não receba qualquer pagamento.
51
de crédito em favor do particular para serem adotadas as providências adequadas. A retenção de pagamentos,
pura e simplesmente, caracterizará ato abusivo, passível de ataque inclusive através de mandado de segurança.’
(marçal Justen Filho. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, são Paulo, editora dialética, 2002,
p. 549). 5. recurso especial a que se nega provimento.” (resp nº 633.432-mG, 1ª turma. rel. min. Luis Fux. Julg.
22.2.2005. DJ, 20 jun. 2005). no mesmo sentido, vide Acórdão tCu nº 964/2012, Plenário.
Acerca da possibilidade de ser descontado do valor a ser pago ao contratado o valor de multa aplicada, vide stJ:
“Contrato Administrativo – multa – dedução – valor do produto. Havendo fornecimento de mercadoria pela
ré a autora e não tendo sido pago, e correto deduzir da importância da multa por inadimplemento de contrato
o valor correspondente a mercadoria fornecida. recurso improvido” (resp nº 101.488-sP, 1ª turma. rel. min.
Garcia vieira. Julg. 17.4.1998. DJ, 08 jun. 1998).
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
Apesar da mitigação da regra que impede a alegação contra a Administração da
exceção do contrato não cumprido, ainda assim a Administração encontra-se em situação mais favorecida que o contratado. se o contratado atrasa o cumprimento de sua
obrigação, a Administração tem o direito de não pagar o que lhe seria devido, além de
puni-lo administrativamente; se a Administração não paga o que é devido, o contratado
somente poderá deixar de executar o contrato, seja por meio do pedido de rescisão, seja
pela suspensão da execução do contrato, após o decurso de prazo superior a 90 dias.
A única efetiva consequência do pagamento efetuado com atraso pela Administração
será a da atualização monetária desses valores.52
6.9.5.3 Anulação do contrato
Poderiam ainda ser consideradas como exemplos da manifestação da superioridade da Administração sobre o contratado a possibilidade de a Administração anular
o contrato,53 assim como a retomada do objeto contratual, conforme ensinamentos da
professora maria sylvia Zanella di Pietro.54
O fundamento legal para a Administração, verificando ilegalidade, decretar a
nulidade contratual reside no art. 59, que determina que “a declaração de nulidade do
contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele,
ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos”.55 A nulidade
do contrato pode decorrer de vício constante no próprio contrato, assim como de vício
constante da licitação, haja vista a nulidade do procedimento licitatório56 induzir à do
contrato, conforme dispõe o §2º do art. 49.57
relativamente à prerrogativa de retomada do objeto, que somente é possível
no caso de rescisão unilateral do contrato (art. 79, i), o art. 80, inciso i determina que a
Administração poderá promover a “assunção imediata do objeto do contrato, no estado
e local em que se encontrar, por ato próprio da Administração”.
6.10 Contratos administrativos e empresas estatais
A discussão acerca da aplicação da Lei nº 8.666/93 às empresas públicas e sociedades
de economia mista é objeto de estudo no Capítulo 4. A razão de tantos questionamentos e
52
53
54
55
56
57
Conforme já examinamos, o TCU firmou entendimento no sentido de somente admitir multa moratória para a
Administração Pública quando for ela usuária de serviços públicos prestados por concessionárias, sejam estas
públicas ou privadas — decisão nº 537/99, Plenário. Ata n. 36.
o tCu, por meio do Acórdão nº 83/98, Plenário (DOU, 13 ago. 1998), determinou à telebras que não inclua em
seus editais de licitação cláusula prevendo outras hipóteses de anulação ou revogação de licitação diversas das
previstas no art. 49 da Lei nº 8.666/93.
di Pietro. Direito administrativo, p. 226-227.
Precedente do superior tribunal de Justiça é no sentido de o direito à indenização do particular subsistir mesmo
quando o vício impugnado for a ele imputável, como indica o excerto a seguir: “a Administração deve indenizar
a empresa contratada pela execução de etapas das obras ajustadas até a data da declaração de nulidade, ainda
que a anulação do contrato tenha ocorrido por utilização de documento fraudado pela empresa (...)” (resp
nº 408.785-RN, 2ª Turma. Rel. Min. Franciulli Netto. Julg. 5.6.2003. DJ, 30 jun. 2003).
A anulação da licitação decorre não apenas do descumprimento da lei, mas igualmente dos demais princípios
da Administração Pública. o tCu, por meio da decisão nº 133/97, Plenário (DOU, 15 abr. 1997), determinou a
anulação de licitação, por ter restado caracterizada grave afronta ao princípio da moralidade a participação de
servidores da entidade licitante no procedimento licitatório.
Anulada a licitação, não cabe à Administração a devolução das quantias pagas na aquisição do edital. nesse
sentido, vide tribunal de Contas do estado do Paraná (tCe-Pr), resolução nº 7.583/96.
297
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
298
dúvidas sobre o tema decorre do fato de que deveria vigorar lei que, nos termos do art. 173 da
Constituição Federal, viria a disciplinar o estatuto jurídico das empresas estatais exploradoras
de atividades empresariais, lei que, até o presente momento, não foi editada.
diante da omissão legislativa, a conclusão evidente é de que a Lei nº 8.666/93 deve
ser utilizada por todas as entidades da Administração Pública para as licitações e para
os contratos que celebrem.
A personalidade de direito Privado das empresas estatais impede, todavia, a presença das cláusulas exorbitantes em seus contratos. É incompatível com a natureza privada
dessas entidades a existência de potestades tipicamente públicas, especialmente quando
tratamos de empresas estatais que exploram atividades empresariais. isto não importa em
afastar a Lei nº 8.666/93, mas tão somente em impedir que uma empresa estatal exploradora
de atividades empresariais, que no exercício dessas atividades está submetida ao direito
Privado, possa beneficiar-se de potestades típicas do Direito Público.
6.11 Prazos contratuais
As regras relativas à fixação dos prazos contratuais serão fixadas no próprio edital
e repetidas no contrato, conforme parâmetros constantes do art. 57 da Lei nº 8.666/93.
em primeiro lugar, deve ser observado que a Lei nº 8.666/93, em seu art. 57, §3º,
veda a celebração de “contrato com prazo de vigência indeterminado”.58
o caput do art. 57 fixa a regra em matéria de vigência de contrato, in verbis: “a
duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos
créditos orçamentários”. Essa a regra a ser seguida. A fixação desse prazo máximo
obedece, em primeiro lugar, às normas de direito Financeiro, que vedam a realização
de despesa sem a respectiva previsão orçamentária. Assim sendo, e considerando que
a lei orçamentária prevê as despesas a serem realizadas no exercício financeiro, não
seria possível a realização de despesa sem que esta esteja prevista na Lei orçamentária
Anual. esta será inclusive, outra cláusula obrigatória do contrato (art. 55, v): a indicação do “crédito pelo qual correrá a despesa, com a indicação da classificação funcional
programática e da categoria econômica”.
somente nas hipóteses indicadas nos incisos do art. 57 poderão ser celebrados contratos com prazos superiores ao do exercício financeiro.59 são as seguintes hipóteses em
que será possível a celebração de contrato por prazo superior ao do exercício financeiro:
1. Aos projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas
no Plano Plurianual, os quais poderão ser prorrogados se houver interesse
da Administração e desde que isso tenha sido previsto no ato convocatório;
58
59
súmula TCU nº 191: “Torna-se, em princípio, indispensável a fixação dos limites de vigência dos contratos administrativos, de forma que o tempo não comprometa as condições originais da avença, não havendo, entretanto,
obstáculo jurídico à devolução de prazo, quando a Administração mesma concorre, em virtude da própria natureza
do avençado, para interrupção da sua execução pelo contratante”.
os contratos de locação de imóveis não estão sujeitos aos prazos de vigência estabelecidos no art. 57 da Lei nº 8.666/93.
nesse sentido, tCu: “9.2.2 os prazos estabelecidos no art. 57 da Lei nº 8.666/93 não se aplicam aos contratos de locação,
por força do que dispõe o art. 62, §3º, inciso i, da mesma lei. É possível a cobrança de taxa de ocupação sem contrato,
como medida de caráter temporário, até a conclusão dos procedimentos de venda do imóvel (caso em que o ocupante
tem o direito de preferência e aceita adquiri-lo pelo preço mínimo – arts. 2º e 3º da Lei nº 9.702/98), de desocupação (caso
ele não tenha o direito de preferência ou não deseje exercê-lo – arts. 2º e 7º da Lei nº 9.702/98) ou até o encerramento
de eventuais demandas judiciais em que se discutam questões envolvendo a posse dos imóveis” (Acórdão nº 170/05,
Plenário. DOU, 10 mar. 2005).
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
2. A prestação de serviços a serem executados de forma contínua,60 que poderão
ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à
obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração, limitada
a sessenta meses;
3. Ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática,
podendo a duração estender-se pelo prazo de até 48 meses após o início da
vigência do contrato.
4. Ajustes firmados com fundamento nas hipóteses de dispensa de licitação previstas nos incisos iX, XiX, XXviii e XXXi do art. 24, cujas vigências poderão
alcançar até 120 meses, caso haja interesse da administração (art. 57, consoante
inciso v acrescentado pela Lei nº 12.349/2010).
observamos ainda que, nos termos do §1º do art. 57, os prazos de início de etapas
de execução, de conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro,
desde que ocorra algum dos seguintes motivos, devidamente autuados em processo:
I - alteração do projeto ou especificações, pela Administração;
ii - superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes que
altere fundamentalmente as condições de execução do contrato;
iii - interrupção da execução do contrato ou diminuição do ritmo de trabalho por ordem
e no interesse da Administração;
iv - aumento das quantidades inicialmente previstas no contrato, nos limites permitidos
por esta lei;
v - impedimento de execução do contrato por fato ou ato de terceiro reconhecido pela
Administração em documento contemporâneo à sua ocorrência;
vi - omissão ou atraso de providências a cargo da Administração, inclusive quanto aos
pagamentos previstos de que resulte, diretamente, impedimento ou retardamento na
execução do contrato, sem prejuízo das sanções legais aplicáveis aos responsáveis.
o administrador deve saber que mesmo admitindo a prorrogação do contrato,
o que somente será possível nas hipóteses acima indicadas, deverá ser providenciada
a sua devida justificação por escrito e previamente autorizada pela autoridade competente
para celebrar o contrato.
em relação aos serviços de natureza contínua, que nos termos do inciso ii do art.
57 poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos,61 limitada
a 60 meses, o §4º do mesmo art. 57 prevê ainda, em caráter excepcional, devidamente
justificado e mediante autorização da autoridade superior, que o seu prazo poderá ser
prorrogado em até mais 12 meses.62
60
61
62
A in sLti/mP nº 2/2008 dispõe, no âmbito da Administração Pública federal, sobre regras e diretrizes para a
contratação de serviços, continuados ou não, oferecendo, consoante o item i do seu anexo i, a seguinte conceituação do que sejam serviços continuados: “são aqueles cuja interrupção possa comprometer a continuidade
das atividades da Administração e cuja necessidade de contratação deva estender-se por mais de um exercício
financeiro e continuamente”.
“A contratada possui apenas expectativa de direito à renovação do contrato, sendo poder discricionário do gestor
realizá-la ou não, motivo pelo qual, caso a opção seja pela extinção contratual, não há que se falar em lesão a
direito da contratada” (voto condutor do Acórdão tCu nº 1.577/04, 2ª Câmara. DOU, 06 set. 2004).
Por meio da decisão nº 25/00, Plenário (DOU, 04 fev. 2000), o TCU firmou entendimento no sentido de que seria
possível a celebração de contrato para prestação de serviços de natureza contínua com prazo de vigência inicial
299
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
300
devemos, aqui, distinguir entre as prorrogações indicadas no art. 57, inciso ii e
§4º, em relação às prorrogações de que trata o §1º desse mesmo artigo 57.
A fim de melhor entender essa distinção, tomemos dois exemplos. Em primeiro
lugar, situação em que seria aplicável a regra do art. 57, §1º, temos, por exemplo, obra
contratada e que deveria ser executada em um período de três meses, a iniciar-se em
15 de janeiro. A Administração, no entanto, não libera o local onde deveria ser realizada a obra de modo que ela não pode ser iniciada na data fixada. Esse seria caso de
prorrogação (art. 57, §1º, vi). Assim, se a Administração demorou dois meses para
liberar o local onde seria executada a obra, as datas de início e conclusão da obra serão
automaticamente prorrogadas por dois meses.
diferente é a situação de contrato de prestação de serviço de vigilância, celebrado com vigência de 12 meses, e que admitia a sua prorrogação (antes houvesse a
lei chamado esses casos de renovação de vigência de contrato, e não de prorrogação).
Findo o período de 12 meses, em que o contrato foi regularmente executado, poderá ser
admitida a sua prorrogação (ou renovação) por mais 12 meses, mediante termo aditivo.
vemos, pela comparação dos dois casos acima mencionados, que temos situações
totalmente distintas, e que, portanto, receberam tratamento jurídico diferenciado.
Verificamos hipótese de prorrogação automática da vigência do contrato sempre
que, nos termos do art. 78, 5º, da Lei nº 8.666/93, ocorrer “impedimento, paralisação ou
sustação do contrato”. Assim verificando-se a suspensão da execução do contrato tem
o contratado direito à devolução do prazo contratual.
A faculdade legal atribuída pela lei para que se determine a suspensão do contrato não fica, no entanto, ao livre arbítrio das partes. Nesse mesmo sentido caminhou a
jurisprudência do tCu ao se posicionar de forma contrária a que se ultrapasse o prazo
de 120 dias, pois seria esse o limite temporal de viabilidade econômica para a paralisação do contrato.63 o inciso Xiv do art. 78 da Lei de Licitações admite exceção para o
prazo de 120 dias apenas nas hipóteses de “calamidade pública, grave perturbação da
ordem interna ou guerra”.
no tocante à inovação trazida pela Lei nº 12.349/2010 ao art. 57 da Lei nº 8.666/93,
com o acréscimo, ao caput, do inciso v, o limite para os prazos dos contratos administrativos firmados por dispensa de licitação com fundamento nos incisos IX, XIX, XXVIII e
XXXi do art. 24 daquela lei passou a ser, agora, de 120 meses. tratando-se de hipóteses
de dispensa de licitação, há que se avaliar com muito cuidado o interesse público na
celebração de contratos com prazos tão longos. Isso porque, ao final do término da
vigência original da avença, mantidas as condições que justificaram a dispensa, não
se vislumbram dificuldades da realização de nova contratação sem risco de solução
de continuidade e com a vantagem da negociação de preços atualizados. A extensão
ora possibilitada para tais contratos torna maior a probabilidade da prática de preços
injustos em razão da utilização de fórmulas e mecanismos de reajustes que nem sempre
reproduzem adequadamente as condições de mercado.
63
de 60 meses, cabendo ainda, desde que previstos os requisitos legais, a prorrogação excepcional de até 12 meses
prevista no art. 57, §4º, da Lei nº 8.666/93.
tCu. decisão nº 216/00, Plenário. DOU, 25 abr. 2000.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
6.12 Equilíbrio econômico-financeiro do contrato
6.12.1 teoria da imprevisão
em matéria contratual, um dos aspectos mais controvertidos — sobretudo em relação aos contratos de execução continuada — diz respeito à necessidade de definição dos
mecanismos necessários à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do acordo.
no direito Privado, a ideia genérica de que deve ser mantido o equilíbrio entre
as obrigações assumidas pelas partes remonta ao direito romano.
No momento em que o contrato é firmado, define-se o equilíbrio entre as prestações a serem efetuadas reciprocamente pelas partes e, como cláusula implícita em todos
os contratos, está presente a cláusula rebus sic stantibus, cujo propósito é exatamente o
de recompor referido equilíbrio caso este seja alterado durante a execução da avença.
o princípio do pacta sunt servanda, segundo o qual as partes se obrigam a cumprir
o acordado, foi apresentado durante o século XiX como empecilho à recomposição da
equação econômica do contrato sob o argumento de que o contrato deve ser executado
nos exatos termos em que foi firmado.
nos dias atuais, a leitura do mencionado princípio não afasta ou nega a necessidade de recomposição do equilíbrio do contrato. esta noção de equilíbrio não é mais
tida como estática, ela é vista a partir de uma concepção dinâmica, em um contexto
em que a preservação do que foi acordado impõe às partes o dever de acompanhar
as circunstâncias que envolvem a execução do contrato e o seu constante cotejamento
com aqueles que resultaram na definição dos encargos das partes a fim de, verificado
o desequilíbrio e comprovados determinados parâmetros, promover a alteração do
contrato de modo a recompor o equilíbrio inicialmente definido. A partir dessa nova
concepção, a definição dos mecanismos de preservação do equilíbrio e a sua aplicação
no curso da execução do contrato não importam em violação do pacta sunt servanda,
mas em sua realização.
A aplicação da cláusula rebus sic stantibus decorre do reconhecimento do dever
moral e jurídico de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro a fim de evitar o
enriquecimento sem causa da outra parte. em sintonia com essa visão, o jurista Arnoldo
Wald afirma que “assim como a lei coíbe a lesão (lesão instantânea), não se pode permitir
que a alteração do valor de uma das prestações, por circunstâncias alheias à vontade
das partes, subverta o equilíbrio do contrato”.64
no direito Privado, onde prevalece a disponibilidade da vontade das partes,
questões relacionadas à manutenção do equilíbrio dos contratos encontram soluções
mais fáceis do que as verificadas no âmbito público. Em nome da cláusula rebus sic stantibus,
verificando-se fatos imprevisíveis e que afetem o equilíbrio econômico do contrato,
deve ser promovida a recomposição de modo a restabelecer o seu equilíbrio inicial.
nos contratos administrativos, os mecanismos e instrumentos de reequilíbrio
financeiro devem estar expressamente previstos nos instrumentos contratuais e em lei.
A grande dificuldade consiste exatamente no fato de que é praticamente impossível aos
contratos e à lei estabelecerem as situações em que ocorrerá o desequilíbrio contratual
e, sobretudo, indicarem as soluções a serem adotadas para recompor esse equilíbrio.
64
Cf. WALD. Contrato de obra pública: equilíbrio financeiro. Revista de Direito Público – RDP, p. 237-246.
301
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
302
no âmbito do direito Administrativo, a primeira decisão acerca do tema foi
proferida em 1910 pelo Conselho de Estado da França. Afirmou-se a necessidade da
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão sob o argumento de que deve haver honesta equivalência entre o que se concede ao concessionário e o que
dele se deve exigir.
em nosso direito administrativo, a Lei nº 8.666/93 prevê, expressamente, a possibilidade de, por acordo das partes, ser promovida a recomposição do equilíbrio do
contrato. o art. 65, ii, “d”, dispõe nos seguintes termos:
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
ii - por acordo das partes:
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do
contratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra, serviço
ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial
do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de
conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, (...).
o Professor Celso Antônio Bandeira de mello, ao examinar esse tema e sua
aplicação no campo dos contratos administrativos, ressalta que “enquanto o particular
procura o lucro, o Poder Público busca a satisfação de uma utilidade coletiva. Calha,
pois, à Administração atuar em seus contratos com absoluta lisura e integral respeito
aos interesses econômicos legítimos de seu contratante, pois não lhe assiste minimizá-los
em ordem a colher benefícios econômicos suplementares ao previsto e hauridos em detrimento da outra parte”.65
Segundo a definição legal, fatos previsíveis, de consequências que se possam
razoavelmente estimar, não podem servir de fundamento à pretensão de recomposição de preços. A lei não visa suprir a imprevidência do particular ou sua imperícia em
calcular o comportamento da curva inflacionária, por exemplo. Apenas o resguarda de
situações extraordinárias, fora do risco normal da economia de seus negócios.
Ademais, os contratos, ressalvadas as hipóteses de contratação direta, são celebrados com a empresa vencedora do processo de licitação, em que a Administração,
entre várias propostas que se lhe formularam, escolheu a que lhe era mais vantajosa.
Mais vantajoso deve ser entendido como a que atende ao fim público visado e com o
menor custo possível.
de fato, admitir a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos
fora das circunstâncias definidas em lei, vale dizer, aceitar a recomposição de preços
nos contratos a todo tempo e modo, na hipótese de o contratante apenas demonstrar
alterações na relação econômico-financeira, seria negar qualquer sentido ao instituto
da licitação e premiar o licitante que, por má-fé ou inépcia empresarial, apresentou
proposta que, com o tempo, revelou-se antieconômica.
A licitação, caso não sejam definidos critérios rígidos para a aplicação da teoria da
imprevisão, poderia conduzir a Administração à escolha de propostas apenas aparentemente mais econômicas. As empresas que oferecessem propostas adequadas, assentadas
em previsões benfeitas e com margem de lucro razoável, poderiam ser derrotadas por
propostas mal calculadas, que manifestariam seus malefícios somente meses mais tarde.
65
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 339.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
variações de custos previsíveis, para mais ou para menos, são normais na atividade
empresarial e constituem a álea normal do empreendimento a ser suportada pelo empresário
contratado. Impõe-se, desse modo, a definição dos requisitos necessários à recomposição
do equilíbrio econômico do contrato.
Ao admitir a recomposição de preços, a lei prevê os requisitos a serem observados. segundo maria sylvia Zanella di Pietro, a aplicação da teoria da imprevisão aos
contratos administrativos pressupõe a ocorrência de fatos:
1. imprevisíveis, ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis;
2. estranhos à vontade das partes;
3. inevitáveis;
4. Causadores de desequilíbrio muito grande no contrato.66
É certo que as partes têm o direito de promover a recomposição do equilíbrio
contratual. esse direito, além de previsto na Lei de Licitações, é igualmente mencionado
no próprio texto constitucional (CF, art. 37, XXi). Porém, o administrador deve agir com
grande cautela e sempre justificar com toda a prudência os fundamentos que justificam
a aplicação da teoria e o porquê da fixação dos novos valores.
Deve haver especial preocupação dos administradores públicos em justificar, por
exemplo, por que determinado contrato, inicialmente fixado em R$100 milhões, deve
ser alterado para r$115 milhões e não para r$125 milhões ou r$110 milhões. nesse
sentido, são inadmissíveis explicações genéricas, haja vista as circunstâncias que afetam
o equilíbrio financeiro do contrato impactarem de modo diferenciado diversos insumos
que compõem o custo do contrato. É possível que determinados itens que compõem
os custos não sejam afetados, ao passo que outros sejam afetados de forma dramática,
a ponto de justificarem a aplicação da teoria da imprevisão.
A fim de examinar o cabimento da aplicação da teoria da imprevisão aos contratos
administrativos, podemos considerar os exemplos a seguir.
Celebrado contrato com vigência de um ano sem qualquer cláusula de reajuste
para o fornecimento de peças importadas, portanto a serem pagas pelo contratado ao
seu fornecedor, no exterior, em moeda estrangeira. um mês após iniciada a sua execução, o dólar sofre expressiva valorização em face do real.
A segunda hipótese ocorreria se após celebrado contrato para fornecimento de
mão de obra no qual não constava igualmente cláusula de reajuste do contrato, um mês
após o início da sua vigência, ocorre dissídio da categoria e esta obtém, na Justiça do
trabalho,67 aumento salarial.68
66
67
68
di Pietro. Direito administrativo, p. 235.
No sentido de que dissídio da categoria profissional não constitui fato imprevisível, vide stJ: “revisão de
contrato administrativo. Dissídio coletivo. Aumento de salário. Reequilíbrio econômico-financeiro. O aumento
do piso salarial da categoria não se constitui fato imprevisível capaz de autorizar a revisão do contrato. recurso
não conhecido” (REsp nº 134.797, 2ª Turma. Rel. Min. Paulo Gallotti. Julg. 16.5.2000. DJ, 1º ago. 2000).
semelhante questão, acerca do reajustamento de preços em prazo inferior a um ano da assinatura da avença,
foi tratada pelo tCu no Processo tC nº 009.970/95-9, acerca de consulta formulada por dirigente do órgão de
controle interno versando sobre a possibilidade de repasse dos percentuais de reajuste salarial, ocorrido na data
base, aos custos de remuneração da mão de obra dos contratos de prestação de serviços, e se é possível a alegação de desequilíbrio econômico-financeiro embasada no reajuste salarial dos trabalhadores ocorrido durante a
vigência do contrato. naquela ocasião decidiu o tCu:
“1 - os preços contratados não poderão sofrer reajustes por incremento dos custos de mão-de-obra decorrentes
da data base de cada categoria, ou de qualquer outra razão, por força do disposto no art. 28 e seus parágrafos da
Lei nº 9.069/95, antes de decorrido o prazo de um ano, contado na forma expressa na própria legislação; e
303
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
304
estamos diante de diferentes situações. no primeiro caso (variação exagerada
do dólar), deverá ser feita a recomposição do preço do contrato; na segunda hipótese,
relacionada ao dissídio dos empregados, não é devida a recomposição do contrato.
o tratamento diferenciado decorre do fato de que se o aumento exagerado do
dólar não poderia ser esperado ou previsto, não havia como o contratado, ou qualquer
outro licitante, ter considerado essa possibilidade no momento em que apresentou sua
proposta à Administração. No segundo contrato, o dissídio da categoria profissional
ocorre todo ano, de modo que era perfeitamente previsível a concessão de algum ganho
para os empregados da empresa contratada. Caberia a ela no momento em que apresentou sua proposta considerar a possibilidade de a categoria profissional obter algum
tipo de aumento no dissídio.
Admitimos a recomposição do valor do contrato em face da exagerada desvalorização do real frente ao dólar, moeda a ser utilizada por aquele que contratou com a
Administração para pagar a seu fornecedor no exterior.69 Pequenas desvalorizações da
moeda nacional, que normalmente ocorrem no mercado, não devem, em hipótese alguma,
ser utilizadas para o aumento do valor do contrato com a Administração Pública.
É igualmente importante observar que a recomposição não necessariamente
irá implicar aumento de preços de contratos. se os fatos imprevisíveis, ou de efeitos
incalculáveis, afetarem o equilíbrio do contrato de modo a reduzir seus custos, deverá
ser promovida a devida e proporcional redução dos valores do contrato.70
69
70
2 - poderá ser aceita a alegação de desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, com base no reajuste salarial
dos trabalhadores ocorrido durante a vigência do instrumento contratual, desde que a revisão pleiteada somente
aconteça após decorrido um ano da última ocorrência verificada (a assinatura, a repactuação, a revisão ou o
reajuste do contrato), contado na forma da legislação pertinente.” (decisão nº 457/95, Plenário. Ata n. 41/95)
Acerca da viabilidade do reequilíbrio econômico-financeiro do contrato em virtude da desvalorização da moeda
nacional frente ao dólar, ver o seguinte julgado do STJ: “Contrato administrativo. Equação econômico-financeira
do vínculo. desvalorização do real. Janeiro de 1999. Alteração de cláusula referente ao preço. Aplicação da teoria
da imprevisão e fato do príncipe. 1. A novel cultura acerca do contrato administrativo encarta, como nuclear
no regime do vínculo, a proteção do equilíbrio econômico-financeiro do negócio jurídico de direito público,
assertiva que se infere do disposto na legislação infralegal específica (arts. 57, §1º, 58, §§1º e 2º, 65, II, ‘d’, 88,
§5º e 6º, da Lei nº 8.666/93. deveras, a Constituição Federal ao insculpir os princípios intransponíveis do art. 37
que iluminam a atividade da administração à luz da cláusula mater da moralidade, torna clara a necessidade
de manter-se esse equilíbrio, ao realçar as ‘condições efetivas da proposta’. 2. o episódio ocorrido em janeiro
de 1999, consubstanciado na súbita desvalorização da moeda nacional (real) frente ao dólar norte-americano,
configurou causa excepcional de mutabilidade dos contratos administrativos, com vistas à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das partes. 3. Rompimento abrupto da equação econômico-financeira do contrato.
impossibilidade de início da execução com a prevenção de danos maiores (ad impossiblia memo tenetur). 4. Prevendo a lei a possibilidade de suspensão do cumprimento do contrato pela verificação da exceptio non adimplet
contractus imputável à administração, a fortiori, implica admitir sustar-se o ‘início da execução’, quando desde
logo verificável a incidência da ‘imprevisão’ ocorrente no interregno em que a administração postergou os trabalhos. sanção injustamente aplicável ao contratado, removida pelo provimento do recurso. 5. recurso ordinário
provido”. (rms nº 15.154-Pe, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 19.11.2002. DJ, 02 dez. 2002)
nesse sentido, vide decisões tCu nº 33/97, Plenário (DOU, 25 fev. 1997), e nº 464/00, Plenário (DOU, 23 jun. 2000).
Em face da lucidez dos argumentos apresentados pelo Min. Walton Alencar Rodrigues, relator da matéria,
transcrevemos trechos de seu voto:
“todavia, sob o aspecto econômico, não há negar que, em virtude da desvalorização cambial, ocorrida no início
de 1999, o valor em reais recebido pela contratada elevou-se substancialmente, sem que os seus custos, essencialmente vinculados a insumos nacionais, aumentasse na mesma proporção, haja vista que o maior custo incorrido
pela contratada é com pessoal, que tem sua remuneração fixada em reais.
Isso configura alteração imprevisível e inevitável na esfera econômica, estranha à vontade das partes, que acarretou distorção entre o valor recebido e os encargos suportados pela contratada, em benefício desta e, de outra
parte, na mesma proporção, a imposição de ônus excessivo à contratante, o que enseja a aplicação da teoria da
imprevisão (rebus sic stantibus).
ressalte-se que essa teoria, albergada pela atual Lei de Licitações, no seu art. 65, inciso ii, alínea d, pode ser
empregada tanto em favor do contratado quanto em favor do contratante.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
6.12.2 distinção entre recomposição, reajuste de preços e repactuação
o reajuste de preços está relacionado a variações de custos de produção que, por
serem previsíveis, poderão estar devidamente indicados no contrato. normalmente,
são utilizados como critérios para promover o reajuste do valor do contrato índices que
medem a inflação, como o índice nacional de preços ao consumidor (INPC), índices
setoriais, ou índices de variação salarial. As cláusulas que preveem o reajuste de preços
têm o único objetivo de atualizar os valores do contrato em face de situações previsíveis
(expectativa de inflação, variação de salários etc.). A bem da verdade, o reajuste de preços
deve ser visto como meio de reposição de perdas geradas pela inflação.
A recomposição de preços, motivada pela aplicação da teoria da imprevisão, ao
contrário, está relacionada à ocorrência de fatos imprevisíveis, ou ainda que previsíveis
de efeitos incalculáveis, que irão afetar o equilíbrio do contrato. nos dias atuais, porém,
com os reduzidos índices inflacionários que se têm verificado, uma súbita alta de preços
de determinado produto poderia justificar a aplicação da teoria da imprevisão a fim de
promover a recomposição de preços. explicamos melhor: imagine que celebrado contrato, com prazo de vigência de um ano, nele não conste nenhuma cláusula de reajuste
de preços. no momento da apresentação das propostas, não existia qualquer expectativa de retorno da inflação. Após a celebração do contrato, em decorrência de fatores
totalmente imprevisíveis, a inflação retoma com índices absolutamente impensáveis. Se
essa circunstância era imprevisível, como de fato o é, e efetivamente afeta o equilíbrio
econômico-financeiro do contrato, caberá a recomposição dos preços.
o mesmo pode ser dito em relação às variações salariais. É comum encontrarmos,
especialmente em contratos de prestação de serviço de natureza contínua, que nos termos do art. 57, ii, poderão ter vigência de até 60 meses cláusulas de reajuste do preço
do contrato tendo como parâmetro as variações salariais das categorias contratadas.
Assim, observados os parâmetros legais (Lei nº 8.880/94 – Plano de estabilização Fiscal),
que não admitem reajustes retroativos ou em períodos inferiores a um ano, prazo que
será contado da data da apresentação das propostas, procede-se ao reajuste do contrato
tendo como critério a variação salarial dos empregados. vê-se que é utilizado critério
preestabelecido para que se proceda ao reajuste do preço do contrato.
Por outro lado, sendo o dissídio das categorias profissionais um fato mais do que
previsível, não caberia alegar a sua ocorrência como fundamento para a recomposição
dos preços do contrato, conforme analisamos em exemplo anteriormente mencionado.
A lei, porém, dispõe que o fato provocador do desequilíbrio do contrato não necessariamente terá de ser imprevisível. Ainda que ele pudesse ser previsto (a realização do
dissídio da categoria), se seus efeitos (o valor do reajuste obtido pela categoria) forem
“incalculáveis”, estará autorizada a recomposição de preços.
Aliás, como exemplo de aplicação da teoria da imprevisão em benefício da Administração Pública, pode ser
citado o decreto nº 2.399/97 que, em virtude da estabilização da economia e da necessidade de expurgar dos
preços contratados a expectativa de inflação, determinava que os órgãos e entidades da Administração Federal
promovessem a reavaliação dos instrumentos contratuais em vigor, objetivando a redução dos preços aos níveis
daqueles atualmente praticados no mercado para o mesmo bem ou serviço.
Ademais, não se diga que a manutenção do reajuste cambial não acarreta nenhum prejuízo à CBtu, em virtude
de os recursos serem provenientes do BIRD, pois para pagar esse financiamento será necessário maior desembolso de moeda nacional do que previsto originalmente.
Assim, entendo pertinente expedir recomendação à entidade para que promova renegociação do contrato no
sentido de adequá-lo à nova realidade cambial.”
305
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
306
Imagine uma categoria que, nos dias atuais, com a inflação próxima a 0% ao
ano, obtivesse um aumento de 20%. Ainda que o fato seja previsível (a realização do
dissídio), o seu efeito (o valor do reajuste obtido pela categoria) seria incalculável. desse
modo estaria justificada a aplicação da teoria da imprevisão para que se concedesse a
recomposição do preço do contrato.
outra importante distinção entre reajuste e recomposição é o fato de que a primeira necessariamente deverá estar prevista no contrato. se não houver cláusula contratual definindo os critérios de reajuste, esse não há de ser admitido. A recomposição,
ao contrário, não há como estar prevista no contrato, pelo simples fato de decorrer de
fatos imprevisíveis (ou, ainda que previsíveis, de efeitos incalculáveis).
o reajuste, conforme já observado, e em obediência ao que determina a legislação que implantou o Plano real,71 não poderá ocorrer em períodos inferiores a um
ano (contado da data da apresentação da proposta, e não da assinatura do contrato ou
do início de sua vigência); enquanto a recomposição do contrato poderá verificar-se a
qualquer tempo. A vedação expressa de que cláusula de reajustamento de preços opere
em prazo inferior a um ano não implica dizer, no entanto, que os preços dos contratos
devam ser imutáveis durante esse período. o reajustamento contratual, este sim, não
pode incidir fora da periodicidade estabelecida em lei. mas a recomposição de preços
motivada pela ocorrência de fato comprovadamente imprevisível poderá ocorrer em
qualquer momento da vigência do contrato.
modalidade especial de reajustamento de contrato, aplicável tão somente aos
contratos de serviços contínuos, corresponde à denominada repactuação, que se destina
a recuperar os valores contratados da defasagem provocada pela inflação e se vincula
não a um índice específico de correção, mas à variação dos custos do contrato.
tanto o reajustamento, como gênero, quanto a repactuação dos preços visam a
recompor a corrosão do valor contratado pelos efeitos inflacionários. A diferença entre o
reajuste e a repactuação reside no critério empregado, pois na primeira opção vincula-se
a um índice estabelecido contratualmente e na segunda, à demonstração analítica da
variação dos componentes dos custos.
outro aspecto que caracteriza a repactuação e a distingue do reajuste diz respeito
ao critério para contagem do prazo mínimo de um ano. no reajuste, este prazo, conforme
dispuser o contrato e o edital da licitação, pode ser contado da data da apresentação
das propostas ou da data da assinatura do contrato.72 na repactuação, o interregno
71
72
A Lei nº 9.069/95, art. 28, §3º, determina que não devem ser inseridas cláusulas em contratos ou atos convocatórios
que possibilitem reajustes em prazos inferiores ao legalmente estabelecido, correspondente a um ano.
O entendimento, firmado na jurisprudência do TCU, sobre a data — marco inicial — para o início do cômputo
do prazo para a aplicação de índice de reajustamento previsto no contrato pode ser verificado no exame do
Acórdão tCu nº 474/05, Plenário (DOU, 09 maio 2005):
“9.1.1 a interpretação sistemática do inciso XXi do art. 37 da Constituição Federal, do art. 3º, §1º, da Lei 10.192 e
do art. 40, inciso Xi, da Lei 8.666/93 indica que o marco inicial, a partir do qual se computa o período de um ano
para a aplicação de índices de reajustamento previstos em edital, é a data da apresentação da proposta ou a do
orçamento a que a proposta se referir, de acordo com o previsto no edital.
9.1.2 na hipótese de vir a ocorrer o decurso de prazo superior a um ano entre a data da apresentação da proposta
vencedora da licitação e a assinatura do respectivo instrumento contratual, o procedimento de reajustamento
aplicável, em face do disposto no art. 28, §1º, da Lei 9.069/95 c/c os arts. 2º e 3º da Lei 10.192/01, consiste em
firmar o contrato com os valores originais da proposta e, antes do início da execução contratual, celebrar termo
aditivo reajustando os preços de acordo com a variação do índice previsto no edital relativa ao período de
somente um ano, contado a partir da data da apresentação das propostas ou da data do orçamento a que ela
se referir, devendo os demais reajustes ser efetuados quando se completarem períodos múltiplos de um ano,
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
mínimo de um ano pode ser contado da data da proposta ou da data do orçamento a
que a proposta se referir. nesta última hipótese, o orçamento deve referir-se à data do
acordo, convenção, dissídio coletivo de trabalho ou equivalente que estipular o salário
vigente à época da apresentação da proposta.
o fundamento para a repactuação se encontra na Lei nº 10.192/01, art. 3º, §1º, e
no decreto nº 2.271/97.
Ao admitir que o termo a quo para a contagem do interregno de um ano seja a data
do orçamento a que a proposta se referir, entendida essa data como sendo a do dissídio
coletivo, busca-se evitar a defasagem no custo da mão de obra. ou seja, após a assinatura
do contrato, tão logo ocorra o dissídio, poderá o contratado pleitear a repactuação, sem
precisar esperar um ano a contar da data da proposta ou da assinatura do contrato.73
A repactuação se insere como modalidade especial de reajuste, e não de recomposição, porque decorre de circunstâncias previsíveis e deve observar o interregno de um
ano. Ademais, verificando-se a ocorrência de fato extraordinário (imprevisível ou, ainda
que previsível, de efeitos incalculáveis), que tenha afetado o equilíbrio econômico do
contrato, deverá ser restabelecido esse equilíbrio por meio de aditivo contratual, definido
a partir de acordo entre as partes, aditivo que não se faz necessário para o reajustamento ou para a repactuação. na hipótese de reajuste, os critérios a serem utilizados para
balizar a modificação do valor do contrato já se encontram devidamente disciplinados
73
contados sempre desse marco inicial, sendo necessário que estejam devidamente caracterizados tanto o interesse
público na contratação quanto a presença de condições legais para a contratação, em especial: haver autorização
orçamentária (incisos ii, iii e iv do §2º do art. 7º da Lei 8.666/93); tratar-se da proposta mais vantajosa para a
Administração (art. 3º da Lei 8.666/93); preços ofertados compatíveis com os de mercado (art. 43, iv, da Lei
8.666/93); manutenção das condições exigidas para habilitação (art. 55, Xiii, da Lei 8.666/93); interesse do
licitante vencedor, manifestado formalmente, em continuar vinculado à proposta (art. 64, §3, da Lei 8.666/93);
9.1.3 não é cabível a correção monetária das propostas de licitação, vez que esse instituto visa a preservar o valor
a ser pago por serviços que já foram prestados, considerando-se somente o período entre o faturamento e seu
efetivo pagamento, consoante disposto nos arts. 7º, §7º; 40, Xiv, ‘c’; e 55, iii, da Lei 8.666/93.”
As diferenças entre repactuação, reajuste e recomposição, bem como os critérios a serem observados para a
repactuação encontram-se definidos no Acórdão TCU nº 1.563/04, Plenário (Boletim TCU, n. 40/04) que dispõe,
in verbis:
“ACordAm os ministros do tribunal de Contas da união, reunidos em sessão Plenária, em:
9.1 expedir as seguintes orientações dirigidas à segedam:
9.1.1 permanece válido o entendimento firmado no item 8.1 da Decisão 457/95 – Plenário;
9.1.2 os incrementos dos custos de mão-de-obra ocasionados pela data-base de cada categoria profissional nos
contratos de prestação de serviços de natureza contínua não se constituem em fundamento para a alegação de
desequilíbrio econômico-financeiro;
9.1.3 no caso da primeira repactuação dos contratos de prestação de serviços de natureza contínua, o prazo
mínimo de um ano a que se refere o item 8.1 da decisão 457/95 – Plenário conta-se a partir da apresentação da
proposta ou da data do orçamento a que a proposta se referir, sendo que, nessa última hipótese, considera-se
como data do orçamento a data do acordo, convenção, dissídio coletivo de trabalho ou equivalente que estipular
o salário vigente à época da apresentação da proposta, vedada a inclusão, por ocasião da repactuação, de antecipações e de benefícios não previstos originariamente, nos termos do disposto no art. 5º do decreto 2.271/97 e
do item 7.2 da in/mare 18/97;
9.1.4 no caso das repactuações dos contratos de prestação de serviços de natureza contínua subseqüentes à primeira repactuação, o prazo mínimo de um ano a que se refere o item 8.1 da decisão 457/95 – Plenário conta-se a
partir da data da última repactuação, nos termos do disposto no art. 5º do decreto 2.271/97 e do item 7.1 da in/
mare 18/97;
9.1.5 os contratos de prestação de serviços de natureza contínua admitem uma única repactuação a ser realizada
no interregno mínimo de um ano, conforme estabelecem o art. 2º da Lei 10.192/00 e o art. 5º do decreto 2.271/97;
9.1.6 nas hipóteses previstas nos itens 9.1.3 e 9.1.4 deste Acórdão, a repactuação poderá contemplar todos os
componentes de custo do contrato que tenham sofrido variação, desde que haja demonstração analítica dessa
variação devidamente justificada, conforme preceitua o art. 5º do Decreto 2.271/97;
9.2 arquivar este processo.”
307
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
308
no próprio contrato pela fixação de índices, e na repactuação, que tem como parâmetro
os custos necessários à execução do contrato, faz-se necessária a demonstração analítica
da variação dos componentes desses custos do contrato, sem, todavia, impor-se a sua
formalização por meio de aditivo.
6.12.3 distinção entre atualização, recomposição e reajuste de preços
É importante ainda explicar o conceito de atualização ou correção de preços, e
distingui-lo da recomposição e do reajuste.
A recomposição, vimos, está relacionada à ocorrência de fatos imprevisíveis,
ou ainda que previsíveis, de efeitos incalculáveis, que afetem o equilíbrio contratual.
o reajuste74 será determinado de acordo com índices prefixados no próprio contrato.
A atualização, ao contrário, está vinculada à possibilidade de atrasos nos pagamentos
devidos pela Administração, sendo obrigatória a presença de cláusula que discipline
o seu pagamento, nos termos do art. 40, Xiv, “c”, da Lei nº 8.666/93.75
o contrato deverá indicar em que condições deverão ser efetuados os pagamentos
ao contratado. Cumprindo o contratado o que dispõe o contrato, e não efetuando a Administração o pagamento dentro do prazo estipulado, deverá o valor desse pagamento ser
atualizado monetariamente.
A atualização ou correção dos pagamentos devidos pela Administração e efetuados fora do prazo fixado no contrato é devida independentemente de previsão no
instrumento do contrato — ainda que pela lei deva o contrato prever tal cláusula e
indicar esses critérios de atualização.76
6.12.4 Equilíbrio financeiro e contratos de concessão
A aplicação da teoria da imprevisão a contratos de obra pública ou a contratos
de serviços contínuos, regidos pela Lei nº 8.666/93 e que podem vigorar por até cinco
anos (art. 57, II), é cercada de grandes dificuldades. Essas dificuldades servem apenas
para dar uma ideia de como será ainda mais confusa a aplicação da teoria da imprevisão
74
75
76
sobre a necessidade de ser providenciada a elaboração de planilha mensal de acompanhamento dos pagamentos
e reajustes contratuais, visando facilitar e agilizar os controles e informações, vide tCu. Acórdão nº 106/94,
Plenário. DOU, 28 set.1994.
Acerca da correção monetária dos valores contratuais, ver o seguinte julgado do stJ:
“Administrativo. Contrato com cláusula prevendo a repactuação ante a ocorrência de fatos imprevisíveis, ou
previsíveis, porém de conseqüências incalculáveis. Convenções determinando a majoração salarial para a categoria dos vigilantes. Desequilíbrio econômico-financeiro do instrumento. Inadimplemento. Ilícito contratual.
Correção monetária. termo a quo. 1. A correção monetária não pode ser considerada um plus, mas apenas
uma atualização para que seja respeitado o valor real da moeda face à inflação ocorrida no período. 2. Mesmo
reconhecendo que os termos das convenções coletivas que deferiram majorações salariais para a categoria dos
vigilantes causaram o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, a União só promoveu a
recomposição dos valores a partir do aditamento do contrato, permanecendo inadimplente durante o período
indicado no aresto recorrido, o que caracteriza ilícito contratual. 3. nesse caso deve ser observada a súmula nº 43/stJ
que dispõe: ‘incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo’. 4. A atualização monetária é devida desde a data do inadimplemento, uma vez que considerá-la devida apenas a partir
do ajuizamento da ação acarretaria dano — decorrente da desvalorização da moeda — à empresa recorrida e
o conseqüente enriquecimento sem causa à recorrente. 4. recurso especial improvido.” (resp nº 554.375-rs, 2ª
turma. rel. min. Castro meira. Julg. 16.12.2004. DJ, 23 maio 2005)
nesse sentido, vide stJ. resp nº 92.287-AL, 1ª turma. rel. min. José de Jesus Filho. Julg. 19.8.1996. DJ, 16 set. 1996.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
aos contratos de concessão de serviços públicos e às parcerias público-privadas, que
envolvem prazos muito mais amplos, de 10 anos, 15 anos ou mais, custos muito mais
complexos e que importam, quase sempre, em elevação das tarifas a serem pagas pelos
usuários dos serviços públicos.
em contratos regidos pela Lei nº 8.666/93, a teoria da imprevisão busca recompor
o equilíbrio econômico-financeiro vigente por ocasião da apresentação das propostas
pelos licitantes. nesses outros contratos (concessões e parcerias público-privadas), os
mecanismos de preservação do equilíbrio financeiro envolvem revisões ordinárias e
extraordinárias, e o parâmetro de equilíbrio não necessariamente é aquele definido por
ocasião da apresentação das propostas.
no âmbito do setor elétrico, por exemplo, com a edição da Lei nº 9.427/96, a
AneeL passou a aplicar aos contratos de concessão de distribuição de energia elétrica
o método rPi-X, originário do reino unido. de acordo com esse modelo, durante
determinado período de tempo estipulado no contrato, aplica-se às tarifas apenas um
fator de reajuste anual (IGP-M), calculado pela FGV, com o fim de anular efeitos da
inflação. Em seguida, deve ser calculado o fator X a fim de verificar a eficiência dos
custos operacionais e a prudência dos investimentos realizados pelas concessionárias,
tendo ainda como parâmetro a ocorrência de fatores macroeconômicos, fato que poderá
afetar negativa ou positivamente o fator de reajuste anual, vale dizer o iGP-m, e que
objetiva compartilhar com o usuário ganhos de produtividade que deveriam ter sido
obtidos pela concessionária.
de acordo com esse modelo, o parâmetro de equilíbrio é contínuo no tempo e
depende de uma situação de utilização ideal dos custos operacionais da concessionária
hipotética tida como “empresa de referência”. Cria-se o que se chama de sistema de
benchmarks, que objetiva reduzir o valor da tarifa. Verifica-se, aqui, uma infinidade de
fatores complicadores para a definição desses novos índices de reajuste. Tudo isto, está,
todavia, relacionado tão somente às revisões ordinárias. Podemos, assim, talvez ter uma
vaga ideia das dificuldades que envolvem as revisões extraordinárias.
editais de licitação e cláusulas contratuais claros e bem redigidos constituem
o primeiro passo para o estabelecimento de parâmetros objetivos que garantem aos
contratados a segurança necessária aos investimentos — muitas vezes milionários — a
que se obrigam.
As decisões acerca dos aumentos das tarifas decorrentes da recomposição do
equilíbrio financeiro dos contratos devem ser bem fundamentadas, técnica e juridicamente, de modo a permitir o controle e a comprovação da legitimidade do processo de
execução da política tarifária previamente definida. Do contrário, as revisões tarifárias
decorrentes dos processos de recomposição de equilíbrio desses contratos tendem a ser
constante fonte de insegurança para as concessionárias, para a Administração Pública
e, principalmente, para os usuários.
6.12.5 Fato do príncipe e fato da administração
imaginemos as seguintes hipóteses:
1. Após celebrado determinado contrato administrativo, que previa a importação
de bens, a própria Administração contratante, por meio de medida genérica,
dificulta a importação desses mesmos bens, ou eleva as alíquotas incidentes
309
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
310
sobre eles. nesses casos, teríamos atitudes genéricas da Administração que
afetam o equilíbrio do contrato;
2. o contratado vê-se impedido de executar o contrato em decorrência de atos da
administração diretamente relacionados ao objeto da avença. exemplo: após a
celebração do contrato para a execução de obra, o contratado descobre que os
terrenos onde elas deveriam ser executadas ainda não foram desapropriados.
tanto na hipótese da não efetivação da desapropriação, quanto nos casos de
elevação de alíquotas de impostos, ou criação de dificuldades outras para importação
de bens, estaremos diante de situações criadas pela Administração e que irão afetar
a execução do contrato. A elevação das alíquotas de importação é decorrente de ato
genérico praticado pela Administração que, porém, irá afetar o contrato. A ausência de
desapropriação decorre de ato (omissão) da Administração diretamente relacionado à
execução do contrato, e impeditivo da sua execução.
temos, assim, que tanto o fato da administração quanto o fato do príncipe são
atribuídos à própria Administração contratante; o fato da administração, porém, é atitude
da Administração que irá afetar diretamente a execução do contrato, enquanto o fato
do príncipe decorre de atos genéricos e abstratos da Administração Pública igualmente
capazes de afetar o equilíbrio do contrato.
tanto na eventualidade de ocorrer o fato do príncipe, quanto na hipótese de fato
da administração, deverá promover-se, por acordo das partes, a modificação do contrato. isso não implica, é evidente, que sempre tenha de ser alterado o valor do contrato.
Eventualmente, essa modificação poderá acarretar maior gravame para o contratado, de
modo que deverá promover-se o seu reequilíbrio econômico-financeiro. É possível que
sejam afetados apenas os prazos de execução do contrato, sem que isso afete a relação
econômico-financeira contratual.
A conclusão, válida tanto para o fato do príncipe quanto para o fato da administração, é que sempre que a Administração afetar direta ou indiretamente o equilíbrio do
contrato, deverão ser adotadas as medidas necessárias para restabelecê-lo, nos termos
do art. 58, §2º, da Lei nº 8.666/93.77
6.12.6 Caso fortuito, força maior e teoria da imprevisão
Verificados os fatos justificadores da aplicação da teoria da imprevisão, será promovida a pura e simples recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
O objetivo da teoria da imprevisão é restabelecer o equilíbrio financeiro inicialmente
existente entre as partes, e é realizado pela alteração do valor do contrato. diante da
ocorrência de caso fortuito ou de força maior o contrato pode ser afetado em diversos
e diferentes aspectos. Poderá ser promovida, por exemplo, a prorrogação da vigência
do contrato ou alteração do objeto a ser executado.
A fim de melhor entender essas distinções, podemos imaginar as seguintes
hipóteses:
77
A respeito da teoria da imprevisão (e fato do príncipe) e rompimento da equação econômico-financeira do
contrato, ver julgados do stJ: rms nº 15.154-Pe, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 19.11.2002. DJ, 02 dez. 2002;
REsp nº 169.274-SP, 2ª Turma. Rel. Min. Franciulli Netto. Julg. 11.6.2002. DJ, 23 jun. 2003; e resp nº 612.123-sP, 1ª
turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 8.3.2005. DJ, 29 ago. 2005.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
1. Celebrado o contrato para execução de obra que estava prevista para ser iniciada
em certa data, verifica-se greve dos trabalhadores da construção civil, de modo que
não é possível iniciar (e, provavelmente, concluir) o contrato no prazo ajustado;
2. Celebrado contrato de fornecimento de produtos importados, o valor do real
sofre súbita, inesperada e profunda desvalorização.
na primeira hipótese, teremos a ocorrência de força maior que, nos termos do
art. 65, ii, “d”, combinado com o art. 57, §1º, ii, todos da Lei nº 8.666/93, irá provocar
a alteração apenas dos prazos de início e conclusão da obra. na segunda hipótese,
bastará que se recomponha o equilíbrio econômico-financeiro do contrato para que se
possa executá-lo. no primeiro caso, estamos diante de força maior; no segundo caso,
da teoria da imprevisão.
observamos, porém, que na prática essas distinções entre teoria da imprevisão,
fato do príncipe e da Administração, caso fortuito e força maior deixam de ser tão relevantes em face de três aspectos:
1. em todos esses casos, a alteração do contrato irá depender de acordo das partes;
2. o fundamento legal para que se promova essa alteração contratual — em qualquer dos casos indicados — será o art. 65, ii, “d”, da Lei nº 8.666/93; e
3. toda e qualquer alteração contratual, seja ela unilateral ou consensual, pressupõe a necessária justificação.
6.13 Formalização do contrato-regra
A formalização78 dos contratos administrativos é disciplinada pelo art. 60 da Lei
nº 8.666/93, que dispõe nos seguintes termos:
Art. 60. os contratos e seus aditamentos serão lavrados nas repartições interessadas, as
quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu
extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento
lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem.
Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo
o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não
superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea a desta
Lei, feitas em regime de adiantamento.
A lei indica, como regra a ser observada, a forma escrita, declarando que será
nulo o contrato administrativo verbal — salvo exceções.79 Além disso, determina que o
78
79
Acerca do dever de formalização de seus contratos, vide trecho do voto proferido pelo tCu por ocasião do julgamento do Processo nº 250.600/1996-0:
“d) concernente à área de Contratos:
d1) ausência de arquivo cronológico de contratos, falta de publicação de extratos no Diário Oficial da União,
formalização indevida de contratos, ausência de cláusulas necessárias, em desobediência ao Capítulo iii, da Lei
nº 8.666/93;
d2) no que respeita ao contrato firmado com a empresa Cardápio S/C Ltda. (Cheque Cardápio), em 27.03.95,
a ausência de formalização de contrato administrativo, lavrado na entidade, bem como outros aspectos como
o aceite de cláusulas privadas tais como previsão de casos de aplicabilidade de multas e juros ao CrC/BA, e a
fixação cláusula que permite a renovação automática do contrato, em não havendo manifestação contrária das
partes interessadas.” (tCu. decisão nº 123/99, 2ª Câmara. DOU, 14 jun. 1999)
nessa mesma linha, vide ainda acórdãos tCu nº 584/97, 1ª Câmara (DOU, 12 dez. 1997); nº 593/97, 1ª Câmara
(DOU, 12 dez. 1997); e decisões nº 820/97, Plenário (DOU, 12 dez. 1997) e nº 372/96, 2ª Câmara. (DOU, 23 out. 1996).
stJ. resp nº 545.471-Pr, 1ª turma. rel. min. denise Arruda. Julg. 23.8.2005. DJ, 19 set. 2005.
311
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
312
contrato seja formalizado por escrito nas repartições interessadas. em relação aos contratos
relativos a direitos reais sobre imóveis, a lei impõe a adoção do instrumento público
ao dispor na parte final do caput do art. 60 que eles “se formalizam por instrumento
lavrado em cartório de notas”.
em caráter excepcional, o parágrafo único do art. 60 admite para pequenas compras “de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23,
inciso ii, alínea ‘a’, feitas em regime de aditamento”, valor que equivale a r$4.000,00,
a forma verbal.80
outra observação importante, ainda em relação à possibilidade de ser adotada
a forma verbal, diz respeito ao fato de que a lei apenas dispensa a forma escrita, não
havendo qualquer impedimento à sua adoção. nada impede que o administrador,
querendo, adote essa forma ainda que se trate de compra de pequeno valor.
A regra do art. 60, que impõe a formalização dos contratos administrativos, no
entanto, deve ser examinada em confronto com o art. 62, caput, que dispõe nos seguintes
termos:
Art. 62. o instrumento de contrato é obrigatório nos casos de concorrência e de tomada de
preços, bem como nas dispensas e inexigibilidades cujos preços estejam compreendidos
nos limites destas duas modalidades de licitação, e facultativo nos demais em que a
Administração puder substituí-lo por outros instrumentos hábeis, tais como carta-contrato,
nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço.
Seguindo sempre os abalizados ensinamentos de Marçal Justen Filho, verificamos que o autor distingue entre “termo” e “instrumento” do contrato. essa distinção
apresenta-se importante porque o art. 60 determina que todos os contratos (exceto
as compras de pequeno valor) deverão seguir a forma escrita, sendo nulo o contrato
verbal. o art. 62, no entanto, determina que o “instrumento do contrato é obrigatório
nos casos de concorrência ou tomada de preços, bem como nas dispensas e inexigibilidades cujos preços estejam compreendidos nos limites destas duas modalidades de
licitação” (compras e serviços acima de r$80.000,00; e obras e serviços de engenharia
acima de r$150.000,00).
A conclusão a que se deve chegar é no sentido de que sempre deverá existir algum
documento escrito — tais como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de
compra ou ordem de execução de serviço —, mas o instrumento do contrato, que deverá
conter os requisitos contidos no art. 55 (vide Capítulo 5), somente será obrigatório para
aqueles cujos valores sejam superiores aos indicados no parágrafo anterior.
no caso de compra com entrega imediata e integral dos bens adquiridos, dos quais
não resultem obrigações futuras,81 inclusive assistência técnica, o §4º desse mesmo art. 62
80
81
É importante observar que a possibilidade de ser adotada a forma verbal em contratos administrativos não irá
legitimar a realização de pagamentos retroativos (nesse sentido, vide decisões tCu nº 233/96, 1ª Câmara (DOU,
29 out. 1996); e nº 161/97, Plenário (DOU, 22 abr. 1997).
Acerca da correta interpretação que deve ser dada ao presente dispositivo legal, transcrevemos, a seguir, trecho
do relatório proferido pelo tCu por ocasião do julgamento do Processo nº 400.080/1997-4:
“34. Por último, no que tange à ausência de instrumento de contrato referente à aquisição de vale-transporte (alínea
‘p’ do primeiro parágrafo), a responsável julga estar amparada pelo parágrafo 4º do artigo 62 da Lei nº 8.666/93, já
que os vales são entregues no valor exato e integral a cada mês, não resultando em obrigações futuras (fl. 469).
35. o citado parágrafo 4º dita o seguinte:
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
dispensa o instrumento do contrato e faculta a substituição prevista neste artigo, a critério
da Administração, independentemente de seu valor. Verifica-se que a lei procura tratar essas
compras de maneira bastante informal, buscando aproximar-se dos contratos celebrados no
direito Privado. o termo do contrato somente poderá ser dispensado nas compras, independentemente do valor, se houver a pronta entrega dos bens, e não resultarem quaisquer
obrigações futuras. É importante observar que a aplicação dessa regra não libera o vendedor
do dever de responder por defeitos que o produto venha a apresentar, assim como igualmente
não o libera da garantia do fabricante.
Acerca da responsabilidade do fornecedor, cumpre observar o que dispõe o art. 69,
in verbis:
Art. 69. o contratado é obrigado a reparar, corrigir, remover, reconstruir ou substituir,
às suas expensas, no total ou em parte, o objeto do contrato em que se verificarem vícios,
defeitos ou incorreções resultantes da execução ou de materiais empregados.
nesses termos, a contratação de pequena obra (no valor de r$20.000,00, por exemplo) deverá ser formalizada por escrito, por meio de carta-contrato, nota de empenho de
despesa etc., mas não será obrigatória a adoção do instrumento do contrato, que poderá
ser utilizado somente se o administrador assim o desejar.
Verifica-se que a lei impõe a forma escrita aos contratos administrativos, ainda que
para tanto sejam utilizados instrumentos que normalmente teriam outra finalidade (a
nota empenho objetiva permitir o controle prévio das despesas a serem realizadas, nos
termos da Lei nº 4.320/64, assim como a autorização de compra e a ordem de execução
de serviço têm o objetivo de autorizar a realização de alguma atividade).
6.14 execução dos contratos
A Administração Pública possui uma série de prerrogativas em face do contratado.
Pode, de modo unilateral, modificar o contrato, rescindi-lo, fiscalizar sua execução,
aplicar multas ao contratado etc. essas prerrogativas não irão, no entanto, permitir que
a Administração descumpra as cláusulas do contrato. A possibilidade de modificação
unilateral do contrato não pode ser utilizada como “carta-branca” para a violação do
que foi pactuado. Caso a Administração não pretenda ou não possa cumprir o que foi
‘§4º É dispensável o “termo contrato” e facultada a substituição prevista neste artigo, a critério da Administração
independentemente de seu valor, nos casos de compra com entrega imediata e integral dos bens adquiridos, dos
quais não resultem obrigações futuras, inclusive assistência técnica.’
36. Chamamos a atenção que a aplicação do referido dispositivo legal é para os casos de compra com entrega
imediata e integral, o que não ocorreu no presente caso, tendo em vista que a aquisição se deu em lotes mensais.
37. Portanto, a nosso ver, as alegações apresentadas não elidem os fundamentos da impugnação, porquanto não foi
formalizado o contrato escrito, nos termos do artigo 62, caput, da Lei nº 8.666/93, não obstante se tratar de despesa
cujo preço está compreendido nos limites da tomada de preços, devendo ser objeto de determinação a respeito.
38. em razão de a responsável ter praticado atos de gestão ilegítimos que infringiram o art. 37, inciso XXi, da Constituição Federal (parágrafos 20, 24, 28, 31 e 33 desta instrução); o artigo 2º, caput, da Lei nº 8.666/93 (parágrafos 20, 24,
28, 31 e 33); o artigo 26, caput, da Lei nº 8.666/93 (parágrafo 33); o artigo 57, inciso ii, da Lei nº 8.666/93 (parágrafo 13);
o artigo 62, caput, da Lei nº 8.666/93 (parágrafo 37); o artigo 65, §§2º e 6º, da Lei nº 8.666/93 (parágrafo 26); o artigo 66
c/c o artigo 116 da Lei nº 8.666/93 (parágrafo 11); o artigo 8º, caput, da Lei nº 8.443/92 (parágrafo 9); o artigo 10, §6º,
do decreto-Lei nº 200/67 (parágrafo 7 e 9); o artigo 22, §6º, da in/stn nº 2/93 (parágrafo 9); e o artigo 31, caput, da
in/stn nº 1/97 (parágrafo 5), entendemos que cabe a aplicação de multa nos termos do artigo 43, parágrafo único,
da Lei nº 8.443/92.” (tCu. Acórdão nº 390/99, 1ª Câmara. DOU, 18 nov. 1999)
313
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
314
acordado, deve promover as alterações do contrato, respeitando-se, sempre, os parâmetros
legais, ou, eventualmente, promover a própria rescisão do contrato.
o art. 66 da Lei nº 8.666/93 estabelece a regra segundo a qual o contrato gera
obrigações tanto para o contratado como para a Administração contratante e, em sua
parte final, dispõe que o contrato deverá prever as “conseqüências de sua inexecução
total ou parcial”.
remete-nos o dispositivo, portanto, ao art. 77 da Lei de Licitações que determina
que “a inexecução total ou parcial do contrato enseja a sua rescisão, com as conseqüências contratuais e as previstas em lei ou regulamento”.
A regra constante do artigo acima mencionado deve ser interpretada com certo
cuidado pelo administrador. nem sempre a inexecução, sobretudo a parcial, irá determinar a rescisão do contrato. Cabe ao administrador, examinando caso a caso, verificar se
a inexecução irá justificar a rescisão do contrato, ou, conforme as peculiaridades de cada
caso, a simples aplicação de penalidades, o que independerá da rescisão do contrato.
seria o caso, por exemplo, de ser feita advertência ou aplicada multa ao contratado,
sanções consideradas mais leves, nos termos do art. 87 da Lei nº 8.666/93.
em relação à responsabilidade civil do contratado,82 a Lei de Licitações (art. 70)
determina, expressamente, que o contratado deverá responder pelos prejuízos que
venha a causar tanto à Administração quanto a terceiros. determina o citado art. 70
que “o contratado é responsável pelos danos causados diretamente à Administração ou
a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo na execução do contrato, não excluindo
ou reduzindo essa responsabilidade a fiscalização ou o acompanhamento pelo órgão
interessado”.
não apenas o contratado, mas a própria Administração contratante, poderá ser
responsabilizada com o propósito de ressarcir perdas e danos que tenha provocado ao
contratado.
Há entendimentos doutrinários no sentido de que apenas a responsabilidade
civil do contratado dependeria da comprovação de sua culpa, sendo a responsabilidade civil
da Administração Pública objetiva.83 discordamos dessa orientação.
efetivamente, a Constituição Federal, em seu art. 37, §6º, determina que a responsabilidade do estado perante os particulares é objetiva (independente, portanto, da
comprovação de culpa). esse dispositivo trata, porém, da responsabilidade extracontratual do estado. em caso de acidentes envolvendo veículos da Administração Pública e
de particulares, por exemplo, em que não há qualquer vínculo contratual entre o estado
e o particular, aplica-se a regra constitucional.84
82
83
84
A Constituição Federal, em seu art. 37, §5º, determina serem imprescritíveis as ações que visem ao ressarcimento
de prejuízos causados à Administração Pública.
Cf. Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos.
sobre a responsabilidade civil de sociedade de economia mista prestadora de serviço público concedido, stJ:
“Processual Civil. Competência de Órgão Julgador Fracionário. Questão de ordem. sociedade de economia
mista. responsabilidade Civil. Constituição Federal, artigos 37, §6º, 109, i, e 173, §1º. emenda Constitucional
nº 1/69 (art. 107). decreto-Lei nº 200/67, artigo 4º. ristJ (arts. 8º e 9º, §1º, viii, e §2º, iii). 1. A sociedade de economia mista, sob o talhe de contrato administrativo, executando serviço público concedido, apesar de submeter-se
ao princípio da responsabilidade objetiva, quanto aos danos causados por seus agentes à esfera jurídica dos particulares, no caso concreto, sujeita-se às obrigações decorrentes de responsabilidade civil. Andante, ainda que
exerça atividade concedida pelo estado, responde em nome próprio pelos seus atos, devendo reparar os danos
ou lesões causadas a terceiros. de efeito, a existência da concessão feita pelo estado, por si, não o aprisiona diretamente nas obrigações de direito privado, uma vez que a atividade cedida é desempenhada livremente e sob a
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
A regra do art. 37, §6º, da Constituição Federal não se aplica aos contratos
administrativos. nestes casos, a responsabilidade da Administração decorre do descumprimento de cláusula do contrato, e não da regra constitucional acima citada.
em relação à responsabilidade administrativa, em matéria contratual, é importante
observar que apenas o contratado estará sujeito aos seus efeitos. em caso de inexecução do contrato pelo contratado, sujeita-se ele à aplicação das sanções administrativas
previstas no art. 87, podendo ser, por exemplo, multado.
não cabe, no entanto, aplicar multa ou qualquer outra sanção de natureza administrativa à Administração. essa hipótese — de sancionar administrativamente a própria
Administração Pública — não encontra previsão legal, não podendo o contrato administrativo, portanto, prevê-la.
no caso de atraso de pagamentos a serem efetuados pela Administração, cumpre
promover a sua atualização monetária, nos termos disciplinados pelo próprio contrato.
A única hipótese em que é cabível a aplicação de multa por atraso na execução
de pagamentos devidos por órgãos ou entidades da Administração Pública ocorre
quando a estes deixassem de efetuar pagamentos em favor de concessionárias de serviços públicos.85
neste tipo de contrato, ao usuário, seja ele pessoa física ou jurídica, de direto
Privado ou Público, não é dado discutir as condições da prestação do serviço. trata-se
de relação jurídica decorrente do contrato de consumo.86
Ademais, o que eventualmente pode ocorrer, hipótese que interessa apenas à
Administração Pública, é o cometimento de infração funcional por parte de agente
público. neste caso, o agente deverá responder civil, penal ou administrativamente,
nos termos do estatuto dos servidores públicos aplicável.
A última observação acerca das consequências da inexecução do contrato diz respeito à possibilidade das responsabilidades civil, penal e administrativa serem aplicadas
cumulativamente. em decorrência da conduta do contratado, ele pode ser chamado a
ressarcir prejuízos que sua conduta tenha causado à Administração, pode ele sofrer a
aplicação das sanções disciplinadas no art. 87 (advertência, multa etc.) da Lei de Licitações e, se essa conduta enquadrar-se em alguma das hipóteses descritas em lei como
crime, ele deverá ainda responder penalmente.
85
86
responsabilidade da empresa concessionária. Ordenadas as idéias, em razão da matéria, finca-se a competência
da segunda seção para o processamento e julgamento dos recursos decorrentes” (Qo no resp nº 287.599-to,
Corte especial. rel. min. Humberto Gomes de Barros. rel. p/ acórdão min. milton Luiz Pereira. Julg. 26.9.2002.
DJ, 09 jun. 2003).
em face às particularidades relacionadas aos contratos celebrados pela Administração na qualidade de usuária
de serviços públicos, o tribunal de Contas da união por meio da decisão nº 686/99, Plenário (DOU, 08 nov.
1999), respondeu a consulta formulada pelo tribunal superior eleitoral no sentido de que “é cabível a cobrança
de multa moratória, pelas concessionárias de serviços públicos, sejam elas privadas ou integrantes da Administração Pública, em desfavor dos órgãos e entidades públicos, por atraso no pagamento”.
Convém observar que mesmo em relação a esses contratos — celebrados entre concessionárias de serviço público
e a Administração Pública na qualidade de usuária —, deverão ser observadas as regras pertinentes à formalização dos contratos administrativos, à possibilidade de serem eles declarados nulos pela administração, além
de deverem conter, dentre outras, as cláusulas exorbitantes (art. 58), ante o que dispõe o art. 62, §3º, da Lei
nº 8.666/93, in verbis:
“Art. 62. (...)
§3º Aplica-se o disposto nos arts. 55 e 58 a 61 desta Lei e demais normas gerais, no que couber: (...)
ii - aos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público.”
315
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
316
6.15 recebimento do objeto do contrato
em relação aos contratos celebrados entre particulares, e aqui podemos utilizar a
compra e venda como exemplo, uma vez entregue a coisa, ou seja, realizada a tradição,
presume-se que o vendedor cumpriu todas as suas obrigações, considerando-se este
liberado de qualquer outra obrigação.
Para os contratos administrativos, foi estabelecida regra própria, aplicável não
apenas às compras celebradas pela Administração Pública, mas também às obras, serviços e locações de equipamentos.
A questão do recebimento da prestação executada pelo contratado foi tratada
pelo art. 73, que dispõe nos seguintes termos:
Art. 73. executado o contrato, o seu objeto será recebido:
i - em se tratando de obras e serviços:
a) provisoriamente, pelo responsável por seu acompanhamento e fiscalização, mediante
termo circunstanciado, assinado pelas partes em até 15 (quinze) dias da comunicação
escrita do contratado;
b) definitivamente, por servidor ou comissão designada pela autoridade competente,
mediante termo circunstanciado, assinado pelas partes, após o decurso do prazo de
observação, ou vistoria que comprove a adequação do objeto aos termos contratuais,
observado o disposto no art. 69 desta Lei;
ii - em se tratando de compras ou de locação de equipamentos:
a) provisoriamente, para efeito de posterior verificação da conformidade do material com
a especificação;
b) definitivamente, após a verificação da qualidade e quantidade do material e conseqüente
aceitação.
A lei estabeleceu, em primeiro lugar, a distinção entre recebimento provisório87
e recebimento definitivo do objeto do contrato. O recebimento provisório implicaria a
simples transferência da posse do bem ou equipamento e não tem o poder de liberar o
contratado das obrigações assumidas.
nesse aspecto, o contrato administrativo, mais uma vez, distingue-se do contrato
de direito privado. nestes contratos (de direito privado), recebido o bem pelo comprador, caberá a este o ônus da prova de qualquer defeito ou impropriedade que venha a
ser verificada na coisa comprada.88
em seguida ao recebimento provisório da obra ou serviço, a autoridade competente dentro de cada órgão irá designar servidor ou comissão para, “mediante, termo
circunstanciado, assinado pelas partes, após o decurso do prazo de observação, ou
vistoria que comprove a adequação do objeto aos termos contratuais, observado o
disposto no art. 69 desta Lei”, atestar o seu recebimento definitivo.
87
88
existem situações em que a Lei nº 8.666/93 dispensa o recebimento provisório (art. 74). essa dispensa tanto poderá
decorrer de peculiaridades relacionadas à própria natureza do objeto do contrato (gêneros perecíveis, alimentação
preparada e serviços profissionais), como poderá também decorrer do valor do contrato (obras e serviços de valor
inferior ao previsto no art. 23, inciso ii, alínea “a”, da Lei nº 8.666/93) — equivalente a r$80.000,00 —, desde que
não se componham de aparelhos, equipamentos e instalações sujeitos à verificação de funcionamento e produtividade. nessas hipóteses, o recebimento será feito mediante recibo, conforme determina o parágrafo único do art. 74.
observamos que essa regra não é aplicável aos contratos regidos pelo Código de defesa do Consumidor, que
estabelece como um de seus princípios que o ônus da prova de qualquer vício de qualidade ou de quantidade
que o produto ou serviço apresentem será do fornecedor, e não do consumidor.
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
O recebimento definitivo tem o objetivo de atestar que o contratado cumpriu as
obrigações assumidas no contrato. no entanto, ainda que este já tenha sido atestado,
caso venha a ser verificado qualquer vício na obra ou serviço, bens ou equipamentos,
o contratado pode ser chamado a responder.89
essa regra deve ser examinada em conjunto com o disposto no art. 69, que impõe
ao contratado, em qualquer modalidade de contrato, e não apenas em relação às obras
e serviços, o dever de reparar, corrigir, remover etc. quaisquer vícios decorrentes da
execução do contrato. Ou seja, mesmo a Administração tendo fiscalizado e acompanhado a execução do contrato, mesmo o objeto do contrato tendo sido recebido pela
Administração, tanto provisória quanto definitivamente, verificando-se vícios, defeitos
ou incorreções, por eles será o contratado obrigado a responder, conforme dispõem os
artigos 69, 70 e 73, §2º, todos da Lei de Licitações.
o art. 69 determina, expressamente, que “o contratado é obrigado a reparar,
corrigir, remover, reconstruir ou substituir, às suas expensas, no total ou em parte, o
objeto do contrato em que se verificarem vícios, defeitos ou incorreções resultantes da
execução ou de materiais empregados”.
6.16 extinção do contrato
A extinção do contrato administrativo pode decorrer de diferentes causas: conclusão de seu objeto, término do seu prazo, ou ainda pela sua anulação e rescisão.
A extinção do contrato pela conclusão ou execução de seu objeto é a regra e ocorre
de pleno direito quando as partes cumprem integralmente todas as cláusulas do ajuste.
essa reciprocidade de cumprimento de prestações, desde que feita de acordo com as
cláusulas pactuadas, extingue o contrato, fazendo cessar os encargos do ajuste. nesse
ponto, cumpre observar que mesmo após a extinção do contrato em decorrência do
cumprimento integral das obrigações por ambas as partes, se se verificar algum vício
ou defeito no objeto executado, o contratado é obrigado a responder. ou seja, mesmo
após a extinção do contrato, o contratado continua responsável pelo que foi executado.90
A definição do momento em que se considera executado o contrato é relevante
haja vista o art. 56, em seu §4º, determinar que “a garantia prestada será liberada ou
restituída após a execução do contrato, e, quando em dinheiro, atualizada monetariamente”. Ademais, somente será possível a celebração de aditivos se o contrato ainda se
encontrar em vigência. Admitida a sua extinção, seja qual for o fundamento, não será
mais cabível a celebração de qualquer tipo de aditivo. A fim de que possamos melhor
entender as implicações dessa discussão, imaginemos que a Administração tenha
adquirido determinado produto em que foi exigida a prestação de garantia de fábrica
de dois anos. em que momento considera-se executado o contrato, tão logo o produto
89
90
A Lei nº 8.666/93, em seu art. 73, §2º, dispõe, in verbis:
“Art. 73. (...)
§2º O recebimento provisório ou definitivo não exclui a responsabilidade civil pela solidez e segurança da obra
ou do serviço, nem ético-profissional pela perfeita execução do contrato, dentro dos limites estabelecidos pela
lei ou pelo contrato.”
dispõe o art. 69 da Lei nº 8.666/93 nos seguintes termos:
“Art. 69. o contratado é obrigado a reparar, corrigir, remover, reconstruir ou substituir, às suas expensas, no
total ou em parte, o objeto do contrato em que se verificarem vícios, defeitos ou incorreções resultantes da execução ou de materiais empregados.”
317
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
318
seja considerado recebido definitivamente91 ou somente após a expiração da garantia
de fábrica? Admitir que o contrato vige enquanto vigorar a garantia de fábrica implica
aceitar que durante esta a Administração poderá, por exemplo, proceder às alterações
unilaterais previstas no art. 65, i e §1º.
entendemos que se o fornecimento de bens (produtos, equipamento etc.) que
implicarem algum tipo de assistência técnica, treinamento de pessoal, ou seja, se o
fornecimento de bens implicar a prestação de serviços, somente após a expiração do
prazo dentro do qual referidos serviços devam ser prestados será considerado extinto
o contrato. do contrário, se após o fornecimento do bem a única exigência imposta for
a garantia de fábrica, tão logo seja atestado o seu recebimento definitivo, nos termos
do art. 73 da Lei nº 8.666/93 e efetuado o pagamento pela Administração, considera-se
executado o contrato, devendo, em consequência, ser liberada a garantia do contratado
prestada nos termos do art. 56 da própria Lei de Licitações e já não será admitida
qualquer outra alteração, seja ela consensual ou unilateral. A manutenção da garantia
de fábrica não gera para o contratado qualquer tipo de obrigação, seja de fazer, seja de
deixar de fazer coisa alguma. não se quer com isso dizer que o contratado pela Administração não tenha, juntamente com o fabricante, o dever de reparar, corrigir, substituir
etc. o bem que venha a apresentar vício durante o prazo de garantia. Para justificar a
responsabilidade do contratado — fornecedor —, e não apenas a do fabricante, pela
correção do vício que venha a se verificar durante o prazo de garantia, socorremo-nos
não do Código de defesa do Consumidor, que entendemos ser inaplicável aos contratos administrativos, mas da própria Lei de Licitações que determina, em seu art. 69,
que “o contratado é obrigado a reparar, corrigir, remover, reconstruir ou substituir, às
suas expensas, no total ou em parte, o objeto do contrato em que se verificarem vícios,
defeitos ou incorreções resultantes da execução ou de materiais empregados”.
A situação dos fornecedores de bens, no que se relaciona à garantia de fábrica,
equipara-se à dos empreiteiros responsáveis por construções. nesse caso, tão logo
concluída a obra, o que se verifica com o seu recebimento definitivo, deverá a garantia
acaso prestada ser liberada. entendemos ser idêntico o raciocínio que deva ser realizado
em relação ao fornecimento de bens. ou seja, ainda que o contrato já se tenha exaurido,
mantém o contratado responsabilidade de corrigir eventuais vícios que se verifiquem
no objeto fornecido.
outra hipótese de extinção do contrato ocorre com a expiração de seu prazo de
vigência. A Lei nº 8.666/93, em seu art. 57, §3º, veda a celebração de contrato com prazo
de vigência indeterminado. Ademais, o caput do art. 57 fixa a regra em matéria de vigência de contrato, in verbis: “a duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita
à vigência dos respectivos créditos orçamentários”. somente nas hipóteses indicadas
nos incisos do art. 57 poderão ser celebrados contratos com prazos superiores ao do
exercício financeiro. Nesses termos, expirado o prazo de vigência do contrato, caso não
ocorra a sua renovação, ocorrerá a sua extinção.92
91
92
Vide art. 73, Lei nº 8.666/93.
nesse sentido, segue determinação do tCu, mediante o Acórdão nº 1.727/04, Plenário (DOU, 17 nov. 2004):
“9.1 determinar à Agência nacional de telecomunicações – Anatel que nas prorrogações contratuais promova a
assinatura dos respectivos termos de aditamento até o término da vigência contratual, uma vez que, transposta
a data final de sua vigência, o contrato é considerado extinto, não sendo juridicamente cabível a prorrogação ou
a continuidade da execução do mesmo.”
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
Verifica-se igualmente a extinção do contrato nas hipóteses de rescisão, indicadas
nos artigos 78 e 79 da Lei nº 8.666/93.
o art. 79 indica a existência de três diferentes categorias de rescisão:
- unilateral (administrativa);
- Amigável; e
- Judicial.
Adotamos, nesse ponto, a orientação do professor marçal Justen Filho,93 cuja
leitura é sempre recomendada. entende o ilustre professor que o contrato não pode
prever outras hipóteses de rescisão além daquelas expressamente indicadas na lei.
Assim, tanto os casos de rescisão, quanto as consequências decorrentes da rescisão são
indicados em lei (artigos 78, 79 e 80), podendo o contrato apenas melhor especificar as
hipóteses de rescisão e suas consequências.
inicialmente, acerca da rescisão unilateral, devemos observar que esta constitui
uma das prerrogativas da Administração Pública. A rescisão unilateral pode decorrer
tanto por inadimplência do contratado quanto por interesse público. em qualquer
dos casos, exige-se da Administração a justa motivação da situação que irá resultar na
rescisão do contrato.94
A rescisão amigável do contrato administrativo ocorrerá sempre que o interesse
do particular for coincidente com o interesse público no sentido de ser rescindido o
contrato por mútuo consentimento da Administração contratante, assim como do
contratado. não basta a manifestação do contratado visando à obtenção da rescisão
do contrato para que este se desfaça. É necessário que o administrador bem justifique
a conveniência dessa rescisão em face do interesse público que, como já afirmamos em
diversas oportunidades, é indisponível.
Finalmente, nas hipóteses previstas nos incisos Xiii a Xvi do art. 78 da Lei de
Licitações, verifica-se que é a própria Administração a responsável pelo surgimento
de situação que irá impelir o contratado a propor ação judicial tendente a que seja
decretada a extinção do contrato. são as seguintes as hipóteses de rescisão por culpa
da Administração:
- A supressão, por parte da Administração, de obras, serviços ou compras, acarretando modificação do valor inicial do contrato além do limite permitido no
§1º do art. 65 desta lei;
- A suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração por prazo
superior a 120 dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação
da ordem interna ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem o
mesmo prazo, independentemente do pagamento obrigatório de indenizações
pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de
optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas até que seja
normalizada a situação;
- o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou
93
94
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos.
súmula tCu nº 205: “É inadmissível, em princípio, a inclusão, nos contratos administrativos, de cláusula que
preveja, para o Poder Público, multa ou indenização, em caso de rescisão”.
319
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
320
executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem
interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão
do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação; e
- A não liberação, por parte da Administração, de área, local ou objeto para
execução de obra, serviço ou fornecimento, nos prazos contratuais, bem como
das fontes de materiais naturais especificadas no projeto.
Ao se analisar o disposto no art. 78, observa-se que os incisos i a Xii e Xvii e Xviii
atuam no sentido de garantir o cumprimento das obrigações assumidas pela contratada,
dotando a Administração de instrumentos que possibilitem rescindir o respectivo contrato no interesse público.95 Já os incisos Xiii a Xvi, ao contrário, objetivam defender o
particular contra possível abuso de poder por parte do poder público.
entendemos que, nessas hipóteses, se houver concordância da própria Administração, poderá o contrato ser desfeito por acordo entre as partes. do contrário, não
havendo o interesse da Administração em que seja promovida a rescisão, a única solução que resta ao contratado será a propositura de ação judicial a fim de ser decretada
a rescisão do ajuste.
nas hipóteses previstas nos incisos Xiv e Xv do art. 78, que cuidam da suspensão da execução do objeto do contrato determinada pela Administração e de suspensão
dos pagamentos devidos pela Administração, o contratado poderá, após o decurso dos
prazos legais indicados, optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até
que seja normalizada a situação do contrato. Assim sendo, o pedido do contratado de
suspensão de suas obrigações independe da anuência da Administração e deve ser
formalizado perante a própria Administração. Já o pedido de rescisão, se não houver
a anuência da Administração, depende do julgamento da ação judicial proposta com
esta finalidade.
neste ponto, cumpre distinguir entre a suspensão da execução do contrato
prevista no inciso Xiv em face do disposto no inciso Xv, ambos constantes do art. 78
da Lei nº 8.666/93, haja vista serem distintos os agentes interessados nestas diferentes
hipóteses de rescisão. na hipótese do inciso Xiv, é a Administração que tem interesse
de rescindir, posto ter sido ela quem determinou a suspensão da execução do contrato,
e, na hipótese do inciso Xv, é o particular ou contratado quem requer a rescisão. essa
distinção é relevante na medida em que o prolongamento de tal situação traz prejuízos
insuportáveis para o particular, porque é óbvio que só interessa ao particular a suspensão do contrato se com isso ele vislumbrar a possibilidade de ter maior segurança
acerca do pagamento das indenizações legais e contratuais a que faz jus, do que com a
simples rescisão do contrato, cuja regra está prescrita no art. 79, incisos ii e iii e parágrafos da Lei nº 8.666/93. mas, mesmo nesse caso, deve ponderar a Administração se
o custo de uma paralisação prolongada não excede o de uma rescisão, pois se exceder
95
sobre a obrigatoriedade ou não da rescisão de contrato quando houver fusão, incorporação ou cisão das empresas contratadas, vale trazer julgado do tCu:
“9.1 conhecer da presente consulta, nos termos do art. 1º, inciso Xvii da Lei nº 8.443/92, respondendo ao Presidente
da Câmara dos deputados que é possível a continuidade dos contratos celebrados com empresas que tenham
sofrido fusão, incorporação ou cisão desde que sejam cumpridos os seguintes requisitos, cumulativamente:
9.1.1 tal possibilidade esteja prevista no edital e no contrato, nos termos do art. 78, inciso vi da Lei nº 8.666/93;
9.1.2 sejam observados pela nova empresa os requisitos de habilitação estabelecidos no art. 27 da Lei nº 8.666/93,
originalmente previstos na licitação;
9.1.3 sejam mantidas as condições estabelecidas no contrato original.” (Acórdão nº 1.108/03, Plenário. DOU, 25
ago. 2003)
CAPítuLo 6
ContrAto AdministrAtivo
terá a obrigação de promover a rescisão, não só em respeito ao princípio da legalidade,
como em atendimento ao interesse público.
A legislação somente admite três hipóteses de rescisão: administrativa, amigável e judicial. Nesses termos, conforme afirmamos, não sendo hipótese de rescisão
administrativa, em que verificamos atuação vinculada, haja vista a lei indicar em que
hipóteses ela se verifica, e não havendo concordância da Administração, o que caracterizaria rescisão amigável, a única opção que sobra ao contratado, além da suspensão
do cumprimento de suas obrigações, será o ajuizamento de ação com vistas à obtenção
do desfazimento judicial do contrato.
outra hipótese que pode resultar na extinção do contrato é a anulação dos contratos
que se distingue da rescisão, porque esta pressupõe a validade do próprio contrato, assim
como a validade da própria licitação. somente parece-nos viável, portanto, a rescisão
de contrato que tenha sido celebrado com a observância de todos os procedimentos
legais, do contrário deverá ele ser anulado.
Ademais, a rescisão unilateral legitima os pagamentos até então efetuados com
base no contrato, ao passo que a declaração de nulidade, por operar retroativamente,
permite que seja questionada a totalidade dos pagamentos. essa distinção é importante
porque, ainda que em ambas as hipóteses o contratado tenha direito de ser ressarcido
por aquilo que tenha efetivamente executado, na rescisão, os parâmetros que irão nortear o quantum da indenização devem ser encontrados no próprio contrato, haja vista
seus efeitos permanecerem válidos. na hipótese de anulação, ao contrário, ainda que o
art. 59 determine que a Administração somente deva ressarcir prejuízos sofridos pelo
contratado se o vício que resultou na declaração de nulidade não lhe puder ser imputado, a Administração não estará, é evidente, desonerada da obrigação de indenizar
pelo que tenha sido efetivamente executado. essa indenização, no entanto, será obtida
de acordo com valores arbitrados pela Administração e não necessariamente deverão
ser respeitados os valores constantes no contrato, haja vista não se poder esperar efeito
válido de contrato nulo.
o fundamento para a anulação dos contratos administrativos encontra-se previsto
no art. 59 da Lei nº 8.666/93,96 que dispõe in verbis:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente
impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de
desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contrato
pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos
regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a
responsabilidade de quem lhe deu causa.
96
Acerca dos efeitos da anulação do contrato, vide acórdão do superior tribunal de Justiça: “Administrativo –
Contrato Administrativo – declaração de nulidade – efeitos – Compensação – Licitude – Pronunciamento
judicial – desnecessidade. i - A declaração de nulidade alcança todos os efeitos já produzidos pelo contrato,
desconstituindo-os (Lei 8.666/95, art. 59). ii - As disposições do direito privado aplicam-se, supletivamente,
aos contratos administrativos (Lei 8.444/95, art. 54). iii - se o estado é, a um só tempo, credor e devedor de
alguém, cumpre à Administração compensar-se, retendo o pagamento, na medida de seu credito. iv - A
compensação opera automaticamente, extinguindo as obrigações simétricas, independentemente de qualquer
pronunciamento judicial (C. Civil, art. 1009)” (stJ. ms nº 4.382-dF, 1ª seção. rel. min. Humberto Gomes de
Barros. Julg. 10.4.1996. DJ, 20 maio 1996).
321
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
322
A possibilidade de anulação do contrato administrativo encontra-se igualmente
prevista em diversos dispositivos da Lei nº 8.666/93, como são exemplos os artigos 7º,
§6º,97 e 49. este último dispositivo cuida, a rigor do dever do administrador de anular
atos relacionados ao procedimento licitatório. no entanto, sendo o contrato decorrente
da licitação, que é seu antecedente necessário, nula a licitação, nulo será o contrato que
dela decorreu. essa regra consta expressa no §2º do referido art. 49, que dispõe que
“a nulidade do procedimento licitatório induz à do contrato, ressalvado o disposto no
parágrafo único do art. 59 desta Lei”. Finalmente, é de observar que a prerrogativa da Administração de anular seus contratos pressupõe, nos termos do art. 49, §3º, da Lei nº 8.666/93,
o exercício do contraditório e da ampla defesa.
97
dispõe o referido dispositivo que “a infringência do disposto neste artigo implica a nulidade dos atos ou contratos realizados e a responsabilidade de quem lhes tenha dado causa”.
CAPítuLo 7
LiCitAção
7.1 Administração Pública e setor privado
A Administração Pública atua de forma totalmente distinta dos particulares. os
particulares estão livres para praticar qualquer ato ou desenvolver qualquer atividade,
desde que a lei não proíba. esta regra consta expressa na Constituição Federal que, em
seu art. 5º, ii, dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei”. A Administração Pública, ao contrário, sujeita-se ao
regime jurídico administrativo devendo observar os diversos princípios constitucionais,
dentre os quais destacamos o da legalidade e o da impessoalidade, que estão diretamente
ligados à existência do processo licitatório.
A importância assumida pelo princípio da legalidade em matéria de licitação
decorre do fato de que a Constituição Federal é expressa ao exigir que lei aprovada pela
união (art. 22, XXvii) estabeleça as normas gerais sobre o tema. Acerca da legislação
aplicável às licitações, remetemos o leitor ao capítulo anterior. nele apresentamos uma
série de considerações acerca da aplicação da Lei nº 8.666/93, inclusive no que concerne
às empresas estatais.
o princípio da impessoalidade é o próprio fundamento para a existência do procedimento licitatório. Caso a Administração Pública decida pela celebração de qualquer
contrato, ela deve proceder à abertura de procedimento licitatório com vista a assegurar
a todos os interessados que preencham os requisitos legais a oportunidade de apresentarem propostas e de serem escolhidos para o fornecimento de bens, prestação de
serviços, execução de obras etc. Faz-se a licitação, portanto, tendo em vista a celebração
do futuro contrato. Ela não se insere como atividade fim, mas como atividade meio
da Administração Pública: é a licitação a atividade por meio da qual a Administração
Pública escolhe a empresa com a qual celebrará o contrato.
A licitação é a regra. As hipóteses em que o administrador estará autorizado a
contratar diretamente, sem que tenha de proceder à realização de licitação, são exceções
e encontram-se expressamente mencionadas na Lei nº 8.666/93. A não realização da
licitação, sem que haja fundamento para essa contratação direta, implica o cometimento
de crime, nos termos do art. 89 da Lei nº 8.666/93.1
1
A Lei nº 8.666/93 dispõe nos seguintes termos:
“Art. 89. dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades
pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
324
7.2 Finalidades da licitação
o art. 3º da Lei nº 8.666/93 dispõe que “a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa
para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional, e será processada e
julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa,
da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são
correlatos” (redação dada pela Lei nº 12.439, de 15.12.2010).
o ponto de partida para o estudo da licitação reside no fato de que, diante da
possibilidade de haver no mercado diversos interessados em firmar contrato com a
Administração Pública, o procedimento licitatório objetiva indicar a proposta mais
vantajosa, aquela que servirá de parâmetro para a celebração do contrato.
Além da busca pela proposta mais vantajosa, a licitação deve realizar o princípio
da isonomia.2 É evidente que a Administração deverá buscar nas propostas apresentadas
pelos licitantes aquela que melhor realize seus interesses imediatos. Porém, a busca
deste fim, isto é, a busca de maiores vantagens, não autoriza a violação de garantias
individuais ou o tratamento mais favorecido a determinada empresa ou particular em
detrimento dos demais interessados em participar do processo.
A lei, ao afirmar que a licitação visa igualmente à realização do princípio da
isonomia, procura evitar tratamento discriminatório injustificado. Deve-se aqui ter
certo cuidado com a interpretação da vedação de tratamento discriminatório entre os
licitantes. não procura a lei impor formalismos exagerados ou que não possam ser
justificados pelas peculiaridades de determinado contrato. A esse respeito, importa
ressaltar os ensinamentos de marçal Justen Filho que em sua obra Comentários à lei de
licitações e contratos administrativos afirma que “a vedação à discriminação injustificada
não importa proibição de superar defeitos menores, irregularidades irrelevantes e
outros problemas encontradiços na atividade diária de seleção de propostas”. Afirma
ainda o autor que “não é cabível excluir propostas mais vantajosas ou potencialmente
satisfatórias apenas por apresentarem defeitos irrelevantes ou porque o ‘princípio da
isonomia’ imporia tratamento de extremo rigor”.3
A redação dada ao art. 3º da Lei nº 8.666/93 pela Lei nº 12.439/2010 acrescentou
uma nova destinação para a licitação, colocando-se agora a promoção do desenvolvimento nacional ao lado da garantia da observância do princípio da isonomia e da
seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.
2
3
Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação
da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público”.
Acerca do dever de ser observada, dentre outras regras, a isonomia entre os licitantes, vide stJ: “Administrativo.
mandado de segurança. Licitação. vinculação ao edital. Afastamento de Critério subjetivo na Apreciação de
recurso Administrativo. ilegalidade do Ato inabilitador de Concorrente. Constituição Federal. Arts. 5º, ii, 37 e
incs. XXi e Lv, 84, iii. Lei 6.404/76. Lei 8.666/93. Lei 8.883/94. Lei 8.987/95. súmula 473/stF. 1. Habilitação técnica
reconhecida pela via de critérios objetivos não pode ser derruída por afirmações de índole subjetiva, contrapondo-se às avaliações vinculadas às disposições editalícias. A legislação de regência louva os critérios objetivos e da
vinculação ao instrumento convocatório (§1º, art. 44, Lei 8.666/93; art. 14, Lei 8.987/95). 2. o processo licitatório
inadmitindo a discriminação, desacolhe ato afrontoso ao princípio da isonomia, numa clara proibição do abuso
de poder por fuga à vinculação ao edital. Ato, decorrente de expressas razões recursais, desconhecendo-as para
fincar-se em outras de caráter subjetivo, fere o princípio da legalidade. No caso não se compõe a discricionariedade sob os albores do interesse público, conveniência e oportunidade. 3. segurança concedida parcialmente” (ms
nº 5.289-dF, 1ª seção. rel. min. milton Luiz Pereira. Julg. 24.11.1997. DJ, 21 set. 1998).
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 57.
CAPítuLo 7
LiCitAção
Como se sabe, a licitação é atividade-meio que se desenvolve tendo em vista a
celebração de um futuro contrato. mesmo este não constitui um objetivo em si, representando, na verdade, apenas um instrumento em relação ao atendimento de alguma
necessidade da Administração.
Parece-nos, portanto, imprecisa a afirmação de que a licitação, por si mesma,
possa ter como destinação a “promoção do desenvolvimento nacional”, a menos que
se pretendesse fixar tal finalidade como motivo próprio e suficiente para a realização
do certame.4
uma vez que a alteração legislativa não tenha o propósito de autorizar que a
Administração realize licitações que tenham como única motivação o interesse em
promover o desenvolvimento nacional, contratando inclusive algo de que não necessite,
melhor seria ter-se dito que “a licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração
e para a promoção do desenvolvimento nacional”.
Apresentada dessa maneira, torna-se mais simples a compreensão da real extensão da nova destinação da licitação: uma vez que a Administração tenha a necessidade
de realizar uma contratação para suprir alguma necessidade, que a faça de forma5 que
promova também o desenvolvimento nacional.
Por reconhecer na alteração promovida no caput do art. 3º da Lei nº 8.666/93
potencial para influenciar diferentes aspectos e diversos procedimentos da licitação e
do contrato consequente, cremos que possa ser equiparada à instituição de um novo
“princípio da licitação”.
A experiência mostra, a esse respeito, que em assuntos relacionados a contratos
administrativos, despesas públicas e licitações, a interpretação do direito positivo é
marcantemente influenciada pela incidência de princípios constitucionais e do direito
administrativo, razão pela qual em muito contribuem para a sua compreensão e adequado tratamento as construções jurisprudenciais e doutrinárias.
sendo assim, não seria demais dizer que muitas das consequências da criação
dessa nova finalidade para a licitação somente poderão ser conhecidas mediante seu uso
rotineiro e prolongado pela Administração, na medida em que o esforço interpretativo
dos aplicadores do direito for dando solução às dificuldades que surgem cotidianamente.
deve-se desde já compreender, não obstante, que o novo preceito tem caráter
impositivo, instituindo para a Administração, como norma geral, o dever6 de buscar, em
todas as licitações que realizar, a promoção do desenvolvimento nacional, além das outras
finalidades originais do instituto.
4
5
6
Com o surgimento de uma necessidade da Administração Pública, tem-se o motivo para a realização da licitação.
A licitação é um instrumento usado para celebrar um contrato que atenderá essa necessidade. Ao atribuir uma
nova destinação à própria licitação, e não à execução do contrato destinado a atender essa necessidade, a Lei
nº 12.439/2010, pode aparentar ter rejeitado o caráter de exclusiva instrumentalidade da licitação em relação
a uma necessidade da administração, passando a admiti-la como instrumento voltado também à promoção
do desenvolvimento nacional, independentemente da existência da necessidade de algum bem ou serviço. o
interesse na promoção do desenvolvimento nacional passaria, assim, a constituir um motivo novo e autônomo
para a instauração do certame.
tal forma poderá, inclusive, trazer ônus maiores para a administração, observados certos limites, conforme se
verá mais adiante.
Adiante, no item dedicado à margem de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais, veremos que o
dever imposto pelo novo princípio será desincumbido de maneira diferente, conforme quem seja o ente licitante
e quais sejam suas competências legais, orgânicas ou constitucionais.
325
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
326
A determinação do alcance do novo princípio tornou-se, porém, matéria controvertida.
no âmbito do tribunal de Contas da união foi, em decorrência da discussão travada nos
autos do processo tC-002.481/2011-1, constituído grupo de trabalho com o objetivo de
analisar as repercussões geradas pela Lei nº 12.349/2010 no regime licitatório. investiga-se,
em especial, a possibilidade ou não de que, com fundamento na nova redação conferida
ao caput do art. 3º da Lei nº 8.666/93, os editais de licitação contenham a exigência de que
o produto a ser contratado seja de fabricação nacional.
não houve ainda manifestação conclusiva da Corte de Contas sobre a questão.
É possível, nada obstante, reunir argumentos para sugerir que a resposta à indagação
formulada acima seja em sentido positivo. Convém notar previamente, porém, que a
alteração legislativa não ficou restrita ao nível abstrato da criação de um novo princípio,
cuidando também de aspectos concretos de como o preceito poderá ser posto em prática.
Foram inseridos os parágrafos 5º ao 13 no art. 3º da Lei nº 8.666/93,7 que explicitam
medidas nesse sentido, em especial a instituição da margem de preferência para produtos
manufaturados e serviços nacionais, a qual será objeto de comentários no item 7.7.8.9.3-c.
esse novo preceito — da margem de preferência – ocupou o centro da discussão
havida no tCu acima mencionada, fornecendo argumento para quem nega a possibilidade de as licitações vedarem a contratação de produtos estrangeiros. Alega-se que a
“promoção do desenvolvimento nacional sustentável” não seria disposição legal autoaplicável. As regras necessárias para alcançar tal objetivo seriam, em face do princípio
7
diz o texto legal:
“Art. 3º (...)
§5º nos processos de licitação previstos no caput, poderá ser estabelecido margem de preferência para produtos
manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras.
§6º A margem de preferência de que trata o §5º será estabelecida com base em estudos revistos periodicamente,
em prazo não superior a 5 (cinco) anos, que levem em consideração:
i - geração de emprego e renda;
ii - efeito na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais;
iii - desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País;
iv - custo adicional dos produtos e serviços; e
v - em suas revisões, análise retrospectiva de resultados.
§7º A Para os produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, poderá ser estabelecido margem de preferência adicional àquela prevista no §5º.
§8º As margens de preferência por produto, serviço, grupo de produtos ou grupo de serviços, a que se referem
os §§5º e 7º, serão definidas pelo Poder Executivo federal, não podendo a soma delas ultrapassar o montante de
25% (vinte e cinco por cento) sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros.
§9º As disposições contidas nos §§5º e 7º deste artigo não se aplicam aos bens e aos serviços cuja capacidade de
produção ou prestação no País seja inferior:
i - à quantidade a ser adquirida ou contratada; ou
II - ao quantitativo fixado com fundamento no §7º do art. 23 desta Lei, quando for o caso.
§10. A margem de preferência a que se refere o §5º poderá ser estendida, total ou parcialmente, aos bens e serviços originários dos estados Partes do mercado Comum do sul – mercosul.
§11. os editais de licitação para a contratação de bens, serviços e obras poderão exigir que o contratado promova, em favor da administração pública ou daqueles por ela indicados, medidas de compensação comercial,
industrial, tecnológica ou acesso a condições vantajosas de financiamento, cumulativamente ou não, na forma
estabelecida pelo Poder executivo Federal.
§12. nas contratações destinadas à implantação, manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia
de informação e comunicação, considerados estratégicos em ato do Poder executivo Federal, a licitação poderá
ser restrita a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos de acordo com o processo produtivo básico de que trata a Lei nº 10.176, de 11 de janeiro de 2001.
§13. Será divulgada na internet, a cada exercício financeiro, a relação de empresas favorecidas em decorrência
do disposto nos §§5º, 7º, 10, 11 e 12 deste artigo, com indicação do volume de recursos destinados a cada uma
delas.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
da legalidade, apenas aquelas dispostas pelo legislador nos parágrafos acrescidos ao
art. 3º da Lei nº 8.666/93. As licitações e respectivos contratos poderiam favorecer excepcionalmente ao desenvolvimento nacional apenas na medida em que isso pudesse ser
promovido mediante a aplicação da margem de preferência.
É possível, contudo, atribuir efeitos mais abrangentes a alteração promovida no
caput do art. 3º da Lei 8.666/93.
um dos aspectos mais importantes que deve ser destacado é, sem dúvida, o fato
de que, com a margem de preferência criada pela Lei nº 12.439/2010, o certame poderá ser
decidido em face de fator estranho às características intrínsecas do objeto da licitação e,
portanto, não associado à específica necessidade da Administração que venha a motivar
a abertura do procedimento, mas a outros interesses previstos no §6º do dispositivo
legal acima mencionado (geração de emprego e renda, efeito na arrecadação de tributos, desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país e custo adicional dos
produtos e serviços).
tais interesses hão de ser realizados, na verdade, não pela própria licitação, mas
pela contratação dela consequente. Com efeito, a interpretação que acima oferecemos
para a nova destinação da licitação permite ver que o desenvolvimento nacional não é
benefício a ser auferido diretamente da licitação, mas da proposta dela decorrente, ou
melhor, das vantagens expressas nessa proposta, realizadas mediante a execução do
contrato correspondente.
A nova finalidade fixada para a licitação autoriza, então, também uma nova
finalidade para o contrato administrativo. Frise-se que esta é a maior e principal alteração introduzida pela Lei nº 12.439/2010: um propósito adicional para o contrato
administrativo. Além de servir de instrumento para o atendimento de uma necessidade
da Administração que motiva a realização da licitação, passa, a partir de agora, a constituir também instrumento da atividade de fomento, voltado, dessa forma, não só para
os interesses imediatos da Administração contratante como também para interesses
mediatos, ligados às carências e ao desenvolvimento do setor privado.
Se o contrato cumprirá a finalidade de atender duplo interesse da Administração — imediato e mediato — é legítima e adequada a conclusão de que a seleção a ser
procedida mediante o certame licitatório resulte na escolha da proposta que ofereça a
maior vantagem em relação a ambos objetivos.
Tão importante quanto atender à específica necessidade da Administração que
venha a motivar a abertura de procedimento licitatório, é, também, desde a alteração
legislativa promovida no art. 3º, o atendimento dos interesses previstos no §7º do referido dispositivo legal, a saber, geração de emprego e renda, efeito na arrecadação de
tributos e desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país.
Assim, do mesmo modo que a descrição do objeto incluía especificações destinadas a garantir a utilidade do bem adquirido frente à necessidade que motivou a
abertura do procedimento, deverá, agora, incluir qualidade que o torne apto também
a suprir essa nova necessidade. o objeto passou a conter elementos que não dizem
respeito estritamente à utilidade que o bem ou o serviço prestará à Administração,
mas com os efeitos que sua compra desencadeia em proveito da sociedade brasileira.
se houver comprovação de que a única forma de atender à necessidade de promover o
desenvolvimento nacional é a aquisição de produto brasileiro, então essa especificação
deverá constar da descrição do objeto. outra contratação, acerca dessa necessidade – a
327
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
328
cujo atendimento a Administração encontra-se obrigada por dever legal –, não seria
útil e, portanto, não seria vantajosa.
A necessidade da Administração se confundia, antes, com a utilidade do bem,
ou seja, o resultado oriundo do seu uso. Agora a aquisição do bem não visa mais estritamente atender à necessidade suprível pela utilidade que ele produz, mas também
necessidades de outra ordem, relacionadas com aspectos macroeconômicos e expressamente mencionadas na lei.
em face, pois, das diferentes necessidades da Administração que, na hipótese
aventada, as contratações do produto nacional e do produto estrangeiro atenderão, é
possível concluir que eles constituem objetos distintos, por mais que suas qualidades
intrínsecas sejam as mesmas.
uma vez reconhecido o fato de que tais produtos tem aptidão para atender a
diferentes necessidades e que tais necessidades, em sentido amplo, são legítimas e têm
amparo constitucional e legal, a vedação ao estrangeiro não configura caso de restrição
à competição, mas de adequação às carências que a Administração precisa e está legalmente autorizada, ou incumbida, a atender.
7.3 Processo administrativo e formalismo exagerado
A circunstância de que a Administração deve seguir procedimento previamente
definido8 não implica, no entanto, o dever de adotar formalismos desnecessários ou
exagerados. nesse sentido, vale lembrar a lição do mestre Hely Lopes meirelles, ao
comentar que “não se anula o procedimento diante de meras omissões ou irregularidades formais na documentação ou nas propostas desde que, por sua irrelevância, não
causem prejuízo à Administração ou aos licitantes”.9
o administrador não aplica recursos particulares, mas públicos. A partir dessa
premissa, a legislação procura disciplinar todo procedimento licitatório. isso importa em
que a licitação deve observar a forma, os prazos, as etapas e todos os demais requisitos
definidos em lei e no edital que serviu de instrumento convocatório para o certame.
É certo que se o instrumento convocatório de uma licitação impõe determinado
requisito,10 deve-se reputar como relevante tal exigência. essa é a regra. esse rigor não
8
9
10
Ao examinar aspectos procedimentais relacionados à licitação, manifestou-se o stJ nos seguintes termos: “o
procedimento licitatório é um conjunto de atos sucessivos, realizados na forma e nos prazos preconizados na
lei; ultimada (ou ultrapassada) uma fase, ‘preclusa’ fica a anterior, sendo defeso, a Administração, exigir, na
(fase) subseqüente, documentos ou providencias pertinentes àquela já superada. se assim não fosse, avanços e
recuos mediante a exigência de atos impertinentes a serem praticados pelos licitantes em momento inadequado,
postergariam indefinidamente o procedimento e acarretariam manifesta insegurança aos que dele participam”
(ms nº 5.418-dF, 1ª seção. rel. min. demócrito reinaldo. Julg. 25.3.1998. DJ, 1º jun. 1998).
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 16. ed., p. 248.
efetivamente, a regra será a aplicação e cumprimento dos preceitos do edital. se nele consta determinada exigência, impõe-se cumpri-la. em nome da realização do interesse da Administração, não pode a Administração
simplesmente descumprir as regras definidas no edital em nome de um informalismo desmedido. Nesse sentido, vide acórdão do stJ, proferido nos seguintes termos: “Administrativo. mandado de segurança. Licitação.
Concorrência. Atraso na entrega dos envelopes contendo propostas. Alegada infringência ao princípio da
razoabilidade. suposto rigorismo e formalismo. improvimento do recurso face à inexistência do direito líquido
e certo. 1 - A inobservância do princípio da razoabilidade não restou demonstrada. existe, na licitação, predominância dos princípios da legalidade e igualdade (CF, art. 5º, caput, inc. ii). 2 - inexistência de direito líquido e
certo a amparar a pretensão da recorrente. 3 - recurso ordinário improvido” (rms nº 10.404-rs, 1ª turma. rel.
min. José delgado. Julg. 29.4.1999. DJ, 1º jul. 1999).
CAPítuLo 7
LiCitAção
pode ser aplicado, no entanto, de forma a prejudicar a própria Administração. A respeito
desse assunto, o tribunal de Contas da união manifestou-se nos seguintes termos: “o
rigor formal não pode ser exagerado ou absoluto. Como adverte o já citado Hely Lopes
Meirelles, o princípio do procedimento formal não significa que a Administração deva
ser formalista a ponto de fazer exigências inúteis ou desnecessárias à licitação, como
também não quer dizer que se deva anular o procedimento ou julgamento, ou inabilitar
licitantes ou desclassificar propostas diante de simples omissões ou irregularidades na
documentação ou na proposta, desde que tais omissões sejam irrelevantes e não causem
prejuízos à Administração ou aos concorrentes”.11
7.4 Princípios da licitação
7.4.1 supremacia e indisponibilidade do interesse público
o interesse público não é um conceito metajurídico. Cabe ao direito Positivo
definir o que é o interesse público, as potestades conferidas com vista à sua realização e
os legitimados ao seu exercício. Por meio do processo de criação das normas de direito
Público são definidos dentre os interesses gerais aqueles que serão elevados à condição de
interesses públicos. Feita essa qualificação desses interesses, o Direito Público indicará em
que medida eles prevalecerão sobre os demais. Havendo confronto entre esses interesses
qualificados como públicos e os interesses privados, é função do Direito Positivo indicar:
1. as situações em que estes últimos devem ceder, a fim de que os primeiros prevaleçam;
2. as prerrogativas para o exercício desses interesses qualificados; e 3. os legitimados
ao exercício desses interesses. nesse sentido, as potestades conferidas à Administração
Pública para a realização do interesse público são aquelas expressamente previstas em
lei e devem ser exercidas nos limites legais. Quando se fala em supremacia do interesse
público sobre o interesse dos particulares estamos, portanto, referindo-nos a situações
necessariamente disciplinadas pelo ordenamento jurídico positivo.
são exemplos dessa supremacia, no caso dos contratos administrativos, a possibilidade da Administração de, unilateralmente, rescindi-los, alterar as cláusulas
contratuais, fiscalizar e aplicar multas aos contratados.
em matéria de licitação, as prerrogativas a serem exercidas pela Administração
Pública devem igualmente conformar-se àquelas previstas na Lei nº 8.666/93 e em outras
normas de caráter público. A potestade da Administração Pública de anular ou de revogar
a licitação é exemplo da supremacia do interesse público sobre o interesse dos particulares envolvidos no processo.
relativamente à indisponibilidade do interesse público, deve ser observado que
a Administração Pública, ao receber do ordenamento jurídico os poderes que lhe são
conferidos, deve utilizá-los para a realização desse interesse público maior. não pode e
não deve buscar favorecimentos pessoais ou perseguições. o administrador não representa interesses pessoais, mas atua visando à realização dos interesses da comunidade
qualificados como públicos. Se o contrário ocorrer, verificar-se-á desvio de finalidade,
e o ato será nulo.12
11
12
Conforme decisão tCu nº 570/92, Plenário. Ata n. 54/92. DOU, 29 dez. 1992.
nesse sentido, manifesta-se o ministro relator na proposta de decisão referente ao Processo tC nº 004.440/2001-4:
“18. A supremacia do interesse público impugna qualquer ato dirigido por conveniências particulares do administrador público e das pessoas, físicas ou jurídicas, que com eles mantenham eventual relação. A substituição do
329
330
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
7.4.2 Legalidade
diversos princípios gerais da Administração Pública são aplicáveis à licitação. É
o caso do princípio da legalidade.
A visão tradicional do princípio da legalidade administrativa é no sentido de que
a Administração Pública não pode praticar qualquer ato ou exercer qualquer atividade,
salvo se lei houver expressamente autorizado a prática desse ato ou o desempenho da
atividade.
no Capítulo 2 tivemos a oportunidade de defender nova concepção da legalidade
administrativa. É necessário haver lei para a Administração Pública poder exigir do particular qualquer comportamento positivo ou negativo, nos termos do art. 5º, ii, da Constituição Federal (“ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei”). É igualmente necessária a existência de lei para criar órgão ou entidade
pública e para tratar de temas para os quais o texto constitucional tenha sido expresso em
requerer o seu disciplinamento por meio dessa espécie normativa. esta última hipótese, de
matéria para a qual a Constituição Federal expressamente requer lei, é onde se enquadram
as licitações (artigos 37, XXi, e 173, §1º) e os contratos administrativos.
A Lei nº 8.666/93, ante a omissão legislativa relativa ao disposto no art. 173, §1º,
do texto constitucional, é aplicável a toda a Administração Pública direta e indireta da
união, dos estados, dos municípios e do distrito Federal, incluídos os Poderes Legislativo e Judiciário. A Lei nº 8.666/93 define, por exemplo, as modalidades de licitação
— concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão — e o seu processamento.
Assim, se determinado administrador deve realizar licitação, não poderá criar modalidade de licitação não citada em lei. não poderá igualmente fazer uma combinação de
duas modalidades existentes para criar nova modalidade. A criação de nova modalidade
de licitação, o pregão, em face da observância ao princípio da legalidade, somente foi
possível em razão da edição de nova lei (Lei nº 10.520/02). o mesmo deve ser dito em
relação aos critérios para julgar propostas. esses são estabelecidos na Lei das Licitações,
e o administrador somente poderá se valer desses critérios para julgar propostas.
o princípio da legalidade não pode, entretanto, ser confundido com interpretação
rigorosa e literal de preceitos consignados na legislação que rege a matéria de licitações
e contratos, visto poder ocasionar o formalismo exagerado e, assim, prejudicar o processamento dos certames e das contratações públicas. Já dispondo nessa linha, tem-se
o decreto nº 5.450/05 (regulamenta o pregão na forma eletrônica), que, expressamente,
prevê o seguinte no art. 5º:
Art. 5º A licitação na modalidade de pregão é condicionada aos princípios básicos da
legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, eficiência, probidade
administrativa, vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo, bem
como aos princípios correlatos da razoabilidade, competitividade e proporcionalidade.
Parágrafo único. As normas disciplinadoras da licitação serão sempre interpretadas
em favor da ampliação da disputa entre os interessados, desde que não comprometam
o interesse da administração, o princípio da isonomia, a finalidade e a segurança da
contratação.
licitante vencedor por terceiro (e a Administração chegou ao licitante vencedor mediante análise de uma série de
elementos, dentre eles capacidades técnica e econômica) despreza o interesse público que se concretiza no relacionamento entre a Administração e a licitante vencedora” (tCu. decisão nº 420/2002, Plenário. rel. min. Augusto
sherman Cavalcanti. sessão: 24.4.2002. DOU, 10 maio 2002).
CAPítuLo 7
LiCitAção
7.4.3 impessoalidade
esse princípio, assim como o da legalidade, encontra-se expressamente mencionado no art. 37 da Constituição Federal. A Constituição não define, e evidentemente não
cabe a ela definir a impessoalidade. Deve-se entender que este princípio significa que
toda atividade administrativa se destina à realização de interesse público e não pode
visar a benefício ou a perseguição de pessoas, de modo que os administrados devem
ser tratados sem discriminação.13
A impessoalidade, que alguns autores entendem ser sinônimo de isonomia, não
deve ser aplicada de forma a ferir o próprio interesse público. Há situações, no entanto,
em que circunstâncias ou fatores pessoais específicos devem ser considerados. Exemplo:
a legislação admite que se contrate determinado técnico ou empresa em decorrência de
sua notória especialização — o que justifica a inexigibilidade de licitação.
A impessoalidade não conduz ao exagero de se entender que todos devem ser
sempre tratados de forma absolutamente idêntica. em face das peculiaridades do objeto
a ser contratado, a lei autoriza a imposição de requisitos de qualificação técnica, econômica etc. Aquele que não preencher os requisitos de qualificação, que deverão estar
expressamente mencionados no edital, deve ser inabilitado na licitação. essas exigências de qualificação, no entanto, não vão permitir que o administrador possa utilizá-las
de modo a dirigir a licitação e a restringir o seu caráter competitivo. As exigências de
qualificação técnica ou econômico-financeira devem ser definidas no edital a partir da
necessidade da Administração e das peculiaridades do objeto do contrato a ser licitado.
do contrário, impor exigências descabidas para direcionar licitação14 implica violação
da impessoalidade e da moralidade.
7.4.4 moralidade ou probidade
Pela análise realizada em relação aos princípios já mencionados, verificamos
que o administrador deve sempre praticar atos em estrita conformidade com a lei,
deverá igualmente não promover tratamento de modo a favorecer ou prejudicar
qualquer dos licitantes. Porém, a ausência de lei proibindo a prática de determinada conduta não irá autorizar o administrador ou mesmo o particular a proceder
de modo a ofender a ética e a moral.15 Conforme bem ensina marçal Justen Filho,
13
14
15
sobre a observância do princípio da impessoalidade nas contratações de serviços (terceirização) pela Administração, vejamos determinação constante do Acórdão tCu nº 95/05, Plenário (DOU, 25 fev. 2005): “9.3.1. em
consonância com os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, ao contratar empresas prestadoras de serviços, não permita o direcionamento e/ou indicação, por parte de seus servidores, de pessoas,
em especial parentes, para trabalharem nessas empresas de forma a evitar situações semelhantes às ocorridas
quando da contratação das empresas stargold mão de obra Ltda. e staf empreendimentos Ltda., mediante os
contratos nºs 70000/2002 e 80000/2002, respectivamente”.
implicará restrição ao caráter competitivo do procedimento licitatório a atitude da Administração que, diante
de objeto de natureza divisível, não prevê a adjudicação por itens, com vistas a propiciar ampla participação de
licitantes, o que contraria o disposto no art. 1º, §1º, inciso i, da Lei nº 8.666/93, e o entendimento do tCu contido
na decisão nº 393/94, Plenário (Ata n. 27/94. DOU, 29 jun. 1994).
no sentido de que não pode participar de procedimento licitatório a empresa que possuir, em seu quadro de
pessoal, servidor ou dirigente do órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação, ainda que o servidor esteja licenciado à época do certame, por caracterizar violação ao princípio da moralidade, vide stJ. resp
nº 254.115-sP, 1ª turma. rel. min. Garcia vieira. Julg. 20.6.2000. DJ, 14 ago. 2000. o tCu sustenta a vedação de
participação de servidor mesmo na hipótese em que este, na fase externa da licitação, já não tenha mais vínculo
331
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
332
“a moralidade soma-se à legalidade. Assim, uma conduta compatível com a lei, mas
imoral, será inválida”.16
A moralidade vincula tanto a conduta do administrador quanto a dos particulares que participam do processo de contratação. É a moralidade que deve impedir, por
exemplo, a realização de conluio entre os licitantes ou a contratação de empresas de
parentes dos administradores,17 ainda que se trate de hipótese de contratação direta
prevista em lei.18
7.4.5 motivação
A fundamentação ou motivação administrativa é princípio ligado diretamente à
existência do estado de direito. não se admite, à vista dos princípios da moralidade,
da publicidade e do controle jurisdicional a existência de decisões sigilosas ou desmotivadas.19 devemos sempre lembrar que o administrador, quando exerce seus poderes,
age sempre tendo em vista a plena e necessária realização do interesse público. Ainda
que em não poucas ocasiões receba da lei competência para a prática de atos discricionários, deve ser sempre e necessariamente buscada a satisfação do interesse público.
Ainda que discricionária, se a atuação do administrador visar à satisfação de interesses
incompatíveis com o interesse público, haverá desvio de finalidade, e o ato será nulo
de pleno direito. Nesse sentido, a fim de que se possa aferir e controlar a atuação do
administrador, deve ele explicitar por que adotou tal ou qual decisão.
A Lei nº 8.666/93, em seu art. 38, determina que “o procedimento da licitação
será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu
objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente
(...)”. Ao dispor a lei que a licitação se inicia com um processo administrativo, exige que
o administrador indique os motivos que o levam a realizar a licitação e a especificar o
objeto a ser licitado.
16
17
18
19
com a Administração contratante, haja vista a vantagem do maior conhecimento acerca do objeto licitado em
relação aos potenciais concorrentes, o que ofenderia os princípios constitucionais da moralidade, da isonomia e
da impessoalidade (Acórdão tCu nº 1.448/2011, Plenário).
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 65.
os princípios da moralidade e da impessoalidade fundamentaram o provimento de recurso extraordinário
para que fosse declarada a constitucionalidade do art. 36 da Lei orgânica do município de Brumadinho/mG,
que proibia agentes políticos e seus parentes de contratar com o município — “o Prefeito, o vice-Prefeito, os
Vereadores, os ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança, as pessoas ligadas a qualquer deles
por matrimônio ou parentesco, afim ou consangüíneo, até o 2º grau, ou por adoção e os servidores e empregados públicos municipais, não poderão contratar com o município, subsistindo a proibição até seis meses após
findas as respectivas funções” (STF. RE nº 423.560-MG, 2ª Turma. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Julg. 29.5.2012.
DJe, 19 jun. 2012).
Acerca da ofensa aos princípios norteadores da licitação, ver a ementa da seguinte decisão do stJ: “Administrativo.
Licitação. relacionamento afetivo entre sócia da empresa contratada e o prefeito do município licitante. ofensa
aos princípios norteadores do procedimento licitatório. inobservância do prazo mínimo para convocação dos
licitantes. violação do art. 21, §2º, da Lei 8.666/93” (resp nº 615.432-mG, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg.
2.6.2005. DJ, 27 jun. 2005).
sobre a necessidade de motivar a decisão que provoque a anulação de procedimento licitatório, vide stJ. resp
nº 126.408-BA, 1ª turma. rel. min. Humberto Gomes de Barros. Julg. 17.8.1998. DJ, 21 set. 1998.
CAPítuLo 7
LiCitAção
essa motivação demonstra-se, não poucas vezes, útil ao administrador. diversas
acusações de direcionamento20 ou favorecimento em licitações ou de irregularidades
em contratações sem licitações são facilmente contestadas e perfeitamente explicadas
pela motivação. Do contrário, se não tiver o administrador justificado por que não
realizou a licitação,21 ou por que impôs determinada exigência de qualificação técnica
ou econômico-financeira, ou por que exigiu determinada especificação no produto22
ou serviço seria a sua atitude certamente considerada fraudulenta e sujeitando o responsável à punição.
7.4.6 Publicidade
É a publicidade princípio próprio do estado de direito.
A Administração deve manter plena transparência de seus atos. A divulgação
do que ocorre no âmbito da Administração é condição indispensável à realização de
20
21
22
Por ocasião do exame do Processo TC nº 010.220/2000-8, o TCU verificou direcionamento indevido na Concorrência nº 003/00, realizada pela Coordenação Geral de Logística do ministério da Justiça. em seu voto, o min.
Benjamin Zymler se manifestou nos termos seguintes:
“(...) 5. o item qualidade é o mais representativo quanto ao possível direcionamento do certame. o item 8.3.1.1.
do edital exige a apresentação de certificado ISO 9001. Esse fato, por si só, poderia ser objeto de questionamento. Todavia, esse não é o principal problema. Do cotejo entre o item 8.3.1.1 do edital e o certificado ISO 9001
apresentado pela empresa Politec Ltda., vislumbra-se que há coincidência incomum. os termos do edital são
quase absolutamente coincidentes com o certificado da prefalada empresa. Poder-se-ia pensar que o certificado
é padronizado e que, por via de conseqüência, os certificados apresentados por todas as empresas conteriam
idêntica coincidência. Tal fato, entretanto, não ocorre. Os certificados apresentados pelas empresas Montreal e
Castmeta não apresentam tamanho grau de identidade com os termos do edital. (...)
6. Além do fato anteriormente tratado, a estimativa dos pontos a serem atribuídos à empresa Politec Ltda,
segundo cálculos da 3ª seCeX abaixo transcritos, indica que a empresa, na avaliação técnica, obterá cerca de
98,72% dos pontos possíveis. Evidentemente, o atingimento desse percentual de pontos, isoladamente, não é
capaz de indicar direcionamento do certame. Contudo, se verificarmos que as exigências do edital são amplas e
complexas, bem como se associarmos esse fato à coincidência de termos anteriormente mencionada, necessário
será concluir pela existência de mais um indício de direcionamento do certame. Além disso, verifica-se que a
empresa Politec Ltda satisfaz, em 100%, 78 dos 79 itens sujeitos a avaliação. Segue a tabela referente à estimativa
de pontos. (...)
9. Postos esses fatos, em especial os que demonstram possibilidade de direcionamento da concorrência em tela,
é de reconhecer o fumus boni iuris nas ponderações apresentadas pela unidade técnica. de notar que o prosseguimento do certame poderá causar prejuízos ao erário, haja vista que, em princípio, o edital não observa os
princípios da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração e da isonomia entre os licitantes, uma
vez que há indícios de favorecimento à empresa Politec Ltda. ressalte-se, adicionalmente, o elevado valor envolvido — cerca de r$8.670.000,00 (oito milhões, seiscentos e setenta mil reais)”.
Em face do evidente direcionamento verificado, o TCU determinou, por meio da Decisão nº 819/2000, Plenário
(rel. min. Benjamin Zymler. sessão: 27.9.2000. Ata n. 38/2000. DOU, 19 out. 2000), a suspensão, em caráter liminar, de referido procedimento licitatório.
observe que em relação às contratações sem licitação a Lei nº 8.666/93, em seu art. 26, foi extremamente rigorosa
quanto à motivação. dispõe este artigo nos seguintes termos:
“Art. 26. As dispensas previstas nos §§2º e 4º do art. 17 e nos incisos iii a XXiv do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único
do art. 8º, deverão ser comunicados dentro de três dias à autoridade superior, para ratificação e publicação na
imprensa oficial, no prazo de cinco dias, como condição para eficácia dos atos.
Parágrafo único. o processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será
instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I - caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso;
ii - razão da escolha do fornecedor ou executante;
III - justificativa do preço.
iv - documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.”
O TCU sumulou entendimento no sentido de que “em licitações referentes a compras, inclusive softwares, é
possível a indicação de marca, desde que seja estritamente necessária para atender exigências de padronização
e que haja prévia justificação” (Súmula nº 270/2012).
333
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
334
outro princípio, o da moralidade.23 Ademais, a eficácia dos atos administrativos fica
condicionada a que a eles se dê publicidade.
A esse respeito recomenda-se a leitura do parágrafo único do art. 61 da Lei
nº 8.666/93 que dispõe que “a publicação resumida do instrumento de contrato ou de
seus aditamentos na Imprensa Oficial, que é condição indispensável para sua eficácia,
será providenciada pela Administração até o quinto dia útil do mês seguinte ao de sua
assinatura, para ocorrer no prazo de vinte dias daquela data, qualquer que seja o seu
valor, ainda que sem ônus, ressalvado o disposto no art. 26 desta Lei”.24
A respeito do dever de dar publicidade aos atos decorrentes de uma licitação,
é especialmente interessante a regra relativa à realização do convite, modalidade de
licitação. nela, ainda que a Administração possa escolher quem quiser, o instrumento
convocatório, ainda que não deva obrigatoriamente ser objeto de publicação em órgão
de divulgação oficial, deve ser afixado no quadro de avisos da repartição de modo a
permitir que outros interessados não convidados possam participar do certame. essa
regra é de plena realização dos princípios da publicidade e da moralidade.
A regra, portanto, deverá ser a de que todos os atos concernentes à licitação são
públicos. A enunciação dessa regra consta no art. 3º, §3º, que dispõe nos seguintes termos:
Art. 3º (...)
§3º A licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu
procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura.
diversos outros dispositivos contidos na Lei nº 8.666/93 buscam dar a maior efetividade possível a esse princípio, entre os quais citamos os artigos 5º, 15, §2º, 16, 21, 28.
Pode-se observar, no entanto, que se a regra é a de que todos os atos da licitação
deverão ser públicos e acessíveis ao público em geral, o próprio art. 3º, na parte final
23
24
o stJ julgou infringir os princípios da publicidade e da legalidade a dispensa indevida de licitação: “Administrativo. exploração de linha de ônibus. Licitação. – A exploração de linha de ônibus só pode ser permitida
através de licitação. Contra ato flagrantemente ilegal é admissível a impetração de mandado de segurança para
conferir efeito suspensivo a recurso que não o tenha. recurso provido (roms nº 7.651/rJ. relator ministro Garcia
vieira, DJU, p. 82, 03 ago. 1998). – Com a contratação sem prévia licitação, a administração violou o direito
subjetivo do recorrente e de outras empresas de transporte que poderiam concorrer à exploração da linha, além
de infringir aos princípios da legalidade e da publicidade. – recurso especial provido” (resp nº 272.612-Pi, 1ª
turma. rel. min. José delgado. rel. p/ acórdão min. Francisco Falcão. Julg. 21.6.2001. DJ, 17 set. 2001).
sobre esse tema, vide decisão tCu nº 403/99, Plenário (DOU, 09 jul. 1999). nesse sentido, eis alguns trechos do
voto:
“(...) 29. A concorrência realizada pelo Banco do Brasil se destina à contratação de serviços de transportes de valores que deverão ser prestados em diversas unidades da Federação. o Aviso de Licitação publicado pelo Banco,
entretanto, não fez nenhuma referência aos locais onde os serviços serão prestados, limitando-se a informar que
trata-se de serviços de transportes de valores. Nesse ponto, verifica-se que o princípio da publicidade não foi
atendido por inteiro, pois, é bem possível que, algumas empresas, principalmente as de menor porte, imaginando
que o contrato se referisse apenas à praça de Brasília, não tenham participado do certame. essa hipótese é reforçada pelo fato de que em alguns itens da concorrência houve apenas uma proposta válida (fls. 213/214). (...)
34. no caso em exame, o Aviso foi publicado apenas no Diário Oficial da União e no Jornal Gazeta Mercantil, que
é uma publicação especializada dirigida a um público específico, e possui uma circulação restrita, até porque não
circula em todas as unidades da federação (fls. 27). O Aviso de Licitação deveria ter sido publicado, no mínimo,
nos jornais estaduais de todas as unidades da Federação contemplados no edital de licitação e também no diário
Oficial da União. Nesse ponto, ante à literalidade da lei, entendemos que assiste razão ao Representante, pois a
falta de publicidade pode restringir severamente o caráter competitivo do certame, já que muitas empresas não
tomaram ciência da realização da licitação.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
do seu §3º determina que deverá ser mantido o sigilo do conteúdo das propostas: “A
licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura” (grifos nossos).
o sigilo das propostas é enunciado com o objetivo de evitar conluios e de dar maior
competitividade ao certame. esse sigilo tem que ser mantido até o momento em que,
de acordo com o processamento da licitação, deva ser realizada a sua abertura, o que
ocorre em sessão pública.
7.4.7 vinculação ao instrumento convocatório
o instrumento convocatório — que será, conforme a modalidade de licitação, um
edital ou um convite — serve não apenas de guia para o processamento da licitação,
como também de parâmetro para o futuro contrato. ele é a lei do caso, aquela que irá
regular a atuação tanto da Administração Pública quanto dos licitantes.
esse princípio é mencionado no art. 3º da Lei de Licitações, e enfatizado pelo art. 41
da mesma lei que dispõe que “a Administração não pode descumprir as normas e condições
do edital, ao qual se acha estritamente vinculada”.
Conforme já observamos, a submissão da Administração ao princípio da vinculação25 ao instrumento convocatório não significa, no entanto, obrigar o administrador
a adotar formalidades excessivas ou desnecessárias.26
não agir com excesso de formalismo ou não se ater a interpretações literais não
significa violar o princípio da vinculação ao instrumento convocatório. Ao contrário,
deve o administrador usar o seu poder discricionário — nunca arbitrário — e a sua
capacidade de interpretação para buscar as melhores soluções para as dificuldades
concretas.27
É importante observar que o mencionado art. 41, ainda que se refira apenas à
Administração, vale também para os licitantes. revela-se interessante, a esse respeito, a
25
26
27
Acerca da vinculação da Administração à resposta que tenha dado a consulta realizada por licitante, vide o
acórdão proferido por ocasião do julgamento do stJ:
“Administrativo. Concorrência pública. Consulta. A resposta de consulta a respeito de cláusula de edital de
concorrência pública é vinculante; desde que a regra assim explicitada tenha sido comunicada a todos os interessados, ela adere ao edital. Hipótese em que, havendo dissídio coletivo pendente de julgamento, a resposta à
consulta deu conta a todos os licitantes de que os reajustes salariais dele decorrentes seriam repassados para o
preço-base; irrelevante o argumento de que o dissídio coletivo assegurou reajuste salarial não previsto em lei,
porque prevalece, no particular, a decisão do superior tribunal do trabalho, que se presume conheça e aplique
a lei, de que é o intérprete definitivo no seu âmbito de competência. Recurso especial não conhecido” (REsp
nº 198.665-rJ, 2ª turma. rel. min. Ari Pargendler. Julg. 23.3.1999. DJ, 03 maio 1999).
sobre essa questão, relativa ao excesso de rigor no cumprimento de normas contidas no edital e concernentes à
adoção do procedimento da licitação, revela-se interessante o exame que o tribunal de Contas da união realizou
por ocasião do julgamento da decisão nº 178/96, Plenário, relativa à representação contra a Concorrência Pública
nº 01/95, senAi/Am. no presente caso, o tCu considerou que as falhas apuradas possuíam caráter meramente
formal. Acerca do excesso de formalismo na interpretação de cláusulas do edital, vide igualmente tCu. decisão
nº 472/95, Plenário. DOU, 02 out. 1995.
O Administrador, ao aceitar oferta de produto de características superiores às especificadas no edital de licitação
não está a ferir o princípio da vinculação ao edital. Vide julgado do stJ:
“Administrativo. recurso ordinário em mandado de segurança. Concorrência do tipo menor preço. Atendimento às regras previstas no edital. Produto com qualidade superior à mínima exigida. 1. tratando-se de concorrência do tipo menor preço, não fere os princípios da isonomia e da vinculação ao edital a oferta de produto
que possua qualidade superior à mínima exigida, desde que o gênero do bem licitado permaneça inalterado e
seja atendido o requisito do menor preço. 2. recurso ordinário não-provido”. (rms nº 15.817-rs, 2ª turma. rel.
min. João otávio de noronha. Julg. 6.9.2005. DJ, 03 out. 2005)
335
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
336
regra contida no art. 41, §2º, da Lei de Licitações. Ali, fixa-se prazo para que o licitante
possa impugnar os termos do edital. expirado esse prazo, decairá o participante da licitação do direito de impugná-lo. Isto significa dizer que quem participa da licitação não
pode esperar pela sua inabilitação ou desclassificação para, somente então, impugnar
a regra contida no edital que levaria à sua exclusão do processo.
esse princípio não deve ser entendido no sentido de que o edital ou o convite
sejam imutáveis. Havendo a real e efetiva necessidade de ser feita retificação no edital
que possa, inclusive, vir a afetar o conteúdo das propostas apresentadas, a Administração não somente poderá como deverá fazê-lo. A lei expressamente prevê apenas,
na hipótese de a alteração vir a afetar o conteúdo das propostas, a obrigatoriedade de
nova divulgação do instrumento convocatório (edital ou convite), nos mesmos termos
em que se deu a divulgação anterior e a reabertura de novo prazo para apresentação de
novas propostas. Dispõe o art. 21, §4º, da Lei de Licitações que “qualquer modificação
no edital exige divulgação pela mesma forma que se deu o texto original, reabrindo-se
o prazo inicialmente estabelecido. exceto quando, inquestionavelmente, a alteração não
afetar a formulação das propostas”.
7.4.8 Julgamento objetivo
A Lei nº 8.666/93 procura, sempre que possível, estabelecer critérios objetivos para
a atuação administrativa, retirando do administrador, salvo exceções, toda a subjetividade possível. nessa linha, a lei, em seu art. 44, estabelece as regras gerais relativas ao
julgamento objetivo, in verbis:
Art. 44. no julgamento das propostas, a Comissão levará em consideração os critérios
objetivos definidos no edital ou convite, os quais não devem contrariar as normas e
princípios estabelecidos por esta Lei.
esses critérios são estabelecidos a partir do tipo de licitação a ser adotado. são ali
especificados todos os critérios para julgamento: menor preço, melhor técnica, técnica
e preço e maior lance ou oferta.
Julgamento objetivo significa, ademais, além de os critérios serem objetivos, que
eles devem estar previamente definidos no edital. Não seria possível, por exemplo,
querer a comissão de licitação, durante a realização do certame, escolher novos critérios
para julgar as propostas apresentadas.28
28
situação que bem ilustraria a violação ao princípio do julgamento objetivo foi enfrentada pelo tribunal de Contas da união nos autos do Processo tC-016.120/930, e resultou na decisão nº 560/93. tratou-se de representação
formulada por firma particular contra a Secretaria Geral do Ministério da Cultura acerca de licitação para aquisição de passagens aéreas. naquela ocasião manifestou-se o tCu nos seguintes termos:
“18. Os diversos fatos consignados na instrução de fls. 148/152 ‘demonstram que a Tomada de Preços nº 006/93
– sAG/minC incorreu em vício desde sua concepção, com a publicação de Aviso de Licitação que resumia por
demasia o objeto licitado, restringindo a competição, bem como com a adoção indevida do critério de ‘melhor
técnica’, fundado em avaliações subjetivas e vedado à espécie pelo art. 46 da Lei nº 8.666/93’. (...)
22. Finalizando, cabe destacar mais uma vez a ausência no certame de um julgamento amparado em critérios
objetivos e, principalmente, previamente estabelecidos no edital, maculando, assim, o basilar princípio do julgamento objetivo. Para se ter uma idéia prática do subjetivismo que norteou os trabalhos da Comissão de Licitação, consta dos autos, às fls. 91/97, os seguintes requisitos que balizaram a apuração da média ponderada que
indicou o vencedor do certame, a saber (...)
CAPítuLo 7
LiCitAção
em nome do princípio do julgamento objetivo, os critérios para desempate de
propostas são apenas aqueles previstos em lei, conforme será examinado adiante.
7.4.9 Adjudicação compulsória
de acordo com o princípio da adjudicação compulsória, a Administração Pública
não está obrigada, ao contrário do que pode aparentemente parecer, a contratar o licitante vencedor.
Hely Lopes meireles adverte que o direito do licitante vencedor do certame é o
de que lhe seja adjudicado o objeto, e não o de ser celebrado o contrato. Posta a questão
nesses termos, após concluída a licitação, o direito do licitante vencedor é o de impedir
que a Administração contrate para a realização do objeto licitado qualquer outra empresa,
tenha essa empresa participado ou não da licitação.
Hipótese não muito remota é a de a Administração concluir determinada licitação
e, antes de ser assinado o contrato, surgir outra empresa disposta a executar o contrato
por preço mais reduzido. Conforme o caso, a Administração pode revogar a licitação
por meio de decisão motivada e abrir novo processo licitatório. não pode, todavia, ser
firmado contrato com qualquer outro licitante enquanto a licitação anterior não for
desconstituída (revogada ou anulada).
É importante observar que, a rigor, a Lei nº 8.666/93, em seu art. 64, §2º, faculta à
Administração, “quando o convocado não assinar o termo de contrato ou não aceitar ou
retirar o instrumento equivalente no prazo e condições estabelecidos, convocar licitantes
remanescentes, na ordem de classificação, para fazê-lo em igual prazo e nas mesmas
condições propostas pelo primeiro classificado, inclusive quanto aos preços atualizados
de conformidade com o ato convocatório, ou revogar a licitação independentemente
da cominação prevista no art. 81 desta Lei”.
o princípio da adjudicação compulsória deve ser entendido no sentido de que, se a
licitação for concluída, o que pressupõe a sua homologação pela autoridade competente,
somente poderá ser contratada a empresa vencedora da licitação. se a Administração
desejar celebrar o contrato, deverá convocar a licitante vencedora para assiná-lo, nos
termos do edital. Porém, caso a Administração não queira mais celebrar o contrato, não
terá o licitante vencedor direito subjetivo à contratação.
7.5 dever constitucional de licitar
As obras, serviços, compras e alienações devem, nos termos da Constituição
Federal, art. 37, XXi, ser contratados mediante a prévia licitação. essa regra é considerada tão importante que alguns autores a elevam à categoria de princípio da
Administração Pública.29
A redação utilizada no texto constitucional, como pode ser observado, permite
concluir:
29
23. repare-se aí que as notas, que variavam de 1 a 5, foram consignadas pelos membros da Comissão de forma
totalmente subjetiva, haja vista a completa ausência de parâmetros prévios para aferir com isenção as propostas.
Ante todo o exposto, acolho os pareceres expendidos nos autos e voto por que o tribunal adote a decisão que
ora submeto ao Plenário”.
Cf. BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 16. ed.
337
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
338
1. A licitação é obrigatória;30 e
2. Legislação poderá estabelecer situações em que a Administração poderá contratar sem que tenha que licitar.31
7.6 Contratação sem licitação
7.6.1 distinção conceitual entre dispensa e inexigibilidade de licitação
dentro da sistemática adotada pela Lei nº 8.666/93, há situações em que é utilizada a expressão “licitação dispensada” (art. 17, i e ii); em outras, aparece a expressão
“licitação dispensável” (art. 24); e, finalmente, “licitação inexigível” (art. 25). Essas
seriam as situações mencionadas em lei, e de caráter excepcional, em que será possível
a contratação direta, isto é, a contratação sem licitação.32
Apenas para fins didáticos, convém esclarecer a distinção entre os conceitos de
licitação dispensada, dispensável e inexigível. As licitações dispensada e dispensável
são modalidades de dispensa de licitação. teríamos, assim, dois conceitos básicos que
deverão ser distinguidos:
- dispensa de licitação; e
- inexigibilidade de licitação.
A diferença básica entre as situações de dispensa e de inexigibilidade reside no
fato de que na primeira haveria a possibilidade de competição, de modo que seria possível a realização de licitação. Ao passo que na segunda, inexigibilidade, não haveria
competição, isso “porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades
da Administração; a licitação é, portanto, inviável”.33
Para melhor esclarecimento, tomemos duas situações previstas em lei: uma de
dispensa e outra de inexigibilidade.
30
31
32
33
A burla ao procedimento licitatório é considerada ato de improbidade administrativa. nesse sentido, decide o
stJ: “Administrativo. Ação Civil Pública. improbidade administrativa. responsabilidade de prefeito. Compra
de materiais. Fracionamento de notas fiscais. Improbidade. I - A Lei de Improbidade Administrativa considera
ato de improbidade aquele tendente a frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente.
Foi exatamente o que ocorreu na hipótese dos autos quando restou comprovado, de acordo com o circunlóquio
fático apresentado no acórdão recorrido, que houve burla ao procedimento licitatório, atingindo com isso os
princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade. ii - o artigo 11 da Lei 8.429/92 explicita que constitui ato de improbidade o que atenta contra os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade
às instituições. na hipótese presente também se tratou de atentado, ao menos, contra os deveres de imparcialidade e legalidade, em face do afastamento da norma de regência, in casu, a Lei nº 8.666/93. iii - recurso especial
improvido” (resp nº 685.325-Pr, 1ª turma. rel. min. Francisco Falcão. Julg. 13.12.2005. DJ, 06 mar. 2006).
A técnica de redação adotada no texto constitucional é denominada por alguns estudiosos do direito Constitucional de “norma de eficácia contida” (Cf. SILVA. Curso de direito constitucional positivo). A peculiaridade desse
dispositivo consiste no fato de que a Constituição irá estabelecer a regra — a licitação é obrigatória —, mas ela
própria irá autorizar que lei possa prever hipóteses em que poderá ocorrer a contratação sem licitação — “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante
processo de licitação pública (...)” (CF, art. 37, XXi).
sobre as hipóteses de contratação sem licitação manifesta-se o tCu no Acórdão nº 1.064/05, Plenário (DOU, 12
ago. 2005). excerto do voto condutor do acórdão:
“16. A inexigibilidade é espécie do gênero contratação direta, i.e., sem licitação. na contratação direta insere-se,
ainda, a licitação dispensável e a licitação dispensada. são 3 hipóteses, portanto, referentes à possibilidade de a
Administração promover contratação sem se ater ao dever constitucional de licitar, insculpido no art. 37, inc. XXi,
da atual Constituição Federal.”
di Pietro. Direito administrativo, p. 265.
CAPítuLo 7
LiCitAção
Bom exemplo de dispensa de licitação seria a contratação de obra de pequeno
valor (Lei nº 8.666/93, art. 24, i). imaginemos determinada unidade administrativa
que pretenda realizar pequena obra, orçada em r$10.000,00. em face de seu valor, a
lei dispensa o administrador do dever de licitar. estará ele autorizado a contratar diretamente empresa ou pessoa sem que deva realizar a licitação. Porém, apesar de a lei
autorizar a contratação direta, existe, é certo, competição nesse mercado, de modo que
provavelmente haveria mais de uma empresa ou profissional interessado em realizar
mencionada obra.
Hipótese diversa seria a aquisição de produto que somente pode ser comercializado no País por fornecedor exclusivo. imaginemos que determinado administrador
necessita de adquirir certo aparelho que somente uma empresa fabrica. ora, a licitação
existe e é realizada para que a Administração possa escolher a melhor proposta, aquela
que lhe seja mais vantajosa. se já se sabe que apenas uma empresa fabrica o produto
que se pretende adquirir, qual seria a finalidade ou utilidade de se realizar a licitação?
em alguns casos, o administrador, ainda que não esteja obrigado a licitar, se quiser,
poderá fazê-lo. isto é, ainda que o pequeno valor autorize a contratação direta, o administrador terá a liberdade, ou discricionariedade, de poder realizar a licitação. essa seria,
portanto, uma licitação dispensável (art. 24).
em outras hipóteses (art. 17, incisos i e ii), ainda que se possa falar em possíveis
interessados em celebrar o contrato com a Administração,34 a licitação não será realizada.
não existe, nas hipóteses de licitação dispensada, a liberdade do administrador de querer
licitar.35 nas hipóteses de licitação dispensada, que estão diretamente relacionadas à
alienação de bens, não cabe falar em discricionariedade quanto à possibilidade de
ser realizada a licitação em face de particularidades do próprio contrato. A licitação
não será realizada pela estrita vinculação do objeto do contrato com o adquirente do
bem. se esse raciocínio vale para doação, vale para todas as hipóteses. no caso de dação
em pagamento, por exemplo, a Administração estará entregando bem imóvel (Lei
nº 8.666/93, art. 17, I, “a”) em pagamento de dívida a credor certo e identificado. Como
querer que para tal situação seja realizada a licitação, se o credor é certo e determinado?
É de observar que a distinção básica entre licitação dispensada e dispensável
reside no fato de que, nesta última, o administrador poderá, se assim o desejar, realizar a licitação. nas hipóteses de licitação dispensada, o administrador não pode licitar
em face de que a pessoa com quem será celebrado o contrato com a Administração já
34
35
sobre essa hipótese — de somente ser possível a doação de bens imóveis entre órgãos ou entidades da Administração Pública —, devemos observar que o supremo tribunal Federal, julgando a Adi nº 927-mC/sP (Pleno. rel.
min. Carlos velloso. Julg. 3.11.1993. DJ, 11 nov. 1994), considerou, em liminar, inconstitucional o dispositivo que
trata de doação, posto que a lei somente permite a sua realização entre órgãos ou entidades da Administração
Pública. o stF entendeu que a união não poderia disciplinar a forma como estados e municípios irão fazer
doações (que seria assunto que deveria ser objeto de norma especial), e que, portanto, ela (a união) invadiu competência das outras entidades da federação. ou seja, a regra do art. 17, inciso i, alínea “a” e inciso ii, alínea “a”,
somente é valida para a Administração Pública federal, não sendo aplicável nos âmbitos estadual e municipal.
Já vimos que essa discussão versa sobre a competência da união para legislar sobre as licitações e os contratos
administrativos que, nos termos da Constituição Federal, somente seria possível para dispor sobre normas gerais.
Para o tCu são exaustivas as hipóteses de licitação dispensada, contidas na Lei nº 8.666/93. A esse respeito tem-se
o Acórdão nº 831/03, Plenário. excerto do voto condutor:
“18. não resta dúvida, ademais, que as regras da Lei nº 8.666/93 que estabelecem hipóteses de licitação dispensada são normas gerais, válidas a todos os entes federados, ressalvadas as hipóteses em que se busque restringir
a situação em relação a um ou mais membros do pacto federativo.”
339
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
340
está definida. Na hipótese de dação em pagamento de imóvel, por exemplo, não se
pode afirmar que se trata de atuação vinculada. A Administração, querendo, pode
optar pela venda do dito imóvel por meio de licitação. todavia, se opta pela dação em
pagamento, não há como ser feita a licitação. esta se destina à escolha da pessoa com
quem será firmado o contrato. No caso de dação em pagamento, doação, investidura
etc., pode-se falar que existe discricionariedade por parte do poder público em querer
utilizar uma dessas modalidades de alienação ou de proceder à venda do imóvel por
meio de licitação. Feita, e justificada a opção pela dação em pagamento, pela doação,
pela investidura, pela permuta etc., não há como ser feita licitação. estas formas de
alienação de bens não admitem, pela sua natureza, procedimentos para definir quem
irá receber o imóvel em doação ou em dação em pagamento. esta a particularidade da
licitação dispensada.
Antes do exame das hipóteses de dispensa e de inexigibilidade, é importante lembrar que a Lei de Licitações exige que o administrador sempre justifique36 a contratação
sem licitação.37 essa obrigação de motivar qualquer contratação direta está prevista no
art. 26, que dispõe nos seguintes termos:
Art. 26. As dispensas previstas nos §§2º e 4º do art. 17 e nos incisos iii a XX do art. 24, as
situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento
previsto no final do parágrafo único do art. 8º desta Lei deverão ser comunicados dentro de
três dias à autoridade superior para ratificação e publicação na imprensa oficial no prazo
de cinco dias,38 como condição para eficácia dos atos.
Parágrafo único. o processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto
neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I - caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando
for o caso;
ii - razão da escolha do fornecedor ou executante;
III - justificativa do preço.
iv - documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
7.6.2 Licitação dispensada – Lista exaustiva
todas as hipóteses enquadradas pela legislação como de licitação dispensada
estão relacionadas à alienação de bens. A alienação de bens móveis ou imóveis pela
Administração Pública estará condicionada à existência do interesse público e deverá
ser precedida de prévia avaliação — Lei nº 8.666/93, art. 17, caput.
Quanto aos imóveis, a lei vai ainda exigir (art. 17, i) “autorização legislativa para
órgãos da Administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos,
36
37
38
Acerca da inexistência nos autos do processo de dispensa ou inexigibilidade de licitação do critério de escolha
do fornecedor ou da justificativa do preço, vide tCu: decisões nº 35/96, Plenário. DOU, 18 mar. 1996; nº 575/98,
Plenário. DOU, 04 set. 1998; e nº 262/98, Plenário. DOU, 26 maio 1998.
no sentido de que “não comete crime algum quem, no exercício de seu cargo, emite parecer técnico sobre
determinada matéria, ainda que pessoas inescrupulosas possam se locupletar as custas do estado, utilizando-se
desse trabalho. estas devem ser processadas criminalmente, não aquele” (stJ. rHC nº 7.165-ro, 6ª turma. rel.
min. Anselmo santiago. Julg. 21.5.1998. DJ, 22 jun. 1998).
Acerca da necessidade de serem observados os prazos de publicação na imprensa oficial, como condição de eficácia dos referidos contratos celebrados sem licitação, vide tCu: decisões nº 415/98, Plenário. DOU, 17 jul. 1998;
e nº 234/98, Plenário. DOU, 20 maio 1998.
CAPítuLo 7
LiCitAção
inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na
modalidade de concorrência”.
As hipóteses de licitação dispensada para alienação de imóveis estão previstas
na parte final do inciso I do art. 17:
a) dação em pagamento;39
b) doação, permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo;
c) Permuta, por outro imóvel que atenda aos requisitos constantes do inciso X
do art. 24 desta Lei;
d) investidura;
e) venda a outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer
esfera de governo;
f) Alienação, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de
bens imóveis construídos e destinados ou efetivamente utilizados no âmbito
de programas habitacionais de interesse social, por órgãos ou entidades da
Administração Pública especificamente criados para esse fim.
relativamente aos bens móveis, a Lei de Licitações, em seu art. 17, ii, igualmente
exige a realização de avaliação prévia sempre que esses bens vierem a ser alienados,
sendo dispensada a licitação nos seguintes casos:
a) Doação, permitida exclusivamente para fins e uso de interesse social, após
avaliação de sua oportunidade e conveniência socioeconômica, relativamente
à escolha de outra forma de alienação;
b) Permuta, permitida exclusivamente entre órgãos ou entidades da Administração Pública;
c) venda de ações, que poderão ser negociadas em bolsa, observada a legislação
específica;
d) venda de títulos, na forma da legislação pertinente;
e) venda de bens produzidos ou comercializados por órgãos ou entidades da
Administração Pública, em virtude de suas finalidades;
f) venda de materiais e equipamentos para outros órgãos ou entidades da Administração Pública, sem utilização previsível por quem deles dispõe.
7.6.3 Licitação dispensável – Lista exaustiva
o art. 24 da Lei de Licitações prevê as hipóteses em que a licitação é dispensável.
são indicadas, de forma exaustiva, situações que legitimam a contratação direta sem
39
sobre essa hipótese de licitação dispensada, vide tCu. decisão nº 245/99, Plenário (DOU, 27 maio 1999):
“o tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo relator, deCide:
8.3. diligenciar ao mencionado trt para que esclareça sobre a pretensão de se incluir, no edital de licitação para
a construção da nova sede, cláusula condicionando a habilitação das licitantes à obrigação de a empresa vencedora do certame receber, como dação em pagamento, o atual edifício-sede do tribunal, uma vez que, além de
não ter havido a necessária autorização legislativa para a alienação do imóvel, conforme art. 17, inciso i, da Lei
nº 8.666/93, tal condição não constitui uma exigência indispensável à garantia do cumprimento das obrigações
atinentes ao específico objeto do contrato (cf. art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal); não está elencada
entre as condições de habilitação previstas nos arts. 27 a 31 da Lei nº 8.666/93; representa uma forma de violação
das disposições contidas no art. 7º, §3º, da referida norma legal; e impõe-se como condição restritiva ao caráter
competitivo da licitação, nos termos do art. 3º, §1º, inciso i, da citada Lei.”
341
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
342
licitação. As hipóteses previstas neste dispositivo não podem ser aumentadas pelo
administrador.40 trata-se de lista fechada que não admite que, a pretexto de interpretações extensivas ou analogias, venham a ser criadas hipóteses não autorizadas pelo
legislador.
As hipóteses de licitação dispensável poderão ser divididas em quatro categorias,
conforme ensinamentos de maria sylvia Zanella di Pietro:41
a) em razão do valor;
b) em razão de situações excepcionais;
c) em razão do objeto; e
d) em razão da pessoa.
7.6.3.1 Licitação dispensável em razão do valor
É dispensável a licitação para obras e serviços de engenharia de valor até
R$15.000,00, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda
para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas
conjunta e concomitantemente, e para compras e outros serviços42 de até r$8.000,00,
desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço ou compra de maior vulto
que possa ser realizada de uma só vez.43
o legislador entendeu que em razão do pequeno valor a ser contratado não se
justificaria a realização de licitação haja vista a sua pouca economicidade. É sabido que
a realização de licitação gera ônus para a Administração, de modo que o custo de sua
realização não justificaria os seus benefícios. Não obstante a dispensa da licitação, é
obrigação do administrador proceder a uma pesquisa de preços de modo a justificar
que o preço obtido junto ao fornecedor contratado é compatível com os normalmente
praticados no mercado (Lei nº 8.666/93, art. 26, parágrafo único, iii).44
sendo o reduzido valor do contrato um dos fundamentos que legitimam a contratação direta, estar-se-ia diante da possibilidade de administradores, fraudulentamente,
fracionarem ou desmembrarem todos os seus contratos de modo que as parcelas pudessem
ser contratadas sem licitação.45
40
41
42
43
44
45
nesse sentido, vide tCu: decisões nº 820/97, Plenário. DOU, 12 dez. 1997; e nº 473/95, Plenário. DOU, 02 out. 1995.
di Pietro. Direito administrativo, p. 266.
em relação ao que se deve entender por “obra”, “serviço” ou “compra”, a própria legislação preocupou-se em
conceituar (art. 6º, incisos I, II e III) cada uma dessas diversas modalidades de contrato. Assim, para os fins da
lei de licitações e contratos, deve-se entender por:
“i - obra – toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou
indireta;
ii - serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais
como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção,
transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;
iii - Compra – toda aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente.”
na decisão nº 11/96, Plenário (DOU, 22 fev. 1996), o tribunal de Contas da união condenou a falta de planejamento
na realização de obras e serviços contratados sem licitação em face de seu pequeno valor e que, necessitando de
acréscimos futuros, obrigou o órgão a realizar licitação para a contratação desses pequenos acréscimos, haja vista
o valor destes somado ao do contrato original resultar em valor que exigiria a licitação.
Quanto à justificação do preço, vide tCu: Acórdão nº 142/96, 2ª Câmara. DOU, 03 abr. 1996; e decisão nº 262/98,
Plenário. DOU, 26 maio 1998.
determinações acerca de fracionamento de despesa têm sido emanadas pelo tCu: “9.6.4. evite a fragmentação de
despesas, caracterizada por aquisições freqüentes dos mesmos produtos ou realização sistemática de serviços da
mesma natureza em processos distintos, cujos valores globais excedam o limite previsto para dispensa de licitação a que se referem os inciso i e ii do art. 24 da Lei 8.666/93” (Acórdão nº 1.386/05, Plenário. DOU, 19 set. 2005).
CAPítuLo 7
LiCitAção
A esse respeito, a lei veda o fracionamento ou desmembramento de obra, compra
ou serviço cujo propósito seja o de enquadrar o valor dentro dos limites de dispensa. o
art. 23, §5º, da Lei de Licitações trata da questão do fracionamento nos seguintes termos:
Art. 23 (...)
§5º É vedada a utilização da modalidade de convite ou tomada de preços, conforme o caso,
para parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou ainda para obras e serviços da mesma
natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente,
sempre que o somatório de seus valores caracterizar o caso de tomada de preços ou concorrência, respectivamente, nos termos deste artigo, exceto para as parcelas de natureza
específica que possam ser executadas por pessoas ou empresas de especialidade diversa
daquele do executor da obra ou serviço.
essa situação, de se procurar fugir ao dever de licitar ou de se adotar modalidade
de licitação menos rigorosa do que a determinada em lei por meio do fracionamento ou
parcelamento de objetos de contratos que poderiam ser celebrados conjuntamente, tem
sido verificada, infelizmente, com certa frequência pelo Tribunal de Contas da União,46
cuja atuação tem-se dado no sentido de punir os responsáveis por referida prática.47
tratamento especial e diferenciado, no que diz respeito aos valores que legitimam a contratação sem licitação, recebem as sociedades de economia mista e empresas
públicas, assim como as fundações ou autarquias qualificadas como Agências Executivas. em relação a essas entidades, os valores indicados no art. 24, incisos i e ii, são
duplicados. Assim, para todo e qualquer órgão ou entidade da Administração Pública,
a licitação é dispensável se os valores a serem contratados forem de até r$8.000,00, para
as compras e serviços, e r$15.000,00, para as obras e serviços de engenharia (art. 24, i
e ii); enquanto para as entidades indicadas no §1º do art. 24 (sociedades de economia
mista e empresas públicas, assim como as fundações ou autarquias qualificadas como
Agências executivas), os valores para dispensa serão, para os mesmos contratos, de
r$16.000,00 e r$30.000,00, respectivamente (vide art. 24, i, ii e §1º).48
46
47
48
nesse sentido, vide tCu: decisões nº 207/98, 1ª Câmara. DOU, 09 jul. 1998; nº 235/98, Plenário. DOU, 20 maio 1998,
e nº 197/97, Plenário. DOU, 07 maio 1997.
tCu. decisão nº 177/1994, 2ª Câmara. Processo tC nº 200.097/92-0. Ata n. 23/94. DOU, 28 jul. 1994. transcrevemos, a seguir, alguns trechos do relatório do Ministro Paulo Affonso de Oliveira que examinando o presente
processo constatou diversas falhas na aplicação da legislação sobre licitações:
“durante o período de 23.03 a 01.04.92, uma equipe da então Ce-AL realizou trabalho de auditoria na Prefeitura
municipal de maceió-AL com o objetivo de examinar a aplicação de recursos relativos a convênios ou provenientes de ‘royalties’ pela referida entidade, durante os exercícios de 1991 e 1992. (...)
16. A instrução analisou separadamente os convênios nºs 064/02/90 e 001/02/91 firmados com a Fundação Centro
Brasileiro para a Infância e Adolescência – FCBIA (fls. 297 a 300). Nesses instrumentos foram observadas irregularidades referentes à realização de despesas não previstas nos respectivos planos de aplicação bem como o
parcelamento de compras para fugir ao processo licitatório.
17. As justificativas apresentadas pelo responsável não foram consideradas satisfatórias no entendimento da
informante, levando-a a se manifestar no sentido de que os mencionados gastos não deveriam ser aceitos como
legítimos na prestação de contas dos respectivos convênios.”
em processo de pedido de reexame interposto pela sociedade de economia mista Petróleo Brasileiro s.A. contra
o Acórdão tCu nº 1.259/04, Plenário, adotado em face de relatório da auditoria, o tCu prolatou o Acórdão
nº 1.842/05, Plenário, ratificando o entendimento de que é ilegal o Regulamento do Procedimento Licitatório
Simplificado da Petrobras, instituído pelo Decreto nº 2.745/98, na forma prevista no art. 67 da Lei nº 9.478/97:
“Pedido de reexame. Auditoria. sociedade de economia mista. submissão à Lei 8.666/93. Limitação ao efeito
suspensivo dos recursos. Controle de constitucionalidade exercido pelo tCu. negado provimento. 1 - Até que
seja editada lei dispondo sobre licitações e contratos das empresas estatais e sociedades de economia mista,
343
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
344
7.6.3.2 Licitação dispensável em razão de situações excepcionais
7.6.3.2.1 Contrato emergencial
A lei dispensa a licitação quando a demora na realização do procedimento licitatório for incompatível com a urgência na execução do contrato. Verificamos essas hipóteses
em casos de emergência ou de calamidade pública (art. 24, iv). A lei igualmente dispensa
a licitação em casos de guerra ou grave perturbação da ordem (art. 24, iii).
Existe, é bem verdade, certa imprecisão na definição, diante de casos concretos,
do que realmente seria situação de urgência ou de emergência que esteja a justificar a
contratação sem licitação. Lembramos, em primeiro lugar, que toda contratação sem
licitação deverá ser minuciosamente motivada. será sempre o interesse público que irá
justificar a contratação direta.49 desse modo, diante de situação concreta, deve-se confrontar a obrigação de licitar com os possíveis prejuízos ou riscos que poderão resultar
da demora na celebração do contrato diante da realização do procedimento licitatório.
se desse confronto concluir-se que a realização da licitação irá causar ou poderá vir
a causar sérios prejuízos à Administração ou à sociedade em geral, será autorizada a
contratação direta.
A fim de melhor definir as hipóteses em que estará o administrador legitimado
a utilizar o permissivo do art. 24, iv, da Lei nº 8.666/93, entendemos que deverão estar
presentes os seguintes requisitos:
a) situação emergencial ou calamitosa que não possa ser imputada à desídia do
administrador;
b) urgência de atendimento; e
c) risco da ocorrência de sérios danos a pessoas ou bens.
desse modo, a situação emergencial ou calamitosa que legitima a contratação
direta, primeiro requisito, é aquela cuja ocorrência escape às possibilidades normais
de prevenção por parte da Administração e que, portanto, não possa ser imputada à
desídia administrativa, à falta de planejamento ou à má gestão dos recursos disponíveis.
49
devem estas observar os preceitos da Lei 8.666/93 e os princípios e regras da Administração Pública. 2 - Com a
redação dada pela emenda n. 19/98, a Constituição Federal não recepcionou as disposições contidas no artigo
67 da Lei 9.478/97. 3 - o decreto 2.745/98 é ilegal, porquanto padece de vício de competência, inova na órbita
jurídica e exorbita a matéria daquilo que um decreto poderia regulamentar.”
Ao examinar aspectos relacionados aos procedimentos licitatórios da Petrobras manifestou-se o stF: “Ação
Cautelar. 2. efeito suspensivo a recurso extraordinário admitido no superior tribunal de Justiça. 3. Plausibilidade
jurídica do pedido. Licitações realizadas pela Petrobras com base no regulamento do Procedimento Licitatório
Simplificado (Decreto nº 2.745/98 e Lei nº 9.478/97). 4. Perigo de dano irreparável. A suspensão das licitações
pode inviabilizar a própria atividade da Petrobras e comprometer o processo de exploração e distribuição de
petróleo em todo o país, com reflexos imediatos para a indústria, comércio e, enfim, para toda a população. 5.
medida cautelar deferida para conceder efeito suspensivo ao recurso extraordinário” (AC nº 1.193 mC-Qo/rJ,
2ª turma. rel. min. Gilmar mendes. Julg. 9.5.2006. DJ, 30 jun. 2006).
Quando da contratação emergencial tem de ser verificada, também, a compatibilidade do preço contratado com
o praticado no mercado. nesse sentido, determinação constante do Acórdão tCu nº 819/05, Plenário (DOU, 30
jun. 2005):
“9.1.11. faça constar dos processos de dispensa de licitação, especialmente nas hipóteses de contratação emergencial, a justificativa de preços a que se refere o inciso III do art. 26 da Lei 8.666/1993, mesmo nas hipóteses em
que somente um fornecedor possa prestar os serviços necessários à Administração, mediante a verificação da
conformidade do orçamento com os preços correntes no mercado ou fixados por órgão oficial competente ou,
ainda, com os constantes do sistema de registro de preços, os quais devem ser registrados nos autos, conforme
decisão tCu nº 627/1999, Plenário.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
Quanto à urgência de atendimento, o segundo pressuposto da aplicação do citado
art. 24, IV, que legitima a contratação sem licitação, é aquela urgência qualificada pelo
risco da ocorrência de prejuízo ou comprometimento da segurança de pessoas ou bens
públicos e particulares, caso as medidas requeridas não sejam adotadas de pronto.
Já o risco, terceiro pressuposto da dispensa em causa, é aquele efetiva e concretamente demonstrado, tendo em vista a situação para a qual se alega urgência de
atendimento. Ou seja, verificada a situação de calamidade pública ou simplesmente
emergencial, incumbe à Administração demonstrar objetivamente a probabilidade da
ocorrência de sérios danos, a pessoas ou bens, caso não seja prontamente efetivada,
mediante contratação com terceiro, a obra, serviço ou compra, segundo as especificações
e quantitativos necessários e suficientes para afastar os possíveis riscos.
Verificados esses requisitos, deverá a Administração fundamentar a dispensa de
licitação, com base no art. 24, inciso iv, da Lei nº 8.666/93, demonstrando a existência
das seguintes condições:
a) Que se trata de caso de emergência ou de calamidade pública no sentido de
que a situação adversa existente não possa ser considerada decorrente da falta
de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos
disponíveis;
b) Que há urgência, concreta e efetiva, de se dar atendimento a situação de risco, a
pessoas ou bens, derivada do estado de emergência ou de calamidade pública;
c) Que é elevada a potencialidade de prejuízo ou dano, iminente a sua ocorrência
e especialmente gravosos os resultados esperados;
d) Que a efetivação imediata de determinadas obras, serviços ou compras, nas
especificações e quantitativos dados, mediante contratação com terceiro, é a
providência adequada e suficiente para afastar a situação de risco detectada.
observamos que o tribunal de Contas da união enfrentou essa questão e buscou
firmar, de forma objetiva, mencionados critérios.50
50
Por meio da decisão nº 347/94, Plenário (DOU, 21 jun. 1994), o TCU firmou, em resposta a consulta, os seguintes
requisitos necessários à contratação fundamentada no art. 24, iv, da Lei nº 8.666/93:
“o tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo relator, deCide:
1. Conhecer do expediente formulado pelo ilustre ministro de estado dos transportes para informar a sua
excelência que, de acordo com as normas que disciplinam a matéria, o tribunal não responde a consultas consubstanciadas em caso concreto;
2 responder ao ilustre Consulente, quanto à caracterização dos casos de emergência ou de calamidade pública,
em tese:
a) que, além da adoção das formalidades previstas no art. 26 e seu parágrafo único da Lei nº 8.666/93, são pressupostos da aplicação do caso de dispensa preconizado no art. 24, inciso iv, da mesma Lei:
a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total
ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis,
ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever
de agir para prevenir a ocorrência de tal situação;
a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas;
a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;
a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente
de afastar o risco iminente detectado.”
345
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
346
7.6.3.2.2 inércia do administrador causadora da emergência na
contratação
É preciso que essa situação de urgência ou de emergência seja imprevisível. seria
absolutamente descabido que o administrador, sabendo que determinada situação iria
ocorrer, e que sua ocorrência obrigaria a celebração do devido contrato, não adotasse as
medidas necessárias à realização do procedimento licitatório. Jamais a inércia do administrador poderá justificar a adoção de contratos emergenciais, conforme já observamos.51
nesse ponto, discordamos do pensamento de Jorge ulisses Jacoby Fernandes.
Entende o ilustre autor que “efetivamente se ficar caracterizada a emergência e todos os
outros requisitos estabelecidos nesse dispositivo, pouco importa que a mesma decorra da
inércia do agente da Administração ou não! Caracterizada a tipificação legal, não pode
a sociedade ser duplamente penalizada pela incompetência dos servidores públicos ou
agentes políticos: dispensa-se a licitação em qualquer caso”.52
Com a devida vênia, admitir que a inércia do administrador possa criar situação
emergencial que venha a legitimar a contratação direta significa, na prática, abrir as
portas para todo tipo de desmando em matéria de licitação. esse tipo de raciocínio
transformaria todas as regras e princípios constitucionais e legais acerca do tema em
letra morta. Admitir que o contrato decorrente da contratação direta justificada por
situações emergenciais criadas pela desídia do administrador seja válido, e buscar apenas a punição desse administrador negligente, é entendimento que legitima o conluio
entre administrador e empresa ou profissional contratado. Essa empresa ou profissional
contratado poderia vir a ser escolhido arbitrariamente — e no mais das vezes o é — e
em relação a ele muito pouco ou nada poderia ser feito, haja vista o contrato, de acordo
com esse ponto de vista, ser considerado legítimo. o entendimento do tribunal de
Contas da união vinha sendo no sentido de considerar que a desídia do administrador
não poderia justificar a contratação emergencial sem licitação.53
Conforme mencionado no item anterior, com o advento do Acórdão nº 1.876/2007,
o Plenário do tCu sinalizou mudança nesse entendimento.54
51
52
53
54
Exemplo em que a falta de planejamento do administrador não é capaz de justificar a contratação direta em
face de situação emergencial verificou-se no exame do Processo nº 007.826/94-0. Nessa ocasião o Tribunal de
Contas da união julgou irregular a contratação sem licitação, amparada em pretensa urgência, de serviços
visando à comemoração do “tricentenário” da Casa da moeda do Brasil. também os acórdãos nº 3.132/05 e
nº 1.710/06, ambos da 1ª Câmara do tCu, são no sentido de a “situação emergencial ou calamitosa que
possibilita a contratação com dispensa de licitação ser somente aquela que ocorre à revelia das possibilidades
normais de prevenção. não pode ser imputada à desídia administrativa ou à falta de planejamento por parte da
Administração. A inércia do administrador não pode justificar a adoção de contratos emergenciais”.
JACoBY FernAndes. Contratação direta sem licitação: modalidades de licitação, dispensa de licitação, licitação
dispensada, inexigibilidade de licitação, procedimentos para a contratação direta, p. 178-179.
Vide tCu: Acórdão nº 488/94, 1ª Câmara. DOU, 22 nov. 1994; Acórdão nº 522/97, 1ª Câmara. DOU, 18 nov. 1998;
e decisão nº 136/97. Plenário. DOU, 15 abr. 1997.
em sentido contrário aos acórdãos referenciados na nota anterior:
“Ao comentar referido dispositivo legal [art. 24, iv, da Lei nº 8.666/93], leciona o saudoso Administrativista Hely
Lopes meirelles (in Licitação e Contrato Administrativo, 10ª edição, editora revista dos tribunais, 1991): ‘A
emergência que dispensa licitação caracteriza-se pela urgência de atendimento de situação que possa ocasionar
prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou
particulares. situação de emergência é, pois, toda aquela que põe em perigo ou causa dano à segurança, à saúde
ou à incolumidade de pessoas ou bens de uma coletividade, exigindo rápidas providências do Poder Público
para debelar ou minorar suas conseqüências lesivas. A emergência há que ser reconhecida e declarada em cada
caso, a fim de justificar a dispensa da licitação para obras, serviços, compras ou alienações relacionadas com a
anormalidade que a Administração visa corrigir, ou com o prejuízo a ser evitado...’.
CAPítuLo 7
LiCitAção
7.6.3.2.3 renovação e prorrogação de contratos emergenciais
Ainda acerca dos contratos emergenciais, questão tormentosa diz respeito a saber
se seria possível a sua renovação55 além de 180 dias, em face da vedação contida no
art. 24, iv: “nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada
urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a
segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento de situação emergencial
ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo
máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da
emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos” (grifos nossos).
o tribunal de Contas da união, ao proceder ao exame do Processo tC
nº 625.189/97-3,56 entendeu que a ocorrência de nova situação calamitosa requer a celebração de novo contrato, não sendo possível a renovação — e não prorrogação, como
equivocadamente indica o dispositivo legal — do anteriormente celebrado.
55
56
os textos da lei e da doutrina acima transcritos não deixam dúvida de que o planejamento não é fator impeditivo ou autorizativo para que os administradores públicos procedam a dispensa de licitação por questões
emergenciais, fundamentada no dispositivo legal acima referido.
Sobre o tema, Lúcia Valle de Figueiredo e Sérgio Ferraz, citando Antônio Carlos Cintra do Amaral, afirmam
(in dispensa e inexigibilidade de Licitação, 2ª edição, editora revista dos tribunais, 1992, são Paulo-sP): ‘mais
adiante, vai distinguir a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia
administrativa. A ambas dá idêntico tratamento, no que atina à possibilidade de contratação direta. Porém, não
exime o responsável pela falha administrativa de sofrer sanções disciplinares compatíveis’.
obviamente, como se depreende do acima transcrito, não pode o administrador incorrer em duplo erro: além
de não planejar as suas atividades, permitir que a sua desídia cause maiores prejuízos à Administração e/ou a
terceiros.
enfatizo, dessa forma, que a dispensa de licitação, com fundamento no art. 24, inciso iv, da Lei nº 8.666/93, se
caracteriza como uma inadequação aos procedimentos normais de licitação, constituindo-se, sob esse prisma,
num poder-dever e não numa faculdade para o administrador, sob pena de ser responsabilizado pelos prejuízos
que a sua inércia venha a causar, independentemente de qualquer planejamento.
(...) diante do exposto, forçoso é reconhecer que a ausência de planejamento e a dispensa de licitação devem ser
tratadas como irregularidades independentes e distintas.” (tCu. decisão nº 138/1998, Plenário)
“A dispensa de licitação baseada em emergência só é admitida se o gestor demonstrar que o fato não poderia
ter sido previsto e que a falta de adoção de medidas urgentes poderia ocasionar maiores danos à Administração
Pública. se a situação fática exigir a dispensa, mesmo considerando a falta de planejamento, não pode o gestor
deixar de adotá-la, pois se assim proceder responderá não apenas pela falta de planejamento, mas também pelos
possíveis danos que sua inércia possa causar.” (tCu. Acórdão nº 2.293/2005, Plenário)
“(...) se caracterizada a existência de situação em que a demora no atendimento possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, faz-se
não apenas recomendável, mas imperativa a adoção de imediata solução, ainda que implique na realização de
contratação direta, sem licitação.
Consoante bem definiu o Voto (...) que sustentou a Decisão nº 138/98-Plenário, a ausência de planejamento e a
contratação direta fundamentada em situação de emergência caracterizam situações distintas, não necessariamente excludentes. estará incorrendo em duplo erro o administrador que, ante a situação de iminente perigo,
deixar de adotar as situações emergenciais recomendáveis, ainda que a emergência tenha sido causada por incúria administrativa. Há que se fazer a clara definição da responsabilidade: na eventual situação aludida, o responsável responderá pela incúria, não pela contratação emergencial.” (tCu. Acórdão nº 1.876/2007, Plenário).
importa, aqui, distinguir entre prorrogação e renovação. entendemos que temos renovação de vigência de contrato quando tendo sido fixado no contrato que este vigoraria por 12 meses, por exemplo, acerta-se que o mesmo
irá vigorar por mais 12 meses — além dos inicialmente pactuados (vide art. 57, ii, que admite esse tipo de renovação para contratos de serviço de natureza contínua). Ao contrário, temos a prorrogação de vigência de contrato,
quando tendo sido acertado que determinada obra seria iniciada em determinada data e concluída em 30 dias,
por exemplo, não é possível o início da execução do contrato pelo fato de a Administração não ter disponibilizado
o local. Nessa hipótese, ficará automaticamente prorrogado o prazo de vigência do contrato.
decisão nº 822/1997, Plenário. rel. min. Humberto Guimarães souto. Ata n. 48/97. DOU, 12 dez. 1997.
347
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
348
situação diversa, em que se examinou a possibilidade de prorrogação, e não de
renovação, de contrato emergencial, foi igualmente objeto de manifestação do mesmo
tribunal de Contas da união. A interpretação procedida pelo tribunal levou à conclusão
de que o art. 24, iv, a rigor, estaria a vedar a renovação do prazo do contrato, e não a
prorrogação do início ou da conclusão da execução de contratos celebrados sem licitação
sob o fundamento de urgência ou emergência. no exame do Processo tC nº 500.296/96-0,
em que restou evidente a distinção entre os termos “renovação” e “prorrogação”,
manifestou-se o tCu nos seguintes termos:
5. As premissas que fundamentam a consulta são as seguintes. Foi decretado estado de
calamidade pública em um ente municipal. O município não tem recursos financeiros
suficientes para arcar com as despesas decorrentes desse estado calamitoso. Diante disso,
encaminhou projetos a órgãos do governo federal solicitando os recursos. Após aprovação,
os recursos foram repassados 60 (sessenta) dias após a ocorrência da calamidade e inclusive
do respectivo decreto. Por sua vez, o município só vai poder iniciar as obras, serviços e
aquisição de bens, oriundos dos projetos aprovados, após a efetivação dos créditos, posto
que só poderá empenhar à vista de tais créditos. na suposição de que as obras, serviços e
aquisições foram realizados de forma a atender o prazo contido no inciso iv do art. 24 da
Lei nº 8.443/92, qual seja, 180 (cento e oitenta) dias após o evento calamitoso, decorrendo
daí as contratações emergenciais, tais obras, serviços e aquisições só findarão 240 (duzentos
e quarenta) dias consecutivos e ininterruptos após a ocorrência do evento. (...)
21. Consoante registrado anteriormente, a Lei determina que ocorrendo situação calamitosa
ou emergencial, as obras e serviços deverão ser concluídos no prazo máximo de 180 (cento
e oitenta) dias, vedada a prorrogação dos respectivos contratos.
22. no entanto, a superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade
das partes, que altere as condições do respectivo contrato, é razão suficiente para alteração
do contrato, a teor do disposto no art. 57, §1º, item ii, da Lei nº 8.666/93.
23. nesse sentido, compartilho com o entendimento proferido pelo Prof. marçal Justen,
que assim prescreve: “a prorrogação é indesejável, mas não pode ser proibida. nesse
ponto, a lei deve ser interpretada em termos. A prorrogação poderá ocorrer, dependendo
das circunstâncias supervenientes. embora improvável, poderiam suceder-se duas
calamidades em uma mesma região, de modo que a segunda impedisse a regular execução
do contrato firmado para atender situação emergencial criada pelo evento anterior” (op.
cit. p.137).
24. Com respeito a Teoria da Imprevisão, a doutrina é pacífica no sentido de sua aplicação
em contratos administrativos. (...)
31. Diante do exposto, entendo, conclusivamente, que os contratos, firmados com dispensa
de licitação, com base no disposto no inciso iv, art. 24, da Lei nº 8.666/93, embora tenham
prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para a conclusão das obras e serviços, podem ser
prorrogados, desde que ocorra, posteriormente, fato excepcional ou imprevisível, estranho
à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato.
Assim, acolho a proposta da unidade técnica e voto no sentido de que o tribunal adote
a decisão que ora submeto à apreciação deste Plenário.57
57
em face de todas essas premissas, o tribunal de Contas da união proferiu a decisão nº 820/96, Plenário (Ata n. 51/96):
“o tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo relator, deCide: responder ao interessado que é possível,
quando da dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade, consoante o disposto no inciso iv do
art. 24 da lei nº 8.666/93, o retardamento do início e da devolução da contagem do prazo de 180 (cento e oitenta)
dias, desde que as ações tomadas pela Administração tenham sido prejudicadas pela superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução
do contrato, a teor do disposto no art. 57, § 1º, da mencionada Lei, devendo ser adequadamente fundamentado,
levando em conta, inclusive, as determinações contidas na decisão nº 347/94, tCu, Plenário. DOU, 21 jun. 94)”.
CAPítuLo 7
LiCitAção
É de se concluir, portanto, que os contratos emergenciais, diante de situações
excepcionais e estranhas à vontade das partes (conforme decisão nº 820/96 supra),
poderão sofrer prorrogação em seus prazos de início e de conclusão; não se admite, no
entanto, a renovação de referidos contratos.
7.6.3.2.4 Licitação deserta ou frustrada – Ausência de interessados
teríamos igualmente situação excepcional quando “não acudirem interessados
à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a
Administração, mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas” (art. 24, v).
Esta hipótese é usualmente denominada de licitação deserta ou frustrada. A fim de que a
ocorrência de uma licitação deserta — isto é, de ter sido realizada a licitação e ninguém
ter demonstrado interesse em dela participar por meio da apresentação de propostas
— justifique a contratação direta, é necessário que o contrato que venha a ser celebrado
siga os exatos termos do edital da primeira licitação.58 explicamos melhor. Feita uma
licitação, no edital constava a descrição do objeto a ser contratado. eventualmente, em
decorrência de detalhes constantes do edital, não acorreram interessados em participar
da licitação, tornando-a, portanto, deserta. se a Administração entender que tais detalhes são efetivamente desnecessários e venha a retirá-los do edital, deverá ser feita nova
licitação. Somente seria justificada a contratação sem licitação se aquela ocorresse nos
mesmos e exatos termos do edital da licitação deserta.59 Lembramos que a contratação
sem licitação fora das hipóteses autorizadas em lei enseja a responsabilização penal,
administrativa e civil do administrador. Finalmente, a fim de que a licitação deserta
justifique a contratação direta, é ainda necessário que se demonstre que a repetição
do processo licitatório poderia vir a resultar em riscos pela demora na celebração do
contrato. Presentes e demonstrados todos esses requisitos, a licitação será dispensável.
7.6.3.2.5 Convite e licitação deserta
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes acolhe entendimento firmado pela Secretaria do
tesouro nacional e defende que na hipótese de ter sido adotada a licitação na modalidade de convite, não seria possível que a ausência de manifestação de interesse dos
licitantes convidados viesse a legitimar a contratação sem licitação, dado que foi a
própria Administração que escolheu aqueles que ela desejou convidar. sobre a questão,
manifestou-se o autor nos seguintes termos:
58
59
nesse sentido, vide tCu: decisões nº 103/98, 2ª Câmara. DOU, 30 mar. 1998; nº 655/95, Plenário. DOU, 28 dez.
1995; e nº 35/96, 1ª Câmara. DOU, 18 mar. 1996.
o entendimento do tCu acerca desse tema é no sentido de que a observância de todos os requisitos constantes
do edital da licitação deserta devem ser observados por ocasião da celebração do futuro contrato não apenas em
relação às especificações do objeto licitado, mas igualmente em relação aos requisitos de habilitação. Nesse sentido, tCu: “A segunda Câmara, diante das razões expostas pelo relator, deCide: 8.1. - determinar ao instituto
nacional de metrologia, normalização e Qualidade industrial – inmetro que: (...) 8.1.10. - providencie para
que, nas contratações efetuadas com dispensa de licitação amparada no inciso v do artigo 24 da Lei nº 8.666/93,
seja rigorosamente cumprida a exigência legal, de manter-se, nos casos de contratação direta com base naquele
dispositivo, todas as condições exigidas na licitação fracassada, em especial quanto aos requisitos para a habilitação dos licitantes” (decisão nº 56/00, 2ª Câmara. DOU, 11 abr. 2000).
349
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
350
em princípio, como na modalidade de convite, é a Administração quem escolhe os possíveis
futuros licitantes não parece razoável que lhe seja permitido servir-se da possibilidade de
“ausência de interesse” para contratar diretamente, quando na verdade convidou mal.60
idêntica linha de raciocínio foi desenvolvida pelo tribunal de Contas da união
quando exigiu a realização de nova licitação caso não seja alcançado o número mínimo
de três propostas no primeiro convite.61
7.6.3.2.6 Licitação fracassada
Poderíamos ainda enquadrar dentro das hipóteses de dispensa de licitação
decorrentes de situações excepcionais aquela indicada no art. 24, vii. esta situação irá
caracterizar a denominada “licitação fracassada”.
Como bem observa maria sylvia Zanella di Pietro, “a licitação deserta não se
confunde com a licitação fracassada”.62 na deserta, ninguém chegou a apresentar documentação para participar da licitação; na fracassada, houve manifestação de interesse,
de modo que foram apresentadas propostas. Porém, todas essas propostas foram inabilitadas ou desclassificadas, de modo que não restou uma única proposta na licitação
que pudesse ser aproveitada pela Administração.
Marçal Justen Filho afirma:
(...) a contratação sem licitação autorizada pelo inc. VII do art. 24 pressupõe a verificação
de três condições:
- a primeira reside na apresentação de propostas inadmissíveis;
- a segunda reside no insucesso da providência do art. 48, §3º; e
- a terceira seria a existência de particular interessado disposto a contratar pelo preço
adequado.63
o art. 48, §3º, dispõe nos seguintes termos:
Art. 48 (...)
§3º Quando todos os licitantes forem inabilitados ou todas as propostas forem
desclassificadas, a Administração poderá fixar aos licitantes o prazo de oito dias úteis
para a apresentação de nova documentação ou de outras propostas escoimadas das
causas referidas neste artigo, facultada, no caso de convite, a redução deste prazo para
três dias úteis.
Nesse contexto, a fim de que a realização de licitação fracassada possa autorizar
a contratação sem licitação, é necessário que após a desclassificação, em razão do preço,
60
61
62
63
JACoBY FernAndes. Contratação direta sem licitação: modalidades de licitação, dispensa de licitação, licitação
dispensada, inexigibilidade de licitação, procedimentos para a contratação direta, p. 189.
tCu. decisão nº 274/94, Plenário. Ata n. 16/94. desde 2005, o tCu sumulou entendimento no sentido de que
“não se obtendo o número legal mínimo de três propostas aptas à seleção, na licitação sob a modalidade Convite, impõe-se a repetição do ato, com a convocação de outros possíveis interessados, ressalvadas as hipóteses
previstas no parágrafo 7º, do art. 22, da Lei nº 8.666/1993” (enunciado nº 248 da súmula da Jurisprudência do
tribunal de Contas da união).
di Pietro. Direito administrativo, p. 268.
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 227.
CAPítuLo 7
LiCitAção
de todos os licitantes, a Administração tenha oferecido aos licitantes excluídos nova
chance de apresentarem novas propostas, e nenhum dos licitantes tenha-se interessado
em fazê-lo.
7.6.3.2.7 Contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento
A “contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em conseqüência de rescisão contratual, desde que atendida a ordem de classificação da licitação
anterior e aceitas as mesmas condições oferecidas pelo licitante vencedor, inclusive
quanto ao preço, devidamente corrigido” (art. 24, Xi) constitui outra hipótese de licitação dispensável.
A fim de melhor entender essa situação, imaginemos que foi realizada licitação
para fornecimento, por exemplo de café, e que as propostas foram classificadas nos
seguintes termos: empresa A – preço r$5,00; empresa B – preço r$6,00; empresa C – preço
R$7,00. O fornecimento deveria ocorrer no período de um ano, nos termos fixados no
edital. Após três meses do início da execução do contrato, em decorrência de constantes e sistemáticos atrasos, o contrato celebrado pela Administração com a empresa A
foi rescindido. A Administração, querendo, poderia proceder a nova licitação. Poderá
preferir, no entanto, convocar as empresas B e C, nesta ordem, para saber se estas têm
interesse em contratar o remanescente do fornecimento. se qualquer delas aceitar, o que
dependerá exclusivamente delas — a Administração não poderá obrigá-las a contratar
por preços que elas não apresentaram, que não constaram em suas propostas —, o
novo contrato deverá ser celebrado nos mesmos termos do antigo contrato rescindido,
inclusive quanto ao preço de r$5,00.
Acerca da aplicação dessa hipótese de contratação sem licitação, questão tormentosa diz respeito a saber se seria possível a sua aplicação em qualquer hipótese de
extinção contratual.
Acreditamos que esse permissivo legal não se aplica às contratações extintas
por advento do termo ou cumprimento de prazo. A razão é que o dispositivo legal
acima transcrito trata da contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento
“em conseqüência de rescisão contratual”. enquanto a extinção é gênero que, embora
compreenda como espécie a rescisão, contempla também outras espécies que não se
classificam como tal, a exemplo do advento do termo ou cumprimento de prazo.64
7.6.3.2.8 outras hipóteses de contratação direta relacionadas a
situações excepcionais
outras hipóteses de contratação direta, em decorrência de situações excepcionais
ocorrem: quando a união intervier no domínio econômico para regular preços ou normalizar o abastecimento (art. 24, vi); quando houver possibilidade de comprometimento
da segurança nacional (art. 24, iX); para a aquisição de bens ou serviços nos termos
de acordo internacional específico aprovado pelo Congresso Nacional (art. 24, XIV); e
64
Conforme decisão tCu nº 531/93, Plenário, decidiu o tribunal que esse dispositivo (art. 24, Xi) somente seria
aplicável nas hipóteses de rescisão de contrato, não sendo aplicável às hipóteses de extinção do contrato por
advento de termo contratual.
351
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
352
nas compras ou contratações de serviços para abastecimento de navios, embarcações,
unidades aéreas ou tropas e seus meios de deslocamento, quando em estada eventual
de curta duração em portos, aeroportos ou localidades diferentes de suas sedes, por
motivo de movimentação operacional (art. 24, Xviii).
7.6.3.3 dispensa em razão do objeto
em razão do objeto, a lei torna dispensável a realização de licitação, em primeiro
lugar, “para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da Administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a
sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor do mercado” (art. 24, X).65
É igualmente dispensável a licitação, em decorrência de seu objeto, “nas compras
de hortifrutigranjeiros, pão e outros gêneros perecíveis, no tempo necessário para a realização
dos processos licitatórios correspondentes, realizadas diretamente com base no preço do
dia” (art. 24, Xii). observamos que nessa hipótese, por tratar-se de contrato de compra,
ainda que não seja realizada a licitação, devem ser obedecidas as regras relativas a esse
contrato constantes nos artigos 14 a 16 (indicação de recursos orçamentários, divulgação
mensal da lista de compras realizadas etc.).
o inciso Xv do mesmo art. 24 prevê a dispensa da licitação “para a aquisição ou
restauração de obras de arte e objetos históricos, de autenticidade certificada, desde que
compatíveis ou inerentes às finalidades do órgão ou entidade”. Pode ser observado
que esse dispositivo contém duas hipóteses: aquisição e restauração. Quanto a esta
última, a Constituição Federal (art. 216, §1º) disciplina, inclusive como obrigação
do poder público, a preservação do patrimônio cultural brasileiro. relativamente à
aquisição, que igualmente enquadra-se como forma de preservação do patrimônio
artístico, histórico ou cultural, deve ser perfeitamente demonstrado o interesse público
na aquisição daquela obra de arte ou daquele objeto histórico, de modo que não sejam
infringidos os princípios da impessoalidade e da moralidade.
o art. 24, Xvii, determina, ainda, que será dispensável a licitação para a “aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção
de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses
equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência
da garantia”. no Capítulo 5 deste curso, em que são estudados os contratos administrativos, analisamos que nas compras, os fornecedores são obrigados a assegurar prazo
de garantia dos produtos fornecidos. nesses termos, muitas vezes, para não perder a
garantia, relativa à assistência técnica do produto, faz-se obrigatória a aquisição de
determinadas peças de reposição.
A aquisição de bens ou materiais para as Forças Armadas, com exceção de materiais
de uso pessoal e administrativo (art. 24, XiX), bem como a aquisição de bens e insumos
destinados exclusivamente à pesquisa científica e tecnológica com recursos concedidos pela
CAPES, FINEP, CNPq ou outras instituições oficiais credenciadas pelo CNPq (art. 24,
XXi) pode ser objeto de dispensa de licitação.
65
o inciso X do art. 24 da Lei nº 8.666/93 não pode fundamentar a compra de imóvel inacabado. o texto desse dispositivo claramente refere-se a imóveis concluídos. nesse sentido, vide decisão tCu nº 70/96, Plenário (DOU, 18
mar. 1996), e nenhuma analogia ou interpretação extensiva que vise à criação de novas espécies de contratação
sem licitação são admitidas.
CAPítuLo 7
LiCitAção
nova hipótese de dispensa de licitação foi criada pela Lei nº 12.188/2010, mediante
o acréscimo do inciso XXX no art. 24 da Lei nº 8.666/93, que também pode ser enquadrada na categoria “em razão do objeto”. trata-se da “contratação de instituição ou
organização, pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, para a prestação de serviços
de assistência técnica e extensão rural no âmbito do Programa Nacional de Assistência Técnica
e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária, instituído por lei federal”.
o programa a que se refere o novo dispositivo legal (PronAter) foi instituído
pela mesma Lei nº 12.188/2010 e tem como objetivos a organização e a execução dos
serviços de educação não formal, de caráter continuado, no meio rural, nas áreas de processos de gestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades e serviços
agropecuários e não agropecuários, inclusive das atividades agro extrativistas, florestais
e artesanais, para assentados da reforma agrária, povos indígenas, remanescentes de
quilombos, agricultores familiares, empreendimentos familiares rurais, silvicultores,
aquicultores, extrativistas, pescadores e outros grupos apontados pela lei.
embora não seja feita restrição expressa no dito inciso XXX, é possível inferir que
a contratação aludida na nova hipótese de dispensa cinge-se às “entidades executoras
do PronAter”, a que faz referência o art. 11 da citada lei e que compreendem as instituições ou organizações públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos, previamente
credenciadas conforme requisitos estabelecidos no art. 15 do mesmo diploma legal.
Considerando que a licitação, como já visto (item 7.5), foi elevada à categoria
de princípio da Administração Pública, convém examinar, na oportunidade em que
se constitui a trigésima hipótese em que ela é dispensável, se aquilo que deveria ser
exceção não está indevidamente, ainda que por via legislativa, convertendo-se em regra.
Cumpre, para tanto, responder indagação de cunho axiológico, a fim de determinar
qual seria o valor especialmente considerado pelo legislador, ao conceber a nova hipótese
de dispensa de licitação, que justificaria, sob a ótica do interesse público, o afastamento
do certame, lembrando que este se destina a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração.
Faz-se indispensável, nesse sentido, investigação mais pormenorizada para a
identificação das razões que levaram à alteração legislativa em comento.
Colocamo-nos em situação difícil de transpor apenas pelo exame do sucinto texto
do inciso XXX. embora se possa vislumbrar a grande relevância das ações governamentais
voltadas à educação e capacitação das pessoas ocupadas pelas atividades para as quais
se dirige a Lei nº 12.188/2010, não é possível, de antemão, situá-las em posição muita
diferenciada de diversos outros programas públicos igualmente importantes nas áreas
de saúde, educação, assistência social, segurança, justiça etc., cujas necessidades são rotineiramente supridas mediante contratação precedida de regular procedimento licitatório.
Convém, pois, que se busque a reposta na exposição de motivos que acompanhou
o projeto da lei ora em exame.
A empreitada resulta, não obstante, igualmente sem êxito.66 o teor do referido
documento, ao contrário, induz mesmo a conclusão de que não há razões para dispensar o certame nas contratações no âmbito do PronAter que ostentariam elevação
equivalente à altura dos valores constitucionais expressos nos princípios da licitação.
66
menciona-se, na referida peça, o cenário que envolve a atividade agrícola atual, com o aumento da demanda
nacional e internacional por alimentos, os problemas climáticos, os estoques mundiais rebaixados e a competição
353
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
por mercados internacionais como fatores para acelerar o processo de organização dos agricultores familiares
e assentados. É aí que se insere, segundo a exposição de motivos, a necessidade de dar acesso a serviços de
educação não formal de caráter continuado na área.
embora se possa questionar a pertinência, por não ser comprovada, da relação estabelecida entre a produção
rural dos agricultores familiares e assentados e a demanda internacional por alimentos ou os estoques mundiais
rebaixados, é induvidosa a necessidade de capacitação das pessoas dedicadas a essa atividade, mesmo que seja
para a própria subsistência.
Seja num ou noutro caso, todavia, não se extrai daí justificativa para admitir exceção à obrigatoriedade de licitação,
haja vista que, apenas por ser necessária a prestação dos serviços, não se faz dispensável a licitação prévia a sua
contratação, pois que então se daria o oposto do que quer a Constituição e esta não seria a regra, mas a exceção.
Adiante, a exposição de motivos procura demonstrar — mas não conclui a tarefa — a insuficiência e a ineficácia
dos atuais instrumentos utilizados pelo Governo Federal para esse fim, a saber, os contratos de repasse e os
convênios anuais.
Afirma, sem explicitar as razões, que tais instrumentos impõem limites à abrangência, agilidade, contemporaneidade e qualidade dos serviços prestados de assistência técnica e extensão rural, restringindo a oferta no
momento em que o agricultor mais necessita de assessoramento. A sistemática vigente provocaria, ainda, interrupções na prestação dos serviços incompatíveis com a natureza da atividade agrícola.
É daí que se procura inicialmente deduzir os motivos para a adequação legislativa que introduziu a trigésima
hipótese de dispensa de licitação. Considera-se que a contratação direta tem fundamental importância para a
prestação dos serviços relativos ao PnAter e ao PronAter com a qualidade, tempestividade e acessibilidades requeridas, dado o caráter sazonal da produção agrícola e o atual processo de desenvolvimento brasileiro.
mesmo que a sazonalidade da produção rural exigisse maior agilidade na implantação das medidas pretendidas pelo Governo para a área — o que também é afirmação questionável para o caso em exame, haja vista que
se fala em serviços de assistência técnica e extensão rural de caráter continuado, o que permite planejamento
que leve em conta os ciclos naturais que se impõem sobre a atividade — restaria indagar que outros serviços
prestados à população, em qualquer campo, não devam ser oferecidos com qualidade, tempestividade e acessibilidade, permitindo, portanto, que sobre eles incida, a teor do critério utilizado na exposição de motivos, a
obrigatoriedade de licitação prévia à contratação.
Alude-se, ainda, ao fato de que, “para a prestação de serviços de assistência técnica e extensão rural, o procedimento licitatório torna-se desvantajoso para a administração pública”.
Parece-me, aqui, que houve alguma confusão acerca dos propósitos da licitação, uma vez que não se pode dizer que
o procedimento licitatório — que sempre há, em alguma medida, de ser acusado de moroso e oneroso — represente
em qualquer caso, por si mesmo, alguma vantagem para a Administração. Sua finalidade é a busca da proposta
mais vantajosa, mas não apenas essa — que poderia ser alcançada independentemente de certame —, envolvendo
também, e igualmente, a de realizar o princípio da isonomia ao oferecer uma oportunidade de contratação.
sendo assim, poder-se-ia considerar o procedimento licitatório tanto mais vantajoso para a Administração licitante quanto melhor atendidos forem esses dois objetivos. isso não se faz, naturalmente, com o sacrifício arbitrário de um em detrimento do outro, mas, pelo contrário, subordinando-os um ao outro e coordenando-os na
medida conveniente para garantir simultaneamente máxima eficácia aos princípios que presidem ambos os
propósitos. A complicada tarefa, deve-se admitir, de encontrar esse equilíbrio é desempenhada com inteligência
pelo procedimento licitatório, de forma que a fórmula para seleção de um contratado nele empregada somente
pode ser dispensada por uma razão de maior estatura. É o que perguntamos agora, que razão é essa?
segundo a exposição de motivos, tal razão poderia ainda ser encontrada no fato de que existem entidades, instituições e organizações prestadoras desses serviços que estariam impossibilitadas de participar do certame em face
da sua natureza jurídica. essa impossibilidade “elidiria os princípios da isonomia e da igualdade no momento da
apresentação das propostas, pois os licitantes não estariam em condições de igualdade, considerando, entre outros
aspectos, a exploração ou não da atividade econômica”.
sem prejuízo da indagação concernente a saber como a natureza jurídica de certa instituição pode impedir-lhe a
participação na licitação sem, ao mesmo tempo, constituir obstáculo à contratação, há que se apontar o equívoco
em que incorre a interpretação contida na exposição de motivos quanto à aplicação do princípio da isonomia e
sua possível elisão em face das diferentes naturezas jurídicas dos interessados.
o expositor de motivos parece supor que toda e qualquer inabilitação de interessado na licitação que decorra de
sua natureza jurídica ofenderia o princípio da isonomia. essa, no entanto, não é consequência que se possa extrair
do referido princípio. As condições de igualdade reclamadas não são garantidas pelo tratamento igualitário
incondicional de todos os licitantes, mas pela garantia de que as diferenças havidas entre eles somente sejam
consideradas se relevantes para a execução do objeto licitado ou para proporcionar condições de competitividade
equânimes e justas (ver item 7.4.3).
Outra justificativa para dispensar a aplicação do certame na hipótese de que cuida a alteração legislativa em
comento seria a de que consta, na própria Constituição Federal, no inciso iv do art. 187, a determinação para
que a política agrícola seja planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de armazenamento e de transportes,
levando em conta, a assistência técnica e extensão rural.
Ao contrário do entendimento que consta da exposição de motivos, não nos parece que se possa afirmar que
o citado “dispositivo constitucional ressalta a supremacia do interesse público na utilização dos pressupostos
da Lei de Licitações e Contratos, mais precisamente no formato de dispensa de licitação”. Quando menciona o
CAPítuLo 7
LiCitAção
A origem da nova hipótese de dispensa parece situar-se, na verdade, na mera
circunstância de que a pretensão de contratar sem licitação os serviços em questão
não encontrou eco na legislação. É, afinal, o que se pode depreender da própria exposição de motivos quando afirma que “as especificidades existentes para a prestação
dos serviços de assistência técnica e extensão rural não se encontram suficientemente
consubstanciadas, de forma satisfatória e suficiente, nas várias condições de enquadramento estabelecidas na Lei nº 8.666/93 para a dispensa de licitação”, o que remeteu “à
necessidade de se estabelecer uma nova condição para tanto”.
Há muito que o tema Licitações está a merecer um novo estatuto. A obrigatoriedade de licitar, que deveria ser a regra nas contratações realizadas pela Administração
Pública, tem sido constantemente mitigada. desde 2005, ou seja, em apenas seis anos,
foram incluídas oito novas hipóteses de dispensa de licitação, acrescendo de incisos
o art. 24 da Lei nº 8.666/93. Afora isso, uma grande quantidade de outros dispositivos
dessa lei já foi alterado, por adição, exclusão ou mudança de redação, demandando,
assim, uma norma atual e completa.
A Lei nº 12.349/2010 incluiu a 31ª hipótese de dispensa de licitação, também em
razão do objeto como no caso do inciso XXX antes descrito, com a seguinte redação:
Art. 24. (...)
XXXi - nas contratações visando ao cumprimento do disposto nos arts. 3º, 4º, 5º e 20 da
Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, observados os princípios gerais de contratação
dela constantes.
A Lei nº 10.973/2004, a que se refere o novo motivo de dispensa de licitação,
“dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente
produtivo e dá outras providências”.
de início, releva dizer que a chamada Lei de inovação tinha introduzido, na época
de sua edição, o vigésimo quinto caso de dispensa de licitação, a saber:
XXV - na contratação realizada por Instituição Científica e Tecnológica – ICT ou por agência
de fomento para a transferência de tecnologia e para o licenciamento de direito de uso ou
de exploração de criação protegida.
Portanto, já havia no ordenamento jurídico um estímulo à inovação e à pesquisa
científica e tecnológica em face da possibilidade de uma ICT ou agência de fomento
planejamento e a execução de políticas agrícolas com a participação efetiva do setor de produção, a Constituição
revela a preocupação em abrir, no seio das ações governamentais voltadas à produção rural, espaço para atuação do segmento que guarda, com essas ações, relação de interesses recíprocos e de objetivos comuns, típicos de
atividades que se desenvolvem em regime de mútua cooperação e não mediante relação contratual, caracterizada, como se sabe, por interesses diversos e opostos (ver item 6.6.1). se não está situada aí relação contratual,
tampouco há que se falar, para o caso, em utilização do formato de dispensa de licitação.
Afirma-se, em seguida, a possibilidade de competição na prestação de serviços de assistência técnica e extensão
rural, mas supondo-se demonstrados os inconvenientes que o procedimento licitatório representaria ao interesse
público, entende-se corroborado seu enquadramento como hipótese legítima de dispensa de licitação.
Concretamente, no entanto, até onde os motivos expostos para a alteração legislativa nos permitiram ver, o procedimento licitatório para os mencionados serviços, se traz de fato algum inconveniente, não seria propriamente
para a Administração, mas para certas “entidades, instituições e organizações prestadoras desses serviços que
estariam impossibilitadas de participar do certame em razão de sua natureza jurídica”.
355
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
356
contratar diretamente, sem procedimento seletivo, a transferência de tecnologia e o
licenciamento do direito de uso ou de exploração da criação.
desta feita, a Lei nº 12.349/2010 verdadeiramente não inseriu apenas mais uma
inédita hipótese de dispensa de licitação, mas previu quatro novos casos, ao se referir
aos artigos 3º, 4º, 5º e 20 da Lei de inovação.
diferentemente de todos os demais incisos do artigo 24 da Lei de Licitações, que
estabelecem de forma mais bem definida os casos em que a licitação é dispensável, o
inciso ora acrescido, a par de ser incompleto, pois depende de sua integração com os
citados dispositivos da Lei nº 10.973/2004, é errático e impreciso, empregando uma
linguagem de estilo voluntarioso.
difícil, senão impossível, é saber a quais contratações se destina a hipótese de
dispensa de licitação em tela. o novo inciso não se aplica a uma determinável avença,
mas, de forma vaga, às “contratações visando ao cumprimento do disposto nos arts. 3º,
4º, 5º e 20 da Lei nº 10.973”.67
Ademais, o inciso acrescido ao art. 24 do estatuto das Licitações reza in fine
que deverão ser observados os princípios gerais de contratação constantes da Lei
nº 10.973/2004.
67
eis os artigos da Lei nº 10.973/2004 citados no inserido inciso XXXi do art. 24 da Lei nº 8.666/93:
“Art. 3º A união, os estados, o distrito Federal, os municípios e as respectivas agências de fomento poderão
estimular e apoiar a constituição de alianças estratégicas e o desenvolvimento de projetos de cooperação envolvendo empresas nacionais, ICT e organizações de direito privado sem fins lucrativos voltadas para atividades
de pesquisa e desenvolvimento, que objetivem a geração de produtos e processos inovadores.
Parágrafo único. o apoio previsto neste artigo poderá contemplar as redes e os projetos internacionais de pesquisa tecnológica, bem como ações de empreendedorismo tecnológico e de criação de ambientes de inovação,
inclusive incubadoras e parques tecnológicos.
Art. 4º As iCt poderão, mediante remuneração e por prazo determinado, nos termos de contrato ou convênio:
i - compartilhar seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações com microempresas e empresas de pequeno porte em atividades voltadas à inovação tecnológica, para a consecução de atividades de incubação, sem prejuízo de sua atividade finalística;
ii - permitir a utilização de seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações existentes em suas próprias dependências por empresas nacionais e organizações de direito privado sem fins lucrativos
voltadas para atividades de pesquisa, desde que tal permissão não interfira diretamente na sua atividade-fim,
nem com ela conflite.
Parágrafo único. A permissão e o compartilhamento de que tratam os incisos i e ii do caput deste artigo obedecerão às prioridades, critérios e requisitos aprovados e divulgados pelo órgão máximo da iCt, observadas as respectivas disponibilidades e assegurada a igualdade de oportunidades às empresas e organizações interessadas.
Art. 5º Ficam a união e suas entidades autorizadas a participar minoritariamente do capital de empresa privada
de propósito específico que vise ao desenvolvimento de projetos científicos ou tecnológicos para obtenção de
produto ou processo inovadores.
Parágrafo único. A propriedade intelectual sobre os resultados obtidos pertencerá às instituições detentoras do
capital social, na proporção da respectiva participação. (...)
Art. 20. os órgãos e entidades da administração pública, em matéria de interesse público, poderão contratar
empresa, consórcio de empresas e entidades nacionais de direito privado sem fins lucrativos voltadas para
atividades de pesquisa, de reconhecida capacitação tecnológica no setor, visando à realização de atividades de
pesquisa e desenvolvimento, que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou
obtenção de produto ou processo inovador.
§1º Considerar-se-á desenvolvida na vigência do contrato a que se refere o caput deste artigo a criação intelectual pertinente ao seu objeto cuja proteção seja requerida pela empresa contratada até 2 (dois) anos após o seu
término.
§2º Findo o contrato sem alcance integral ou com alcance parcial do resultado almejado, o órgão ou entidade
contratante, a seu exclusivo critério, poderá, mediante auditoria técnica e financeira, prorrogar seu prazo de
duração ou elaborar relatório final dando-o por encerrado.
§3º o pagamento decorrente da contratação prevista no caput deste artigo será efetuado proporcionalmente ao
resultado obtido nas atividades de pesquisa e desenvolvimento pactuadas.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
Em primeiro lugar, é criticável o fato de que uma lei específica para o incentivo
à inovação e pesquisa disponha acerca de princípios gerais de contratação. estes, por
óbvio, devem estar previstos na lei que estabelece o regime Jurídico das Licitações, ou
seja, a Lei nº 8.666/93.
Depois, também nesta parte final o inciso incluído é incerto e vago: afinal que
dispositivos estabelecem os princípios gerais de contratação na Lei de inovação?
Podemos supor, sem poder assegurar, todavia, que esses princípios estão previstos nos incisos do art. 27 da Lei nº 10.973/2004, cujo caput dispõe que na aplicação
da lei serão observadas determinadas diretrizes.68 referimo-nos, particularmente, à do
inciso iv, já que esse dispositivo também foi inovado pela 12.349/2010 com o objetivo
de dar, de forma igualmente confusa, tratamento privilegiado, na aquisição de bens e
serviços para o desenvolvimento institucional, às empresas que invistam em pesquisa e
no desenvolvimento de tecnologia no País e às microempresas e empresas de pequeno
porte de base tecnológica.
A Lei nº 12.715, de 17 de setembro de 2012, aumentou para trinta e duas as hipóteses “excepcionais” para a contratação com dispensa de licitação, acrescentando mais
um inciso ao art. 24 da Lei nº 8.666/93: “XXXii - na contratação em que houver transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o sistema único de saúde – sus,
no âmbito da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, conforme elencados em ato da
direção nacional do sus, inclusive por ocasião da aquisição destes produtos durante
as etapas de absorção tecnológica”.
A hipótese, lamentavelmente, se afigura mais um casuísmo. Com efeito, se hoje
parece justificável dispensar licitação na compra de produtos estratégicos para o SUS,
o que impedirá de amanhã ser instituída nova hipótese para, por exemplo, a construção de hospitais? Quem haverá de negar que obras como essa são tão relevantes
quanto a compra dos produtos de que cuida o novo inciso XXXii? A Constituição, no
entanto, impôs a licitação como regra, de modo que a prática reiterada e disseminada
do procedimento permitisse o aprendizado e o desenvolvimento de uma nova cultura
para as contratações da Administração Pública, regida pela eficiência, impessoalidade
e voltada ao atendimento dos interesses da sociedade. Casuísmos não servirão a esse
propósito e, além de inconstitucionais, tornarão muito mais difícil, senão impossível, a
fiscalização das contratações, resultando provavelmente, o que é pior, no desperdício
de recursos públicos.
7.6.3.4 dispensa em razão da pessoa
A licitação é, finalmente, dispensável em razão da pessoa.
68
“Art. 27. na aplicação do disposto nesta Lei, serão observadas as seguintes diretrizes:
i - priorizar, nas regiões menos desenvolvidas do País e na Amazônia, ações que visem a dotar a pesquisa e o
sistema produtivo regional de maiores recursos humanos e capacitação tecnológica;
ii - atender a programas e projetos de estímulo à inovação na indústria de defesa nacional e que ampliem a
exploração e o desenvolvimento da Zona econômica exclusiva (Zee) e da Plataforma Continental;
iii - assegurar tratamento favorecido a empresas de pequeno porte; e
iv - dar tratamento preferencial, diferenciado e favorecido, na aquisição de bens e serviços pelo poder público e
pelas fundações de apoio para a execução de projetos de desenvolvimento institucional da instituição apoiada,
nos termos da Lei no 8.958, de 1994, às empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia
no País e às microempresas e empresas de pequeno porte de base tecnológica, criadas no ambiente das atividades de pesquisa das iCts.”
357
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
358
sob esse fundamento, a contratação poder-se-ia efetuar, em primeiro lugar, sem a
realização de licitação, visando à “aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno,
de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração
Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência
desta Lei,69 desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”
(art. 24, viii).
em relação à regra acima mencionada, a primeira observação é no sentido de
excluir do seu âmbito de incidência as empresas públicas e sociedades de economia
mista das três esferas de governo. isto é, apenas a Administração Pública direta (união,
estados, distrito Federal e municípios), autarquias e fundações públicas poderão contratar, sob esse fundamento, bens ou serviços fornecidos por outro órgão ou entidade70
da Administração Pública, sem a devida licitação.
Acerca da hipótese de dispensa prevista no art. 24, viii, da Lei nº 8.666/93,
cumpre notar a nova regra introduzida pela Lei nº 12.715, de 17 de setembro de 2012,
ao acrescentar o §2º ao mencionado artigo: “o limite temporal de criação do órgão ou
entidade que integre a administração pública estabelecido no inciso viii do caput deste
artigo não se aplica aos órgãos ou entidades que produzem produtos estratégicos para
o sus, no âmbito da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, conforme elencados em
ato da direção nacional do sus”.
teríamos, ainda, a possibilidade de se fazer contratação direta em razão da pessoa
que se contrata no caso de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos
e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para
a prestação de serviços ou fornecimento de mão de obra, desde que o preço contratado
seja compatível com o praticado no mercado (art. 24, XX). sob esse fundamento poderia
a Administração Pública contratar, sem licitação, por ser dispensável, uma Associação
de Pais e Amigos de excepcionais (APAe), por exemplo, caso os preços dos serviços
sejam compatíveis com os do mercado.
em razão da pessoa, a licitação seria também dispensável nas situações previstas
nos incisos Xiii que dizem respeito à contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional,71 ou
de instituição dedicada à recuperação social do preso. A contratação direta alicerçada
69
70
71
A medida Provisória nº 580, de 14 de setembro de 2012, criou nova hipótese de dispensa de licitação mediante
a introdução do art. 18-A na Lei nº 11.759/2008, autorizando a contratação direta da empresa pública Centro
nacional de tecnologia eletrônica Avançada s.A. – CeiteC por órgãos e entidades da administração pública
para a realização de atividades relacionadas ao objeto da referida empresa. A nova regra constitui exceção não
apenas ao dever de licitar, mas também à exigência de que o órgão ou entidade integrante da Administração
Pública a ser contratado com dispensa de licitação tenha sido criado anteriormente à vigência da Lei nº 8.666/93,
conforme disposição contida no art. 24, inciso viii, do referido diploma legal. nota-se, ademais, que se cuida de
regulamentação anômala de matéria pertinente a licitações e contratações, haja vista que era de se esperar ver
o assunto tratado na Lei nº 8.666/93, norma editada com a finalidade expressa de regulamentar o art. 37, inciso
XXi, da Constituição Federal.
A redação do dispositivo fala em “entidade” e em “órgão”. A diferença entre uma e outro consiste no fato de
que a entidade tem personalidade jurídica própria, ao passo que o órgão não a possui. Assim, por exemplo, uma
autarquia, uma fundação ou uma empresa pública são entidades, porque dotadas de personalidade jurídica. Já
uma secretaria de município, por exemplo, é órgão porque integra a Administração direta. A secretaria, isto é, o
órgão, não tendo personalidade jurídica, não contrata em nome próprio. Quando uma secretaria de município
contrata, quem de fato contratou foi a entidade a que ele pertence, no caso, o próprio município.
no voto condutor da decisão tCu nº 30/00, Plenário (DOU, 04 fev. 2000) encontra-se importante interpretação
acerca do termo “desenvolvimento institucional”, previsto no inciso Xiii, art. 24 da Lei nº 8.666/93.
CAPítuLo 7
LiCitAção
nesse dispositivo legal está autorizada desde que atendidos, concomitantemente, os
pressupostos expressamente nele estabelecidos como: (i) o fim buscado pela instituição — pesquisa, ensino ou desenvolvimento institucional, ou recuperação social do
preso; (ii) a inquestionável capacitação da instituição para o desempenho da atividade
contratada — inquestionável reputação ético-profissional; e (iii) não ser a obtenção
de lucro a disposição preponderante da entidade — ausência de finalidade lucrativa.
Acrescente-se, ainda, como circunstância necessária para caracterizar a excepcionalidade
prescrita no inciso retro reproduzido, mesmo não constando expressamente do texto
legal, a pertinência entre o objeto da contratação e o ramo de atividade da entidade,
isto é, o vínculo entre o fim da instituição e o objeto contratado.72
essa hipótese de contratação sem licitação ganhou imensa importância em face do
advento da Lei nº 8.958/94, que instituiu nova modalidade de dispensa de licitação para
as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica.73 Com
a advinda da referida lei, o Tribunal de Contas da União veio firmar entendimento no
sentido de que as ditas instituições não podem efetuar contratação sem licitação, com
base no inciso Xiii do art. 24 da Lei nº 8.666/93, para a execução de objeto sem existência de nexo entre este e projetos de pesquisa, ensino e extensão e de desenvolvimento
institucional, científico e tecnológico.
o decreto nº 5.205/04, que regulamenta a mencionada Lei nº 8.958/94, por meio do
que estabelece o §3º do seu art. 1º, pretendeu dar amplitude ao termo desenvolvimento institucional, o que poderia vir acarretar interpretação no sentido de as instituições federais
de ensino superior estarem autorizadas a contratar as fundações de apoio com dispensa
de licitação para a realização de objetos de diversas naturezas, desde que estejam
ligados à missão institucional da entidade.74 As contratações dessas fundações de apoio
72
73
74
Foi tendo em conta essas premissas que o eminente ministro marcos vinicios vilaça, no relatório que acompanha a decisão tCu nº 830/98, Plenário, manifestou-se no sentido de:
“em princípio, vale dizer quer os requisitos para contratação com base no artigo 24, inciso Xiii, da Lei nº 8.666/93,
não se restringem a ser a instituição brasileira; sem fins lucrativos; detentora de inquestionável reputação éticoprofissional; incumbida, regimental ou estatutariamente, da pesquisa, ensino ou desenvolvimento institucional
ou, ainda, dedicada à recuperação social do preso.
A fim de compatibilizar a norma com o ordenamento jurídico vigente, onde se tem, no campo da Administração
pública, o princípio maior da licitação — balizada por princípios outros como o da impessoalidade, da moralidade — impõe-se uma interpretação rigorosa do dispositivo legal citado, de modo a exigir que a entidade
contratada tenha objetivos condizentes com o objeto da contratação e estrutura que comporte o cumprimento
pessoal dos compromissos assumidos. (...)
na hipótese de desconsideração do objeto a ser contratado, estar-se-á concedendo às entidades em questão
privilégios além daqueles que se pretendeu. Ademais, tal prática provocará um completo desvirtuamento do
instituto da licitação, pois qualquer tipo de serviço poderá ser contratado sem licitação, bastando que a contratada possua os requisitos estabelecidos [expressamente] na lei. Ao se levar em conta somente a característica
da contratada, estar-se-á permitindo, portanto, uma interpretação absurda do inciso Xiii, do artigo 24, da Lei
nº 8.666/93, absolutamente desconforme com o ordenamento pátrio, inclusive a Carta magna.”
Acerca da contratação de ditas fundações de apoio, o tCu tem-se manifestado em diversas ocasiões nos seguintes termos:
- decisão nº 293/95, Plenário – através da qual o tribunal decidiu que a aquisição de materiais e a contratação
de serviços por parte de Hospital universitário são de sua competência exclusiva, sendo ilegal querer transferir
essas contratações à fundação de apoio;
- decisões nº 267/98, 2ª Câmara; e nº 881/97, Plenário – através das quais o tCu considerou ilegal a celebração
de contratos de caráter genérico;
- decisões nº 141/95, 1ª Câmara; nº 443/95, Plenário; e nº 229/96, 1ª Câmara –consideraram ilegal a utilização de
fundação de apoio para a contratação de pessoal para hospitais universitários.
o tribunal de Contas da união, tal como revela o pronunciamento do ministro Guilherme Palmeira no voto
condutor do Acórdão nº 1.934/04, Plenário (DOU, 16 dez. 2004), e do Acórdão nº 328/05, Plenário (DOU, 27
359
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
360
com base na citada Lei nº 8.958/94, além de terem de observar os critérios subjetivos
constantes naquela legislação (contratação por tempo determinado de instituições sem
fins lucrativos, criadas para dar apoio a projetos de pesquisa, ensino, extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico), deverão igualmente conformar-se
às exigências constantes no inciso Xiii do artigo 24 da Lei nº 8.666/93.75
o entendimento não pode ser outro. na hipótese de desconsideração do objeto
a ser contratado, e de serem exigidos apenas os requisitos subjetivos constantes da Lei
nº 8.958/94, estar-se-ia concedendo às entidades em questão privilégios totalmente
desarrazoados. Ademais, tal prática provocaria completo desvirtuamento do instituto
da licitação, pois qualquer tipo de serviço poderia ser contratado sem licitação, bastando que a contratada possua os requisitos estabelecidos na lei. Ao se levar em conta
somente a característica da contratada, estar-se-ia permitindo, portanto, interpretação
absurda do inciso Xiii, art. 24, da Lei nº 8.666/93.
Apenas as instituições que se dediquem precipuamente às atividades mencionadas no art. 24, Xiii, da Lei nº 8.666/93 sujeitam-se à possibilidade de contratação direta
por entes públicos. A criação, por instituições do gênero, de estruturas específicas para
o atendimento de demandas da Administração representa desvirtuamento dos objetivos
de interesse público que levaram o legislador a elaborar a Lei nº 8.958/94. Ademais, a
realização de subcontratações tem desvirtuado totalmente o propósito dessa legislação. embora qualquer entidade, seja pública ou privada, necessite contratar os meios
necessários para o seu desenvolvimento, não se pode conceber que ditas fundações
sejam contratadas sem licitação pela Administração e, depois, contrate com terceiros,
cobrando adicional sobre os preços. essa prática, além de onerar os cofres públicos,
implica burla ao dever de licitar.
A Lei nº 12.349, de 15.12.2010 reservou parte de seu texto à regulamentação do
relacionamento entre as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica com as suas fundações de apoio, resultando na alteração de vários
artigos da Lei nº 8.958/94.76 merece destaque o disposto no art. 1º, §§1º e 2º, dessa lei,
75
76
abr. 2005), censurou a amplitude pretendida pelo referido decreto ao termo “desenvolvimento institucional”,
reafirmando aquela Corte de Contas entendimento de que a dispensa de licitação a que se refere o inciso XIII
do art. 24 da Lei nº 8.666/93 apenas pode ser admitida quando, excepcionalmente, houver vínculo entre este
dispositivo, a natureza da instituição e o objeto a ser contratado.
“o tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo relator, deCide: (...) 4. determinar ao instituto nacional de
desenvolvimento do desporto – indesP que: (...) m) observe nas dispensas de licitação, com base no inciso Xiii
do art. 24 da Lei nº 8.666/93, a necessidade de ficar demonstrado nos autos que a entidade contratada — além
de ser brasileira, sem fins lucrativos, detentora de inquestionável reputação ético-profissional e incumbida regimental e estatutariamente do ensino, da pesquisa ou do desenvolvimento institucional — tem capacidade de
executar, com sua própria estrutura e de acordo com suas competências, o objeto do contrato.” (tCu. decisão
nº 881/97, Plenário. DOU, 26 dez. 1997)
Pode-se dizer que a maior parte das alterações da Lei nº 8.958/94 promovidas pela Lei nº 12.349/2010 resultaram da atuação do tribunal de Contas da união que, desde de o ingresso da Lei nº 8.958/94 no ordenamento
jurídico, vem apontado os desvirtuamentos nas contratações envolvendo as instituições federais de ensino superior
e suas fundações de apoio, contribuindo, sobretudo por meio de proposições corretivas dirigidas ao executivo
federal, para o aperfeiçoamento e transparência desse relacionamento. dentre os inúmeros trabalhos realizados
pelo tCu, cumpre ressaltar a Fiscalização de orientação Centralizada, autuada naquela Corte sob o nº tC
017.177/2008-2, por representar um diagnóstico completo e detalhado sobre o relacionamento entre as universidades federais e suas fundações de apoio. nas palavras do ministro Aroldo Cedraz, extraídas do voto que
fundamentou o Acórdão nº 2.731/2008, Plenário, mediante a análise ali empreendida “(...) não somente foram
expostas irregularidades e fragilidades nesse relacionamento, há tanto combatidas por este tribunal, mas sobretudo foram sugeridas algumas ações com potencial para produzirem reais mudanças nessa parceria, em especial no tocante aos aspectos de regulamentação, transparência e controle efetivo das atividades desenvolvidas
com recursos públicos alocados às mencionadas instituições de ensino”.
CAPítuLo 7
LiCitAção
com redação dada pelo art. 3º da referida Lei nº 12.349/2010, porquanto procura definir
limites para o conceito de desenvolvimento institucional aplicado nas contratações sem
licitação, com base no inciso Xiii do art. 24 da Lei nº 8.666/93, de que cuida o caput do
art. 1º da Lei nº 8.958/94.77 eis o teor daqueles dispositivos:
Art. 1º (...)
§1º Para os fins do que dispõe esta Lei, entende-se por desenvolvimento institucional os
programas, projetos, atividades e operações especiais, inclusive de natureza infraestrutural,
material e laboratorial, que levem à melhoria mensurável das condições das iFes e das
ICTs, para cumprimento eficiente e eficaz de sua missão, conforme descrita no plano
de desenvolvimento institucional, vedada, em qualquer caso, a contratação de objetos
genéricos, desvinculados de projetos específicos.
§2º A atuação da fundação de apoio em projetos de desenvolvimento institucional para
melhoria de infraestrutura limitar-se-á às obras laboratoriais, aquisição de materiais e
equipamentos e outros insumos especificamente relacionados às atividades de inovação
e pesquisa científica e tecnológica.
o §1º está em consonância com orientação do tribunal de Contas da união,
estabelecida na decisão nº 655/2002, Plenário, no sentido de que a contratação direta
resulte em ganhos efetivos no tocante ao desenvolvimento institucional, ou seja, que as
melhorias de eficácia e eficiência possam ser mensuradas em termos de desempenho
da instituição beneficiada.
A ocorrência relativa à formalização de contratos com objetos genéricos sempre
foi uma preocupação externada pelo TCU nas suas fiscalizações,78 de maneira que a
vedação expressa inserida na parte final do parágrafo primeiro tem claro objetivo de
evitar uma prática comum e reprovável nas contratações das fundações de apoio pelas
iFes consistente na formalização de contratos do tipo guarda-chuva, em que toda e
qualquer atividade pode estar sob o amparo do dito “desenvolvimento institucional”,
derivando daí sérias distorções em relação às finalidades para as quais estão vocacionadas as referidas entidades, segundo prevê o art. 1º, caput, da Lei nº 8.958/94.
Por sua vez, o parágrafo segundo manteve a possibilidade, já tantas vezes censurada pelo tCu, de uma fundação de apoio ser contratada para executar serviços
de infraestrutura, ainda que tal permissivo tenha se limitado a obras laboratoriais
associadas “às atividades de inovação e pesquisa científica e tecnológica”. A matéria
foi regulamentada por meio do decreto nº 7.432, de 31/12/2010, que, em seu art. 2º,
considera desenvolvimento institucional “os programas, projetos, atividades e operações especiais, inclusive de natureza infraestrutural, material e laboratorial, que levem
à melhoria mensurável das condições das iFes e demais iCts, para o cumprimento
eficiente e eficaz de sua missão, conforme descrita no Plano de Desenvolvimento Institucional, vedada, em qualquer caso, a contratação de objetos genéricos, desvinculados
77
78
uma outra inovação constante da Lei nº 12.349/2010 refere-se à possibilidade de a Financiadora de estudos e
Projetos (FINEP), como secretaria-executiva do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(FNDCT), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e as Agências Financeiras
Oficiais de Fomento também poderem realizar convênios e contratos, nos termos do inciso XIII do art. 24 da Lei
nº 8.666/93, com as fundações de apoio, com finalidade específica de dar apoio às IFES e às ICTs, com a anuência
expressa das instituições apoiadas (art. 1º-A da Lei nº 8.958/94).
em 2002, ao prolatar a decisão nº 655, o tribunal de Contas da união já contestava a contratação das fundações
de apoio para atividades continuadas e de objeto genérico, sem vinculação a projeto específico.
361
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
362
de projetos específicos podem ser considerados”. A despeito de a norma tentar trazer
uma roupagem de legalidade para a contração de entidades privadas de apoio para
serviços de construção civil, consideramos que essas atividades, ainda que restrita a
obras laboratoriais, continua nitidamente divorciada das atividades de pesquisa, ensino,
extensão e desenvolvimento institucional.
de igual modo, o parágrafo segundo cria outra distorção ao controvertido conceito de desenvolvimento institucional, ampliando excessivamente o seu alcance para
permitir que nele fossem inseridas as melhorias de infraestrutura relativas à “aquisição
de materiais e equipamentos e outros insumos especificamente relacionados às atividades de inovação e pesquisa científica e tecnológica”.
As fundações de apoio foram concebidas com o objetivo de apoiar projetos de
pesquisa, ensino, extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico, de
interesse das instituições federais de ensino superior.79 resta saber, então, em que medida
a pesquisa científica e tecnológica será favorecida com a possibilidade de contratação
sem licitação das referidas entidades para a aquisição de “materiais e equipamentos”.
E mais, se esse caso de contratação direita justificaria o comprometimento de outros
valores tão ou mais importantes para o estado decorrente da ausência de competição,
em especial a economicidade e a isonomia.
decerto que existem no mercado inúmeros interessados que poderiam satisfazer
a necessidade da Administração concernente ao fornecimento dos “materiais e equipamentos” citados no dispositivo em análise. se assim o é, o favorecimento das fundações
de apoio acaba por estabelecer uma espécie de reserva de mercado que não se coaduna
com os princípios da livre concorrência e da isonomia, além de ser potencialmente lesivo
aos interesses da Administração, uma vez que se deixa de aproveitar os benefícios
econômicos inerentes à licitação.
indiscutível contribuição veiculada pela Lei nº 12.349/2010, do ponto de vista da
transparência administrativa, refere-se à inclusão do §3º ao art. 1º da Lei nº 8.958/94.
o dispositivo é categórico ao vedar que se enquadre no conceito de desenvolvimento
institucional atividades permanentes de competência das iFes e das iCts, as quais
não estão vinculadas especificamente a projetos de pesquisa, ensino e extensão, ou
a desenvolvimento institucional, científico e tecnológico de interesse das instituições
contratantes.80
79
80
Na paradigmática Decisão nº 655/2002, Plenário, o Tribunal de Contas da União, ao definir os aspectos essenciais
para contratações firmadas pelas IFES com suas fundações de apoio, considerou que a “Fundação, enquanto
contratada, deve desempenhar o papel de escritório de contratos de pesquisa, viabilizando o desenvolvimento
de projetos sob encomenda, com a utilização do conhecimento e da pesquisa do corpo docente das iFes, ou
de escritório de transferência de tecnologia, viabilizando a inserção, no mercado, do resultado de pesquisas e
desenvolvimentos tecnológicos realizados no âmbito das universidades”.
“Art. 1º (...)
§3º É vedado o enquadramento no conceito de desenvolvimento institucional, quando financiadas com recursos
repassados pelas iFes e demais iCts às fundações de apoio, de:
i - atividades como manutenção predial ou infraestrutural, conservação, limpeza, vigilância, reparos, copeiragem, recepção, secretariado, serviços administrativos na área de informática, gráficos, reprográficos e de telefonia e demais atividades administrativas de rotina, bem como as respectivas expansões vegetativas, inclusive por
meio do aumento no número total de pessoal; e de rotina, bem como suas respectivas expansões vegetativas,
inclusive por meio do aumento no número total de pessoal; e
ii - outras tarefas que não estejam objetivamente definidas no Plano de Desenvolvimento Institucional da instituição apoiada.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
Quanto ao conceito propriamente dito de inquestionável reputação ético-profissional,
exigido pela lei, Jorge ulisses Jacoby Fernandes associa tal reputação à idoneidade moral,
fiscal etc. da fundação.81 esses elementos devem, é evidente, estar devidamente comprovados nos autos da contratação sem licitação. Não são eles suficientes, no entanto, para
demonstrar a “inquestionável reputação” de mencionadas fundações. deve o administrador
realizar pesquisa a fim de demonstrar a escolha de tal ou qual fundação. Não é possível
ter a convicção acerca da idoneidade da fundação se não forem fornecidos elementos
para tanto. Na verdade, a definição de inquestionável reputação ético-profissional não é
pacífica e envolve alto grau de subjetivismo, o que vai obrigar o administrador a motivar
minuciosamente a contratação.
vale citar, a esse respeito, trecho do voto proferido, o âmbito do tCu por ocasião do julgamento do tC nº 275.423/95-6 (decisão nº 172/96, Ata nº 14/96, Plenário),
do seguinte teor:
Como se vê, embora se possa estabelecer alguma relação entre a notória especialização de
que trata o art. 25, inciso II, da Lei nº 8.666/93 e a inquestionável reputação ético-profissional
mencionada no art. 24, inciso Xiii, da mesma lei, os dois termos não se confundem. o
primeiro deles, quando aliado à singularidade do objeto, afasta a licitação por inviabilidade
de competição (inexigibilidade). Já o segundo, atendidos os demais requisitos postos em lei
(art. 24, inciso Xiii), enseja a dispensa da licitação, mesmo quando a competição se revela
viável. É uma faculdade deferida por lei ao Administrador e que não implica qualquer
ofensa ao princípio da igualdade, já que a Constituição Federal tutela outros valores além
da isonomia, como o desenvolvimento do ensino, da pesquisa e da capacitação tecnológica
(art. 218 e 219 da CF/88, dentre outros).
A licitação é igualmente dispensável, em função da pessoa, nas hipóteses previstas
no art. 24 incisos Xvi (para a impressão dos diários oficiais, de formulários padronizados de uso
da Administração e de edições técnicas oficiais, bem como para a prestação de serviços de
informática a pessoa jurídica de direito Público interno, por órgãos ou entidades que
integrem a Administração Pública, criados para esse fim específico), XXII (contratação
do fornecimento ou suprimento de energia elétrica com concessionário, permissionário ou
autorizado, segundo as normas da legislação específica) e XXIII (na contratação realizada
por empresa pública ou sociedade de economia mista com suas subsidiárias e controladas, para a
aquisição ou alienação de bens, prestação ou obtenção de serviços, desde que o preço contratado
seja compatível com o praticado no mercado).82
7.6.4 inviabilidade de competição e inexigibilidade de licitação
sabe-se que a competição é um dos fundamentos básicos da licitação. realiza-se
esta a fim de que se possa obter a proposta que, nos termos da lei, seja considerada mais
vantajosa para a Administração. A licitação não pode ser realizada quando não houver
81
82
JACoBY FernAndes. Contratação direta sem licitação: modalidades de licitação, dispensa de licitação, licitação
dispensada, inexigibilidade de licitação, procedimentos para a contratação direta, p. 203-204.
na sessão de 15.6.2011, o tribunal de Contas da união aprovou a súmula nº 265, com o seguinte teor: “A contratação de subsidiárias e controladas com fulcro no art. 24, inciso XXiii, da Lei nº 8.666/93 somente é admitida nas
hipóteses em que houver, simultaneamente, compatibilidade com os preços de mercado e pertinência entre o
serviço a ser prestado ou os bens a serem alienados ou adquiridos e o objeto social das mencionadas entidades”.
363
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
364
competitividade em relação ao objeto que esteja sendo licitado. A principal característica
da inexigibilidade de licitação é, portanto, a inviabilidade de competição, conforme
dispõe o art. 25 da Lei de Licitações.
7.6.4.1 Fornecedor exclusivo
A primeira hipótese prevista no citado dispositivo como situação de inexigibilidade de licitação (art. 25, i) diz respeito à existência de fornecedor exclusivo.83 As situações de unicidade de produtor, fornecedor ou representante, vedada a preferência de
marca, não permitem a realização de licitação porque os materiais, equipamentos ou
gêneros, somente podendo ser fornecidos por uma única pessoa, tornam absolutamente
inviável qualquer tentativa de se obter mais de uma proposta.84 entretanto, a vedação à
preferência de marca serve para que não fique caracterizada a exclusividade à marca,
e sim ao tipo de produto. se existirem diversas marcas de um mesmo tipo de produto,
obviamente, pode-se proceder à competição.85
Conforme já estudado, a licitação visa, dentre outros aspectos, à obtenção da
proposta mais vantajosa dentre as que lhe são apresentadas. ora, se a Administração,
de antemão, sabe que apenas uma empresa ou profissional dispõe de condições para
fornecer determinado objeto, único capaz de satisfazer as necessidades daquela Administração, que sentido faria a realização da licitação?
Algumas observações sobre essa hipótese de inexigibilidade de licitação (fornecedor exclusivo) tornam-se necessárias. em primeiro lugar, deve o administrador
muito bem justificar por que necessita de contratar algo que apenas uma pessoa poderia
fornecer. em segundo lugar, deve ser demonstrada a exclusividade do fornecedor. A
parte final do inciso I do art. 25 determina que “a comprovação de exclusividade deve
ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em
que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes”.
Convém esclarecer que a mera apresentação de atestado em que consta a comprovação de exclusividade não é suficiente para se afirmar que a licitação é realmente
83
84
85
nesse sentido, stJ: “Administrativo – Contrato administrativo: aquisição de equipamento hospitalar – Ausência
de licitação. 1. Comprovada a exclusividade do produto, para venda, não se configura a ilegalidade. 2. A
empresa impetrante somente aluga os equipamentos, enquanto a litisconsorte é a única a vender. 3. recurso
improvido” (rms nº 4.684-ro, 2ª turma. rel. min. eliana Calmon. Julg. 21.10.1999. DJ, 29 nov. 1999).
o tribunal de Contas da união examinou representação da eleservice do Brasil – Componentes eletrônicos
Ltda., contra a Ceme – Central de medicamentos/ms, por ter contratado serviços com a indústria villares s/A,
fundamentando-se em inexigibilidade de licitação. A questão principal enfrentada pelo tribunal nessa ocasião
consistiu em saber se existiria competitividade no segmento de mercado objeto da licitação. eis alguns trechos
da discussão verificada no TCU:
“Como se percebe dos fatos representados e das considerações alinhadas pela srª diretora, a contratação de
serviços de manutenção e assistência técnica em elevadores e equipamentos não se enquadra nas hipóteses de
inexigibilidade de licitação, porque existe claramente a viabilidade de competição entre os diversos concorrentes estabelecidos no mercado.
esse tem sido o entendimento predominante do tribunal nas diversas assentadas em que analisou a matéria.
deste modo, o procedimento adotado pela Ceme/ms, no caso enfocado, foi eivado de erro, ao não promover
o certame licitatório prévio à contratação. Como atenuante, há a informação de que o fato foi amparado em
parecer da Assessoria Jurídica e o cancelamento a essa altura é inviável, dado que houve execução contratual.
resta, contudo, impedir a repetição do feito, promovendo-se as determinações sugeridas pela 4ª seCeX” (decisão nº 583/94, Plenário. Processo tC nº 007.955/93-6. rel. min. Fernando Gonçalves. DOU, 28 set. 1994).
nesse sentido, vide tCu. Acórdão nº 740/04, Plenário. DOU, 25 jul. 2004.
CAPítuLo 7
LiCitAção
inexigível. o administrador público, por ter obrigação de zelar pela boa e regular
aplicação dos recursos por ele geridos, deve adotar as providências necessárias para
confirmar a veracidade da documentação comprobatória da condição de exclusividade.86
restaria ainda pendente a questão de saber qual seria o âmbito territorial em
que deve restar caracterizada a exclusividade do fornecedor. note-se que o comando
inserto no aludido art. 25, i, tem, em princípio, caráter restritivo, ao expressar que o
atestado será fornecido pelo órgão de registro do comércio local, comando esse que,
entendemos, está sintonizado com o disposto no art. 20 da Lei nº 8.666/93 que estabelece
que as “licitações serão efetuadas no local onde se situar a repartição interessada, salvo
por motivo de interesse público, devidamente justificado”.
essa questão — de saber qual o âmbito em relação ao qual deverá ser demonstrada
a exclusividade — foi objeto de análise pelo tribunal de Contas da união por ocasião
do exame do Processo tC nº 300.061/95-1.87
observa-se que o atestado de exclusividade está diretamente relacionado à ausência
de competitividade na praça onde será realizada a licitação. se em determinada praça
a exclusividade do fornecedor é atestada, nos termos do art. 25, i, da Lei nº 8.666/93,
por sindicato ou entidade equivalente local, a licitação será, em princípio, inexigível.
Convém ainda observar que em diversas situações verificamos que, ainda que
haja exclusividade no fornecimento de certos produtos, existe competição na prestação
de serviços relacionados a esses mesmos produtos. nesses termos, não é por que uma
empresa fornece ou representa exclusivamente um produto que estará caracterizada
a inviabilidade de competição para a prestação de um serviço que envolva o fornecimento daquele produto exclusivo, tal como assistência técnica.88 na maioria das vezes
é possível a prestação do serviço utilizando-se outro equipamento similar. existindo a
86
87
88
nesse sentido, o tribunal de Contas da união, na sessão de 31.3.2010, aprovou a súmula nº 255, com o seguinte
teor: “nas contratações em que o objeto só possa ser fornecido por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, é dever do agente público responsável pela contratação a adoção das providências necessárias
para confirmar a veracidade da documentação comprobatória da condição de exclusividade”.
eis alguns trechos do voto do ministro relator do presente processo:
“sobressaem da auditoria levada a efeito na universidade Federal do espírito santo, na área de licitações e
contratos, duas questões que estão a merecer comentários adicionais, haja vista a divergência de opiniões na
unidade técnica, e, ainda, pela relevância das mesmas.
A primeira refere-se à contratação da empresa iBm Brasil – indústria, máquinas e serviços Ltda. para a prestação de serviços de manutenção de máquinas, com fulcro no art. 25, inciso i, da Lei nº 8.666/93, mediante declaração
de exclusividade expedida pelo sindicato do Comércio Atacadista de maquinismos em Geral do município do rio
de Janeiro.
Há de se ressaltar, de plano, que é indevida a fundamentação utilizada para o procedimento, pois o referido
dispositivo legal, abaixo transcrito, restringe a inexigibilidade somente para os casos de compras, não sendo
abrangidos, na hipótese, os serviços, como ocorrido na espécie, e as obras. (...)
Além desse aspecto, parece-me infundada a inexigibilidade declarada pela universidade para a contratação
da empresa iBm, sustentada em documento de exclusividade emitido por sindicato do município do rio de
Janeiro, uma vez que a base territorial e o mercado são outros, específicos de cada localidade, e não consta desse
comprovante a declaração de que a referida empresa é exclusiva na praça de vitória/es.
Verifica-se, do exposto, que a contratação da empresa iBm, nos moldes efetuados pela uFes, não tem sustentação nos dispositivos legais invocados, deixando dúvidas, inclusive, quanto ao fato de ser a única prestadora de
serviços de manutenção de equipamentos de sua fabricação, na praça de vitória/es, razão pela qual, e em defesa
do interesse público, propugno a adoção da medida preliminar indicada no art. 71, inciso iX, da Constituição
Federal.” (decisão nº 397/1996, Plenário. rel. min. Homero santos. DOU, 23 jul. 1996)
nesse sentido, vide decisão tCu nº 583/94, Plenário (DOU, 28 set. 1994), através da qual o Tribunal firmou entendimento no sentido de que “a contratação de serviços de manutenção e assistência técnica em elevadores não
se enquadra nas hipóteses de inexigibilidade de licitação, por que existe claramente a viabilidade de competição
entre os diversos concorrentes estabelecidos no mercado”.
365
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
366
competição, não há que falar na utilização do permissivo contido no inciso i do art. 25
da Lei nº 8.666/93.89
Ainda sobre essa hipótese de inexigibilidade de licitação é importante observar
que a lei veda qualquer preferência por marca. A exclusividade que justifica a contratação
direta é a de produto, e não a de marca.90 Em algumas situações, no entanto, verificamos
que tem sido admitida, não para fins de justificar a inexigibilidade, mas para facilitar no
edital a descrição do objeto a ser licitado, a indicação de marca, como parâmetro, mas
sempre sendo admitidas outras que sejam “equivalentes”, “similares” ou até mesmo “de
melhor qualidade”. essas situações em que se faz referência a alguma marca, repetimos, têm sido observadas, e admitidas, mas apenas para facilitar a descrição do objeto
a ser licitado. Fazer contratação direta em função de marca é hipótese, em princípio,
totalmente vedada em lei.
relativamente às marcas, a questão muda de feição quando analisada dentro
do processo de padronização de que trata o art. 15, i, da Lei nº 8.666/93. determina esse
dispositivo que as compras, sempre que possível, deverão “atender ao princípio da
padronização, que imponha compatibilidade de especificações técnicas e de desempenho, observadas, quando for o caso, as condições de manutenção, assistência técnica e
garantia oferecidas”.
A decisão pela padronização, que visa a evitar que a Administração tenha de
manter diversos contratos de assistência técnica dos bens que adquire, assim como
igualmente evita que se tenha de manter diversos estoques de diferentes peças de reposição, deverá, além de ser fundamentada, obedecer ao princípio da eficiência.
A opção pela padronização, é mais do que evidente, deverá levar em conta as
tecnologias adotadas, qualidades específicas dos bens e a necessidade da Administração. A questão torna-se tormentosa quando, dentro do processo de padronização que é
imposto pela legislação, conclui-se que o “padrão” de produto a ser adquirido resulta
na escolha de determinada marca.
A padronização deve ser a regra, e objetiva compatibilizar as necessidades da
Administração com o princípio da isonomia e da eficiência. Em nome deste último,
seria totalmente inconcebível que a Administração fosse obrigada a adquirir peças de
reposição incompatíveis com os equipamentos por ela utilizados.
o princípio da padronização está, como indicado, fundamentado no art. 15, i,
da Lei nº 8.666/93, sendo que o caput do mesmo dispositivo legal inclusive diz que o
mesmo deve ser observado nas compras sempre que possível.
Como regra, a padronização deve ser buscada sem prejuízo da observância dos
procedimentos licitatórios,91 portanto, sem prejuízo do caráter competitivo que deve
89
90
91
nesse sentido, tCu: “8.2. nos termos do art. 71, inciso iX da Constituição Federal e do art. 45 da Lei nº 8.443/92,
fixar o prazo de 15 (quinze) dias para que o Diretor-Geral do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem
adote providências no sentido de cumprir o art. 2º da Lei nº 8.666/93, realizando licitação para os serviços de
operação, construção, instalação, conserto e remanejamento dos aparelhos de contagem eletrônica de veículos,
uma vez que o atestado da Junta Comercial do estado do rio de Janeiro, expedido na forma do art. 25, inciso
i, da Lei nº 8.666/93 não ampara a inclusão dos mesmos no Contrato nº 242/96-00, por ser a competição viável”
(decisão nº 442/00. DOU, 07 jun. 2000).
Cf. tCu. decisão nº 675/94, Plenário. Ata n. 51/94.
Ao examinar o Processo tC nº 009.319/96-4 (Acórdão nº 300/98, 1ª Câmara. Ata n. 23/98), o tribunal de Contas
da união examinou contratação direta de veículos sob o fundamento de que em decorrência de processo de
padronização, havia sido definida a “marca” de determinado veículo como o padrão a ser seguido. O TCU,
nessa ocasião, considerou legal a definição da marca de veículo como o padrão, porém entendeu que a adoção
CAPítuLo 7
LiCitAção
revestir-se qualquer licitação. Admite-se, porém, que se possam configurar situações em
que sua adoção não se compatibilize com a realização de licitação, em face da existência
de fornecedor exclusivo.92
Nesse contexto, a adoção da padronização poderia justificar a inexigibilidade da
licitação, especialmente se ela for, simultaneamente, essencial para assegurar a maior
economia dos processos operacionais da Administração e a continuidade de aquisição
e uso de determinado produto, cujas características não possam ser atendidas satisfatoriamente por diferentes fabricantes, inviabilizando-se, portanto, a competição.
A invocação do princípio da padronização como argumento para restringir o
campo da competição ou mesmo para declarar a licitação inexigível requer justificação
circunstanciada e objetiva dos motivos e condições que, no caso concreto, conduzem o
administrador à conclusão de que sua preservação não se compatibiliza com a realização
do certame, ou que este, se realizado, deva limitar-se a equipamentos ou produtos de
determinada procedência.
É indispensável exigir-se essa comprovação, formalmente aprovada pela instância
decisória competente — que será aquela superior ao responsável pelo contrato, no termos
92
de determinada marca de veículo não justificava a contratação sem licitação, haja vista existirem no mercado
diversos fornecedores de veículo com a marca definida como o padrão. Vê-se que preferência por determinada
marca pode ser considerada lícita em decorrência de processo de padronização. o objetivo da padronização não
é, no entanto, a não realização da licitação. nesse sentido, vide decisão nº 641/97, Plenário. DOU, 14 out. 1997.
eis alguns trechos do voto do relator:
“No caso em exame ficou demonstrada a conveniência de se adquirir equipamentos da fabricação CISCO, para
fins de padronização e compatibilidade com os já existentes. É de se notar que isso não significou favorecimento
a determinada empresa, eis que compareceram ao certame vários representantes do citado equipamento. Além
disso, segundo informações da emBrAteL, os demais licitantes não credenciados pela CisCo teriam acesso
aos seus equipamentos em igualdade de preços com aqueles credenciados, o que afasta a alegação de restrição
no caráter competitivo.
observe-se, também, que a licitação envolvia não somente a aquisição dos equipamentos mas também dos
programas (‘software’), além de contemplar a instalação, a integração (responsável pela interconectividade e
interoperabilidade entre a rede que está sendo adquirida e a rede corporativa atual da emBrAteL, já em operação), a consultoria e o treinamento dos técnicos da emBrAteL, também de responsabilidade do fornecedor,
a fim de capacitá-los a operar a rede adquirida.
dessa forma, entendo que a emBrAteL, dada a complexidade envolvendo os equipamentos e serviços adquiridos, buscou a melhor opção para o atendimento de suas necessidades, não se tendo verificado nesses autos
irregularidade que macule o procedimento licitatório adotado.”
nesse sentido, vide tCu. decisão nº 186/99, Plenário. DOU, 19 maio 1999. essa decisão é particularmente interessante porque nela restou configurada a inviabilidade de competição, em face de processo de padronização,
para a aquisição de programas de computador. Porém, a exclusividade para tal fornecimento não assegurou a
exclusividade para a prestação de serviços de consultoria, assistência técnica e treinamento de pessoal vinculados a tais bens. em relação à questão da padronização, eis alguns trechos do relatório apresentado:
“dessa forma, após os estudos pertinentes, decidiu a empresa por padronizar os sistemas operacionais para
desktop, os sistemas operacionais de rede e os aplicativos para automação de escritório com produtos da
Microsoft. No entanto, softwares necessários ao gerenciamento de banco de dados e à Administração de rede
foram padronizados com produtos desenvolvidos por outras empresas (Oracle, Compuware, Borland e Hewlett
Packard); para ferramentas de desenvolvimento de sistemas, a eCt elegeu como padrões produtos de duas
empresas distintas: os softwares Visual Basic da Microsoft e o Delphi da Borland (fls. 90, vol. IV);
6.2 - em vista da padronização adotada, a eCt, por meio do contrato de nº 8.756/96, contratou a empresa tBA,
sem licitação, com fulcro no art. 25, inciso I, da Lei nº 8.666/93, para a aquisição de produtos da Microsoft, na
modalidade select, que consiste na prática de preços abaixo dos de mercado em função do volume de aquisição
programado; a declaração de ser inexigível a licitação decorre de a empresa tBA ser detentora de atestado de
exclusividade, emitido pela Microsoft, para a revenda de produtos na modalidade Select junto a entidades governamentais federais e distritais com sede no distrito Federal.”
Cumpre observar, finalmente, que a aquisição de produtos da Microsoft, na modalidade Select, tem sido examinada pelo próprio tCu assim como pelo CAde, à luz do direito econômico, sem que haja, até o presente
momento, manifestação conclusiva quanto à sua legalidade. entendemos que esse julgado do tCu não possa
ainda servir como precedente para balizar futuras contratações.
367
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
368
do art. 26 da Lei nº 8.666/93 —, em cada hipótese, para que não se generalize nem se
vulgarize a invocação, a qualquer pretexto, do princípio da padronização como fórmula
genérica e comum para contornar a realização da licitação na aquisição de quaisquer
bens e materiais correntes que, pelas características técnicas, sejam de marcas e padrões
de fabricação que possam ser facilmente substituídos uns pelos outros.93
É de concluir, portanto, que jamais a pura e simples preferência por determinada marca pode legitimar a contratação direta sob o argumento de que se trata de
fornecedor exclusivo. Porém, se essa preferência for determinada em processo técnico
de padronização, que é imposto pela Lei de Licitações (art. 15, i), e restar comprovada
a exclusividade de fornecimento, poderá resultar o reconhecimento da hipótese de
inexigibilidade de licitação.
7.6.4.2 Serviços técnicos a serem prestados por profissionais de notória
especialização
A segunda hipótese de inexigibilidade de licitação relaciona-se à contratação de
serviços técnico-profissionais especializados prestados por profissionais ou empresas
de notória especialização (art. 25, ii).94
A razão pela qual esta hipótese de licitação inexigível tem suscitado ampla controvérsia decorre do fato de que o citado dispositivo exige que se reúnam, simultaneamente, três requisitos diferentes para que dada situação nele possa ser enquadrada.95 96
Primeiro, exige-se que se trate de contratação de um dos tipos de serviços técnicos
especializados relacionados no art. 13 da Lei nº 8.666/93;97 segundo, que o serviço seja
93
94
95
96
97
nesse mesmo sentido, vide tCu. decisão nº 446/95, Plenário (Ata n. 40/95), pelo que se observa do trecho do voto
do ministro Calos átila a seguir transcrito:
“A escolha, com base em prévio e exaustivo estudo técnico, de determinados modelos de veículos para renovar,
completar ou ampliar a frota de caminhões ‘fora de estrada’ que operam na Mina de Carajás configura, portanto,
inquestionavelmente, procedimento que visa a assegurar a padronização de uma linha de equipamentos de características singulares, padronização essa que é não só recomendada mas até mesmo imposta pelas conveniências de
maior economia de manutenção, aproveitamento de estoques de peças, especialização de pessoal que lida com tais
máquinas, etc. descaracteriza-se, portanto, a pura e simples preferência de marca, esta sim vedada pelo estatuto
das Licitações e Contratos, não cabendo, portanto, qualquer restrição à conduta adotada pela empresa.”
Prevalece até hoje o enunciado nº 39 da súmula da Jurisprudência do tCu, com a redação dada pelo Acórdão
1.437/2011, Plenário, in verbis: “A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos com pessoas
físicas ou jurídicas de notória especialização somente é cabível quando se tratar de serviço de natureza singular,
capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos
critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação, nos termos do art. 25, inciso II, da Lei
nº 8.666/1993”.
sobre tais requisitos, pronunciou-se o stJ: “A contratação de serviços (caso dos autos) sem licitação depende,
portanto de três condições: 1) a enumeração do serviço no dispositivo legal supracitado (art. 13); 2) sua natureza
singular, isto é, não basta estar enumerado no art. 13 da lei 8.666/93, sendo necessário que o serviço se torne único
devido à sua complexidade e relevância; e 3) a notória especialização do profissional (conforme disposto no §1º do
art. 25 acima transcrito). Assim, não é qualquer serviço descrito no art. 13 da Lei 8.666/93 que torna inexigível a
licitação, mas aquele de natureza singular, que exige a contratação de profissional notoriamente especializado,
cuja escolha está adstrita à discricionariedade administrativa” (resp nº 704.108-mG, 5ª turma. rel. min. Gilson
dipp. Julg. 19.4.2005. DJ, 16 maio 2005. excerto do voto).
na sessão de 31.3.2010, o tribunal de Contas da união aprovou a súmula nº 252, com o seguinte teor: “A
inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos, a que alude o inciso ii do art. 25 da Lei
nº 8.666/1993, decorre da presença simultânea de três requisitos: serviço técnico especializado, entre os mencionados no art. 13 da referida lei, natureza singular do serviço e notória especialização do contratado”.
O art. 13 da Lei de Licitações indica quais serviços são considerados técnicos profissionais especializados. São
eles os seguintes: i - estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos; ii - pareceres, perícias
CAPítuLo 7
LiCitAção
de natureza singular e, terceiro, que o contrato se faça com profissional ou empresa de
notória especialização.98
A caracterização do primeiro requisito é a que oferece menor dificuldade, pois o
art. 13 da Lei nº 8.666/93 lista taxativamente sete tipos de serviços especializados.
O mesmo, porém, não se pode dizer dos dois outros, quais sejam, a definição
do que se deve entende por serviço singular e por empresa de notória especialização.
No §1º do art. 25, a lei buscou definir o perfil conceitual da notória especialização
ao prescrever que se considera de notória especialização o “profissional ou empresa
cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior,
estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de
outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que seu trabalho é
essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”.
o legislador procurou fornecer parâmetros minimamente objetivos para disciplinar e conter dentro de limites razoáveis o grau de subjetividade inerente a esse
dispositivo. esses parâmetros são encontrados nas informações e dados que se possam
levantar sobre o conceito, a experiência, as realizações passadas do profissional ou da
empresa cuja notória especialização se investiga. se esses parâmetros podem ser considerados razoavelmente objetivos, ainda assim reservam grande margem discricionária
para a definição da notória especialização. Deve ser atestado que aquela determinada
empresa é a entidade cujo trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à
plena satisfação do objeto do contrato.
A fim de aferir a legitimidade da decisão adotada pelo administrador, no que
diz respeito à escolha da empresa ou profissional a ser contratado sem licitação, deve
ser considerada a margem de poder discricionário que a lei expressamente confere ao
administrador. A não ser diante de casos em que fique flagrantemente caracterizada
interpretação abusiva do art. 25 da Lei das Licitações, a escolha do contratado pelo
administrador, desde que demonstrados os requisitos objetivos necessários ao enquadramento no permissivo legal, deve ser considerada legítima.
nesses termos, em determinado setor de atividade, pode haver mais de uma
empresa com ampla experiência na prestação de serviço singular, e pode, não obstante, ocorrer que, em circunstâncias dadas, somente uma dentre elas tenha notória
especialização.
Assim, é de se concluir que nessa hipótese de contratação inexigível, relativa a
contratação de serviços técnico-profissionais especializados prestados por profissionais
ou empresas de notória especialização, não necessariamente deverá existir apenas
uma empresa ou profissional em condições de prestar o serviço. O que justifica, nessa
98
e avaliações em geral; III - assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; IV fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou
administrativas; vi - treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; e vii - restauração de obras de arte e bens de
valor histórico.
Por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento nº 254.260, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que: “A contratação pela Administração pública de profissional da área jurídica, sem prévia
licitação, pressupõe notoriedade na profissão e especialização do contratado no campo de direito em que vai
atuar, não sendo suficiente a simples habilitação profissional”. Decidiu o STJ ainda que “o entendimento preconizado pela decisão colegiada, relativo à inexistência de justificativa para a dispensa da licitação, decorreu da
análise dos elementos fáticos dos autos, cuja reapreciação encontra-se vedada nesta oportunidade, pelos termos
da súmula 7 do superior tribunal de Justiça” (AG nº 254.260-sP, decisão monocrática. rel. min. milton Luiz
Pereira. DJ, 13 dez. 1999).
369
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
370
hipótese, a não realização da licitação é a natureza do serviço, a capacidade técnica do
prestador do serviço a ser selecionado, e as peculiaridades do serviço que está a exigir
a contratação de referida empresa ou profissional. Não é a singularidade — leia-se,
existência de um único interessado — do prestador do serviço que justifica, nessa
hipótese, a não realização de licitação. A singularidade a que se refere o dispositivo
legal está relacionada às peculiaridades do serviço a ser executado, e não ao número
de empresas em condições de prestar o serviço.99
o último requisito relacionado à contratação, sem licitação, de serviços técnicoprofissionais especializados prestados por profissionais ou empresas de notória especialização diz respeito à singularidade do serviço a ser prestado.100 Conforme veremos em
seguida, apenas os serviços enumerados no art. 13 — primeiro requisito — legitimam
a contratação sem licitação de que trata o art. 25, ii.
Para melhor entender esse último requisito, podemos tomar como exemplo,
apenas a título ilustrativo, os serviços advocatícios, que estão indicados no referido
art. 13. o tribunal de Contas da união, em alguns julgados,101 tem considerado irregular a contratação de escritórios de advocacia em face da ausência de demonstração de
singularidade dos serviços a serem prestados. em outras hipóteses,102 a contratação dos
mesmos serviços foi considerada regular em face de sua complexidade e características
singulares.
99
100
101
102
essa mesma linha de orientação — relativa à discricionariedade do administrador na escolha da empresa ou
profissional na hipótese de existirem várias empresas ou profissionais em condições de prestar o serviço a ser
contratado sem licitação — foi adotada pelo tCu na decisão nº 565/95, Plenário (Ata n. 49/95). em seu voto, o
relator min. Carlos átila manifestou-se nos seguintes termos:
“Por outro lado, o alegado fato de que, após a contratação da dBm e do início de seus trabalhos, tenham surgido propostas de outras empresas da mesma área de especialização, que se ofereciam para realizar o mesmo
serviço, não constitui circunstância capaz de comprometer a regularidade do procedimento licitatório, e muito
menos do contrato dele decorrente, na medida em que o Banco do Brasil concluiu que os serviços da dBm eram
os que melhor atendiam a suas necessidades e que, na negociação entabulada com a empresa, logrou reduzir
em um terço o preço inicialmente proposto. Após examinar esses ângulos da questão, julgo oportuno reafirmar
minha convicção, já antes manifestada por diversas vezes neste Plenário e acima reiterada, sobre a necessidade
de respeitar e preservar o campo de ação discricionária que a lei explicitamente outorga ao administrador, sob
pena de inviabilizar-se a gestão das entidades públicas. Excetuados os casos flagrantes de abuso e de fraude, é
preciso admitir que o administrador, para cumprir e executar a lei, é seu primeiro intérprete. A interpretação por
ele formulada, diante muitas vezes de situações prementes de urgência operacional, deve ser respeitada pelo
controle, evitando-se, na medida do possível, questionamentos baseados principalmente em divergências de
exegese de dispositivos legais que, como no caso em exame, trazem inerente alto grau de subjetividade.”
Acerca da singularidade do serviço a ser executado, consideramos particularmente interessante, pelo seu caráter
didático, a análise procedida pelo min. Adhemar Guisi nos autos do tC nº 000.830/98-4, relativamente ao enquadramento no permissivo legal (art. 25, ii) em face de se tratar de serviços singulares, aqueles relativos a cursos
para treinamento de pessoal em órgãos públicos. nessa oportunidade, o relator manifestou-se nos seguintes
termos:
“A aplicação da lei deve ser compatível com a realidade em que está inserida, só assim o direito atinge seus fins
de assegurar a justiça e a equidade social. nesse sentido, defendo o posicionamento de que a inexigibilidade de
licitação, na atual realidade brasileira, estende-se a todos os cursos de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal,
fato que pode e deve evoluir no ritmo das mudanças que certamente ocorrerão no mercado, com o aperfeiçoamento das técnicas de elaboração de manuais padronizados de ensino. essa evolução deve ser acompanhada
tanto pelos gestores como pelos órgãos de controle, no âmbito de suas atuações. Assim, desponta, a meu ver,
com clareza que a inexigibilidade de licitação para contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, na
atualidade, é regra geral, sendo a licitação exceção que deve ser averiguada caso a caso pelo administrador.”
Acolhendo o entendimento do relator, o TCU proferiu a Decisão nº 439/98, Plenário (Ata n. 27/98), e firmou o
entendimento no sentido de “considerar que as contratações de professores, conferencistas ou instrutores para
ministrar cursos de treinamento ou aperfeiçoamento de pessoal, bem como a inscrição de servidores para participação de cursos abertos a terceiros, enquadram-se na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso
ii do art. 25, combinado com o inciso vi do art. 13 da Lei nº 8.666/93”.
decisão nº 80/98, 2ª Câmara. Ata n. 11/98; e decisão nº 906/98, Plenário. Ata n. 48/97.
decisão nº 167/99, Plenário. Ata n. 12/99.
CAPítuLo 7
LiCitAção
devemos deixar evidente, portanto, que não é apenas o fato do serviço a ser
contratado ser considerado técnico-profissional especializado que justificará a contratação sem licitação, por inexigibilidade.
A contratação de advogados para o patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, como visto, depende de prévia licitação. essa é a regra a ser seguida. Porém,
se se tratar de causa judicial tão cheia de particularidades que apenas determinado
profissional ou escritório, em fase de sua notória especialização, teria condições de
defender a Administração, a contratação sem licitação seria justificada.
Vê-se que a jurisprudência do TCU tem reiteradamente afirmado a possibilidade
de contratação direta de advogado de notório saber quando a situação assim exige,
ainda que o órgão ou a entidade possua quadro próprio de advogados. os requisitos
necessários à contratação de escritórios de advocacia sem licitação foram examinados
nos autos do TC 019.893/93-0, tendo sido firmado o seguinte entendimento pelo TCU:
1º) a circunstância de entidade pública ou órgão governamental contar com quadro próprio de advogados não constitui impedimento legal a contratar advogado particular para
prestar-lhe serviços específicos, desde que a natureza e as características de singularidade
e de complexidade desses serviços sejam de tal ordem que se evidencie não poderem ser
normalmente executados pelos profissionais de seus próprios quadros, justificando-se
portanto a contratação de pessoa cujo nível de especialização a recomende para a causa;
2º) o exame da oportunidade e da conveniência de efetuar tal contratação compete ao
administrador, a quem cabe analisar e decidir, diante da situação concreta de cada caso,
se deve promover a contratação de profissional cujos conhecimentos, renome ou grau de
especialização sejam essenciais para a defesa do interesse público que lhe cabe resguardar,
e que não encontrem paralelo entre os advogados do quadro de pessoal da entidade sob
sua responsabilidade;
3º) a contratação deve ser feita entre advogados pré-qualificados como os meios aptos a
prestar os serviços especializados que se pretende obter;
4º) a contratação deve ser celebrada estritamente para prestação de serviço específico e
singular, não se justificando portanto firmar contratos da espécie visando à prestação de
tais serviços de forma continuada.103
Lembramos, mais uma vez, que a regra é a obrigatoriedade da licitação; a exceção,
a contratação sem licitação. Assim, em princípio, a contratação de qualquer serviço,
inclusive dos indicados no art. 13, deve ser precedida da devida licitação. situações
especiais, e muito bem motivadas, permitem, no entanto, em caráter excepcional, a
contratação sem licitação, conforme examinamos anteriormente. Havendo dúvida acerca
da efetiva necessidade de ser contratada empresa ou profissional, sem licitação, sob o
fundamento da notória especialização, é de todo aconselhável que se elabore edital e
que se proceda à licitação.
103
decisão nº 494/94, Plenário. Ata n. 36. Convém notar que a jurisprudência mais recente do TCU vem reafirmando as exigências estabelecidas nesse precedente, consoante resenha divulgada no site da Corte de Contas
<http://www.tcu.gov.br>, com texto de 04.08.2009: “É admissível a contratação de serviços de advocacia, ainda
que a entidade ou órgão público conte com quadro próprio de advogados, quando restar demonstrada a singularidade do serviço, competindo ao administrador o exame da oportunidade e da conveniência de efetuar tal
contratação. nessa situação e presentes os requisitos: ser o serviço caracterizado como técnico especializado e de
natureza singular, deve ser promovida a pré-qualificação dos profissionais de notória especialização, de forma
a resguardar o respeito aos princípios da publicidade e igualdade”.
371
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
372
7.6.4.3 Contratação de serviços artísticos
A última hipótese, expressamente indicada em lei, que justifica a contratação
direta por inexigibilidade de licitação é a de profissional de qualquer setor artístico,
diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica
especializada ou pela opinião pública.
mais uma vez enfatizamos a necessidade de a Administração, em primeiro lugar,
indicar o fundamento para a contratação do artista: a consagração dele pela crítica especializada ou pela opinião pública. em segundo lugar, que a sua contratação seja pautada
pela impessoalidade e pela moralidade. em terceiro lugar, que sua remuneração siga os
parâmetros do mercado. Finalmente, deve ser examinado se os serviços a serem executados justificam a inexigibilidade de licitação.104
Para a contratação de serviços artísticos sem licitação, a maior dificuldade prática
está relacionada à comprovação da consagração do artista pela crítica especializada ou
pela opinião pública. É evidente que, nesse caso, não como há como fugir de certo grau de
subjetividade no reconhecimento do que irá caracterizar referida “consagração”. Porém,
a legislação sobre licitação procura, sempre que possível, evitar que qualquer decisão
do administrador, sobretudo aquelas relacionadas à contratação sem licitação, repouse
exclusivamente ou primordialmente em critérios meramente subjetivos. desse modo,
sendo possível, o administrador deve juntar aos autos da contratação documentação
— recortes de jornais, currículos, certificados relativos a prêmios, exposições, apresentações etc. — que seja capaz de demonstrar a notoriedade ou consagração do artista.
7.6.4.4 outras hipóteses de inexigibilidade de licitação
A última advertência que fazemos em relação à inexigibilidade de licitação é
que essas hipóteses indicadas nos incisos i a iii do art. 25 não são exaustivas. isto significa que em outras situações em que a Administração se depare com inviabilidade
de competição, a licitação será inexigível. É raro no âmbito da Administração serem
verificadas outras hipóteses de inviabilidade de competição que não as indicadas nos
incisos do art. 25, porém não impossível. Pode ser que venham a ser verificadas outras
situações que justifiquem a contratação direta porque o mesmo artigo 25, em seu caput,
determina que “é inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em
especial (...)” (grifos nossos).
essa pode ser considerada, aliás, mais uma distinção entre a inexigibilidade e a
dispensa de licitação. As hipóteses de dispensa (artigos 17, i e ii, e 24) são exaustivas.
isso vale dizer que o administrador não poderá, a qualquer pretexto, criar qualquer
outra hipótese de contratação direta, sob o fundamento de ser a licitação dispensável,
além daquelas expressamente indicadas em lei. em relação às situações de inexigibilidade, além das três hipóteses expressamente indicadas — fornecedor exclusivo,
104
sobre esse último requisito, relativo a peculiaridades do serviço artístico a ser executado, o tribunal de Contas
da união, nos autos do tC nº 700.449/95-7, entendeu que a contratação de artistas para elaborar pintura a
óleo de ex-presidentes de determinado TRE não justificava o enquadramento no permissivo legal. Vide decisão
nº 419/96, Plenário. Ata n. 28/96.
CAPítuLo 7
LiCitAção
serviços técnico-especializados e serviços artísticos — a lei permite que outras possam
vir a legitimar a contratação sem licitação.105
de igual modo decidiu o tribunal relativamente ao credenciamento, por parte de
órgãos e entidades públicos, de profissionais e instituições médico-hospitalares. Decidiu
o TCU que ao credenciamento de referidos profissionais seria perfeitamente aplicável
a hipótese prevista no caput do art. 25 da Lei nº 8.666/93.106 nesse caso de prestação de
assistência médica, seria extremamente difícil, se não impossível, definirem-se critérios
objetivos para o julgamento de licitações eventualmente instauradas para esse fim. O
que melhor condiz com o interesse público, nesses casos, é a Administração proceder
ao credenciamento do maior número de prestadores de serviços, pessoas físicas ou
jurídicas, com inexigibilidade de licitação e deixar ao prudente arbítrio dos beneficiários diretos da assistência a tarefa de eleger, dentre os credenciados, o profissional ou
instituição médica que melhor lhes mereça a confiança.
Assim, sempre que houver inviabilidade de competição, e isso seja devidamente
demonstrado e comprovado, estará autorizada a contratação direta, em face de sua
inexigibilidade (art. 25, caput).
7.7 modalidades de licitação
A Lei nº 8.666/93 estabelece em seu art. 22 as diferentes modalidades de licitação.
Às cinco modalidades indicadas pela Lei nº 8.666/93, a Lei nº 10.520/02 acrescentou nova
categoria, o pregão. Licitação, portanto, é gênero do qual a concorrência, a tomada de
preços, o convite, o concurso, o leilão e o pregão são suas espécies.
A própria lei das licitações define quando deverá ser utilizada cada modalidade,
bem assim a lei que instituiu a modalidade pregão. É bem verdade que algumas dessas
modalidades poderão, eventualmente, conforme será visto em seguida, ser utilizadas
como alternativas — é o que ocorre, por exemplo, com a concorrência, a tomada de
preços e o convite. veremos que em relação a essas três modalidades de licitação, será
o valor do objeto a ser contratado que irá determinar a modalidade a ser adotada. Para
grandes contratos, cujos valores são indicados no art. 23, a lei determina que seja adotada a concorrência. Para contratos de pequeno porte, poderá ser utilizado o convite
105
106
Bom exemplo de contratação sem licitação, com fundamento no art. 25, caput, da Lei nº 8.666/93, verificou-se no
exame do Processo tC nº 022.225/92-7 realizado pelo tribunal de Contas da união. tratava-se da contratação
de serviços advocatícios não enquadrados na hipótese de serviços singulares, haja vista serem causas comuns
que poderiam ser objeto de acompanhamento por qualquer profissional da área. O que de fato buscava o Banco
do Brasil era o credenciamento de diversos profissionais para que a eles fosse feita a distribuição de diversas
causas processuais. Ademais, o Banco não iria realizar qualquer pagamento pelo acompanhamento das ações
distribuídas, devendo os profissionais serem remunerados ad exitum. no exame procedido nos autos, o relator,
ministro Bento Bugarin, observou que “o elenco de situações previstas nos incisos do referido dispositivo não
é exaustivo, mas apenas exemplificativo, sendo inexigível a licitação também quando se configurar qualquer
outra hipótese em que seja inviável a competição, consoante estabelece o caput do artigo. e isto ocorre no caso
em questão, onde, conforme acima se demonstrou, não existe a possibilidade de competição em virtude das
características peculiares de que se revestiram as contratações”.
em face dessas peculiaridades, o tCu decidiu (decisão nº 69/93. Ata n. 22/93), relativamente à questão supra,
“determinar ao Banco do Brasil que, dada a impossibilidade jurídica de competição para contratação de serviços
de advocacia nas condições peculiares descritas nestes autos, faça realizar pré-qualificação dos profissionais
aptos a prestar serviços ao Banco nas referidas condições, desenvolvendo, ainda, sistemática objetiva e imparcial de distribuição das causas entre os interessados pré-qualificados, de forma a resguardar a transparência da
Administração e a assegurar o respeito ao princípio da igualdade”.
decisão nº 656/95, Plenário. Ata n. 58/95.
373
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
374
(conforme já foi estudado no capítulo anterior, se o valor for realmente reduzido —
para obras e serviços de engenharia inferiores a r$15.000,00, e para compras e outros
serviços inferiores a r$8.000,00 —, a licitação será dispensável). e para contratos de
valores médios, a modalidade será a tomada de preços. observamos que a lei irá indicar
quais são esses valores a que nos estamos referindo, e que irão definir a modalidade
de licitação a ser adotada.
o citado art. 22 da Lei nº 8.666/93 indica as modalidades de licitação e quando
cada uma deverá ser utilizada.
7.7.1 modalidades comuns e especiais de licitação
o leilão e o concurso se diferenciam da concorrência, da tomada de preços,
do convite e do pregão não apenas em razão do procedimento. As diferenças entre
essas modalidades de licitação não se resumem apenas a aspectos procedimentais. Ao
disciplinar essas cinco modalidades, a lei busca adaptá-las ao objeto que se pretende
contratar. Isso fica evidente quando se analisa o concurso e o leilão. A distinção entre
um e outro reside, sobretudo, no objeto licitado.
As duas primeiras modalidades (concurso e leilão) podem ser consideradas
modalidades especiais: uma se destina à escolha de trabalhos artísticos, técnicos ou científicos; a outra, à alienação de bens. As demais modalidades de licitação (concorrência,
tomada de preços, convite e pregão) podem ser consideradas modalidades comuns. A
rigor, não existe diferença no objeto a ser licitado quando estamos diante dessas últimas
modalidades. A compra de produtos, assim como a contratação de serviços, podem ser
licitadas por meio de qualquer uma dessas três modalidades comuns de licitação.107
7.7.2 Critério para a utilização da concorrência, tomada de preços
ou convite
O principal critério para definir se o administrador irá utilizar a concorrência, a
tomada de preços e o convite é o preço do objeto (compra, serviço ou obra) a ser licitado.108 Caso se trate de bem ou de serviço comum, hipótese em que o administrador
deve, preferencialmente, utilizar o pregão, não há limite em razão do valor do contrato
à utilização desta modalidade, conforme será examinado adiante.
não se tratando da contratação de bem ou de serviço comum, a regra passa a ser
a utilização da concorrência, modalidade mais ampla de licitação, salvo os casos em que,
pelas peculiaridades do contrato, seja exigido o concurso ou o leilão, ou que, em face de
seu valor, seja admitida a tomada de preços ou o convite.109
107
108
109
no caso de bens ou de serviços comuns, além dessas três modalidades, o administrador pode optar pela utilização do pregão.
o Acórdão tCu nº 642/04, Plenário (DOU, 09 jun. 2004), consignou determinação no sentido de:
“9.2.10. nas licitações para a contratação de obras e serviços, inclusive nos casos de dispensa e inexigibilidade,
elabore o orçamento detalhado de que trata o inciso ii do §2º do art. 7º da Lei 8.666/93, com valores estimados
considerando os preços de mercado, tendo em vista que os dados nele constantes deverão ser utilizados para a
definição da modalidade licitatória, verificação da suficiência dos recursos orçamentários e avaliação da adequabilidade dos preços propostos, evitando a ocorrência de casos semelhantes ao constatado no processo de contratação da empresa ArC Associados Auditores independentes s/C (processo licitatório nº 48500.003007/01-41).”
tCu: “escolha a modalidade de licitação com base nos gastos estimados para todo o período de vigência do contrato, consideradas as prorrogações previstas no edital” (Acórdão nº 1.395/05, 2ª Câmara. DOU, 24 ago. 2005).
CAPítuLo 7
LiCitAção
desse modo, podemos estabelecer o esquema para indicar a modalidade a ser
utilizada:
1. se o objeto da contratação for bem ou serviço comum, deve ser utilizado o
pregão, independentemente do valor do contrato;
2. Se o poder público objetiva escolher trabalho técnico, artístico ou científico
mediante o pagamento de prêmio, a modalidade indicada é o concurso;
3. Para a alienação de bens móveis (de até r$650.000,00) ou de imóveis (nos
termos da Lei nº 8.666/93, art. 19, iii), a modalidade a ser adotada é o leilão;
4. nas demais hipóteses, o administrador deve decidir entre a concorrência, a
tomada de preços e o convite, utilizando-se o valor do contrato como parâmetro para a escolha dentre uma dessas três modalidades.
o art. 23 da Lei de Licitações indica os valores que autorizam a adoção das modalidades concorrência, tomada de preços e convite.110
dispõe o art. 23 nos seguintes termos:
Art. 23. As modalidades de licitação a que se referem os incisos i a iii do artigo anterior
serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da
contratação:
i - para obras e serviços de engenharia:
a) convite: até r$150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais);
b) tomada de preços: até r$1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais);
c) concorrência: acima de r$1.500.000,00.
ii - para compras e serviços não referidos no inciso anterior:
a) convite: até r$80.000,00 (oitenta mil reais);
b) tomada de preços: até r$650.000,00 (seiscentos e cinqüenta mil reais);
c) concorrência: acima de r$650.000,00 (seiscentos e cinqüenta mil reais).
em algumas situações, independentemente do valor do contrato, a adoção da
concorrência é obrigatória. nos termos do art. 23, §3º, “a concorrência é a modalidade
de licitação cabível, qualquer que seja o valor de seu objeto, tanto na compra ou alienação de bens imóveis, ressalvado o disposto no art. 19, como nas concessões de direito
real de uso e nas licitações internacionais, admitindo-se neste último caso, observados
os limites deste artigo, a tomada de preços, quando o órgão ou entidade dispuser de
cadastro internacional de fornecedores, ou o convite, quando não houver fornecedor
do bem ou serviço no País”.
7.7.3 utilização do leilão ou da concorrência para a alienação de imóveis
em relação às hipóteses previstas no citado art. 19, já tivemos a oportunidade de
observar que elas dizem respeito a imóveis cuja aquisição pela Administração Pública
haja derivado de dação em pagamento ou de procedimentos judiciais. nesses dois casos,
a lei autoriza a utilização do leilão ou da concorrência para a alienação de bens imóveis,
podendo o administrador optar por uma ou outra modalidade de forma discricionária,
independentemente do valor do bem.
110
É de se observar que na hipótese de alienação de bens móveis, a adoção da concorrência será obrigatória caso a
avaliação destes ocorra em valores superiores a r$650.000,00, conforme dispõe o art. 17, §6º, da Lei nº 8.666/93.
375
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
376
Quando a lei indica (art. 19) bens cuja aquisição haja derivado de procedimentos
judiciais se refere a situações em que, por exemplo, em decorrência de financiamento de órgão público, determinado bem imóvel dado em garantia em favor de órgão
administrativo, é retomado judicialmente em decorrência de não ter sido realizado o
pagamento regular do empréstimo. neste caso, poderá ser alienado o imóvel em leilão
ou em concorrência.
o citado art. 19 menciona ainda “dação em pagamento”. ocorreria essa hipótese,
quando determinado indivíduo, devedor de certa quantia à Administração Pública, em
vez de pagar a dívida em dinheiro, entrega bem como forma de receber quitação da
dívida. dação em pagamento, nos termos do Código Civil, é apenas forma indireta de
pagamento de obrigações em que se quita dívida mediante pagamento diverso do que
fora ajustado. no caso, se a Administração tiver adquirido bem imóvel em decorrência
de dação em pagamento, poderá o administrador optar pela sua alienação em leilão
ou em concorrência.
7.7.4 Licitação internacional e adoção da concorrência
o art. 22, §3º, da Lei nº 8.666/93, determina que a concorrência deve ser seguida
como regra em licitações internacionais,111 salvo se, observados os limites fixados em lei,
houver cadastro internacional de fornecedores, caso em que poderá ser utilizada a
tomada de preços, ou se não houver fornecedor do bem ou serviço no País, hipótese
em que poderá ser utilizado o convite. Cumpre observar que é considerada licitação
internacional aquela em que a Administração promove a sua divulgação no exterior,
convocando empresas constituídas e regidas por leis de países estrangeiros para participar do certame. Lembramos que em uma licitação normal (que não seja internacional),
para a aquisição pela Administração de determinados produtos, nada impede que
empresas estrangeiras apresentem propostas. isto não irá, no entanto, transformá-la em
licitação internacional. somente quando a divulgação do certame for feita no exterior,
será ela considerada internacional. isto impõe, como visto, a adoção, como regra, da
concorrência.
outra particularidade da concorrência internacional diz respeito à possibilidade
de serem apresentadas propostas em moeda estrangeira, nos termos do art. 42, §1º, in
verbis:
Art. 42 (...)
§1º Quando for permitido ao licitante estrangeiro cotar preço em moeda estrangeira,
igualmente o poderá fazer o licitante brasileiro.
7.7.5 Adoção da modalidade de licitação mais rigorosa que a
definida em lei
o art. 23, §4º, da Lei nº 8.666/93 autoriza que “nos casos em que couber convite, a
Administração poderá utilizar a tomada de preços, e em qualquer caso, a concorrência”.
111
Acerca de aspectos relacionados a despesas aduaneiras e tributárias, que afetam as licitações internacionais,
recomendamos, como fonte de consulta, a leitura da decisão tCu nº 740/97, Plenário (Ata n. 35/96), na qual
esses aspectos são examinados.
CAPítuLo 7
LiCitAção
Ainda que o pequeno valor a ser contratado justificasse uma dispensa, poderá a
Administração licitar, e na modalidade da concorrência, se assim o desejar. essa postura deve, no entanto, ser examinada à luz do princípio constitucional da eficiência. A
adoção de concorrência, quando a lei autoriza utilização de pregão,112 de tomada de
preços ou de convite, ou mesmo a adoção de tomada de preços quando a lei permite
o convite, pode, em determinadas situações, ser justificada pela importância ou em
razão de peculiaridades do objeto a ser licitado. Porém, nos dias atuais, e quem trabalha
com licitações bem o sabe, a adoção da modalidade concorrência ou mesmo tomada
de preços exige dedicação e tempo de diversos servidores que estarão envolvidos no
processo licitatório e, portanto, aumento de gastos públicos. Assim sendo, se o excesso
de preciosismo implicar a criação de ônus extras e demora desnecessários, não se deve
admitir que o administrador possa adotar modalidade mais rigorosa de licitação quando
for admitida outra menos rigorosa e, portanto, mais célere e econômica.
Há situações, porém, em que a adoção de modalidade mais rigorosa que a indicada em lei deve ser considerada pelo administrador. Conforme já observamos, cada
caso merece exame específico. Imagine que determinado administrador deseje realizar
compra cujo valor seja de aproximadamente r$600.000,00 de bem que não se enquadre
no conceito de bem comum. A modalidade indicada seria a tomada de preços. em razão
dos limites impostos pela lei para as alterações dos contratos (art. 65, §1º), esta avença,
de R$600.000,00, poderia ser alterada para até R$750.000,00, correspondente a 25% do
valor inicial do contrato. no presente caso, porém, considerando que foi utilizada a
tomada de preços, o administrador não poderá ultrapassar o valor admitido para a
tomada de preços, que nos termos do art. 23, ii, “b”, seria de até r$650.000,00. Caso
tivesse sido adotada, para essa situação hipotética, a concorrência, não haveria qualquer
impedimento a que a Administração elevasse o valor do contrato, em decorrência de
alterações quantitativas ou qualitativas, até o limite admitido de 25%.
7.7.6 desmembramento (fracionamento) do objeto do contrato
outra observação igualmente importante diz respeito à impossibilidade de o
administrador querer desmembrar contratos de modo a poder utilizar modalidade
menos rigorosa de licitação. É bem verdade que a própria lei (art. 23, §1º) determina
que “as obras, serviços e compras efetuadas pela Administração serão dividas em tantas
parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à
licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e
à ampliação da competitividade sem perda da economia de escala”.
muitas vezes, o objeto a ser licitado admite o seu desmembramento. isso ocorre,
por exemplo, se certa prefeitura decide contratar empresa para promover a recuperação
de diversas praças públicas. Poderiam ser celebrados diversos contratos com diversas
empresas, ou ser celebrado contrato único por meio do qual uma única empresa realizaria todo o objeto licitado.
112
vem se consolidando no tribunal de Contas da união entendimento no sentido de a modalidade pregão, quando
cabível, ser obrigatória, preferencialmente na forma eletrônica, consoante revela resenha divulgada no site da
Corte de Contas, texto de 10.08.2009: “nas licitações realizadas no âmbito da união, para aquisição de bens e
serviços comuns, será obrigatório o emprego da modalidade pregão, sendo preferencial a utilização de sua forma
eletrônica”.
377
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
378
À luz da Lei nº 8.666/93, a Administração poderá optar por uma ou por outra
hipótese. Poderá, caso o deseje, desmembrar o objeto de modo a garantir a ampliação da
competitividade no mercado, sem perda da economia de escala. essa, aliás, deve ser a regra a
ser seguida.113 Porém, se a adoção dessa solução implicar a criação de ônus mais elevados
pela quebra da economia de escala, esse fato, por si só, já basta para que não se admita
o desmembramento. do contrário, à luz da competitividade, o desmembramento deve
ser até recomendado.
nesse contexto, porém, jamais poderá ocorrer a utilização do desmembramento,
ou fracionamento, de modo a enquadrar o contrato nos limites de licitação dispensável,
ou com vistas a permitir a adoção de modalidade de licitação menos rigorosa que a
cabível. no exemplo acima citado, o desmembramento não poderia jamais ser admitido para permitir, por hipótese, a adoção de convite quando o valor da obra, em sua
totalidade, exigisse tomada de preços. mais grave ainda seria o fracionamento do contrato realizado com o intuito de enquadrar o valor das partes nos limites de dispensa.
Caracteriza essa conduta evidente fraude à licitação, o que poderá vir a resultar em
condenação criminal, administrativa e civil do administrador.
de igual modo, o agrupamento de obras, serviços ou fornecimentos, que possam
ser contratados separadamente de modo a ampliar a competitividade, pode vir a ser
considerado fraudulento. se esse agrupamento tiver o objetivo de direcionar a licitação
para grandes empresas, que seriam as únicas a preencher os requisitos de qualificação
técnica e econômico-financeira,114 deve ser essa medida julgada ilegal.
vê-se que o desmembramento ou agrupamento de obras, serviços ou fornecimentos merece exame cuidadoso. A ação do administrador, seja no sentido de desmembrar
os contratos, seja no sentido de agrupá-los, deve, em cada caso, ser devidamente justificada à luz das circunstâncias e particularidades de cada caso.115
113
114
115
A respeito da divisibilidade dos serviços técnicos de informática e consequente ampliação da competitividade,
o tribunal de Contas da união, mediante Acórdão nº 1.521/03, Plenário (DOU, 21 out. 2003), determinou:
“9.2.1. quanto à contratação de serviços técnicos de informática (assistência técnica, treinamento e certificação,
suporte técnico e consultoria) para o ambiente Microsoft:
9.2.1.1. deve obrigatoriamente ser precedida de licitação, ante a comprovada viabilidade de competição nessa
área, e as licitações devem ser distintas das utilizadas para a aquisição das licenças de software, conforme a
jurisprudência deste tribunal consubstanciada nas decisões 186/99 e 811/02, todas do Plenário;
9.2.1.2 os serviços de treinamento e certificação, suporte técnico e consultoria devem ser especificados, licitados
e contratados separadamente dos demais serviços técnicos, utilizando-se o parcelamento ou a adjudicação por
itens como forma de obtenção do melhor preço entre os licitantes, conforme prevê a decisão 811/02 do Plenário.”
Em algumas situações práticas, verificamos administradores que agrupam, sobretudo obras, de modo a justificar
a imposição de tantas exigências de qualificação que apenas determinada empresa teria condições de preencher.
mais grave ainda essa prática quando o edital não admite a participação de consórcios. Através desses, os interessados, que isoladamente não teriam como comprovar todos os requisitos, reunidos em consórcio, teriam como
participar do certame licitatório, o que ampliaria a sua competitividade e dificultaria conluios entre os licitantes.
nesse sentido, stJ: “(...) A exigência globalizada em uma única concorrência destinada a compra de uma variedade
heterogênea de bens destinados a equipar entidade hospitalar não veda a competitividade entre as empresas
concorrentes desde que o edital permita a formação de consórcio que, ultima ratio, resulta no parcelamento das
contratações de modo a ampliar o acesso de pequenas empresas no certame, na inteligência harmônica das disposições contidas nos artigos 23, parágrafo 1, e 15, iv, com a redação do art. 33, todos da Lei 8.666, de 21 de junho
de 1993” (rms nº 6.597-ms, 2ª turma. rel. min. Antônio de Pádua ribeiro. Julg. 16.12.1996. DJ, 14 abr. 1997).
nesse sentido, vide tCu: decisões nº 672/94, Plenário. DOU, 18 nov. 1994; nº 610/98, Plenário. DOU, 24 set. 1998;
e nº 820/97, Plenário. DOU, 12 dez. 1997.
CAPítuLo 7
LiCitAção
7.7.7 Criação de modalidade de licitação não prevista em lei –
impossibilidade
A lei veda a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação das
modalidades existentes. dispõe o art. 22, §8º, nos seguintes termos: “É vedada a criação
de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo.”
Ao ser realizada qualquer licitação, deverá, obrigatoriamente, ser adotada uma
das modalidades indicadas no art. 22 da Lei nº 8.666/93 ou o pregão, disciplinado pela
Lei nº 10.520/02. em hipótese alguma poderá qualquer administrador fazer combinação
de diferentes modalidades ou mesmo criar nova modalidade que não as expressamente
indicadas em lei (concorrência, tomada de preços, convite, concurso, leilão e pregão).
somente o legislador federal possui legitimidade para, por meio de lei de âmbito nacional,
criar nova modalidade de licitação.
7.7.8 Concorrência
A concorrência tem como principais características a ampla publicidade e a universalidade, conforme afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro.116 A ampla publicidade é
demonstrada pela necessidade de publicação do aviso da licitação, nos termos do art. 21
da Lei de Licitações. A universalidade, a seu turno, caracteriza-se pela existência de uma
fase inicial no procedimento da licitação, denominada habilitação, em que quaisquer
interessados que demonstrem o preenchimento dos requisitos de qualificação (art. 27)
podem apresentar propostas.117
7.7.8.1 Procedimento básico na licitação
A Lei de Licitações em seu art. 43 determina:
Art. 43 A licitação será processada e julgada com observância dos seguintes procedimentos:
i - abertura dos envelopes contendo a documentação relativa à habilitação dos concorrentes,
e sua apreciação;
ii - devolução dos envelopes fechados aos concorrentes inabilitados, contendo as
respectivas propostas, desde que não tenha havido recurso ou após sua denegação;
iii - abertura dos envelopes contendo as propostas dos concorrentes habilitados, desde que
transcorrido o prazo sem interposição de recurso, ou tenha havido desistência expressa,
ou após o julgamento dos recursos interpostos;
IV - verificação da conformidade de cada proposta com os requisitos do edital e, conforme
o caso, com os preços correntes no mercado ou fixados por órgão oficial competente, ou
ainda com os constantes do sistema de registro de preços, os quais deverão ser devidamente
registrados na ata de julgamento, promovendo-se a desclassificação das propostas
desconformes ou incompatíveis;
V - julgamento e classificação das propostas de acordo com os critérios de avaliação
constantes do edital;
vi - deliberação da autoridade competente quanto à homologação e adjudicação do objeto
da licitação.
116
117
di Pietro. Direito administrativo.
o Acórdão tCu nº 108/99, Plenário (DOU, 19 jul. 1999) consignou determinação no sentido de: “8.3.2. observar,
nos procedimentos licitatórios sob a modalidade concorrência, o disposto no art. 22, §1º, da Lei nº 8.666/93, o
qual não prevê a distinção entre cadastrados e não cadastrados nos registros cadastrais da administração”.
379
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Curso de direito AdministrAtivo
380
o art. 43, §4º, determina que esse procedimento será aplicado “à concorrência e,
no que couber, ao concurso, ao leilão, à tomada de preços e ao convite”.
o supracitado art. 43 estabelece, a rigor, o procedimento a ser adotado para a
concorrência e determina que esta deve servir de parâmetro para as demais modalidades de licitação.
o ponto de partida para o estudo do procedimento das licitações será feito,
portanto, pela análise das regras pertinentes à concorrência.
7.7.8.2 Fase interna e fase externa da licitação
Atenção especial deve ser dada à fase interna da licitação, aquela que se realiza
antes de ser publicado o edital ou de ser feita a divulgação do convite.
A maioria dos que estudam esse tema defende a tese de que a licitação somente
se inicia quando se divulga (por meio da publicação do edital ou da afixação do convite
no quadro de avisos da repartição pública) o seu instrumento convocatório.
A prática administrativa demonstra o contrário. todos os que lidam em seu dia
a dia com licitações sabem que muito tem de ser feito anteriormente à divulgação do
instrumento convocatório, nesta que se denomina fase interna da licitação.
7.7.8.3 Fase interna: providências preliminares
essa primeira fase, que está compreendida no procedimento da licitação, encontra-se
disciplinada, em linhas gerais, no art. 38 da Lei nº 8.666/93, in verbis:
Art. 38. o procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva,
a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão
juntados oportunamente:
i - edital ou convite e respectivos anexos, quando for o caso;
ii - comprovante das publicações do edital resumido, na forma do art. 21 desta Lei, ou
da entrega do convite;
III - ato de designação da comissão de licitação, do leiloeiro administrativo ou oficial, ou
do responsável pelo convite;
iv - original das propostas e dos documentos que as instruírem;
v - atas, relatórios e deliberações da Comissão Julgadora;
vi - pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade;118
vii - atos de adjudicação do objeto da licitação e da sua homologação;
viii - recursos eventualmente apresentados pelos licitantes e respectivas manifestações
e decisões;
iX - despacho de anulação ou de revogação da licitação, quando for o caso, fundamentado
circunstanciadamente;
X - termo de contrato ou instrumento equivalente, conforme o caso;
Xi - outros comprovantes de publicações;
Xii - demais documentos relativos à licitação.
118
Ao comentar tal dispositivo, marçal Justen Filho assevera que os “pareceres técnicos e jurídicos são manifestações de terceiros, não integrantes da comissão de licitação, pertencentes ou não à Administração Pública”
(Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 377).
CAPítuLo 7
LiCitAção
Parágrafo único. As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos,
convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria
jurídica da Administração.
relativamente à fase interna, marçal Justen Filho119 indica que ela se destina a:
a) Verificar a necessidade e a conveniência da contratação de terceiros;
b) determinar a presença dos pressupostos legais para a contratação (inclusive
a disponibilidade de recursos orçamentários);
c) Determinar a prática de atos prévios indispensáveis à licitação (quantificação
das necessidades administrativas, avaliação de bens, elaboração de projetos
básicos120 etc.);
d) Definir o objeto do contrato e as condições básicas de contratação;121
e) Verificar os pressupostos básicos da licitação, definir a modalidade e elaborar
o ato convocatório da licitação.
A fase interna será concluída tão logo seja dada publicidade ao ato convocatório.
ela é dita interna porque envolve apenas o âmbito da Administração, não afetando
pessoas estranhas à estrutura administrativa. A segunda fase, dita externa, que se inicia
com a divulgação do instrumento convocatório, envolverá diretamente a participação
dos licitantes, estando relacionada diretamente à escolha da melhor proposta. na
primeira fase, a Administração define o que pretende contratar e em que condições
será celebrado o contrato (define-se a necessidade da Administração). Na segunda
fase, escolhe-se quem será contratado. nesses termos, não há como a segunda fase ser
realizada corretamente, de modo a que sejam atendidas as necessidades que levaram
a Administração a celebrar o contrato administrativo, se a própria Administração não
tiver promovido a perfeita definição dessas necessidades, o que é feito na fase interna.
7.7.8.4 motivação da licitação – necessidades da Administração Pública
A licitação será iniciada, de fato, quando, dentro da estrutura administrativa,
for demonstrada a necessidade de se adquirir produtos, de contratar a prestação de
serviços etc. encaminhado o pedido de aquisição de bens ou serviços pela unidade
administrativa que necessita desses bens ou serviços para o setor de contratações, será,
de fato, iniciada a fase interna da licitação com a respectiva “autorização” da licitação,
conforme disciplinado no caput do art. 38 acima citado.
no âmbito do direito administrativo prevalece o formalismo, que impõe a forma
escrita como regra a ser seguida. Assim sendo, o art. 38 determina os documentos que
deverão ser juntados aos “autos” que materializam o “processo licitatório”.
É muito comum verificar-se certa confusão entre os termos “autos”, “processo” e
“procedimento”. os autos são os papéis, documentos que dizem respeito à licitação. Ao
119
120
121
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 348.
Vide Resolução CONFEA nº 361/91 sobre definição e elementos que compõem o projeto básico no caso de obras
e serviços de engenharia. Para o tCu, devem também ser observadas as orientações constantes da ot iBr
01/2006, editada pelo instituto Brasileiro de obras Públicas – ibrop (Acórdão nº 632/2012, Plenário).
Acerca da necessidade de que o objeto da licitação seja bem definido, inclusive quantitativamente, vide tCu:
decisões nº 69/96, Plenário. Ata n. 7/96. DOU, 18 mar. 1996; e nº 13/96, Plenário. Ata n. 3/96. DOU, 22 fev. 1996.
Nesses processos, foi determinada a anulação da licitação ante a imprecisão na definição do objeto da licitação.
381
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
382
indicar que documentos deverão ser juntados aos autos (parte final do caput do art. 38),
a legislação objetiva permitir o melhor controle da licitação. durante toda a fase interna,
assim como na fase externa, diversos atos serão praticados, conforme o andamento do
procedimento de cada modalidade de licitação. esses atos devem ser praticados por
escrito e devem ser juntados aos autos da licitação de modo a que se tenha, de forma
organizada, todas as informações acerca de todos os atos que compõem a licitação.
Por exemplo: a comissão de licitação ao proceder à desclassificação de determinada proposta deve formalizar o ato por escrito, com a indicação da causa dessa desclassificação, e essa documentação deve ser juntada aos autos do processo de licitação.
7.7.8.5 objeto da licitação
durante a fase interna, deverá ser promovida, nos termos do caput do art. 38 da
Lei nº 8.666/93, “a indicação sucinta de seu objeto (do objeto da licitação) e do recurso
próprio para a despesa”.122
Por indicação sucinta do objeto da licitação deve-se entender o que a Administração pretende contratar. Nesse momento, ainda que não se exija a especificação detalhada
do objeto a ser licitado — o que certamente já deverá ter sido providenciado quando
for promovida a divulgação do instrumento convocatório —, será exigida a indicação
do que se pretende contratar.123
7.7.8.6 necessidade da previsão dos recursos a serem gastos
Nessa fase interna, já deverão constar especificamente indicados os recursos
que serão gastos com a contratação. As regras pertinentes ao direito Financeiro vedam
a realização de despesa sem que esta tenha sido contemplada nas respectivas leis orçamentárias. essa regra, aliás, consta no texto da Constituição Federal, art. 167, i e ii. o seu
objetivo é fazer com que a Administração Pública obedeça à autorização de despesa
que deve provir do Poder Legislativo, competente para a aprovação da lei orçamentária
anual. regra equivalente à do caput do art. 38 consta no art. 7º, §2º, iii, todos da Lei de
Licitações, que determina que “as obras e os serviços somente poderão ser iniciados
quando (...) houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das
obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem executadas no exercício financeiro
em curso, de acordo com o respectivo cronograma”, assim como é igualmente repetida
no art. 14, relativamente às compras, quando dispõe que “nenhuma compra será feita
sem a adequada caracterização de seu objeto e indicação dos recursos orçamentários
122
123
A respeito de definição de objeto a ser licitado tem-se a Súmula TCU nº 177: “A definição precisa e suficiente
do objeto licitado constitui regra indispensável da competição, até mesmo como pressuposto do postulado de
igualdade entre os licitantes, do qual é subsidiário o princípio da publicidade, que envolve o conhecimento, pelos
concorrentes potenciais das condições básicas da licitação, constituindo, na hipótese particular da licitação para
compra, a quantidade demandada uma das especificações mínimas e essenciais à definição do objeto do pregão”.
A especificação do objeto a ser licitado influencia as exigências de habilitação dos licitantes. Ver TCU: “De acordo
com o objeto licitado, a Administração impõe os requisitos para a habilitação dos licitantes. se for um objeto
comum ou de baixo valor, serão poucos os requisitos. se for um objeto raro ou de alto custo, a Administração
impõe maiores requisitos. Por isso, o objeto da licitação deve estar perfeitamente descrito no edital de licitação.
se houver uma mudança no objeto, há nulidade do certame, pois o objeto é determinante para o estabelecimento
das condições de participação na licitação” (Acórdão nº 474/05, Plenário. DOU, 09 maio 2005).
CAPítuLo 7
LiCitAção
para seu pagamento, sob pena de nulidade do ato e responsabilidade de quem lhe
tiver dado causa”.
não há necessidade de os recursos já estarem previamente liberados ou empenhados para que possa ser iniciado o processo licitatório. É suficiente a existência de
previsão orçamentária e que sejam observadas as exigências impostas pela Lei de responsabilidade Fiscal.
A regra do art. 38 evidentemente não se aplica a todos os contratos administrativos, mas somente àqueles que impliquem desembolso por parte da Administração.
em relação às alienações ou concessões de uso de bens, por exemplo, que não criam
encargos financeiros, mas, ao contrário, geram receitas, não se lhes aplica a exigência
da indicação dos recursos orçamentários.
7.7.8.7 edital – elaboração
o art. 40 da Lei de Licitações indica que elementos devem constar no edital. A redação
do edital constitui o momento mais importante da fase interna da licitação. A elaboração
defeituosa de editais de licitação traz problemas para o curso da licitação, além de ser
fonte inesgotável de controvérsias e divergências entre a Administração e a empresa ou
profissional a ser contratado.124
7.7.8.8 Lei de responsabilidade Fiscal e licitações
A fase interna da licitação se destina, dentre outros aspectos, a definir os gastos a
serem realizados por ocasião da execução do contrato de obra, compra ou serviço. isto
obriga o administrador a considerar, antes da realização de qualquer licitação, as inúmeras alterações introduzidas em nosso ordenamento jurídico pela Lei Complementar
nº 101/00, a Lei de responsabilidade Fiscal – LrF.
diversos dispositivos da LrF afetam a gestão de entidades e órgãos públicos.
dentre esses dispositivos, podemos destacar: o art. 45, que orienta o legislador na elaboração da lei orçamentária e aprovação de créditos adicionais; o art. 47, i, que trata de
empresas controladas pelo poder público e que mantenham com o controlador contrato
de gestão, art. 50, §3º, que determina que a Administração Pública manterá sistema de
custos que permita a avaliação e acompanhamento da gestão orçamentária, financeira
e patrimonial. esses dispositivos afetam a gestão das unidades administrativas e estão
relacionados, de alguma forma, à execução de contratos celebrados pela Administração
Pública.
Além desses, outros dispositivos da LrF afetam efetiva e diretamente a realização
de licitação ou a celebração de contratos pela Administração Pública.
o art. 15 da LrF dispõe, em primeiro lugar, que serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesa ou assunção
de obrigação que não atendam ao disposto em seus artigos 16 e 17.
124
sobre a necessidade de as condições editalícias estarem dispostas de forma clara, o tCu determinou: “9.2.2. nos
futuros processos licitatórios, em observância ao que dispõe o art. 40 da Lei nº 8.666/93, que os editais sejam
suficientemente claros e sem inconsistências quanto aos critérios de julgamento, de modo a evitar interpretações
dúbias por parte dos licitantes e da CPL e desclassificações por mero rigorismo formal, como ocorreu no processo
de contratação nº 48500.005099/01-31” (Acórdão nº 642/04, Plenário. DOU, 09 jun. 2004).
383
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
384
A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarretem
aumento da despesa devem ser acompanhados de:
I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar
em vigor e nos dois subseqüentes;
ii - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o
plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.
A estimativa de impacto orçamentário-financeiro para os três exercícios (para
aquele em que entrará em vigor a despesa e para os dois subseqüentes) deverá, em
primeiro lugar, demonstrar a adequação da despesa com a lei orçamentária anual,
indicando que essa despesa é objeto de dotação específica e suficiente, ou que esteja
abrangida por crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma
espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício. essa estimativa deverá igualmente
demonstrar a compatibilidade da despesa a ser gerada pelo contrato com o plano
plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, e que ela se conforma com as diretrizes,
objetivos, prioridades e metas previstos nesses instrumentos e não infrinja qualquer
de suas disposições. impõe ainda a LrF, em seu art. 16, §2º, que essa estimativa será
acompanhada das premissas e metodologia de cálculo utilizadas.
Além da estimativa do impacto financeiro-orçamentário, deve constar dos autos
do processo de licitação ou de contratação direta a declaração do ordenador de despesa,
ou seja, daquela “autoridade de cujos atos resultem a emissão de empenho, autorização
de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos” (conforme dispõe o art. 80, §1º, do
decreto-Lei nº 200/67) de que o aumento de despesa a ser gerado pela execução do contrato
tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade
com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias. ou seja, a declaração será
apenas o ato que vinculará o ordenador de despesa à estimativa de impacto financeiroorçamentário, imputando-lhe, conseqüentemente, responsabilidade pessoal.
Verifica-se, portanto, que além da simples indicação da rubrica orçamentária de
onde irá originar-se o recurso para fazer frente à despesa a ser gerada pelo contrato,
condição já imposta pela Lei nº 8.666/93, a LrF impõe, ademais, a juntada aos autos do
processo de licitação ou de contratação direta da estimativa do impacto orçamentáriofinanceiro e da declaração do ordenador de despesa aqui referidos. Essas duas providências constituem condição prévia para o “empenho e licitação de serviços, fornecimento
de bens ou execução de obras”, nos termos do art. 16, §4º, da LrF.
todas essas exigências impostas pela LrF somente serão dispensadas para a
despesa considerada irrelevante, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias.
veda o art. 42 da LrF ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos
dois quadrimestres do seu mandato, contrair despesa “que não possa ser cumprida
integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte
sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”.
A primeira observação acerca desse dispositivo diz respeito ao seu âmbito de
aplicação. ele somente alcança os titulares de poderes das três esferas de governo e os
titulares dos órgãos indicados no art. 20.125
125
dispõe a LrF:
“Art. 20. (...)
§2º Para efeito deste artigo entende-se como órgão:
CAPítuLo 7
LiCitAção
Para os titulares de poderes e dos órgãos mencionados, nos dois últimos quadrimestres
de seu mandato, o art. 42 da LrF veda contrair despesa: 1. que não possa ser cumprida
integralmente dentro do mandato dessa autoridade; ou 2. que tenha parcelas a serem pagas
no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.
em relação à segunda restrição, que impede a contratação de despesa que tenha
parcelas a serem pagas no exercício seguinte, se houver disponibilidade de caixa para o
exercício seguinte, a vedação da LrF deixa de existir. essa hipótese — em que se admite
contrair despesa a ser paga no exercício seguinte — deve ser examinada, contudo, em
confronto com o que dispõe o art. 57 da Lei nº 8.666/93. neste dispositivo, é estabelecido,
como regra, que os contratos devem ter seus prazos de vigência limitados aos respectivos créditos orçamentários, ressalvadas as hipóteses expressamente indicadas nos
incisos do caput do art. 57 da Lei de Licitações. Assim, somente para contratos relativos
a projetos contemplados no plano plurianual (art. 57, i), ou de prestação de serviços
contínuos (art. 57, ii), ou de aluguel de equipamentos e de programas de computador
(art. 57, iv), ou ainda para os contratos regidos predominantemente pelo direito privado
(art. 62, §3º, i, todos da Lei nº 8.666/93),126 e desde que haja disponibilidade de caixa
para o exercício seguinte,127 a despesa poderá ser contraída. vemos, portanto, que as
vedações da LrF, nesse tocante, devem ser acrescidas àquelas já constantes na Lei de
Licitações, haja vista serem elas cumulativas, e não alternativas.
7.7.8.9 Fases da concorrência
Costuma-se dividir o procedimento da concorrência nas seguintes fases: edital,
habilitação, classificação (ou julgamento), homologação e adjudicação. Analisemos
cada uma delas.
7.7.8.9.1 edital
a) Informações obrigatórias
o art. 40 da Lei de Licitações determina que o edital “conterá no preâmbulo o
número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a
modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida
por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem
126
127
i - o ministério Público;
ii - no Poder Legislativo:
a) Federal, as respectivas Casas e o tribunal de Contas da união;
b) estadual, a Assembléia Legislativa e os tribunais de Contas;
c) do distrito Federal, a Câmara Legislativa e o tribunal de Contas do distrito Federal;
d) municipal, a Câmara de vereadores e o tribunal de Contas do município, quando houver;
iii - no Poder Judiciário:
a) Federal, os tribunais referidos no art. 92 da Constituição;
b) estadual, o tribunal de Justiça e outros, quando houver.”
Para esses contratos, ditos de direito privado, celebrados pela Administração Pública, por força do citado art. 62, §3º,
i, da Lei nº 8.666/93, não lhes são aplicáveis as regras relativas à vigência dos contratos administrativos previstas no
também citado art. 57 desta mesma lei. Para maiores informações sobre esse assunto, remetemos o leitor ao Capítulo 6.
nos termos do parágrafo único do art. 42 da LrF, “na determinação da disponibilidade de caixa serão considerados os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício”.
385
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386
como para início da abertura dos envelopes”. os incisos deste dispositivo indicam ainda
outras informações que devem obrigatoriamente nele constar.128
no edital, são indicadas todas as regras e prazos que devem pautar a tramitação
da licitação e o próprio conteúdo do futuro contrato.
A primeira observação acerca do tema diz respeito ao fato de que os editais de
licitação, bem assim as minutas de contrato devem ser, por força do que estabelece o
parágrafo único do art. 38 da Lei nº 8.666/93, submetidos ao exame e aprovação prévia
da assessoria jurídica do órgão ou entidade que realizará o certame e a contratação,129
determinação legal essa que se destina exatamente ao controle antecipado da regularidade e da validade dos atos relativos à gestão dos recursos públicos.
outro aspecto relevante a comentar é que não apenas a Administração está
vinculada aos termos do edital, conforme determina o art. 41, caput, mas os próprios
licitantes. dispõe esse artigo nos seguintes termos:
Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual
se acha estritamente vinculada.
o princípio da vinculação ao instrumento convocatório não deve ser entendido,
porém, no sentido de que o edital é imutável. Havendo a real e efetiva necessidade de
ser feita retificação no edital que possa, inclusive, vir a afetar o conteúdo das propostas
apresentadas, a Administração poderá fazê-lo. A lei expressamente prevê, porém, na
hipótese de a alteração vir a afetar o conteúdo das propostas, que será obrigatória a
realização de nova divulgação do instrumento convocatório (edital ou convite), nos
mesmos termos em que se deu a divulgação anterior e a reabertura de novo prazo para
apresentação de novas propostas.130
128
129
130
o entendimento corrente do tribunal de Contas da união é no sentido de que o demonstrativo do orçamento
estimado em planilhas de quantitativos e custos unitários tem que constar como anexo dos instrumentos
convocatórios de licitação, em qualquer modalidade, como estabelece o art. 40, §2º, inciso ii, da Lei de Licitações
e Contratos. ver tCu: decisões nº 300/02 e nº 322/02, ambas do Plenário; e Acórdão nº 1.577/04, 2ª Câmara.
Conforme jurisprudência do tribunal de Contas da união, as minutas de convite não se submetem obrigatoriamente ao exame e aprovação prévia da assessoria jurídica do órgão ou entidade licitante, porém as minutas de
contrato dele advindas devem, necessariamente, atender a tal requisito. ver entendimento do tCu consubstanciado no Acórdão nº 595/01, 2ª Câmara.
sobre a possibilidade de ser alterado o edital no curso do procedimento licitatório, vide stJ: “Administrativo.
Processual Civil. Procedimento licitatório. instrumento convocatório. vinculação da administração e dos participantes. Pressupostos de sua mutabilidade. inobservância. mandado de segurança concedido. vinculada, que
está, a Administração, ao edital — que constitui lei entre as partes — não poderá dele desbordar-se para, em
pleno curso do procedimento licitatório, instituir novas exigências aos licitantes e que não constaram originariamente da convocação. Estabelecido, em cláusula do Edital, que as empresas recém-criadas ficaram dispensadas
(como prova de qualificação técnica) da apresentação do balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último
exercício, era defeso, à Administração, mediante simples aviso interno, criar novas obrigações aos licitantes,
inobservando o procedimento consignado na lei. É lícito, à Administração, introduzir alterações no edital, devendo,
em tal caso, renovar a publicação do Aviso por prazo igual ao original, sob pena de frustrar a garantia da publicidade e o princípio formal da vinculação ao procedimento. A exigência da publicidade plena (do processo
licitatório) não preclui pela inexistência de reclamação dos licitantes, na fase administrativa e não impede que
a corrigenda se faça na esfera jurisdicional, porquanto, segundo mandamento constitucional, nenhuma lesão
de direito poderá ficar sem a apreciação do Judiciário. Não é irregular, para fins de habilitação em processo de
licitação, o balanço que contém a assinatura do contador, ao qual a lei comete atribuições para produzir e firmar
documento de tal natureza, como técnico especializado. segurança concedida” (ms nº 5.601-dF, 1ª seção. rel.
min. demócrito reinaldo. Julg. 6.11.1998. DJ, 14 dez. 1998).
no mesmo sentido, vide jurisprudência do tCu: decisão nº 444/01, Plenário; e Acórdão nº 799/05, 2ª Câmara.
CAPítuLo 7
LiCitAção
b) Impugnações ao edital
O art. 41, §2º, da Lei de Licitações fixa prazo para que licitante possa impugnar
os termos do edital. expirado o prazo ali previsto, decairá o participante da licitação do
direito de impugná-lo.131 Isto significa dizer que quem participa da licitação não pode,
por exemplo, esperar ser inabilitado ou desclassificado para, somente então, impugnar
a regra contida no edital que levaria à sua exclusão do processo licitatório.132
mas não são apenas os licitantes que têm legitimidade para impugnar o edital.133
o art. 41, §1º, dispõe que “qualquer cidadão é parte legítima para impugnar edital de
licitação por irregularidade na aplicação desta Lei, devendo protocolar o pedido até
5 (cinco) dias úteis antes da data fixada para a abertura dos envelopes de habilitação,
devendo a Administração julgar e responder à impugnação em até 3 (três) dias úteis,
sem prejuízo da faculdade prevista no §1º do art. 113”.
A preclusão do direito do licitante que não impugnou o edital pela via administrativa tem sido objeto de controvérsia no âmbito do stJ no que concerne a saber se a preclusão administrativa constitui impedimento ao seu
exame da matéria pela via judicial.
no sentido de que a preclusão administrativa impede o exame da matéria no âmbito judicial:
“Administrativo – Licitação do tipo menor preço – impugnação do edital – decadência – Compatibilidade com a
exigência de preços unitários e com o valor global. 1. A partir da publicação do edital de licitação, nasce o direito de
impugná-lo, direito que se esvai com a aceitação das regras do certame, consumando-se a decadência (divergência
na Corte, com aceitação da tese da decadência pela segunda turma – roms 10.847/mA). 2. A licitação da modalidade menor preço compatibiliza-se com a exigência de preços unitários em sintonia com o valor global – arts. 40,
44, 45 e 48 da Lei 8.666/93. 3. Previsão legal de segurança para a Administração quanto à especificação dos preços
unitários, que devem ser exeqüíveis com os valores de mercado, tendo como limite o valor global. 4. recurso improvido” (stJ. rms nº 15.051-rs, 2ª turma. rel. min. eliana Calmon. Julg. 1º.10.2002. DJ, 18 nov. 2002).
em sentido contrário, ou seja, de que a não impugnação do edital pela via administrativa não impede o exame
pela via judicial: “direito Administrativo. Licitação. Cláusula editalícia redigida sem a devida clareza. interpretação pelo judiciário, independentemente de impugnação pelos participantes. Possibilidade” (stJ. ms nº 5.655dF, 1ª seção. rel. min. demócrito reinaldo. Julg. 27.5.1998. DJ, 31 ago. 1998).
132
Nesse sentido, STJ: “ROMS. Licitação. Princípio da vinculação ao instrumento convocatório. Desclassificação.
não observância do disposto no edital pela empresa recorrente. decisão administrativa proferida sob o crivo da
legalidade. I - O edital é elemento fundamental do procedimento licitatório. Ele é que fixa as condições de realização da licitação, determina o seu objeto, discrimina as garantias e os deveres de ambas as partes, regulando
todo o certame público. ii - se o recorrente, ciente das normas editalícias, não apresentou em época oportuna
qualquer impugnação, ao deixar de atendê-las incorreu no risco e na possibilidade de sua desclassificação,
como de fato aconteceu. iii - recurso desprovido” (rms nº 10.847-mA, 2ª turma. rel. min. Laurita vaz. Julg.
27.11.2001. DJ, 18 fev. 2002).
133
A esse respeito, stJ: “direito Administrativo. Licitação. Cláusula editalícia redigida sem a devida clareza. interpretação pelo judiciário, independentemente de impugnação pelos participantes. Possibilidade. no procedimento licitatório, as cláusulas editalícias hão de ser redigidas com a mais lídima clareza e precisão, de modo
a evitar perplexidades e possibilitar a observância pelo universo de participantes. A caducidade do direito à
impugnação (ou do pedido de esclarecimentos) de qualquer norma do edital opera, apenas, perante a Administração, eis que, o sistema de jurisdição única consignado na Constituição da república impede que se subtraia
da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Até mesmo após abertos os envelopes (e ultrapassada a primeira fase), ainda é possível aos licitantes propor as medidas judiciais adequadas à satisfação do
direito pretensamente lesado pela Administração. Consoante o magistério dos doutrinadores, a inscrição (da
empresa proponente) no cadastro de contribuintes destina-se a permitir a imediata apuração de sua situação
frente ao Fisco. decorre, daí, que se o concorrente não está sujeito à tributação estadual e municipal, em face das
atividades que exerce, o registro cadastral constitui exigência que extrapola o objetivo da legislação de regência.
A cláusula do Edital que, ‘in casu’, se afirma descumprida (5.5.1), entremeada da expressão ‘se for o caso’, só
pode ser interpretada no sentido de que, a prova da inscrição cadastral (perante as fazendas estadual e municipal) somente se faz necessária se o proponente for destas (Fazendas) contribuintes, porquanto a lei somente
admite a previsão de exigência se ela for qualificável, em juízo lógico, como indispensável à consecução do fim.
‘in hiphotesi’, a impetrante, ao apresentar, com a sua proposta, certidões negativas de ‘débitos’ para com as
Fazendas estadual e municipal ofereceu prova bastante ‘a permitir o conhecimento de sua situação frente aos
Fiscos’, ficando cumprida a cláusula editalícia, ainda que legal se considerasse a exigência. Mandado de segurança concedido. decisão unânime” (ms nº 5.655-dF, 1ª seção. rel. min. demócrito reinaldo. Julg. 27.5.1998.
DJ, 31 ago. 1998).
131
387
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Curso de direito AdministrAtivo
388
c) Representações ao Tribunal de Contas
Acerca da possibilidade de serem feitas impugnações a qualquer licitação, o
art. 113, §1º, permite que “qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica
poderá representar ao tribunal de Contas ou aos órgãos integrantes do sistema de
controle interno contra irregularidades na aplicação desta Lei, para os fins do disposto
neste artigo”. É evidente que a representação de que trata este dispositivo não diz
respeito apenas a vícios no edital. Poderá ser utilizada para que seja provocado o tribunal de Contas da união, dos estados ou municípios, conforme a respectiva esfera de
competência, a fim de que a competente Corte de Contas possa manifestar-se acerca da
legalidade de todo o procedimento licitatório, assim como da execução do contrato.134
d) Divulgação do edital
A divulgação do edital obedecerá ao disposto no art. 21, que determina:
Art. 21. os avisos contendo os resumos dos editais das concorrências, das tomadas de
preços, dos concursos e dos leilões, embora realizadas no local da repartição interessada,
deverão ser publicados com antecedência, no mínimo, por uma vez:
I - no Diário Oficial da União, quando se tratar de licitação feita por órgão ou entidade da
Administração Pública Federal, e ainda, quando se tratar de obras financiadas parcial ou
totalmente com recursos federais ou garantidas por instituições federais;
II - no Diário Oficial do Estado, ou do Distrito Federal, quando se tratar respectivamente
de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou municipal,
ou do distrito Federal;
iii - em jornal diário de grande circulação no estado135 e também, se houver, em jornal
de circulação no município ou na região onde será realizada a obra, prestado o serviço,
fornecido, alienado ou alugado o bem, podendo ainda a Administração, conforme o vulto
da licitação, utilizar-se de outros meios de divulgação para ampliar a área de competição.
134
135
sobre a competência do tCu, observar o julgado do stF: “Procedimento licitatório. impugnação. Competência
do TCU. Cautelares. Contraditório. Ausência de instrução. 1 - Os participantes de licitação têm direito à fiel
observância do procedimento estabelecido na lei e podem impugná-lo administrativa ou judicialmente. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada. 2 - inexistência de direito líquido e certo. o tribunal de Contas da união
tem competência para fiscalizar procedimentos de licitação, determinar suspensão cautelar (artigos 4º e 113,
§1º e 2º da Lei nº 8.666/93), examinar editais de licitação publicados e, nos termos do art. 276 do seu regimento
interno, possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir
a efetividade de suas decisões). 3 - A decisão encontra-se fundamentada nos documentos acostados aos autos
da representação e na legislação aplicável. 4 - violação ao contraditório e falta de instrução não caracterizadas.
denegada a ordem” (ms nº 24.510-dF, Pleno. rel. min. ellen Gracie. Julg. 19.11.2003. DJ, 19 mar. 2004).
Acerca da regra contida neste inciso iii do art. 21, no que se refere a ser o jornal diário de grande circulação no
Estado, convém examinar as observações no voto proferido pelo Min. Walton Rodrigues nos autos do Processo
tC nº 925.385/1998-0:
“Coloco-me de acordo com o entendimento defendido pelo titular da unidade técnica, ao endossar a proposta do
sr. diretor da 2ª divisão técnica, no sentido de que se conheça da presente representação, nos termos do art. 113,
§1º, da Lei nº 8.666/93, para, no mérito, considerá-la procedente em parte, pois os procedimentos adotados com
vistas a dar o mais amplo conhecimento a todos os interessados, de fato, restaram prejudicados.
2. Primeiro porque a publicação do aviso contendo um resumo do edital, de que trata o art. 21 e seus incisos, da
Lei nº 8.666/93, ocorreu apenas no dou e no jornal a Gazeta mercantil, sendo que este último, não obstante o
reconhecimento da qualidade de suas informações, é uma publicação especializada de tiragem e público restritos. resultou de tal fato restrição ao universo de interessados.
3. em segundo lugar, o Aviso de Licitação publicado pelo Banco não fez qualquer referência sobre o local em que
tais serviços seriam prestados, e limitou-se a informar que se tratava de transporte de valores, o que pode, concordando com a unidade técnica, ter excluído outros licitantes interessados, levando-os a imaginar que os serviços
seriam realizados unicamente na praça de Brasília” (tCu. decisão nº 403/99, Plenário. DOU, 09 jul. 1999).
CAPítuLo 7
LiCitAção
A finalidade do aviso de licitação é de tornar pública136 a pretensão da Administração
em formalizar contrato com o particular. É o chamamento a todos os que desejem negociar
com a Administração para apresentarem suas propostas. Por isso, esse aviso deve permitir
que o maior número possível de pessoas tenha a sua atenção despertada para o negócio.
Quanto maior for o número de participantes, maior será o caráter competitivo da disputa,
e melhores chances terá a Administração em obter proposta que lhe permita a melhor
realização do seu interesse público.
e) Prazos para apresentação das propostas
No edital deverá ser fixado o prazo para a apresentação das propostas pelos licitantes. No art. 21 são definidos os prazos que, no caso de concorrência, é de no mínimo
trinta dias (art. 21, §2º, ii, “a”), exceto “quando o contrato a ser celebrado contemplar
o regime de empreitada integral ou quando a licitação for do tipo melhor técnica ou
técnica e preço”, hipótese em que o prazo mínimo para a apresentação de propostas
passa para quarenta e cinco dias (art. 21, §2º, i).137
Com a apresentação das propostas, considera-se iniciada a fase seguinte, da
habilitação.
7.7.8.9.2 Habilitação
a) Objetivo da habilitação
O edital, como visto no item anterior, já deve ter fixado o prazo para a apresentação das propostas. nos termos do §1º do art. 43, “a abertura dos envelopes contendo
a documentação para habilitação e as propostas será realizada sempre em ato público
previamente designado, do qual se lavrará ata circunstanciada, assinada pelos licitantes
presentes e pela Comissão”.
em todas as licitações, os seus participantes deverão apresentar dois envelopes,
um contendo a documentação relativa à habilitação e outra relativa ao preço. no caso
específico de licitações do tipo melhor técnica ou técnica e preço, deverão ser entregues
três envelopes: o primeiro com a documentação relativa à habilitação, o segundo contendo a proposta técnica e o terceiro contendo a proposta financeira.
nesta fase da licitação será procedida a abertura apenas do primeiro envelope,
relativo à habilitação.138
o art. 27 da Lei de Licitações determina os documentos a serem exigidos dos
licitantes para fins de habilitação. Exigir-se-á dos interessados documentação relativa a:
136
137
138
Acerca da divulgação de licitações realizadas pela Administração Pública federal, deve ser realizada a publicação do extrato do edital no sistema de divulgação eletrônica de Compras e Contratos (sideC). esse sistema,
normatizado pela IN MARE nº 3, de 20.2.1997, foi criado com a finalidade de acompanhar, racionalizar e ampliar
a divulgação de compras e contratações realizadas pela Administração Pública federal.
sobre a conveniência de se avaliar a adequação do prazo entre a publicação do aviso da licitação e a data de
recebimento dos envelopes, haja vista a complexidade do objeto a ser licitado, tem-se a determinação constante
do Acórdão tCu nº 682/06, Plenário (DOU, 15 maio 2006):
“9.2.4. dimensione os prazos entre a publicação do aviso de edital de licitação e a apresentação das propostas pelos
licitantes, em função do tempo efetivamente demandado para o exame do edital e redação das propostas por parte
dos interessados em potencial, uma vez que os prazos referenciados no art. 21, §2º, do estatuto licitatório representam valores mínimos que não excluem a necessidade de sua ampliação se assim o exigir a complexidade do objeto
da contratação; (...).”
Observe que no pregão ocorre a inversão entre as fases da habilitação e da classificação.
389
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
390
i - habilitação jurídica;
II - qualificação técnica;
III - qualificação econômico-financeira;
IV - regularidade fiscal e trabalhista;139
v - cumprimento do disposto no inciso XXXiii do art. 7º da Constituição Federal.140
na busca pela proposta mais vantajosa, deve a Administração observar o princípio constitucional da isonomia, sendo vedado admitir, prever, incluir ou tolerar, nos
atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem
o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções impertinentes ou
irrelevantes para o específico objeto do contrato, nos termos do art. 3º, §1º e inciso I,
da Lei nº 8.666/93.141
segundo marçal Justen Filho, “o ato convocatório viola o princípio da isonomia
quando: a) estabelece discriminação desvinculada do objeto da licitação; b) prevê
exigência desnecessária e que não envolve vantagem para a Administração; c) impõe
requisitos desproporcionados com as necessidades da futura contratação; d) adota
discriminação ofensiva de valores constitucionais ou legais”.142
nesse sentido, o art. 37, inciso XXi da Constituição Federal permite que se estabeleçam “exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia
do cumprimento das obrigações”. Para definir o objeto da licitação e as condições de
contratação, a Administração pode se servir de certa margem de discricionariedade
para determinar, em cada caso concreto, o que deverá ser comprovado pelos interessados em participar da licitação,143 sempre visando ao atendimento de seus interesses
e respeitando-se a isonomia entre os licitantes.
na fase de habilitação, todavia, a comissão de licitação não deve confundir o
procedimento formal inerente ao processo licitatório com o formalismo exagerado, que
se caracteriza por exigências inúteis e desnecessárias.144
139
140
141
142
143
144
“regularidade trabalhista” inserida nesse inciso pela Lei nº 12.440, de 7.7.2011, entrando em vigor 180 dias após
sua publicação.
dispositivo incluído pela Lei nº 9.854, de 27.10.1999. não havendo qualquer regulamentação da forma de apresentação dessa exigência de qualificação, será ela apresentada por simples declaração do licitante por meio da
qual ele firma compromisso de não manter em trabalho noturno, perigoso ou insalubre menores de 18 anos, e,
em qualquer trabalho, menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos.
O Enunciando nº 272, de 2012, da Súmula da Jurisprudência do TCU alude à situação que exemplifica exigência
restritiva, e, portanto, vedada, do caráter competitivo da licitação: “no edital de licitação, é vedada a inclusão
de exigências de habilitação e de quesitos de pontuação técnica para cujo atendimento os licitantes tenham de
incorrer em custos que não sejam necessários anteriormente à celebração do contrato”.
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 58.
A exigência de que empresa licitante apresente declaração lavrada por fabricante atestando que está por ele
credenciada para fornecimento do produto pretendido extrapola os limites para habilitação contidos nos
artigos 27 a 31 da Lei nº 8.666/93. Cf. informativo de Licitações e Contratos tCu nº 101, citando Acórdão tCu
nº 847/2012, Plenário.
Sobre o excesso de rigor da Comissão de Licitação na apreciação de documentos relacionados à qualificação
jurídica, vide stJ: “Administrativo. Licitação. Habitação. vinculação ao edital. mandado de segurança. 1. A
interpretação das regras do edital de procedimento licitatório não deve ser restritiva. desde que não possibilitem
qualquer prejuízo à Administração e aos interessados no certame, é de todo conveniente que compareça à disputa
o maior número possível de interessados, para que a proposta mais vantajosa seja encontrada em um universo
mais amplo. 2. o ordenamento jurídico regulador da licitação não prestigia decisão assumida pela Comissão
de Licitação que inabilita concorrente com base em circunstância impertinente ou irrelevante para o específico
objeto do contrato, fazendo exigência sem conteúdo de repercussão para a configuração de habilitação jurídica,
da qualificação técnica, da capacidade econômico-financeira e da regularidade fiscal. 3. Se o edital exige que a
prova da habilitação jurídica da empresa deve ser feita, apenas, com a apresentação do ‘ato constitutivo e suas
CAPítuLo 7
LiCitAção
segundo ensina Celso Antônio Bandeira de mello:
do edital constam indicações concernentes aos requisitos exigidos dos que pretendem
participar do certame. isto é, compete à Administração estabelecer as condições para que
alguém possa disputar uma licitação. são exigências relativas aos sujeitos. Com efeito,
interessa, como é lógico, cifrar a disputa a quem tenha realmente condições de vir a cumprir
o pretendido pelo Poder Público. À Administração não convém atirar-se em negócios aleatórios. não pode envolver-se em riscos que tragam incerteza quanto ao efetivo cumprimento
dos encargos que poderão incidir sobre a parte vencedora.145
na mesma linha, veja-se o magistério de Hely Lopes meirelles:
Todavia não configura atentado ao princípio da igualdade aos licitantes o estabelecimento
de requisitos mínimos de participação, no edital ou convite, porque a Administração pode
e deve fixá-los, sempre que necessários à garantia da execução do contrato, à segurança
e perfeição da obra ou serviço, à regularidade do fornecimento ou ao atendimento de
qualquer outro interesse público.146
b) SICAF
instituído pela in mAre nº 05, de 21.7.1995, o siCAF caracteriza um registro
cadastral oficial do Poder Executivo federal. Sua função é cadastrar e habilitar parcialmente todos os que pretendam contratar com órgãos ou entidades federais, tornando
esse cadastramento obrigatório para os órgãos da Presidência da república, ministérios,
autarquias e fundações que integram o sistema de serviços Gerais – sisG. vê-se que o
cadastramento no siCAF é obrigatório para os órgãos e entidades integrantes do sisG,
podendo também ser utilizado por outros órgãos que não estão obrigados a adotá-lo,
como, por exemplo, os órgãos dos Poderes Judiciário ou Legislativo federais.147
nesse passo, considero prudente que os órgãos ou entidades licitantes consignem
nos atos convocatórios das licitações a serem realizadas as alternativas de as empresas
demonstrarem sua habilitação jurídica, qualificação econômico-financeira e regularidade
fiscal por meio do cadastramento e da habilitação parcial no SICAF ou do cadastramento no próprio órgão (se o órgão não estiver no âmbito do Poder executivo federal)
ou mediante a apresentação de toda a documentação exigida dentro do envelope de
habilitação, seja qual for a modalidade licitatória adotada.148 A implantação do siCAF
auxiliou os órgãos públicos federais que realizam licitações, especialmente na condução
145
146
147
148
alterações, devidamente registrada ou arquivadas na repartição competente, constando dentre seus objetivos a
exclusão de serviços de radiodifusão...’, excessiva e sem fundamento legal a inabilidade de concorrente sob a
simples afirmação de que cláusulas do contrato social não se harmonizam com o valor total do capital social e
com o correspondente balanço de abertura, por tal entendimento ser vago e impreciso. 4. Configura-se excesso
de exigência, especialmente por a tanto não pedir o edital, inabilitar concorrente porque os administradores da
licitante não assinaram em conjunto com a dos contadores o balanço da empresa. 5. segurança concedida” (ms
nº 5.779-dF, 1ª seção. rel. min. José delgado. Julg. 9.9.1998. DJ, 26 out. 1998).
BAndeirA de meLLo. Elementos de direito administrativo, p. 115.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 16. ed., p. 243.
Informações específicas acerca do cadastramento no SICAF poderão ser obtidas no site <http://www.comprasnet.
gov.br>.
o tribunal de Contas da união sumulou entendimento no sentido de que “é vedada a exigência de prévia
inscrição no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – Sicaf para efeito de habilitação em licitação”
(enunciado nº 274/2012 da súmula da Jurisprudência do tCu).
391
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
392
da fase de habilitação dos certames, haja vista toda a documentação relativa à habilitação
jurídica e regularidade fiscal já ter sido apresentada por ocasião do cadastramento, bastando às empresas tão somente renovar as certidões quando de seu vencimento. o siCAF
também facilita o trabalho das empresas, sinal disso é o número crescente de empresas
que vêm se cadastrando no sistema.149
c) Habilitação jurídica
Acerca da habilitação jurídica (art. 28), não são suscitadas grandes dúvidas ou
dificuldades práticas.
A finalidade desse dispositivo é o de impedir que sejam contratados pela Administração Pública aqueles que não tenham existência jurídica reconhecida pelo direito
Positivo. A apresentação dos documentos relativos à habilitação jurídica serve para
demonstrar que o futuro contratado pela Administração é sujeito de direito e de obrigações, possuindo, em consequência capacidade de fato e de direito para a prática dos
atos para os quais será contratado.150
d) Qualificação técnica
Para a realização de obras ou serviços de grande complexidade não podem ser
dispensados o conhecimento técnico especializado nem a comprovação de experiência
e de capacitação operativa para cumprir o objeto do contrato.151
Cintra do Amaral analisou a imposição de exigências de qualificação técnica e
sobre ela apresenta as seguintes considerações:
não encontramos absolutamente nenhum argumento favorável à licitação pública aberta
a todos e admitimos sem reserva o ponto de vista segundo o qual, quando a licitação faz
apelo à concorrência, é absolutamente essencial que, para cada empreendimento licitado,
a concorrência pública se limite às empresas cuidadosamente escolhidas em função da
149
150
151
relativamente à cobrança de taxa do particular para o registro no siCAF, instituída no subitem 2.5 da instrução
normativa nº 5/95, do extinto mAre, o tribunal de Contas da união, mediante Acórdão nº 399/01, 1ª Câmara,
ratificou entendimento de que tal medida contraria o §5º do art. 32 da Lei nº 8.666/93, além de se tratar de
encargo que somente pode ser criado por lei.
Acerca da ilegalidade de inabilitação realizada por comissão de licitação que interpretou com excesso de rigor
cláusula do edital, de modo a restringir o caráter competitivo da licitação, vide stJ: “Administrativo. Licitação.
Habilitação. mandado de segurança. edital. 1. As regras do edital de procedimento licitatório devem ser interpretadas de modo que, sem causar qualquer prejuízo à Administração e aos interessados no certame, possibilitem a participação do maior número possível de concorrentes, a fim de que seja possibilitado se encontrar,
entre várias propostas, a mais vantajosa. 2. não há de se prestigiar posição decisória assumida pela Comissão
de Licitação que inabilita concorrente com base em circunstância impertinente ou irrelevante para o específico
objeto do contrato, fazendo exigência sem conteúdo de repercussão para a configuração da habilitação jurídica,
da qualificação técnica, da qualificação econômico-financeira e regularidade fiscal. 3. Se o edital exige que a
prova da habilitação jurídica da empresa deve ser feita, apenas, com a apresentação do ‘ato constitutivo e suas
alterações, devidamente registrada ou arquivadas na repartição competente, constando dentre seus objetivos a
exclusão de serviços de radiodifusão...’, é excessiva e sem fundamento legal a inabilitação de concorrente sob a
simples afirmação de que cláusulas do contrato social não se harmonizam com o valor total do capital social e
com o correspondente balanço de abertura, por tal entendimento ser vago e impreciso. 4. segurança concedida”
(ms nº 5.606-dF, 1ª seção. rel. min. José delgado. Julg. 13.5.1998. DJ, 10 ago. 1998).
As exigências de qualificação técnica têm que estar justificadas, conforme determinação constante do TCU:
“9.4.3. ao inserir exigência de comprovação de capacidade técnica de que trata o art. 30 da Lei 8.666/93 como
requisito indispensável à habilitação das licitantes, consigne, expressa e publicamente, os motivos dessa exigência e demonstre, tecnicamente, que os parâmetros fixados são adequados, necessários, suficientes e pertinentes
ao objeto licitado, assegurando-se de que a exigência não implica restrição do caráter competitivo do certame”
(Acórdão nº 668/05, Plenário. DOU, 03 jun. 2005).
CAPítuLo 7
LiCitAção
importância e da natureza das obras, e reconhecidamente capazes de empreitar e executar
o trabalho com os necessários requisitos de qualidade.152
A Lei nº 8.666/93, em seu art. 30, ao dispor sobre a documentação necessária à
comprovação da qualificação técnica necessária à participação de licitação, definiu que
esta limitar-se-á a(o):
I - registro ou inscrição na entidade profissional competente;153
ii - comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em
características, qualidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações
e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do
objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica
que se responsabilizará pelos trabalhos;
iii - comprovação, fornecida pelo órgão licitante, de que recebeu os documentos, e, quando
exigido, de que tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para
o cumprimento das obrigações objeto da licitação;154
iv - prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso.
dispõe ainda, o supracitado artigo, em seu §1º:
Art. 30. (...)
§1º A comprovação de aptidão referida no inciso ii do caput deste artigo, no caso
das licitações pertinentes a obras e serviços, será feita por atestados fornecidos por
pessoas jurídicas de direito público ou privado, devidamente registrados nas entidades
profissionais competentes, limitadas as exigências a:
I - capacitação técnico-profissional: comprovação do licitante de possuir em seu quadro
permanente, na data prevista para entrega da proposta, profissional de nível superior
ou outro devidamente reconhecido pela entidade competente, detentor de atestado de
responsabilidade técnica por execução da obra ou serviço de características semelhantes,
limitadas estas exclusivamente às parcelas de maior relevância e valor significativo do
objeto da licitação, vedadas as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos.
A verificação da qualificação técnica,155 conforme consta do art. 30 da Lei
nº 8.666/93, bem como da econômica, conforme será examinado no próximo item, deve
152
153
154
155
CINTRA DO AMARAL. Qualificação técnica da empresa na nova Lei de licitações e contratos administrativos:
Lei 8.666/93. Revista Trimestral de Direito Público, p. 42-48.
Acerca da desnecessidade de registro nas entidades profissionais competentes, se o edital assim não exige, vide
stJ. Agrg no Ag nº 177.845-Pr, 1ª turma. rel. min. Humberto Gomes de Barros. Julg. 20.8.1998. DJ, 21 set. 1998.
Acerca da possibilidade de ser exigida a realização de vistoria no local da prestação do serviço como requisito
de qualificação técnica, vide tCu. decisão nº 783/00, Plenário. DOU, 29 set. 2000.
Acerca da impossibilidade de serem exigidas informações a respeito da qualificação técnica de licitantes não
constantes do edital, vide a seguinte decisão proferida pelo superior tribunal de Justiça: “Administrativo. Processual civil. Procedimento licitatório. instrumento convocatório. vinculação da administração e dos participantes. Pressupostos de sua mutabilidade. inobservância. mandado de segurança concedido. vinculada, que está,
a Administração, ao edital — que constitui lei entre as partes — não poderá dele desbordar-se para, em pleno
curso do procedimento licitatório, instituir novas exigências aos licitantes e que não constaram originariamente
da convocação. Estabelecido, em cláusula do Edital, que as empresas recém-criadas ficaram dispensadas (como
prova de qualificação técnica) da apresentação do balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício, era defeso, à Administração, mediante simples aviso interno, criar novas obrigações aos licitantes, inobservando o procedimento consignado na lei. É lícito, à Administração, introduzir alterações no edital, devendo,
393
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
394
ter sempre o objetivo de assegurar que o licitante estará apto a dar cumprimento às
obrigações assumidas no contrato com a Administração.156
Acerca da qualificação técnica, cumpre observar, inicialmente, que as exigências
contidas no inciso ii do art. 30 supratranscrito podem ser divididas em duas categorias:
uma relativa ao licitante; outra, ao pessoal técnico do licitante.
A primeira, conhecida como capacitação técnico-operacional, cuida da comprovação de aptidão do interessado “para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação
das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para
a realização do objeto da licitação”.157 A outra, denominada pela lei como capacitação
técnico-profissional, está relacionada à “qualificação de cada um dos membros da equipe
técnica que se responsabilizará pelos trabalhos.158
o art. 30, §1º, i, da Lei nº 8.666/93, acima transcrito, esclarece que a capacitação
técnico profissional é “a comprovação do licitante possuir em seu quadro permanente
(...) profissional de nível superior (...) detentor de atestado de responsabilidade técnica
por execução de obra ou serviço de características semelhantes (...)”. essa capacitação
técnico-profissional está relacionada à comprovação de aptidão para o desempenho de
atividade compatível com aquela que está sendo licitada.
156
157
158
em tal caso, renovar a publicação do Aviso por prazo igual ao original, sob pena de frustrar a garantia da publicidade e o princípio formal da vinculação ao procedimento. A exigência da publicidade plena (do processo
licitatório) não preclui pela inexistência de reclamação dos licitantes, na fase administrativa e não impede que
a corrigenda se faça na esfera jurisdicional, porquanto, segundo mandamento constitucional, nenhuma lesão
de direito poderá ficar sem a apreciação do Judiciário. Não é irregular, para fins de habilitação em processo de
licitação, o balanço que contém a assinatura do contador, ao qual a lei comete atribuições para produzir e firmar documento de tal natureza, como técnico especializado. segurança concedida. decisão indiscrepante” (ms
nº 5.601-dF, 1ª seção. rel. min. demócrito reinaldo. Julg. 6.11.1998. DJ, 14 dez. 1998).
Quando os documentos de qualificação técnica referirem-se a serviços de engenharia e obras, deverão estar
registrados no CreA. Vide stJ: “recurso especial – mandado de segurança – Licitação – Artigo 30, ii, §1º da Lei
n. 8.666/93 – Certificação dos atestados de qualificação técnica – Ausência de registro no CREA – Violação à lei
de licitação” (REsp nº 324.498-SC, 2ª Turma. Rel. Min. Franciulli Netto. Julg. 19.2.2004. DJ, 26 abr. 2004).
“mandado de segurança – Concorrência pública – Capacitação técnica – inabilitação – Lei nº 8.666/93. 1 - A
comprovação da capacidade técnica operacional do licitante deve observar as regras estabelecidas no artigo
30, da Lei nº 8.666/93, sendo necessário verificar se o Edital revela coerência com o dispositivo legal citado. 2 Apesar de ser vedada a indevida restrição à liberdade de participação em licitação, a exigência de apresentação
de atestados de capacidade técnica com indicação do número de postos igual ou superior ao total de postos
relativos a cada lote para o qual foi apresentada a proposta, está de acordo com o inciso ii, do artigo 30, da Lei
de Concorrências. 3 - não cumprida, na íntegra, a exigência constante do edital, amparada pela Lei 8.666/93, não
se mostra ilegal a inabilitação do licitante. 4 - recurso conhecido e provido. unânime” (stJ. resp nº 776.260-dF,
decisão monocrática. rel. min. Francisco Falcão. DJ, 27 set. 2005).
Acerca dessa distinção, é oportuno transcrever os sempre lúcidos ensinamentos de marçal Justen Filho:
“Independentemente da variante que se adote, é inquestionável que a experiência-qualificação apresenta peculiaridades distintas quando caracterizável como qualificação técnica profissional e como qualificação técnica
operacional. As diferenças derivam da distinta natureza das duas espécies de sujeito, mas também da diversidade quanto à própria atividade envolvida. A qualificação técnica profissional configura experiência do ser
humano no desenvolvimento de sua atividade individual. É atributo pessoal, que acompanha sua atuação no
mundo. o ser humano tem existência limitada no tempo, o que acarreta a transitoriedade de seus potenciais.
Já as organizações empresariais transcendem à existência limitada das pessoas físicas que as integram. sua qualificação para o exercício de certos empreendimentos decorre da estrutura organizacional existente. A substituição de alguns membros da organização pode ser suportada sem modificações mais intensas do perfil da própria
instituição. Aliás, a alteração da identidade de alguns sujeitos pode ser totalmente irrelevante para a identidade
da organização em si mesma. Portanto, a experiência-qualificação empresarial pode ser mantida, ainda quando
o decurso do tempo produza modificação das pessoas físicas vinculadas ao empreendimento” (Comentários à lei
de licitações e contratos administrativos).
CAPítuLo 7
LiCitAção
o mesmo dispositivo legal, em decorrência de vetos presidenciais, acabou não
definindo as exigências cabíveis no que tange à demonstração de qualificação técnica da
licitante. Entendemos, nada obstante, que há amparo legal para que se exija a comprovação de capacitação técnico-operacional,159 inclusive quanto à apresentação de atestados
de comprovação de aptidão.160 essa interpretação encontra amparo nos parágrafos 3º
e 4º do art. 30 da Lei nº 8.666/93, que prevê:
Art. 30. (...)
§3º será sempre admitida a comprovação de aptidão através de certidões ou atestados
de obras ou serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente
ou superior.
§4º nas licitações para fornecimento de bens, a comprovação de aptidão, quando for o
caso, será feita através de atestados fornecidos por pessoa jurídica de direito público ou
privado.
Acerca das limitações de tempo ou época ou ainda de locais específicos, dispõe
ainda o §5º do art. 30 da Lei nº 8.666/93, nos seguintes termos:
Art. 30. (...)
§5º É vedada a exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de
tempo ou de época ou ainda em locais específicos, ou quaisquer outras não previstas nesta
Lei, que inibam a participação na licitação.
esse tema suscita igualmente controvérsias. o tCu, por meio da decisão nº 767/98,
Plenário (DOU, 20 nov. 1998), firmou entendimento no sentido de que pode ser exigida
comprovação de capacidade técnico-operacional por meio da exigência de atestados.161
não admitiu o tCu, nessa ocasião, no entanto, vincular os atestados ou declarações
relacionados à capacidade técnico-operacional à execução de obra anterior.
não obstante, o que se busca por meio de atestados, certidões ou declarações
é, inevitavelmente, algo situado em tempo pretérito. ora, não há como se desvincular
esses documentos da experiência anterior do licitante. Logo, se é possível admitir a
exigência de atestados para comprovar a capacidade técnico-operacional, não há como
proibir que eles se refiram a situações passadas.162
159
160
161
162
Acerca da possibilidade de ser exigida qualificação técnico-operacional, vide stJ: “Administrativo – Licitação –
exigência do edital – Capacitação técnica do licitante – Possibilidade – Art. 30, ii da Lei 8.666/93. - A exigência,
no edital, de comprovação de capacitação técnico-operacional, não fere o caráter de competição do certame
licitatório.- Precedentes do stJ. - recurso provido” (resp nº 155.861-sP, 1ª turma. rel. min. Humberto Gomes
de Barros. Julg. 1º.12.1998. DJ, 08 mar. 1999).
nesse sentido, vide tCu: decisões nº 767/98. Plenário. DOU, 20 nov. 1998; e nº 285/00 Plenário. DOU, 04 maio 2000.
na sessão de 19.1.2011, o tribunal de Contas da união aprovou a súmula nº 263, com o seguinte teor: “Para
a comprovação da capacidade técnico-operacional das licitantes, e desde que limitada, simultaneamente, às
parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto a ser contratado, é legal a exigência de comprovação
da execução de quantitativos mínimos em obras ou serviços com características semelhantes, devendo essa
exigência guardar proporção com a dimensão e a complexidade do objeto a ser executado”.
observe que o tCu, por meio da decisão nº 285/00, Plenário (DOU, 04 maio 2000), passou a admitir a possibilidade
de que esses atestados, declarações ou certidões a serem exigidos refiram-se à experiência anterior do licitante.
395
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
396
A comprovação deverá, portanto, estar sempre relacionada à experiência
anterior,163 nos limites consagrados no art. 37, inciso XXi, da Constituição Federal, tendo
sempre como parâmetro o objeto licitado.164
outro aspecto relevante relacionado à comprovação de aptidão para desempenho
de atividade objeto da licitação diz respeito, no caso de obras ou serviços, à comprovação
de o licitante possuir, em seu “quadro permanente, profissional detentor de atestado de
responsabilidade técnica por execução da obra ou serviço de características semelhantes,
vedadas as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos” (grifos nossos).
A jurisprudência do TCU não admitia a contratação de profissional autônomo
com vista a qualificar tecnicamente a empresa a participar da licitação.165 As empresas
deveriam possuir, em seus quadros permanentes, o profissional detentor de atestados e
este deve ser seu empregado, diretor ou sócio-gerente. o rigor utilizado pelo tCu para
definir quadro permanente tem sofrido mitigação nos últimos anos. Em julgados mais
recentes se percebe que a exigência deve estar relacionada à capacidade da empresa de
executar o contrato.166 no caso de consultorias, por exemplo, a prática do mercado indica
163
164
165
166
vale notar que o tribunal de Contas da união admitiu a “transferência de capacidade técnica operacional entre
pessoas jurídicas objeto de reestruturação empresarial”, considerando que a prática “já está devidamente consagrada na doutrina e na jurisprudência brasileiras”. no caso em questão, o tCu considerou válida a transação
porque, além da transferência do patrimônio tangível de uma empresa para a outra, houve também “a transmissão de parcela significativa do conjunto subjetivo de variáveis que concorreram para a formação da cultura
organizacional prevalecente” na empresa original (Acórdão tCu nº 2.444/2012, Plenário).
stJ: “Administrativo – Licitação pública – serviços de leitura de hidrômetros e entrega de contas – edital – exigência de comprovação de experiência anterior – Capacitação técnica – Artigo 30, §1º, i, e §5º da Lei n. 8.666/93
– recurso especial não conhecido. É certo que não pode a Administração, em nenhuma hipótese, fazer exigências
que frustrem o caráter competitivo do certame, mas sim garantir ampla participação na disputa licitatória, possibilitando o maior número possível de concorrentes, desde que tenham qualificação técnica e econômica para
garantir o cumprimento das obrigações. dessarte, inexiste violação ao princípio da igualdade entre as partes se os
requisitos do edital, quanto à capacidade técnica, são compatíveis com o objeto da concorrência. In casu, a exigência, prevista no edital, de apresentação de atestados que comprovem a experiência anterior dos participantes na
prestação dos serviços objeto de licitação não é abusiva ou ilegal, pois é uma forma de demonstrar sua capacidade
técnico-operacional segundo os critérios discricionariamente estabelecidos pela Administração para a execução a
contento dos serviços” (REsp nº 361.736-SP, 2ª Turma. Rel. Min. Franciulli Netto. Julg. 5.9.2002. DJ, 31 mar. 2003).
nesse sentido, vide tCu. decisão nº 166/97, Plenário. DOU, 22 abr. 1997.
nesse sentido, vide tCu. Acórdão nº 2.297/2005, Plenário. DOU, 03 jan. 2006. segue excerto do referido acórdão:
“O artigo 30, §1º, inciso I, da Lei nº 8.666/93, utiliza a expressão ‘qualificação técnico-profissional’ para indicar
a existência, nos quadros permanentes de uma empresa, de profissionais em cujo acervo técnico conste a
responsabilidade pela execução de obras ou serviços similares àqueles aspirados pelo órgão ou entidade da
Administração.
Todavia, há que se atentar para o fato de que a Lei nº 8.666/93 não define o que seja ‘quadro permanente’. Assim,
essa expressão poderia ser compreendida como o conjunto de pessoas ligadas à empresa de modo permanente,
sem natureza eventual, por meio de vínculos de natureza trabalhista e/ou societária. esse conceito, entretanto,
reclama certa ampliação nas hipóteses em que a autonomia no exercício da profissão descaracteriza o vínculo
empregatício sem afastar a qualificação do sujeito como integrante do quadro permanente, como é o caso dos
profissionais da área de engenharia.
A exigência de que as empresas concorrentes possuam vínculo empregatício, por meio de carteira de trabalho
assinada, com o profissional técnico qualificado mostra-se, ao meu ver, excessiva e limitadora à participação de
eventuais interessados no certame, uma vez que o essencial, para a Administração, é que o profissional esteja
em condições de efetivamente desempenhar seus serviços no momento da execução de um possível contrato.
em outros termos, o sujeito não integrará o quadro permanente quando não estiver disponível para prestar seus
serviços de modo permanente durante a execução do objeto licitado.
(...) se o profissional assume os deveres de desempenhar suas atividades de modo a assegurar a execução
satisfatória do objeto licitado, o correto é entender que os requisitos de qualificação profissional foram atendidos.
Não se pode conceber que as empresas licitantes sejam obrigadas a manter profissionais de alta qualificação, sob
vínculo empregatício, apenas para participar da licitação, pois a interpretação ampliativa e rigorosa da exigência
de vínculo trabalhista se configuraria como uma modalidade de distorção (...).
Nesse sentido, entendo que seria suficiente, segundo alega a representante, a comprovação da existência de um
contrato de prestação de serviços, sem vínculo trabalhista e regido pela legislação civil comum.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
que são cada vez mais raras as situações em que mencionados profissionais integram o
quadro permanente das empresas, e mais raro ainda ser identificada situação em que
o vínculo mantido entre mencionados profissionais e as empresas se submete à CLT.
Poderá, igualmente, caso conste no edital, ser exigida a indicação das instalações
e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização
do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe
técnica que se responsabilizará pelos trabalhos.167
e) Quantidade mínima de atestados relacionados à qualificação técnica
Relativamente à qualificação técnica, outra questão controvertida diz respeito à
exigência de apresentação de quantidades mínimas de atestados.
o art. 30, §1º, inciso i, da Lei nº 8.666/93, veda a exigência de quantidades mínimas.
de fato, atestado que comprove a responsabilidade por obra de características compatíveis
já evidencia a capacidade técnica.
o texto do inciso ii do art. 30 menciona a comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos
com o objeto da licitação. o que está em exame é a aptidão do licitante para executar
objeto semelhante ao da licitação e não quantas vezes já executou objetos semelhantes.
em tese, a empresa que apresentar somente um atestado está tão apta quanto aquela
que apresentar dois atestados.
exigir número mínimo e certo de atestados equivale a exigir da empresa que
comprove o número de experiências anteriores. É de fundamental importância, portanto,
confrontar-se tal exigência com o disposto no §5º do art. 30, que veda a exigência de
comprovação de “atividade ou aptidão com limitações de tempo ou época ou ainda em
locais específicos, ou quaisquer outras não previstas nesta Lei, que inibam a participação na licitação”. esta proibição é reforçada pelo disposto no inciso i do §1º do art. 3º,
que veda aos agentes públicos admitir, prever, incluir, tolerar, nos atos de convocação,
cláusulas ou distinções que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão de naturalidade, da sede,
ou domicílio do licitante ou qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante
para específico objeto do contrato.
A palavra “atestados”, citada no §1º, encontra-se no plural porque o licitante tem
a liberdade de apresentar tantos atestados quanto julgar necessários para comprovar
sua aptidão. Cabe à comissão de licitação, durante o exame da documentação de habilitação, analisar o conteúdo dos atestados e pronunciar-se quanto à sua suficiência.168
Assim, a comissão poderá concluir que o somatório dos atestados apresentados por um
único licitante não é suficiente para habilitá-lo, pois não comprovam a sua aptidão para
167
168
ver determinação consignada na decisão tCu nº 460, Plenário (DOU, 13 jun. 2000), no sentido de não constar
nos editais exigência de que os profissionais listados pelas participantes, para comprovação da capacidade
técnico-operacional, tenham, no momento da habilitação, vínculo profissional de qualquer natureza jurídica
com a respectiva licitante, uma vez que, de acordo com o inciso i do §1º do art. 30 da Lei nº 8.666/93, tal exigência
somente é cabível para a comprovação da capacidade técnico-profissional, em relação aos profissionais de nível
superior, ou outro devidamente reconhecido pela entidade competente, detentores de responsabilidade técnica.
A rigor, licitante que comprove ter construído 100 casas de 100 metros quadrados não possui a mesma qualificação
técnica de outro licitante que demonstre a construção de um único prédio com 10.000 metros quadrados, ainda
que a área construída seja exatamente a mesma. Conforme o objeto de uma licitante, a primeira licitante pode
ser inabilitada e a segunda, habilitada.
397
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
398
o desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e
prazos com o objeto da licitação.169 da mesma forma, poderá habilitar a empresa que
apresente um único atestado, desde que entenda que ele atende às condições exigidas
no edital. observamos, no entanto, que tanto a habilitação quanto a inabilitação de
licitantes constitui ato que deve ser motivado pela comissão de licitação, e que esta
motivação deve dar-se à luz do que dispõe o edital, em face do princípio da vinculação
ao instrumento convocatório.
Seguindo esta linha de raciocínio, fica evidente o caráter restritivo de exigência
prevista em editais, que, ao fixar a quantidade de dois ou mais atestados para o objeto
ou para cada parcela licitada, exclui do processo interessados detentores de apenas um
atestado, ainda que possivelmente aptas à realização do objeto.
Adicionalmente, ainda que a lei tenha atribuído, conforme afirmamos anteriormente, certa margem de discricionariedade na definição dos requisitos de qualificação
que serão exigidos, em momento algum atribui qualquer liberdade para que determine
número mínimo de atestados comprobatórios.170 O que se verifica no texto do §1º do
art. 30 é referência a atestados que, em qualquer quantidade, sejam capazes de comprovar a aptidão do particular.171
f) Qualificação econômico-financeira
segundo marçal Justen Filho:
A qualificação econômico-financeira não é, no campo das licitações, um conceito absoluto.
É relativo ao vulto do investimento e despesas necessários à execução da prestação. não
se trata de dispor de capital social ou de patrimônio líquido mínimo. A qualificação
econômico-financeira somente poderá ser apurada em função das necessidades concretas,
de cada caso. Não é possível supor que “qualificação econômico-financeira” para executar
uma hidrelétrica seja idêntica àquela exigida para fornecer bens de pequeno valor.172
Conforme o vulto e a complexidade do objeto a ser licitado, a Administração irá
definir os requisitos de qualificação econômico-financeira, tendo sempre como parâmetro o art. 31 da Lei nº 8.666/93.
A lei delimitou o conjunto de elementos que garantam a qualificação econômicofinanceira.173
169
170
171
172
173
No entendimento do TCU, sempre que não houver motivo para justificar a exigência de atestado único, deve
ser aceito o somatório de atestados (informativo do tCu sobre Licitações e Contratos nº 107, citando Acórdão
nº 1.231/2012, Plenário).
no voto condutor do Acórdão tCu nº 1.049/04, Plenário (DOU, 05 ago. 2004), o ministro relator sustenta
que “a harmonização do inciso i do §1º do art. 30 da Lei nº 8.666/93 com as prescrições constitucionais acima
mencionadas conduz ao entendimento de que as exigências de quantidades de atestados para a comprovação
técnica têm por parâmetro as condições peculiares do objeto licitado, tal como definido em seu projeto básico,
desde que não se imponham limitações desnecessárias com a inequívoca finalidade de comprometer a amplitude
do rol de interessados em participar da licitação”.
Nessa mesma linha, pela ilegalidade da exigência de número mínimo de atestados relativos à qualificação técnica,
vide tCu: decisões nº 101/98, Plenário. Ata n. 9/98. DOU, 30 mar. 1998; e nº 134/98, Plenário. Ata n. 10/98, DOU,
07 abr. 1998. em sentido inverso, ver tCu. Acórdão nº 492/06, Plenário. DOU, 07 abr. 2006.
Justen FiLHo. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 200.
É de se observar que o objetivo da imposição dos requisitos de qualificação econômico-financeira, assim como
das demais qualificações, é o de examinar se o licitante estará apto a executar o objeto do futuro contrato. Caso
não esteja presente na documentação apresentada algum documento exigido pelo edital, mas a comissão de
licitação possa inferir, pelos outros documentos apresentados, que o licitante estará em condições de executar o
objeto do contrato, deve a comissão habilitar, motivadamente, o referido licitante. nesse sentido, stJ:
CAPítuLo 7
LiCitAção
Em primeiro lugar, deve-se observar que as exigências firmadas no art. 31 são, de
fato, o limite para que a Administração não estabeleça condições arbitrárias que poderiam comprometer a isonomia dos concorrentes. todavia, o referido artigo não faculta
a opção por qualquer um daqueles documentos ali elencados dispensando outros, pois,
se assim o fosse, deveria estar expressa tal permissão. Corroboram esse entendimento
as únicas hipóteses legalmente previstas de dispensa (§1º do art. 32 da Lei nº 8.666/93),
no todo ou em parte, dos documentos necessários à habilitação dos licitantes, a que
aludem os artigos 28 a 31, quais sejam: convite, concurso, fornecimento de bens para
pronta entrega e leilão. Assim sendo, em concorrências ou tomadas de preço, é totalmente incabível, à luz da própria legislação, o edital dispensar a documentação prevista
no art. 31, inciso i. A norma legal, a par de proteger o licitante de possíveis exigências
descabidas por parte do administrador, tem por objetivo assegurar que os participantes
do certame terão capacidade de cumprir as obrigações a serem contratadas.
A qualificação econômico-financeira prevista no inciso III daquele artigo é explicitada
no art. 31 da Lei de Licitações. A redação do caput fez uso da expressão “limitar-se-á”, o
que, à primeira vista, conduziria ao entendimento de que o dispositivo fixa apenas o limite
máximo de exigências para a qualificação econômico-financeira. Assim, se fosse possível
dispensar a exigência de algum documento, tanto relativo à qualificação técnica quanto
em relação à qualificação econômico-financeira, haveria de admitir a possibilidade de ser
dispensada a apresentação de toda a documentação relacionada nos artigos 30 e 31. essa,
evidentemente, não é a melhor interpretação, pois conduziria ao absurdo de inviabilizar
as etapas de qualificações técnica e econômico-financeira. Destarte, mister é admitir que o
art. 31 não visa somente a proteger o licitante contra exigências descabidas, mas, principalmente, resguardar o poder público dos riscos de contratar com empresas que não possuam
capacidade de honrar suas obrigações. Ademais, quando a lei quis possibilitar a dispensa da
documentação necessária à habilitação, tanto em relação à qualificação técnica do interessado, quanto em relação à habilitação jurídica ou à regularidade fiscal, o fez expressamente
em seu art. 32, §1º, e apenas nas hipóteses de convite, concurso, fornecimento de bens para
pronta entrega e leilão, sem deixar margem à discricionariedade do administrador.174
em consequência, as exigências de capital mínimo175 ou patrimônio líquido e
garantias devem ser sempre proporcionais ao valor estimado do objeto de contratação,
conforme dispõem o inciso iii e o §3º do art. 31 da Lei nº 8.666/93.176
174
175
176
“Administrativo. Licitação. Habilitação. 1. A condição financeira das empresas licitantes deve ser determinada
pela Comissão, para fins de habilitação, com base no exame que realiza ou forma integrada dos documentos
apresentados. 2. A ausência de um documento não essencial para a firmação do juízo sobre a habilitação da
empresa não deve ser motivo para afastá-la do certame licitatório. 3. inexistência de direito líquido e certo de
empresa licitante de, por via de mandado de segurança, afastar concorrente considerada habilitada, sem demonstração de violação grave às regras do edital. 4. segurança denegada” (ms nº 5.624-dF, 1ª seção. rel. min. José
delgado. Julg. 9.9.1998. DJ, 26 out. 1998).
em sentido contrário, vale transcrever o entendimento adotado por maria sylvia Zanella di Pietro: “Como a Administração não é obrigada a exigir todos os documentos mencionados no artigo 31, que contém uma limitação às exigências, e não uma exigência mínima a ser necessariamente observada” (Temas polêmicos sobre licitações e contratos).
Em relação à imposição de exigências de qualificação econômico-financeira, que, de acordo com a própria Constituição Federal, devem elas ser apenas as “indispensáveis a garantia do cumprimento das obrigações” do contratado. nesses termos cumpre observar que a exigência de comprovação de capital social mínimo, em nossa
opinião, deve ser evitada, ainda que não se possa falar em inconstitucionalidade. Conforme os conceitos contábeis
usualmente utilizados, o valor do capital social, por mais elevado que o seja, é insuficiente para revelar a situação
econômica de qualquer empresa. A comprovação da idoneidade financeiro-econômica de qualquer licitante somente pode obter-se através de dados atinentes ao patrimônio líquido, que irá, esse sim, atestar a disponibilidade
de recursos necessários ao cumprimento do objeto da licitação, através do exame do passivo e do ativo.
O TCU sumulou entendimento no sentido de que, “para fins de qualificação econômico-financeira, a Administração pode exigir das licitantes, de forma não cumulativa, capital social mínimo, patrimônio líquido mínimo ou
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nesse tocante, cumpre observar que esse dispositivo (art. 31, §3º) admite que “o
capital mínimo ou o valor do patrimônio líquido a que se refere o parágrafo anterior não
poderá exceder a 10% (dez por cento) do valor estimado da contratação” (grifos nossos).
Antes de instaurar o procedimento licitatório, deve a Administração Pública efetuar criterioso estudo sobre todos os requisitos que serão definidos no edital, inclusive
quanto aos índices financeiros a que se refere o §1º do citado artigo 31.
A definição desses índices deve ser orientada pela análise técnica do ambiente
econômico e do desempenho financeiro do segmento empresarial representado pelo
universo de interessados, tendo em vista a capacidade econômica suficiente ao cumprimento das obrigações contratuais.
Compete exclusivamente à Administração a escolha de índices financeiros considerados seguros para a garantia de realização da obra, sem que isso possa, é evidente,
afetar o caráter competitivo do processo licitatório.177
g) Regularidade fiscal e trabalhista
A Lei nº 8.666/93, em seu art. 29, dispõe acerca da regularidade fiscal e trabalhista
nos seguintes termos:
Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em:
i - prova de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Geral de Contribuintes (CGC);
ii - prova de inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver,
relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível
com o objeto contratual;
iii - prova de regularidade para com a Fazenda Federal,178 estadual e municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;179
iv - prova de regularidade relativa à seguridade social e ao Fundo de Garantia por tempo
de serviço (FGts),180 demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais
instituídos por lei;
v - prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do trabalho, mediante
a apresentação de certidão negativa, nos termos do título vii-A da Consolidação das Leis
do trabalho, aprovada pelo decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943.
garantias que assegurem o adimplemento do contrato a ser celebrado, no caso de compras para entrega futura e
execução de obras e serviços” (enunciado nº 275/2012 da súmula da Jurisprudência do tCu).
177
o tCu, mediante a decisão nº 1.526/02, Plenário (DOU, 19 nov. 2002), determina que se observe a exigência
contida no art. 31, §5º, da Lei nº 8.666/93, quanto à obrigatoriedade de justificar, no processo licitatório, os
índices contábeis e seus valores previstos no edital de licitação para a qualificação econômico-financeira das
proponentes.
178
Conforme entendimento firmado pelo TCU, por meio da Decisão nº 246/97, Plenário (Ata n. 16/97. DOU, 21 maio
1997), a prova da regularidade perante a Fazenda nacional deverá ser efetuada mediante a apresentação, além
dos documentos indicados no art. 29, de Certidão de Quitação de tributos e Contribuições Federais e Certidão
de Quitação da dívida Ativa da união.
179
no sentido de que certidão positiva de dívida garantida por depósito judicial, emitida na forma do art. 206,
CTN, tem o mesmo efeito da certidão negativa de débitos comprobatória da regularidade tributária, para fins
de habilitação em processo licitatório, vide stJ. ms nº 6.253-dF, 1ª seção. rel. min. Francisco Peçanha martins.
Julg. 9.2.2000. DJ, 08 maio 2000.
180
A Lei nº 9.012/95, em seu art. 2º, determinou que “as pessoas jurídicas em débito com o FGts não poderão
celebrar contratos de prestação de serviços ou realizar transação comercial de compra e venda com qualquer
órgão da Administração direta, indireta e fundacional, bem como participar de concorrência pública”.
CAPítuLo 7
LiCitAção
sobre esse tema, a própria Constituição Federal, em seu art. 195, §3º, exige das
pessoas jurídicas prova de adimplência com o sistema da seguridade social, para efeito
de poder contratar com o poder público ou dele receber benefícios ou incentivos fiscais
ou creditícios. dispõe o texto constitucional nos seguintes termos:
Art. 195 (...)
§3º A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em
lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos
fiscais ou Creditícios.
A bem da verdade, o referido dispositivo constitucional não menciona, de forma
expressa, que o inadimplente com o sistema de seguridade social não poderá habilitar-se
nas licitações públicas, mas sim que este estaria proibido de contratar com o poder público.
É evidente, contudo, que o citado dispositivo constitucional apenas quis assegurar que
o vencedor do certame, ao firmar contrato com a Administração Pública, estivesse quite
com o sistema de seguridade social. A Constituição pretendeu que todos os participantes
de licitação pública comprovassem a regularidade fiscal exigida em lei.
De outro modo, permitir ao inadimplente participar de licitação significa dispensar tratamento igual aos desiguais, haja vista os devedores da previdência social
terem condições de cotar preços mais baixos que aqueles que cumprem regularmente
suas obrigações. Portanto, desde a habilitação, faz-se necessária a exigência da prova
de regularidade dos encargos relativos à seguridade social nas licitações, inclusive na
modalidade convite.
Dispondo igualmente sobre a prova da regularidade fiscal, a Lei nº 8.212/91
determina:
Art. 47. É exigido documento comprobatório de inexistência de débito relativo às
contribuições sociais, fornecido pelos órgãos competentes, nos seguintes casos:
i - da empresa:
a) na contratação com o Poder Público e no recebimento de benefícios ou incentivo fiscal
ou creditício concedido por ele.
em face do disposto na Constituição Federal, art. 195, §3º, pessoa jurídica em
débito com o sistema da seguridade social fica necessariamente proibida de contratar
com o poder público, não podendo também dele receber benefícios ou incentivos fiscais
ou creditícios.
É de se concluir que, a despeito do disposto no §1º do art. 32 da Lei nº 8.666/93,
a prova de regularidade relativa à seguridade social, especificamente, deve ser obrigatoriamente exigida em qualquer licitação pública cujo objeto seja obra, serviço ou
fornecimento de bens, isso independentemente da modalidade licitatória ou da forma
do fornecimento adotado. vale dizer: mesmo no caso de convite ou de fornecimento
para pronta entrega, dita exigência é inafastável por força do precitado comando constitucional, sendo igualmente aplicável essa regra no caso de contratação de obra, serviço
ou fornecimento com dispensa ou inexigibilidade de licitação.
Cabe notar que a situação de adimplência com o sistema da seguridade social
é condição que deve ser cumprida não somente quando da habilitação na licitação e
celebração do contrato, como também durante toda a constância da relação contratual
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LuCAs roCHA FurtAdo
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402
com a Administração Pública, eis que, conforme dispõe o mencionado §3º do art. 195
da Constituição Federal, o inadimplente com o dito sistema não pode contratar com o
poder público. O que significa dizer que, em tal situação, ele não pode nem assinar, nem
manter contrato com órgão ou entidade da Administração Pública, conforme dispõe o
art. 55, Xiii, da Lei nº 8.666/93, que determina o dever de o edital conter cláusula que
imponha “obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em
compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação
e qualificação exigidas na licitação”.
nesse sentido, os órgãos e entidades públicas devem fazer incluir nos instrumentos contratuais, cujo objeto deva ser executado continuada ou parceladamente,
cláusula exigindo do contratado a obrigação de comprovar, a cada fatura emitida contra
a Administração contratante, que se encontra em dia com suas obrigações para com o
sistema da seguridade social, prevendo também, como sanção para o inadimplemento
com relação a tal cláusula contratual, a própria rescisão do contrato, isso tudo em
atendimento ao disposto no §3º do art. 195 da Lei maior e também nos arts. 55, Xiii, e
78, i, da Lei nº 8.666/93.181
em face de todo o exposto, a conclusão correta, acerca da documentação a ser
exigida no que diz respeito à regularidade fiscal, em especial no que concerne à prova
da regularidade de débitos para com o inss, é no sentido de que:
a) por força do disposto no §3º do art. 195 da Constituição Federal — que torna
sem efeito, em parte, o permissivo do §1º do art. 32 da Lei nº 8.666/93 —, a
documentação prevista no inciso iv do art. 29 da Lei nº 8.666/93 é de exigência
obrigatória nas licitações, ainda que na modalidade convite, para contratação
de obras, serviços ou fornecimento, ainda que se trate de fornecimento para
pronta entrega;
b) a obrigatoriedade de apresentação da documentação acima referida é aplicável
igualmente aos casos de contratação de obra, serviço ou fornecimento com
dispensa ou inexigibilidade de licitação;
c) nas tomadas de preços, do mesmo modo que nas concorrências para contratação de obra, serviço ou fornecimento de bens, deve ser exigida obrigatoriamente
181
Conforme o seguinte julgado do stJ, não pode ser aplicada como sanção à contratada a retenção dos seus créditos: “Administrativo. Contrato. eCt. Prestação de serviços de transporte. descumprimento da obrigação de
manter a regularidade fiscal. Retenção do pagamento das faturas. Impossibilidade. 1. A exigência de regularidade fiscal para a participação no procedimento licitatório funda-se na Constituição Federal, que dispõe no §3º
do art. 195 que ‘a pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não
poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios’, e deve
ser mantida durante toda a execução do contrato, consoante o art. 55 da Lei 8.666/93. 2. o ato administrativo, no
estado democrático de direito, está subordinado ao princípio da legalidade (CF/88, arts. 5º, ii, 37, caput, 84, iv),
o que equivale assentar que a Administração poderá atuar tão-somente de acordo com o que a lei determina. 3.
deveras, não constando do rol do art. 87 da Lei 8.666/93 a retenção do pagamento pelos serviços prestados, não
poderia a eCt aplicar a referida sanção à empresa contratada, sob pena de violação ao princípio constitucional
da legalidade. destarte, o descumprimento de cláusula contratual pode até ensejar, eventualmente, a rescisão
do contrato (art. 78 da Lei de Licitações), mas não autoriza a recorrente a suspender o pagamento das faturas
e, ao mesmo tempo, exigir da empresa contratada a prestação dos serviços. 4. Consoante a melhor doutrina, a
supremacia constitucional ‘não significa que a Administração esteja autorizada a reter pagamentos ou opor-se
ao cumprimento de seus deveres contratuais sob alegação de que o particular encontra-se em dívida com a
Fazenda nacional ou outras instituições. A administração poderá comunicar ao órgão competente a existência
de crédito em favor do particular para serem adotadas as providências adequadas. A retenção de pagamentos,
pura e simplesmente, caracterizará ato abusivo, passível de ataque inclusive através de mandado de segurança’
(marçal Justen Filho. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, são Paulo, editora dialética, 2002,
p. 549). 5. recurso especial a que se nega provimento” (resp nº 633.432-mG, 1ª turma. rel. min. Luis Fux. Julg.
22.2.2005. DJ, 20 jun. 2005). no mesmo sentido, vide Acórdão tCu nº 964/2012, Plenário.
CAPítuLo 7
LiCitAção
também a comprovação de que trata o inciso iii do art. 29 da Lei nº 8.666/93 a
par daquela a que se refere o inciso iv do mesmo dispositivo legal; e
d) nos contratos de execução continuada ou parcelada, a cada pagamento efetivado pela Administração contratante, há que existir a prévia verificação
da regularidade da contratada com o sistema da seguridade social, pena de
violação do disposto no §3º do art. 195 da Lei maior.182
Além da regularidade fiscal, a partir de 8 de janeiro de 2012 os licitantes também
devem comprovar, para fins de habilitação, a regularidade trabalhista.
A Lei nº 12.440, de 7.7.2011, alterou a Consolidação das Leis do trabalho, instituindo a Certidão negativa de débitos trabalhistas (Cndt), documento que tem por
finalidade comprovar a inexistência de débitos inadimplidos perante a justiça do trabalho.
essa certidão, com validade de 180 dias, será concedida quando não constar, em
nome do interessado, inadimplemento de obrigações estabelecidas em sentença condenatória transitada em julgado proferida pela Justiça do trabalho ou em acordos judiciais
trabalhistas — incluindo, nesses casos, obrigações relativas aos recolhimentos previdenciários, honorários, custas, emolumentos ou outros recolhimentos determinados
em lei —, ou, ainda, decorrentes de execução de acordos firmados perante o Ministério
Público do trabalho ou Comissão de Conciliação Prévia. Havendo débitos garantidos
por penhora suficiente ou com exigibilidade suspensa, será expedida certidão positiva
de débitos trabalhistas com os mesmos efeitos da certidão negativa.
A citada lei também alterou o inciso iv do art. 27 da Lei nº 8.666/93, inserindo a
regularidade trabalhista no rol das condições a serem atendidas para habilitação dos
licitantes. essa condição deverá ser comprovada mediante apresentação da Cndt, cuja
exigência passou a constar no inciso v do art. 29 da Lei de Licitações.
A inovação parece pertinente, pois a existência de passivo trabalhista vencido e
não adimplido representa razoável indício de que a empresa não será capaz de executar
satisfatoriamente o objeto do contrato, risco esse mitigado com a exigência da certidão.
Além disso, a medida busca favorecer a satisfação dos créditos trabalhistas, ao
compelir as empresas interessadas em contratar com o Poder Público a quitarem as
dívidas que poderão impedir a obtenção do documento.
não obstante, a Confederação nacional da indústria ajuizou ação direta de
inconstitucionalidade em face da Lei nº 12.440/2011 (Adi nº 4.716), ainda não julgada,
alegando, dentre outros argumentos, violação aos princípios constitucionais da isonomia,
do contraditório e ampla defesa, da concorrência e da livre iniciativa.
vale mencionar que, anteriormente à promulgação da referida lei, o tCu entendia
que certidões relacionadas a débitos salariais ou infrações trabalhistas não poderiam
ser exigidas como condição para habilitação, pois não constavam entre os documentos
mencionados na Lei nº 8.666/93, cujo rol é considerado taxativo.183
182
183
Acerca dos procedimentos para arrecadação e fiscalização das contribuições incidentes sobre a remuneração
decorrente da prestação de serviços através de empreitada de mão de obra, ou mediante cessão de mão de obra,
inclusive em regime de trabalho temporário e de cooperativa, convém que a Administração contratante observe
as regras constantes na ordem de serviço nº 203, de 29.1.1999 (DOU, 02 fev. 1999), editada pela diretoria de
Arrecadação e Fiscalização do instituto nacional do seguro social (inss).
decisão nº 792/2002, Plenário (DOU, 19 jul. 2002), determinou ao órgão fiscalizado que se abstivesse de “exigir,
como condição para habilitação em licitações, certificação de regularidade ou quitação em relação a débitos trabalhistas (certidão negativa de débito salarial ou documento similar), tendo em vista que esse tipo de exigência
não está amparado pelo estatuto de Licitações e Contratos”. no mesmo sentido, o Acórdão nº 697/2006, Plenário.
DOU, 15 maio 2006.
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LuCAs roCHA FurtAdo
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diante da mudança do parâmetro legal, que passou a prever expressamente a
exigência da CNDT para fins de habilitação em procedimentos licitatórios, cumpre
distinguir esse documento, expedido pela Justiça do trabalho, da certidão negativa de
débito salarial, expedida por órgãos do ministério do trabalho e emprego. enquanto
a primeira constitui requisito de habilitação constante do art. 29 da Lei de Licitações,
por força da alteração promovida pela Lei nº 12.440/2011, a segunda presta-se a outros
fins, previstos no Decreto-Lei nº 368/1968. Assim, jurisprudência mais recente do TCU
continua considerando irregular a exigência da certidão negativa de débito salarial para
habilitação em procedimentos licitatórios.184
h) Regularidade fiscal e microempresas
A aferição da regularidade fiscal deve ser promovida de forma diferenciada em
relação às microempresas, em razão do que dispõe a Lei Complementar nº 123, de 2006. o
art. 42 da mencionada lei complementar estabelece, em primeiro lugar, que “nas licitações públicas, a comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas
de pequeno porte somente será exigida para efeito de assinatura do contrato”. A
microempresa que participe da licitação deve encaminhar toda a documentação exigida
no edital com vista à sua habilitação, inclusive aquela pertinente à regularidade fiscal.
esta solução é apontada pelo art. 43 da referida lei complementar, que dispõe no sentido
de que “as microempresas e empresas de pequeno porte, por ocasião da participação
em certames licitatórios, deverão apresentar toda a documentação exigida para efeito
de comprovação de regularidade fiscal, mesmo que esta apresente alguma restrição”.
Caso haja alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, o §1º do art. 43 da
Lei Complementar nº 123/06 assegura “o prazo de 2 (dois) dias úteis, cujo termo inicial
corresponderá ao momento em que o proponente for declarado o vencedor do certame,
prorrogáveis por igual período, a critério da Administração Pública, para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito, e emissão de eventuais
certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa”.
nesses termos, ainda que a microempresa esteja em débito para com a Fazenda
Pública por ocasião da licitação, caso vença o certame, a ela deverá ser adjudicado o
objeto da licitação e será convocada regularmente para assinar o contrato. Como condição
para a formalização do contrato, todavia, a microempresa deverá ser capaz demonstrar
que preenche os requisitos exigidos dos demais licitantes por ocasião da licitação. Caso
não o faça, ou seja, se a microempresa não for capaz de comprovar sua regularidade
fiscal, a própria Lei Complementar nº 123/06, em seu art. 43, §2º, determina expressamente a necessidade de ser observada a regra contida no art. 81 da Lei nº 8.666/93 que
trata “da recusa injustificada do adjudicatário em assinar o contrato, aceitar ou retirar
o instrumento equivalente, dentro do prazo estabelecido pela Administração, e caracteriza essa recusa como descumprimento total da obrigação assumida, sujeitando-o (o
adjudicatário) às penalidades legalmente estabelecidas”. Caso a microempresa tenha
sido vencedora em pregão, de igual modo deve-se aplicar o disposto no art. 7º da Lei
nº 10.520/02 que cuida da hipótese de o vencedor do pregão não comparecer para assinar
o contrato quando convocado regularmente. dispõe mencionado dispositivo, in verbis:
184
Acórdão nº 737/2012, Plenário. DOU, 03 abr. 2012.
CAPítuLo 7
LiCitAção
Art. 7º Quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não celebrar o
contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame,
ensejar o retardamento da execução de seu objeto, não mantiver a proposta, falhar ou
fraudar na execução do contrato, comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal,
ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios
e, será descredenciado no sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que
se refere o inciso Xiv do art. 4º desta Lei, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo
das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais.
esta solução — que equipara a microempresa que não é capaz de comprovar
sua regularidade fiscal quando convocada para assinar o contrato àquele que simplesmente não comparece para cumprir a obrigação assumida em sua proposta — é a mais
adequada por diversas razões. em primeiro lugar, o microempresário deve ter a consciência de que deve ser capaz de regularizar, por sua própria conta e risco, a situação
fiscal da sua empresa caso ela se sagre vencedora da licitação. Do contrário, ele estará
simplesmente causando enormes embaraços ao poder público e ao mercado. Ademais,
se se admite que a microempresa que não regularize sua situação e que, portanto, não
assine o contrato não deva sofrer qualquer punição, estar-se-á abrindo a porta para uma
série de acertos ilícitos entre os empresários e tornando a proposta apresentada pela
microempresa em débito para com a Fazenda Pública documento inútil, sem qualquer
utilidade, sem o poder de obrigar o proponente a honrar as obrigações apresentadas.
i) Recurso contra habilitação ou inabilitação
É cabível recurso, com efeito suspensivo, contra ato de habilitação, assim como
contra o ato de inabilitação. os recursos interpostos, dirigidos à comissão de licitação,
deverão ser julgados pela autoridade superior, responsável pela própria designação da
comissão. A lei (art. 109, §4º) admite que a Comissão possa reconsiderar a sua decisão.
Lembramos, por oportuno, que todas as decisões da comissão, inclusive as relativas à habilitação ou inabilitação de licitantes, deverão ser devidamente fundamentadas,
formalizadas e juntadas aos autos de que trata o art. 38.185
j) Fixação de prazo para a apresentação de nova documentação ou de novas propostas
nos termos do art. 48, §3º, da Lei nº 8.666/93, se todos os licitantes tiverem sido
inabilitados ou, se na fase seguinte, relativa ao julgamento, todas as propostas forem
desclassificadas, “a Administração poderá fixar aos licitantes prazo de oito dias para
a apresentação de nova documentação ou de outras propostas escoimadas das causas
referidas neste artigo, facultada, no convite, a redução deste prazo para três dias”.
185
sobre o início da contagem do prazo recursal, ver stJ: “mandado de segurança. Administrativo. exploração
do serviço de radiodifusão sonora. Concorrência Pública. Habilitação desconstituída. recurso Administrativo
Hierárquico. Prazo. Afirmação de Intempestividade. Conhecimento Negado. Lei 8.666/93 (arts. 109, I, 110 e §5º).
Lei 9.648/98. edital 021/sFo/mC. 1. nenhum prazo de recurso administrativo inicia-se ou corre sem que os
autos do processo estejam com vista franqueada ao interessado (art. 109, §5º, Lei 8.666/93). se a Administração,
por deliberação interna corporis obstaculiza o conhecimento direto do processo, dificultada a ampla defesa,
consubstanciado motivo extraordinário, assegura-se a contagem do prazo a partir da franquia. sem prejuízo da
regra geral excluindo o dia do início e incluindo-se o do vencimento (art. 110, Lei ref.). 2. descogitada a prescrição
ou a decadência na via judicial eleita (art. 18, Lei 1533/51) e afastada a preclusão na via administrativa, afirmada
a tempestividade, edifica-se o direito líquido e certo do administrado recorrer hierarquicamente à autoridade
competente, assegurado o processamento e decisão. 3. segurança concedida” (ms nº 6.048-dF, 1ª seção. rel.
min. milto Luiz Pereira. Julg. 10.4.2000. DJ, 05 jun. 2000).
405
LuCAs roCHA FurtAdo
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406
k) Consórcio de empresas e qualificação
os consórcios, no âmbito do direito Privado, encontram-se disciplinados pela
Lei nº 6.404/76, artigos 278 e 279.
os consórcios caracterizam-se por serem associações transitórias, sem personalidade jurídica, e por visarem à união de esforços para a consecução de fim determinado.
A Lei das s.A. dispõe ainda que a criação do consórcio não enseja responsabilidade
solidária das empresas consorciadas (regra não aplicável aos consórcios que contratam
com a Administração Pública, que nos termos da Lei nº 8.666/93, art. 33,v, ensejam
responsabilidade solidária para os consorciados).
A Lei nº 8.666/93 admite a participação de empresas consorciadas em contratos
administrativos186 como forma de suprir requisitos de qualificação — sobretudo em
relação à qualificação técnica — que faltariam a uma, algumas ou eventualmente a
todas as empresas. A possibilidade de formação de consórcios permite que as empresas somem suas experiências e possam atender às exigências editalícias ampliando a
competitividade de licitações para as contratações de grande vulto.
Cabe ao edital admitir a participação de empresas consorciadas e as regras dessa
participação.
À luz do art. 33 da Lei nº 8.666/93, poderá ser permitida a participação de empresas em consórcio em licitações, hipótese em que observar-se-ão as seguintes normas:
i - comprovação do compromisso público ou particular de constituição de consórcio,
subscrito pelos consorciados;187
ii - indicação da empresa responsável pelo consórcio que deverá atender às condições de
liderança, obrigatoriamente fixadas no edital;
iii - apresentação dos documentos exigidos nos arts. 28 a 31 desta Lei por parte de
cada consorciado, admitindo-se, para efeito de qualificação técnica, o somatório dos
quantitativos de cada consorciado, e, para efeito de qualificação econômico-financeira, o
somatório dos valores de cada consorciado, na proporção de sua respectiva participação,
podendo a Administração estabelecer, para o consórcio, um acréscimo de até 30% (trinta
por cento) dos valores exigidos para licitante individual, inexigível este acréscimo para os
consórcios compostos, em sua totalidade, por micro e pequenas empresas assim definidas
em lei;
iv - impedimento de participação de empresa consorciada, na mesma licitação, através
de mais de um consórcio ou isoladamente;
v - responsabilidade solidária dos integrantes pelos atos praticados em consórcio, tanto
na fase de licitação quanto na de execução do contrato.
Relativamente às exigências de qualificação (art. 33, III), cada empresa deverá
comprovar o preenchimento das exigências de habilitação jurídica e de regularidade
fiscal. Apenas os requisitos de capacidade técnica e econômica admitem conjugação,
186
187
Acerca da utilização do consórcio como instrumento incentivador do caráter competitivo da licitação, vide stJ:
“A exigência globalizada em uma única concorrência destinada a compra de uma variedade heterogênea de
bens destinados a equipar entidade hospitalar não veda a competitividade entre as empresas concorrentes desde
que o edital permita a formação de consórcio que, ultima ratio, resulta no parcelamento das contratações de
modo a ampliar o acesso de pequenas empresas no certame, na inteligência harmônica das disposições contidas
nos artigos 23, parágrafo 1 e 15, iv, com a redação do art. 33, todos da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993” (rms
nº 6.597-ms, 2ª turma. rel. min. Antônio de Pádua ribeiro. Julg. 16.12.1996. DJ, 14 abr. 1997).
nesses termos, por ocasião da apresentação das propostas, o consórcio não necessita de já estar constituído, devendo
ser exigido apenas o compromisso de sua constituição, subscrito por todas as empresas que dele participarão.
CAPítuLo 7
LiCitAção
devendo, em relação a esta última, ser observada “a proporção de sua respectiva
participação, podendo a Administração estabelecer, para o consórcio, um acréscimo
de até 30% (trinta por cento) dos valores exigidos para licitante individual, inexigível
este acréscimo para os consórcios compostos, em sua totalidade, por micro e pequenas
empresas assim definidas em lei”.
o acréscimo a que se refere o mencionado inciso iii diz respeito apenas ao capital social e ao patrimônio líquido. A exigência de índices individuais, relacionados à
qualificação econômico-financeira, pelas empresas participantes em consórcio, que é
hipótese lícita, não está submetida a qualquer tipo de somatório, que somente é aplicável aos “valores” de capital social ou patrimônio líquido. desse modo, se alguma
das empresas que participam da licitação em consórcio não atende a essa exigência do
edital, relacionada ao preenchimento dos índices econômicos, ainda que outras atendam, o consórcio deverá ser inabilitado. É de se observar que a formação de consórcios
para participar de licitações não tem o objetivo de propiciar que empresas em situação
financeira deficitária tenham acesso à competição através do “empréstimo” da saúde
financeira das outras consorciadas. É compreensível, destarte, que a Administração exija
de cada consorciado nível mínimo de capacidade econômico-financeira, tendo sempre
em conta o objeto a ser contratado.
o consórcio deverá indicar a empresa líder, que deverá ser empresa nacional.
Isso significa dizer que será ela a representante das demais (do consórcio) perante a
Administração. A única hipótese em que não se exige que a liderança seja exercida por
empresa nacional verifica-se no art. 32, §6º, que versa, dentre outras hipóteses, sobre
licitações internacionais para a aquisição de bens e serviços cujo pagamento seja feito
com recursos provenientes de financiamentos concedidos por organismo financeiro
internacional de que o Brasil faça parte ou por agência estrangeira de cooperação.
Como o consórcio é criado para fim específico, à documentação apresentada na
licitação deve ser juntado o compromisso assinado pelas empresas para a sua formação.
Esse compromisso deve especificar todas as condições de sua formação e será condição
de sua habilitação (art. 33, i). A constituição do consórcio será exigida, portanto, apenas
por ocasião da assinatura do contrato. não sendo apresentado o ato constitutivo do
consórcio — que deverá estar registrado em junta comercial (Lei nº 8.934/94, art. 32,
I) — por ocasião da convocação para assinatura do contrato, ficarão todas as empresas
que apresentaram o compromisso de constituí-lo sujeitas às sanções administrativas,
nos termos do art. 64 da Lei nº 8.666/93.
Deve-se frisar, finalmente, a impossibilidade de uma mesma empresa consorciada participar, na mesma licitação, em mais de um consórcio ou isoladamente (Lei
nº 8.666/93, art. 33, iv).
7.7.8.9.3 Julgamento (classificação das propostas)
a) Fundamento para a desclassificação
encerrada a fase de habilitação, inicia-se a fase de julgamento. tratando-se de
licitação do tipo menor preço, abrem-se os envelopes de preço. tratando-se de licitação do tipo melhor técnica ou técnica e preço, em que, além do envelope contendo a
documentação relativa à habilitação, devem constar dois outros envelopes — um contendo a proposta técnica e outro contendo a proposta de preço —, abre-se em primeiro
407
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
408
lugar a proposta de técnica. Julgada esta, abrem-se, em seguida, os envelopes com as
propostas de preço.
deve ser dada pela comissão de licitação especial atenção ao disposto no art. 48,
que indica em que casos deverá a proposta ser desclassificada. Dispõe esse artigo nos
seguintes termos:
Art. 48. Serão desclassificadas:
i - as propostas que não atendam às exigências do ato convocatório da licitação;
ii - propostas com valor global superior ao limite estabelecido ou com preços manifestamente inexeqüíveis, assim considerados aqueles que não venham a ter demonstrada
sua viabilidade através de documentação que comprove que os custos dos insumos são
coerentes com os de mercado e que os coeficientes de produtividade são compatíveis com
a execução do objeto do contrato, condições estas necessariamente especificadas no ato
convocatório da licitação.
§1º Para os efeitos do disposto no inciso ii deste artigo, consideram-se manifestamente
inexeqüíveis, no caso de licitações de menor preço para obras e serviços de engenharia,
as propostas cujos valores sejam inferiores a 70% (setenta por cento) do menor dos seguintes valores:
a) média aritmética dos valores das propostas superiores a 50% (cinqüenta por cento) do
valor orçado pela Administração, ou
b) valor orçado pela Administração.
§2º Dos licitantes classificados na forma do parágrafo anterior cujo valor global da proposta for inferior a 80% (oitenta por cento) do menor valor a que se referem as alíneas a
e b, será exigida, para a assinatura do contrato, prestação de garantia adicional, dentre
as modalidades previstas no §1º do art. 56, igual a diferença entre o valor resultante do
parágrafo anterior e o valor da correspondente proposta.
§3º Quando todos os licitantes forem inabilitados ou todas as propostas forem desclassificadas, a Administração poderá fixar aos licitantes o prazo de oito dias úteis para a
apresentação de nova documentação ou de outras propostas escoimadas das causas referidas neste artigo, facultada, no caso de convite, a redução deste prazo para três dias úteis.
A desconformidade ensejadora da desclassificação de uma proposta deve ser substancial e lesiva à Administração ou aos outros licitantes.188 É preferível admitir proposta
com vícios formais de apresentação, mas vantajosa no conteúdo, do que desclassificá-la
por rigorismo formal189 e incompatível com o caráter competitivo da licitação.190
188
189
190
stJ: “o ‘valor’ da proposta ‘grafado’ somente em ‘algarismos’ — sem a indicação por extenso — constitui mera
irregularidade de que não resultou prejuízo, insuficiente, por si só, para desclassificar o licitante. A ‘ratio legis’ que
obriga, aos participantes, a oferecerem propostas claras e tão só a de propiciar o entendimento a administração e
aos administrados. se o valor da proposta, na hipótese, foi perfeitamente compreendido, em sua inteireza, pela
comissão especial (e que se presume de alto nível intelectual e técnico), a ponto de, ao primeiro exame, classificar o
consorcio impetrante, a ausência de consignação da quantia por ‘extenso’ constitui mera imperfeição, balda que não
influenciou na “decisão” do órgão julgador (comissão especial) que teve a idéia a percepção precisa e indiscutível
do ‘quantum’ oferecido” (ms nº 5.418-dF, 1ª seção. rel. min. demócrito reinaldo. Julg. 25.3.1988. DJ, 1º jun. 1998).
Sobre o excesso de rigor na desclassificação de propostas, STF: “A Turma negou provimento a recurso ordinário
em mandado de segurança em que se pretendia a desclassificação de proposta vencedora em licitação para aquisição de urnas eletrônicas para as eleições municipais do ano 2000, em virtude do descumprimento de exigência
prevista no edital — falta de apresentação dos preços unitários de determinados componentes das urnas. A turma manteve a decisão do tribunal superior eleitoral que entendera que o descumprimento da citada exigência
constituíra mera irregularidade formal, não caracterizando vício insanável de modo a desclassificar a proposta
vencedora” (rms nº 23.714-dF, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 5.9.2000. DJ, 13 out. 2000).
o stJ, ao julgar o ms nº 6.105-dF (1ª seção. rel. min. Garcia vieira. Jul. 25.8.1999. DJ, 18 out. 1999), entendeu que
a falta de assinatura do licitante na proposta financeira não caracterizava mera falha formal, devendo a proposta
ser desclassificada.
CAPítuLo 7
LiCitAção
É certo que se o instrumento convocatório de uma licitação impõe determinado
requisito, deve-se reputar como relevante tal exigência. esse rigor não pode ser aplicado,
no entanto, de forma a prejudicar a própria Administração. A respeito desse assunto, o
tribunal de Contas da união manifestou-se nos seguintes termos: “(...) o rigor formal
não pode ser exagerado ou absoluto. Como adverte o já citado Hely Lopes meirelles, o
princípio do procedimento formal não significa que a Administração deva ser formalista
a ponto de fazer exigências inúteis ou desnecessárias à licitação, como também não quer
dizer que se deva anular o procedimento ou julgamento, ou inabilitar licitantes ou desclassificar propostas diante de simples omissões ou irregularidades na documentação
ou na proposta, desde que tais omissões sejam irrelevantes e não causem prejuízos à
Administração ou aos concorrentes”.191
Com vistas a propiciar parâmetros objetivos que deverão ser seguidos pela
comissão na avaliação que fizer quanto à viabilidade das propostas, cumpre observar
que o art. 40, X, prevê que o edital deverá indicar obrigatoriamente “o critério de aceitabilidade dos preços unitário e global, conforme o caso”.192
A comissão de licitação deve dispor, portanto, de estimativas de custos antes das
licitações, com o maior nível de detalhamento possível. Ainda que se trate de licitação
por preço global, no qual apenas este irá interferir na definição da classificação das
propostas, convém que todos os custos unitários do objeto licitado estejam previamente
definidos.193 esta medida permite à comissão de licitação pautar sua atuação, no que
concerne ao julgamento das propostas, com a objetividade que a lei exige.
neste ponto, vale destacar que a Lei nº 8.666/93 prevê que a comissão de licitação
poderá promover diligências, o que poderá ocorrer igualmente na fase de classificação
(art. 48, §3º). nessa fase, serão essas diligências destinadas a esclarecer ou a complementar
as informações acerca das propostas apresentadas, inclusive quanto à viabilidade e
compatibilidade dos preços ofertados.194 A realização de diligências pode ser de grande
valia nessa fase da licitação devendo, inclusive, ser utilizada a fim de esclarecer dúvidas
acerca de eventual superfaturamento ou inexequibilidade nos preços apresentados.
A fim de reduzir a subjetividade no que diz respeito à exequibilidade de propostas relacionadas a obras e serviços de engenharia, o art. 48, em seu §1º, dispõe nos
seguintes termos:
Art. 48. (...)
§1º Para os efeitos do disposto no inciso ii deste artigo, consideram-se manifestamente
inexeqüíveis, no caso de licitações de menor preço para obras e serviços de engenharia, as
propostas cujos valores sejam inferiores a 70% (setenta por cento) do menor dos seguintes
valores:
a) média aritmética dos valores das propostas superiores a 50% (cinqüenta por cento) do
valor orçado pela Administração, ou
b) valor orçado pela Administração.
191
192
193
194
Conforme tCu. decisão nº 570/92, Plenário. Ata n. 54/92. DOU, 29 dez. 1992.
na sessão de 16.6.2010, o tribunal de Contas da união aprovou a súmula nº 259, com o seguinte teor: “nas contratações de obras e serviços de engenharia, a definição do critério de aceitabilidade dos preços unitários e global,
com fixação de preços máximos para ambos, é obrigação e não faculdade do gestor”.
ver tCu. Acórdão nº 1.523/2006, Plenário. DOU, 30 ago. 2006.
nesse sentido, vide tCu. decisão nº 366/98, Plenário. DOU, 29 jun. 1998.
409
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
410
o tribunal de Contas da união, contudo, considera que tais critérios não são
absolutos, devendo a instituição pública contratante adotar providências a fim de aferir
a viabilidade dos valores ofertados antes da desclassificação da proponente.195
Com efeito, na sessão de 1º.12.2010, o tCu aprovou o enunciado nº 262 da
Súmula da Jurisprudência daquela Corte, com o seguinte teor: “O critério definido
no art. 48, inciso ii, §1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção
relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a
oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”.
b) Ordem de classificação e julgamento
Superada a fase de desclassificação das propostas ineptas, deverá a comissão proceder à sua classificação. Far-se-á esta de acordo com o tipo de licitação adotado. Assim,
em licitação do tipo menor preço, por exemplo, as propostas que atendam aos requisitos
do edital e que não apresentem preços inexequíveis ou exorbitantes serão classificadas
por ordem decrescente de seus preços. Assim, a 1ª colocada será a de menor preço, a
2ª colocada a que tenha apresentado o segundo menor preço, e assim sucessivamente.
essa regra é importante, haja vista o disposto no art. 50 da Lei nº 8.666/93 que
determina que “a Administração não poderá celebrar contrato com preterição da ordem
de classificação das propostas ou com terceiros estranhos ao procedimento licitatório,
sob pena de nulidade do contrato”.196
c) Margem de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais
o §5º do art. 3º da Lei nº 8.666/93, acrescido à redação original do dispositivo
pela Lei nº 12.439/2010, autoriza estabelecer, nas licitações, “margem de preferência
para produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas
brasileiras”. A Presidenta da república editou o decreto nº 7.546, de 2 de agosto de
2011, que regulamenta o disposto nos parágrafos 5º a 12 do art. 3º da Lei nº 8.666/93, e
institui a Comissão interministerial de Compras Públicas.
O Poder Executivo Federal deverá editar norma definindo o percentual a ser
aplicado segundo o produto, serviço, grupo de produtos ou grupo de serviços, limitado
a até vinte e cinco por cento acima do preço dos produtos manufaturados e serviços
estrangeiros.197 o índice será estabelecido com base em estudos que levem em consideração a geração de emprego e renda, o efeito na arrecadação de tributos federais,
estaduais e municipais, o desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país
e o custo adicional dos produtos e serviços.
A licitação poderá, então, se o edital assim estabelecer, ser processada de forma
que as propostas relativas a produtos e serviços estrangeiros, se estiverem melhor colocadas, cedam lugar na ordem de classificação às propostas atinentes a produtos e serviços
nacionais que tenham preço superior até o limite próprio segundo o objeto licitado.
195
196
197
ver o informativo de Jurisprudência do tCu sobre Licitações e Contratos nº 71, citando o Acórdão tCu
nº 1.857/2011, Plenário.
Com a promulgação da Lei nº 12.439/2010, a ordem de classificação das propostas poderá ser influenciada, no que
diz respeito aos preços ofertados, pela margem de preferência. trata-se de mecanismo que permite a contratação de
produtos e serviços nacionais por preços até vinte e cinco por cento superiores aos dos equivalentes estrangeiros
e será objeto de análise mais detalhada no próximo item.
o Governo Federal editou diversos decretos estabelecendo margens de preferência para aquisição de produtos
que vão desde confecções e calçados até a aquisição de retroescavadeiras e motoniveladoras, passando também
por fármacos e medicamentos, papel-moeda, veículos para vias férreas, caminhões, furgões e implementos:
decretos nºs 7.601/2011 e 7.709, 7.713, 7.756, 7.767, 7.810, 7.812 e 7.816/2012.
CAPítuLo 7
LiCitAção
A preferência, como fator que autoriza a discriminação justificada entre os licitantes,
já era instrumento conhecido nas normas que regem a licitação. o §2º do art. 3º da Lei
nº 8.666/93 já a admitia para efeito de desempate, apontando os critérios que determinam
a prevalência de certos bens e serviços sobre outros. Há, também em caso de empate,
a preferência estabelecida em favor das microempresas e das empresas de pequeno
porte segundo os critérios fixados pela Lei Complementar nº 123/2006, e a preferência,
no caso da contratação de bens e serviços de informática, segundo mecanismos que
favorecem aos bens produzidos com tecnologia desenvolvida no país ou que observem
processo produtivo descrito em decreto do Poder Executivo, conforme definido pela
Lei nº 8.248/91, com a redação dada pela Lei nº 11.077/2004.
A novidade que distingue a margem de preferência das demais situações legais que
autorizam a prevalência de determinados bens e serviços sobre outros é a possibilidade
de o privilégio ser concedido mesmo ante a prática pelo beneficiário de preços mais
elevados que os dos licitantes preteridos.
Assim, enquanto a preferência exercida para o desempate emprega solução que
mitiga, em termos da realização das finalidades da licitação, a garantia da observância do
princípio da isonomia, a preferência exercida mediante a margem que será fixada segundo
estudos do Poder Executivo Federal toma espaço também, do ponto de vista financeiro,
da seleção da proposta mais vantajosa para a administração. infere-se daí a utilidade da
explicitação legislativa, entre tais finalidades, da [seleção da proposta mais vantajosa
para a] promoção do desenvolvimento nacional, cuja existência implícita, embora não fosse
de impossível dedução, não seria certamente bastante para concorrer e, parcialmente,198
afastar as duas primeiras.
não obstante a Lei nº 8.666/93 estabelecer normas gerais, cabe a advertência de que
o dever de buscar a promoção do desenvolvimento nacional se manifesta de forma diferente
conforme quem seja o ente licitante. se seu cumprimento exigir ônus adicionais aos
custos estritamente necessários à satisfação da necessidade da administração — como
seria o caso de contratação determinada pela margem de preferência — a situação se
equipara à atividade de fomento, não sendo admissível, então, que outros órgãos ou
entes que não o Poder executivo Federal, realizem despesas destinadas à promoção do
desenvolvimento nacional, atividade para a qual não têm competência legal, orgânica ou
constitucional. o “desenvolvimento nacional”, não é, em regra, objetivo a ser buscado,
do ponto de vista econômico, com ônus para os demais Poderes da união ou mesmo
para os demais entes da Federação, de quem, aliás, não é de se esperar que os respectivos orçamentos contenham previsão compatível.199
resta claro, então, o entendimento de que a margem de preferência permite ou
implica custos nas contratações da administração pública superiores ao que ela poderia
198
199
rigorosamente falando, o dever de a Administração promover o desenvolvimento nacional não mitiga o princípio da seleção da proposta mais vantajosa, mas apenas lhe dá nova acepção. desde a alteração introduzida
pela Lei nº 12.439/2010 no art. 3º da Lei 8.666/93, a vantagem buscada pela Administração não é apenas o menor
preço oferecido por objeto que atenda suas necessidades imediatas — ligadas à utilidade inerente ao bem —,
mas o menor preço que atenda suas necessidades imediatas e mediatas — ligadas estas à promoção do desenvolvimento nacional. eventual elevação do preço não representa, portanto, transigência com a vantagem buscada pela contratante, mas o preço a ser pago pelo atendimento da nova necessidade da Administração. ver, a
propósito, o item 7.2 deste livro.
o Poder executivo Federal, por outro lado, deverá organizar-se orçamentariamente para permitir que as contratações administrativas sirvam também à atividade de fomento sem perder o controle ou a informação contábil/
gerencial de interesse das políticas públicas pertinentes.
411
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
412
obter recorrendo à melhor proposta oferecida no certame,200 desde que a medida seja
considerada útil ao desenvolvimento nacional.201
uma vez admitida a prática de preços desfavoráveis à administração, torna-se
inevitável a pergunta sobre se a aplicação da margem de preferência autorizaria também
a prática de preços superiores aos verificados no mercado. A questão não comporta
resposta que seja simplesmente positiva ou negativa.
Há que se ter em mente, em primeiro lugar, que a margem de preferência foi
concebida como instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional, de cuja
necessidade emerge a suposição da insuficiência de competitividade do produto ou
serviço brasileiro frente às condições normais de mercado.
sendo assim, é razoável admitir como cenário mais comum o quadro em que
os preços médios de mercado dos produtos e serviços para os quais foi fixada alguma
margem de preferência sejam preponderantemente determinados com relação aos
produtos ou serviços estrangeiros.
nesse contexto, a margem de preferência que permitirá ao produto ou serviço
nacional superar o concorrente estrangeiro no certame levará, de forma concomitante, a
preços superiores aos praticados no mercado. A concluir-se que essa ocorrência constitui
impedimento à contratação do serviço ou produto nacional, restaria quase completamente esvaziada a utilidade do novo instrumento implantado pela Lei nº 12.439/2010.
Esse raciocínio não nos conduz ao ponto de afirmar, por outro lado, que os
produtos e serviços brasileiros podem, desde que dentro da margem de preferência
fixada pelo Poder Executivo Federal, ser adquiridos com preços acima dos praticados
no mercado qualquer que seja a circunstância. A prática claramente ofenderia à moralidade administrativa se esses mesmos produtos e serviços pudessem ser adquiridos
no mercado privado a preços inferiores.
são, pois, as características do mercado que ditarão a possibilidade de aquisição
dos produtos e serviços nacionais a preços acima de mercado. se já são de ampla comercialização e têm competitividade frente aos similares estrangeiros, não há qualquer
razão para a administração pagar mais por eles. se, pelo contrário, o produto e serviço
nacional são explorados ainda de maneira incipiente ou ocupam apenas nichos do
mercado, então faz-se presente a condição que justifica o estímulo pelo Poder Público.
no que diz respeito aos tipos de licitação, cremos que a margem de preferência
seja aplicável não somente na de menor preço, como também na de técnica e preço e
na de melhor técnica. embora nessas duas últimas o preço não seja, por si só, o fator
decisivo do certame, não há razão a indicar que os objetos que envolvam avaliação
técnica não mereçam também incentivo para a produção nacional.
200
201
Há quem poderia supor que a onerosidade provocada pela margem de preferência induziria, de plano, a sua
rejeição, sob a ótica da indisponibilidade do interesse público. não há de ser reprovada a prática, contudo,
apenas por ser onerosa, haja vista que, uma vez identificada com a atividade de fomento, equipara-se a outros
instrumentos usados pelo poder público que igualmente implicam custos, a exemplo dos incentivos fiscais, das
subvenções estatais e dos empréstimos subsidiados.
vale dizer que a avaliação preocupa-se, aqui, em abordar aspectos da margem de preferência exclusivamente
quanto a sua dimensão jurídica, não resolvendo a preocupação concernente a saber se medidas que garantem
preço favorecido a determinado setor contribuem para fortalecê-lo ou se tem o efeito inverso, assunto que é
afeto às ciências econômicas e políticas e haverá de despertar interesses que conduzirão a investigações segundo
conceitos e princípios próprios.
CAPítuLo 7
LiCitAção
deve, pois, a margem de preço, no caso da licitação de técnica e preço, ser computada
em face da proposta respectiva que se refira a produtos ou serviços estrangeiros para então
operar-se a ponderação com a valorização obtida pela proposta técnica e determinar-se a
classificação do proponente.
no caso da licitação de melhor técnica, na hipótese de o menor preço entre as
propostas que tenham atingido a valorização mínima estabelecida no instrumento
convocatório referir-se a produto ou serviço estrangeiro, sobre ele (o menor preço)
aplicar-se-á a margem de preferência própria do objeto licitado, obtendo-se dessa forma
a referência que orientará a negociação com a proposta melhor classificada, sempre que
esta seja relativa a produto ou serviço brasileiro.
entre as alterações trazidas para o art. 3º da Lei nº 8.666/93 pela Lei nº 12.439/2010,
chama a atenção, ainda, a previsão contida no §11, que abre a possibilidade para que
os editais de licitação exijam do contratado a promoção de, “em favor de órgão ou
entidade integrante da administração pública ou daqueles por ela indicados a partir
de processo isonômico, medidas de compensação comercial, industrial, tecnológica
ou acesso a condições vantajosas de financiamento, cumulativamente ou não”. A inovação seria, segundo interpretação literal, aplicável a qualquer contrato firmado pela
administração. A menção feita à “compensação” a ser promovida pelo contratado,
considerada no contexto das demais disposições constantes da Lei nº 12.439/2010, faz
supor, no entanto, que o novo parágrafo refira-se exclusivamente às contratações em
que o vencedor da licitação venha a auferir o benefício da “margem de preferência”,
situação a que se atribui a necessidade de uma espécie de contrapartida.
d) Desistência de propostas
A Lei nº 8.666/93, em seu §6º do art. 43, determina expressamente que após encerrada a fase de habilitação não mais cabe desistência da proposta por parte do licitante.
Considera-se encerrada a fase de habilitação somente quando for realizada a audiência
pública para a abertura dos envelopes com as propostas. iniciada essa sessão pública,
não mais cabe desistência das propostas apresentadas.
e) Apresentação de amostras e desclassificação
Com vistas a evitar produtos de má qualidade, outra prática que se tem verificado
em algumas licitações é a de, na fase de classificação, o instrumento convocatório exigir
que os licitantes apresentem amostras de seus produtos. o objetivo da apresentação dessas amostras seria o de excluir da licitação aquelas que não preencham as exigências ou
especificações constantes do instrumento convocatório. O que não é possível, em hipótese
alguma, em uma licitação de menor preço, seria, a partir das amostras apresentadas, a
comissão de licitação resolver considerar a proposta de certo licitante melhor do que a
de outro licitante. observamos, mais uma vez, que o objetivo da apresentação dessas
amostras é simplesmente o de desclassificar os licitantes cujos produtos não sejam compatíveis com as exigências impostas no instrumento convocatório. Ainda que não encontre
expressa previsão legal,202 essa prática de se exigir dos licitantes, na fase de classificação,
202
o art. 75 da Lei nº 8.666/93 somente autoriza que o edital ou o convite possam prever a apresentação de amostras
por parte do “contratado”, e não por parte de “licitantes”. É de se observar que questões ou aspectos técnicos
irão interferir em uma licitação do tipo menor preço apenas na definição do objeto da licitação. Uma vez admitidas as propostas, por preencherem as exigências técnicas indicadas no edital, o único critério a ser adotado para
julgá-las será o preço. nesse sentido, dispõe o artigo, in verbis:
413
LuCAs roCHA FurtAdo
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414
a apresentação de amostras tem sido usual em inúmeros órgãos administrativos, tendo
sido adotada pelo próprio tribunal de Contas da união. desse modo, a exigência de que
os licitantes devam, na fase de julgamento das propostas, apresentar amostras, deve ser
tida como lícita, tendo como fundamento para sua legitimidade a busca de propostas
mais vantajosas e a própria economia processual.
em defesa da legalidade desse procedimento, que somente deve ser admitido se
previsto no instrumento convocatório, pode-se argumentar que a licitação é realizada
tendo em vista a busca da proposta mais vantajosa para a Administração. se não for
possível a esta última examinar os produtos que os licitantes pretendem fornecer, caso
venham a ser contratados, a licitação não estaria realizando o seu objetivo final, que
seria a busca pela proposta mais vantajosa. Ademais, se não se admitir a apresentação
de amostras durante a realização da licitação, a outra opção que sobraria para a Administração seria a convocação do adjudicatário — vencedor da licitação — para assinar o
contrato, e após a celebração da avença, exigir que ele submeta seus produtos aos testes
ou ensaios de que trata o art. 75 da Lei nº 8.666/93. essa opção possível nem sempre se
mostra viável. isso porque se os testes ou ensaios não aprovarem os produtos apresentados pelo contratado, deverá o contrato ser rescindido podendo ser realizada nova
licitação ou serem convocados os demais licitantes. A convocação dos demais licitantes,
hipótese autorizada pelo art. 24, Xi, da Lei nº 8.666/93,203 nem sempre pode ser adotada,
pois pressupõe que os demais licitantes convocados concordem em ser remunerados
nos termos da proposta do licitante vencedor do certame.204
f) Empate entre propostas
Questão a ser enfrentada diz respeito à possibilidade de ocorrer empate entre
os licitantes. sendo o preço o critério básico de julgamento, caso sejam apresentadas
propostas com valores idênticos, ainda que eventualmente a qualidade dos produtos ou
serviços de um licitante seja superior a dos outros, seria possível utilizar outros critérios
de técnica para desempatar as propostas? Caso contrário, de que critérios pode valer-se
a comissão de licitação para promover o desempate entre as propostas?
A fim de resolver esse possível impasse, a própria lei estabelece critérios objetivos de desempate, não sendo admitida, em licitações do tipo menor preço, critérios de
técnica para promover o desempate.
A adoção dos critérios de desempate se encontra prevista em lei. A própria Lei
nº 8.666/93 indica alguns critérios que devem ser utilizados para indicar a proposta
vencedora caso haja empate. A adoção dos critérios previstos na Lei nº 8.666/93 pressupõe, todavia, que não haja microempresas ou empresas de pequeno porte participando
do certame e que não se trate da contratação de bens ou de serviços de informática.
Caso microempresas ou empresas de pequeno porte participem da licitação, devem ser
203
204
“Art. 75. salvo disposição em contrário constantes do edital, do convite ou de ato normativo, os ensaios, testes e
demais provas exigidos por normas técnicas oficiais para a boa execução do objeto do contrato correm por conta
do contratado.”
“Art. 24. A Licitação é dispensável: (...) Xi - na contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em
conseqüência de rescisão contratual, desde que atendida a ordem de classificação da licitação anterior e aceitas
as mesmas condições oferecidas pelo licitante vencedor, inclusive quanto ao preço, devidamente corrigido.”
A jurisprudência do tribunal de Contas da união é no sentido de a apresentação das amostras ou dos protótipos
dos produtos oferecidos na licitação ser exigida do licitante ofertante do menor preço na fase de julgamento das
propostas. ver acórdãos nº 526/05, Plenário (DOU, 12 maio 2005); e nº 99/05, Plenário (DOU, 25 fev. 2005).
CAPítuLo 7
LiCitAção
observados os critérios de desempate previstos na Lei Complementar nº 123, de 2006,
e, na eventualidade de se tratar da contratação de bens ou de serviços de informática,
devem ser observados os mecanismos que conferem preferência aos bens produzidos
com tecnologia desenvolvida no País ou que observem processo produtivo descrito em
decreto do Poder Executivo, conforme definido pela Lei nº 8.248/91, com a redação dada
pela Lei nº 11.077, de 2004. somente nestas duas hipóteses será possível não utilizar os
mecanismos previstos na Lei nº 8.666/93 para o desempate de propostas.
O primeiro critério de desempate se encontra definido pela Lei Complementar
nº 123/06. de se observar que a adoção dos mecanismos da referida lei complementar,
que institui o estatuto das microempresas e empresas de pequeno porte, independe
do objeto licitado.
Define referida lei complementar, em primeiro lugar (art. 44), que “nas licitações
será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte”. Curiosa, todavia, a regra contida no §1º do
referido art. 44. determina este dispositivo que se entende “por empate aquelas situações
em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte
sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada”.
na eventualidade de ter sido utilizado o pregão, se a diferença entre a proposta do
micro ou do pequeno empresário for superior até 5% ao melhor preço apresentado,
igualmente serão consideradas empatadas as propostas. tratando-se de pregão, deve-se
entender que somente ocorre o empate após o encerramento dos lances verbais. ou
seja, a prioridade conferida pela Lei Complementar nº 123/06 às microempresas e empresas de pequeno porte no pregão, em relação à caracterização do empate, somente se
mostra viável se a referida diferença de 5% em relação à melhor proposta ocorrer após
a apresentação dos lances verbais.
Caracterizado o empate, conforme define o art. 44 da Lei Complementar nº 123/06,
o art. 45 da mesma lei complementar impõe a observância dos seguintes procedimentos
com vista ao desempate:
I - a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar
proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que ela
será declarada vencedora e lhe será adjudicado o objeto licitado;
ii - não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa de pequeno porte, na forma
do item anterior, serão convocadas as microempresas ou empresas de pequeno porte cujas
propostas se enquadrem nos limites indicados pelo artigo 44, na ordem classificatória, para
o exercício do direito de apresentarem preço inferior ao da melhor proposta apresentada;
iii - no caso de equivalência dos valores apresentados pelas microempresas e empresas
de pequeno porte que se encontrem nos intervalos estabelecidos no art. 44 da citada lei
complementar, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro
poderá apresentar melhor oferta.
no caso de pregão, o art. 45, §3º, da Lei Complementar nº 123/06 determina que
“a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada será convocada
para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão”.
dispõe ainda a Lei Complementar nº 123/06 (art. 45, §1º) que “na hipótese da
não-contratação nos termos previstos no caput deste artigo, o objeto licitado será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame”.
415
416
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
os critérios de desempates previstos no estatuto das microempresas e das empresas
de pequeno porte constituem o primeiro passo para o desempate de propostas nas licitações
públicas.
Caso microempresas ou empresas de pequeno porte não tenham participado da
licitação, ou, se tiverem participado, caso suas propostas não se enquadrem nos limites fixados no art. 44 da Lei Complementar nº 123/06 (de até 10% em relação à melhor
proposta, e, no caso de pregão, de até 5%), deve ser examinado se a licitação objetiva
a contratação de bens ou de serviços de informática. Caso afirmativo, antes de serem
utilizados os critérios de desempate das propostas previstos na Lei nº 8.666/93, devem
ser observados os mecanismos de preferência descritos na Lei nº 8.248/91, com a redação
dada pela Lei nº 11.077/04. dispõe o art. 3º da referida lei:
Art. 3º os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta, (...)
darão preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, observada a
seguinte ordem, a:
i - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País;
ii - bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, na forma a ser
definida pelo Poder Executivo. (...)
§3º A aquisição de bens e serviços de informática e automação, considerados como bens e serviços
comuns nos termos do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002,
poderá ser realizada na modalidade pregão, restrita às empresas que cumpram o Processo Produtivo Básico nos termos desta Lei e da Lei nº 8.387, de 30 de dezembro de 1991. (grifos nossos)
desse modo, na contratação de bens ou serviços de informática, caso não participem microempresas ou empresas de pequeno porte, havendo empate, será declarada
vencedora a proposta apresentada pelo licitante cujos bens e serviços utilizem tecnologia
desenvolvida no País (Lei nº 8.248/91, art. 3º, i, com a redação dada pela Lei nº 11.077, de
2004). utilizado esse critério e persistindo o empate, será declarada vencedora a proposta
apresentada pelo licitante cujos “bens e serviços produzidos de acordo com processo
produtivo básico, na forma a ser definida pelo Poder Executivo”. Superada essas etapas,
sendo mantido o empate, serão utilizados os critérios definidos pela Lei nº 8.666/93.
Acerca da necessidade de ser observado o direito de preferência previsto na referida Lei nº 8.248/91 nas licitações realizadas na modalidade de pregão, o tCu apresenta
a seguinte jurisprudência:
- Acórdão nº 1.707/05, Plenário, cuja parte dispositiva foi alterada pelo Acórdão nº 2.138/05,
Plenário:
9.1. conhecer da consulta para respondê-la no sentido de que não é juridicamente possível
afastar a aplicação da regra de preferência de que trata o art. 3º da Lei nº 8.248/91, alterado
pelas Leis nºs 10.176/2001 e 11.077/2004, nos procedimentos licitatórios realizados sob
a modalidade Pregão, cujo objeto seja o fornecimento de bens e serviços comuns de
informática e automação, assim definidos pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 10.520/2002,
estando essas licitações franqueadas a todos os interessados, independentemente de
desenvolverem bens e produtos com tecnologia nacional e cumprirem o Processo Produtivo
Básico, definido pela Lei nº 8.387, de 30 de dezembro de 1991;
9.2. esclarecer ao consulente que é juridicamente possível a aquisição de bens e serviços
comuns de informática e automação nas contratações realizadas por intermédio da
modalidade Pregão, mesmo nas hipóteses em que não seja tecnicamente viável a aplicação
da regra de preferência a que alude o art. 3º da Lei nº 8.248/1991, com a redação alterada
CAPítuLo 7
LiCitAção
pelas Leis n. 10.176/2001 e 11.077/2004, vale dizer, nas situações em que não haja licitantes
que possam fornecer produto ou serviço com tecnologia desenvolvida no País ou não
cumpram o Processo Produtivo Básico, assim definido pela Lei nº 8.387/1991; (...).
- Acórdão nº 1.598/06, Plenário:
(...) nas licitações sob a modalidade pregão para aquisição de bens e serviços comuns
de informática, a participação no certame deve ser franqueada a todos os interessados,
independentemente de cumprirem o Processo Produtivo Básico.
o exame dos acórdãos do tCu acima demonstra que na eventualidade de ser
utilizado o pregão para a contratação de bens e de serviços de informática, ainda que o
licitante não cumpra as exigências relacionadas ao processo produtivo básico, ele tem
direito de apresentar proposta. A aplicação da regra da preferência prevista na referida
Lei nº 8.248/91 importa tão somente em que, havendo empate entre os licitantes — hipótese muito remota no pregão — será declarada vencedora a proposta apresentada
pela empresa que atenda às exigências previstas no supra transcrito art. 3º da citada
Lei nº 8.248/91.
Pelo que até o momento foi exposto, é possível concluir:
- se houver microempresas ou empresas de pequeno porte participando da licitação, como primeiro critério de desempate devem ser observados os mecanismos
previstos na Lei Complementar nº 123/06;
- Caso não haja microempresas ou empresas de pequeno porte participando da
licitação ou, caso tenham participado, elas não tenham apresentado propostas
que preencham os requisitos previstos no art. 44 da referida Lei Complementar
nº 123/06, e se trate da contratação de bens ou de serviços de informática, deve
ser conferida preferência às empresas cujos bens e serviços sejam produzidos
com tecnologia desenvolvida no País ou que atendam às exigências do “processo produtivo básico, na forma a ser definida pelo Poder Executivo”;
- Somente na eventualidade de não se configurar qualquer das duas hipóteses
acima indicadas, deverão ser observados os critérios de desempate previstos
na própria Lei nº 8.666/93.
A Lei nº 8.666/93 define em seu art. 3º, §2º, que “em igualdade de condições, como
critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços”:
i - (Revogado pela Lei nº 12.349, de 2010);
ii - produzidos no País;
iii - produzidos ou prestados por empresas brasileiras;
iv - produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento
de tecnologia no País.
em nome do princípio do julgamento objetivo, os critérios para desempate de
propostas são apenas aqueles previstos em lei. desse modo, na eventualidade de permanecerem empatadas as propostas após a eventual aplicação dos mecanismos previstos
na Lei Complementar nº 123/06 ou da Lei nº 8.248/91, devem ser utilizados os critérios
indicados no art. 3º da Lei nº 8.666/93 anteriormente transcrito.
em relação a esses critérios, o previsto no inciso i (bens ou serviços “produzidos
ou prestados por empresas brasileiras de capital nacional”) não mais pode ser utilizado em
417
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
418
licitações, haja vista ter ocorrido sua revogação em razão da promulgação da emenda
Constitucional nº 6/95. desse modo, caso se faça necessário utilizar os parâmetros da Lei
nº 8.666/93, o primeiro critério de desempate favorece as propostas dos licitantes cujos
bens ou serviços sejam “produzidos no País”. Persistindo o empate, serão beneficiados os licitantes cujos bens ou serviços sejam “produzidos ou prestados por empresas
brasileiras”, e, mantido o empate, será declarada vencedora a proposta do licitante
cujos bens ou serviços sejam “produzidos ou prestados por empresas que invistam em
pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País”.
se ainda assim persistir o empate, será obrigatória a adoção do sorteio como
única possibilidade de desempate, conforme o disposto no art. 45, §2º, todos da Lei
nº 8.666/93. determina esse dispositivo que “no caso de empate entre duas ou mais
propostas, e após obedecido o disposto no §2º do art. 3º desta Lei, a classificação se
fará, obrigatoriamente, por sorteio, em ato público, para o qual todos os licitantes serão
convocados, vedado qualquer outro processo”.205
7.7.8.9.4 Homologação do procedimento licitatório
o art. 43, em seu inciso vi, dispõe acerca da “deliberação da autoridade competente quanto à homologação e adjudicação do objeto da licitação”.
A constatação que se pode fazer acerca dessa fase da licitação é que ocorreu o
esgotamento da competência da comissão de licitação. A esta coube a habilitação e a
classificação das propostas. Julgadas e classificadas as propostas, a comissão de licitação encaminha os autos da licitação à autoridade que a nomeou a fim de que esta, nos
termos do dispositivo acima citado, decida acerca da homologação e adjudicação do
objeto ao licitante.
A homologação corresponde à manifestação de concordância da autoridade,
competente para assinar o contrato, com os atos até então praticados pela comissão. essa
concordância refere-se a dois aspectos: à legalidade dos atos praticados pela comissão
e à conveniência de ser mantida a licitação.
o fundamento legal para que se realize a revogação será a inconveniência de
ser ela mantida, enquanto a ilegalidade é o fundamento para a anulação. essa regra
está prevista no art. 49, que dispõe que “a autoridade competente para a aprovação
do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público
decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para
justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de
terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado”.
É importante observar que a revogação, nos termos da própria lei, somente será
possível em face de motivo superveniente devidamente comprovado.206 se, no exemplo
da licitação para construção da sede do órgão público acima mencionado, a doação
205
206
em sentido contrário a este que aqui defendemos, vide decisão proferida pela 2ª turma do stJ, que julgando o resp
nº 42.285-sP (rel. min. Américo Luz. Julg. 14.6.1995. DJ, 14 ago. 1995), adotou a seguinte ementa: “Administrativo.
Licitação. tipos conjugados. Critério de desempate. É lícito ao edital, no interesse da administração, combinar entre
si os tipos de licitação existentes, bem como estabelecer critério de desempate baseado em nota técnica”.
No sentido de que “se o procedimento de licitação ultrapassou o exercício financeiro e no orçamento para o ano
seguinte não existe reserva de verba, para enfrentar a despesa com a aquisição do bem objeto da concorrência,
é licito a administração declarar extinto o certame” revogando-o, vide stJ. ms nº 4.482-dF, Corte especial. rel.
min. Humberto Gomes de Barros. Julg. 21.8.1996. DJ, 21 out. 1996.
CAPítuLo 7
LiCitAção
tivesse sido realizada antes da divulgação do edital, não se poderia usar essa doação
como fundamento para a revogação, haja vista não se tratar de fato superveniente.
7.7.8.9.5 Adjudicação
Por adjudicação deve-se entender o ato da autoridade que põe o objeto licitado
à disposição do licitante vencedor.
Ao adjudicar o objeto da licitação, a autoridade competente apenas estará considerando aquele licitante apto a ser contratado. Isso não significa, no entanto, que o
licitante tenha direito subjetivo de assinar o contrato. são coisas distintas.
7.7.8.9.6 recursos contra as decisões proferidas no curso da licitação
dispõe o art. 109, acerca dos recursos cabíveis contra os diversos atos praticados
ao longo da licitação, nos seguintes termos:
109. dos atos da Administração decorrentes da aplicação desta Lei cabem:
i - recurso, no prazo de 5 (cinco) dias úteis a contar da intimação do ato ou da lavratura
da ata, nos casos de:
a) habilitação ou inabilitação do licitante;
b) julgamento das propostas;
c) anulação ou revogação da licitação;
d) indeferimento do pedido de inscrição em registro cadastral, sua alteração ou cancelamento;
e) rescisão do contrato, a que se refere o inciso i do art. 79 desta Lei;
f) aplicação das penas de advertência, suspensão temporária ou de multa.
ii - representação, no prazo de 5 (cinco) dias úteis da intimação da decisão relacionada
com o objeto da licitação ou do contrato, de que não caiba recurso hierárquico.
iii - pedido de reconsideração, de decisão de ministro de estado, ou secretário estadual
ou municipal, conforme o caso, na hipótese do §4º do art. 87 desta Lei, no prazo de 10
(dez) dias úteis da intimação do ato.
A lei indica (art. 109, i) quais atos poderão ser atacados pelo recurso hierárquico
(igualmente denominado recurso em sentido estrito). em relação a esse recurso, o §2º
determina que ele terá efeito suspensivo nas hipóteses indicadas nas alíneas “a” e “b”
do inciso i deste artigo, podendo a autoridade competente, motivadamente e presentes
razões de interesse público, atribuir eficácia suspensiva aos demais recursos.
A lei estabelece igualmente o processamento dos recursos, admitindo que os
demais licitantes possam impugnar o recurso no prazo de cinco dias úteis (art. 109,
§3º),207 sendo esse prazo reduzido para dois dias úteis quando se tratar de licitação
na modalidade de convite. Ademais, o §4º, do art. 109, determina que “o recurso será
dirigido à autoridade superior, por intermédio da que praticou o ato recorrido, a qual
poderá reconsiderar sua decisão, no prazo de 5 (cinco) dias úteis, ou, nesse mesmo prazo, fazê-lo subir, devidamente informado, devendo, neste caso, a decisão ser proferida
207
sobre a contagem de prazo em processo licitatório, vide stJ: “Administrativo – Licitação – Prazo – Contagem – dia
do início exclusão. no procedimento de licitação os prazos contam-se excluindo-se o dia de seu início (Lei 8.666/93,
Art. 110)” (ms nº 6.049-dF, 1ª seção. rel. min. Humberto Gomes de Barros. Julg. 13.10.1999. DJ, 06 dez. 1999).
419
420
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
dentro do prazo de 5 (cinco) dias úteis, contado do recebimento do recurso, sob pena
de responsabilidade”.
A lei igualmente indica quando caberá o pedido de reconsideração de que trata o
inciso iii do art. 109 da Lei nº 8.666/93. esse pedido de reconsideração somente poderá
ser interposto contra ato que tenha aplicado a declaração de inidoneidade para licitar
ou contratar com a Administração Pública, sanção prevista no art. 87, iv.
Para os demais atos contra os quais não seja cabível recurso hierárquico (art. 109,
i) ou pedido de reconsideração (art. 109, iii) será cabível representação (art. 109, ii).
A partir dessas regras recursais, procura o legislador evitar que sejam cometidas
injustiças contra licitantes. A existência de dupla instância, ainda que não tenha o poder
de impedir tais injustiças, ao menos permite que o licitante possa atacar ato que, ao
menos em seu entendimento, esteja ferindo seus direitos.
7.7.8.10 representação ao tribunal de Contas
Além da possibilidade de serem interpostos os recursos acima indicados, a lei
prevê existência da representação disciplinada no art. 113, §1º. este dispositivo permite
que “qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica poderá representar ao
tribunal de Contas ou aos órgãos integrantes do sistema de controle interno contra
irregularidades na aplicação desta Lei, para os fins do disposto neste artigo”.
essa representação do art. 113 não deve ser confundida com a igualmente denominada representação de que trata o art. 109, ii. este tem caráter de recurso e será
dirigido “à autoridade superior, por intermédio da que praticou o ato recorrido, a qual
poderá reconsiderar sua decisão, no prazo de 5 (cinco) dias úteis, ou, nesse mesmo prazo,
fazê-lo subir, devidamente informado, devendo, neste caso, a decisão ser proferida
dentro do prazo de 5 (cinco) dias úteis, contado do recebimento do recurso, sob pena
de responsabilidade”.
A representação do art. 113 será utilizada para que seja provocado o tribunal
de Contas da união, dos estados ou dos municípios, conforme a respectiva esfera de
competência, a fim de que a competente Corte de Contas possa manifestar-se acerca
de possível ilegalidade em licitação ou em contrato celebrado pela Administração.
7.7.8.11 Convocação do adjudicatário para assinar o contrato
Com a adjudicação, encerra-se a licitação, e a etapa que se seguirá será a convocação do licitante para assinar o contrato.
o art. 64 da Lei nº 8.666/93 dispõe que a “Administração convocará regularmente o
interessado para assinar o termo de contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente,
dentro do prazo e condições estabelecidos, sob pena de decair o direito à contratação,
sem prejuízo das sanções previstas no art. 81 desta Lei”. A primeira observação que se
pode fazer acerca desse dispositivo diz respeito à conveniência de que o edital indique
em que condições (prazos, convocação feita por escrito etc.) será feita a convocação para
que o licitante vencedor assine o contrato.
Se o edital (ou o convite) não tiver especificado como deve ser feita a convocação, deve ela ser feita por escrito. em qualquer hipótese, em obediência ao princípio
da materialidade, convém que o administrador tenha documentos que comprovem a
convocação do licitante nos termos definidos no edital.
CAPítuLo 7
LiCitAção
A redação do caput do art. 64 da Lei nº 8.666/93 deixa evidente que se busca punir
o licitante que, convocado regularmente, não comparece para assumir a proposta, como
total descumprimento do contrato, sujeitando o licitante às sanções indicadas no art. 81.
7.7.8.12 Prazo de validade das propostas
A fim de evitar que os licitantes fiquem indefinidamente vinculados às suas propostas, o §3º do art. 64 fixou-lhes o prazo de 60 dias de validade. Decorrido esse prazo,
que é contado da “data da entrega das propostas, sem convocação para a contratação,
ficam os licitantes liberados dos compromissos assumidos”.
não se deve entender que a Administração não possa convocar licitante após
esse prazo. decorrido o prazo de 60 dias não pode a Administração obrigar o licitante
a assumir sua proposta ou puni-lo, caso haja recusa.
7.7.9 tomada de preços
As regras relativas ao procedimento da concorrência são igualmente aplicáveis às
demais modalidades, sofrendo apenas pequenas adaptações, conforme a modalidade
utilizada.
A diferença básica entre a concorrência e a tomada de preços reside na circunstância de que a primeira é destinada a qualquer pessoa que na fase de habilitação preencha
os requisitos necessários à sua participação na licitação, enquanto a tomada de preços
é modalidade dirigida aos interessados que já estejam cadastrados ou “que atenderem
a todas as condições exigidas para cadastramento até o terceiro dia anterior à data do
recebimento das propostas, observada a necessária qualificação”.
o cadastramento dispensa os interessados de terem de juntar documentos relativos à sua habilitação, observado o disposto no art. 32, §2º. Porém, mesmo que seja
apresentado o Certificado de Registro Cadastral (CRC), em face do objeto licitado,
pode ser exigido dos licitantes que comprovem o preenchimento dos requisitos de
qualificação técnica e econômica que, eventualmente, não tenham sido exigidos por
ocasião do cadastramento. desse modo, nada impede que em uma tomada de preços
sejam feitas exigências relativas à qualificação técnica e econômico-financeira a fim de
compatibilizar as exigências de qualificação ao objeto licitado.
se o administrador decidir realizar licitação na modalidade de tomada de preços, e, em face das peculiaridades do objeto licitado, for obrigado a impor exigências,
a comissão de licitação deverá, nos termos previstos no edital, examinar a qualificação
dos licitantes quanto a esses dois aspectos. Pode até parecer estranho, mas haveremos
de ter, nesse caso, uma habilitação dentro de uma tomada de preços.
outro aspecto que distingue a tomada de preços da concorrência diz respeito ao
prazo para apresentação das propostas. No art. 21, são definidos esses prazos que, no
caso de concorrência, serão de no mínimo 30 dias (art. 21, §2º, ii, “a”), exceto “quando
o contrato a ser celebrado contemplar o regime de empreitada integral ou quando a
licitação for do tipo melhor técnica ou técnica e preço”, hipótese em que o prazo mínimo
para a apresentação de propostas passa para quarenta e cinco dias (art. 21, §2º, i).
em relação às tomadas de preços, o mesmo artigo da lei estabelece que o prazo
para apresentação das propostas será de no mínimo 15 dias (art. 21, §2º, iii), salvo se
421
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
422
tratar de tomada de preços em que o tipo de licitação seja de melhor técnica ou de
técnica e preço, em que o prazo mínimo para a apresentação de propostas será de 30
dias (art. 21, §2º, ii, “b”).
No mais, relativamente às demais fases da tomada de preços (classificação, homologação e adjudicação), serão aplicáveis as mesmas regras da concorrência.
7.7.10 Convite
O convite adota procedimento extremamente simplificado. A Administração escolhe
pelo menos três possíveis interessados208 no objeto que será licitado e dirige-lhes cartaconvite convocando-os a apresentarem suas propostas.209
A divulgação do convite segue regras distintas das aplicáveis à concorrência, à
tomada de preços, ao concurso e ao leilão (vide art. 21, caput). em relação a essas modalidades, impõe-se a publicação dos avisos em órgão de divulgação oficial e em jornal de
grande circulação. Para o convite, a lei impõe a obrigação de que se promova a afixação
do convite no quadro de avisos da repartição.
entretanto, no meu entender, se for dispensada à carta-convite a publicidade
que se faz obrigatória aos editais elaborados nas demais modalidades licitatórias, tal
como a divulgação do pertinente aviso tanto na imprensa oficial quanto no jornal de
grande circulação, conforme previsto no art. 21 da Lei nº 8.666/93, não seria impositiva
a obtenção de três propostas válidas nem a apresentação da justificativa prescrita no §7º
do art. 22 do citado diploma legal, e, em consequência, a repetição do certame, sendo
que esta última medida deveria ser adotada no caso de não ter sido apresentada na
licitação já realizada ao menos uma proposta válida e vantajosa para a Administração.
Ademais, o prazo para apresentação das propostas será, no convite, no mínimo
de cinco dias (art. 21, §2º, iv).
outra observação importante consta no art. 51, §1º, que desobriga a Administração de constituir comissão de licitação. no convite, as atribuições que caberiam a uma
comissão poderão ser realizadas “por servidor formalmente designado pela autoridade
competente”.
essa substituição da comissão pelo servidor somente será admitida, “excepcionalmente, nas pequenas unidades administrativas e em face da exiguidade de pessoal
disponível”.
Observamos, finalmente, a regra do art. 32, §1º, que permite que “a documentação
de que tratam os artigos 28 a 31 (habilitação jurídica, qualificação técnica e econômicofinanceira, regularidade fiscal) desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte,
nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão”.
208
209
tem decidido o tCu reiteradas vezes que, para a regularidade da licitação na modalidade convite, é imprescindível que se apresentem três licitantes devidamente qualificadas. Não sendo obtido esse número, é indispensável a justificativa no processo, sob pena de repetição do convite (Decisão nº 98/95, Plenário).
súmula tCu nº 248: “não se obtendo o número legal mínimo de três propostas aptas à seleção, na licitação sob
a modalidade Convite, impõe-se a repetição do ato, com a convocação de outros possíveis interessados, ressalvadas as hipóteses previstas no parágrafo 7º, do art. 22, da Lei nº 8.666/1993”.
em licitações sob a modalidade convite é irregular a participação de empresas com sócios comuns. Cf. informativo
de Jurisprudência do tCu sobre Licitações e Contratos nº 74, citando o Acórdão tCu nº 2.003/2011, Plenário.
CAPítuLo 7
LiCitAção
7.7.11 Leilão
A Lei nº 8.666/93, art. 22, §5º, define leilão nos seguintes termos:
Leilão é modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a venda de bens móveis
inservíveis para a Administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados,
ou para a alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer o maior lance,
igual ou superior ao valor da avaliação.
o leilão será indicado, portanto, para a alienação de bens. essa é a regra a ser
seguida.
os bens passíveis de alienação por meio dessa modalidade serão, em regra,
bens móveis (desde que “avaliados, isolada ou globalmente, em quantia não superior
ao limite previsto no art. 23, inciso ii, alínea b”, o que equivale a r$650.000,00)210 e
excepcionalmente, imóveis.
Para a alienação de bens imóveis, a regra será a adoção da concorrência, conforme
dispõe o art. 23, §3º da Lei nº 8.666/93. somente em situações expressamente indicadas
na lei poderá ser utilizado o leilão para a alienação de bens imóveis (vide art. 19, iii, da
Lei nº 8.666/93).
Quando a Administração não mais necessitar de bens móveis (esses são os mencionados bens móveis inservíveis de que trata a lei),211 ou quando houver ocorrido a
apreensão legal de mercadorias (lembramos aqui os leilões realizados pela secretaria
da receita Federal de bens apreendidos por aquele órgão) ou quando determinados
produtos tiverem sido objeto de penhor não pago por seus devedores (lembramos
aqui os leilões realizados pelo setor de penhor de joias da Caixa econômica Federal) a
modalidade de licitação a ser seguida será o leilão.
o leilão é procedimento corriqueiro no direito Comercial e no direito Civil. Aqui,
os interessados comparecerão em determinado local e hora previamente definidos e
apresentarão suas ofertas ou lances. nesse ponto, deve-se observar que o leilão apresenta
características distintas das demais modalidades de licitação. o leilão permite que o
interessado possa apresentar diversas propostas, na medida em que o preço do maior
lance venha a ser aumentado. A fim de permitir o julgamento das propostas, que pela
sua própria natureza devem ser públicas — ao contrário das demais modalidades em
que as propostas seguem o princípio do sigilo — o único critério a ser adotado será o
do maior lance ou oferta, conforme dispõe o art. 45, §1º, da Lei de Licitações. Ademais,
ao realizar o leilão, a Administração aliena bens e, portanto, arrecada dinheiro. desse
modo, seria totalmente descabido querer exigir que a realização do leilão, que não
implica a realização de despesas, tenha tido previsão orçamentária, requisito indispensável para a realização dos demais contratos (obras, serviços, compras) que pressupõem
a devida previsão orçamentária.
em relação ao leilão, a lei não impõe formas rígidas, dispensando, inclusive, a
necessidade de habilitação — isto não impede, porém, que a Administração se certifique
210
211
dispõe o art. 17, §6º, nos seguintes termos:
“Art. 17. (...) §6º Para a venda de bens móveis avaliados, isolada ou globalmente, em quantia não superior ao
limite previsto no art. 23, inciso ii, alínea b, desta Lei, a Administração poderá permitir o leilão.”
Bem inservível não é necessariamente aquele quebrado, destruído ou danificado, mas simplesmente aquele que
não tem utilidade para a Administração.
423
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
424
da capacidade de pagamento do interessado, ou seja, se o interessado em adquirir o bem
em leilão possui condições econômicas de honrar o preço que ele próprio apresentou.
A última observação que apresentamos em relação ao leilão diz respeito à imprecisão do termo “penhorado”. o art. 22, §5º, já citado, ao indicar as hipóteses em que a
Administração irá utilizar o leilão deveria, antes, ter mencionado o termo “empenhado”.
o primeiro termo, “penhorado”, diz respeito à penhora judicial, que se procede em
processos de execução judicial — portanto, os bens a serem alienados em juízo seguirão
as regras previstas na legislação processual civil. o termo “empenhado”, ao contrário,
diz respeito à figura do penhor, que se verifica, por exemplo, nos empréstimos feitos
pela Caixa econômica Federal garantidos por penhor. Aqui, os bens que poderão vir a
ser leiloados não são bens penhorados, mas bens empenhados. o equívoco da lei não
deve, no entanto, causar qualquer dificuldade à utilização dessa modalidade de licitação.
7.7.12 Concurso
o concurso “é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a
escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios
ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes do edital publicado na
imprensa oficial com antecedência mínima de quarenta e cinco dias” (Lei nº 8.666/93,
art. 22, §4º).
essa modalidade de licitação, o concurso, não deve ser confundida com o também
denominado “concurso público” necessário à investidura em cargos ou empregos
públicos. esta modalidade de licitação nada tem a ver, portanto, com o concurso público
de que trata a Constituição Federal em seu art. 37, ii. este último deve seguir os critérios
previstos no próprio texto constitucional (concurso de provas ou de provas e títulos,
prazo de validade de até dois anos etc.) e em legislação própria relativa a servidores e
empregados públicos.
o prazo de inscrição para o concurso público para provimento de cargos ou
empregos não é fixado em lei, e não se lhe aplica o prazo de 45 dias definido pela Lei
nº 8.666/93. o prazo de inscrição para concurso público para provimento de cargos e
empregos deverá apenas seguir princípios de razoabilidade, de moralidade e de publicidade. Prazos exíguos não devem em absoluto ser admitidos em razão da necessidade
de conformação aos princípios constitucionais, independentemente de qualquer previsão
legal.
essa modalidade de licitação se destina à escolha de trabalhos técnicos, artísticos ou científicos. Os trabalhos já devem ser entregues prontos, acabados, para serem
submetidos a julgamento pela comissão que foi constituída para tal fim.212
212
o tCu, por meio do Acórdão nº 73/98, Plenário (DOU, 03 jun. 1998), firmou entendimento no sentido de que o edital
deve, no caso de concursos para a seleção de trabalhos técnicos, artísticos ou científicos, conter cláusula dispondo
expressamente sobre a transferência dos direitos autorais (patrimoniais) à Administração, nos seguintes termos:
“ACordAm os ministros do tribunal de Contas da união, reunidos em sessão Plenária, ante as razões expostas
pelo relator, em:
1. com fundamento nos arts. 16, inciso ii, 18 e 23, inciso ii, da Lei nº 8.443/92, julgar as presentes contas regulares,
com ressalva, dando quitação aos responsáveis indicados no item 3 supra, sem prejuízo de serem determinadas
à Fundação universidade do rio Grande – FurG as seguintes medidas: (...)
1.8. observância da Lei nº 8.666/93, com as alterações consolidadas na Lei nº 8.883/94, no tocante a licitações e
contratos administrativos, em especial com relação ao seguinte: (...)
CAPítuLo 7
LiCitAção
são duas as diferenças básicas entre o concurso e as demais modalidades de licitação
que visam à contratação de empresas ou profissionais para a prestação de serviços. Nessas
últimas, o serviço será prestado após a seleção, e o preço a ser pago é indicado pelo próprio
licitante em sua proposta. o preço apresentado pelo licitante, aliás, será utilizado como
critério básico para a escolha da melhor proposta. no concurso, ao contrário, os trabalhos
são apresentados prontos e acabados, e o preço a ser pago, o denominado prêmio, é fixado
pela Administração no edital do próprio certame.
A fim de que se possa melhor entender essa modalidade de licitação, podemos
citar o processo para a escolha do projeto arquitetônico de Brasília, vencido por Lúcio
Costa, como exemplo de concurso realizado pelo Governo Federal.
Os projetos artísticos, técnicos ou científicos são apresentados à Administração
para a escolha daquele que melhor atenda às suas necessidades. A comissão do concurso, previamente constituída, escolhe o melhor projeto e o seu autor irá receber o
prêmio fixado no edital.213
o prazo indicado em lei, de 45 dias, que será contado da publicação do edital, é
prazo mínimo para que os interessados apresentem seus trabalhos. em alguns casos,
como, por exemplo, a elaboração de projetos arquitetônicos, o prazo mínimo legal é
totalmente insuficiente. Nada impede, conforme as peculiaridades e dificuldades da
elaboração do projeto, que a Administração defina prazo de dois meses, três meses ou
até prazo superior, conforme a dificuldade de cada caso. Há ainda que se admitir a
prorrogação do prazo de apresentação dos projetos, o que será feito por meio da publicação de novo edital que lhe amplie a data final para inscrição (entrega dos trabalhos).
7.7.13 Pregão
7.7.13.1 Aspectos gerais
A Lei nº 9.472/97 criou, no âmbito da Agência nacional de telecomunicações
(AnAteL), nova modalidade de licitação denominada pregão. A AnAteL foi utilizada,
de certo modo, como cobaia desse novo experimento. Felizmente, a inovação mostrou-se
extremamente vantajosa e, por meio da medida Provisória nº 2.026, de 4.5.2000, foi
autorizada a utilização dessa nova modalidade de licitação no âmbito da Administração
Pública federal. Ao ser convertida na Lei nº 10.520/02, deu-se novo âmbito de alcance ao
pregão, sendo hoje admitida a sua utilização, por expressa disposição legal, “no âmbito
213
d) somente utilizar a licitação modalidade Concurso para escolha de trabalhos técnicos, científicos ou artísticos
específicos, com diretrizes e forma de apresentação indicados em regulamento próprio, e com pagamento condicionado à cessão, pelo autor, dos direitos patrimoniais a ele relativos, conforme art. 22, parágrafo 4º, art. 52,
caput e parágrafo 1º, com seus incisos; e art. 111, caput; (...).”
no caso de projeto arquitetônico, temos observado determinadas situações em que a Administração tem preferido adotar outras modalidades de licitação — concorrência, tomada de preços ou mesmo o convite — utilizando o critério da técnica e preço ou melhor técnica para julgar as propostas, nos temos do art. 46, caput, da
Lei nº 8.666/93. Nessas hipóteses, somente serão prestados os serviços após a definição da melhor proposta na
licitação. Nesse ponto é que se verifica a distinção entre a utilização dessas outras modalidades de licitação e o
concurso. neste último, os trabalhos são entregues prontos para julgamento pela comissão, não restando mais
nada a ser feito após da conclusão do certame, salvo, é evidente, o pagamento do prêmio. observa-se, ainda,
que em face da singularidade do projeto a ser executado, pode a sua contratação — de serviços de arquitetura
— enquadrar-se na hipótese de inexigibilidade de licitação, nos termos do art. 25, ii, da Lei nº 8.666/93, conforme
examinamos no Capítulo 2 deste livro.
425
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
426
da união, estados, distrito Federal e municípios, nos termos do art. 37, inciso XXi, da
Constituição Federal”, para aquisição de bens e serviços comuns.
Aspecto peculiar do pregão está relacionado à necessidade de que no âmbito da
união, assim como no de cada estado, de cada município e do distrito Federal, seja
editado regulamento para definir a sua aplicação. No âmbito da Administração Pública
federal, a União aprovou o Decreto nº 3.555, de 2000, para definir como os órgãos e
entidades da Administração federal irão proceder na aplicação dessa nova modalidade
de licitação.214
os governadores dos diversos estados e do distrito Federal e os prefeitos municipais devem aprovar, por meio de decretos próprios, as regras a serem observadas na
condução de seus pregões pelos órgãos de suas administrações diretas e entidades das
respectivas administrações indiretas. nada obsta, no entanto, que o governador ou o
prefeito possam adotar como modelo ou padrão o decreto federal – decreto nº 3.555/00.
Podem eles, inclusive, aprovar decreto que simplesmente afirme a aplicação, em seu
estado ou município, das regras contidas no decreto federal.
o governador ou o prefeito estão obrigados a observar os parâmetros da própria
Lei nº 10.520/02. os estados e municípios seguem o decreto federal somente se assim
decidirem. estão, todavia, obrigados a seguir as regras da Lei nº 10.520/02, não sendo
possível contrariá-la ou criar obrigação que não esteja nela prevista.
7.7.13.2 Definição
o pregão é modalidade de licitação disciplinada pela Lei nº 10.520/02. sendo
modalidade de licitação, parece-nos conveniente fazer algumas rápidas considerações
sobre as demais modalidades previstas na Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93).
A Lei nº 8.666/93, em seu art. 22, disciplina cinco diferentes modalidades de licitação. são elas a concorrência, a tomada de preços, o convite, o concurso e o leilão. As
três primeiras modalidades são as modalidades comuns; as duas últimas, modalidades
especiais.
A concorrência, a tomada de preços e convite são indicadas para a celebração
dos contratos que constituem a rotina, o dia a dia da Administração Pública. se a
Administração decide pela contratação de bens, serviços ou obras, deverá utilizar uma
dessas três modalidades, sendo o preço estimado do contrato o critério básico a ser
observado para indicar, dentre as três modalidades, a mais apropriada. desse modo,
se o administrador público decide adquirir veículos para a Administração Pública,
deverá, ressalvadas as hipóteses de contratação sem licitação, ser utilizada uma dessas
três modalidades comuns de licitação.
o pregão surge como modalidade de licitação a ser utilizada, em algumas situações, alternativamente às modalidades comuns disciplinadas pela Lei nº 8.666/93.
A Lei nº 10.520/02 restringe a utilização do pregão a algumas situações especiais,
relacionadas à contratação pela Administração Pública de bens e serviços comuns.
A manter o mesmo exemplo — a compra de veículos — se o administrador segue
a Lei nº 8.666/93, ele irá adotar a concorrência, a tomada de preços ou o convite em
214
temos, portanto, situação bastante peculiar em nosso ordenamento jurídico: o decreto nº 3.555, de 2000, regulamenta a Lei nº 10.520, de 2002. talvez em nenhum outro país seja possível admitir que o decreto que regulamenta
lei tenha sido editado dois anos antes da promulgação da lei.
CAPítuLo 7
LiCitAção
função do preço estimado do contrato. Caso o administrador opte pelo pregão para a
mesma compra de veículos, o valor estimado do contrato irá interferir apenas na forma
de dar divulgação ao pregão, podendo esta última modalidade ser utilizada seja qual
for o valor a ser contratado.215
vê-se que pela redação da legislação pertinente, para contratação de bens e serviços comuns, a adoção do pregão é discricionária: se o administrador desejar, pode
utilizar o pregão; se preferir, pode utilizar a Lei nº 8.666/93, adotando a concorrência,
a tomada de preços ou o convite em função do valor a ser contratado. no caso do pregão, não há limite de valor para sua utilização. No plano federal, especificamente no
âmbito do Poder executivo, a discricionariedade na adoção do pregão deixa de existir.
o decreto nº 5.450, de 2005, que trata do pregão eletrônico, em seu art. 4º, caput e §1º,
dispõe nos termos seguintes:
Art. 4º nas licitações para aquisição de bens e serviços comuns será obrigatória a
modalidade pregão, sendo preferencial a utilização da sua forma eletrônica.
§1º o pregão deve ser utilizado na forma eletrônica, salvo nos casos de comprovada
inviabilidade, a ser justificada pela autoridade competente.
em razão do que dispõe o acima transcrito dispositivo, a primeira pergunta a
ser feita é a de saber se poderia o decreto impor a adoção do pregão para situações
em que, nos termos da lei, a sua adoção é apenas uma faculdade. em outras palavras:
poderia norma infralegal restringir a discricionariedade conferida ao administrador
pela legislação? A resposta parece-nos ser afirmativa. O Presidente da República dispõe não apenas do poder regulamentar (CF, art. 84, iv). Quando o chefe do executivo
se vale deste poder, todos os administradores somente podem aplicar a lei por meio e
nos termos de sua regulamentação. isto vale, por exemplo, para os Poderes Judiciário
e Legislativo. no caso, todavia, ao impor, por meio de decreto, a adoção do pregão,
“sendo preferencial a adoção da sua forma eletrônica”, o chefe do executivo vale-se
do poder hierárquico que lhe é inerente, e não do poder regulamentar. o âmbito da
aplicação de um e de outro dispositivo é distinto. Ao se valer do poder hierárquico para
impor o pregão, esta ordem somente é aplicável àqueles administradores que estejam
inseridos no âmbito do Poder executivo federal. encontrando-se esses administradores
subordinados hierarquicamente ao chefe do executivo, têm o dever de cumprir as ordens
que lhes são dadas pelo seu chefe maior. Assim, não obstante a ementa do mencionado
decreto nº 5.450/05 fale em poder regulamentar e faça referência ao art. 84, iv, do texto
constitucional, o âmbito de alcance do dispositivo mencionado (art. 4º) está restrito
215
mediante o Acórdão nº 277/03, Plenário (DOU, 07 abr. 2003), o tCu entendeu regular a compra de veículos por
pregão, dando como parte de pagamento os veículos usados. vejamos excerto do voto condutor do acórdão:
“no caso em tela, utilizou-se o pregão de forma consentânea com a legislação vigente, dando-se como parte do
pagamento os bens inservíveis à administração, no caso, veículos que já tinham sido utilizados pelo trt/18ª
região e que, por sua depreciação, deveriam ser descartados.
importa destacar, ainda, que a forma pela qual foram adquiridos os bens, sobretudo no que tange à celeridade
e à redução de custos operacionais indica para o acerto da modalidade licitatória adotada pelo gestor, não deixando de atentar, como bem asseverou o sr. Procurador-Geral, para a busca do equilíbrio entre a legalidade e
outros princípios da administração pública, como o da eficiência e o da economicidade.
Há que se lembrar, também, que as vantagens embutidas no bojo do pregão visam, sobretudo, dar ao administrador público, maior flexibilidade na administração da coisa pública, dando condições de atuação semelhantes
às praticadas pelo setor privado.”
427
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Curso de direito AdministrAtivo
428
àqueles que se subordinam ao Presidente da república. A administração do supremo
tribunal Federal, por exemplo, que não se subordina ao executivo, não está vinculada
à adoção do pregão.216
Definido o âmbito de aplicação do art. 4º do Decreto nº 5.450/05 como sendo tão
somente o do Poder executivo federal, parece-nos lícito admitir sua validade.
É possível utilizar o pregão para a compra de veículos porque se trata da aquisição
de bens comuns. A Lei nº 10.520/02 restringiu a utilização do pregão para a contratação
de bens e serviços comuns. Estes são definidos pelo art. 1º, parágrafo único da Lei do
Pregão “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente
definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado”.
no âmbito da Administração Pública federal, o Anexo ii do decreto nº 3.555/2000
estabelecia uma lista de bens e serviços considerados comuns. ocorre, no entanto, que
tanto a doutrina como a jurisprudência mais abalizadas consideravam que a referida
lista era meramente exemplificativa. Com efeito, ao administrador era permitido utilizar
a modalidade pregão para aquisição de bens e serviços que não constassem expressamente no mencionado normativo, desde que esses fossem considerados comuns. esse
entendimento foi positivado por meio do decreto nº 7.174/2010, que revogou o Anexo
ii do decreto nº 3.555.
no âmbito dos estados e municípios, assim como no distrito Federal, cabe ao
regulamento a ser baixado pelos governadores e prefeitos definir se, à semelhança do
que ocorre na esfera federal, conferem liberdade aos administradores para que estes
definam quais são os bens ou serviços comuns ou se preferem estabelecer uma lista, tal
qual era adotado pela união até a edição do decreto nº 7.174/2010.
evidente, portanto, que não se pode jamais utilizar pregão para contratar obras,
por exemplo, posto não serem considerados bens ou serviços comuns. vale mencionar,
no entanto, que o tribunal de Contas da união, por meio da súmula nº 257, aprovada
na Sessão de 28.4.2010, firmou entendimento no sentido de que “o uso do pregão nas
contratações de serviços comuns de engenharia encontra amparo na Lei nº 10.520/2002”.
7.7.13.3 Bens ou serviços de informática e pregão
Conforme observado, somente pode ser adotado o pregão para a contratação de
bens ou de serviços comuns. É, portanto, perfeitamente aceitável que alguns bens ou
alguns serviços de informática possam ser considerados comuns e sejam contratados
por meio do pregão.217 tanto isto é verdade que o decreto nº 3.555/00, em seu Anexo
ii, indica alguns bens e serviços de informática.
entretanto, o decreto nº 3.555/00, Anexo i, art. 3º, parágrafos 3º a 5º, estabelece
restrições quanto à utilização da modalidade de pregão.218 vale comentar que o §3º do
216
217
218
embora não se encontrem vinculados ao decreto nº 5.450/2005, os órgãos federais do Poder Judiciário devem
motivar expressamente a escolha do pregão presencial, em detrimento do pregão eletrônico, na contratação de
bens e serviços comuns de TI, sob pena de se configurar possível ato de gestão antieconômico, conforme recomendação expedida pelo tCu ao Conselho nacional de Justiça (Acórdão nº 1.515/2011, Plenário).
A propósito, o tCu considera que, de modo geral, “a licitação de bens e serviços de tecnologia da informação
considerados comuns, ou seja, aqueles que possuam padrões de desempenho e de qualidade objetivamente definidos pelo edital, com base em especificações usuais no mercado, deve ser obrigatoriamente realizada pela modalidade pregão, preferencialmente na forma eletrônica” (voto condutor ao Acórdão tCu nº 2.353/2011, Plenário).
“§3º os bens e serviços de informática e automação adquiridos nesta modalidade deverão observar o disposto
no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, e a regulamentação específica. (Redação dada pelo Decreto
nº 7.174/2010)
CAPítuLo 7
LiCitAção
art. 3º do referido normativo consignava, originalmente, a antiga redação do art. 3º da
Lei nº 8.248/91, derrogado em virtude da revogação do art. 171 da Carta magna pela
emenda Constitucional nº 6/95, o que gerou grande controvérsia entre os órgãos da
Administração quanto a sua aplicação.
Com a publicação, porém, da Lei nº 11.077, em 30.12.2004, que altera a Lei nº 8.248/91,
a Lei nº 8.387/91 e a Lei nº 10.176/01, ingressou no mundo jurídico condicionante à participação de empresas nas licitações realizadas na modalidade pregão para a contratação
de bens e serviços de informática. Conforme reza o §3º do art. 3º da Lei nº 8.248/91, com a
nova redação dada pela Lei nº 11.077/04,219 a aquisição de bens e serviços de informática
poderá ser realizada na modalidade pregão, restrita à participação das empresas que
cumpram o Processo Produtivo Básico.
A título de esclarecimento, Processo Produtivo Básico, conforme conceito estabelecido na alínea “b” do §8º do art. 7º do decreto-Lei nº 288/67, alterada pela Lei nº 8.387/91,
é o “conjunto mínimo de operações, no estabelecimento fabril, que caracteriza a efetiva
industrialização de determinado produto”. o §6º do art. 1º da Lei nº 8.387/91 prescreve
que o Poder Executivo fixará os processos produtivos básicos.
Logo após a edição da Lei nº 11.077/04, pairou o entendimento de que, pelo que
dispõe o §3º do art. 3º da lei, somente poderia se adquirir mediante pregão bens e serviços de informática produzidos de acordo com o Processo Produtivo Básico, ou seja,
a referida norma veio restringir a participação de empresas e a oferta de produtos que
não atendessem a tal requisito.
no entanto, não vejo como ser essa a melhor interpretação a ser dada ao dispositivo da referida norma. Ao enfrentar recurso contra acórdão prolatado por seu
Pleno,220 o tribunal de Contas da união seguiu a linha de que o pregão, por ser uma
219
220
§4º Para efeito de comprovação do requisito referido no parágrafo anterior, o produto deverá estar habilitado a
usufruir do incentivo de isenção do imposto sobre Produtos industrializados – iPi, de que trata o art. 4º da Lei
nº 8.248, de 1991, nos termos da regulamentação estabelecida pelo ministério da Ciência e tecnologia.
§5º Alternativamente ao disposto no §4º, o ministério da Ciência e tecnologia poderá reconhecer, mediante
requerimento do fabricante, a conformidade do produto com o requisito referido no §3º.”
dispõe mencionado dispositivo nos seguintes termos:
“A aquisição de bens e serviços de informática e automação, considerados como bens e serviços comuns nos
termos do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, poderá ser realizada na modalidade
pregão, restrita às empresas que cumpram o Processo Produtivo Básico nos termos desta Lei e da Lei nº 8.387,
de 30 de dezembro de 1991.”
“(...) alterar a parte dispositiva do Acórdão nº 1.707/2005-tCu-Plenário para os seguintes termos:
9.1. conhecer da consulta para respondê-la no sentido de que não é juridicamente possível afastar a aplicação da
regra de preferência de que trata o art. 3º da Lei 8.248/91, alterado pelas Leis 10.176/2001 e 11.077/2004, nos procedimentos licitatórios realizados sob a modalidade Pregão, cujo objeto seja o fornecimento de bens e serviços comuns
de informática e automação, assim definidos pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei 10.520/2002, estando essas licitações franqueadas a todos os interessados, independentemente de desenvolverem bens e produtos com tecnologia
nacional e cumprirem o Processo Produtivo Básico, definido pela Lei nº 8.387, de 30 de dezembro de 1991;
9.2. esclarecer ao Consulente que é juridicamente possível a aquisição de bens e serviços comuns de informática
e automação nas contratações realizadas por intermédio da modalidade Pregão, mesmo nas hipóteses em que
não seja tecnicamente viável a aplicação da regra da preferência a que alude o art. 3º da Lei nº 8.248/1991, com
redação alterada pelas Leis nº 10.176/2001 e 11.077/2004, vale dizer, nas situações em que não haja licitantes que
possam fornecer produto ou serviço com tecnologia desenvolvida no País ou não cumpram o Processo Produtivo
Básico, assim definido pela Lei nº 8.387/1991;
9.3. nos processos licitatórios sob a modalidade Pregão que se destinem ao fornecimento de bens e serviços comuns
de informática e automação, a Administração Pública Federal deverá adotar os seguintes procedimentos:
9.3.1. verificado empate entre propostas comerciais, adotar as providências a seguir:
9.3.1.1. primeiro, analisar se algum dos licitantes está ofertando bem ou serviço que preencha simultaneamente
às seguintes condições, hipótese em que deverá ser aplicado o direito de preferência estabelecido no art. 3º da
Lei 8.248/91, alterado pelas Leis 10.176/2001 e 11.077/2004:
429
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modalidade de licitação pública, está sujeito aos princípios constitucionais da eficiência
e isonomia (art. 37, caput, inciso XXi), devendo ser franqueado a todos os interessados,
independentemente de cumprirem ou não o Processo Produtivo Básico. A regra de
preferência, estabelecida pela redação atualizada do art. 3º da Lei nº 8.248/91, deverá
incidir, portanto, somente quando a Administração Pública, diante de duas propostas
economicamente vantajosas e equivalentes em condições, tiver de optar pela oferta que
cumpra simultaneamente os seguintes requisitos: a) bens e serviços com tecnologia
desenvolvida no País; e b) bens e serviços fornecidos por empresas que cumpram o
Processo Produtivo Básico.
no âmbito dos estados, dos municípios ou do distrito Federal, a contratação de
produtos ou serviços de informática por meio do pregão dependerá do que dispuserem
seus respectivos regulamentos.
É certo, no entanto, que bens ou serviços de informática muito complexos não
podem ser contratados por meio de pregão, devendo a definição de que o produto ou
serviço é comum ser demonstrada tecnicamente dentro do processo de pregão.
7.7.13.4 Pregão e margem de preferência prevista na Lei nº 12.349/2010
diferentemente do que ocorre com o direito de preferência aplicável aos bens
e serviços de informática e automação previsto no art. 3º da Lei nº 8.248/1991, em
que o seu exercício está condicionado à ocorrência de empate no certame licitatório,
fato incomum quando é adotado o pregão, a margem de preferência, criada pela Lei
nº 12.349/2010, para a promoção do desenvolvimento nacional, não encontra obstáculo
nessa modalidade de licitação.
Pelo contrário, a própria Lei nº 12.349/2010 estabelece em seu art. 2º que é empregável o pregão à margem de preferência.
será preciso, entretanto, que o pregoeiro bem como os participantes do processo
seletivo estejam atentos para a circunstância de que o vencedor da concorrência poderá
não ser aquele que tenha oferecido o menor lance nominal, mas sim o que ofertou o
menor preço ajustado pela margem de preferência do produto ou serviço.
Lembro que a margem de preferência deverá incidir sobre o preço dos produtos
manufaturados e serviços estrangeiros no limite de até 25%, consoante for definido
pelo Poder executivo por produto ou serviço, sempre tendo em vista a promoção do
desenvolvimento nacional.
a) bens e serviços com tecnologia desenvolvida no Brasil, a ser devidamente comprovada pelo interessado,
conforme dispõe o art. 9º da Lei 10.520/2002, c/c o art. 45, §2º, da Lei 8.666/93;
b) bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, na forma definida pelo Poder Executivo
(Lei nº 8.387/1991);
9.3.1.2. persistindo o empate entre as melhores propostas licitantes, ou comprovada a inviabilidade da aplicação
da regra de preferência estabelecida pela redação atualizada do art. 3º da Lei nº 8.248/1991, proceder ao sorteio
da oferta que atenderá ao interesse público, observado o disposto no art. 45, §2º, da Lei 8.666/93, aplicável subsidiariamente ao Pregão por força do art. 9º da Lei 10.520/2002;
9.4. recomendar à Casa Civil da Presidência da república que harmonize o texto do §3º do art. 3º do decreto
3.555/2000, introduzido pelo decreto 3.693/2000, com o texto do §3º do art. 3º e seus parágrafos da Lei 8.248/1991,
na redação dada pelas Leis 10.176/2001 e 11.077/2004.” (tCu. Acórdão nº 2.138/05, Plenário. DOU, 23 dez. 2005).
CAPítuLo 7
LiCitAção
7.7.13.5 Procedimento do pregão
Ao afirmamos que o pregão é nova modalidade de licitação, isto importa em
que ele observa procedimento diverso do adotado pelas modalidades previstas na Lei
nº 8.666/93.
de acordo com a Lei de Licitações (art. 43), a concorrência, que serve de parâmetro
para as demais modalidades, deve observar o seguinte procedimento:
editAL HABiLitAção JuLGAmento HomoLoGAção AdJudiCAção
o pregão promove algumas alterações nesse procedimento. essas alterações
lograram tornar essa modalidade muito mais célere do que as modalidades da Lei
nº 8.666/93.
A primeira inovação do pregão em relação ao procedimento acima descrito
consiste na inversão das fases da habilitação e do julgamento. É sabido que a fase da
habilitação costuma ser a que mais causa embaraços em uma licitação. É normalmente
nesta fase da licitação onde costumam ocorrer a maior parte dos recursos, é nela onde
é proposta a maioria dos mandados de segurança. A solução para resolver esses problemas foi alterar o procedimento a ser observado no pregão, fazendo com que a fase
da habilitação somente se realize após o julgamento das propostas. desse modo, as três
primeiras etapas da fase externa do pregão observam a seguinte ordem:
editAL JuLGAmento HABiLitAção
Conforme visto, a primeira grande inovação do pregão consiste na realização
do julgamento antes da habilitação. A segunda inovação consiste na combinação de
propostas escritas com lances verbais. A rigor, os licitantes apresentam suas propostas
por escrito, em envelopes lacrados. durante a sessão pública do pregão, será promovida a abertura dos envelopes contendo as propostas, e alguns dos licitantes serão
convocados a apresentar lances verbais. no pregão, os lances verbais são apresentados
pelos licitantes a fim de reduzir a proposta de menor preço até então apresentada, ao
contrário do leilão, em que os licitantes são convidados a apresentar lances maiores.
essa distinção entre o pregão e o leilão está ligada ao fato de que este último destina-se
à alienação de bens; e o pregão, ao contrário, à contratação de bens ou serviços comuns,
o que justifica o menor preço.
essas particularidades do pregão fazem com que ele seja a modalidade de licitação mais célere, além de ser a que mais favorece a redução de preços. estas são, então,
as duas principais características do pregão: 1. celeridade em seu processamento; 2.
redução de preço nas propostas dos licitantes.
7.7.13.6 Fase interna do pregão
A Lei nº 10.520/02 corrige o entendimento segundo o qual a licitação se inicia com
a divulgação do edital. Ao dispor sobre a fase preparatória do pregão, o art. 3º da Lei
do Pregão bem demonstra que, antes mesmo da sua divulgação, deve o administrador
público saber que a licitação já se encontra em curso, o que exigirá desse administrador
profundo cuidado com as medidas a serem adotadas.
431
432
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
É sabido que muitas licitações geram inúmeras dificuldades tanto para os licitantes
quanto para a própria Administração Pública. Em muitas situações, essas dificuldades
decorrem de falhas verificadas na fase preparatória, também denominada fase interna
da licitação, falhas que geram dificuldades às vezes insuperáveis para a Administração
Pública.
Ao dispor de forma detalhada sobre a fase preparatória do pregão, a lei objetiva
evitar essas falhas, de modo a tornar a condução da licitação um processo sem maiores
tormentos.
devem ser observadas as seguintes exigências na fase preparatória do pregão,
conforme definidos pelo art. 3º da Lei nº 10.520/02:
I - a autoridade competente justificará a necessidade de contratação e definirá o objeto do
certame, as exigências de habilitação, os critérios de aceitação das propostas, as sanções
por inadimplemento e as cláusulas do contrato, inclusive com fixação dos prazos para
fornecimento;
II - a definição do objeto deverá ser precisa, suficiente e clara, vedadas especificações que,
por excessivas, irrelevantes ou desnecessárias, limitem a competição;
III - dos autos do procedimento constarão a justificativa das definições do objeto e os
indispensáveis elementos técnicos sobre os quais estiverem apoiados, bem como o orçamento, elaborado pelo órgão ou entidade promotora da licitação, dos bens ou serviços a
serem licitados; e
iv - a autoridade competente designará, dentre os servidores do órgão ou entidade promotora da licitação, o pregoeiro e respectiva equipe de apoio, cuja atribuição inclui, dentre
outras, o recebimento das propostas e lances, a análise de sua aceitabilidade e sua classificação, bem como a habilitação e a adjudicação do objeto do certame ao licitante vencedor.
durante a fase preparatória, deve, portanto, a Administração Pública dar atenção
especial aos seguintes aspectos:
1. Necessidade de justificar a contratação a ser celebrada, de modo a evitar desperdícios ou excessos;
2. Definição precisa do objeto — bem ou serviço — a ser contratado;
3. Indicação dos elementos técnicos de que se valeu a Administração para definir
o objeto e elaboração de orçamento, que deverá refletir a realidade do mercado
em que se busca contratar;
4. indicação do pregoeiro e de sua equipe de apoio.
no plano federal, conforme já mencionado, vigora o decreto nº 3.555/00, que
regulamenta o pregão. Ao dispor sobre a fase preparatória do pregão, o regulamento
federal — em seu Anexo i, art. 8º, inciso i — exige a elaboração de documento denominado termo de referência.
A função do termo de referência é indicar os “elementos capazes de propiciar a
avaliação do custo pela Administração, diante de orçamento detalhado, considerando
os preços praticados no mercado, a definição dos métodos, a estratégia de suprimento
e o prazo de execução do contrato”.
este documento é da mais alta importância para a realização da sessão pública
do pregão. Conforme examinaremos adiante, a expectativa, em relação ao pregão, é a
de que, ao final da sessão pública, o pregão já esteja encerrado e já se conheça o licitante
vencedor, aquele a quem foi adjudicado o objeto licitado. É imprescindível, portanto, que
o pregoeiro disponha, durante a sessão pública, de elementos que definam detalhadamente o objeto licitado, e que lhe permitam tomar todas as decisões necessárias acerca
CAPítuLo 7
LiCitAção
da classificação das propostas. Desse modo, uma das informações mais importantes a
ser indicada no termo de referência é o “orçamento detalhado, considerando os preços
praticados no mercado”.
7.7.13.7 Pregoeiro
nos termos da Lei nº 8.666/93, para as modalidades nela reguladas (concorrência, tomada de preços etc.), cabe a uma comissão composta por servidores da unidade
administrativa contratante o encargo de conduzir a licitação, devendo esta comissão
habilitar os licitantes e classificar suas propostas. No caso do pregão, a responsabilidade
pela sua condução é de um único agente, denominado pregoeiro. A ele compete o
dever de classificar as propostas, habilitar o licitante a ser contratado e adjudicar-lhe
o objeto da licitação.
esses atos devem ser praticados por um só agente, e não por uma comissão. todavia,
ainda que o pregoeiro tenha o dever e a responsabilidade de decidir sozinho as questões
que lhe são apresentadas, ele conta com uma equipe de apoio para auxiliá-lo na prática
de todos os atos de sua competência.
A equipe de apoio deverá ser integrada, em sua maioria, por servidores ocupantes de cargo efetivo ou emprego da Administração, preferencialmente pertencentes
ao quadro permanente do órgão ou da entidade promotora do pregão, para prestar a
necessária assistência ao pregoeiro. no âmbito do ministério da defesa, o art. 3º, da Lei
nº 10.520/02, determina que as funções de pregoeiro e de membro da equipe de apoio
poderão ser desempenhadas por militares.
nos termos do art. 9º do decreto nº 3.555/00, as atribuições do pregoeiro incluem:
i - o credenciamento dos interessados;
ii - o recebimento dos envelopes das propostas de preços e da documentação de habilitação;
III - a abertura dos envelopes das propostas de preços, o seu exame e a classificação dos
proponentes;
iv - a condução dos procedimentos relativos aos lances e à escolha da proposta ou do
lance de menor preço;
v - a adjudicação da proposta de menor preço;
vi - a elaboração de ata;
vii - a condução dos trabalhos da equipe de apoio;
viii - o recebimento, o exame e a decisão sobre recursos; e
iX - o encaminhamento do processo devidamente instruído, após a adjudicação, à autoridade superior, visando a homologação e a contratação.
7.7.13.8 Fase externa do pregão
A fase externa do pregão inicia-se pela divulgação do edital.
nos termos da Lei nº 10.520/02, a convocação dos interessados será efetuada
por meio de publicação de aviso em diário oficial do respectivo ente federado ou, não
existindo, em jornal de circulação local, e facultativamente, por meios eletrônicos e
conforme o vulto da licitação, em jornal de grande circulação.
O Decreto nº 3.555/00, em seu Anexo I, art. 11, define a forma de divulgação do
pregão, tendo adotado o valor orçado pela Administração Pública como critério para
definir essa divulgação nos seguintes termos:
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
a) para bens e serviços de valores estimados em até r$160.000,00 (cento e sessenta mil reais):
1. Diário Oficial da União; e
2. meio eletrônico, na internet;
b) para bens e serviços de valores estimados acima de r$160.000,00 (cento e sessenta mil
reais) até r$650.000,00 (seiscentos e cinqüenta mil reais):
1. Diário Oficial da União;
2. meio eletrônico, na internet; e
3. jornal de grande circulação local;
c) para bens e serviços de valores estimados superiores a r$650.000,00 (seiscentos e
cinqüenta mil reais):
1. Diário Oficial da União;
2. meio eletrônico, na internet; e
3. jornal de grande circulação regional ou nacional;
do edital e do aviso que divulgam a realização do pregão, constarão, além da
definição precisa, suficiente e clara do objeto, a indicação dos locais, dias e horários em
que poderá ser lida ou obtida a íntegra do edital, e o local onde será realizada a sessão
pública do pregão.
Cabe ao edital fixar o local, a data e o horário da sessão pública. Entre a divulgação do edital e a realização da sessão deverá decorrer prazo não inferior a oito dias
úteis, contados da publicação do aviso.
no dia, hora e local designados pelo edital, será realizada sessão pública para
recebimento das propostas. Antes de esta sessão ser iniciada, deve o licitante, ou seu representante, identificar-se e, se for o caso, comprovar a existência dos necessários poderes
para formulação de propostas e para a prática de todos os demais atos inerentes ao
certame. trata-se da oportunidade em que o licitante, ou seu representante, deve proceder ao respectivo credenciamento.
o objetivo de credenciamento é comprovar se o interessado presente possui
poderes para representar a empresa.
no caso de sociedades limitadas, são elas representadas por seus gerentes. em
relação às sociedades anônimas, a representação da empresa cabe aos seus diretores.
desse modo, devem os gerentes de sociedades limitadas e os diretores das sociedades
anônimas apresentar os documentos — cópias de contrato social ou atas de assembleias
gerais — que demonstrem que os interessados têm poderes para atuar em nome das
sociedades que afirmam representar. Além dos próprios administradores (gerentes
ou diretores), o pregoeiro somente deve considerar apto a apresentar propostas, e,
portanto, a promover o credenciamento daqueles que apresentem procuração com os
poderes necessários para apresentar propostas em nome dos licitantes e para a prática
dos demais atos que irão compor a licitação.
encerrado o credenciamento, será declarada aberta a sessão pública do pregão.
A sessão pública do pregão objetiva promover a classificação das propostas dos
licitantes e verificar se o vencedor atende às exigências de habilitação previstas no edital. A rigor, o pregão foi criado com o objetivo de propiciar ao administrador público
nova modalidade de licitação que tenha como principal característica a celeridade. A
expectativa é de que, ao final da sessão pública, já se saiba quem venceu a licitação e
se esse licitante atende às exigências de habilitação, de modo que a ele possa ser adjudicado o objeto licitado.
CAPítuLo 7
LiCitAção
declarada aberta a sessão pública, deverá ela iniciar-se com o recebimento das
propostas e da documentação de habilitação dos licitantes. os interessados ou seus representantes legais entregarão ao pregoeiro, em dois envelopes separados, a proposta de
preços e a documentação de habilitação. na face externa de cada envelope deverão ser
indicadas, respectivamente, as palavras ProPostA e doCumentAção.
em seguida, o pregoeiro procederá à abertura dos envelopes contendo as propostas
de preços e classificará o autor da proposta de menor preço e aqueles que tenham apresentado propostas em valores sucessivos e superiores em até 10%, relativamente à de
menor preço.
Quando não forem verificadas, no mínimo, três propostas escritas de preços nas
condições definidas acima — pelo menos três propostas com diferença de preço não
superior a 10% em relação à de menor preço —, o pregoeiro classificará as melhores
propostas subsequentes, até o máximo de três, para que seus autores participem dos
lances verbais, quaisquer que sejam os preços oferecidos nas propostas escritas.
distintamente do leilão, em que o leiloeiro faz indagação genérica aos presentes
de quem dá a maior oferta, o pregoeiro — no pregão — convidará individualmente os
licitantes classificados, de forma sequencial, a apresentar lances verbais, a partir do autor
da proposta classificada de maior preço e os demais, em ordem decrescente de valor.
o pregoeiro deverá promover tantas rodadas — em que ele indagará individualmente de cada licitante classificado — quantas necessárias, e somente poderá encerrar a
fase de lances verbais quando todos os que dela participaram manifestarem sua intenção
de não mais reduzirem suas propostas.
o licitante não está obrigado a apresentar lances verbais. se ele desistir de apresentar o lance verbal quando convocado pelo pregoeiro, será apenas excluído dessa
fase da licitação, mas não do processo. isto importa em dizer que sua proposta escrita
continua válida.
Caso não se realizem lances verbais, será verificada a conformidade entre a proposta escrita de menor preço e o valor estimado para a contratação. nesta hipótese,
o pregoeiro está autorizado a negociar diretamente com o autor da menor proposta e
verificar a possibilidade de esta ser reduzida.
Para a Administração, essa proposta reduzida pode vir a ser conveniente mesmo
na eventualidade de o licitante A ser posteriormente inabilitado, haja vista a possibilidade de ser tomada como parâmetro para a contratação a ser realizada.
É importante observar que a classificação de alguns licitantes para a fase de
lances verbais não importa em desclassificação automática dos demais licitantes. Esse
aspecto é importante porque, se todos os que participarem dos lances verbais vierem a
ser inabilitados, poderá o pregoeiro, observada a ordem de classificação, convocar os
demais licitantes que não participaram dos lances verbais e verificar a conformidade
entre a proposta escrita de menor preço e o valor estimado para a contratação.
Para situações como essas, o decreto nº 3.555/00 expressamente admite a possibilidade de o pregoeiro negociar com o licitante a redução de sua proposta. Assim sendo,
se não for obtido preço satisfatório, após a negociação, poderá o pregoeiro propor à
autoridade competente a revogação do pregão e, eventualmente, realizar-se outro. se for
obtido preço satisfatório, será o objeto do pregão adjudicado em favor desse licitante com
vista à sua contratação. em qualquer dessas duas hipóteses, a decisão pela revogação
do pregão, ou pela contratação, deve ser motivada e, caso o pregoeiro opte pela adjudicação do pregão em favor daquele que tenha apresentado a melhor proposta, deverá
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
436
a decisão indicar: 1. por que ele considera que o preço obtido do licitante é razoável; e
2. por que é mais conveniente contratar com o licitante que não tenha participado dos
lances verbais ao abrir novo pregão.
A ausência do licitante, durante a fase de lances verbais, pode ser entendida como
desistência tácita do direito de apresentar lances verbais e, igualmente, do direito de
recorrer de qualquer ato praticado durante a sessão pública. Conforme visto, o licitante
não está obrigado a apresentar lances verbais. Ainda que haja interesse por parte da
Administração Pública de que os interessados estejam presentes à sessão pública, tanto
que é exigido deles o credenciamento prévio, o licitante não está obrigado a apresentar
lance verbal. Desse modo, caso o licitante classificado para a fase de lances verbais venha
a se ausentar da sessão pública, sua proposta por escrito é válida e pode vir a ser declarada vencedora, caso nenhum dos demais licitantes convocados apresente lance verbal.
A necessidade de credenciamento exigida tanto pela Lei nº 10.520/02, quanto pelo
decreto nº 3.555/00, está diretamente ligada à apresentação de lances. se não houver
esse interesse por parte do licitante, hipótese aplicável às propostas enviadas por via
postal, não há que se exigir a sujeição do representante da empresa a esse procedimento.
Acerca do recebimento de propostas pela via postal, devemos reconhecer — e modificar
nosso entendimento — passando a admitir essa possibilidade como forma de ampliar a
participação de interessados que não possam ou não queiram se deslocar e se fazerem
presentes à sessão pública. o edital do pregão deve, desse modo, indicar os prazos e
as condições em que serão recebidas as propostas a serem enviadas pela via postal.
Caso a Administração utilize o pregão, o único e exclusivo critério para julgar
proposta a ser admitido será o menor preço. não se admite, assim, qualquer outro critério
para julgar propostas em pregão.
declarada encerrada a etapa competitiva e ordenadas as propostas, o pregoeiro
examinará a aceitabilidade da proposta primeiro classificada, quanto ao objeto e ao
valor, decidindo motivadamente a respeito. Será aceita e, portanto, classificada em
primeiro lugar a proposta, caso seja verificado que o produto ofertado pelo licitante
melhor classificado atende às exigências do edital e o seu preço é adequado ao praticado
no mercado. Caso contrário, vale dizer, se o objeto da proposta desse licitante não
atender às exigências do edital, ou se o seu preço não for compatível com os preços de
mercado, será a proposta desse licitante desclassificada. Sendo esta a hipótese, idêntico
procedimento será adotado em relação ao que, após os lances verbais, apresentara a
segunda melhor proposta. De qualquer modo, seja a proposta classificada ou desclassificada, a decisão do pregoeiro quanto à classificação ou desclassificação será motivada
e produzida ainda durante a sessão pública. vê-se como é importante o documento
denominado termo de referência — elaborado na fase interna — para que as decisões
do pregoeiro sejam bem fundamentadas.
Se for aceitável a proposta de menor preço, isto é, se ela for classificada, será aberto
o envelope contendo a documentação de habilitação do licitante que a tiver formulado,
para confirmação das suas condições habilitatórias.221
221
sobre a aplicação subsidiária das disposições da Lei nº 8.666/93 à modalidade pregão, ver stJ:
“direito Administrativo. medida cautelar. Agravo de instrumento. Pregão. Leis nº 8.666/93 e 10.520/02. Cumulação de exigências. impossibilidade (artigo 31, §2º da Lei de Licitações).
i - À licitação modalidade pregão, aplicam-se, subsidiariamente, disposições da Lei nº 8.666/93.
CAPítuLo 7
LiCitAção
eis importante aspecto do pregão, pois enquanto nas demais modalidades deve
a comissão promover a habilitação ou inabilitação de todos os licitantes, no pregão,
em função de ter ocorrido a inversão de fases, o pregoeiro somente irá promover a
habilitação do licitante melhor classificado.
Constatado o atendimento das exigências fixadas no edital, o licitante será declarado vencedor, sendo-lhe adjudicado o objeto do certame.
Ao contrário, se esse licitante desatender às exigências habilitatórias, o pregoeiro
examinará a oferta subsequente, verificando a sua aceitabilidade e procedendo à habilitação do proponente, na ordem de classificação, e assim sucessivamente, até a apuração
de uma proposta que atenda ao edital, sendo o respectivo licitante declarado vencedor
e a ele adjudicado o objeto do certame.
Desse modo, durante a sessão pública do pregão, além da classificação, deverá
ocorrer a habilitação e a adjudicação do objeto da licitação em favor daquele que tenha
apresentado a melhor proposta e tenha atendido às exigências de habilitação.
É absolutamente legítimo ao pregoeiro interromper a sessão a fim de serem realizadas diligências. estas têm o objetivo de esclarecer alguma dúvida do pregoeiro que
não possa ser resolvida durante a própria sessão.
Evidente que o pregoeiro deve adotar todas as providências a fim de evitar a
interrupção da sessão pública. todavia, se a realização de diligências for indispensável,
poderá a sessão pública ser interrompida a fim de, por exemplo, o pregoeiro verificar se
o bem a ser fornecido pelo vencedor atende às especificações do edital, ou mesmo para
esclarecer algum fato pertinente à documentação apresentada pelo vencedor acerca de
sua habilitação.
Realizada a diligência e esclarecidos os fatos que a justificaram, deverá o pregoeiro
notificar os licitantes sobre a data, horário e local onde será dado prosseguimento à sessão
pública.
A Lei nº 10.520/02 dispõe que a manifestação da intenção de interpor recurso será
feita no final da sessão, com registro em ata da síntese das suas razões, podendo os
interessados juntar memoriais no prazo de três dias úteis. A bem da verdade, ao final
da sessão, o interessado não irá apenas “manifestar sua intenção de recorrer”. nesse
momento, a manifestação oral — que será registrada em ata — do licitante corresponderá ao próprio recurso, podendo ele, se quiser, juntar memoriais.222
Ao interpor, oralmente, seu recurso, o licitante deverá, também oralmente, indicar
as razões pelas quais recorre.
222
ii - o artigo 31, §2º da Lei de Licitações determina que a Administração eleja um dos três requisitos, na fase de
habilitação, em termos de exigência de comprovação da qualificação econômico-financeira da empresa licitante,
para depois estabelecer que tal requisito também será suficiente a título de garantia ao contrato a ser posteriormente celebrado.
iii - Ao cumular dois requisitos, um na fase de habilitação, outro na fase do contrato, a Administração culminou
por afrontar o supracitado dispositivo da Lei nº 8.666/93, deixando ainda de observar o disposto no artigo 5º, i
da Lei nº 10.520/02, devendo ser garantida à empresa recorrente, a não exigência da garantia na fase do contrato.
iv - recurso parcialmente provido”. (resp nº 822.337-ms, 1ª turma. rel. min. Francisco Falcão. Julg. 16.5.2006.
DJ, 1º jun. 2006)
sobre a tempestividade da interposição de recurso no pregão, stJ: “Administrativo. Licitação. Pregão. recurso
administrativo. tempestividade. 1. o recurso administrativo no procedimento licitatório na modalidade ‘pregão’ deve ser interposto na própria sessão. o prazo de três dias é assegurado apenas para oferecimento das
razões. dessarte, se manejado a posteriori, ainda que dentro do prazo de contra-razões, revela-se intempestivo.
inteligência do artigo 4º, Xviii, da Lei nº 10.520/2002. 2. recurso especial provido” (resp nº 817.422-rJ, Corte
especial. rel. min. Castro meira. Julg. 28.3.2006. DJ, 05 abr. 2006).
437
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Questão interessante consiste em saber se o recorrente estará limitado, em seu
memorial, às razões que aduziu oralmente e que foram registradas em ata. Parece-nos
que os princípios da ampla defesa, da recorribilidade e do contraditório indicam ser
cabível, no memorial a ser juntado pelo recorrente, a indicação de novas razões além
daquelas já indicadas na sessão pública. Ademais, o memorial será elaborado, provavelmente, por advogado que, certamente, encontrará razões para o recurso não indicadas
pelo licitante durante a sessão. Assim, se o recorrente, na sessão pública, manifestou sua
intenção de recorrer contra o ato que habilitou o licitante vencedor e indicou as razões
A e B como fundamento de seu recurso, poderá ele indicar outras razões além dessas
em seu memorial. não nos parece, todavia, possível que o recorrente tenha indicado
a intenção de recorrer contra a habilitação do vencedor e, em seu memorial, queira
impugnar a classificação desse mesmo licitante. Ou seja, o memorial não pode dar ao
recurso alcance maior do que o que a ele foi dado durante a sessão pública, transformando recurso contra habilitação em recurso contra classificação, por exemplo. Mas,
se foi interposto recurso contra a habilitação do vencedor pelos fundamentos A e B,
poderá o memorial indicar outros fundamentos a fim de que o vencedor seja inabilitado.
o recurso contra decisão do pregoeiro não terá efeito suspensivo. Assim sendo,
os atos do processo do pregão devem ser praticados normalmente, mesmo que ainda
exista recurso pendente de julgamento. enquanto não julgado o recurso, todavia, não
pode ser assinado o contrato.
deve ser observado, todavia, que se ocorrer o acolhimento de recurso, serão
considerados nulos os atos que tenham decorrido do ato recorrido, ressalvados aqueles
suscetíveis de aproveitamento.
incumbe ao pregoeiro a prática de todos os atos a serem realizados durante a
sessão pública do pregão. A sessão pública será concluída após encerrada a ocasião
para a interposição dos recursos. registrados todos os atos na ata da sessão pública,
será ela encerrada.
se tiverem sido interpostos recursos, serão eles decididos, em momento oportuno, pela autoridade competente, conforme definido nas normas sobre a organização
do órgão ou entidade que realize o pregão.
decididos os recursos, caso tenham sido interpostos, e constatada a regularidade
dos atos procedimentais, a autoridade competente homologará a adjudicação para determinar a contratação.
7.7.13.9 Contratação decorrente do pregão
Homologada a licitação pela autoridade competente, o adjudicatário será convocado para assinar o contrato no prazo definido no edital.
o prazo de validade das propostas, prazo dentro do qual estão os licitantes
obrigados a manter suas propostas, será fixado no edital do pregão. Diferentemente
do que ocorre com as licitações da Lei nº 8.666/93, em que este prazo é sempre de 60
dias e decorre da própria lei, no pregão cabe ao edital indicar o prazo de validade das
propostas, que será de 60 dias somente se o edital não tiver fixado prazo diverso.
Como condição para celebração do contrato, o licitante vencedor deverá manter as mesmas condições de habilitação. Caso o adjudicatário não apresente situação
regular, no ato da assinatura do contrato, será convocado outro licitante, observada a
CAPítuLo 7
LiCitAção
ordem de classificação, para celebrar o contrato, e assim sucessivamente, sem prejuízo
da aplicação das sanções cabíveis.
Se o licitante vencedor recusar-se a assinar o contrato, injustificadamente, ficará
ele impedido de licitar e contratar com a união, estados, distrito Federal ou municípios,
pelo prazo de até cinco anos, sem prejuízo das multas previstas no edital e no contrato
e das demais cominações legais. Além disso, caso cadastrado, ele será descredenciado
de qualquer sistema de cadastramento de fornecedores a que esteja vinculado.
essas sanções serão também aplicadas ao licitante que apresente documentação
falsa exigida para o certame, enseje o retardamento da execução de seu objeto, não
mantenha a proposta, falhe ou fraude na execução do contrato, comporte-se de modo
inidôneo ou cometa fraude fiscal.
7.7.13.10 Pregão eletrônico
o pregão admite duas formas: presencial e eletrônica.223 Para a primeira, são
aplicáveis além da Lei nº 10.520/02, o decreto nº 3.555/00. o pregão eletrônico é disciplinado pela mencionada Lei nº 10.520/02 e pelo decreto nº 5.450/05.
o pregão presencial tem-se revelado um dos instrumentos mais modernos para
a contratação de bens e de serviços comuns. suas principais vantagens são a celeridade
e a redução de preços, que tem sido obtida, sobretudo, na fase de lance.
Com a edição do decreto nº 5.450/05, busca-se trazer para a Administração
Pública224 as vantagens da virtualidade. destaca-se, dentre elas, a ampliação da competitividade induzida pela redução dos custos por parte dos licitantes, que não mais
precisam se deslocar ao local da realização da sessão pública da licitação para apresentar
suas propostas e lances, bem como pela facilidade no acompanhamento, pela internet,
de todo o processo do pregão eletrônico.
Não obstante as falhas que possam ser identificadas nos sistemas e nos procedimentos desta nova modalidade de licitação,225 não temos dúvida, no que concerne aos
preços contratados, quanto à sua eficácia. É necessário apenas atentar para problemas
de qualidade dos produtos e dos serviços e cuidar para que a busca por preços sempre
decrescentes não importe em igual redução da qualidade do que se contrata.
223
224
225
É regra geral a utilização do pregão eletrônico para aquisição de bens e serviços comuns por parte de instituições públicas, nelas inclusas agências reguladoras, sendo o uso do pregão presencial hipótese de exceção, a ser
justificada no processo licitatório (Informativo de Jurisprudência nº 83, do TCU, sobre licitações e contratos).
nos autos do tC-017.907/2009-0, o tCu recomendou ao Conselho nacional de Justiça que os órgãos do Poder
Judiciário, embora não se encontrem vinculados ao decreto nº 5.450/2005, motivem expressamente a escolha
do pregão presencial na contratação de bens e serviços comuns de TI, sob pena de se configurar possível ato de
gestão antieconômico (Acórdão nº 1.515/2011, Plenário).
mediante o Acórdão nº 1.674/2010, Plenário, o tCu concluiu que em pregões eletrônicos conduzidos via portal
Comprasnet “a) é possível aos usuários de dispositivos de envio automático de lances (robôs) a remessa de lances
em frações de segundo após o lance anterior, o que ocorre durante todo o período de iminência do pregão; b) com
a possibilidade de cobrir lances em frações de segundo, o usuário do robô pode ficar à frente do certame na maior
parte do tempo, logrando assim probabilidade maior (e real) de ser o licitante com o lance vencedor no momento
do encerramento do pregão, que é aleatório; c) ciente dessa probabilidade, que pode chegar a ser maior que 70%,
o licitante usuário do robô pode simplesmente cobrir os lances dos concorrentes por alguns reais ou apenas centavos, não representando, portanto, vantagem de cunho econômico para a Administração”. em sede de processo
de monitoramento da referida deliberação, o TCU, entendeu que a aludida ocorrência configura inobservância
do princípio constitucional da isonomia, visto que “a utilização de software de lançamento automático de lances
(robô) confere vantagem competitiva aos fornecedores que detêm a tecnologia em questão sobre os demais licitantes”. o tribunal assinou prazo de 60 dias para que o órgão responsável criasse mecanismos inibidores do uso
de dispositivos de envio automático de lances em pregões eletrônicos (Acórdão nº 2.601/2011, Plenário).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o decreto nº 5.450/05 disciplina as medidas preliminares, pertinentes à fase
preparatória do pregão, bem como o procedimento a ser observado. Apresentamos,
em seguida, as principais etapas desse procedimento.
o pregão eletrônico, no âmbito federal, será conduzido pelo órgão ou entidade
promotora da licitação, com apoio técnico e operacional da secretaria de Logística e
tecnologia da informação do ministério do Planejamento, orçamento e Gestão, que
atuará como provedor do sistema eletrônico para os órgãos integrantes do sistema de
serviços Gerais (sisG), que compreende os órgãos da Administração Pública federal
direta, autarquias e fundações públicas federais.
A secretaria de Logística e tecnologia da informação do ministério do Planejamento, orçamento e Gestão, que atua como provedora, é responsável pelo prévio
credenciamento dos pregoeiros, dos membros das equipes de apoio, bem como dos
licitantes que intentem participar dos pregões eletrônicos.
O credenciamento é feito pela atribuição de chave de identificação e de senha,
pessoal e intransferível, para acesso ao sistema eletrônico.
diversos procedimentos, em especial aqueles pertinentes à fase interna ou preparatória do pregão presencial, são aplicáveis à sua forma eletrônica.
A fase externa do pregão eletrônico se inicia com a divulgação do aviso nos termos
e nas condições definidas pelo art. 17 do Decreto nº 5.450/05. O aviso do edital conterá
a definição precisa, suficiente e clara do objeto, a indicação dos locais, dias e horários
em que poderá ser lida ou obtida a íntegra do edital, bem como o endereço eletrônico
onde ocorrerá a sessão pública, a data e hora de sua realização e a indicação de que o
pregão, na forma eletrônica, será realizado por meio da internet.
O prazo fixado para a apresentação das propostas, contado a partir da publicação
do aviso, será definido pelo aviso e não será inferior a oito dias úteis.
Após a divulgação do edital, os licitantes deverão encaminhar proposta com a
descrição do objeto ofertado e o preço e, se for o caso, o respectivo anexo, até a data e
hora marcadas para abertura da sessão, exclusivamente por meio do sistema eletrônico,
quando, então, encerrar-se-á, automaticamente, a fase de recebimento de propostas.
A partir do horário previsto no edital, a sessão pública na internet será aberta por
comando do pregoeiro com a utilização de sua chave de acesso e senha. A partir deste
momento, os licitantes poderão participar da sessão pública na internet, devendo utilizar
sua chave de acesso e senha. o pregoeiro examinará as propostas encaminhadas e promoverá a desclassificação daquelas que não estejam em conformidade com os requisitos
estabelecidos no edital. A desclassificação de proposta será sempre fundamentada e
registrada no sistema, com acompanhamento em tempo real por todos os participantes.
o sistema eletrônico do pregão está programado para ordenar, automaticamente,
as propostas classificadas pelo pregoeiro, sendo que somente estas participarão da fase
de lance.
Classificadas as propostas, o pregoeiro dará início à fase competitiva, quando
então os licitantes poderão encaminhar lances exclusivamente por meio do sistema
eletrônico. no que se refere aos lances, o licitante será imediatamente informado do seu
recebimento e do valor consignado no registro. os licitantes poderão oferecer lances
sucessivos, observados o horário fixado para abertura da sessão e as regras estabelecidas no edital.
durante a sessão pública, os licitantes serão informados, em tempo real, do valor
do menor lance registrado, vedada a identificação do licitante.
CAPítuLo 7
LiCitAção
A etapa de lances da sessão pública será encerrada por decisão do pregoeiro. o
sistema eletrônico encaminhará aviso de fechamento iminente dos lances, após o que
transcorrerá período de tempo de até trinta minutos, aleatoriamente determinado, findo
o qual será automaticamente encerrada a recepção de lances.
Após o encerramento da etapa de lances da sessão pública, o pregoeiro poderá
encaminhar, pelo sistema eletrônico, contraproposta ao licitante que tenha apresentado
lance mais vantajoso, para que seja obtida melhor proposta, observado o critério de
julgamento, não se admitindo negociar condições diferentes daquelas previstas no
edital. A negociação será realizada por meio do sistema, podendo ser acompanhada
pelos demais licitantes.
Encerrada a etapa de lances, o pregoeiro examinará a proposta classificada em
primeiro lugar quanto à compatibilidade do preço em relação ao estimado para contratação e verificará a habilitação do licitante conforme disposições do edital.
A habilitação dos licitantes será verificada por meio do SICAF, nos documentos
por ele abrangidos, quando dos procedimentos licitatórios realizados por órgãos integrantes do sisG ou por órgãos ou entidades que aderirem ao siCAF.
os documentos exigidos para habilitação que não estejam contemplados no
siCAF, inclusive quando houver necessidade de envio de anexos, deverão ser apresentados inclusive via fax, no prazo definido no edital, após solicitação do pregoeiro
no sistema eletrônico.
os documentos e anexos exigidos, quando remetidos via fax, deverão ser apresentados em original ou por cópia autenticada, nos prazos estabelecidos no edital.
se a proposta não for aceitável ou se o licitante não atender às exigências habilitatórias, o pregoeiro examinará a proposta subsequente e, assim sucessivamente, na
ordem de classificação, até a apuração de uma proposta que atenda ao edital.
No caso de contratação de serviços comuns em que a legislação ou o edital exija
apresentação de planilha de composição de preços, esta deverá ser encaminhada de
imediato por meio eletrônico, com os respectivos valores readequados ao lance vencedor.
Constatado o atendimento às exigências fixadas no edital, o licitante será declarado vencedor. Qualquer licitante, então, poderá, durante a sessão pública, de forma
imediata e motivada, em campo próprio do sistema, manifestar sua intenção de recorrer,
quando lhe será concedido o prazo de três dias para apresentar as razões de recurso,
ficando os demais licitantes, desde logo, intimados para, querendo, apresentarem contrarrazões em igual prazo, que começará a contar do término do prazo do recorrente,
sendo-lhes assegurada vista imediata dos elementos indispensáveis à defesa dos seus
interesses. A falta de manifestação imediata e motivada do licitante quanto à intenção
de recorrer importará na decadência desse direito, ficando o pregoeiro autorizado a
adjudicar o objeto ao licitante declarado vencedor.
o acolhimento de recurso resultará na invalidação apenas dos atos insuscetíveis
de aproveitamento.
no julgamento da habilitação e das propostas, o pregoeiro poderá sanar erros
ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos e sua validade
jurídica, mediante despacho fundamentado, registrado em ata e acessível a todos,
atribuindo-lhes validade e eficácia para fins de habilitação e classificação.
decididos os recursos e constatada a regularidade dos atos praticados, a autoridade competente adjudicará o objeto e homologará o procedimento licitatório. Após
a homologação, o adjudicatário será convocado para assinar o contrato ou a ata de
registro de preços no prazo definido no edital.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
442
7.8 tipos de licitação
7.8.1 noções gerais – distinção entre modalidade e tipo de licitação
Ao se falar em modalidade de licitação, indica-se o procedimento a ser seguido
pelo administrador na condução da licitação. Quando se fala em tipo de licitação, ao
contrário, faz-se referência ao critério para julgamento das propostas apresentadas.
o art. 45, em seu §1º, dispõe nos seguintes termos:
Art. 45. (...)
§1º. Para os efeitos deste artigo, constituem tipos de licitação, exceto na modalidade
concurso:
i - a de menor preço – quando o critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração determinar que será vencedor o licitante que apresentar a proposta de acordo com
as especificações do edital ou convite e ofertar o menor preço;
ii - a de melhor técnica;
iii - a de técnica e preço;
iv - a de maior lance ou oferta – nos casos de alienação de bens ou concessão de direito
real de uso.
os tipos de licitação serão, assim, divididos em quatro categorias, a saber:
i - menor preço;
ii - melhor técnica;
iii - técnica e preço; e
iv - maior lance ou oferta.
A rigor, teremos três tipos comuns de licitação (menor preço, melhor técnica e
técnica e preço). A regra será a adoção da licitação do tipo menor preço.226 o último
tipo, de maior lance ou oferta, somente poderá ser utilizado “nos casos de alienação de
bens ou de concessão de direito real de uso”.227
7.8.2 impossibilidade de ser criado novo tipo de licitação que não
tenha sido indicado pela lei
Esses tipos de licitação constituem lista exaustiva. Isto significa dizer que a Administração, ao proceder ao julgamento de qualquer licitação, deverá, obrigatoriamente,
adotar um dos tipos indicados. não é possível, em hipótese alguma, ser utilizado outro
critério de julgamento que não o do menor preço, da melhor técnica, da técnica e preço
ou do maior lance ou oferta.
226
227
tCu. Acórdão nº 195/05, Plenário (DOU, 10 mar. 2005). determinação: “9.7.7. analise individualmente os custos
unitários de propostas apresentadas em licitações realizadas sob o regime de empreitada por preço global, de
forma a viabilizar a aferição do preço global proposto e sua compatibilidade com os valores de mercado, zelar
pelo princípio da economicidade e cumprir o disposto no art. 43, inciso iv, da Lei nº 8.666/93”.
A concessão de direito real de uso é instituto disciplinado pelo art. 7º do decreto-Lei nº 271, de 21.2.1967. deve-se
entender por concessão de direito real de uso o contrato pelo qual a Administração transfere, como direito resolúvel, o uso remunerado ou gratuito de terreno público ou do espaço aéreo que o recobre, para que seja utilizado
com fins específicos por tempo certo ou por prazo indeterminado. Para melhores esclarecimentos sobre a natureza
do instituto da concessão de direito real de uso, aconselhamos a leitura de bibliografia específica sobre o tema:
di Pietro. Direito administrativo; e meireLLes. Direito administrativo brasileiro.
CAPítuLo 7
LiCitAção
A Lei nº 8.987, de 1995, que dispõe sobre concessões e permissões de serviços
públicos, admite, em seu art. 15, outros critérios para julgamento das licitações para
concessões e permissões de serviços públicos. Os critérios definidos na lei de concessões, como é evidente, somente poderão ser utilizados em licitações para concessões e
permissões de serviços públicos. tratam esses contratos de situações tão particulares
no direito Administrativo que mereceram legislação própria. A Lei nº 8.666/93 somente
lhes é aplicável supletivamente.
7.8.3 impossibilidade de serem julgadas as propostas por meio de
critérios subjetivos ou não constantes do edital
Fixados esses parâmetros iniciais sobre o tema, cumpre verificar que a Lei de Licitações (art. 44, §2º) determina que não será considerada “qualquer oferta de vantagem
não prevista no edital ou no convite, inclusive financiamentos subsidiados ou a fundo
perdido, nem preço ou vantagem baseada nas ofertas dos demais licitantes.” Além disso,
o próprio art. 45, caput, fixa que “o julgamento das propostas será objetivo, devendo a
Comissão de licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com
os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de
acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de maneira a possibilitar sua
aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle”.
Assim sendo, cumpre à Administração, no próprio instrumento convocatório,
indicar o tipo de licitação que será adotado.
7.8.4 menor preço – tipo básico de licitação
A Lei nº 8.666/93 dá preferência ao julgamento das licitações pelo critério do menor
preço.228 É evidente que outros elementos, tais como qualidade, durabilidade, garantias
ou aparência do produto ou serviço etc., devem ser considerados ao ser realizada a licitação, ainda que se trate de licitação do tipo menor preço. Porém, nesse tipo de licitação,
o único e exclusivo critério que poderá ser utilizado para determinar se a proposta do
licitante A é melhor que a proposta apresentada pelo licitante B é o seu preço.229
nas licitações do tipo menor preço, em especial naquelas para a contratação de
obras e serviços sob o regime de empreitada por preço global, os responsáveis pela licitação deverão efetuar análise individual dos preços unitários cotados por item. Caso se
verifique sobrepreço em algum item ofertado, deverá ser negociada com a licitante que
formulou a proposta de menor preço nova base condizente com os custos de mercado
e os valores orçados pelo órgão licitador.230
228
229
230
É pacífico o entendimento, no âmbito do TCU, de ser obrigatória a realização de licitação do tipo menor preço
para a contratação de serviços de transporte aéreo, inclusive para a aquisição de passagens aéreas, devendo
ser adotado o critério do maior desconto para julgar as propostas apresentadas. nesse sentido, vide decisão
nº 409/94, Plenário. DOU, 12 jul. 1994.
dispõe o art. 45, §3º, da Lei nº 8.666/93, nos seguintes termos:
“Art. 45. (...)
§3º No caso da licitação do tipo menor preço, entre os licitantes considerados qualificados a classificação se dará
pela ordem crescente dos preços propostos, prevalecendo, no caso de empate, exclusivamente o critério previsto
no parágrafo anterior.”
tCu. decisão nº 820/97, Plenário: “analise individualmente os preços unitários de propostas apresentadas em
licitações realizadas na modalidade de preço global, a fim de que, ao verificar-se a ocorrência de itens com
443
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
444
Para a adequada análise da compatibilidade dos preços unitários e global ofertados
com os observados no mercado, o agente público deverá elaborar orçamento estimativo
e estabelecer, nos termos do que dispõe o inciso X do art. 40 da Lei nº 8.666/93, o critério
de aceitabilidade dos preços unitários e global, permitida a fixação de preços máximos
e vedada a fixação de preços mínimos, critérios estatísticos ou faixas de variação em
relação a preços de referência.231
A verificação da compatibilidade dos preços ofertados muitas das vezes fica
comprometida em razão da má qualidade do orçamento preparado pelos órgãos da
Administração e pela falta de definição de critérios de aceitabilidade de preços unitários. observa-se, frequentemente, que o preço global cotado no certame encontra-se
compatível com o estimado pela Administração, entretanto, a proposta vencedora
consigna preços unitários díspares, alguns abaixo e outros acima dos de mercado, o
que pode trazer prejuízo ao erário, caso sejam aditados após a contratação exatamente
os itens cujos preços encontram-se elevados. Para evitar produtos de má qualidade, o
ato convocatório da licitação deve fazer uma precisa e detalhada descrição do produto
ou serviço que se pretende contratar. Chamamos a atenção apenas para o excesso de
detalhamento, que pode, em alguns casos, resultar em direcionamento de licitação, o
que caracteriza crime. não poucas vezes esse artifício — de serem exigidos requisitos
desnecessários — é utilizado para beneficiar determinado fornecedor.232
A especificação do objeto da licitação deve atender às reais necessidades da Administração. se existe a necessidade de serem adquiridas cadeiras, por exemplo, devem
ser feitas no edital as especificações necessárias para a correta descrição dos produtos
que se pretende adquirir. do contrário, qualquer empresa que apresente proposta para
a venda de qualquer tipo de cadeira, por pior que seja o produto em comparação com os
demais apresentados, obrigará a Administração a classificar a sua proposta em primeiro
lugar se o seu preço for o mais baixo. deve ser sempre lembrado que estamos no campo
do direito público, em que interesses particulares somente poderão ser considerados
se estiverem em perfeita consonância com o interesse público.
7.8.5 melhor técnica e técnica e preço
A Lei de Licitações (vide art. 46) determina que “os tipos de licitação de melhor
técnica ou de técnica e preço serão utilizados exclusivamente para serviços de natureza
predominantemente intelectual,233 em especial na elaboração de projetos, cálculos,
231
232
233
preços manifestadamente superiores aos praticados no mercado, estabeleçam-se, por meio de acordo com a
empresa vencedora do certame, novas bases condizentes com os custos envolvidos, ou, na impossibilidade de
assim agir e desde que não haja prejuízo para a consecução do restante do objeto, procedendo-se às devidas
análises de custo/benefício com relação à realização de nova contratação para execução do item, obedecendo
ainda, a exemplo do ocorrido no Contrato nº 025/95, no item ‘demolição de forro de gesso’, que sofreu aditamento de 87%, ocasionando prejuízo à Administração”.
Acórdãos nº 244/03, nº 957/03 e nº 958/03, todos do Plenário do TCU, determinam a definição em edital dos critérios de aceitabilidade de preços unitários e globais, com a fixação de preços unitários e global máximos, tanto
para as licitações do tipo menor preço unitário quanto para as de menor preço global.
nesse sentido, vide tCu. decisão nº 13/96, Plenário. Ata n. 03/96. no mesmo sentido, igualmente proferida pelo
tCu, decisão nº 201/99, Plenário. DOU, 20 maio 1999.
É importante observar que para a contratação de serviços de natureza predominantemente intelectual, o tCu
possui entendimento no sentido de que a adoção de licitação do tipo técnica e preço é obrigatória. nesse sentido,
vide decisão nº 124/00, Plenário (DOU, 20 mar. 2000):
CAPítuLo 7
LiCitAção
fiscalização, supervisão e gerenciamento e de engenharia consultiva em geral e, em
particular, para a elaboração de estudos técnicos preliminares e projetos básicos e executivos, ressalvado o disposto no §4º do artigo anterior”.234
em relação às compras, como visto, deverá ser utilizada licitação do tipo menor
preço. Porém, no caso específico de contratação de bens e serviços de informática
(art. 45, §4º),235 “a Administração observará o disposto no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23
de outubro de 1991,236 levando em conta os fatores especificados em seu §2º e adotando
obrigatoriamente o tipo de licitação técnica e preço, permitido o emprego de outro tipo de
licitação nos casos indicados em decreto do Poder executivo”237 (grifos nossos).
234
235
236
237
“8.4 recomendar ao Cnd que oriente os responsáveis pelas próximas desestatizações de âmbito federal, no setor
portuário, no sentido de que as licitações visando a contratação de consultorias para a realização dos serviços de
avaliação econômico-financeira sejam do tipo técnica e preço (artigo 46 da Lei nº 8.666/93).”
sobre a obrigação de ser apresentada justificativa circunstanciada para o tipo de licitação técnica e preço, nos
termos do art. 43, §3º, da Lei nº 8.666/93, vide tCu. decisão nº 123/99, 2ª Câmara. DOU, 14 jun. 1999.
o tCu, mediante Acórdão nº 337/05, Plenário (DOU, 07 abr. 2005), determinou a não inclusão nos editais de
licitação, do tipo técnica e preço, de quesito de pontuação pelo tempo de atuação da licitante no ramo de prestação de serviços nas áreas contempladas pela licitação, aferido exclusivamente pela apresentação do contrato
social, por constituir restrição injustificada ao princípio da competitividade, com ofensa ao art. 3º, §1º, I, da Lei
nº 8.666/93. Porém, mediante o Acórdão nº 2.353/2011, Plenário, foi admitida a atribuição de pontuação para o
tempo de atuação da licitante, desde que em limites razoáveis, bem como se for conjugada com outros critérios
que avaliem sua experiência e capacidade.
sobre esse tema, vide decisão tCu nº 641/97, Plenário (DOU, 14 out. 1997), através da qual o tribunal considerou
legítima licitação única para a aquisição de equipamentos e programas de informática. Vide igualmente decisão
nº 441/98, Plenário (DOU, 07 ago. 1998), através da qual o tribunal entendeu existir competição para o licenciamento de uso de programas de computador, devendo, portanto, ser realizada a licitação do tipo técnica e preço.
vide ainda decisão nº 186/99, Plenário (Ata n. 16/99), através da qual o tCu entendeu ser igualmente obrigatória a licitação para a contratação de serviços na área de treinamento, assistência técnica e consultoria na área de
informática. nessa ocasião, manifestou-se o tCu nos seguintes termos:
“o tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo relator, deCide:
8.1 com fulcro no art. 113, §1º, da Lei 8.666/93, conhecer da presente representação para, no mérito, julgá-la
improcedente;
8.2 com fulcro no art. 45 da Lei nº 8.443/92, fixar o prazo de 15 (quinze) dias para que a ECT exclua do contrato
de nº 8.756/96, firmado com a empresa TBA Informática Ltda., caso este tenha sido prorrogado após 31/12/98, os
serviços de assistência técnica e treinamento, haja vista terem sido contratados sem licitação, com inobservância
aos preceitos da Lei nº 8.666/93, uma vez que é possível a competição para a espécie, consoante demonstram
os próprios estudos técnicos daquela empresa pública, devendo, portanto, caso ainda seja de seu interesse, ser
realizado o competente processo licitatório para a contratação dos aludidos serviços, observando-se, nessa
hipótese, todos os dispositivos da mencionada Lei nº 8.666/93;
8.3 encaminhar cópia desta decisão, bem como do relatório e do voto que a fundamentam, à eCt e à empresa
representante.”
A remissão que o citado art. 45, §3º, faz à Lei nº 8.248/91, a Lei da informática, é no sentido de que, na aquisição
de bens e serviços de informática, seja dada preferência aos produzidos ou prestados por empresas brasileiras.
o entendimento atual do tCu é no sentido de que o conteúdo do §4º do art. 45 da Lei nº 8.666/93, em se tratando
de bens e serviços comuns na área de informática, encontra-se superado. nesse sentido, destaco o conteúdo do
Acórdão nº 2.836/2008, Plenário, do qual transcrevemos trecho do voto do relator:
“sobre o art. 45 da Lei de Licitações, saliento que, com os visíveis avanços ocorridos no setor de tecnologia da
informação, o seu §4º, que obriga a Administração Pública a adotar licitação tipo ‘técnica e preço’ para a contratação de serviços de informática, tornou-se superado devido à classificação de muitos desses bens e serviços
como ‘comuns’, de acordo com os entendimentos exarados nos Acórdãos 2.478/2008, 1.172/2008 e 2.138/2005,
todos do Plenário.
Nessas deliberações ficou estabelecido que são considerados comuns aqueles bens e serviços de tecnologia da
informação que possuam padrões de desempenho e de qualidade objetivamente definidos pelo edital, com base
em especificações usuais no mercado. Nesse caso, a proposta vencedora seria a de menor preço, já que essas
licitações são realizadas na modalidade Pregão.
na mesma linha em que me manifestei no voto condutor do Acórdão 2.220/2008, Plenário, entendo que deve ser
estimulada a adoção da modalidade Pregão sempre que possível em razão dos excelentes resultados que essas
licitações vêm apresentando. Porém, quando os serviços de tecnologia da informação licitados apresentam natureza predominantemente intelectual, a entidade deve justificar adequadamente, no processo administrativo, a
opção por licitação tipo ‘técnica e preço’, nos termos do art. 46 da Lei 8.666/93.”
445
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
446
7.8.6 Aquisição de bens e serviços de informática e o direito de
preferência
Questão controvertida, relativamente à contratação de bens e serviços de informática diz respeito à possibilidade jurídica de ser exercido o direito de preferência,
na forma do art. 3º, incisos i e ii, e §§2º e 3º, da Lei nº 8.248/91, com a redação dada
pelas leis nº 10.176/01 e nº 11.077/04.238 isso porque o direito de preferência para bens
e serviços de informática, nos termos da citada Lei nº 8.248/91, será conferido àqueles
produzidos com tecnologia desenvolvida no País ou produzidos de acordo com o
processo produtivo básico.
A Lei nº 8.248/91, que dispõe sobre a capacitação e competitividade do setor de
informática e automação, procedeu à reformulação da Política nacional de informática,
adequando-a às novas regras definidas pela Constituição Federal de 1988. Os mecanismos por ela instituídos constituem, em seu conjunto, verdadeira política pública
setorial, e vão desde a concessão de incentivos fiscais e a atribuição de prioridade em
financiamentos, até a outorga de preferência nas aquisições de bens e serviços de informática realizadas pelo setor público (direito de preferência).
o ponto fulcral dessa discussão é o de saber se esse direito de preferência teria
subsistido após o advento da emenda Constitucional nº 6/95. isso porque o art. 171 da
Constituição Federal, revogado pela citada emenda Constitucional nº 6/95, a par de
definir “empresa brasileira” e “empresa brasileira de capital nacional”, determinava que
o poder público daria tratamento preferencial à empresa brasileira de capital nacional
na aquisição de bens e serviços, observados os termos da lei.
A primeira observação que fazemos a esse respeito é no sentido de que, antes do
advento da emenda Constitucional nº 6/95, o legislador era obrigado a impor à Administração Pública, por meio de legislação específica, preferência na aquisição de bens e
serviços produzidos por empresas brasileiras de capital nacional. seria inconstitucional
legislação que não conferisse tal preferência.
A emenda constitucional não revogou o direito de preferência conferido pela Lei
nº 8.248/91 pelo simples fato de que o texto constitucional modificado possuía como
destinatário certo o legislador. era este obrigado a conferir referida preferência. Após
o advento de referida emenda constitucional, simplesmente desapareceu essa obrigação que se impunha ao legislador. suprimida essa obrigação do texto constitucional, a
questão deve ser examinada sob outra ótica, e em face do texto constitucional vigente.
238
o art. 3º da Lei nº 8.248/91 dispõe:
“Art. 3º os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta ou indireta, as fundações instituídas e
mantidas pelo Poder Público e as demais organizações sob o controle direto ou indireto da união darão preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, observada a seguinte ordem, a:
i - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País;
ii - bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, na forma a ser definida pelo Poder
executivo.
§1º (revogado).
§2º Para o exercício desta preferência, levar-se-ão em conta condições equivalentes de prazo de entrega, suporte
de serviços, qualidade, padronização, compatibilidade e especificação de desempenho e preço.
§3º A aquisição de bens e serviços de informática e automação, considerados como bens e serviços comuns nos
termos do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, poderá ser realizada na modalidade
pregão, restrita às empresas que cumpram o Processo Produtivo Básico nos termos desta Lei e da Lei nº 8.387,
de 30 de dezembro de 1991.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
devemos analisar se o citado direito de preferência subsiste em face à isonomia que
deve haver entre os licitantes (Constituição Federal, art. 37, XXi). Constitui o direito
de preferência afronta ao princípio da isonomia que deve existir entre os licitantes?
É certo, em primeiro lugar, que o conceito de isonomia não deve ser aplicado
de forma a ferir o próprio interesse público. em determinadas situações, no entanto,
circunstâncias ou fatores pessoais específicos devem ser considerados. É assim que,
por exemplo, a legislação admite que se contrate determinado técnico ou empresa em
decorrência de sua notória especialização. A isonomia não deve nunca conduzir ao
exagero de se entender que todos devem ser sempre tratados de forma absolutamente
idêntica. Somente os tratamentos diferenciados não justificados à luz do interesse
público devem ser tidos como inconstitucionais. nesse contexto, atenta o direito de
preferência conferido pela Lei nº 8.248/91 contra a isonomia? o tratamento diferenciado
que é conferido em favor de bens de informática produzidos com tecnologia desenvolvida no País ou produzidos de acordo com processo produtivo básico caracteriza
discriminação não justificada?
A Constituição Federal, em seus artigos 218 e 219, determina — o texto é impositivo — que o estado deverá promover o desenvolvimento tecnológico do País.239 Assim,
considerando-se que o direito de preferência insere-se no contexto de implementação de
política setorial em uma das áreas mais sensíveis para o desenvolvimento tecnológico de
qualquer país que queira ter a pretensão de alcançar patamares tecnológicos modernos,
entendemos ser absolutamente razoável esse tratamento diferenciado — ainda que, em
regra, possa acarretar custos mais elevados aos cofres públicos.240
239
240
dispõem os referidos dispositivos constitucionais nos seguintes termos:
“Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.
§1º A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o
progresso das ciências.
§2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o
desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.
§3º o estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá
aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.
§4º A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País,
formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade
de seu trabalho.
§5º É facultado aos estados e ao distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.
Art. 219. o mercado interno integra patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de
lei federal.”
em sentido absolutamente oposto ao que defendemos, vide comentários de marçal Justen Filho:
“não há mais fundamento constitucional para estabelecer preferência em favor de empresa brasileira. não se
admite sequer regra da preferência em função de a prestação ser produzida no Brasil. de todo o modo, observe-se
que a divergência tem-se desenvolvido a propósito da aplicação de regras que são inválidas.
mais precisamente, não se admitem as soluções contidas na Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991. Além disso,
são totalmente indefensáveis as regras do dec. Fed. 1.070. (...)
Também não se afigura convincente a invocação do art. 219 da CF/88. Alguns sustentaram que essa regra daria
supedâneo a diferenciações entre produtos nacionais e estrangeiros, para fins de licitação.
não parece ser viável esse entendimento. em primeiro lugar, interpretação dessa ordem tornaria inútil o próprio art. 171. Conduziria a supor que todas as diferenciações alicerçadas anteriormente naquele dispositivo
manteriam a vigência em virtude desse outro dispositivo. Enfim, a revogação do art. 171 não alteraria a disciplina
constitucional.
Ao contrário, afigura-se claro que o art. 219 não determina, de modo direto, nenhuma discriminação favorável a
produtos nacionais. determina-se o incentivo, o que não se confunde com o privilégio de contratar com o estado
447
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
448
nesses termos, entendemos que o direito de preferência aqui examinado não
apenas não foi revogado pela emenda Constitucional nº 6/95, como não afronta o
princípio da isonomia que deve existir entre os licitantes.241 isto posto, a Administração
Pública deverá, na contratação de bens e serviços de informática, observar os dispositivos da Lei nº 8.248/91, com as alterações promovidas pela Lei nº 10.176/01 e pela
Lei nº 11.077/04, assim como de sua regulamentação (decreto nº 7.174/2010), quando
se tratar da aquisição de bens e serviços de informática, estabelecendo, no respectivo
edital, critérios claros de julgamento das propostas, consoante prevê o inciso vii do
art. 40 da Lei nº 8.666/93.
A par do direito de preferência previsto na Lei de informática, a inclusão do §12
no art. 3º da Lei nº 8.666/93242 por meio da Lei nº 12.349/2010, criou a possibilidade, nos
casos considerados estratégicos pelo Poder executivo, de a Administração Pública contratar tão somente bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país e produzidos de
acordo com o processo produtivo básico, nas avenças destinadas à implantação, manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia de informação e comunicação.
veja-se que as condições para a restrição repetem literalmente aquelas estabelecidas na Lei nº 8.248/91 para o direito de preferência (bens e serviços com tecnologia
desenvolvida no País e produzidos de acordo com o processo produtivo básico), com
o acréscimo de ser considerado estratégico pelo Governo o sistema de tecnologia de
informação e comunicação desejado.
nos termos apregoados pela exposição de motivos que deu suporte à expedição
da Lei nº 12.349/2010, os sistemas de tecnologia de informação e comunicação seriam
considerados estratégicos “por questões de segurança”. Mais adiante, afirma que “o domínio
pelo País dessas tecnologias é fundamental para garantir a soberania e a segurança nacionais”
(grifos nossos).
A soberania ou a segurança nacional deveria, então, estar na essência do que é
tido como estratégico, segundo a motivação dessa norma jurídica.
sendo a soberania um dos fundamentos do estado democrático de direito e
a segurança nacional uma necessidade para a existência dele, a legitimar inclusive a
intervenção do estado na economia, consoante o art. 173 da Constituição Federal,
teríamos como plenamente justificável a inovação introduzida pela referida norma
para a garantia de ambas.
241
242
em melhores condições. o incentivo pode desdobrar-se por inúmeras vias e através de diferentes instrumentos.
Quando se tratar de contratação administrativa, porém, a regra será a prevalência da proposta mais vantajosa. o
Estado até pode conceder incentivos para a pesquisa científico-tecnológica. Em algumas hipóteses poderá contratar diretamente, com dispensa de licitação. Quando, porém, instaurar-se a licitação, deverá ser julgada segundo
o critério da proposta mais vantajosa. em suma, a proposta mais vantajosa não pode ser legitimada através do
argumento do incentivo à indústria nacional” (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 82-83).
o entendimento vigente na jurisprudência do tribunal de Contas da união é no sentido de que com o advento
da Lei nº 10.176/01 o direito de preferência foi mantido em nosso ordenamento jurídico. ver decisão nº 535/01,
Plenário (DOU, 05 set. 2001) e voto condutor do Acórdão nº 631/04, Plenário (DOU, 09 set. 2004).
“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da
proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será
processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da
moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (...)
§12. nas contratações destinadas à implantação, manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia
de informação e comunicação, considerados estratégicos em ato do Poder executivo federal, a licitação poderá
ser restrita a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos de acordo com o processo produtivo básico de que trata a Lei nº 10.176, de 11 de janeiro de 2001.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
no entanto, conforme o inciso XiX do art. 6º da Lei de Licitações, também incluído
pela multicitada Lei nº 12.349/2010, consideram-se sistemas de tecnologia de informação e comunicação estratégicos os bens e serviços dessas áreas “cuja descontinuidade
provoque dano significativo à administração pública e que envolvam pelo menos um
dos seguintes requisitos relacionados às informações críticas: disponibilidade, confiabilidade, segurança e confidencialidade”.
inexiste, portanto, na lei, qualquer limitação de se utilizar essa vedação de aquisição aos produtos e serviços internacionais exclusivamente para a defesa da soberania
e da segurança nacional, tal como sugeria a exposição de motivos.
Assim, preocupa-nos a amplitude que será dada à definição legal do termo estratégico pelo aplicador na norma, bem como as consequências que poderão advir para
essa relevante atividade econômica em função de uma possível reserva de mercado.
Guardadas as devidas proporções e considerando os diferentes contextos, tememos que
a regra tende a levar a indústria de tecnologia de informação e comunicação nacional a
reviver o lastimável atraso relativo em que se encontrava antes da abertura comercial
ocorrida nos anos 1990.
7.8.7 outras hipóteses de utilização do tipo melhor técnica ou técnica
e preço
excepcionalmente, os tipos de licitação de melhor técnica e de técnica e preço
poderão ser adotados, nos termos do art. 46, §3º, “por autorização expressa e mediante
justificativa circunstanciada da maior autoridade da Administração promotora constante do ato convocatório, para fornecimento de bens e execução de obras ou prestação
de serviços de grande vulto majoritariamente dependentes de tecnologia nitidamente
sofisticada e de domínio restrito, atestado por autoridades técnicas de reconhecida
qualificação, nos casos em que o objeto pretendido admitir soluções alternativas e variações de execução, com repercussões significativas sobre sua qualidade, produtividade,
rendimento e durabilidade concretamente mensuráveis, e estas puderem ser adotadas
à livre escolha dos licitantes, na conformidade dos critérios objetivamente fixados no
ato convocatório”. Cuida-se de hipótese de difícil configuração e que exigirá do administrador a devida justificação do motivo que o levou a adotar outro tipo de licitação
diverso do menor preço, que, como visto, deve ser a regra a ser seguida.
7.8.8 menor preço como critério decisivo, inclusive na licitação de
melhor técnica
tem sido objeto de algumas críticas o fato de que o preço irá, mesmo nas licitações
de técnica ou de técnica e preço, definir a proposta a ser contratada. Essa constatação
decorre do processamento que é definido para o julgamento desses tipos de licitação,
nos termos do art. 46, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº 8.666/93.
observamos, inicialmente, que os mesmos serviços que admitem a licitação do tipo
melhor técnica poderão ser licitados através do tipo técnica e preço. A escolha entre um
e outro é decisão discricionária do administrador.243 nesses termos, as licitações do tipo
243
observamos, apenas, que a adoção do tipo melhor técnica obriga a Administração a indicar o preço máximo
que ela se dispõe a contratar, nos termos do art. 46, §1º, da Lei nº 8.666/93. nos demais tipos de licitação (menor
449
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
450
melhor técnica adotam (art. 46, §1º) “o seguinte procedimento claramente explicitado
no instrumento convocatório, o qual fixará o preço máximo que a Administração se propõe
a pagar” (grifos nossos):
i - serão abertos os envelopes contendo as propostas técnicas exclusivamente
dos licitantes previamente qualificados e feita então a avaliação e classificação
destas propostas de acordo com os critérios pertinentes e adequados ao objeto
licitado, definidos com clareza e objetividade no instrumento convocatório
e que considerem a capacitação e a experiência do proponente, a qualidade
técnica da proposta, compreendendo metodologia, organização, tecnologias
e recursos materiais a serem utilizados nos trabalhos, e a qualificação das
equipes técnicas a serem mobilizadas para a sua execução;
II - uma vez classificadas as propostas técnicas, proceder-se-á à abertura das
propostas de preço dos licitantes que tenham atingido a valorização mínima estabelecida no instrumento convocatório e à negociação das condições
propostas, com a proponente melhor classificada, com base nos orçamentos
detalhados apresentados e respectivos preços unitários e tendo como referência o limite representado pela proposta de menor preço entre os licitantes
que obtiveram a valorização mínima;
iii - no caso de impasse na negociação anterior, procedimento idêntico será adotado,
sucessivamente, com os demais proponentes, pela ordem de classificação, até
a consecução de acordo para a contratação;
iv - as propostas de preços serão devolvidas intactas aos licitantes que não forem
preliminarmente habilitados ou que não obtiverem a valorização mínima
estabelecida para a proposta técnica.
nas licitações do tipo técnica e preço, será adotado, adicionalmente ao inciso i do §1º
do art. 46, o seguinte procedimento claramente explicitado no instrumento convocatório:244
244
preço e técnica e preço) poderá, ou não, haver a indicação desse preço máximo, nos termos do art. 40, X, sempre
da Lei nº 8.666/93.
o tribunal de Contas da união, por meio do Acórdão nº 210/2011, Plenário, decidiu que, na licitação do tipo técnica e preço, eventual desproporção na pontuação atribuída aos critérios de técnica e preço deve ser justificada.
sobre o tema, convém transcrever excerto do Informativo TCU, n. 49:
“representação de licitante indicou ao tribunal supostas irregularidades na Concorrência nº 2/2010, do tipo técnica e preço, conduzida pela universidade Federal de são Paulo (unifesp), cujo objeto consistiu na contratação
de empresa prestadora de serviços de planejamento, implementação e gerenciamento de assessoria de imprensa
especializada nas áreas de educação, saúde e administração de crise. dentre elas, constou a desproporcionalidade das faixas de pontuação utilizadas para valoração da proposta técnica, sem justificativas para tanto, em
aparente desconformidade com a jurisprudência deste tribunal. A esse respeito, a unidade técnica consignou
que ‘foi atribuído o peso de 80 à proposta técnica e apenas de 20 à proposta de preços, o que caracteriza a excessiva valorização da primeira em detrimento da segunda’. reproduziu, então, trecho do Acórdão nº 1488/2009,
do Plenário do tribunal, no qual se apreciou irregularidades na condução de licitação com objeto assemelhado.
na oportunidade, o tCu concluiu que em situações nas quais houver diferenciação entre os pesos atribuídos
ao critério de técnica e o critério preço, deve a instituição contratante fundamentar o fato, com base em ‘estudo
demonstrando que a grande disparidade verificada (a nota técnica tem peso superior ao dobro da proposta de
preços) é justificável’. Assim, ainda para a unidade técnica, ‘a atribuição de fatores de ponderação distintos para
os índices técnica e preço somente deve ocorrer em situações ainda mais excepcionais, devidamente comprovadas, o que não ocorreu nos presentes autos’. destacou, ainda, disposição constante da instrução normativa
2/2008, da sLti/mPoG no mesmo sentido (§3º do art. 3º). Ao concordar com as análises, o relator destacou que
‘o privilégio excessivo da técnica em detrimento do preço, sem haver justificativas suficientes que demonstrem
a sua necessidade, pode resultar em contratação a preços desvantajosos para a Administração’. todavia, apesar
da reprovabilidade da conduta, considerou o relator que houve a perda do objeto da representação, ante a alteração dos critérios do edital do certame, bem como, posteriormente, em face da anulação de ofício do certame
pela unifesp, conclusão acatada pelo relator e pelo Plenário. Precedentes citados: Acórdãos tCu nº 264/2006
e 55/2007, ambos do Plenário.” (Acórdão nº 210/2011, Plenário. tC-017.157/2010-2. rel. min. Augusto nardes.
sessão: 2.2.2011. DOU, 07 fev. 2011)
CAPítuLo 7
LiCitAção
i - será feita a avaliação e a valorização das propostas de preços, de acordo com
critérios objetivos preestabelecidos no instrumento convocatório;
II - a classificação dos proponentes far-se-á de acordo com a média ponderada
das valorizações das propostas técnicas e de preço, de acordo com os pesos
preestabelecidos no instrumento convocatório.
7.9 regime diferenciado de Contratações Públicas
em virtude dos eventos esportivos que se realizarão no País nos próximos anos,
a Copa das Confederações, a Copa do mundo, os Jogos olímpicos e os Paraolímpicos,
o Congresso votou e a Presidenta da república sancionou a Lei nº 12.462, de 5.8.2011,
a qual institui o regime diferenciado de Contratações Públicas (rdC).245
o rdC contempla uma série de inovações em relação ao regime geral de licitações
e contratações públicas disciplinado pela Lei nº 8.666/93, tais como, regime de contratação integrada, pré-qualificação permanente, possibilidade de indicação de marca ou
modelo, remuneração variável da contratada, caráter sigiloso do orçamento estimado,
entre outras novidades.
É claro o propósito da norma no sentido de conferir celeridade às contratações
públicas destinadas aos eventos esportivos que especifica. A lei expressamente menciona
os objetivos que devem informar o RDC: estímulo à eficiência e competitividade nas
contratações públicas, incentivo à inovação tecnológica, busca da melhor relação entre
custo e benefício para o setor público, sem se descuidar, obviamente, da isonomia e da
seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública.
Além dessas diretrizes deverão ser respeitadas as normas relativas à proteção
ambiental, a avaliação dos impactos de vizinhança e a proteção do patrimônio cultural,
histórico, arqueológico e imaterial.
em alguns aspectos o novo regime diferenciado de contratações públicas incorpora conceitos e procedimentos previstos na lei de licitações e em outras normas que
regulamentam a matéria, sobretudo as disposições da lei do pregão (Lei nº 10.520/2002).
nesse particular, o legislador parece que procurou reunir pontos positivos sobre o tema
que se encontram esparsos na legislação de regência. exemplo dessa síntese é o disposto
no art. 40 da lei, quando trata do caso do licitante convocado que não comparece para
assinar o termo de contrato. Aqui a norma, por um lado, mantém a exigência da Lei
nº 8.666/93 atinente à convocação dos licitantes remanescentes, na ordem de classificação, para a celebração do contrato nas condições ofertadas pelo vencedor. Por outro,
no caso de nenhum dos licitantes remanescentes aceitar a contratação nas condições do
245
regime aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários, basicamente, à realização dos Jogos olímpicos e Paraolímpicos de 2016, da Copa das Confederações da Federação internacional de Futebol Associação
(FiFA) 2013 e da Copa do mundo FiFA 2014 e de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os
aeroportos das capitais dos estados da Federação distantes até 350km das cidades sedes das competições mundiais retro mencionadas. vale dizer que o tribunal de Contas da união, consoante o informativo sobre Licitações
e Contratos do tCu nº 111, manifestou, mediante o Acórdão nº 1.538/2012, Plenário, entendimento no sentido
de que a “utilização do regime diferenciado de Contratações Públicas – rdC em obras com término posterior
à Copa do mundo de 2014 — ou às olimpíadas de 2016, conforme o caso — só é legítima nas situações em que
ao menos fração do empreendimento tenha efetivo proveito para a realização desses eventos esportivos e desde
que reste evidenciada a inviabilidade técnica e econômica do parcelamento das frações da empreitada a serem
concluídas a posteriori, em respeito ao disposto nos artigos 1º, incisos de i a iii; 39 e 42 da Lei 12.462/2011, c/c o
art. 23, § 1º, da Lei 8.666/93”.
451
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
452
primeiro colocado, a lei permite convocá-los para a assinatura do contrato de acordo
com suas respectivas propostas, tal como ocorre no pregão, com o cuidado de que o
valor seja igual ou inferior ao orçamento estimado para a contratação.
outra característica do pregão que a experiência demonstrou ter sido bemsucedida, e que também foi incorporada pela Lei nº 12.462/2011, é a inversão de fases
na licitação (apresentação das propostas de preço antes da habilitação). no rdC, a
apresentação das propostas antes da habilitação foi definida com um procedimento
padrão. excepcionalmente, segundo a lei, é que a habilitação poderá anteceder as fases
de apresentação das propostas e de julgamento, desde que isso conste expressamente
do edital.
A lei também prevê, como forma de gerar ganhos de eficiência na contratação,
a possibilidade de remuneração variável segundo o desempenho da contratada, o que
será aferido com base em metas, padrões de qualidade, critérios de sustentabilidade
ambiental e prazo de entrega estabelecidos no instrumento convocatório e no contrato.
A rigor, tal modalidade de retribuição já constava da lei das parcerias público-privadas
(Lei nº 11.079/2004).
Alguns dispositivos da norma refletem a jurisprudência consolidada pelo Tribunal de Contas da união. É caso da possibilidade de indicação por marca admitida pelo
tCu, quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser melhor compreendida pela
identificação de determinada marca ou modelo aptos a servir como referência, situação
em que será obrigatório o acréscimo da expressão “ou similar ou de melhor qualidade”.
Há novidades em relação aos critérios de julgamento do certame,246 com destaque
para o julgamento com base no maior retorno econômico, cuja utilização é exclusiva
para a celebração de contratos de eficiência, com a finalidade de proporcionar redução
de despesas correntes do contratante, sendo o contratado remunerado com base no
percentual da economia gerada em favor da Administração.
Há outros pontos da lei que tem gerado polêmicas. nesse sentido, cita-se o
tratamento sigiloso ao orçamento. A norma prevê que o orçamento estimado para a
contratação será tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, sendo disponibilizado antes disso apenas aos órgãos de controle. Cabe mencionar,
quanto aos aspectos controvertidos, a divulgação do extrato do edital exclusivamente
sítio eletrônico oficial de divulgação de licitações, no caso de licitações cujo valor não
ultrapasse r$150.000,00 para obras ou r$80.000,00 para bens e serviços, inclusive de
engenharia, e a possibilidade de execução de mesmo serviço por mais de uma contratada, quando o objeto da contratação puder ser executado de forma concorrente e
simultânea por mais de um contratado e quando a múltipla execução for conveniente
para atender à administração, desde que isso seja justificado expressamente e não
implique perda de escala.
sobre as polêmicas, vale registrar que foram ajuizadas por partidos políticos
(PsdB, dem e PPs) e pelo Procurador-Geral da república, ações diretas de inconstitucionalidade (Adi nº 4.645 e nº 4.655) em que se cogitam vícios de constitucionalidade
formais e materiais a respeito de diversos aspectos da lei que instituiu o rdC, inclusive
o sigilo dos orçamentos e a possibilidade de contratação integrada.
246
“Art. 18. Poderão ser utilizados os seguintes critérios de julgamento: i - menor preço ou maior desconto; ii - técnica
e preço; iii - melhor técnica ou conteúdo artístico; iv - maior oferta de preço; ou v - maior retorno econômico.”
CAPítuLo 7
LiCitAção
É de se referir, ainda, que em 11 de outubro de 2011 foi publicado o decreto
nº 7.581, que regulamenta o regime diferenciado de Contratações Públicas (rdC), de
que trata a Lei nº 12.462/2011. de um modo geral, o decreto detalha a aplicação dos
procedimentos instituídos pela Lei do rdC, vindo a suprir a norma em vários aspectos
que o próprio legislador cometeu à normatização infralegal.
em linhas gerais, o decreto ressalta a importância da fase de planejamento da
licitação (fase interna), prevendo a adoção das medidas necessárias à caracterização
do objeto a ser licitado e à definição dos parâmetros que orientarão o certame. Prevê
o número mínimo de três membros integrantes da comissão de licitação, questão que
não havia sido definida pela lei.
A Lei nº 12.462/2011 estabelece que as licitações no rdC serão realizadas preferencialmente sob a forma eletrônica. O regulamente especifica que as licitações sob
a forma eletrônica poderão ser processadas por meio do sistema eletrônico utilizado
para a modalidade pregão.
o regulamento contém dispositivos que disciplinam outra novidade da lei referente aos modos de disputa aberto, em que os licitantes apresentarão suas propostas
em sessão pública por meio de lances públicos e sucessivos, e fechado, modalidade na
qual as propostas serão sigilosas até a data e hora designadas para sua divulgação. É
também regulamentada a possibilidade prevista da lei de negociação com o primeiro
classificado quando sua proposta estiver acima do orçamento estimado. Especifica as
regras que deverão orientar a utilização da remuneração variável e detalha os chamados procedimentos auxiliares (cadastramento, pré-qualificação, sistema de registro de
preços e catálogo eletrônico de padronização), entre outras disposições.
A despeito de o regulamento cuidar de inúmeros assuntos contemplados na lei,
alguns estudiosos já sinalizam para a insuficiência de normatização em relação a matérias
relevantes envolvendo o rdC, o que poderá gerar insegurança na interpretação de seus
dispositivos.
em que pesem as críticas e elogios acerca das inovações veiculadas pela Lei
nº 12.462/2011 e esmiuçadas no decreto nº 7.581/2011, a verdade é que só o tempo dirá
se as regras do RDC redundarão, de fato, em contratações mais eficientes para o poder
público. de toda sorte, o que se espera é que o país consiga atender ao cronograma dos
eventos submetidos ao regime do RDC, sem atropelos e, principalmente, sem sacrificar
os cofres públicos, com contratações flagrantemente antieconômicas. Ademais, é de se
notar que o sucesso das inovações do rdC, ainda que o novo regime requeira ajustes,
poderá refletir em alterações no regime geral de licitações e contratos no futuro.
7.10 Compras, contratações e desenvolvimento de produtos e de
sistemas de defesa
A Lei nº 12.598, de 22 de março de 2012, estabeleceu normas especiais para as
compras, as contratações e o desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa.
Produtos de defesa são, de acordo com a definição constante do inciso I do
art. 2º da referida lei, todo bem, serviço, obra ou informação, inclusive armamentos,
munições, meios de transporte e de comunicações, fardamentos e materiais de uso
individual e coletivo utilizados nas atividades finalísticas de defesa, exceto aqueles de
uso administrativo. sistema de defesa é, consoante o inciso iii do mesmo dispositivo
453
454
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
legal, o conjunto inter-relacionado ou interativo de produtos de defesa que atenda a
uma finalidade específica.
As compras e contratações de objetos que se enquadrem nessas definições e que
sejam considerados de interesse estratégico para a defesa nacional poderão ser reservadas a licitantes credenciadas como “empresa estratégica de defesa” (art. 3º, §1º, i),
conforme requisitos estabelecidos nas alíneas do inciso iv do art. 2º da mesma lei. não
sendo o produto ou o sistema de defesa de interesse estratégico nacional, a licitação não
ficará restrita a tais empresas, mas será legítima a exigência de que o objeto contratado
seja produzido ou desenvolvido no Brasil ou que utilize insumos nacionais ou com
inovação desenvolvida no país (art. 3º,§1º, ii). essas restrições poderão ser substituídas
pela exigência de transferência de conhecimento tecnológico à empresa nacional ou pela
garantia de que esta participará da cadeia produtiva do bem a ser adquirido.
o mesmo diploma legal autoriza (art. 5º) ainda a contratação de produtos e sistemas
de defesa sob a forma de concessão administrativa a que se refere a Lei nº 11.079/2004
(normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da
Administração Pública) e determina a aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93 ao procedimentos licitatórios por ele regidos.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
8.1 Concessões de serviço público e a formação do estado
8.1.1 do estado Liberal ao estado moderno
o instituto da concessão de serviço público remonta suas origens ao liberalismo
econômico. Apesar de terem sido identificadas formas bastante incipientes de transferência de atividades estatais a particulares, somente com o liberalismo, sobretudo
com a implantação do estado de direito, a concessão de serviço público deixa de ser
considerada forma de proteção dos interesses dos protegidos pelo regente e assume
a forma de instituto jurídico com delineamentos próprios. Com o estado de direito, a
concessão passa a constituir o primeiro instrumento de que se valeu o direito Administrativo para transferir a particulares a gestão de serviços públicos.
no Estado Liberal,1 com a ênfase no positivismo jurídico e a primazia do rigor
formal como instrumentos necessários às liberdades individuais, sobretudo no que
concerne à liberdade de iniciativa e à livre concorrência, a concessão passou a ser utilizada para a prestação de serviços que, à época, a partir de uma visão eminentemente
utilitarista, se consideravam públicos, e não mais para o desenvolvimento de atividades
econômicas.
neste período inicial, e ao longo de todo o século XiX, o instituto da concessão
foi utilizado basicamente para suprir a falta de capital do estado para investir em áreas
essenciais, como energia elétrica, transporte e fornecimento de água.
este sistema foi adotado no Brasil, inicialmente, para incentivar a realização de
investimentos privados na área de ferrovias (século XiX) e nos setores elétricos, telefônico e de gás (início do século XX).
1
no último século, estabeleceu-se falsa antinomia entre “liberal” e “social”. usam-se os dois conceitos de forma
imprecisa e como se fossem antagônicos. Quase sempre se atribui conteúdo depreciativo ao adjetivo liberal.
Confere-se conotação virtuosa ao adjetivo social, considerado politicamente mais correto. Como diria George
orwell: social, good; liberal, bad. Assim, Estado liberal seria maléfico; já Estado social seria benfazejo e por isso
desejável. essa conceituação é errada, inclusive historicamente. Gera imprecisão conceitual, responsável por
terríveis distorções na identificação dos objetivos de interesse público e na consequente formulação de políticas
públicas destinadas a promovê-los.
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
456
Para incentivar esses investimentos privados, o Estado assegurava isenções fiscais
e o pagamento de juros sobre os capitais aplicados como mecanismo de garantia dos
investimentos. Não obstante a existência desses incentivos, que não se mostraram suficientes para garantir o sucesso das concessões, o resultado foi o endividamento público
e o abandono do modelo adotado.
A falência do modelo de concessões adotado no estado Liberal coincide com a
falência do próprio estado Liberal, que se revelou incapaz de atender às novas demandas
da população e resultou no surgimento do Estado Social.
A partir, sobretudo do fim da Segunda Grande Guerra, de uma posição absenteísta, o estado passou a ser chamado a intervir de forma mais efetiva na sociedade e na
economia. Com o surgimento do Estado Democrático e Social, que passou a desempenhar
tarefas de empresário, de investidor e de prestador de serviços públicos, verificou-se
o início do agigantamento estatal e uma de suas consequências foi a criação de empresas estatais incumbidas de desempenhar diversas atividades, inclusive aquelas que
no modelo anterior haviam sido atribuídas a empresas privadas concessionárias de
serviços públicos.
no Brasil, passaram a ser denominadas de concessionárias de serviço público
as empresas estatais surgidas para desempenhar atividades estatais relacionadas à
prestação de serviços públicos. A criação de empresas estatais, e a sua designação como
empresas concessionárias, ainda nos dias atuais, é fonte de intermináveis controvérsias,
sendo comum quem as designe de concessões impróprias. As concessionárias de serviço público, nos termos da Constituição Federal (art. 175), recebem a delegação para
a prestação de serviços públicos por meio de contrato; as entidades ditas concessionárias “impróprias” recebem a delegação por meio de lei. A dificuldade intransponível
de enquadrá-las como concessionárias reside neste aspecto: o regime constitucional
(art. 175) e o regime legal (Lei nº 8.987/95) determinam que o modelo de concessão de
serviço público é contratual. na concessão, é por meio de contrato que se faz a delegação para a prestação do serviço público. nesse sentido, não obstante haja entidades
estatais prestadoras de serviço público, é juridicamente inadequado denominá-las de
concessionárias. o regime jurídico a elas aplicável é o das empresas estatais, e não o
das concessionárias de serviço público.2
o modelo de gestão de serviços públicos prestados por empresas estatais
manifestou-se constantemente deficitário, sendo raras as situações em que as receitas
auferidas pela estatal eram suficientes para assegurar a prestação dos serviços.
2
segundo a voz autorizada de José dos santos Carvalho Filho, a celebração de contrato de concessão com empresas estatais caracteriza “distorção no sistema clássico de concessões, pois que, na verdade, se afigura como um
contrato entre duas pessoas estatais, a que titulariza o serviço e a que o executa, sendo esta obviamente vinculada àquela. Se a empresa é estatal, tendo resultado do processo de delegação legal, a própria lei já definiria
seu perfil institucional, bem como a tarefa que deveria desempenhar, desnecessário, desse modo, falar-se em
concessão, instrumento (...) de delegação negocial”.
Continua o autor esclarecendo que a “única hipótese em relação à qual pode dizer-se que não há distorção
consiste na celebração de contrato de concessão entre um ente federativo e uma entidade estatal (...) vinculada a
ente federativo diverso. Como suposição, pode imaginar-se que a União Federal firme contrato de concessão com
certa sociedade de economia mista vinculada a certo estado-membro para a prestação de serviço de energia
elétrica. nesse caso, entretanto, a entidade governamental estará exercendo atividade tipicamente empresarial
e atuando no mundo jurídico nos mesmos moldes que uma empresa da iniciativa privada, de modo que, para
lograr a contratação, deverá ter competido em licitação prévia com outras empresas do gênero, observado o
princípio da igualdade dos licitantes, e vencido o certame pelo oferecimento da melhor proposta. A anomalia
seria visível (e aí estaria distorção) se a união contratasse com empresa estatal federal a concessão do mesmo
serviço” (CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 19. ed., p. 339-340).
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
o endividamento público, que obrigou o Brasil a abandonar o modelo de concessão
vigente no início do século XX, com os constantes déficits das empresas estatais e a necessidade de injeção de novos recursos públicos somente se agravou.
No final da década de 1970 e, no Brasil, especialmente a partir do início da década
de 1980, o resultado desse processo foi o imenso endividamento público, cuja conta
ainda hoje estamos a duras penas buscando pagar, e o agigantamento do estado, cuja
intervenção se fazia sentir em todos os setores da sociedade e da economia. o resultado
foi o surgimento de um Estado grande, caro, ineficiente e fraco.
A crise vivida pelo estado brasileiro, e, portanto, por toda a sociedade brasileira,
durante a década de 1980 demonstrou a incapacidade dos mecanismos do estado social
de atenderem as demandas da população. sem que pudessem ser abandonados os ideais
do estado democrático e social, novos mecanismos de intervenção estatal tiveram de
ser desenvolvidos.
o modelo de organização administrativa e as formas de intervenção do estado
brasileiro, como hoje o identificamos, passaram a ser definidos a partir da década de
1990 e se encontram em constante evolução.
relativamente aos instrumentos de intervenção estatal na área social e econômica, verificou-se profunda transformação. O objetivo era a substituição do modelo
burocrático pelo modelo gerencial de administração — conforme ficou conhecido esse
processo ao longo da década de 1990. o processo de desestatização e a instituição do
novo modelo de concessão de serviços públicos, cujo regime jurídico se encontra definido, basicamente, pela Lei nº 8.987/95, fizeram parte do amplo processo de tentativa
de reforma do estado.
Ainda durante a década de 1990, tivemos a aprovação das leis nº 9.637/98 e
nº 9.790/99, relativas às organizações sociais (os) e às organizações da sociedade Civil
de interesse Público (osCiP), respectivamente. A essas entidades — que não podem ter
finalidade lucrativa ou empresarial — passaram a ser transferidas atividades estatais de
utilidade pública e sua remuneração passou a ser efetuada diretamente com recursos
públicos. nesse sentido, a delegação de serviços públicos de cunho econômico pode
ser objeto de delegação a particulares por meio de concessões de serviço público; os
serviços públicos de cunho social, ao contrário, podem ser objeto de delegação a entidades privadas por meio dos contratos de gestão, firmados com as OS, e dos termos
de parceria, em que figura como parte OSCIP.
O processo de reforma e de desenvolvimento de novos instrumentos de atuação do Estado
não se esgotou. A aprovação da Lei nº 11.079/2004 relativa às parcerias público-privadas,
tem por objetivo criar nova opção do estado incentivar a realização de investimentos
em área fundamental para o desenvolvimento da sociedade: a infraestrutura. Conforme
será examinado adiante, serão objeto de PPP os projetos que não autossustentáveis.
8.1.2 subsidiariedade e o novo modelo de concessão de serviços
públicos
o rápido exame realizado no item anterior demonstra que os dois modelos de
concessão adotados pelo estado Liberal e pelo estado social não foram capazes de
atender às demandas da sociedade brasileira. tanto o estado absenteísta quanto o
Estado intervencionista se mostraram ineficazes na prestação de serviços públicos.
457
458
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
essa experiência histórica permitiu que se vislumbrasse um novo papel no processo
de intervenção do estado na prestação de serviços públicos e na exploração de atividades estatais de natureza econômica. A função principal do estado passou a ser a de
controlar, de incentivar, de coordenar e de fomentar as iniciativas privadas, assumindo
o estado, portanto, papel subsidiário no processo de prestação de serviços públicos.
Conforme examinamos no Capítulo 1, a primazia para a satisfação das necessidades da população, de acordo com o nosso modelo jurídico-constitucional vigente no
Brasil, é dos agentes privados.
A noção de subsidiariedade não gera um modelo de estado fraco ou incapaz de
intervir na sociedade. Ao contrário, o princípio da subsidiariedade importa em concentrar os esforços do estado na coordenação das atividades privadas, sendo a intervenção
direta na sociedade justificada apenas em situações excepcionais, quando os agentes
privados não forem capazes de atender às demandas sociais.
A subsidiariedade da atuação do Estado, e a consequente flexibilização dos
mecanismos de intervenção, torna-se possível mediante a utilização de instrumentos de
parceria entre os agentes públicos e os agentes privados. neste contexto ganha relevo
o instituto da concessão de serviços públicos. esse novo modelo de concessão deve ser
capaz de responder a questões cruciais do sistema, como a que determina o processo de
recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Somente a incorporação
de novas tecnologias e a redefinição de concepções jurídicas permitem a existência de
harmonia e de equilíbrio neste sistema tripartite (estado-concessionária-usuário).
8.2 interesses envolvidos na concessão
o modelo jurídico das concessões, a partir do modelo de estado subsidiário, busca
harmonizar o interesse público, que corresponde à necessidade de prestação de serviço
público adequado, e o interesse privado da empresa concessionária, que não obstante
seja de ordem variada, compreende necessariamente a busca pelo lucro.
não obstante a concessão envolva interesses distintos, o contrato deve ser capaz de
harmonizá-los. nesse ponto, o contrato de concessão se afasta totalmente dos contratos
comuns, regidos pela Lei nº 8.666/93. na concessão, o concessionário contratado não é
mero prestador de serviço. ele é um investidor que considera a concessão um projeto
em que será considerado o custo de oportunidade do investimento. na execução desse
projeto, o concessionário busca otimizar o investimento de modo a que a combinação
realizada com o capital próprio e com o capital de terceiro resulte no maior retorno
possível.
esse o escopo básico do concessionário: o maior retorno possível para o capital
investido. daí decorre a necessidade de que o estado, ao realizar projeto de concessão
de serviço público — que não raras vezes envolve volumes de capital elevadíssimos,
da ordem de bilhões de reais —, apresente aos possíveis interessados o cenário que
lhes permitirá o retorno econômico de seu investimento. Quanto mais claras forem
as regras da concessão, ou seja, quanto maior a certeza dos possíveis investidores de
que haverá retorno para seus investimentos, maior o número de interessados e maior
o sucesso da concessão.
Além do concessionário, há ainda os interesses do estado e os dos usuários dos
serviços.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
o interesse do estado deveria ser um só: a prestação de um serviço adequado,
de qualidade. não deveria o estado buscar vantagens econômicas quando realiza concessão de serviço público. A fim de garantir o sucesso da concessão, e com o objetivo
de não afetar o equilíbrio dos interesses envolvidos, o estado não deveria obter qualquer vantagem econômica na realização da concessão. este aspecto não foi, todavia,
utilizado pela Lei nº 8.987/95, que expressamente admite, inclusive como critério de
julgamento das propostas “a maior oferta, nos casos de pagamento ao poder concedente
pela outorga de concessão” (art. 15, ii). não obstante admitido em lei, esse mecanismo
deve ser evitado a todo custo pelo estado.
É inadmissível que o poder público queira utilizar a concessão como instrumento
para a obtenção de receitas. o seu interesse, aquele que motiva a existência do modelo
de concessão adotado no Brasil, deve ser a prestação do serviço adequado aos usuários. este corresponde ao interesse público primário do sistema de concessão. Admitir
que o concessionário deva pagar ao poder concedente pela realização do contrato de
concessão importa, necessariamente, em onerar o usuário, que tem direito à prestação
do serviço adequado, o que pressupõe a modicidade da tarifa.
A possibilidade de ser exigido pagamento do concessionário em favor do poder
concedente viola, sob todos os aspectos possíveis, os interesses envolvidos no sistema
de concessão de serviço público. A imposição desse ônus sobre o concessionário, que
será necessariamente repassado ao usuário do serviço, leva à conclusão da sua inconveniência, que beira as raias da inconstitucionalidade.
todos os atores envolvidos na concessão têm um interesse comum relacionado à
prestação de um serviço de boa qualidade. em relação a outras questões práticas relacionadas, sobretudo, à remuneração do investimento do concessionário, há dúvidas
recorrentes, dúvidas que o contrato deve buscar reduzir. esses questionamentos estão
relacionados, em grande parte, à frequente utilização de conceitos jurídicos indeterminados. o que se deve entender, por exemplo, por lucro justo,3 modicidade tarifária,
risco do investimento?
o sucesso da concessão pressupõe que o contrato seja capaz de definir de modo o
mais claro possível esses conceitos. nesse processo, a correta utilização dos mecanismos
3
o lucro será a remuneração do investimento. nesse contexto, é descabido introduzir parâmetros éticos na avaliação do lucro, pretendendo-se falar de lucro “justo”. Lucro é um fato de natureza estritamente econômica. É
um equívoco pretender avaliá-lo por critério ético, inerente ao conceito de justiça. em lugar de “lucro justo”,
entendo que se deva falar em lucro “adequado” ou “admissível”, que será, a meu ver, o lucro definido pelo custo
de oportunidade — ou seja, será aquele nível ou taxa de lucro que proporcionará, ao investimento a ser feito na
prestação do serviço, uma remuneração suficientemente atraente, a ponto de convencer o investidor de que vale
mais a pena investir naquela concessão do que em outra destinação econômica que poderia dar aos recursos de
que dispõe. ou seja: se o nível de lucro oferecido ou admitido na concessão for apenas igual ou inferior ao que se
pode auferir em outra aplicação de menor risco, o investidor não terá razão de investir na concessão. o custo de
oportunidade será mais alto, e, portanto, o demoverá de efetuar o investimento. Já se o nível de lucro for maior — e
se lhe for assegurado que esse nível de lucro não será comprometido por ação deliberada do estado —, o custo de
oportunidade será menor, mais favorável, e ele será atraído a investir na concessão. essa singela digressão sobre
o tema parece tão simplista que poderia ser considerada desnecessária. no entanto, os fatos desmentem essa
conclusão, pois o que mais se tem visto é a defesa irracional da ideia de que as concessões de serviços públicos não
devem nem podem proporcionar ganhos aos investidores, ou que esses ganhos devem ser restringidos, mesmo
a custa de interpretações inovadoras de cláusulas contratuais. o resultado dessa postura tem sido a evidente
retração dos investidores, que têm preferido direcionar os recursos de que dispõem para aplicações em títulos do
mercado financeiro, sobretudo os títulos da dívida pública, muito mais rentáveis, mais seguros, menos sujeitos a
interpretações restritivas de burocratas, e com maior liquidez. essa atitude continuará a prevalecer, enquanto não
se promover uma profunda reformulação dos arraigados preconceitos que foram implantados nessa matéria.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
460
para a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, que costuma ter
vigência de 15, 20 ou de até 35 anos, é aspecto fundamental.
destaque-se que, com vista a facilitar a composição dos variados interesses envolvidos na concessão, a Lei nº 11.196/05 introduziu, na Lei nº 8.987/95, o art. 23-A, que
dispõe sobre a possibilidade da aplicação de mecanismos privados para resolução de
disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato de concessão, inclusive a arbitragem
a que se refere a Lei nº 9.307/96.
8.3 empresas estatais concessionárias de serviço público
À luz do regime constitucional vigente, não se pode admitir que empresa estatal
seja concessionária de serviço público. não que o estado esteja impedido de outorgar
à empresa pública a incumbência de prestar serviço público, ou que essa descentralização seja ilegal. ocorre que a descentralização administrativa não institui concessão
de serviço público.
O regime da concessão se verifica quando a Administração Pública transfere
pela via contratual a incumbência da prestação do serviço a particulares que passam a
explorar o serviço em caráter empresarial.
o estado pode promover a transferência da prestação de serviço público por
diferentes meios. um deles é a outorga feita a entidade da Administração Pública
indireta. neste caso, a entidade política titular do serviço público, por meio de lei,
transfere (outorga) à entidade administrativa, integrante da estrutura da sua respectiva
Administração Pública indireta, a incumbência da prestação do serviço público. de se
observar que, neste modelo de outorga, pode ser transferida apenas a incumbência da
prestação, ou, conforme dispuser a lei, a própria titularidade do serviço. se o instrumento da outorga é a lei, não pode, por exemplo, a entidade política avocar o serviço
transferido por meio de ato administrativo. sendo a lei o instrumento da outorga,
somente por meio de nova lei pode ocorrer o retorno do serviço, e, eventualmente, da
sua titularidade, à entidade política.
No caso de concessão, verifica-se tão somente delegação do serviço,4 que, diferentemente da outorga legal, importa em transferência apenas da incumbência da prestação
do serviço, permanecendo a titularidade do serviço com o poder concedente. Ademais,
na concessão, a delegação do serviço se formaliza por meio de contrato administrativo
e pressupõe a realização de licitação (CF, art. 175).
A concessão constitui forma de gestão do serviço público. Caso a entidade política opte pela prestação do serviço sob regime de concessão, ela irá transferir, sempre
precedida de licitação, a gestão do serviço à empresa privada que será remunerada com
as receitas decorrentes da exploração do serviço.
4
Historicamente, não se falava em outorga para fazer referência a concessão ou permissão de serviço público. estas
seriam meras delegações de serviço. diversas leis, inclusive a própria Lei nº 8.987/95, fazem referência à concessão
e à permissão como sendo modalidades de outorga. A fim de distinguir a outorga de serviço feita a entidade da
Administração Pública indireta e aquela feita a concessionária ou permissionária de serviço, vamos nos referir à
primeira como outorga legal, e à segunda como delegação ou simplesmente como outorga.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
8.4 Legislação aplicável
A Constituição Federal, em seu art. 175, determina que incumbe ao poder público a prestação de serviços públicos. Define ainda que a prestação dos serviços de
cunho econômico pode ser feita diretamente pelos órgãos e entidades que compõem
a Administração Pública ou sob regime de concessão ou de permissão de serviço. o
parágrafo único deste artigo define que lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias e permissionárias, bem como sobre outros aspectos relacionados ao tema,
como a execução e fiscalização dos contratos, o direito dos usuários, a política tarifária
e o serviço adequado.
Com o propósito de definir as normas gerais sobre concessões e permissões a
que se refere o parágrafo único do art. 175 da Constituição Federal, foi aprovada a Lei
nº 8.987/95.
Trata-se de lei de âmbito nacional. toda e qualquer concessão ou permissão de
serviço público a ser realizada em qualquer âmbito de governo — federal, estadual ou
municipal — deve conformar-se às regras estabelecidas pela Lei nº 8.987/95.
Esta legislação não trata de serviços específicos. Ela serve de parâmetro para
as leis a serem editadas pela união, estados, distrito Federal ou municípios. Assim,
por exemplo, na área de energia elétrica, a Lei nº 9.074, de 1995, regula as hipóteses de
concessão, de permissão e de autorização de serviço público. esta lei deve observar o
que estabelece a Lei nº 8.987/95. o mesmo vale para qualquer outro serviço que a união,
estado, distrito Federal ou município queira delegar.
Caso determinado município decida prestar serviço de transporte alternativo de
passageiro — em que são utilizadas peruas ou vans — sob regime de concessão ou de
permissão, cabe a lei municipal definir as questões específicas relacionadas à delegação
do serviço, devendo esta legislação municipal observar os parâmetros da Lei nº 8.987/95.
Para instituir e regular qualquer concessão ou permissão de serviço público
devem ser observadas ao menos duas leis: a Lei nº 8.987/95, de âmbito nacional, e uma
lei específica, a ser aprovada pela entidade política que pretenda instituir a concessão
ou permissão de serviço público.
8.5 Âmbito de aplicação das concessões
o primeiro requisito para a instituição do regime de concessão está relacionado
à necessidade de que a atividade objeto de exploração constitua serviço público. não é
possível ao poder público, portanto, ainda que se utilize de lei, instituir regime de concessão de serviço público para a exploração de serviços privados, que não se enquadrem
no conceito de serviço público.
o fornecimento de alimentos à população, por exemplo, não obstante se trate de
atividade da mais alta relevância, não pode ser explorado por meio da concessão de
serviço público em razão de se tratar de atividade privada, e não de serviço público.
A concessão se presta para transferir a particulares a prestação de serviços públicos. nem todo serviço público, todavia, permite a sua delegação por meio da concessão.
somente aqueles cuja exploração possa ser feita em caráter empresarial, como atividade de
risco, conforme define a lei de concessões,5 admitem a utilização do regime de concessão.
5
A expressão “atividade de risco” mencionada pela lei de concessões de serviços públicos pode levar à conclusão
de que a concessão tem necessariamente de envolver risco empresarial, o que, em primeiro lugar, a meu ver, não
461
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
462
os serviços de telefonia, que nos termos da Constituição Federal são de atribuição
da União, admitem exploração como atividade empresarial. O mesmo se verifica, por
exemplo, com o transporte coletivo urbano, os serviços de manutenção e de preservação
de estradas, o fornecimento de energia elétrica etc. serviços como estes, que podem ser
sustentados a partir das tarifas pagas pelo usuários, podem ser delegados a particulares
para serem explorados por meio de concessões.
serviços outros, como a manutenção de edifício público ou serviços diplomáticos, quer pela natureza, quer pela impossibilidade de ser cobrada tarifa, impedem a
utilização do regime de concessões.
o serviço a ser delegado por meio de concessão é aquele prestado à população.
Ainda que a Administração Pública possa igualmente se beneficiar ou mesmo ser
usuária deste serviço, a concessão pressupõe que o serviço seja prestado ao particular,
denominado usuário do serviço, e a quem cabe o ônus de pagar ao concessionário pelo
serviço que lhe é prestado. serviços de limpeza e conservação em prédios públicos, por
exemplo, não podem ser objeto de concessão, haja vista o destinatário direto do serviço
ser a própria Administração Pública,6 e não a população. serviços de conservação de
rodovias, ao contrário, em que o destinatário direto do serviço é a população, podem
ser objeto de concessão.
outro requisito para a instituição de uma concessão de serviço público corresponde à necessidade de que se trate de serviço uti singuli.7 somente com a individualização do destinatário do serviço se torna possível remunerar o seu concessionário pela
prestação do serviço. A possibilidade de individualização do serviço torna possível a
cobrança de tarifa do usuário e a consequente remuneração do concessionário.
É possível acrescentar outro requisito, de ordem formal, para a instituição do
regime de concessão: a existência de lei específica que autorize o Poder Executivo a realizar
a delegação do serviço público.
os municípios, por exemplo, são competentes para a prestação de serviços de
transporte coletivo intramunicipal. se determinado município optar pela sua prestação
sob regime de concessão ou de permissão, deve ser aprovada lei local que observe os
parâmetros de Lei nº 9.074/95.
Para que a união, estado, distrito Federal ou município possam instituir concessão, faz-se necessária a aprovação de lei específica. Cabe a esta lei definir o regime a
6
7
constitui elemento essencial da concessão e, em segundo lugar, induz a muita confusão no exame do equilíbrio
econômico da concessão. Assim, tem-se extraído o corolário de que o concessionário tem que arcar com riscos
previsíveis, e logo se entra na discussão das famigeradas áleas. o que é um risco previsível? no caso de concessão
rodoviária, a queda do fluxo de veículos em razão da baixa taxa de crescimento do PIB pode ser considerada
previsível? e pelo fato de ser previsível, tem de ser absorvida pelo concessionário, mesmo à custa do comprometimento da qualidade do serviço? É claro que qualquer ocorrência econômica futura sempre é previsível,
embora não desejável.
A Lei nº 11.079/04 disciplina duas modalidades contratuais, dentre elas a concessão administrativa. neste modelo
de “concessão”, o destinatário do serviço prestado pode ser a própria Administração Pública. mais adiante será
examinada com mais detalhe essa modalidade contratual e examinaremos o possível enquadramento da concessão administrativa no modelo contratual adotado pelo direito Administrativo.
o conceito de serviço uti singuli se opõe ao de serviço uti universi. o primeiro corresponde àquele em que o destinatário pode ser perfeitamente identificado. O fornecimento de energia elétrica em residências, por exemplo,
possui natureza uti singuli. A iluminação das vias públicas, ao contrário, possui natureza de serviço uti universi,
haja vista não ser possível identificar quem é ou quem são os destinatários do serviço. Esta distinção entre serviços uti singuli e uti universi também importa a cobrança de taxas ou tarifas. somente os primeiros permitem a
cobrança de taxas ou de tarifas de seus usuários.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
ser utilizado (se concessão ou permissão) e outros aspectos particulares da delegação
(prazo de vigência, possibilidade de prorrogação, órgão ou entidade competente para
conduzir a licitação e fiscalizar a execução do contrato etc.). Sem a existência de lei
específica, não é possível a instituição de concessão de serviço público. Aprovada a lei,
será realizada pela unidade administrativa competente a necessária licitação e será em
seguida firmado o contrato de concessão ou de permissão.
temos, portanto, os seguintes requisitos necessários à prestação de serviços públicos
sob regime de concessão:
1. deve tratar-se de serviço privativo do estado,8 definido na Constituição Federal
ou em lei como serviço público;
2. o serviço a ser delegado deve admitir a sua exploração em caráter empresarial,
em que as receitas auferidas pelo concessionário sejam suficientes para cobrir
as despesas necessárias à prestação do serviço;
3. o serviço deve ser prestado à população, sendo o concessionário remunerado
pelo usuário por meio do pagamento de tarifa;
4. deve-se tratar de serviço uti singuli; e
5. A existência de lei específica ou de dispositivo constitucional que autorize a
delegação do serviço à concessionária.
8.6 serviços passíveis de concessão e o texto constitucional
do ponto de vista do direito Positivo, a existência de aparente contradição no
texto constitucional tem sido fonte de intermináveis discussões acerca das situações
passíveis de delegação por meio de concessão de serviço público:
- o art. 175 do texto constitucional é genérico. de acordo com o que nele está
prescrito, qualquer serviço que atenda aos requisitos apresentados no item
anterior poderia ser objeto de uma concessão.
- O art. 21 da Constituição Federal, ao contrário, ao definir as atribuições
materiais da união, somente menciona a possibilidade de instituição de
concessão em hipóteses determinadas (serviços de telecomunicações – inciso Xi;
radiodifusão sonora e de sons e imagens – inciso Xii, “a”; serviços e instalações
de energia elétrica e o aproveitamento energético – inciso Xii, “b”; navegação
aérea, aeroespacial e a infraestrutura portuária – inciso Xii, “c”; serviços
de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras
nacionais, ou que transponham os limites de estado ou território – inciso
Xii, “d”; serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de
passageiros – inciso XII, “e”; portos marítimos, fluviais e lacustres – inciso XII,
“f”; a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas,
industriais e atividades análogas – inciso XXiii, “b”).
8
o serviço público objeto de concessão deve, além de admitir exploração econômica, ser privativo do estado.
nesse sentido, stF: “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 10.989/93 do estado de Pernambuco. educação: serviço público não privativo. mensalidades escolares. Fixação da data de vencimento. matéria de direito
contratual. vício de iniciativa. 1. os serviços de educação, seja os prestados pelo estado, seja os prestados por
particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser desenvolvidos pelo setor privado independentemente
de concessão, permissão ou autorização. 2. nos termos do artigo 22, inciso i, da Constituição do Brasil, compete à
união legislar sobre direito civil. 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente” (Adi
nº 1.007-Pe, Pleno. rel. min. eros Grau. Julg. 31.8.2005. DJ, 24 fev. 2006, grifos nossos).
463
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
464
A questão a ser enfrentada consiste em saber se lei somente poderia, à luz do
direito Constitucional, instituir regime de concessão para as situações expressamente
mencionadas pelo texto constitucional ou se, ao contrário, o legislador poderia, com
fundamento no art. 175, e desde que atendidos os requisitos apresentados no item
anterior, instituir concessão em outras hipóteses além dessas expressamente mencionadas pela Constituição Federal.
em relação ao serviço postal (CF, art. 21, X), por exemplo, o texto constitucional
não faz qualquer referência à possibilidade de ser instituída concessão. não obstante, a
Lei nº 9.074/95, em seu art. 1º, vii, expressamente enquadra mencionados serviços como
passíveis de delegação por meio de concessão ou de permissão.9 Poderia lei inserir na
lista dos serviços passíveis de prestação por meio de concessão algum que não tenha
sido objeto de expressa menção pelo texto da Constituição Federal?
em relação a este dispositivo da Lei nº 9.074/95, Celso Antônio Bandeira de mello
afirma que “para além de qualquer dúvida ou entredúvida, ofende a Lei Maior”.10
A questão não nos parece tão simples. Admitir que somente possam ser objeto
de concessão os serviços para os quais a Constituição expressamente menciona, de que
são exemplos os dispositivos do art. 21 mencionados (incisos Xi, Xii e XXiii), importaria em tornar letra morta o art. 175, que de forma genérica determina que o poder
público pode prestar serviços públicos diretamente ou por meio de concessões ou de
permissões de serviços públicos.
em relação à menção expressa aos serviços passíveis de delegação pela Constituição Federal, o intuito — parece-nos — foi o de afastar qualquer dúvida quanto à
possibilidade de eles poderem ser prestados sob regime de concessão, permissão ou
autorização e de tornar desnecessária a aprovação de lei específica para autorizar a
instituição do regime de concessão. ou seja, em relação a esses serviços, não pode haver
dúvida de que eles podem ser delegados independentemente de legislação específica.
9
10
no tocante ao caráter publicístico do serviço postal e à possibilidade de sua delegação, o supremo tribunal Federal, no julgamento da AdPF nº 46-dF, entendeu que o serviço postal, excluído desse conceito apenas a entrega de
encomendas e impressos, é prestado com exclusividade pelo poder público (em regime de monopólio pela
empresa Brasileira de Correios e telégrafos). Para melhor compreensão das razões que amparam esse entendimento, vale conferir o Informativo STF, n. 554, in verbis:
“o tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito
fundamental proposta pela Associação Brasileira das empresas de distribuição – ABrAed, em que se pretendia
a declaração da não recepção, pela CF/88, da Lei 6.538/78, que instituiu o monopólio das atividades postais pela
empresa Brasileira de Correios e telégrafos – eCt — v. informativos 392, 409 e 510. Prevaleceu o voto do min.
Eros Grau, que, tendo em conta a orientação fixada pelo Supremo na ACO 765 QO/RJ (pendente de publicação),
no sentido de que o serviço postal constitui serviço público, portanto, não atividade econômica em sentido
estrito, considerou inócua a argumentação em torno da ofensa aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. distinguindo o regime de privilégio de que se reveste a prestação dos serviços públicos do regime de
monopólio, afirmou que os regimes jurídicos sob os quais são prestados os serviços públicos implicam que sua
prestação seja desenvolvida sob privilégios, inclusive, em regra, o da exclusividade na exploração da atividade
econômica em sentido amplo a que corresponde essa prestação, haja vista que exatamente a potencialidade
desse privilégio incentiva a prestação do serviço público pelo setor privado quando este atua na condição de
concessionário ou permissionário. Asseverou, que a prestação do serviço postal por empresa privada só seria
possível se a CF afirmasse que o serviço postal é livre à iniciativa privada, tal como o fez em relação à saúde
e à educação, que são serviços públicos, os quais podem ser prestados independentemente de concessão ou
permissão por estarem excluídos da regra do art. 175, em razão do disposto nos artigos 199 e 209 (CF: ‘Art. 175.
incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre
através de licitação, a prestação de serviços públicos. (...) Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa
privada. (...) Art. 209. o ensino é livre à iniciativa privada’).” (AdPF nº 46-dF, Pleno. rel. min. marco Aurélio.
rel. p/ acórdão min. eros Grau. Julg. 5.8.2009. DJe, 26 fev. 2010)
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 662.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
diversa é a situação dos serviços para os quais o texto constitucional não admite
expressamente a delegação. em relação a estes, não obstante o silêncio da Constituição
Federal, a delegação é possível desde que seja aprovada lei pelo ente político titular
do serviço.11
esse raciocínio pode ser testado e comprovado quando é examinada a competência dos municípios para prestar serviços públicos de interesse local (CF, art. 30, v).
dispõe o texto que compete aos municípios “organizar e prestar, diretamente ou sob
regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o
de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. ora, se os municípios podem, desde
que o façam por meio de lei, optar pela prestação direta ou sob regime de concessão ou
de permissão de qualquer serviço em seu âmbito de atuação, por que para os estados
e para a união iríamos admitir solução diversa?
A solução aqui defendida foi, aliás, adotada pela Lei nº 9.074/95, que em seu art. 2º
dispõe que “é vedado à união, aos estados, ao distrito Federal e aos municípios executarem
obras e serviços públicos por meio de concessão e permissão de serviço público, sem lei
que lhes autorize e fixe os termos, dispensada a lei autorizativa nos casos de saneamento
básico e limpeza urbana e nos já referidos na Constituição Federal, nas Constituições
estaduais e nas Leis orgânicas do distrito Federal e municípios, observado, em qualquer
caso, os termos da Lei nº 8.987/95”.
Ademais, há serviços públicos cuja prestação não decorre do texto constitucional,
mas de situações de fato. esse tipo de situação pode surgir, por exemplo, da necessidade
de conservação e manutenção de uma rodovia, haja vista da obra surgir da necessidade de serem prestados os serviços de manutenção e de conservação. se prevalecesse
a tese de que a prestação do serviço sob regime de concessão somente seria possível nas
hipóteses em que a Constituição Federal tivesse expressamente autorizado a delegação,
não seria possível instituir concessões para qualquer desses serviços. A realidade demonstra, todavia, o contrário. utilizando-se do art. 175 do texto constitucional, o poder
11
no julgado a seguir indicado, o superior tribunal de Justiça manifestou o entendimento de que 1. é possível a
delegação de serviço não mencionado expressamente pela Constituição Federal; 2. nestas hipóteses, cabe à lei a
decisão acerca da delegação. In verbis:
“Processual Civil e Administrativo. inexistência de omissão e contradição no acórdão a quo. Cemitério particular. Construção e exploração. serviços funerários interligados e concomitantes. Licença prévia e autorização
legislativa. Art. 175, da CF/1988 e Leis nº 8.666/93 e 9.074/95. 1. Argumentos da decisão a quo que se apresentam
claros e nítidos. não dão lugar a omissões, obscuridades, dúvidas, contradições ou ausência de fundamentação.
o não-acatamento das teses contidas no recurso não implica cerceamento de defesa, posto que ao julgador cabe
apreciar a questão de acordo com o que ele entender atinente à lide. não está obrigado o magistrado a julgar a
questão posta a seu exame de acordo com o pleiteado pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento
(art. 131, do CPC), utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação
que entender aplicável ao caso. 2. não obstante a interposição de embargos declaratórios, não são eles mero
expediente para forçar o ingresso na instância extraordinária, se não houve omissão do acórdão que deva ser
suprida. inexiste ofensa ao art. 535, i e ii, do CPC, quando a matéria enfocada é devidamente abordada no voto
do aresto a quo. 3. ‘A simples construção de cemitério, por sociedade comercial, fica na dependência de licença
por parte da Administração, mas exploração dos serviços funerários do empreendimento depende de licitação e
autorização legislativa, nos moldes exigidos pelo art. 175, da CF/88, e pelas Leis nº 8.666/93 e 9.074/95’ (Acórdão
recorrido). 4. ninguém constrói um cemitério, pura e simplesmente, para servir como monumento, desativado,
sem qualquer finalidade. De acordo com a interpretação do art. 2º, da Lei nº 9.074/95, não se pode dissociar a
construção de cemitério da exploração dos serviços funerários. Conforme o próprio contrato social da recorrente, é público e notório que a sua intenção é, também, a exploração dos serviços funerários, os quais são intimamente ligados com a exploração do cemitério. 5. A exploração de serviços funerários é um serviço público,
sendo vedado ao Município conceder ou permitir a prestação do mesmo sem prévias autorização legislativa e licitação, não
forma do disposto (ex vi normas acima citadas). 6. não preenchidos os pressupostos necessários, não há que se conceder a licença postulada. 7. recurso especial não provido.” (stJ. resp nº 622.101-rJ, 1ª turma. rel. min. José
delgado. Julg. 20.4.2004. DJ, 17 maio 2004, grifos nossos)
465
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
466
público, que tem o dever de prestar os serviços referentes a referido bem público, pode,
se assim o desejar, aprovar lei que institua que a prestação dos serviços seja feita sob
regime de concessão.
A definição dos serviços a serem prestados sob regime de concessão ou permissão
é, portanto, matéria a ser definida no âmbito legal. Essa solução foi adotada pela Lei
nº 9.074/95, conforme dispõe o art. 2º já transcrito.
8.7 Conceito legal
A Lei nº 8.987/95, em seu art. 2º, ii, conceitua concessão de serviço público como “a
delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade
de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade
para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado”.
o dispositivo legal apresenta, além do conceito, algumas características da concessão
de serviço público. são elas:
1. A concessão é uma delegação de serviço público, o que importa em dizer que por
meio do contrato de concessão será transferida a um particular a incumbência
da prestação do serviço público sem que isso importe, todavia, em transferência
da titularidade do serviço;
2. A formalização da concessão depende de licitação, que deve observar necessariamente a modalidade de concorrência;
3. somente pode ser concessionário de serviço público pessoa jurídica12 ou consórcio
de empresas que demonstre a necessária capacidade para o seu desempenho; e
4. A exploração da concessão deve ser feita pelo concessionário por sua conta e
risco.
trataremos de cada um das características ao longo deste capítulo.
8.8 Concessão de serviço público precedida de obra pública
A Lei nº 8.987/95, em seu art. 2º, iii, menciona a concessão de serviço público
precedida da execução de obra pública como modalidade distinta da concessão de
serviço público.
A lei dispõe que deve ser entendida como concessão de serviço público precedida
da execução de obra pública “a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder
concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou
consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta
e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado
mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado”.
12
A Lei nº 8.987/95, em seu art. 35, ao dispor sob as hipóteses de extinção da concessão, expressamente menciona
em seu inciso vi a incapacidade ou morte do titular da empresa individual. ora, nos termos do Código Civil
(art. 44 c/c art. 996), o titular da empresa individual, no caso o empresário, não é pessoa jurídica, mas física
(exceto na hipótese do inciso vi do art. 44 do Código Civil, incluído pela Lei nº 12.441/2011). trata-se, portanto,
de mera ficção jurídica feita pela Lei nº 8.987/95, que trata o empresário individual como se fosse pessoa jurídica,
ainda que não o seja. De se observar que essa mesma ficção é feita pelo Direito Tributário que, por exemplo,
concede ao empresário individual CnPJ, e não o CPF.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
Antes de qualquer outra consideração, deve ser afastada qualquer interpretação
que leve à conclusão de que a concessão de serviço público não possa incluir como
obrigação do concessionário a execução de obras públicas. ou seja, a existência de
modalidade de concessão precedida de obra não resulta em vedação para que a concessão de serviço público não possa incluir como obrigação do concessionário o dever
de realizar obras. empresa que obtenha a concessão para a exploração de uma rodovia,
por exemplo, terá necessariamente de realizar obras de manutenção ou mesmo de
ampliação da rodovia, não obstante se trate de concessão de serviço público.
A distinção entre uma e outra modalidade de concessão, não obstante nos pareça
evidente do ponto de vista conceitual (se o objeto — rodovia, ferrovia, porto, ponte — a
ser explorado pelo concessionário ainda não existe, cuida-se de concessão de serviço
público precedida de obra pública; se a obra já existe, ainda que se façam necessárias
obras complementares de ampliação, reforma etc., será instituída concessão de serviço
público), é objeto de alguma controvérsia. essa controvérsia, todavia, não se mostra
relevante, haja vista o regime jurídico aplicável às duas modalidades de concessão ser
exatamente o mesmo e, em qualquer caso, o concessionário estar obrigado a realizar
as obras definidas no contrato.
no caso de concessão de serviço público de rodovia já existente, é indiscutível
que sempre se farão necessárias obras de conservação, de manutenção, de ampliação etc.
estes encargos devem, em qualquer caso, estar devidamente discriminados no contrato.
8.9 Concessão e permissão de uso de bem público
Há situações em que a exploração de determinados bens públicos requer do
particular responsável pela sua gestão a prestação de serviços à população. É o que se
verifica com as rodovias objeto de concessão, em que o concessionário presta aos usuários serviços de conservação e de manutenção, sendo remunerado por meio de tarifa.
em outras hipóteses, a exploração de bens públicos não envolve a prestação de
serviços públicos. exemplo: a exploração de bancas de jornal. Aqui, o particular utiliza
a área pública para a comercialização de revistas e jornais, sem que dele seja exigida
a prestação de qualquer serviço público. A exploração de áreas em edifícios públicos
por particulares para o funcionamento de restaurantes é outra hipótese comum de utilização de bens públicos por particulares que não importam na prestação de serviços
públicos. Para situações como estas, em que não se requer do particular a prestação de
serviço público, o regime a ser utilizado será o da permissão ou da concessão de uso
de bens públicos.
As concessões e permissões de uso são disciplinadas pela Lei nº 8.666/93 e requerem a realização de licitação, em que será sagrado vencedor o licitante que propuser a
maior oferta de pagamento ao poder público (ainda que haja situações em que o critério
de julgamento seja o do menor valor a ser cobrado do usuário — exemplo: permissão
de uso de espaço em órgãos públicos para funcionamento de restaurantes).
nas concessões de serviço público regidas pela Lei nº 8.987/95, ao contrário,
o principal aspecto a ser considerado na licitação para julgamento das propostas é o
menor valor da tarifa a ser cobrada dos usuários.
A distinção entre os institutos da concessão e permissão de serviço público em
relação às concessões e permissões de uso de bens públicos é relevante e importa na
467
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
468
adoção de regimes jurídicos bastante distintos. referimo-nos, no caso, aos regimes
definidos pelas Leis nº 8.666/93 e 8.987/95.
maiores considerações acerca da concessão de uso e da permissão de uso de bens
públicos serão apresentadas no Capítulo 14, relativo aos bens públicos.
8.10 Licitação das concessões
todas as concessões (e permissões) de serviço público devem ser sempre precedidas
de licitação. esse imperativo decorre do texto da Constituição Federal (art. 175). não se
admite a instituição de concessão ou de permissão que não tenham sido precedidas do
prévio procedimento licitatório.13
não obstante a clareza do texto constitucional, a realidade da maioria dos estados
e municípios brasileiros demonstra a existência de inúmeras situações em que, de modo
ilegal e inconstitucional, são instituídas permissões ou concessões sem licitação e, sob o
argumento — quase sempre falacioso — de que qualquer tentativa de legalização poderia
sujeitar a população ao risco de descontinuidade, a ilegalidade se perpetua de modo
indefinido, ilegalidade que muitas vezes ocorre com os auspícios do Poder Judiciário.
em relação ao dever de licitar, não obstante a Lei nº 8.666/93 possa ser utilizada
subsidiariamente para disciplinar as concessões de serviço público naquilo que não
13
o superior tribunal de Justiça tem decidido que a concessão realizada sem o procedimento licitatório incide em
nulidade, afastando-se da empresa concessionária o direito à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato. nesse sentido, os seguintes acórdãos do stJ:
“Administrativo – exploração do serviço público – Permissão e concessão – Pretensão de indenização – equilíbrio econômico-financeiro (art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93) – Ausência de licitação, vício sancionado
com nulidade pelo art. 4º, iii, ‘a’, da Lei nº 4.717/65. - Realizada a concessão sem o procedimento licitatório exigido,
incide na nulidade prevista no art. 4º, III, ‘a’, da Lei nº 4.717/65, afastando da concessionária o direito à manutenção do
equilíbrio econômico-financeiro reclamado, decorrente do contrato. - descabida, assim, a pretensão fundada no art. 59,
parágrafo único da Lei nº 8.666/93. - recurso especial improvido.” (resp nº 341.575-mG, 1ª turma. rel. min.
Humberto Gomes de Barros. Julg. 15.8.2002. DJ, 23 set. 2002, grifos nossos)
“Administrativo e Processual Civil. Ausência de prequestionamento parcial. transporte coletivo público. termo
de permissão, com características de concessão. Indenização. Alegação de prejuízos decorrentes de tarifas deficitárias. inocorrência de procedimento licitatório. ilegalidade. inexistência de boa-fé do contratante. Prevalência
do interesse público sobre o particular. 1. recurso especial interposto contra v. Acórdão que julgou improcedente
ação intentada por empresas permissionárias do serviço público de transporte coletivo da região metropolitana
de Belo Horizonte, com vistas a obter indenização por prejuízos decorrentes de tarifas deficitárias impostas ao
setor, causadoras do desequilíbrio econômico-financeiro do ajuste firmado por ocasião da permissão. 2. Ausência
de prequestionamento sobre aspectos suscitados que não foram objeto de debate pela decisão recorrida no ambiente do apelo extremo. 3. termo de Permissão assinado pelo Poder Público e pela permissionária. os elementos componentes do mencionado termo levam a que se considere que, entre partes, houve, verdadeiramente,
a Concessão de serviço público. 4. exigência de procedimento licitatório prévio para validação de contrato de
concessão com a Administração Pública, quer seja antes da Constituição Federal de 1988, quer após a vigência
da mencionada Carta. 5. Não havendo a licitação, a fim de garantir licitude aos contratos administrativos, pressuposto, portanto, para a sua existência, validade e eficácia, não pode se falar em concessão e, por conseqüência,
nos efeitos por ela produzidos. 6. As relações contratuais do Poder Público com o particular são desenvolvidas
com obediência rigorosa ao princípio da legalidade. Ferido tal princípio, inexiste direito a ser protegido, para
qualquer das partes, além de determinar responsabilidades administrativas, civis (improbidade administrativa)
e penais, quando for o caso, para o administrador público. 7. em razão do uso indiscriminado das permissões de
serviço público, é de se lhe atribuir efeitos análogos aos do instituto da concessão de serviço público quando a
complexidade da atividade deferida por meio daquele instituto seja de tal monta que exija um longo prazo para
o retorno dos altos investimentos realizados no intuito de viabilizar a sua prestação. 8. este direito está condicionado à licitude da atividade prestada pelo permissionário, de modo que, ausente prévio procedimento licitatório, não
há que se falar em manutenção do equilíbrio econômico-financeiro que nele deveria ser estipulado, cabendo ao permissionário,
em atenção ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular e à sua inexistente boa-fé, suportar os ônus
decorrentes de uma ilegalidade que lhe favoreceu. 9. recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido.” (resp
nº 403.905-mG, 1ª turma. rel. min. José delgado. Julg. 26.3.2002. DJ, 06 maio 2002, grifos nossos)
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
tenha sido regulado pela Lei nº 8.987/95, não é possível utilizar as hipóteses de dispensa
ou de inexigibilidade previstas na mencionada Lei nº 8.666/93 para as contratações de
concessões de serviço público.
o tratamento diferenciado entre os dois regimes jurídicos decorre da própria
Constituição Federal. em relação aos contratos de obra, compra, serviço e alienação,
regidos pela Lei nº 8.666/93, o art. 37, XXi, da Constituição Federal determina que eles
deverão ser licitados “ressalvados os casos especificados na legislação”. Ao tratar das
concessões, o art. 175, caput, do texto constitucional é inequívoco ao afirmar que a celebração do contrato de concessão dar-se-á sempre através de licitação.14
Há situações excepcionais, como a prevista no art. 23, §2º, da Lei nº 9.427/96, que
autorizam a contratação de concessão sem licitação.15 vê-se que nesta hipótese — que
corresponde à licitação deserta prevista na Lei nº 8.666/93, art. 24, v —, a rigor, foi realizada a licitação. Não tendo, todavia, comparecido qualquer interessado, a ANEEL fica
autorizada a firmar o contrato de concessão.
outra observação importante quanto à licitação para as concessões de serviço
público diz respeito à modalidade a ser utilizada, que será sempre a concorrência (Lei
nº 8.987/95, art. 2º, ii). toda concessão depende, portanto, necessariamente de licitação
a ser realizada na modalidade de concorrência.16
importa observar que a Lei nº 8.987/95, em seu art. 18-A, incluído pela Lei nº 11.196/05,
dispõe que o edital de licitação poderá prever a inversão da ordem das fases de habilitação e
julgamento. Havendo essa inversão, então, encerrada a fase de classificação das propostas ou
o oferecimento de lances, será aberto o invólucro com os documentos de habilitação do licitante mais bem classificado, para verificação do atendimento das condições fixadas no edital.
não deve haver confusão, todavia, entre a licitação para a instituição de uma
concessão, que pressupõe a realização de licitação na modalidade de concorrência, e a
alienação de ações que dividem o capital social de empresas estatais pertencentes ao
poder público, que podem, eventualmente, ser concessionárias de serviços públicos.
14
15
16
o tribunal de Contas da união, ao tratar de denúncia de que alguns serviços de infraestrutura aeroportuária do
Aeroporto de Congonhas/sP haviam sido concedidos sem a prévia realização de licitação, manifestou-se no sentido
de que “não há ilegalidade na celebração direta, sem licitação, de contrato para a concessão de áreas aeroportuárias
de uso diretamente relacionado à exploração dos serviços de navegação aérea já devidamente concedidos por
meio do competente procedimento licitatório”. Assim, no entendimento do tCu, a exigência constitucional de
inafastabilidade de licitação para a concessão de serviços de infraestrutura aeroportuária diretamente relacionados
ao serviço de navegação aérea reputar-se-á plenamente cumprida no momento mesmo em que, por licitação,
forem outorgados esses serviços de navegação aérea. Acórdão nº 1.284, Plenário. rel. min. raimundo Carreiro.
sessão: 2.7.2008.
mencionada Lei nº 9.427/96 dispõe nos seguintes termos:
“Art. 23. (...)
§2º nas licitações mencionadas no parágrafo anterior, a declaração de dispensa de licitação só será admitida
quando não acudirem interessados à primeira licitação e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem
prejuízo para a administração, mantidas, neste caso, todas as condições estabelecidas no edital, ainda que modifiquem condições vigentes de concessão, permissão ou uso de bem público cujos contratos estejam por expirar.”
A Lei nº 9.074/95, em seu art. 27, admite que “nos casos em que os serviços públicos, prestados por pessoas jurídicas sob controle direto ou indireto da união, para promover a privatização simultaneamente com a outorga de
nova concessão ou com a prorrogação das concessões existentes a união, exceto quanto aos serviços públicos de
telecomunicações, poderá: i - utilizar, no procedimento licitatório, a modalidade de leilão, observada a necessidade da venda de quantidades mínimas de quotas ou ações que garantam a transferência do controle societário”.
nesta hipótese, a possibilidade de utilização do leilão mais se aproxima de situações de transferência de controle
acionário de empresas controladas pela união do que propriamente de uma licitação de uma nova concessão. o
legislador houve por bem apresentar essa hipótese como exceção à utilização da concorrência em razão de que a
empresa estatal que antes prestava o serviço e que será privada não ser, tecnicamente, uma concessionária.
469
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
470
Nesta segunda hipótese, situação que se verificou na alienação de ações de empresas
pertencentes ao antigo sistema telebras, as empresas já existiam e eram consideradas
concessionárias de serviço público. Foram alienadas por meio de leilão. Assim, se o
poder público decide alienar seu controle acionário, poderá utilizar outras modalidades
de licitação, e não necessariamente a concorrência.17
Preliminarmente à realização da licitação, a Lei nº 8.987/95 impõe algumas
obrigações ao poder concedente. A mais importante de todas diz respeito ao correto planejamento da concessão.
indiscutível que a execução de um contrato cuja vigência, em alguns casos, tem
chegado a 35 anos envolve inúmeras dúvidas, algumas impossíveis de serem previstas
por ocasião da elaboração do edital. todavia, quanto melhor o planejamento, quanto
melhores as avaliações, estudos, pareceres técnicos, jurídicos, econômicos, sociais etc.,
maior segurança terão os interessados para apresentarem suas propostas e menor a
possibilidade de conflitos durante a execução do contrato.
Aspecto que reduz significativamente as incertezas do processo diz respeito
à possibilidade de, na fase interna, haver intensa participação dos agentes econômicos
interessados na formatação do objeto da concessão. desde que feita de forma transparente
e isonômica, o poder concedente tem o dever de ouvir, ao longo de toda a discussão
interna em que se define o modelo da concessão, os interessados na execução do projeto.
Quanto maior a interferência dos agentes econômicos no processo de elaboração do
modelo de concessão, maior a possibilidade de sucesso do processo.
relativamente a esses “estudos, investigações, levantamentos, projetos, obras
e despesas ou investimentos já efetuados, vinculados à concessão, de utilidade para
a licitação, realizados pelo poder concedente ou com a sua autorização”, o art. 21 da
Lei nº 8.987/95 determina que eles devem ser postos “à disposição dos interessados”.
outra medida de caráter preliminar diz respeito à necessidade prevista no art. 5º de
que o poder concedente publique “ato justificando a conveniência da outorga de concessão
ou permissão, caracterizando seu objeto, área e prazo”.
A licitação para a concessão de serviço público deve adotar, conforme observado (art. 2º, ii), a modalidade da concorrência. esta segue, basicamente, o mesmo
procedimento previsto na Lei nº 8.666/93, inclusive no que diz respeito à observância
“dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por
critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório”.
A mais importante distinção entre a licitação regida pela Lei nº 8.666/93 e a licitação das concessões de serviço público reside nos critérios para julgamento das propostas.
de acordo com a Lei nº 8.666/93 (art. 45), os tipos de licitação são: menor preço,
melhor técnica, técnica e preço e maior lance ou oferta.
17
De acordo com o Supremo Tribunal Federal, o leilão afigura-se modalidade de licitação adequada para a venda,
à iniciativa privada, de ações de empresas estatais prestadoras de serviço público. satisfaz-se, assim, com o
leilão, a exigência de licitação para a celebração do contrato de concessão que se segue à privatização mediante
transferência do controle acionário das estatais prestadoras de serviços públicos. In verbis:
“Constitucional. Privatização. venda de ações: leilão. Lei 9.074/95, art. 27, i e ii. C.F., art. 175. Lei 8.666/93, arts. 3º e
22. i. - Constitucionalidade do art. 27, I e II, da Lei 9.074, de 7.7.95, por isso que a Constituição Federal estabelece, no art. 175,
que a concessão e a permissão para a prestação de serviços públicos serão precedidas de licitação e o conceito e as modalidades da
licitação estão na lei ordinária, Lei 8.666/93, artigos 3º e 22, certo que o leilão é modalidade de licitação (Lei 8.666/93, art. 22).
ii. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.” (Adi nº 1.582-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso.
Julg. 7.8.2002. DJ, 06 set. 2002, grifos nossos).
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
no julgamento da licitação para as concessões, os critérios a serem utilizados,
nos termos da Lei nº 8.987/95, art. 15, são os seguintes:
i - o menor valor da tarifa do serviço público a ser prestado;
ii - A maior oferta, nos casos de pagamento ao poder concedente pela outorga
da concessão;
iii - A combinação, dois a dois, dos critérios referidos nos incisos i, ii e vii;
IV - Melhor proposta técnica, com preço fixado no edital;
v - melhor proposta em razão da combinação dos critérios de menor valor da
tarifa do serviço público a ser prestado com o de melhor técnica; vi – melhor
proposta em razão da combinação dos critérios de maior oferta pela outorga
da concessão com o de melhor técnica; ou
VII - Melhor oferta de pagamento pela outorga após qualificação de propostas
técnicas.
vê-se que o principal critério para julgamento das propostas previsto na Lei
nº 8.666/93 é o menor preço a ser cobrado da Administração Pública; no caso das
concessões (Lei nº 8.987/95), o critério básico é a menor tarifa a ser cobrada do usuário.
relativamente ao critério mencionado no inciso ii do art. 15 mencionado (“maior
oferta de pagamento ao poder concedente pela outorga da concessão”), pelas razões já
aduzidas, o temos como inconveniente (inconveniência que beira as raias da inconstitucionalidade — conforme já afirmamos), de modo que deve ser evitada a sua utilização.
As principais informações do edital são previstas no art. 18 da lei. dentre elas,
destacamos as relativas:
- Ao objeto, às metas e ao prazo da concessão;
- À descrição das condições necessárias à prestação adequada do serviço;
- Às possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias,
bem como as provenientes de projetos associados;
- Aos direitos e obrigações do poder concedente e da concessionária em relação
a alterações e expansões a serem realizadas no futuro, para garantir a continuidade da prestação do serviço;
- Aos critérios de reajuste e revisão da tarifa; critérios, indicadores, fórmulas e
parâmetros a serem utilizados no julgamento técnico e econômico-financeiro
da proposta; indicação dos bens reversíveis;
- Às características dos bens reversíveis e às condições em que estes serão postos
à disposição, nos casos em que houver sido extinta a concessão anterior;
- À expressa indicação do responsável pelo ônus das desapropriações necessárias
à execução do serviço ou da obra pública, ou para a instituição de servidão
administrativa.
8.11 Equilíbrio econômico-financeiro da concessão
o equilíbrio econômico é um dos critérios reguladores de quaisquer contratos,
sejam eles públicos ou privados.
em matéria de concessão de serviço público, é imperativa a necessidade de serem
definidos os mecanismos necessários à manutenção do equilíbrio entre encargos do
concessionário e a remuneração a ser paga como tarifa.
Existem, todavia, aspectos que dificultam a preservação desse equilíbrio nas
concessões:
471
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
472
- A concessão deve ser explorada sob conta e risco do concessionário;
- O contrato de concessão está sujeito a modificações, inclusive unilaterais por
parte do poder concedente;
- o parâmetro para a manutenção do equilíbrio é a proposta inicialmente
apresentada pelo concessionário.
O decurso do tempo e as modificações sofridas pelo contrato ao longo da execução da concessão fazem com que seja, em alguns casos, impossível a observância
desse parâmetro.
A Lei nº 8.987/95 faz referência em inúmeros dispositivos à manutenção do
equilíbrio econômico-financeiro. O art. 10 dispõe que “sempre que forem atendidas
as condições do contrato, considera-se mantido seu equilíbrio econômico-financeiro”.
As condições que levaram à celebração do contrato devem servir de parâmetro
para a definição do ponto de equilíbrio do contrato. Este é o princípio básico adotado
pela Lei nº 8.987/95. operacionalizar esse princípio não é, todavia, tarefa fácil.
Existem inúmeros métodos para a definição do equilíbrio. O modelo utilizado
com mais frequência é o project finance, em que a concessão é vista como um projeto a
ser financiado.18 o concessionário é tido como o responsável pela captação de recursos
no mercado, e as garantias dos financiadores recaem sobre o fluxo de caixa, tido como
a fonte básica de retorno do capital investido.
Cabe observar que, visando a dar maior garantia aos financiadores e, dessa forma,
incentivar o financiamento de longo prazo (cinco anos ou mais) de projetos de concessões de serviços públicos, incluiu-se na Lei nº 8.987/95, por meio da Lei nº 11.196/05, o
art. 28-A, dispondo: “Para garantir contratos de mútuo de longo prazo, destinados a
investimentos relacionados a contratos de concessão, em qualquer de suas modalidades,
as concessionárias poderão ceder ao mutuante, em caráter fiduciário, parcela de seus
créditos operacionais futuros”.
A grande dúvida que persiste no modelo de concessão consiste em saber se o
poder público poderia assegurar aos investidores um lucro mínimo. Assegurado esse
lucro, restaria significativamente mais fácil para ele captar investimento. Isso importaria, todavia, na criação de um modelo em que não haveria risco para o concessionário,
ou em que esse risco seria sensivelmente reduzido. estas soluções, ao menos aparentemente, conflitam com uma das características do sistema de concessão de serviço
público adotado pelo modelo legal brasileiro, segundo o qual a concessão é explorada
sob o risco do concessionário.
18
na verdade, o project finance não se presta a definir o equilíbrio econômico-financeiro para a concessão. O project
finance representa apenas um modelo de financiamento dos investimentos a serem feitos pelo concessionário
para a obtenção da infraestrutura necessária à prestação dos serviços públicos que lhe foram outorgados. Com
a adoção do project finance, a concessão passa a ser considerada como um projeto a ser financiado de forma
autônoma em relação à empresa ou às empresas investidoras. Por isso o project finance se diferencia do modelo
tradicional de financiamento conhecido por corporate finance. Neste, o financiamento é feito em favor de uma
empresa, que assume as obrigações financeiras oferecendo ao financiador garantias tradicionais como hipoteca,
penhor, fiança, entre outras. No project finance, o financiamento realiza-se em favor de um projeto de investimento,
considerado este uma entidade juridicamente distinta das empresas investidoras (geralmente essa entidade
juridicamente distinta é chamada de special purpose company, ou empresa de propósito específico), recaindo as
garantias oferecidas ao financiador sobre o próprio fluxo de caixa do empreendimento financiado. Assim, pode-se
dizer que o modelo de financiamento adotado em uma concessão influencia o jogo de interesses envolvido nas
discussões referentes ao equilíbrio econômico-financeiro dessa concessão, mas não representa um método de
definição desse equilíbrio.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
A adoção de um modelo que reduza o risco do concessionário corresponde a uma
decisão de política estratégica do Estado e, pelas razões a seguir expostas, não conflita
com o vigente sistema jurídico.
se o ambiente para o qual o poder concedente busca desenvolver o seu projeto de
concessão for de alto risco, talvez a imposição no contrato de cláusulas que assegurem
ao concessionário um mínimo de retorno do investimento seja a única solução para a
atração de capitais. É melhor ter o sistema funcionando de forma distinta do padrão das
concessões — em que os riscos dos investimentos são integralmente ou eminentemente
assumidos pelo concessionário — do que não ter sistema algum em funcionamento.
A flexibilização do modelo de concessão e a criação de garantias que assegurem
ao concessionário o retorno dos seus investimentos, no Brasil, talvez seja a forma para
atrair os vultosos investimentos de que necessitamos para o desenvolvimento nacional,
sobretudo na área de infraestrutura.
Cabe ao edital da concessão definir as garantias de equilíbrio do contrato. Não
encontramos em nosso ordenamento jurídico qualquer empecilho à adoção de garantias
ou de modelo que objetive a redução dos riscos do investimento.19
Garantia possível seria a própria flexibilização do conceito de equilíbrio do
contrato, que poderia ser alterado independentemente da ocorrência de fatos imprevisíveis ou insuperáveis, flexibilização que teria por objetivo favorecer a concessão, e
não o concessionário.
Eventos futuros previsíveis são normalmente qualificados como integrantes da
chamada álea ordinária do contrato e correm por conta do concessionário; os eventos
imprevisíveis são considerados álea extraordinária e permitem a recomposição do
equilíbrio do contrato. Essa é concepção básica utilizada para a definição do modelo
genérico de recomposição do equilíbrio financeiro nos contratos de concessão. Se, todavia, o próprio edital da licitação irá garantir ao licitante que a taxa interna de retorno
do investimento (tir) utilizada pela concessionária em sua proposta será assegurada,
trata-se de decisão política a ser adotada pelo poder concedente dentro da sua capacidade de definição da política tarifária da concessão.
Aspecto menos controvertido da recomposição do equilíbrio do contrato de
concessão corresponde à álea extraordinária, que compreende a álea administrativa. nos
termos da lei, sempre que o poder concedente se utilizar de prerrogativa para modificar
a concessão, e isto importar em alteração do equilíbrio do contrato, deve ser recomposto
19
no sentido de que o poder concedente deve dotar o edital de licitação de cláusulas que visem à manutenção do
equilíbrio econômico-financeiro da concessão, cite-se o seguinte excerto do Acórdão TCU nº 2.104, Plenário (Rel.
min. ubiratan Aguiar. sessão: 24.9.2008):
“ACordAm os ministros do tribunal de Contas da união, reunidos em sessão Plenária, ante as razões expostas
pelo relator, em:
9.1 aprovar, com ressalvas, o 1º estágio de que trata os arts. 3º e 4º da instrução normativa tCu nº 46/2004, no
que se refere ao processo de outorga de serviço público relativa à concessão para restauração, manutenção,
operação e aumento da capacidade de trechos rodoviários da Br-116 e da Br-324 no estado da Bahia, condicionada a continuidade do processo, com a publicação do edital do certame, ao cumprimento das determinações
indicadas no subitem 9.2.1 deste acórdão;
9.2 com fulcro no inciso ii do art. 250 do regimento interno/tCu, determinar à Agência nacional de transportes
terrestres (Antt) que:
9.2.1 na presente concessão rodoviária: (...)
9.2.1.2 inclua cláusula prevendo a revisão periódica da tarifa a fim de repassar os ganhos decorrentes de produtividade e da eficiência tecnológica, o aumento ou a redução extraordinária dos custos e/ou das despesas da
concessionária, bem como as alterações ocorridas no custo de oportunidade do negócio, de acordo com o §2º do
art. 9º e o inciso v do art. 29, ambos da Lei nº 8.987/1995; (...).”
473
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
474
este equilíbrio.20 também está inserida na álea extraordinária a chamada álea econômica,
que compreende eventos futuros externos ao contrato, imprevisíveis e insuperáveis.
Ao definir como ocorrerá a recomposição do equilíbrio do contrato, e dentro
de que periodicidade dar-se-á essa recomposição, cabe ao edital fixar o modelo da
concessão a ser adotada, devendo ser definidos mecanismos de revisão ordinária e
extraordinária da tarifa que assegurarem a qualidade da concessão, e não apenas o
retorno do investimento do concessionário.
O sucesso de uma concessão pressupõe a correta definição do modelo de recomposição do equilíbrio do contrato, e este modelo requer cuidadoso exame dos riscos
do empreendimento.
A primeira observação, nesse contexto, aponta para a atenção que se deve ter na
distribuição dos riscos entre os agentes envolvidos — poder concedente, concessionário e
usuários —, que não pode ser uniforme para todas as concessões.
em concessões de longo prazo, sempre surgirão contingências não previstas no
início do contrato. nesse sentido, na fase de elaboração do projeto de uma concessão,
deve-se proceder à:
- Identificação dos riscos potenciais;
- Definição das medidas de atenuação ou de reparação dos riscos; e
- Atribuição do risco ao agente melhor capacitado para lidar com ele e que seja
mais capaz de resolvê-lo.
os riscos a serem considerados em uma concessão são os seguintes:
1. Jurídicos – leis e regulamentos claros e adequados; mecanismos de resolução
de conflitos de modo célere, existência de órgão regulador e de órgão externo
20
no sentido de que eventos da álea extraordinária devem dar ensejo à recomposição do equilíbrio econômicofinanceiro da concessão, com vistas à satisfação do interesse público traduzido na continuidade da prestação do
serviço concedido, vide os seguintes julgados do stJ:
“suspensão de liminar e de sentença – Lei municipal nº 1.240/01 – instituição de ‘passe livre’ para pessoas carentes – Manutenção do equilíbrio econômico-financeiro – Ofensa à ordem e segurança pública não configurados.
1. mesmo nos contratos administrativos, ao poder de alteração unilateral do Poder Público contrapõe-se o direito que
tem o particular de ver mantido o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, considerando-se o encargo assumido e a
contraprestação pecuniária garantida pela administração. 2. no pedido de suspensão não se analisa o mérito da
controvérsia, cuja apreciação deve se dar nas vias recursais ordinárias. 3. sem a demonstração do risco de dano
alegado, impõe-se o indeferimento do pedido de suspensão proposto como sucedâneo recursal. Precedentes. 4.
Agravo regimental não provido.” (AG na sLs nº 79-sP, Corte especial. rel. min. edson vidigal. Julg. 29.6.2005.
DJ, 29 ago. 2005, grifos nossos)
“Agravo regimental – Gratuidade de transporte terrestre interestadual ao idoso – suspensão segurança – indeferimento – Manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato – Lesão à ordem pública não configurada. 1. Não se examina em pedido de suspensão lesão à ordem jurídica, cuja análise fica resguardada às vias
recursais ordinárias. 2. Ao estabelecer um serviço de transporte de natureza assistencial em favor dos idosos de
baixa renda o legislador exigiu, como condição de eficácia do dispositivo, a edição de legislação específica para
regulamentar sua execução na integralidade. Diante da inexistência de legislação específica não há que se falar
em eficácia do dispositivo legal. 3. O serviço de transporte coletivo rodoviário se realiza por ações de empresas
mediante contratos de concessão, permissão ou autorização firmados com o Poder Público. São portanto contratos administrativos nos quais, desde a celebração, deve estar prevista a forma de ressarcimento, pelo estado,
das despesas da empresa na execução do serviço público. 4. mesmo nos contratos administrativos, ao poder de
alteração unilateral do Poder Público contrapõe-se o direito que tem o particular de ver mantido o equilíbrio econômicofinanceiro do contrato, considerando-se o encargo assumido e a contraprestação pecuniária garantida pela administração.
5. A Constituição Federal exige que nenhum benefício ou serviço da seguridade social seja criado, majorado ou
estendido sem a correspondente fonte de custeio. 6. Por tratar-se a suspensão de contracautela vinculada aos
pressupostos de plausibilidade jurídica do pedido e do perigo da demora, não há prejulgamento do mérito da
controvérsia quando no pedido de suspensão exerce o Presidente um Juízo mínimo de deliberação indispensável à aferição de existência ou não de fumus boni iuris. 7. não havendo lesão a quaisquer dos bens jurídicos
tutelados pela norma de regência, é de ser negada a suspensão requerida. 8. Agravo não provido.” (AG na ss
nº 1.404-dF, Corte especial. rel. min. edson vidigal. Julg. 25.10.2004. DJ, 06 dez. 2004, grifos nossos)
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
responsável pela fiscalização independentes, regime jurídico que assegure o
direito de propriedade e respeito aos contratos, mecanismos que previnam
a prática de atos ilícitos no relacionamento entre poder concedente e concessionário e evitem a captura de servidores dos órgãos reguladores pelo
concessionário, redução do risco jurisdicional, que se verifica quando o Poder
Judiciário e o ministério Público adotam postura intervencionista na concessão,
desrespeita a discricionariedade da Administração Pública e gera processos
judiciais infindáveis;
2. Políticos – estabilidade democrática, aceitação social da necessidade de pagamento pela prestação dos serviços públicos; não discriminação quanto à
nacionalidade dos investidores;
3. Econômicos – estabilidade política macroeconômica; taxa de risco do país; política
fiscal e cambiária adequadas;
4. Técnicos:
- de desenho – elaboração do projeto com ampla participação dos agentes envolvidos, identificação dos riscos, definição das medidas de atenuação dos
riscos, adequada atribuição dos riscos aos agentes, prazos razoáveis para
exame dos estudos e editais da licitação, bem como a possibilidade de serem
formuladas impugnações;
- de execução – definição do agente que arcará com os ônus das expropriações, articulação para a superação de dificuldades ambientais, elaboração
de projetos básicos e executivos que reduzam as deficiências das obras a
serem executadas, previsão de soluções no caso de catástrofes naturais ou
resultantes de força maior;
5. De exploração:
- operacionais – definição de como será feita a administração e a gestão, definição
do agente competente para a realização de medições ou contagens que se
façam necessárias, tratamento correto para os usuários que buscam formas
ilícitas de não pagar tarifas;
- financeiros – política de taxas de juros compatíveis com as disponibilidades
de financiamentos, tarifas compatíveis com a capacidade de pagamento dos
usuários e com a necessidade de remuneração do concessionário, existência
de controle inflacionário, estudos técnicos acerca da perspectiva de crescimento ou de redução da demanda.
A montagem de um modelo de concessão pressupõe a incorporação de mecanismos para adaptá-la às novas necessidades dos usuários ou tecnológicas. deve ser
considerado que uma das principais características da concessão é a mutabilidade das
condições em que será executado o contrato. esse modelo deve ser capaz de responder a questões práticas. exemplo: o contrato de concessão de rodovia previa que em
determinado ponto da estrada seria instalado posto de pedágio. se por razões diversas
(congestionamentos, aumento do número de acidentes, surgimento de novos aglomerados urbanos etc.) for conveniente modificar a localização do posto de pedágio e esta
modificação importe em aumento do número de usuários, como proceder? É legítimo
ao concessionário incorporar às suas receitas esse aumento de usuários? deve ser promovida a redução da tarifa de modo a manter inalterada a receita do concessionário?
475
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
476
o contrato bem elaborado deve ser capaz de apresentar respostas claras para questões
como essas, tão comuns em concessões.21
A correta distribuição dos riscos entre os agentes constitui o ponto de partida para
a concessão ser levada a bom termo. Ademais, para determinados eventos (catástrofes
naturais, por exemplo), a utilização de seguros ou de outros mecanismos de redução
dos riscos pode ser a resposta adequada.
8.12 direitos dos usuários
dentre os direitos dos usuários, destaque especial é dado ao conceito de serviço
adequado. o art. 6º, §1º, da Lei nº 8.987/95 apresenta o conceito de serviço adequado nos
termos seguintes:
Art. 6º (...)
§1º serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade,
eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade
das tarifas.
Trata-se, evidentemente, de conceito jurídico indeterminado. A definição deste
importante aspecto das concessões não pode permanecer, todavia, indefinidamente em
aberto, ou restar sua aplicação ao livre alvedrio do concessionário. Cabe ao edital e ao
contrato de cada concessão especificarem de modo detalhado cada um dos elementos
que compreende o serviço adequado.
em relação à continuidade na prestação do serviço — aspecto que compreende
o conceito de serviço adequado —, o §3º, ii, do art. 6º dispõe que não se caracteriza
como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou
após prévio aviso, em razão de “inadimplemento do usuário, considerado o interesse
da coletividade”.22
21
22
Na deliberação a seguir transcrita, o TCU perfilhou o entendimento de que cabe ao poder concedente a promoção do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de exploração de rodovias federais em
razão da obtenção de receitas adicionais ou alternativas por parte das concessionárias, tais como as provenientes
de exploração de redes de fibra ótica ao longo das rodovias:
“representação formulada por ministro do tCu. solicitação da realização de estudos acerca da viabilidade técnica
e jurídica do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de exploração de rodovias, visando à
redução das tarifas cobradas dos usuários, mediante a obtenção de receitas alternativas, tais como a exploração
de redes de fibra ótica. Realização de inspeção no DNER. Contrato de concessão firmado em desacordo com a
legislação vigente. Conhecimento. Procedência. Fixação de prazo para adoção de providências. determinação.
decisão: o tribunal Pleno, ante as razões expostas pelo relator e com fundamento nos arts. 1º, inciso ii, da Lei
8.443/92, deCide:
8.3. determinar à Agência nacional de transportes terrestres – Antt que:
8.3.1. apure, nos termos do art. 30 da Lei 8.987/95, junto à Companhia de Concessão rodoviária Juiz de Fora-rio
s.A. – Concer, Concessionária rio-teresópolis s.A. – Crt, Concessionária da rodovia osório-Porto Alegre s.A.
– Concepa e Concessionária da Ponte rio-niterói – Ponte, as receitas alternativas, acessórias ou complementares
porventura auferidas;
8.3.2. promova, após a adoção das medidas supracitadas, em relação aos contratos de concessão de exploração de
rodovias federais em vigor, a análise do impacto das receitas alternativas, acessórias ou complementares obtidas
pelas concessionárias na relação que as partes pactuaram inicialmente, revendo o valor da tarifa Básica de Pedágio, de modo a favorecer a modicidade” (tCu. decisão nº 1.460/02, Plenário. DOU, 11 nov. 2002, grifos nossos).
A possibilidade de o concessionário suspender o fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento foi objeto
de alguma controvérsia em nossa jurisprudência. A questão foi pacificada no sentido definido pela Lei nº 8.987/95:
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
Contudo, para o stJ, a falta de pagamento não pode importar em suspensão
do funcionamento de unidades públicas essenciais.23 Além disso, a interrupção por
inadimplemento não pode decorrer de débitos do usuário anterior, em razão da natureza pessoal da obrigação de pagar a tarifa.24
Além da prestação do serviço adequado, o art. 7º da Lei nº 8.987/95 fixa como
direitos do usuário:25
1. receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa
de interesses individuais ou coletivos;
2. obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores
de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente;
3. Levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades
de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;
4. Comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço;
5. Contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através
dos quais lhes são prestados os serviços.
8.13 direitos do concessionário
os direitos do concessionário podem ser reduzidos à seguinte fórmula: cumpra-se
o contrato.
23
24
25
“Processo Civil. Agravo regimental. Acórdão recorrido devidamente motivado. não-ocorrência de violação dos
arts. 458 e 535, ii, do CPC. Fornecimento de energia elétrica. interrupção. Possibilidade. existência de aviso-prévio.
súmula n. 7/stJ. 1. Afasta-se a alegada ofensa aos arts. 458 e 535, ii, do CPC quando os acórdãos proferidos na
apelação e nos subsequentes embargos declaratórios apreciam de forma motivada as questões suscitadas ao longo
da controvérsia. 2. É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica se, após aviso prévio, o
consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (Lei n. 8.987/95, art. 6º,
§3º, ii). Precedentes. 3. o recurso especial não é sede própria para o exame de questão fática relativa à existência ou
não de prévio aviso ao consumidor antes da interrupção do serviço de fornecimento de energia elétrica. inteligência da súmula 7/stJ. 4. Agravo regimental não-provido” (stJ. Agrg no Ag nº 578.147-rs, 2ª turma. rel. min. João
otávio de noronha. Julg. 9.8.2005. DJ, 26 set. 2005).
“Processual Civil. Administrativo. Agravo regimental em embargos de divergência em recurso especial. energia
elétrica. unidades públicas essenciais. Fornecimento de água. inadimplência. suspensão do fornecimento.
serviço público essencial. 1. A suspensão do serviço de energia elétrica, por empresa concessionária, em razão
de inadimplemento de unidades públicas essenciais — hospitais; prontos-socorros; escolas; creches; fontes de
abastecimento d’água e iluminação pública; e serviços de segurança pública —, como forma de compelir o
usuário ao pagamento de tarifa ou multa, despreza o interesse da coletividade. Precedentes: eresp 845.982/rJ,
rel. ministro Luiz Fux, Primeira seção, julgado em 24.06.2009, DJe, 03 ago. 2009; eresp 721.119/rs, rel. ministra
eliana Calmon, Primeira seção, julgado em 08.08.2007, DJ, 10 set. 2007. 2. in casu, o v. acórdão hostilizado
firmou orientação no sentido de ser inadmissível o corte no fornecimento de energia da concessionária
pública inadimplente, haja vista ser responsável pelo abastecimento de água de três municípios, o que poderia
inviabilizar aquele serviço essencial à população. 3. incidência da súmula nº 168/stJ: ‘não cabem embargos
de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado’. 4.
Agravo regimental a que se nega provimento” (stJ. Agrg no eresp nº 1.003.667-rs, 1ª seção. rel. min. Luiz
Fux. Julg. 23.6.2010. DJe, 25 ago. 2010).
Agrg no resp nº 1.203.818-sP, 1ª turma. rel. min. Arnaldo esteves Lima. Julg. 22.11.2011. DJe, 29 nov. 2011;
resp nº 1.267.302-sP, 2ª turma. rel. min. mauro Campbell marques. Julg. 8.11.2011. DJe, 17 nov 2011.
o superior tribunal de Justiça, no julgado que a seguir se refere, admitiu expressamente a aplicação do Código
de defesa do Consumidor na relação entre o usuário e o concessionário de serviços públicos:
“Agravo regimental. Prequestionamento. súmula 211/stJ. Aplicação do Código de defesa do Consumidor
às relações entre usuários e concessionária de serviço público. i - É inadmissível o recurso especial quanto à
questão que, a despeito da oposição de embargos de declaração, não foi apreciada pelo tribunal de origem. ii
- Aplica-se o Código de defesa do Consumidor às relações mantidas entre usuário e concessionária de serviços
públicos, nos termos do artigo 7º da Lei nº 8987/95. Agravo regimental improvido.” (Agrg no Ag nº 1.022.587,
3ª turma. rel. min. sidnei Beneti. Julg. 21.8.2008. DJe, 11 set. 2008)
477
478
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o poder concedente deve zelar, portanto, para que o contrato contemple as situações
em que as expectativas do concessionário — que atua como investidor — possam vir a se
frustrar, devendo ser capaz de apresentar soluções para essas situações. Por exemplo: como
pode, ou deve, proceder o concessionário em relação aos usuários que buscam se evadir
do pagamento da tarifa? Quais as situações em que o concessionário pode agir sem que
se faça necessária a propositura de ação judicial, e em que situações se torna necessária a
intervenção judicial? de que instrumentos o concessionário dispõe para exigir do poder
concedente o cumprimento de suas obrigações?
Cabe ao contrato definir não apenas os direitos do concessionário, inclusive os
relativos à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos encargos das partes
envolvidas, mas também os instrumentos de que ele dispõe para fazer cumprir esses
direitos sem que tenha que se valer do Poder Judiciário, reduzindo, em consequência,
significativamente o risco jurisdicional do investimento.
8.14 intervenção na concessão
nos termos do art. 32 da Lei nº 8.987/95, o poder concedente poderá intervir na
concessão, “com o fim de assegurar a adequação na prestação do serviço, bem como o
fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes”. A intervenção deve ser utilizada em situações em que sejam identificadas falhas na prestação
do serviço e com o propósito de apontar as causas dessas falhas e meios para a correção.
A intervenção não é causa de extinção da concessão. declarada a intervenção, que
será feita por meio de decreto do poder concedente, que conterá a designação do interventor, o prazo da intervenção e os objetivos e limites da medida, o poder concedente
deverá, no prazo de 30 dias, instaurar procedimento administrativo para comprovar
as causas determinantes da medida e apurar responsabilidades, assegurado o direito
de ampla defesa.
Se ficar comprovado que a intervenção não observou os pressupostos legais e
regulamentares, será declarada sua nulidade, devendo o serviço ser imediatamente
devolvido à concessionária, sem prejuízo de seu direito à indenização.
todavia, se for comprovada a existência de falhas graves na qualidade de serviço,
e se a responsabilidade pela ocorrência das falhas for imputada ao concessionário, além
da aplicação das sanções, pode vir a ser declarada a caducidade da concessão. ou seja, a
concessão pode ser extinta em razão da declaração de caducidade (art. 38 da Lei nº 8.987/95)
e não da intervenção.
Cessada a intervenção, se não for extinta a concessão, a administração do serviço
será devolvida à concessionária, precedida de prestação de contas pelo interventor,
que responderá pelos atos praticados durante a sua gestão, nos termos do art. 34 da
Lei nº 8.987/95.
8.15 extinção da concessão
o art. 35 da Lei nº 8.987/95 indica as situações que podem resultar em extinção
da concessão. são elas:
i - advento do termo contratual;
ii - encampação;
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
iii - caducidade;
iv - rescisão;
v - anulação; e
vi - falência ou extinção da empresa concessionária e falecimento ou incapacidade
do titular, no caso de empresa individual.
examinaremos, em seguida, cada uma dessas hipóteses.
8.15.1 Advento do termo contratual
As concessões devem ser firmadas necessariamente por prazo certo. o art. 5º da
Lei nº 8.987/95 determina que antes mesmo da divulgação do edital da concessão, deve
ser publicado ato que justifica a conveniência da concessão com a indicação, dentre
outros aspectos do prazo do contrato.26
A fixação do prazo não é feita, portanto, por meio de lei. A Lei nº 8.987/95 impõe
a fixação de prazo certo, mas deixa a decisão quanto à fixação desse termo a critério
do poder concedente. trata-se de decisão produzida com base na discricionariedade
técnica da Administração Pública e, como tal, deve ser necessariamente motivada. É
perfeitamente possível, todavia, que lei específica, que regula e autoriza a instituição
de cada concessão, fixe o prazo ou ao menos indique limites máximos ou mínimos de
vigência da concessão.
distingue-se o prazo de vigência das concessões, com base no que dispõe a Lei
nº 8.987/95, em relação aos demais contratos administrativos regidos pela Lei nº 8.666/93.
Estes devem ter prazo certo, e a própria lei lhes fixa os limites máximos de vigência. Os
contratos regidos pela Lei nº 8.666/93 têm sua vigência limitada, como regra, ao respectivo crédito orçamentário (art. 57, caput). excepcionalmente admite a lei que o contrato
administrativo ultrapasse o crédito orçamentário, o que se verifica, por exemplo, para
os serviços contínuos cujos prazos de vigência e eventuais prorrogações estão limitados
a 60 meses (art. 57, ii).
As concessões devem ter prazo certo. este prazo não é, todavia — ressalvadas
situações especiais —, fixado em lei. Cabe ao poder concedente definir administrativamente o prazo por meio de ato administrativo a ser divulgado nos termos do art. 5º
da Lei nº 8.987/95.
26
mediante o acórdão do stJ a que abaixo se refere, impõe-se ao poder público a imediata retomada da prestação
do serviço público que se fazia mediante concessão cujo contrato chegou a seu termo:
“Agravo regimental em suspensão de segurança. requisitos. Lei nº 4.348/64, art. 4º. Lesão à ordem e saúde
públicas configurada. Extinção do contrato de concessão. Decurso do prazo contratual. Abastecimento de água
e esgoto. retomada do serviço pelo poder público concedente. 1. nos casos de mandado de segurança, quando
indeferido o pedido originário de suspensão em segundo grau, o novo pedido de suspensão, em se tratando de
matéria infraconstitucional, pode ser requerido ao stJ, como na exata hipótese dos autos (Lei nº 4.348/64, art. 4º,
§1º). 2. A suspensão de liminar, como medida de natureza excepcionalíssima que é, somente deve ser deferida
quando demonstrada a possibilidade real de que a decisão questionada cause consequências graves e desastrosas
a pelo menos um dos valores tutelados pela norma de regência: ordem, saúde, segurança e economia públicas
(Lei nº 4.348/64, art. 4º). 3. Extinto o contrato de concessão — destinado ao abastecimento de água e esgoto do Município —,
por decurso do prazo de vigência, cabe ao Poder Público a retomada imediata da prestação do serviço, até a realização de nova
licitação, a fim de assegurar a plena observância do princípio da continuidade do serviço público (Lei nº 8.987/95). A efetividade do direito à indenização da concessionária, caso devida, deve ser garantida nas vias ordinárias. 4. Com a demonstração
do risco de dano alegado, impõe-se a manutenção da suspensão concedida. 5. Agravo regimental não provido”
(Agrg na ss nº 1.307-Pr, Corte especial. rel. min. edson vidigal. Julg. 25.10.2004. DJ, 06 dez. 2004, grifos nossos).
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uma das principais características da concessão é a estabilidade jurídica que ela
confere ao contratado. outros contratos, inclusive a permissão de serviço público (Lei
nº 8.987/95, art. 40), podem ser extintos durante sua vigência por meio de ato administrativo (Lei nº 8.666/93, art. 78, Xii). o concessionário, diferentemente dos contratados
com base na Lei nº 8.666/93, é tido como investidor. Partindo-se dessa premissa, lhe é
assegurado o direito ao prazo de vigência da concessão para viabilizar o retorno dos
investimentos realizados.
Em boa parte das concessões, os primeiros anos de vigência são deficitários para
os concessionários. somente após o decurso de determinado prazo, que em alguns casos
leva vários anos, a conta se inverte e passa o concessionário a ter receitas superiores às
despesas. É inerente ao bom funcionamento do sistema de concessão a segurança a ser
assegurada ao concessionário de que a concessão não será extinta antes do prazo, salvo
situações extraordinárias, que serão em seguida examinadas (encampação e caducidade).
extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido
no contrato. A reversão desses bens, ainda que ocorra no advento do termo contratual,
pressupõe o pagamento de indenização referente às parcelas dos investimentos a eles
vinculados que não tenham sido amortizados ou depreciados. esta medida prevista no
art. 36 tem o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido. do
contrário, quando o contrato se aproximasse de seu termo, o concessionário não teria
interesse em adquirir ou renovar esses bens reversíveis a partir da premissa de que eles
seriam transferidos ao poder concedente.27
relativamente à prorrogação da vigência da concessão, desde que prevista no edital
e no contrato, é possibilidade a ser considerada nos termos e nas condições fixados no
edital e no contrato. desde que previsto no edital e no contrato, é possível, por exemplo,
27
Abro aqui um parêntese para dizer que, na prática, conforme volta e meia é noticiado pela imprensa, algumas
concessionárias de serviços têm se comportado, em relação a bens reversíveis das concessões, como se seus
fossem, inviabilizando-se, assim, o retorno desses bens ao poder concedente após o término dos contratos de
concessão.
A verdade é que a questão dos bens reversíveis nas concessões de serviços públicos tem constituído matéria
complexa e controversa. um dos motivos para tanto reside no fato de a legislação ter tratado da matéria de
modo simplesmente conceitual, estabelecendo que os bens reversíveis são aqueles vinculados à prestação dos
serviços públicos concedidos e que, ao fim da concessão, devem retornar ao poder concedente (artigos 31, VII, e
35, §1º, da Lei nº 8.987/1995), remetendo a disciplina da matéria ao edital de licitação e ao contrato de concessão
(artigos 18, X e Xi, e 23, X, da mesma lei).
situação especialmente preocupante refere-se aos contratos de concessão celebrados no processo de desestatização de serviços públicos, ocorrido a partir de 1998, sem indicação de forma clara e objetiva dos bens reversíveis.
nestes casos, o que existe é apenas uma referência genérica, no sentido de que os bens reversíveis seriam os
utilizados na prestação dos serviços públicos concedidos.
trata-se, obviamente, de uma disposição contratual aberta e suscetível às mais variadas interpretações. isso,
aliado ao fato de aqueles contratos de concessão terem sido firmados juntamente com a transferência do controle
acionário para particulares — e, portanto, do patrimônio — das empresas estatais, como ocorreu no setor de
telecomunicações, gerou muitas dúvidas e incertezas sobre a questão dos bens reversíveis.
nesse contexto, e de modo a não deixar dúvidas sobre os bens reversíveis numa concessão, cabe às agências reguladoras apontar que bens deverão reverter ao poder concedente ao cabo de cada contrato. e o controle, neste
caso, precisa ser concomitante e dinâmico, à evidência de que o enquadramento de determinado bem como
reversível não pode constituir decisão perene, imutável. É inerente às concessões de serviços públicos o traço
da mutabilidade que, apesar de não lhe transfigurar a essência, revela-se muitas vezes necessária ao aperfeiçoamento dos serviços públicos delegados, a exemplo das alterações que decorrem das evoluções tecnológicas.
o que interessa, verdadeiramente, é que a agência exerça efetivo controle sobre o patrimônio administrado pelas
concessionárias para que, no dia seguinte ao término do contrato de concessão, a concessionária sucessora possa
assumir a prestação do serviço público sem solução de continuidade e sem que precise, para tanto, despender
um só centavo.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
ser assegurado ao concessionário direito à prorrogação como forma de obter retorno
de seus investimentos caso isto não tenha sido possível ao longo da vigência inicial
da concessão por razões alheias à vontade do concessionário ou em outras hipóteses
previstas no contrato.
A decisão de prorrogar a concessão não pode ser deixada ao mero juízo de conveniência
administrativa do poder concedente. isto representa a porta aberta para a fraude.
Dever-se-ia, ao contrário, cogitar de definir no próprio contrato — ou em ato
normativo editado pelo ente regulador competente — os critérios para aferir se o serviço prestado pelo concessionário ou permissionário é adequado. nos termos da Lei
nº 8.987/95, é adequado o serviço que atende aos critérios de 1. regularidade, 2. continuidade, 3. eficiência, 4. segurança, 5. atualidade, 6. generalidade, 7. cortesia na sua prestação e 8.
modicidade das tarifas.
É dever do concessionário prestar serviços adequados e são obrigações do poder
concedente fiscalizar a prestação do serviço e exigir que esta prestação seja feita com a
observância dos requisitos de qualidade e adequação definidos no contrato e nos atos
normativos. A partir dos resultados dessa fiscalização, o poder concedente deveria, por
meio da adoção de critérios objetivos:
1. declarar a caducidade da concessão — ou extinguir a permissão —, na eventualidade de o serviço prestado não atender às exigências mínimas de qualidade
definidos contratualmente e nos regulamentos; ou
2. Prorrogar a vigência da concessão ou permissão caso o serviço seja considerado
adequado, caso atenda às exigências para a sua definição como serviço de
qualidade excepcional.
A adoção de mecanismo dessa natureza importaria na supressão da discricionariedade do poder concedente para definir a extinção da concessão em razão da declaração
da caducidade ou para prorrogar a vigência da concessão.
A não adoção de mecanismos dessa natureza em nosso sistema administrativo,
ao contrário, tem resultado em que: 1. somente é declarada a caducidade de concessões
em situações de extrema gravidade; e 2. a decisão acerca da prorrogação da vigência
das concessões e permissões é feita com base em critérios subjetivos sujeitos a todo
tipo de fraude.
Por ocasião do advento do termo contratual, verificada a pontuação obtida pelo
concessionário ao longo de toda a vigência do contrato, haveria a definição objetiva e
impessoal acerca da extinção ou prorrogação do contrato.
A adoção desse mecanismo, que independe de qualquer modificação legal (é
de se observar que a própria Lei nº 8.987/95 expressamente admite a possibilidade de
prorrogação do contrato de concessão), importaria na adoção de incentivo inequívoco à
prestação de serviços de qualidade pelos concessionários. Ademais, não se deve jamais
perder a noção de que o objetivo maior na instituição de uma delegação de serviço
público é prestação de serviço público adequado, de boa qualidade. Cumpre ao poder
público buscar a realização desse objetivo não apenas por meio de sanções aplicáveis aos
concessionários faltosos, mas por meio da instituição de prêmio àqueles que atendam
adequadamente às suas obrigações contratuais.
de qualquer modo, ainda que não sejam adotados os mecanismos aqui propostos, mas desde que haja fundamento no contrato, a concessão pode ser prorrogada por
meio de decisão fundamentada em razões técnicas, razões que sejam suficientes para
justificar a não realização de novo procedimento licitatório.
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Curso de direito AdministrAtivo
Ressalte-se, por fim, acerca do advento do termo contratual, que a Lei nº 8.987/95
estabelece: “vencido o prazo mencionado no contrato ou ato de outorga, o serviço poderá ser prestado por órgão ou entidade do poder concedente, ou delegado a terceiros,
mediante novo contrato (§1º do art. 42, com redação dada pela Lei nº 11.445/07)”.
8.15.2 encampação
A segunda hipótese de extinção da concessão decorre da possibilidade de encampação pelo poder concedente.
o art. 37 da Lei nº 8.987/95 considera encampação “a retomada do serviço pelo
poder concedente durante o prazo da concessão, por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento da indenização”.
A necessidade de lei autorizativa específica para que ocorra a encampação faz da
concessão o contrato que confere maior segurança ao contratado. Ao exigir a aprovação
de lei específica e condicionar a encampação à existência de motivo de interesse público, a Lei
nº 8.987/95 submete a extinção da concessão durante a vigência do contrato a controle
político e jurídico. o primeiro, o controle político, é feito por meio do processo legislativo;
o segundo, de ordem jurídica, pelo exame dos motivos de interesse público invocados.
Não se admite, portanto, que a simples vontade política dos governantes seja suficiente
para a encampação. Além desta vontade política, os motivos de interesse públicos, que
devem ser susceptíveis de controle de modo que suas razões sejam apresentadas como
suficientemente relevantes para justificar a extinção do contrato, precisam ser demonstrados. não basta, portanto, o mero voluntarismo político, ainda que formalizado por
meio de lei, para que a concessão seja extinta. não obstante se trate de lei em sentido
formal, haja vista se cuidar de lei de efeito concreto, deve-se admitir o cabimento de
mandado de segurança contra ela, dado o seu conteúdo ser de ato administrativo.
8.15.3 Caducidade
A concessão pode também ser extinta, a critério do poder concedente, em razão da
inexecução total ou parcial do contrato. temos, nesta hipótese, a declaração de caducidade
da concessão, que pode, conforme especificado no art. 38 da Lei nº 8.987/95, ocorrer
nas seguintes hipóteses:
I - o serviço estiver sendo prestado de forma inadequada ou deficiente, tendo por
base as normas, critérios, indicadores e parâmetros definidores da qualidade
do serviço;
ii - a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições legais ou
regulamentares concernentes à concessão;
iii - a concessionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto, ressalvadas as
hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior;
iv - a concessionária perder as condições econômicas, técnicas ou operacionais
para manter a adequada prestação do serviço concedido;
v - a concessionária não cumprir as penalidades impostas por infrações, nos
devidos prazos;
vi - a concessionária não atender a intimação do poder concedente no sentido de
regularizar a prestação do serviço; e
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
vii - a concessionária for condenada em sentença transitada em julgado por
sonegação de tributos, inclusive contribuições sociais.28
Hipótese específica de declaração de caducidade está prevista no art. 27 da Lei
nº 8.987/95 e se verifica em razão da “transferência de concessão ou do controle societário
da concessionária sem prévia anuência do poder concedente”. este dispositivo busca
valorizar o caráter intuitu personae da concessão.
os parágrafos do mencionado art. 27 estabelecem as condições que deverão ser
observadas a fim de que o poder concedente possa manifestar anuência à pretensão de
transferência da concessão ou do controle societário da concessionária (redação dada
pela Lei nº 11.196/05):
§1º Para fins de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo, o pretendente
deverá:
I - atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade
jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e
ii - comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.
§2º nas condições estabelecidas no contrato de concessão, o poder concedente autorizará
a assunção do controle da concessionária por seus financiadores para promover sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços.
§3º Na hipótese prevista no §2º deste artigo, o poder concedente exigirá dos financiadores
que atendam às exigências de regularidade jurídica e fiscal, podendo alterar ou dispensar
os demais requisitos previstos no §1º, inciso i deste artigo.
§4º A assunção do controle autorizada na forma do §2º deste artigo não alterará as obrigações da concessionária e de seus controladores ante ao poder concedente.
A transferência da concessão somente pode ser admitida em situações excepcionais, em que, confrontados os princípios da impessoalidade com outros a serem considerados — dentre eles o da continuidade do serviço público —, se chegue à conclusão
da prevalência destes últimos sobre o primeiro. do contrário, impõe-se a licitação como
regra a ser observada para a escolha do novo prestador do serviço.
Considerando que a declaração de caducidade29 pressupõe a demonstração de
falha na execução da concessão imputada ao concessionário, a verificação da inadimplência pressupõe a instauração de processo que assegure ao concessionário ampla
defesa e que seja conduzido em observância ao que dispõem os parágrafos do art. 38
da Lei nº 8.987/95.
28
29
A medida Provisória nº 577, de 29 de agosto de 2012, vigente na ocasião da conclusão desta edição, deu a esse
dispositivo a seguinte redação: “a concessionária não atender a intimação do poder concedente para, em cento e
oitenta dias, apresentar documentação relativa à regularidade fiscal, no curso da concessão, na forma do art. 29
da Lei nº 8.666/1993”.
no sentido de que o concessionário não pode ser penalizado pelo poder concedente sem que se abra oportunidade de defesa, vide o seguinte julgado do stJ:
“Constitucional e Administrativo. mandado de segurança. Conversão de autorização de serviço público de
transporte coletivo de passageiros em contrato de concessão. inconstitucionalidade. i - ofende o art. 37, inciso
XXi da Constituição Federal de 1988 a concessão de serviço público sem prévio procedimento licitatório, ainda
que a contratada já prestasse atividade delegada pelo Poder Público sob a forma de autorização. ii - O deferimento de prolongamento de trecho de itinerário de linha rodoviária intermunicipal que afete a esfera patrimonial de outra
empresa que o explorava — com exclusividade e por prazo determinado, antes garantida pelo Poder Público —, imprescinde
da oitiva da parte interessada, não podendo ser procedido como forma de penalização da empresa sem instauração de procedimento administrativo que apure a ineficiência ou má prestação do serviço delegado” (rms nº 6.918-to, 2ª turma. rel.
min. nancy Andrighi. Julg. 21.3.2000. DJ, 15 maio 2000, grifos nossos).
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8.15.4 rescisão
outra hipótese de extinção da concessão consiste na rescisão do contrato.
o primeiro aspecto a ser considerado em matéria de rescisão do contrato de
concessão diz respeito à terminologia adotada pela Lei nº 8.987/95, que se diferencia
daquela utilizada pela Lei nº 8.666/93.
nos termos desta última, a rescisão dos contratos administrativos, nos termos dos
arts. 78 e 79, compreende três categorias básicas: administrativa, judicial e amigável.
Assim, nos termos da Lei nº 8.666/93, a não execução de determinado contrato deve
importar em sua rescisão. diversa é a solução adotada pela Lei nº 8.987/95, em que a
inexecução total ou parcial do contrato justifica a declaração de caducidade da concessão.
A rescisão do contrato de concessão, conforme definido pelo art. 39 da Lei nº 8.987/95,
ao contrário, somente pode ser feita pela via judicial, “mediante ação judicial especialmente intentada para esse fim”.
se o poder concedente não cumpre as normas da concessão, ela poderá ser rescindida por meio de ação judicial; se o não cumprimento do contrato for imputável
ao concessionário, a possível extinção da concessão dar-se-á pela via administrativa
mediante a declaração de caducidade.
8.15.5 Anulação
Se forem verificadas irregularidades graves na licitação ou na formalização do
contrato insusceptíveis de convalidação, a concessão deve ser extinta por meio da anulação do contrato, que pode ocorrer pela via administrativa ou judicial. reiteramos que
a anulação deve, necessariamente, observar regras de contraditório e de ampla defesa.
de se ressaltar que se a falha ocorrer na execução do contrato, poderá ser hipótese de
declaração de caducidade, e não de anulação.
8.15.6 outras hipóteses
relativamente às últimas hipóteses de extinção da concessão (falência do concessionário, morte ou incapacidade do titular da empresa individual concessionária), deve o
poder concedente agir de modo a que não haja solução de continuidade na prestação do
serviço, devendo, para tanto, adotar todas as medidas necessárias a este fim e previstas
nos parágrafos do art. 35 da Lei nº 8.987/95, quais sejam:
- retorno ao poder concedente de todos os bens reversíveis, direitos e privilégios
transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no
contrato;
- Assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos,
avaliações e liquidações necessários; e
- ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os
bens reversíveis.
de se observar que as medidas acima indicadas podem ser utilizadas pelo poder
concedente em qualquer hipótese de extinção da concessão.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
8.16 responsabilidade civil do concessionário e do poder concedente
8.16.1 responsabilidade perante os usuários e perante terceiros
A Constituição Federal impõe aos prestadores de serviço público, ainda que se trate
de pessoas jurídicas de direito Privado, responsabilidade civil objetiva (art. 37, §6º, CF).
essa situação alcança tanto concessionários quanto permissionários de serviços públicos.
Questão que sempre provocou discussões no meio jurídico era saber se a responsabilidade objetiva do particular prestador de serviço público encontrava-se presente
apenas nas situações em que o lesado fosse usuário do serviço ou se ela também valeria
perante terceiros (usuários ou não). exemplo: acidente envolvendo ônibus pertencente
a permissionário de transporte coletivo e veículo particular. dado que o proprietário do
veículo não é usuário de serviço, poder-se-ia falar que a responsabilidade objetiva ou
que o dever de indenizar da empresa de transporte coletivo não seria alcançado pela
regra constitucional (responsabilidade objetiva), e sim pelo Código Civil (responsabilidade subjetiva)?
Muito embora a doutrina majoritária não fizesse distinção entre usuário e não
usuário para fins de responsabilização objetiva de particulares prestadores de serviço
público, a jurisprudência que havia se consolidado no supremo tribunal Federal era
no sentido de que a responsabilidade dos particulares delegatários de serviço público
somente seria objetiva, com fundamento no art. 37, §6º, da Carta magna, quando o fato
lesivo atingisse terceiro usuário do serviço.30
sempre nos posicionamos contrariamente a esse entendimento do stF, por
acreditarmos que não caberia ao intérprete criar uma distinção que claramente não foi
contemplada pelo texto constitucional.
ocorre, no entanto, que o supremo tribunal Federal, no julgamento do recurso
extraordinário nº 591.874-ms, da relatoria do min. ricardo Lewandowski, alterou seu
entendimento sobre o tema, tendo concluído pela responsabilidade objetiva de empresa
privada prestadora de serviço público em relação a terceiro não usuário do serviço. na
espécie, discutia-se a responsabilidade de empresa de transporte coletivo por danos
decorrentes de acidente envolvendo ônibus de sua propriedade e ciclista, o qual falecera.
os fundamentos que nortearam a mudança de posicionamento do stF podem
ser identificados no trecho abaixo transcrito:
Asseverou-se que não se poderia interpretar restritivamente o alcance do art. 37, §6º, da CF,
sobretudo porque a Constituição, interpretada à luz do princípio da isonomia, não permite
que se faça qualquer distinção entre os chamados “terceiros”, ou seja, entre usuários e
não-usuários do serviço público, haja vista que todos eles, de igual modo, podem sofrer
dano em razão da ação administrativa do estado, seja ela realizada diretamente, seja por
meio de pessoa jurídica de direito privado. observou-se, ainda, que o entendimento de que
apenas os terceiros usuários do serviço gozariam de proteção constitucional decorrente da
30
“Constitucional. Administrativo. Civil. responsabilidade civil do estado: responsabilidade objetiva. Pessoas
jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Concessionário ou permissionário do serviço de
transporte coletivo. C.F., art. 37, §6º. i - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras
que não ostentem a condição de usuário. exegese do art. 37, §6º, da C.F. ii - r.e. conhecido e provido” (stF. re
nº 262.651-sP, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg. 16.11.2004. DJ, 06 maio 2005).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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responsabilidade objetiva do estado, por terem o direito subjetivo de receber um serviço
adequado, contrapor-se-ia à própria natureza do serviço público, que, por definição, tem
caráter geral, estendendo-se, indistintamente, a todos os cidadãos, beneficiários diretos
ou indiretos da ação estatal. vencido o min. marco Aurélio que dava provimento ao
recurso por não vislumbrar o nexo de causalidade entre a atividade administrativa e o
dano em questão. Precedentes citados: re 262651/sP (DJU 06 maio 2005); re 459749/Pe
(julgamento não concluído em virtude da superveniência de acordo entre as partes). (re
nº 591.874-ms, Pleno. rel. min. ricardo Lewandowski. Julg. 26.8.2009. DJe, 18 dez. 2009)
não se deve perder de vista, contudo, que a responsabilidade objetiva das pessoas
de direito privado prestadoras de serviços públicos não pode ser usada de forma indiscriminada, impondo-se perante qualquer destinatário ou em qualquer circunstância.
nesse sentido, não aceitamos a tese de que mencionadas pessoas — pelo só fato
de prestarem serviços públicos — assumam responsabilidade objetiva em qualquer
circunstância. seria o caso, por exemplo, de uma empreiteira que integra consórcio
de empresas que obteve contrato de concessão de serviço público para a exploração
de certa rodovia, em razão desse fato, passar a assumir responsabilidade objetiva em
qualquer ato praticado ou na exploração de qualquer outra atividade desenvolvida,
independentemente de manter relação com a exploração da concessão. isto importaria
em alargar a responsabilidade objetiva de mencionadas pessoas privadas para muito
além da prestação do serviço público.
É necessário, portanto, restringir o âmbito ou as circunstâncias que ensejam a
responsabilização objetiva das pessoas privadas prestadoras de serviço público, e o
critério definidor da responsabilidade objetiva de mencionadas entidades privadas
deve ser buscado no texto constitucional.
Parece-nos que pode ser utilizado como referencial para delimitar a responsabilidade civil objetiva dessas entidades a prestação do serviço público. ou seja, se o texto
constitucional confere a pessoas jurídicas de direito privado responsabilidade objetiva
em razão da prestação dos serviços públicos, sempre que o desempenho dessa atividade
causar prejuízo aos usuários ou a terceiros não usuários, ela responde de forma objetiva.
Para maiores considerações sobre a responsabilidade civil das empresas concessionárias e permissionárias de serviço público, remetemos o leitor ao Capítulo 17.
8.16.2 responsabilidade subsidiária do poder concedente
Questão igualmente relevante diz respeito à responsabilidade subsidiária do poder
concedente em relação aos concessionários.31
A Lei nº 8.987/95, em seu art. 31, parágrafo único, dispõe nos seguintes termos:
Art. 31. (...)
Parágrafo único. As contratações, inclusive de mão-de-obra, feitas pela concessionária
serão regidas pelas disposições de direito privado e pela legislação trabalhista, não se
31
A responsabilidade do poder público em relação aos atos praticados pelo concessionário é distinta daquela decorrente da execução dos contratos administrativos regidos pela Lei nº 8.666/93. nos termos do enunciado de súmula
nº 331 do tst, a Administração Pública responde subsidiariamente pelos encargos trabalhistas nas hipóteses de
terceirização de mão de obra, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei
nº 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de
serviço como empregadora. dado que essa súmula trata de terceirização, ela não pode ser utilizada como fundamento para responsabilizar o poder público pelos encargos trabalhistas dos concessionários de serviço público.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
estabelecendo qualquer relação entre os terceiros contratados pela concessionária e o
poder concedente.
temos, portanto, que pelos atos normais de gestão praticados pelo concessionário,
não assume o poder concedente qualquer responsabilidade. se a concessionária causa
prejuízo a terceiros, a usuários, ou mesmo a seus empregados, o poder concedente não
assume qualquer responsabilidade direta ou subsidiária.
não admitimos a existência de responsabilidade subsidiária do poder concedente
pelos atos normais de gestão praticados pelo concessionário, inclusive em matéria trabalhista. Admitimos, todavia, responsabilidade direta do poder público caso ele não
cumpra suas obrigações (Lei nº 8.987/95, art. 29), sendo, por exemplo, omisso no dever
de zelar pela qualidade do serviço prestado.
Uma das principais obrigações do poder concedente é a de fiscalizar o concessionário, devendo, inclusive, intervir na concessão a fim de garantir a qualidade do serviço
prestado. se da ação ou omissão do poder público resultar prejuízo a particular, o poder
público deve ser chamado a responder nos termos do art. 37, §6º, da Constituição Federal.
Exemplo: por falta de fiscalização do poder concedente, empresa concessionária
de transporte aéreo de passageiros funciona sem as mínimas condições de segurança
e ocorre acidente aéreo. indiscutível a responsabilidade da empresa concessionária.
igualmente indiscutível que se for demonstrado o nexo de causalidade entre o dano
sofrido por particular e a ação ou omissão do poder público, este também responde.
o exemplo acima demonstra que a responsabilidade do poder concedente não é
subsidiária, mas direta. o particular que venha a sofrer dano, querendo, pode demandar
apenas contra o poder público, alegando falha ou falta do serviço que lhe incumbe.32 se
preferir, pode pedir ressarcimento do próprio concessionário que lhe causou o dano,
ou de ambos, em litisconsórcio facultativo. Ainda que resultante de fontes diversas —
a responsabilidade da concessionária decorre do ato (ação ou omissão) que venha a
causar prejuízo ao usuário; e a responsabilidade do poder concedente está vinculada
à falta do serviço ou má qualidade do serviço relacionado à fiscalização —, haverá,
nesta hipótese, responsabilidade solidária entre o poder concedente e a concessionária.
Contudo, apesar do nosso entendimento, importante mencionar que a tese da
responsabilidade subsidiária do poder concedente pelos danos causados a terceiros
pela concessionária predomina na doutrina e na jurisprudência. o assunto é abordado
de forma mais detalhada no Capítulo 17.
32
o stF, por ocasião do julgamento do recurso extraordinário nº 258.726-AL, adotou a solução que a seguir transcrevemos:
“Por entender não caracterizada a alegada ofensa ao art. 37, §6º, da CF, a turma manteve acórdão do trF da
5ª região que condenara a união ao pagamento de indenização por danos morais e materiais aos recorridos,
em face da morte dos seus pais em decorrência de acidente aéreo. o acórdão recorrido, na espécie, entendera
manifesto o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a omissão do agente estatal responsável pela fiscalização
das atividades de aviação civil, no caso o departamento de Aviação Civil – dAC, comprovada pela situação
irregular em que se encontrava a aeronave, sem o cumprimento de requisitos mínimos de segurança, bem como
pela confirmação, segundo laudo do próprio Ministério da Aeronáutica, de que o checador, oficial da aeronáutica, que operava a aeronave — em situação também irregular, pois o comandante, que nessa hipótese, deveria
assumir a posição do co-piloto, estava fora da cabine de comando — não possuía treinamento adequado para
a situação de emergência ocorrida (Art. 37, §6º: ‘As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’).” (re nº 258.726-AL,
1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 14.5.2002. DJ, 14 jun. 2002)
487
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Curso de direito AdministrAtivo
488
8.17 Permissão de serviço público
8.17.1 distinção entre permissão e concessão
Até o presente momento, não havíamos indicado qualquer distinção entre concessão e permissão de serviço público. A rigor, o texto constitucional (art. 175) menciona os dois institutos sem apresentar qualquer distinção entre um e outro. isto não
significa, todavia, que os dois institutos sejam idênticos. Ao contrário, o fato de o texto
constitucional mencionar a concessão e a permissão resulta na impossibilidade de se
reduzir a natureza de um instituto à do outro.
o texto constitucional busca tão somente indicar que para as hipóteses em que
for possível ao poder público delegar serviço por meio de concessão, poderá igualmente
fazê-lo por meio de permissão de serviço público.
A rigor, a principal distinção entre um e outro instituto reside na precariedade da
permissão de serviço público. esta característica da permissão é mencionada expressamente nos artigos 2º, iv, e 40 da Lei nº 8.987/95.
tem-se, portanto, que a permissão é precária, e que, portanto, pode discricionariamente ser extinta pelo poder público por meio de simples ato administrativo. A
concessão, ao contrário, é o contrato que maior segurança confere ao contratado, haja
vista somente ser possível a sua encampação por meio de lei autorizativa específica.
essa distinção entre permissão e concessão de serviço público interessa ao legislador. A instituição do regime de concessão, ou de permissão de serviço público, pressupõe, além da observância dos parâmetros fixados na Lei nº 8.987/95, a aprovação de
lei específica.33 desse modo, se determinado município pretende delegar serviço de
transporte coletivo, cabe a esta lei definir se o regime de prestação será a concessão ou
a permissão de serviço público.
o critério a ser utilizado pelo legislador ao optar pela concessão ou pela permissão
deve manter pertinência com o volume de recursos necessários à prestação dos serviços
alocados em bens reversíveis. Para serviços que possam ser prestados com base em
pequenos investimentos — transporte alternativo de passageiros, por exemplo, em que
o investimento do particular se restringe à compra de uma van —, recomenda-se ao
legislador que utilize a permissão. esta confere mais liberdade ao poder público (que é
ocasionalmente denominado de poder permitente) inclusive em relação à possibilidade
de extinção da permissão, que é revogável (ou rescindível, conforme será examinado em
seguida) a qualquer tempo (art. 40). se para prestar o serviço forem necessários vultosos
investimentos, o que ocorre com as delegações envolvendo serviços de manutenção e
conservação de rodovias, o empresário necessita de segurança que somente pode ser
conferida pela concessão.
A escolha entre um e outro instituto cabe, portanto, ao legislador, devendo o
volume de recursos necessários à execução do contrato ser o critério utilizado para
indicar o regime mais adequado.
Além da precariedade da permissão em oposição à segurança jurídica da concessão, outras distinções se apresentam entre os dois institutos.
33
Observo que a instituição de cada concessão ou permissão independe de lei prévia específica. Por exemplo: cada
linha de ônibus é uma permissão e, no entanto, é instituída mediante contrato. A lei prévia se refere ao tipo de
serviço delegado (transporte rodoviário, por exemplo), e não à instituição de cada concessão ou permissão.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
em relação à necessidade de licitação, não obstante a Constituição Federal imponha
a sua realização como obrigatória para os dois regimes, a concessão deve ser licitada
sempre na modalidade de concorrência, ao passo que a permissão pode-se utilizar de
outras modalidades, como uma tomada de preços ou o leilão.34
outra distinção entre os institutos diz respeito ao delegatário: o permissionário
pode ser pessoa jurídica ou física; concessionário pode ser pessoa jurídica ou consórcio de
empresas (Lei nº 8.987/95, art. 2º, iv).
8.17.2 Formalização da permissão
Questão deveras controvertida diz respeito a saber qual é o instrumento adequado
para formalizar a permissão.35
Historicamente, a precariedade justificou a utilização do ato unilateral de vontade
como meio de formalização da permissão. Modificando essa sistemática, o art. 175,
parágrafo único, i, do texto constitucional faz remissão expressa à existência de contrato
de permissão. na mesma linha, o art. 40 da Lei nº 8.987/95 dispõe que “a permissão de
serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos
desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente” (grifo nossos).
temos no dispositivo legal evidente contradição conceitual. Quando menciona
a existência de contrato revogável, a lei incorre em contradição que se explica, talvez,
em razão de que a revogabilidade unilateral sempre se apresentou, juntamente com a
precariedade, como característica da permissão.
ora, se o instrumento adequado para formalizar a permissão é o contrato, ainda
que de adesão, deveria a lei ter admitido a sua rescisão, e não a sua revogabilidade unilateral. revogáveis são os atos administrativos, que se aperfeiçoam pela manifestação
unilateral de vontade do poder público, e não os contratos.
não obstante parte de nossa doutrina insista em que a permissão seja formalizada por meio de ato unilateral, a questão já nos parece superada, inclusive no âmbito
do supremo tribunal Federal (vide Adi nº 1.668-mC/dF). o direito Administrativo se
pauta pela Constituição Federal e pela lei. se tanto o texto constitucional quanto a lei
fazem expressa menção à natureza contratual da permissão, não subsiste qualquer razão
de ordem formal, de dogmática jurídica, ou material para nos prendermos a opiniões
doutrinárias contrárias ao que dispõem os textos vigentes.
A precariedade da permissão pode ser mantida não obstante a sua natureza
contratual, e não obstante possa o poder público ser obrigado a ressarcir prejuízos
sofridos pelo permissionário na eventualidade de extinção unilateral da permissão
antes de expirada a vigência do contrato por razões de conveniência ou oportunidade.
não nos parece igualmente razoável admitir que permissão e concessão passem
a ser institutos idênticos. A concessão, como visto, durante sua vigência somente pode
ser encampada mediante lei autorizativa específica, o que confere inquestionável
34
35
evidentemente que a permissão não pode ser licitada por meio do pregão. não é a Lei nº 8.987/95 que impede a
utilização do pregão, mas a própria lei do pregão (Lei nº 10.520/02) que restringe a utilização desta modalidade
à contratação de bens e de serviços comuns.
no âmbito do stF, a questão foi enfrentada por ocasião do julgamento da Adi nº 1.668-mC/dF, Pleno. rel. min.
marco Aurélio. Julg. 20.8.1998. DJ, 16 abr. 2004.
489
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
490
segurança ao concessionário de que a vigência do contrato será mantida. A permissão,
ao contrário, pode ser extinta a qualquer tempo por meio de simples manifestação
unilateral do poder público.
Atualmente, a questão parece resolvida no sentido de que o instrumento adequado para formalizar a permissão é o contrato. A menção feita pela lei de que se trata
de contrato de adesão é absolutamente desnecessária, haja vista todos os contratos
administrativos serem de adesão.
importa saber que se trata de contrato que pode ser a qualquer tempo extinto pelo
poder público por meio de simples ato unilateral, haja vista ser da essência da permissão a sua precariedade.36 essa precariedade não dispensa, todavia, o poder público de
motivar o ato de revogação, de assegurar ao permissionário a oportunidade de se manifestar sobre as razões ou motivos da revogação e de, havendo prejuízos, ressarci-los.37
8.17.3 vigência da permissão
último aspecto relativo à permissão diz respeito ao prazo de vigência. A dúvida
consiste em saber se a permissão pode ser instituída por prazo indeterminado ou se
deve ser formalizada por prazo certo.
Até recentemente, a existência de permissão com prazo certo — referida por
alguns como condicionada ou qualificada38 — era tida como exceção.
A precariedade da permissão conduziu à ideia de que ela não teria prazo certo.
seria instituída por prazo indeterminado, podendo, todavia, ser revogada unilateralmente a qualquer tempo pelo poder público.
A ideia de que pode ser celebrado contrato administrativo por prazo indeterminado não nos parece consentânea com o regime jurídico vigente. Admitida a permissão
por prazo indeterminado, teríamos exceção única em nosso ordenamento jurídico
administrativo: admitida essa tese, a permissão seria o único contrato administrativo
celebrado por prazo indeterminado. não há, no entanto, qualquer razão de ordem
prática ou legal que justifique esse tratamento diferenciado.
do ponto de vista do permissionário, deve ser instituída a permissão com prazo
certo, a fim de que ele possa ter assegurado o mínimo de segurança jurídica em relação
ao seu investimento.
A sistemática defendida de que a permissão podia ser instituída por prazo indeterminado, e ser revogada unilateralmente a qualquer tempo sem que o permissionário
tenha direito de obter qualquer indenização, além de ferir inúmeros princípios jurídicos
(segurança jurídica, responsabilidade civil do estado, impessoalidade, devido processo
legal), é tão absurdamente discricionária, que sempre foi fonte de fraude e corrupção
no relacionamento do poder público com o permissionário.
36
37
38
A precariedade das permissões definida em lei (Lei nº 8.987/95, art. 40) constitui absurdo lógico, econômico e jurídico.
É um resquício dos tempos coloniais, quando o estado autocrático era dono do país. manter o conceito de que a permissão é essencialmente precária conspira contra o interesse dos usuários, pois a insegurança jurídica é o principal
fator de risco que ameaça o permissionário e encarece o custo do serviço. É, ademais, a porta aberta para a corrupção.
Há decisão do STJ no sentido de que, apesar da precariedade da permissão, em hipóteses específicas, nas quais haja
significativo investimento por parte do permissionário, o poder concedente é obrigado a indenizar os danos causados
pela rescisão unilateral (resp nº 1.021.113-rJ, 2ª turma. rel. min. Campbell marques. Julg. 11.10.2011. DJe, 18 out. 2011).
Vide BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 707.
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
em primeiro lugar, o princípio da impessoalidade, que deve nortear as relações
do poder público com os particulares, não permite que particular mantenha relação
jurídica com finalidade lucrativa de caráter perpétuo, o que pode ocorrer caso o prazo
do contrato seja indeterminado. A periodicidade da permissão é imprescindível a que
se imponha rodízio entre os particulares que exploram a permissão, particular que será
selecionado por meio de processo licitatório.
Do ponto vista prático, a fixação de prazo para a permissão igualmente apresenta
vantagens. sendo por prazo certo, o particular elaborará sua proposta na licitação considerando que dispõe daquele período para recuperar seu investimento — ainda que
este possa consistir na simples aquisição de uma van para o transporte de passageiros.
isto certamente importará em redução das tarifas a serem cobradas dos usuários.
Finalmente, é tão absurdo admitir, nos dias atuais, que poder público possa
instituir uma permissão, revogá-la e não indenizar o particular que, de boa-fé, colaborou com o poder público na prestação de serviços públicos, que pouparemos o leitor
de maiores considerações. A permissão não envolve, como regra, a existência de bens
reversíveis. desse modo, a indenização a ser paga não se refere a esses bens, mas aos
danos efetivamente sofridos pelo permissionário em razão da extinção da permissão
antes da expiração do prazo estipulado.
e não se diga que o dever de indenizar afasta o caráter precário da permissão.
todos os contratos, inclusive os regidos pela Lei nº 8.666/93, podem ser rescindidos
unilateralmente pelo poder público. todo contrato administrativo é, portanto, precário
(à exceção do contrato de concessão, que depende, para sua extinção, de prévia aprovação de lei específica que autorize o exercício dessa prerrogativa). A precariedade dos
contratos não desonera o poder público de indenizar o contratado pelo exercício da
prerrogativa de rescisão unilateral do contrato (Lei nº 8.666/93, art. 79, §2º).
8.18 Autorização de serviço
Ao dispor sobre as formas indiretas de que pode valer-se o poder público para
delegar a prestação de serviços públicos, a Constituição Federal, em seu art. 175, faz
referência tão somente às concessões e às permissões de serviço público. no art. 21,
incisos Xi e Xii, do texto constitucional, ao contrário, é feita referência às concessões,
permissões e autorizações.
A pergunta a ser feita consiste em saber se, além das concessões e permissões, as
autorizações também se prestam para delegar a particulares a incumbência da prestação
de serviços públicos.
A resposta não é das mais fáceis. A rigor, a concessão e a permissão têm natureza
e objetivo diversos da autorização. os dois primeiros são mecanismos de que se vale
o poder público, como visto ao longo deste capítulo, para delegar serviços públicos a
particulares, a fim de que estes os explorem em caráter empresarial. Ademais, a relação estabelecida entre o poder concedente e o concessionário (ou permissionário) é de
natureza eminentemente pública, sendo impostos a este último uma série de obrigações relativamente ao serviço a ser prestado, como o da universalidade, continuidade,
modicidade tarifária etc.
A autorização não tem esse propósito. ela não se presta para transferir a particulares a incumbência da prestação de serviços públicos. A autorização constitui
manifestação do poder de polícia do estado. Por meio do poder de polícia, o poder
491
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
492
público condiciona o exercício de bens, direitos e atividades particulares à observância
de algumas exigências ou condicionantes em benefício da própria sociedade. não se
fala, assim, que a natureza do regime do serviço prestado pelo autorizatário seja
pública, mas privada.
A autorização se insere no âmbito do art. 174 da Constituição Federal. valendo-se
da qualidade de agente normativo e regulador da atividade econômica, o poder público está
legitimado a, por meio de lei, condicionar o exercício de determinadas atividades. isso se
verifica, por exemplo, com as atividades bancárias. A exploração de atividades financeiras
não possui natureza de atividade pública; não se trata de serviço que incumbe ao poder
público prestar. trata-se de atividade privada, mas que, em função da sua importância
no cenário econômico e social, tem seu exercício condicionado pelo poder público à
observância de uma série de exigências fixadas pelo Estado.
idêntico raciocínio é aplicável à atividade de vigilância armada. não são serviços
públicos os prestados pelas empresas privadas de vigilância armada. mas em função
da relevância social, o exercício dessa atividade privada está condicionada à obtenção
de uma autorização a ser expedida pelo poder público.
A fim de melhor distinguir a autorização da permissão e da concessão, podemos
comparar a atividade de táxi com o transporte coletivo de passageiros feito por ônibus.39
no primeiro caso, do táxi, o taxista explora atividade privada. teoricamente, qualquer
particular poderia utilizar seu veículo privado e fazê-lo funcionar como lotação. em
nome do bem-estar da própria população — imagine como ficaria ainda mais comprometido o trânsito em nossas cidades se qualquer cidadão pudesse fazer funcionar seu
veículo como lotação —, o exercício dessa atividade privada é condicionado à obtenção
de uma autorização pelo poder público municipal. Situação diversa se verifica com o
transporte coletivo urbano de passageiros, que nos termos da Constituição Federal se
trata de serviço a ser prestado à população pelos próprios municípios. temos, neste
segundo caso, serviço cujo titular é o poder público que poderia prestá-lo diretamente
ou por meio de permissão ou concessão de serviço público. na grande maioria dos
municípios brasileiros, é utilizado o instituto da permissão para delegar a prestação
desse serviço a empresas privadas.
Em conclusão, é possível afirmar que a autorização é instrumento de que se vale
o estado para intervir no exercício de atividade privada; a concessão e a permissão são
instrumentos de que se utiliza o estado para transferir a particulares a prestação de
serviços públicos, a fim de que particulares os explorem como atividades empresariais.40
39
40
Há municípios brasileiros que disciplinam a circulação dos táxis como permissão de serviço público (rio de
Janeiro, por exemplo). O tratamento diversificado, em que alguns municípios tratam os serviços prestados por
taxistas como permissão de serviço público e outros como autorização de serviço demonstra que não se pode
mais estabelecer com precisão a distinção entre serviço público e as atividades privadas. Cada vez mais a linha
que separava um do outro torna-se menos evidente.
enfrentamos essa discussão em processo no tCu em que se discutia a natureza dos serviços de tv a cabo (tC011.066/1997-7). A tese que defendemos, a seguir indicada, foi acolhida pelo tCu. na ocasião nos manifestamos
nos seguintes termos:
“Poder-se-ia argumentar, neste ponto, que a Lei nº 9.472/1997 não prevê a concessão como forma de delegação
do serviço de tv a cabo. Com efeito, a Lei Geral das telecomunicações, ao dispor sobre os regimes jurídicos de
prestação dos serviços de telecomunicações e seus respectivos procedimentos de delegação, previu a concessão
e a permissão para os serviços de telecomunicações prestados tão-somente em regime público, assim entendidos
aqueles de interesse coletivo cuja existência, universalização e continuidade a própria união comprometa-se
a assegurar. Para os serviços de telecomunicações a serem prestados em regime privado, caracterizados pelo
CAPítuLo 8
ConCessões e Permissões de serviço PúBLiCo
Aspecto que imediatamente sobreleva dessa discussão diz respeito à responsabilidade
do autorizatário. não sendo prestador de serviço público, a ele não se aplica o disposto no
art. 37, §6º, da Constituição Federal. desse modo, diferentemente do concessionário e do
permissionário, ao autorizatário não á atribuída responsabilidade civil objetiva.
outra distinção importante entre a concessão/permissão e a autorização diz
respeito à necessidade de licitação. nos termos do art. 175 da Constituição Federal,
toda concessão e permissão pressupõem a prévia licitação. esta regra não se aplica às
autorizações, ou seja, nem toda autorização depende de licitação. Para as autorizações,
a obrigatoriedade da licitação está condicionada à verificação de algumas particularidades. Se a expedição de certa autorização, seja pela natureza, seja pela fixação em lei
de limite máximo de autorizações, importar em que outros particulares não possam
explorar aquela atividade, a adoção da licitação, ou de outro procedimento que assegure isonomia e impessoalidade, deve ser a regra. Isto não se verifica, por exemplo,
com as autorizações expedidas pelo Banco Central para o funcionamento de instituições
financeiras. Não é o fato de ter sido expedida uma autorização a certo banco que outros,
interesse restrito que revelam, a Lei nº 9.472/1997 previu a delegação não mediante concessão ou permissão, mas
mediante autorização. A nosso ver, as disposições da Lei Geral das telecomunicações afastam qualquer possibilidade de se classificar no regime puramente público a prestação dos serviços de TV a cabo. Afinal, esse tipo de
serviço carece da essencialidade característica dos serviços que reclamam ações efetivas no sentido de garantir,
até mesmo mediante a intervenção do estado, sua existência, universalização e continuidade. A percepção de
quão absurda seria a situação de eventual assunção, pela união, de um serviço de tv a cabo, no caso de o particular outorgado não lograr assegurar sua existência, universalização ou continuidade, é suficiente para descaracterizar aquele serviço como um serviço a ser prestado em regime público. no máximo, a tv a cabo poderia
ser enquadrada entre os serviços de natureza jurídica mista — pública e privada —, que combinam interesses
restritos e coletivos. essas digressões pela Lei nº 9.472/1997 visam a enfatizar que, embora as disposições da
mencionada lei não indiquem a concessão como forma de se realizar a delegação do serviço de tv a cabo, por
não se enquadrar este entre os serviços de telecomunicações a serem prestados em regime essencialmente público, é mesmo a concessão o meio de se concretizar essa delegação, por força de expressa disposição do artigo
6º da Lei nº 8.977/1995, a qual — repisamos — funciona como lei especial em relação à Lei nº 9.472/1997 e, em
assim sendo, devem seus ditames preponderar sobre as disposições desta, quando as duas normas dispuserem
diversamente sobre uma determinada questão. (...)
A Lei nº 8.987/1995 foi editada visando a disciplinar o regime de concessão e permissão da prestação de serviços
públicos previsto no artigo 175 da Constituição Federal, dispositivo este que ressaltou a imprescindibilidade
da licitação para a outorga daqueles serviços. A toda evidência, a referida norma legal tratou da concessão de
serviços públicos em sentido estrito, ou seja, de serviços a serem prestados em regime público. daí ter a aludida
lei se ocupado de cláusulas que denotam forte controle estatal dos serviços concedidos ou permitidos. entre
essas cláusulas, destacam-se as que se referem à estipulação de bens reversíveis; à possibilidade de se promover
desapropriações e de se constituir servidões consideradas necessárias à execução dos serviços; à possibilidade
de intervenção, encampação ou até mesmo de assunção, pelo estado, de serviços que deixarem de ser executados satisfatoriamente pelo particular outorgado; ao rígido controle da política tarifária; à obrigatoriedade, forma
e periodicidade da prestação de contas da concessionária ao poder concedente; e à exigência da publicação de
demonstrações financeiras periódicas da concessionária.
Como já dissemos acima, o serviço de tv a cabo não se enquadra entre os serviços a serem prestados em regime
puramente público, os quais se caracterizam por uma acentuada tutela estatal. embora seja outorgado sob a
forma de concessão, o serviço de tv a cabo não gera obrigação de existência, universalização e continuidade por
parte do estado. Carece esse serviço da essencialidade e da imprescindibilidade características dos serviços que
o legislador procurou contemplar ao editar a Lei nº 8.987/1995. Além disso, há que se considerar que, na prática,
o serviço de tv a cabo vem tendo caráter preponderantemente restrito, vez que é utilizado por uma pequena
parcela da população brasileira que pode pagar, sem comprometer o custeio de suas necessidades básicas, por
canais de informação e entretenimento não veiculados na tv aberta.
Com o mesmo espírito da Lei nº 8.987/1995, ou seja, de regulamentar o disposto no artigo 175 da Constituição
Federal, disciplinando concessões e permissões de serviços estritamente públicos, a Lei nº 9.074/1995 prestou-se a
tratar de outorgas até então não contempladas na legislação e de assuntos diversos, relacionados tanto às concessões e permissões previstas em seu bojo quanto às reguladas por meio da Lei nº 8.987/1995. Assim, pelas mesmas
razões que entendemos deva ser afastada a aplicação da Lei nº 8.987/1995 aos procedimentos de outorga dos serviços de tv a cabo, afasta-se também a aplicação da Lei nº 9.074/1995”.
493
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
494
desde que atendam às mesmas exigências legais, estarão impedidos de obter idêntica
autorização de funcionamento.
A autorização constitui, portanto, instrumento para o exercício do poder de polícia
do Estado. Por meio dela são definidas as condições para o exercício de atividades privadas.
Há situações excepcionais, todavia, em que a autorização assume função distinta e
serve para transferir a particulares serviços públicos. são casos, como dito, excepcionais e
dependem de previsão legal.
essa solução foi adotada pela Lei nº 9.472/97, que trata dos serviços de telecomunicações. nos termos do art. 63 desta lei, o regime jurídico da prestação dos serviços de
telecomunicações pode ser público ou privado. serviço de telecomunicações em regime
público é o prestado mediante concessão ou permissão, “com atribuição a sua prestadora
de obrigações de universalização e de continuidade”. nos termos do art. 126 da mesma
lei, “a exploração de serviço de telecomunicações no regime privado será baseada nos
princípios constitucionais da atividade econômica”.
Conforme dispõe a lei, os mesmos serviços prestados em regime público podem
igualmente sê-lo em regime privado.41 A distinção entre um e outro regime não resulta
da natureza do serviço, mas da relação estabelecida entre o poder público e o particular
prestador do serviço. se for utilizado o regime público, hipótese em que serão utilizadas a concessão ou a permissão, são impostas ao prestador determinadas obrigações,
inclusive a da universalização e da continuidade. se for utilizado o regime privado
“observará a exigência de mínima intervenção na vida privada” sendo assegurada,
inclusive, liberdade de preços (art. 129).
o modelo construído pela Lei nº 9.472/97 busca estabelecer a conjugação entre
os regimes da concessão, permissão e autorização. este último tem por propósito primordial estimular a competição entre os diversos prestadores de serviços, forçando a
redução dos preços cobrados dos usuários. A autorização funcionaria, no caso, com o
específico propósito de criar para o concessionário ou para o permissionário o dever
de reduzir o valor das suas tarifas em função da existência de competição propiciada
pela atuação do autorizatário.
de acordo com o regime adotado pela Lei nº 9.472/97, a autorização não se presta
para simplesmente legitimar o exercício de atividade privada, mas para delegar a particular a incumbência de prestar serviço público em regime privado, de livre iniciativa.
É denominado privado o regime da autorização, porque nele o poder público adota
postura menos invasiva em relação àquela adotada no modelo público. de qualquer
sorte, vê-se, ainda que em caráter excepcional, que o regime da autorização pode ser
utilizado para delegar a prestação de serviço público.
41
A Lei nº 9.472/97, em seu art. 66, expressamente admite a convivência entre os regimes público e privado, in verbis:
“Art. 66. Quando um serviço for, ao mesmo tempo, explorado nos regimes público e privado, serão adotadas
medidas que impeçam a inviabilidade econômica de sua prestação no regime público.”
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
9.1 instituição das parcerias público-privadas no direito brasileiro
no capítulo anterior, relativo às concessões de serviço público, tivemos a oportunidade de proceder, a partir de uma perspectiva histórica, ao exame das relações
mantidas entre o estado brasileiro e o setor privado no que concerne ao desempenho
de atividades estatais por agentes privados.
Percebe-se a sistemática e contínua revisão e atualização de inúmeros institutos
do direito Público, especialmente os que disciplinam a participação dos agentes privados — empresas ou entidades do terceiro setor — na prestação dos serviços públicos.
nos últimos anos, foram aprovadas inúmeras leis cujo escopo é disciplinar o
relacionamento entre o público e o privado, fortalecendo o conceito de estado cooperativo e subsidiário que temos desenvolvido ao longo deste trabalho.
Dentro do conjunto normativo vigente, destacamos a Lei nº 8.987/95, que define
normas gerais sobre concessões e permissões de serviço público, a Lei nº 9.637/98,
sobre organizações sociais, a Lei nº 9.790/99, sobre organizações da sociedade civil de
interesse público, e, mais recentemente, a aprovação da Lei nº 11.079/04, que trata de
parcerias público-privadas (PPP).
A aprovação da Lei nº 11.079/04 constituiu novo marco em nossa legislação e
objetiva disciplinar espaço de cooperação antes inexistente em nosso ordenamento
administrativo.
o regime jurídico das concessões de serviços públicos é apropriado tão somente
para situações em que as receitas oriundas das tarifas pagas pelos usuários são suficientes
para remunerar o concessionário pela prestação dos serviços públicos, sendo impossível, no regime jurídico das concessões da Lei nº 8.987/95, o poder público completar
ou remunerar o empresário pelos serviços a serem prestados à população.
no regime das leis nº 9.637/98 e nº 9.790/99, que tratam, respectivamente, das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público, pressupõe-se
que a entidade com a qual é firmada a “parceria” seja entidade sem fim lucrativo, sendo
igualmente limitas suas áreas de atuação a atividades de interesse coletivo (saúde,
desenvolvimento tecnológico, preservação do meio ambiente, desenvolvimento de
projetos culturais etc.) de limitada perspectiva de exploração em caráter empresarial.
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
496
Algumas das atividades a serem desenvolvidas sob o regime da Lei nº 11.079/04
poderiam ser executadas por meio de contratação comum, nos termos da Lei nº 8.666/93.
É o caso, por exemplo, da execução de obra pública (construção de presídio ou de hospital). A utilização do regime da Lei nº 8.666/93 pressupõe, todavia, disponibilidade
orçamentária e financeira imediata. A execução de contrato de obra com base na Lei
nº 8.666/93 requer o pagamento imediato em favor do contratado, o que constitui empecilho à execução de inúmeras obras, sobretudo em razão do forte contingenciamento
orçamentário imposto pelas políticas fiscais de controle à inflação vigentes.
Cada um dos modelos jurídicos acima apontados apresenta limitações à sua
utilização: o regime das concessões de serviço público pressupõe que a atividade a ser
explorada seja superavitária; o regime das os e osCiP, que a entidade com a qual é
firmado o acordo não tenha finalidade lucrativa; e a utilização do regime comum dos
contratos administrativos (Lei nº 8.666/93), a existência de disponibilidade financeira
imediata por parte do poder público.
o que fazer para desenvolver atividades estatais que requerem a realização de
gastos vultosos, superiores às receitas que poderiam advir da exploração do empreendimento, e que não possam ser desenvolvidas por entidades do terceiro setor? Como
fazer para executar importantes projetos de construção e de manutenção de pontes,
rodovias, portos, presídios, hospitais e de tantos outros de infraestrutura essenciais
ao desenvolvimento econômico e social do País sem que se disponha, desde logo, dos
respectivos recursos orçamentários e financeiros?
Acerca da necessidade de investimentos na área de infraestrutura, Benjamin
Zymler faz referência à necessidade de serem realizados investimentos anuais “da
ordem de r$20 bilhões na área de energia, r$9 bilhões na área de saneamento, r$4,5
bilhões em rodovias, r$3 bilhões em ferrovias, r$1,2 bilhão em portos e r$500 milhões
em hidrovias, totalizando cerca de r$40 bilhões em investimentos anuais para viabilizar
o crescimento da economia”.1
A resposta a estas indagações foi a criação do modelo de PPP, que no Brasil foi
instituída pela Lei nº 11.079/04. essa legislação permite suprir as limitações dos outros
regimes ou modelos vigentes, admitindo a utilização de PPP para projetos não autossustentáveis e para os quais não haja disponibilidade orçamentária imediata. o modelo
objetiva tornar atrativa a participação de empresas no desenvolvimento de projetos por
meio do aprimoramento de mecanismos jurídicos que assegurem ao parceiro privado
a segurança de que os investimentos por ele realizados terão retorno.
A adoção do modelo de PPP tem sido objeto de críticas por segmentos de nossa doutrina que enxerga na Lei nº 11.079/04 inúmeras inconstitucionalidades e a acusam de criar
regime jurídico excessivamente favorável às empresas com as quais são firmadas as PPP.2
o fato é o seguinte: independentemente das razões ou dos culpados, sofremos
em nosso País de enorme déficit de infraestrutura. A construção de estradas e de portos,
bem como sua futura fruição, por exemplo, pode efetivamente interessar mais a alguns
1
2
ZYmLer. Direito administrativo e controle.
“o Poder Público só é parceiro do particular na compulsória divisão da riqueza produzida por este. A confusão
trazida pela Lei das PPPs é inadmissível. não bastasse o poder tributário, exercido até com dose de crueldade,
pretende por esse instrumento híbrido, sem possibilidade de preciso enquadramento jurídico, retirar mais
recursos da sociedade em proveito de apenas alguns de seus segmentos” (HArAdA. Parceria público-privada:
vinculação de receitas: instituição de fundos especiais: art. 8º, incs. i e ii, da Lei 11.079/04: inconstitucionalidade
(Parecer). Boletim de Direito Administrativo – BDA, p. 313).
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
segmentos da sociedade do que a outros. A falta de investimentos em relevantes projetos
de infraestrutura constitui, todavia, forte restrição ao desenvolvimento econômico e social
de toda a sociedade brasileira. Qualquer país com a pretensão de alcançar patamares de
desenvolvimento econômico minimamente satisfatórios precisa investir pesadamente em
projetos de infraestrutura. enquanto as nações desenvolvidas já se preocupam com questões de redes digitais e de comunicação, em que o acesso à informação e a velocidade no
seu processamento passam a ser a chave entre ser ou não desenvolvido — bom exemplo
de programa dessa natureza é desenvolvido, na França, sob a denominação Paris Digital
—, ainda sofremos no Brasil de enorme déficit de infraestrutura e de saneamento básico.
se não formos capazes, independentemente de eventuais diferenças políticas,
partidárias ou jurídicas, de superar as dificuldades que se apresentam e não investirmos fortemente em projetos que permitam o desenvolvimento econômico e social do
nosso País, continuaremos a ocupar o mesmo espaço que sempre nos foi reservado:
de insignificância no cenário internacional e de forte desigualdade econômica e social.
o objetivo do estado é o bem-estar de sua população. o objetivo do setor empresarial, em qualquer local do planeta, é a perspectiva de lucro. não obstante sejam distintos, não são os interesses do estado e das empresas inconciliáveis. Há situações em
que os propósitos do setor público e do setor privado podem convergir. A PPP busca
identificar esses pontos de interesse e harmonizá-los de modo a que os investimentos,
os riscos e as responsabilidades dos empreendimentos possam ser distribuídos de modo
a satisfazer tanto os interesses privados, relacionados à obtenção de lucro quanto os
interesses públicos, consistentes na execução de obras de infraestrutura ou de saneamento básico, bem como na fruição desses empreendimentos por parte da população.
É dever do estado criar e manter a infraestrutura necessária ao desenvolvimento
da sociedade brasileira. o modelo de PPP não é a panaceia para a solução dos problemas
de desenvolvimento econômico. despidos de preconceitos, porém, devemos examinar
o modelo de PPP adotado no Brasil e nele encontrar uma possibilidade de realização
de projetos importantes para a população brasileira.
9.2 modelos de parcerias público-privadas
A necessidade de viabilizar a execução de projetos de infraestrutura por meio de
parcerias entre os setores público e privado levou inúmeros países a inserirem em seus
regimes jurídicos mecanismos que, por meio do compartilhamento de investimentos,
de riscos e de responsabilidades, permitem o planejamento, a execução e a manutenção
de obras ou o fornecimento e a instalação de bens.
o modelo de PPP (public-private partnership), segundo Carlos Pinto Coelho Motta,
“foi criado originalmente na inglaterra, onde está funcionando há bem mais de uma
década e viabilizou investimentos públicos e privados em valor superior a trinta bilhões
de libras esterlinas”.3
seguindo o modelo inglês, vários outros países, dentre eles Alemanha, Japão,
Portugal, espanha e Chile, aprovaram suas respectivas legislações sobre parcerias com
o setor privado.
3
mottA. Eficácia nas licitações & contratos: estrutura da contratação, concessões e permissões, responsabilidade
fiscal, pregão, parcerias público-privadas, p. 1002.
497
498
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Cada país adota modelo próprio. na espanha, por exemplo, as PPP são tratadas
dentro da própria lei de concessões.
no Brasil, a Lei nº 11.079/04 considera a PPP “um contrato administrativo de
concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa”. É possível, portanto, em
razão do que dispõe a lei, admitir a existência de quatro categorias de concessão:
1. Concessão de serviço público;
2. Concessão de serviço público precedida da realização de obra pública;
3. Concessão patrocinada; e
4. Concessão administrativa.
As duas primeiras modalidades são reguladas pela Lei nº 8.987/95; as duas últimas, pela Lei nº 11.079/04.
Não obstante a afirmação contida no caput do art. 2º da Lei nº 11.079/04 acima
transcrito, de que o contrato de PPP é uma concessão, somente uma das suas modalidades, a patrocinada, aproxima-se do modelo contratual das concessões.
A denominada concessão administrativa, que observa somente alguns dispositivos da Lei nº 8.987/95, apresenta modelo que mais se aproxima do regime dos contratos comuns disciplinados pela Lei nº 8.666/93, sem com eles, todavia, se confundir.
A própria Lei nº 11.079/04, em seu art. 2º, §2º, afirma que a concessão administrativa é
“contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta
ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens”.
evidentemente que a aplicação da Lei nº 8.666/93 a essa modalidade contratual
requer a consideração de peculiaridades, de que seria exemplo a vigência do contrato.
nos termos da Lei nº 8.666/93, por exemplo, os contratos de prestação de serviços
contínuos, consideradas possíveis prorrogações, não podem vigorar por mais de cinco
anos (art. 57), ao passo que as concessões administrativas devem vigorar, ao contrário,
por período mínimo de cinco anos (Lei nº 11.079/04, art. 2º, §4º, ii).
9.3 Âmbito de aplicação
As parcerias público-privadas têm o propósito de ocupar espaço normativo intermediário entre as concessões de serviço público e os contratos administrativos comuns.
Podem ser utilizadas tanto para a prestação de serviços públicos — entendidos
como aqueles em que o usuário direto é a população —, quanto para a prestação de
serviços à própria Administração Pública.
no caso dos serviços públicos, precedidos ou não da execução de obra pública,
deve ser examinado, inicialmente, se o projeto é autossustentável. se as receitas projetadas
para o parceiro privado forem suficientes para cobrir as despesas necessárias à execução e manutenção do empreendimento, deve ser utilizado o regime das concessões de
serviço público, disciplinado pela Lei nº 8.987/95.
se o projeto não for autossustentável, no sentido de que as receitas a serem pagas
pelos usuários do serviço público não forem suficientes para fazer frente às despesas,
o que afastaria investidores privados, pode ser utilizada a concessão patrocinada. esta
modalidade de PPP se destina à concessão de serviços públicos, precedidos ou não de
obras públicas em que a viabilidade do empreendimento envolve, “adicionalmente à
tarifa cobrada dos usuários, contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro
privado”.
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
A delegação dos serviços públicos relativos à exploração de uma rodovia, por
exemplo, pode indicar a utilização do regime da concessão de serviço público (Lei
nº 8.987/95) ou da concessão patrocinada. se o empreendimento for capaz de gerar
receitas suficientes para cobrir suas despesas e assegurar lucro que justifique o risco do
parceiro privado, deve ser utilizado o modelo da concessão de serviço público. se as
receitas relativas ao pagamento das tarifas projetadas não forem suficientes para atrair
o interesse econômico dos possíveis parceiros privados, o modelo indicado é o da concessão patrocinada — haja vista ser inerente a esta modalidade de PPP, adicionalmente
à tarifa cobrada dos usuários, a existência de pagamento a ser realizado pelo parceiro
público em favor do parceiro privado.
Conforme definido pelo art. 6º da Lei nº 11.079/04, a contraprestação da Administração Pública nos contratos de parceria público-privada poderá ser feita por:
i - ordem bancária;
ii - cessão de créditos não tributários;
iii - outorga de direitos em face da Administração Pública;
iv - outorga de direitos sobre bens públicos dominicais;
v - outros meios admitidos em lei.
o §1º do mencionado art. 6º admite a possibilidade de o contrato prever o pagamento ao parceiro privado de remuneração variável vinculada ao seu desempenho,
conforme metas e padrões de qualidade e disponibilidade definidos no contrato. O
§2º, por sua vez, permite a previsão no contrato do aporte de recursos, autorizado por
lei específica, em favor do parceiro privado, para a construção ou aquisição de bens
reversíveis. os parágrafos 3º e 4º estabelecem o tratamento tributário a ser dispensado
a esse aporte de recursos.4
esse sistema tem sido adotado com algum sucesso no âmbito das concessões
de serviços públicos relativos à distribuição de energia elétrica, em que a eficiência da
concessionária pode afetar positivamente ou negativamente o índice de reajuste a que
a concessionária tem direito. Neste modelo, são definidos os índices para a atualização dos valores a serem pagos ao parceiro privado e, em razão do desempenho por
ele apresentado, o índice pode ser afetado positiva ou negativamente por critérios de
desempenho definidos pelo edital e pelo contrato.
A contraprestação a ser paga pelo parceiro público em favor do privado, no
modelo de PPP, se afasta dos pagamentos efetuados sob o regime dos contratos administrativos comuns, porque deve ser obrigatoriamente precedida da disponibilização
do serviço objeto do contrato. vale dizer, somente quando o empreendimento tiver sido
disponibilizado, pode o parceiro público iniciar o pagamento da sua contraprestação
em favor do parceiro privado.
A Lei nº 11.079/04 faculta, todavia, à “Administração Pública, nos termos do
contrato, efetuar o pagamento da contraprestação relativa a parcela fruível de serviço
objeto do contrato” de PPP. ou seja, ainda que o empreendimento não tenha sido concluído, mas parte dele o tenha sido, e desde que esta parcela, como indica a lei, seja
passível de fruição, o parceiro público pode iniciar o pagamento da contraprestação
relativa a esta parcela. Preservando essa lógica, a mP nº 575/2012 fez constar que o
4
Conforme redação dada pela medida Provisória nº 575, de 7 de agosto de 2012, em vigor quando da conclusão
desta edição.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
500
aporte de recursos para aquisição de bens reversíveis, quando efetuado durante a fase
dos investimentos a cargo do parceiro privado, deverá guardar proporcionalidade com
as etapas efetivamente executadas.
se o poder público objetiva construir determinada rodovia, em razão do cenário que
se apresente, pode ser utilizado o regime da Lei nº 8.666/93, das concessões (Lei nº 8.987/95)
ou de PPP (Lei nº 11.079/04):
Cenário 1 – deve utilizar o regime da Lei nº 8.666/93 se o propósito do poder
público for o de pagar o contratado com recursos orçamentários pela execução da obra.
neste regime, à medida que o contrato é executado, o poder público paga ao contratado
pela execução da obra.
Cenário 2 – se o objetivo for o de fazer com que os futuros usuários da rodovia
paguem tarifas capazes de cobrir as despesas relativas à construção e à prestação dos serviços de manutenção e conservação da rodovia, pode ser utilizado o regime da concessão
de serviço público precedida da execução de obra ou, senão, de PPP. neste cenário, temos
duas diferentes situações a serem consideradas em razão de o empreendimento ser ou
não autossustentável. Cenário 2.1: deve ser utilizado o regime das concessões de serviço
público (Lei nº 8.987/95) se o empreendimento for capaz de gerar receitas suficientes
para remunerar o particular e assegurar-lhe o retorno do investimento realizado. se o
empreendimento não for autossustentável (Cenário 2.2), ou seja, se a tarifa a ser paga
pelo usuário não for suficiente para assegurar ao particular o retorno do investimento,
hipótese em que o poder público será obrigado a complementar as receitas do parceiro
privado, deve ser utilizado o regime de PPP, na modalidade de concessão patrocinada.
Benjamin Zymler, acerca do âmbito de utilização das PPP, em sua modalidade de
concessão administrativa, afirma que “o conjunto de serviços públicos aqui previstos
supera largamente aquele a que se refere o art. 175 da Constituição Federal de 1988.
Afinal, o citado artigo da Lei Maior regula a prestação de serviços públicos que tem
acentuado conteúdo econômico, como, por exemplo, o fornecimento de energia elétrica.
Já as parcerias público-privadas poderão propiciar o atendimento de necessidades da
população em setores onde não haja interesse econômico por parte dos agentes privados. Assim, poderão ser construídas e operadas desde prisões a hospitais ou escolas,
precipuamente, por meio de concessões administrativas, passando por estradas e portos,
esses últimos sob a forma de concessões patrocinadas”.5
Conforme observa o ilustre autor, o art. 175 do texto constitucional, que serve de
amparo para a realização das concessões de serviço público, restringe a utilização desse
modelo à prestação de serviços públicos, vale dizer, àqueles serviços em que figure
como destinatária a própria população, não obstante possa a Administração Pública
também ser beneficiária da prestação desses serviços.
no caso de PPP, além da possibilidade da sua utilização em situações que envolvam a execução de obras ou fornecimento e instalação de equipamentos com a correspondente prestação dos serviços públicos de manutenção e conservação das obras e
dos equipamentos, em que figure como destinatário a população — hipótese em que é
utilizada a modalidade de concessão patrocinada —, é também possível a utilização da
modalidade administrativa de PPP, em que o usuário direto dos serviços relativos às
obras ou aos equipamentos instalados ou executados é a própria Administração Pública.
5
ZYmLer. Direito administrativo e controle, p. 164.
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
A utilização de PPP não pode objetivar tão somente o fornecimento de mão de obra,
o fornecimento e a instalação de equipamentos ou a execução de obra pública. deve
haver a prestação de serviços públicos (concessão patrocinada) ou de serviços a serem
usufruídos pela Administração Pública (concessão administrada) a fim de possibilitar
a utilização do modelo de parceria público-privada, disciplinado pela Lei nº 11.079/04.
9.4 regime jurídico das parcerias público-privadas
A aprovação da Lei das PPP ampliou o âmbito de utilização dos contratos administrativos. temos, atualmente, além dos contratos comuns — obras, serviços, compras
e alienações — regidos pela Lei nº 8.666/93, os contratos de permissão e concessão de
serviço público, regidos pela Lei nº 8.987/95 e, supletivamente, pela Lei nº 8.666/93. Com
a edição da Lei nº 11.079/04, temos duas novas modalidades de contratos, que viabilizam
as parcerias público-privadas, a concessão patrocinada e a concessão administrativa.
As duas modalidades de PPP são definidas pela Lei nº 11.079/04 nos termos seguintes:
- Concessão patrocinada – Concessão de serviços públicos ou de obras públicas
que requeira, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários, contraprestação
pecuniária do parceiro público ao parceiro privado; e
- Concessão administrativa – Contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução
de obra ou fornecimento e instalação de bens.
diante desse amplo conjunto normativo onde são apresentadas diferentes modalidades contratuais, a Lei nº 11.079/04 busca estabelecer o regime normativo aplicável
a cada uma dessas espécies contratuais.
As concessões patrocinadas, que muito se aproximam das concessões de serviços
públicos, são disciplinadas pela Lei nº 11.079/04, pela Lei nº 8.987/95 e, em caráter subsidiário, pela Lei nº 8.666/93.
As concessões administrativas, cujo regime jurídico mais se assemelha ao dos contratos administrativos comuns, são igualmente regidas pela Lei nº 11.079/04. da Lei
nº 8.987/95, todavia, é aplicável tão somente o disposto nos artigos 21, 23, 25 e 27 a 39,
e da Lei nº 9.074/95, o art. 31. Em relação aos demais aspectos necessários à definição
do conteúdo dos contratos de concessão administrativa, é aplicável o disposto na Lei
nº 8.666/93.
da Lei nº 8.987/95 são, portanto, aplicáveis às concessões administrativas as
seguintes regras:
- Art. 21 – os estudos, investigações, levantamentos, projetos, obras e despesas
ou investimentos realizados direta ou indiretamente pelo poder concedente
que sejam úteis à licitação deverão ser postos à disposição dos licitantes interessados;
- Art. 23 – Define as cláusulas essenciais do contrato, tais como objeto, direitos
e deveres do concedente e da concessionária;
- Art. 25 – Atribui à concessionária a incumbência de prestar o serviço concedido e
de responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários
ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou
atenue essa responsabilidade;
- Art. 27 – impõe a prévia anuência do poder público para a transferência da
concessão ou do controle societário da concessionária, sob pena de caducidade
da concessão;
501
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
- Art. 28 – Permite que nos contratos de financiamento, as concessionárias ofereçam
em garantia os direitos emergentes da concessão, até o limite que não comprometa
a operacionalização e a continuidade da prestação do serviço;
- Art. 29 – Define os encargos do poder público, tais como a regulamentação e a
fiscalização do serviço, bem como o poder de intervir ou extinguir a concessão;
- Art. 30 – Disciplina o poder de fiscalização exercido pelo poder público sobre
dados contábeis, técnicos e administrativos do concessionário;
- Art. 31 – Define os encargos do concessionário;
- Art. 32 – disciplina a prerrogativa do poder público de intervir na concessão;
- Art. 33 – Fixa prazo para as medidas interventivas bem como para o término
da intervenção;
- Art. 34 – dispõe que, encerrada a intervenção, desde que não extinta a concessão, o serviço seja devolvido ao concessionário acompanhado de prestação de
contas por parte do interventor;
- Art. 35 – indica as situações que podem resultar na extinção da concessão, a
exemplo da falência ou extinção da empresa concessionária;
- Art. 36 – disciplina a extinção da concessão em razão da expiração do termo
do contrato e regula a reversão de bens;
- Art. 37 – dispõe sobre o instituto da encampação da concessão, que requer, além
de prévia indenização, lei autorizativa específica a fim de que possa ser extinta
a concessão durante a vigência do contrato por razões de interesse público;
- Art. 38 – regula a declaração de caducidade da concessão em razão do descumprimento do contrato pelo concessionário; e
- Art. 39 – disciplina a rescisão judicial da concessão em razão do não cumprimento das normas da concessão por parte do poder concedente.
Além das normas acima indicadas, às concessões administrativas é ainda aplicável
o disposto no art. 31 da Lei nº 9.074/95, que autoriza os responsáveis pela elaboração
dos projetos básicos ou executivos a participarem da licitação para a concessão.
evidente que a aplicação das regras acima indicadas às PPP requer a devida
adaptação: onde é feita referência a concessionária, deve ser entendido como sendo ao
parceiro privado, e onde se fala em concessão, entenda-se como contrato de parceria
público-privada.
As concessões comuns, que não envolvem contraprestação pecuniária do parceiro
público ao parceiro privado, traço característico das parcerias público-privadas, continuam
regidas pela Lei nº 8.987/95; e os contratos de obras, serviços, compras e alienações, pela
Lei nº 8.666/93 e demais leis correlatas.
9.5 Características das parcerias público-privadas
em razão do que até o momento foi examinado, podemos apresentar as seguintes
características das PPP:
- trata-se de contrato cujo objeto consiste na prestação de serviços públicos (em que
o usuário é a população) ou de serviços à Administração Pública, precedidos ou
não da execução de obra ou fornecimento e instalação de bens;
- Somente se configura como PPP o contrato que envolve contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado, cujo pagamento somente pode ocorrer
após o objeto do contrato ou parte dele ter-se tornado fruível;
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
- o objeto do contrato deve importar em conjugação de obras e de serviços ou de serviços
públicos, não se admitindo como PPP aquele cujo objeto único consista tão somente
no fornecimento de mão de obra, no fornecimento e instalação de equipamentos
ou na execução de obra pública;
- Distribuição dos riscos, responsabilidades e encargos entre os parceiros público e
privado;
- Maior segurança oferecida ao parceiro privado, especialmente no que concerne aos
encargos pecuniários assumidos pelo parceiro público, o que pode ser demonstrado com a criação do Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP);
- necessidade de termo certo, nunca inferior a cinco anos; e
- É indicada para grandes empreendimentos, haja vista ser admitida a utilização
de PPP somente para contratos de valor superior r$20 milhões.
9.6 diretrizes e garantias das PPP
A Lei nº 11.079/04 fixa, em seu art. 4º, as diretrizes a serem utilizadas para pautar
a formalização e execução dos contratos de PPP. são elas:
- Eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos
da sociedade;
- respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes
privados incumbidos da sua execução;
- indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder
de polícia e de outras atividades exclusivas do estado;
- Responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias;
- transparência dos procedimentos e das decisões;
- repartição objetiva de riscos entre as partes;
- Sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.
Em razão da fixação dessas diretrizes, é possível identificar de forma nítida a
preocupação do legislador com alguns importantes aspectos dos contratos de PPP, que
podem resultar no sucesso ou no fracasso do empreendimento.
9.6.1 Eficiência
A eficiência, primeira diretriz, aliada à “desorçamentação” constituem a própria
razão da existência das parcerias público-privadas.
Ao desenvolver instrumentos que permitem a realização de parceiras, o poder
público busca nos parceiros privados, em primeiro lugar, a capacidade de desenvolver
projetos, sobretudo na área de infraestrutura, com a eficiência que caracteriza a atuação
das empresas, que sempre buscam maximizar seus lucros e reduzir seus custos.
9.6.2 Responsabilidade fiscal
em segundo lugar, a necessidade de desenvolver projetos sob o regime de PPP
está diretamente relacionada às fortes restrições orçamentárias impostas aos governos
que têm na Lei de responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/00) um dos seus
principais instrumentos.
503
LuCAs roCHA FurtAdo
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504
Além da eficiência, o poder público busca no parceiro privado a sua capacidade
de alavancar os recursos necessários à realização de empreendimentos necessários ao
desenvolvimento do País, o que gera, de outra parte, grande preocupação com a responsabilidade fiscal do estado em função da assunção, por parte deste último, de obrigações
futuras, e impõe uma série de cautelas a serem adotadas.
Aliás, o planejamento, conjuntamente à transparência e ao equilíbrio das contas
públicas, são fatores de responsabilidade fiscal expressamente previstos na Lei de
responsabilidade Fiscal (art. 1º, §1º) que assim dispõe:
A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se
previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante
o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e
condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por
antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a Pagar. (grifos nossos)
Considerando que a Lei de Responsabilidade Fiscal define o planejamento, a
transparência e o equilíbrio das contas públicas como pressupostos básicos da gestão
responsável e que a Lei das PPP identifica a responsabilidade fiscal como uma das
diretrizes para a contratação, a teor do disposto no inciso iv do art. 4º, conclui-se que
tais elementos (planejamento, transparência das ações e equilíbrio das contas públicas) são
diretrizes que devem, necessariamente, balizar os contratos firmados em regime de PPP.
Curioso ainda observar que o exame da segunda parte do dispositivo acima
transcrito permite identificar as maneiras pelas quais devem ser alcançadas tais metas
de responsabilidade contidas nesses elementos.
Ação planejada e transparente seria, assim, aquela tendente a cumprir as metas
de resultados entre receitas e despesas e a obedecer os limites impostos pela legislação
à realização de determinados gastos públicos, tais como os efetuados com pessoal e
com operações de crédito, entre outros ali relacionados.
em razão do que dispõe a Lei de responsabilidade Fiscal, a administração responsável do contrato de PPP, sob o ponto de vista fiscal, pressupõe, desde sua origem,
planejamento e transparência das ações objeto do respectivo contrato, de forma a permitir a prevenção de riscos e a correção de desvios que sejam potencialmente capazes
de afetar, no futuro, o equilíbrio das contas públicas.
Acerca do planejamento das ações impende destacar a opinião de vanice Lírio
do Valle, que afirma ser lamentável o fato da Lei nº 11.079/04 pouco dispor sobre a fase
de planejamento do contrato e, a partir daí, para resolver eventuais pendências, ser
conferido ao administrador público amplo e desarrazoado poder discricionário.6 Para
evitar essa discricionariedade excessiva, seria importante que a Lei nº 11.079/04 dispusesse mais detidamente acerca dos segmentos de atividade e dos modelos de negócio7
atinentes à contratação de PPP.
6
7
VALLE. Responsabilidade fiscal e parcerias público-privadas: o significado das diretrizes contidas no art. 4º da
Lei nº 11.079/04. A&C – Revista de Direito Administrativo e Constitucional, p. 201-220.
modelos de negócio, no caso, são as diversas e possíveis modalidades de contratação de terceiros. Carlos Pinto
Coelho Motta descreve diversos modelos de negócios passíveis de realização pela Administração Pública, “complementares aos contratos, que viabilizam, no campo prático, a abertura à colaboração do setor privado”, muito
embora, alguns deles, sofram restrições quanto a sua aplicação. são exemplos, o acordo administrativo, a subcontratação, a sub-rogação do contrato, o pacto-adjeto, a cessão de crédito, o project finance, o contracting out dos
convênios, o franchising, entre outros. Cf. mottA. Perspectivas na implantação do sistema de parcerias públicoprivadas – PPP. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, p. 3009.
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nos atuais termos da Lei das PPP, o administrador está autorizado a aplicar a
Parceria em qualquer segmento de atividade, desde projetos de meio ambiente e de agricultura a projetos de construção naval e de exploração petrolífera, entre outros, tais
como projetos de limpeza urbana, dependentes exclusivamente da mera vontade do
administrador responsável pelo planejamento.
A utilização do modelo de PPP deve importar, portanto, em grande preocupação e
cuidado com o comprometimento dos orçamentos futuros. A PPP se revela excelente instrumento para a realização de investimentos, não obstante não haja recursos orçamentários disponíveis no momento da contratação. daí a criação do termo “desorçamentação”
(termo que, não obstante nos cause aversão, temos utilizado). se, todavia, é possível
iniciar a execução do contrato de PPP sem que haja recursos públicos disponíveis no
momento da contratação, posto que a incumbência pela alavancagem desses recursos é
encargo do parceiro privado, e que nessa nova modalidade de contrato a contraprestação
do parceiro público em favor do privado somente pode ser paga quando o objeto da
parceria, ou ao menos parte dele, se tornar disponível, haverá forte comprometimento
de recursos orçamentários futuros, o que justifica o cuidado do legislador com os parâmetros de responsabilidade fiscal e comprometimento orçamentário.
na distribuição dos encargos entre parceiro público e privado, caracteriza a PPP
o fato de que incumbe ao parceiro privado a alavancagem dos recursos necessários ao
empreendimento. Com o propósito de evitar que esses recursos sejam buscados em
organismos públicos de fomento — o que tornaria falacioso o argumento de que não
existiriam recursos públicos disponíveis para a execução do objeto do contrato — a lei
limita as operações de crédito efetuadas por empresas públicas ou sociedades de economia mista
controladas pela União, que “não poderão exceder a 70% (setenta por cento) do total das
fontes de recursos financeiros da sociedade de propósito específico, sendo que para as
áreas das regiões norte, nordeste e Centro-oeste, onde o índice de desenvolvimento
Humano – idH seja inferior à média nacional, essa participação não poderá exceder a
80% (oitenta por cento)”. São ainda estabelecidas limitações às operações de crédito e
às contribuições para a formação de capital da Sociedade de Propósito Específico – SPE
(a ser examinada adiante e cujo objetivo será o de gerir o empreendimento) a serem
efetuadas por entidades fechadas de previdência complementar (mais conhecidas como
fundos de pensão) e por empresas públicas e sociedades de economia mista controladas
pela união.
A contratação de PPP gera, nesse sentido, encargos para os governantes e para
as gerações futuras, o que justifica, como pode ser observado, a adoção de medidas que
impedem o comprometimento exagerado do poder público com os encargos futuros.
este constitui ponto crítico das PPP. Como obrigar o atual governante a honrar
compromissos pecuniários assumidos em contratos de PPP firmados 10, 20 ou, até
mesmo, 35 anos antes, eventualmente contraídos por pessoas que hoje fazem oposição
a esse governante ou administrador público?
O sucesso da PPP decorrerá, em grande parte, da confiança dos agentes privados
em que os compromissos assumidos pelo parceiro público sejam honrados no futuro,
independentemente de quem seja governante. A preocupação do legislador com o
cumprimento dos encargos financeiros do parceiro público pode ser constatada com
as garantias admitidas pela Lei nº 11.079/04, que em muito excedem aquelas tradicionalmente utilizadas nos contratos comuns.
505
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Curso de direito AdministrAtivo
A preocupação com o cumprimento do que preceitua a Lei de responsabilidade
Fiscal é verificada pela presença de inúmeras regras contidas na Lei nº 11.079/04.
o art. 22, por exemplo, determina que “a união somente poderá contratar parceria
público-privada quando a soma das despesas de caráter continuado derivadas do
conjunto das parcerias já contratadas não tiver excedido, no ano anterior, a 1% (um
por cento) da receita corrente líquida do exercício, e as despesas anuais dos contratos
vigentes, nos 10 (dez) anos subseqüentes, não excedam a 1% (um por cento) da receita
corrente líquida projetada para os respectivos exercícios”.
Ademais, a abertura do processo licitatório da PPP, conforme dispõe o art. 10,
está condicionada, dentre outros, à observância de inúmeros requisitos de ordem orçamentária e financeira:
i - autorização da autoridade competente, fundamentada em estudo técnico que demonstre:
a) a conveniência e a oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que
justifiquem a opção pela forma de parceria público-privada;
b) que as despesas criadas ou aumentadas não afetarão as metas de resultados fiscais
previstas no Anexo referido no §1º do art. 4º da Lei Complementar no 101, de 4 de maio
de 2000, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo
aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa; e
c) quando for o caso, conforme as normas editadas na forma do art. 25 desta Lei, a observância
dos limites e condições decorrentes da aplicação dos arts. 29, 30 e 32 da Lei Complementar
no 101, de 4 de maio de 2000, pelas obrigações contraídas pela Administração Pública
relativas ao objeto do contrato;
II - elaboração de estimativa do impacto orçamentário-financeiro nos exercícios em que
deva vigorar o contrato de parceria público-privada;
iii - declaração do ordenador da despesa de que as obrigações contraídas pela Administração Pública no decorrer do contrato são compatíveis com a lei de diretrizes orçamentárias
e estão previstas na lei orçamentária anual;
IV - estimativa do fluxo de recursos públicos suficientes para o cumprimento, durante a
vigência do contrato e por exercício financeiro, das obrigações contraídas pela Administração Pública;
v - seu objeto estar previsto no plano plurianual em vigor no âmbito onde o contrato
será celebrado.
9.6.3 distribuição dos riscos, encargos e responsabilidades
outra importante diretriz das parcerias público-privadas diz respeito à correta
distribuição dos riscos, dos encargos e das responsabilidades entre os parceiros.
essa distribuição deve considerar o respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução, a sustentabilidade
financeira e as vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.
Para maiores detalhes acerca dos riscos a serem considerados e da divisão a ser
feita entre os parceiros, remetemos o leitor ao capítulo anterior.
Com vista a mitigar os riscos do parceiro privado no que concerne às obrigações
pecuniárias assumidas pelo parceiro público em contrato de PPP, a Lei nº 11.079/04, em
seu art. 8º, admite a possibilidade de serem prestadas as seguintes garantias:
i - vinculação de receitas, observado o disposto no inciso iv do art. 167 da Constituição Federal;
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
ii - instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei;
iii - contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não
sejam controladas pelo Poder Público;
IV - garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras
que não sejam controladas pelo Poder Público;
v - garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa
finalidade;
vi - outros mecanismos admitidos em lei.
das modalidades de garantia admitidas, as indicadas nos incisos i e ii acima
mencionadas têm gerado inúmeras controvérsias.
em relação à hipótese prevista no inciso i, a referência feita ao art. 167, iv, do
texto constitucional, importa em lembrar que a vinculação da receita de impostos para
qualquer fim é, como regra, vedada. Nos termos da Constituição, somente é possível
haver vinculação de receita de impostos nas seguintes hipóteses:
- na repartição do produto da arrecadação de impostos a que se referem os
artigos 158 e 159 do texto constitucional;
- na destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para
manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da
administração tributária; e
- na prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita
– Aro, previstas no artigos 165, §8º, e 167, §4º.
em razão dessas ressalvas, os contratos de PPP cujos objetos mantenham relação com ações e serviços públicos de saúde e para a manutenção e desenvolvimento do ensino
poderão ter como garantia a vinculação de receita de impostos.
outras receitas públicas, ressalvadas aquelas decorrentes da arrecadação de
impostos, e observadas as demais normas pertinentes ao tema (Lei nº 4.320/64, artigos
9º e 71, e Lei Complementas nº 101/00, art. 8º), em relação às quais não sejam aplicadas
a vedação prevista no art. 167, iv, da Constituição Federal, podem ser utilizadas como
garantia para as obrigações de natureza pecuniária assumidas pelo parceiro público
em favor do parceiro privado.
relativamente à garantia prevista no inciso ii do art. 8º da Lei nº 11.709/04, que
trata da instituição de fundos especiais, a própria Lei das PPP, com a redação dada
pela Lei nº 12.409/11, autoriza, no plano federal, a união, seus fundos especiais, suas
autarquias, suas fundações públicas e suas empresas estatais dependentes a participar
do Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP), que terá natureza privada
e patrimônio próprio separado do patrimônio dos cotistas, e será sujeito a direitos e
obrigações próprios.
nos termos do art. 17 da Lei nº 11.079/04, o FGP será criado, administrado, gerido
e representado judicial e extrajudicialmente por instituição financeira controlada, direta
ou indiretamente, pela união.
A lei prevê diversas modalidades de garantias a serem prestadas pelo FGP (art. 18,
§1º)8 e permite expressamente que os bens e direitos do fundo sejam objeto de constrição
8
A medida Provisória 575/2012, em vigor na ocasião da conclusão desta edição, deu nova redação ao art. 18, §4º,
da Lei nº 11.079/2004, permitindo ainda ao FGP prestar garantia mediante contratação dos instrumentos disponíveis no mercado, inclusive para complementar as modalidades mencionadas no art. 18, §1º.
507
508
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
judicial e alienação para satisfazer as obrigações garantidas em caso de inadimplemento
(art. 18, §7º). Além disso, faculta a constituição de patrimônio de afetação que não se
comunicará com o restante do patrimônio do FGP, ficando vinculado exclusivamente à
garantia em virtude da qual tiver sido constituído, não podendo ser objeto de penhora,
arresto, sequestro, busca e apreensão ou qualquer ato de constrição judicial decorrente
de outras obrigações do FGP.
É certo que a utilização das regras previstas na Lei nº 11.079/04 pressupõe novo
paradigma jurídico. desde que respeitados os parâmetros e as ressalvas mencionadas
pela Lei nº 11.079/04, pela Lei nº 4.320/64, pela Lei Complementar nº 101/00 e pela própria Constituição Federal, tanto em relação à vinculação de receitas públicas, quanto
em relação à utilização de fundos, podem esses instrumentos ser de grande valia para
a viabilização de PPP.
não se pode admitir, todavia, que a pecha de inconstitucionalidade atribuída a
alguns dos dispositivos da Lei nº 11.079/04 não seja superada. É necessário o urgente
enfrentamento dessa questão pelo Poder Judiciário e o seu esclarecimento com vista à
redução dos riscos jurisdicionais que envolvem os empreendimentos de PPP.
9.6.4 outras diretrizes
são também apresentadas como diretrizes das PPP a transparência dos procedimentos e das decisões, a indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do
exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado, bem como a
sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.
9.7 vedações à utilização de PPP
É vedada a celebração de contrato de parceria público-privada:
Art. 2º (...)
§4º (...)
i - cujo valor do contrato seja inferior a r$20.000.000,00 (vinte milhões de reais);
ii - cujo período de prestação do serviço seja inferior a 5 (cinco) anos; ou
iii - que tenha como objeto único o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública.
das vedações previstas em lei, é merecedora de crítica a constante no inciso i.
do ponto de vista das despesas realizadas pela Administração Pública federal, a
fixação do limite de R$20 milhões pode ser considerada parâmetro razoável.
em relação a alguns estados e certamente para a grande maioria dos municípios
brasileiros, a imposição do limite importa em inviabilizar a utilização de PPP. Para
pequenos municípios, que se mantêm graças às receitas oriundas do Fundo de Participação dos municípios (FPm), a realização de pequenas obras de infraestrutura resta
inviabilizada em razão da vedação legal.
A fixação do limite linear de R$20 milhões desconsidera a diversidade econômica
de nosso País e restringe a utilização das PPP à união e a pequeno número de estados e
de Municípios. Ademais, a fixação desse limite contribui para o aumento da dependência dos municípios e estados em relação ao Governo Federal, haja vista somente com a
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
participação da união poderá a grande maioria dos estados e municípios desenvolver
projetos de PPP.
9.8 Conteúdo dos contratos de PPP
são cláusulas obrigatórias nos contratos de PPP:
i - o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos
realizados, não inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo
eventual prorrogação;
ii - as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de
inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta
cometida, e às obrigações assumidas;
iii - a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força
maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária;
iv - as formas de remuneração e de atualização dos valores contratuais;
v - os mecanismos para a preservação da atualidade da prestação dos serviços;
vi - os fatos que caracterizem a inadimplência pecuniária do parceiro público, os modos
e o prazo de regularização e, quando houver, a forma de acionamento da garantia;
vii - os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado;
VIII - a prestação, pelo parceiro privado, de garantias de execução suficientes e compatíveis
com os ônus e riscos envolvidos, observados os limites dos §§3º e 5º do art. 56 da Lei n. 8.666,
de 21 de junho de 1993, e, no que se refere às concessões patrocinadas, o disposto no inciso
Xv do art. 18 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;
iX - o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do
parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados
pelo parceiro privado;
X - a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos
ao parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente
detectadas.
os contratos de PPP poderão prever adicionalmente:
i - os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a transferência do controle
da sociedade de propósito específico para os seus financiadores, com o objetivo de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços;
II - a possibilidade de emissão de empenho em nome dos financiadores do projeto em
relação às obrigações pecuniárias da Administração Pública;
III - a legitimidade dos financiadores do projeto para receber indenizações por extinção
antecipada do contrato, bem como pagamentos efetuados pelos fundos e empresas estatais
garantidores de parcerias público-privadas.
em relação à forma pela qual o parceiro público pode efetuar a sua contraprestação em favor do parceiro privado, a lei admite as seguintes opções:
i - ordem bancária;
ii - cessão de créditos não tributários;
iii - outorga de direitos em face da Administração Pública;
iv - outorga de direitos sobre bens públicos dominicais;
v - outros meios admitidos em lei.
509
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
510
9.9 Licitação para a contratação de PPP
9.9.1 Planejamento prévio
Aspecto de fundamental importância para o sucesso dos contratos de parcerias
público-privadas diz respeito à necessidade de planejamento prévio do contrato.
o sucesso da PPP passa pela elaboração de estudos e projetos para os quais tenha
havido a colaboração dos agentes privados interessados. Benjamin Zymler apresenta
o exemplo de rodovia executada em Portugal pelo regime de PPP, em que erro nos
estudos relativos aos custos necessários à execução e manutenção da obra resultou em
ônus significativamente mais elevados para os usuários e para o poder público.9
Quanto mais precisos e detalhados forem os estudos prévios realizados pelo
poder público, maior será o interesse dos agentes privados, menores serão os riscos do
empreendimento e, portanto, igualmente menores serão os encargos a serem transferidos
pelo futuro parceiro privado aos usuários e ao próprio poder público.
Quando se fala em licitação, deve-se ter em mente que ela se inicia muito antes
da publicação dos editais. mais importante do que a fase externa da licitação, que se
inicia com a divulgação dos instrumentos convocatórios, é a fase interna, aquela em
que são elaborados os estudos necessários ao sucesso do empreendimento.
nos termos do art. 10, i, da Lei nº 11.079/04, a abertura do processo licitatório para
a contratação de PPP está condicionada à realização de estudo técnico que demonstre:
- A conveniência e a oportunidade da contratação, mediante identificação das
razões que justifiquem a opção pela forma de parceria público-privada;
- Que as despesas criadas ou aumentadas não afetarão as metas de resultados
fiscais previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente
de receita ou pela redução permanente de despesa; e
- Quando for o caso, conforme as normas editadas na forma do art. 25 desta Lei,
a observância dos limites e condições decorrentes da aplicação dos artigos 29,
30 e 32 da Lei Complementar nº 101/2000, pelas obrigações contraídas pela
Administração Pública relativas ao objeto do contrato.
são ainda providências preliminares à licitação de PPP:
- Elaboração de estimativa do impacto orçamentário-financeiro nos exercícios
em que deva vigorar o contrato de parceria público-privada;
- declaração do ordenador da despesa de que as obrigações contraídas pela
Administração Pública no decorrer do contrato são compatíveis com a lei de
diretrizes orçamentárias e estão previstas na lei orçamentária anual;
- Estimativa do fluxo de recursos públicos suficientes para o cumprimento,
durante a vigência do contrato e por exercício financeiro, das obrigações contraídas pela Administração Pública;
- seu objeto estar previsto no plano plurianual em vigor no âmbito onde o contrato será celebrado;
- submissão da minuta de edital e de contrato à consulta pública, mediante
publicação na imprensa oficial, em jornais de grande circulação e por meio
9
ZYmLer. Direito administrativo e controle, p. 183.
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
eletrônico, que deverá informar a justificativa para a contratação, a identificação
do objeto, o prazo de duração do contrato, seu valor estimado, fixando-se
prazo mínimo de 30 dias para recebimento de sugestões, cujo termo dar-se-á
pelo menos sete dias antes da data prevista para a publicação do edital; e
- Licença ambiental prévia ou expedição das diretrizes para o licenciamento
ambiental do empreendimento, na forma do regulamento, sempre que o objeto
do contrato exigir.
Ademais, quando se tratar de concessão patrocinada, se mais de 70% da remuneração do parceiro privado forem pagos pela Administração Pública, é necessária a
obtenção de autorização legislativa específica.
9.9.2 Arbitragem
Aspecto controvertido da Lei nº 11.079/04 consiste no “emprego dos mecanismos
privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em
língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir
conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato”.
em razão de dúvidas relacionadas à necessidade de ser observado o princípio da
inafastabilidade da apreciação judicial (CF, art. 5º, XXXv), somente com o julgamento,
em 2001, do se nº 5.206-Agr/eP – espanha (rel. min. sepúlveda Pertence. DJ, 30 abr.
2004), foi admitida a constitucionalidade da cláusula compromissória.
no âmbito dos contratos celebrados pela Administração Pública, a dúvida consiste
em definir o âmbito de utilização da arbitragem, haja vista a própria Lei nº 9.307/96
restringir sua incidência a direitos patrimoniais disponíveis.
A razão dos questionamentos acerca do uso da arbitragem em contratos administrativos reside, inicialmente, na impossibilidade de disposição do interesse público
e, portanto, dos bens e direitos vinculados ao exercício das atividades públicas.
Ademais, a utilização da arbitragem é confundida com a necessária utilização
do direito Privado, o que não nos parece verdadeiro e não há qualquer obstáculo a que
a correta interpretação das normas do direito Público seja feita por agentes privados
(aliás, não é isto o que a doutrina faz quando produz livros, palestras, pareceres etc.?
Por que não poderia, então, árbitro designado pelas partes fazê-lo?).
As interferências judiciais em importantes projetos de interesse do País efetuadas por meio de medidas cautelares adotadas por juízos, freqüentemente declarados
incompetentes pelos tribunais superiores, põem em dúvida a capacidade do Poder
Judiciário de ser o único, ou mesmo o mais adequado agente para declarar o interesse
público. A ineficiência do Poder Judiciário nacional e sua incapacidade de apresentar
respostas rápidas e adequadas às questões que lhes são apresentadas impõem a busca
por soluções que importem na adoção de soluções jurídica e tecnicamente adequadas.
diferentemente do que ocorre com países mais desenvolvidos, o sistema de arbitragem tem sido utilizado com grande reserva no Brasil, o que tem impedido o seu
desenvolvimento. o aprimoramento do sistema de arbitragem, que somente ocorrerá
com a ampliação do seu uso, constitui opção que permite, a baixo custo, obter respostas
jurídicas rápidas e adequadas a todos os agentes envolvidos.
A definição do que são direitos disponíveis, e, portanto, do âmbito de apreciação
e atuação dos juízos arbitrais, somente ocorrerá com a sua utilização em contratos administrativos, utilização a ser realizada com o acompanhamento do Poder Judiciário que
511
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
512
deve atuar de modo a realizar o interesse público, e não os interesses corporativistas
de parte da magistratura, que muitas vezes enxerga nos mecanismos consensuais de
solução de conflitos a possibilidade de perder espaço no cenário político.
Para maiores considerações acerca do uso do juízo arbitral em contratos administrativos remetemos o leitor ao Capítulo 18.
9.9.3 Procedimento da licitação de PPP
A contratação de parcerias público-privadas será precedida de licitação na modalidade de concorrência. isto indica que o legislador busca utilizar para as PPP padrão
semelhante ao adotado para as licitações das concessões de serviço público.
A Lei nº 11.079/04 admite que o julgamento na licitação poderá ser precedido de
etapa de qualificação de propostas técnicas, desclassificando-se os licitantes que não
alcançarem a pontuação mínima, os quais não participarão das etapas seguintes.
o julgamento poderá adotar os seguintes critérios:
- o menor valor da tarifa do serviço público a ser prestado;
- melhor proposta em razão da combinação dos critérios de menor valor da tarifa
do serviço público a ser prestado com o de melhor técnica;
- menor valor da contraprestação a ser paga pela Administração Pública; e
- melhor proposta em razão da combinação do critério da alínea “a” com o de
melhor técnica, de acordo com os pesos estabelecidos no edital.
Pela primeira vez, a própria lei enfrenta a questão do formalismo exagerado na
condução dos procedimentos licitatórios e admite que o próprio edital preveja a possibilidade de “saneamento de falhas, de complementação de insuficiências ou ainda de
correções de caráter formal no curso do procedimento, desde que o licitante possa satisfazer as exigências dentro do prazo fixado no instrumento convocatório” (grifos nossos).
Admite a lei a utilização de lances em viva voz, os quais poderão ser restritos pelo
edital ao limite “máximo 20% (vinte por cento) maior que o valor da melhor proposta”.
Duvidamos, neste ponto, da eficácia dos lances verbais em licitações de PPP.
o pregão (Lei nº 10.520/02) apresenta como uma das suas mais importantes
características a combinação de propostas por escrito e lances verbais. não obstante o
sucesso obtido pela Administração Pública com essa nova modalidade de licitação, sua
utilização encontra-se expressamente vedada para obras e serviços de engenharia.10 A
razão dessa vedação se encontra na dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de serem
refeitas as propostas e respectivas planilhas de custo durante a sessão pública do pregão. ora, se este fato constitui razão para a imposição de impedimento normativo à
utilização do pregão em obras ou serviços de engenharia, como poderia a combinação
de propostas escritas e lances verbais ser utilizada nas licitações para a contratação de
PPP, que requerem avaliações de custos e de receitas complicadíssimas?
A Administração Pública deve, em vez de utilizar o sistema de lances para reduzir
preços, conhecer os custos do empreendimento de modo a poder julgar adequadamente
10
Art. 5º do decreto nº 3.555/2000 e art. 6º do decreto nº 5.450/2005. Cumpre observar que entendimento sumulado
do TCU mitiga esses dispositivos ao afirmar que “o uso do pregão nas contratações de serviços comuns de
engenharia encontra amparo na Lei nº 10.520/2002” (súmula nº 257/2010), o que não prejudica o raciocínio
desenvolvido neste tópico, dada a complexidade do objeto das licitações para contratação de PPP.
CAPítuLo 9
PArCeriAs PúBLiCo-PrivAdAs
as propostas apresentadas por escrito pelos licitantes em PPP. A utilização do sistema
de lances como instrumento para julgamento de propostas se revela solução absolutamente inadequada para o julgamento de PPP.
Além da possibilidade de utilização de fase preliminar de classificação das propostas técnicas, o edital poderá prever a inversão da ordem das fases de habilitação e
julgamento, hipótese em que, nos termos do art. 13:
I - encerrada a fase de classificação das propostas ou o oferecimento de lances, será aberto
o invólucro com os documentos de habilitação do licitante mais bem classificado, para
verificação do atendimento das condições fixadas no edital;
II - verificado o atendimento das exigências do edital, o licitante será declarado vencedor;
III - inabilitado o licitante melhor classificado, serão analisados os documentos habilitatórios
do licitante com a proposta classificada em 2º (segundo) lugar, e assim, sucessivamente,
até que um licitante classificado atenda às condições fixadas no edital;
IV - proclamado o resultado final do certame, o objeto será adjudicado ao vencedor nas
condições técnicas e econômicas por ele ofertadas.
9.10 Sociedade de Propósito Específico (SPE)
Antes da celebração do contrato de PPP, a lei requer a constituição de sociedade
de Propósito Específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria. Objetiva
o legislador com a introdução dessa inovação facilitar a fiscalização a ser empreendida
pelo parceiro público sobre o parceiro privado, além de buscar viabilizar os interesses
de todos os agentes privados envolvidos na parceria, sejam eles sócios, investidores ou
financiadores do empreendimento.
A transferência do controle da sociedade de propósito específico estará condicionada à autorização expressa da Administração Pública, nos termos do edital e do
contrato, sob pena de declaração de caducidade do contrato.
A Sociedade de Propósito Específico, que poderá assumir a forma de companhia
aberta, com valores mobiliários admitidos à negociação no mercado, deverá obedecer
a padrões de governança corporativa e adotar contabilidade e demonstrações financeiras
padronizadas.
A governança corporativa foi uma resposta apresentada por grandes empresas
internacionais aos escândalos financeiros e contábeis ocorridos no início do século XXI.
organizações internacionais, como a organização para a Cooperação e desenvolvimento
econômico (oCde), têm incentivado a adoção dessa nova postura de gerir as corporações e veem nela a resposta para o fenômeno que recentemente tem-se denominado
de corrupção privada.
A solução para os desvios ou abusos cometidos dentro das grandes corporações
seria encontrada nas próprias empresas, e não em instrumentos públicos de intervenção estatal.
A governança corporativa compreende a adoção de padrões éticos de comportamento definidos em códigos de bom governo aprovados pelas próprias empresas e têm
por objetivo disciplinar o relacionamento entre acionistas (majoritário e minoritários),
fornecedores e clientes. A fragilidade dessa concepção de administração está na falta
de critérios que obriguem as empresas a cumprir o que elas próprias definiram como
padrão de comportamento. na falta de mecanismos coercitivos, a adoção da governança
513
514
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
corporativa acaba sendo mera carta de intenções a ser utilizada apenas como meio para
a publicidade institucional, sem gerar maiores efeitos para os agentes envolvidos.
9.11 Órgão gestor de PPP, ministérios e agências reguladoras
no plano federal, a Lei nº 11.079/04 determina que será instituído, por decreto
(decreto nº 5.385, de 2005), órgão gestor de parcerias público-privadas federais, com
competência para:
I - definir os serviços prioritários para execução no regime de parceria públicoprivada;
ii - disciplinar os procedimentos para celebração desses contratos;
iii - autorizar a abertura da licitação e aprovar seu edital;
iv - apreciar os relatórios de execução dos contratos.
dentre os encargos do órgão gestor, inclui-se o de remeter ao Congresso nacional
e ao tribunal de Contas da união, com periodicidade anual, relatórios de desempenho
dos contratos de parceria público-privada.
Define ainda a lei a competência dos ministérios e das agências reguladoras, nas
suas respectivas áreas de atuação, para submeter o edital de licitação ao órgão gestor,
proceder à licitação, acompanhar e fiscalizar os contratos de parceria público-privada.
Finalmente, são ainda definidas pela Lei nº 11.079/04 regras que:
- Autorizam a união a conceder incentivo, nos termos do Programa de incentivo
à implementação de Projetos de interesse social (PiPs), às aplicações em fundos
de investimento, criados por instituições financeiras, em direitos creditórios
provenientes dos contratos de parcerias público-privadas (art. 23);
- determinam que secretaria do tesouro nacional editará, na forma da legislação pertinente, normas gerais relativas à consolidação das contas públicas
aplicáveis aos contratos de parceria público-privada (art. 25);
- Fixam limites para operações de crédito realizadas por empresas públicas e
sociedades de economia mista em projetos de PPP (art. 27); e
- Definem condições para a concessão de garantias e para a realização de repasses
voluntários concedidos pela união em favor dos estados, municípios e distrito
Federal em razão do comprometimento da receita corrente líquida dessas unidades com projetos de PPP (art. 28).
PArte iii
AtividAde AdministrAtivA:
Conteúdos mAteriAis
diversidade da atividade administrativa e potestades públicas
Ao se proceder ao exame das atividades do estado, podemos considerar dois
aspectos: os instrumentos formais de que se vale a Administração Pública para agir e
os conteúdos materiais da atuação administrativa.
nos capítulos anteriores, pudemos observar os instrumentos formais de que se
vale o estado para desenvolver sua atividade executiva. Por meio de atos administrativos, de contratos de gestão, de termos de parceria, de contratos de concessão e de
permissão de serviço público ou de contratos de parcerias público-privadas, o estado
desenvolve suas diversas atividades.
nesta parte do livro, mudaremos de perspectiva e examinaremos os conteúdos
materiais das atividades estatais. A perspectiva não é mais a de como ou de que forma
a Administração Pública atua. examinaremos a função da Administração Pública desde
a perspectiva de sua atividade material. A pergunta a ser respondida nos próximos
capítulos não é mais como, mas o que a Administração Pública faz.
Qualquer observador mais atento que se proponha a examinar o estado moderno
fica impressionado pelo amplo espectro de atividades materiais por ele desenvolvidas.
516
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
independentemente da concepção política (se mais ou menos intervencionista),
percebe-se que nunca, em nenhum momento da história da humanidade, se observou
estrutura de poder tão forte quanto o estado. tomemos como exemplo os estados
unidos da América, apresentados como modelo de sociedade não intervencionista,
em que a participação do estado na vida social é tida como menos invasiva do que a
adotada em outros países, como os da união europeia ou os latino-americanos. o que
se pode constatar a partir do exame desse modelo de estado é o acúmulo de poder de
intervir na sociedade (e, em se tratando de euA, inclusive em sociedades alheias), poder
que não encontra comparação em qualquer outro modelo de estrutura ou organização
utilizado em qualquer outro momento da história.
não obstante a sujeição da atividade administrativa do estado ao princípio da
legalidade, o que cria restrição à sua atuação, a Administração Pública faz de quase
tudo: desde atividades de segurança nacional e pública, até atividade empresarial,
que, nos termos da Constituição Federal, o art. 173, caput, “só será permitida quando
necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo,
conforme definidos em lei”. Atua, ademais, na arrecadação de tributos, na prestação
de serviços de natureza a mais variada possível (que vão desde a saúde pública às
atividades culturais), na planificação urbana, na preservação do meio ambiente, na
proteção de idosos, de gestantes, de jovens etc.
As atividades desenvolvidas pela Administração Pública — identificada, nesse
sentido, como o conjunto de unidades administrativas dotadas de competência para o
exercício da função executiva do Estado — têm-se diversificado em função das novas
necessidades e demandas da população.
esse processo de reformulação da Administração Pública não se resume, no entanto,
à inclusão de novas atividades materiais, que se acrescem àquelas tradicionalmente
desenvolvidas pelo estado. As inovações afetam as formas e os instrumentos de que o
estado se vale para desenvolver suas tarefas, sobretudo no que se refere ao aumento
dos instrumentos que permitem a participação dos setores privados no desempenho
das tarefas públicas.
Verifica-se, ademais, nova abordagem na forma como o Estado se propõe a ordenar
o exercício das atividades privadas.
Ao mesmo tempo que continua a desenvolver atividades tradicionais de prestação de serviços pública e de ordenação das atividades privadas por meio do poder de
polícia, o estado inclui em seu rol de afazeres atividades de fomento, de regulação, de
gestão econômica, de planificação, de sanção e de expropriação.
A rigor, qualquer tentativa de listar as atividades desenvolvidas pela Administração Pública revelar-se-á frustrada.
Adotaremos neste livro a divisão tripartite clássica das atividades do estado:
de ordenação, de prestação de serviços públicos e de fomento. A essas três atividades
faremos incluir, nos próximos capítulos, as demais atividades estatais (de regulação,
de expropriação etc.).
iniciaremos nossa tarefa pelo exame dos poderes administrativos, dentre os quais
incluiremos o poder de ordenação (poder de polícia do estado).
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
10.1 Potestades administrativas e interesse público
o estado, conforme temos observado ao longo do presente trabalho, não constitui
um fim em si. Ele é tão somente meio ou instrumento para a satisfação dos interesses
e necessidades da sociedade.
Para alcançar seus objetivos,1 o ordenamento jurídico confere aos órgãos e entidades responsáveis pela função executiva do estado uma série de prerrogativas ou
potestades públicas.
A visão tradicional do direito Administrativo atribui o exercício das prerrogativas
estatais ao interesse público, especialmente ao denominado princípio da “supremacia
do interesse público”. de acordo com essa concepção amplamente adotada em nossa
doutrina, o interesse público, de per si, legitima o exercício das prerrogativas do estado,
e quando esses interesses entram em conflito com os interesses individuais, eles devem
prevalecer sobre esses últimos.
A concepção de interesse público que adotamos se contrapõe à noção clássica
que o define como algo pressuposto ao Direito, ou que pode ser identificado a partir
de noções abertas como a de “bem comum” ou de “interesse coletivo” da sociedade.
em que consistem, a rigor, o bem comum e o interesse coletivo da sociedade? É
bem comum aquele em que haja consenso ou unanimidade dos diversos setores sociais?
sabemos que em qualquer sociedade onde prevalece a diversidade cultural, social, racial
ou educacional, de que é exemplo a nossa, jamais haverá consenso ou unanimidade
em torno de qualquer assunto. o interesse coletivo pode, então, ser representado pelo
interesse da maioria da população?
Adotada essa tese para a definição do interesse coletivo, poderia um plebiscito
restabelecer a escravidão, caso seja esta a vontade da maioria da população brasileira?
1
O art. 3º da Constituição Federal define como objetivos da República Federativa do Brasil:
“i - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
ii - garantir o desenvolvimento nacional;
iii - erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
iv - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.”
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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A escravidão é errada, é absurda, é injusta, independentemente da vontade da maioria
da população. ela é errada porque fere a dignidade humana, porque fere os direitos
fundamentais. o princípio democrático, que norteia todos os ordenamentos jurídicos
modernos, pressupõe o governo exercido pela vontade da maioria da população, respeitados os direitos das minorias.
Como identificar, em face dessas considerações, o interesse público?
A resposta deve ser buscada no próprio ordenamento jurídico, que se encontra
impregnado pelos direitos fundamentais. toda atividade estatal e todo ato praticado
pelo estado devem-se conformar com a ordem jurídica e com os princípios e preceitos
constitucionais.
É no ordenamento jurídico, considerado em sua perspectiva axiológica, que incorpora os valores constitucionais básicos, especialmente o da dignidade humana, e não
apenas na visão formalista ou legalista de ordenamento jurídico, que devem ser identificados o interesse público, as potestades necessárias à satisfação do interesse público e
os titulares legitimados ao exercício dessas potestades.
Para maiores considerações acerca do interesse público, remetemos o leitor ao
Capítulo 3, em que tratamos do regime jurídico administrativo.
10.2 Poderes e deveres administrativos
os poderes ou prerrogativas outorgados pelo ordenamento jurídico aos administradores públicos estão vinculados ao seu efetivo exercício. vale dizer: as prerrogativas
públicas não estão à disposição dos administradores para serem utilizadas conforme
juízo de conveniência; as prerrogativas públicas devem ser utilizadas para a realização
do fim público que justificou a outorga da competência administrativa. Em outras palavras, isto importa em que toda prerrogativa está vinculada a um fim público, conforme
definido na regra de competência outorgada pela lei ao administrador público.
não é possível, portanto, separar o exercício das prerrogativas públicas das
obrigações impostas aos administradores para o efetivo exercício dessas prerrogativas.
todo poder administrativo pressupõe, portanto, a existência do respectivo dever
administrativo. nesse sentido, merecem destaque as palavras de Hely Lopes meirelles:
“se para o particular o poder de agir é uma faculdade, para o administrador público é
uma obrigação de atuar, desde que apresente o ensejo de exercitá-lo em benefício da
sociedade”.2
A partir dessa perspectiva, o mestre Hely Lopes meirelles constrói a teoria acerca
do dever básico imposto pelo ordenamento jurídico aos administradores públicos: o
dever de agir.
10.2.1 dever de agir
A Lei nº 9.784/99, ao dispor sobre a competência dos agentes públicos (art. 11),
determina que ela “é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi
atribuída como própria”.
2
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 82.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
se o administrador possui competência para praticar determinado ato e se a situação a
ele apresentada reclama a adoção de determinada providência, ele incorrerá em ilegalidade
se não exercer as atribuições que lhe foram conferidas pela ordem jurídica. À parte qualquer
discussão acerca dos efeitos decorrentes da omissão administrativa (tema examinado no
Capítulo 5 acerca do ato administrativo), ressalvadas situações em que a lei expressamente admite a possibilidade de o administrador silenciar acerca de determinado tema e de
conferir a esse silêncio ou omissão determinada consequência jurídica, os administradores
públicos têm o dever de agir, e devem ser responsabilizados civil, administrativa e, se for
o caso, penalmente, pela omissão.
Como decorrência natural do dever de agir, outros deveres se impõem ao administrador público: dever de eficiência, dever de probidade e dever de prestar contas.
10.2.2 Dever de eficiência
este dever está relacionado ao aspecto econômico da atividade administrativa.
A análise econômica da Administração Pública compreende, além da eficiência
propriamente dita, que corresponde à relação entre custo e benefício no desempenho
da atividade pública, o exame da eficácia e da efetividade. Deveríamos, desse modo,
falar em dever de economicidade, que compreende três aspectos: eficiência, eficácia e
efetividade. Por razões históricas, mantemos a mesma terminologia tradicionalmente
adotada e nos referimos ao dever de eficiência do administrador público a partir de
uma concepção ampla, compreendendo a eficácia e a efetividade.
A eficácia corresponde aos resultados da atuação administrativa. Nesse contexto,
atividade administrativa eficaz é aquela que produz resultados e atividade administrativa ineficaz é a que não produz resultados. A avaliação da eficácia é feita em caráter
absoluto, isto é, não se comparam os resultados com qualquer outro parâmetro ou
meta. Difere, portanto, a eficácia da eficiência. Esta requer o exame e a avaliação dos
resultados em face dos custos incorridos.
A eficácia difere igualmente da efetividade. Esta se trata de conceito jurídico relativo, que pressupõe a existência de parâmetros de comparação. A efetividade de uma
atividade estatal corresponde à relação entre os efeitos buscados e os efeitos obtidos
por respectivo programa de governo. o pressuposto para o exame da efetividade de
certo programa é o necessário planejamento e a fixação de metas de desempenho para
os agentes públicos. Conforme as metas fixadas sejam alcançadas, o programa será
considerado efetivo.
Fácil perceber que somente com o necessário planejamento é possível proceder ao
exame da eficiência (ou da economicidade) da atuação dos agentes públicos. O planejamento compreende, além da fixação de metas de desempenho, a criação de mecanismos
que possibilitem a avaliação das metas e eventuais correções de rumos.
A apropriação, o desvio, a malversação e a fraude são consideradas mais graves
do que o simples desperdício dos recursos públicos. do ponto de vista prático, do cidadão que paga seus tributos, se os recursos não são aplicados corretamente por falta de
planejamento ou em razão de fraudes ou de outras ilicitudes cometidas, a situação é
idêntica. daí a necessidade de serem fortalecidos os mecanismos que punam com o
maior rigor possível o desperdício dos recursos públicos provocados pela ineficiência
administrativa. A sociedade brasileira se encontra suficientemente madura para exigir
dos agentes públicos o pleno cumprimento do dever de eficiência.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
10.2.3 dever de probidade
Além da eficiência, o dever de agir impõe aos agentes públicos a observância de
padrões éticos de comportamento. A necessidade de ir além do simples cumprimento
da lei tem sido denominado pela doutrina pátria como dever de probidade.
Com o objetivo de dar efetividade a este dever, a Constituição Federal (art. 37, §4º)
dispõe que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos
políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento
ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
no mesmo sentido dispõe a Lei nº 9.784, que em seu art. 2º, parágrafo único, iv, exige
dos agentes públicos “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”.
Com o intuito de dar efetividade ao dispositivo constitucional, foi aprovada a
Lei nº 8.429/92, que define os atos de improbidade administrativa.
A fixação, em lei, dos atos de improbidade objetiva realizar dois princípios basilares do direito Administrativo: a legalidade e a moralidade administrativa.
o dever de probidade, não obstante positivado pela mencionada lei, que estabelece
listas com os atos que importam em improbidade administrativa, nela não se esgota.
Por meio do dever de probidade, impõe-se aos agentes públicos a necessidade de que
suas atuações se conformem não apenas com a legalidade, mas que: 1. não importem em
enriquecimento sem causa do agente público (art. 9º); 2. não causem prejuízo ao erário
(art. 10) e 3. não violem quaisquer dos princípios da Administração Pública (art. 11).
dos dispositivos da lei de improbidade acima mencionados, deve ser dada atenção especial ao art. 11 (atos de improbidade que importam em violação de princípio da
Administração Pública), em razão de seu conteúdo aberto. Qualquer comportamento
que viole não apenas a moralidade, mas qualquer outro princípio administrativo, será
reputado ato de improbidade administrativa.
Do ponto de vista do Direito Penal, a tipificação aberta utilizada pelo mencionado
art. 11 seria inadmissível; no direito Administrativo, com o intuito de dar efetividade
ao princípio da moralidade administrativa, essa tipificação aberta é absolutamente
necessária.
A criatividade utilizada pelos que buscam fraudar os interesses públicos é ilimitada. É absolutamente impossível prever em lei, por meio de condutas previamente
estabelecidas, os atos que ferem a moralidade. daí a necessidade de ser utilizada a tipificação aberta adotada pelo caput do mencionado art. 11. A forma aberta adotada para
caracterizar essa modalidade de improbidade gera, a propósito, situação curiosa: não
obstante a moralidade seja princípio e a probidade se encontre positivada em condutas
descritas em lei, o dever de probidade é mais amplo e compreende o da moralidade.
Isto se verifica em razão da peculiaridade de que qualquer ato que viole o princípio
da moralidade se enquadra como ato de improbidade, nos termos do referido art. 11.
Ao contrário, há determinadas condutas descritas na lei de improbidade, de que seria
exemplo a descrita no art. 10, X (“agir negligentemente na arrecadação de tributo ou
renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público”), que não
possuem pertinência direta com o princípio da moralidade.
nesse ponto, vale mencionar que são previstos atos de improbidade culposos, e
não apenas dolosos.
o âmbito de aplicação da lei é fixado pelo art. 1º da lei que define como atos de
improbidade aqueles “praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da união, dos
estados, do distrito Federal, dos municípios, de território, de empresa incorporada ao
patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido
ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual”. estão também sujeitos às penalidades previstas na lei de improbidade os atos praticados
“contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal
ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário
haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da
receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito
sobre a contribuição dos cofres públicos”, nos termos do parágrafo único do art. 1º da
mencionada lei.
A lei de improbidade nos apresenta importante conceito cujo interesse ultrapassa a
esfera do direito Administrativo, o de agente público. nos termos da lei, reputa-se agente
público “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por
eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura
ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo
anterior”.
Além dos agentes públicos, também podem-se sujeitar às disposições da Lei
nº 8.429/92, no que couber, aquele que, “mesmo não sendo agente público, induza ou
concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma
direta ou indireta”.
A ação de improbidade, conforme indica a própria Constituição Federal (art. 37,
§4º), não possui natureza criminal. trata-se de ação civil, não obstante as sanções aplicadas
ultrapassem em muito o âmbito da simples ação de ressarcimento.3
3
Mediante o seguinte julgado, o Supremo Tribunal Federal especificou os agentes públicos contra os quais pode
ser ajuizada a ação de improbidade a que se refere a Lei nº 8.429/92:
“reclamação. usurpação da competência do supremo tribunal federal. improbidade administrativa. Crime de
responsabilidade. Agentes políticos.
i. Preliminares. Questões de ordem.
i.1. Questão de ordem quanto à manutenção da competência da Corte que justificou, no primeiro momento do
julgamento, o conhecimento da reclamação, diante do fato novo da cessação do exercício da função pública pelo
interessado. ministro de estado que posteriormente assumiu cargo de Chefe de missão diplomática Permanente do Brasil perante a organização das nações unidas. manutenção da prerrogativa de foro perante o stF,
conforme o art. 102, i, ‘c’, da Constituição. Questão de ordem rejeitada.
i.2. Questão de ordem quanto ao sobrestamento do julgamento até que seja possível realizá-lo em conjunto com
outros processos sobre o mesmo tema, com participação de todos os ministros que integram o tribunal, tendo
em vista a possibilidade de que o pronunciamento da Corte não reflita o entendimento de seus atuais membros,
dentre os quais quatro não têm direito a voto, pois seus antecessores já se pronunciaram. Julgamento que já se
estende por cinco anos. Celeridade processual. existência de outro processo com matéria idêntica na seqüência
da pauta de julgamentos do dia. inutilidade do sobrestamento. Questão de ordem rejeitada.
ii. mérito.
ii.1.improbidade administrativa. Crimes de responsabilidade. os atos de improbidade administrativa são tipificados como crime de responsabilidade na Lei nº 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo.
ii.2.distinção entre os regimes de responsabilização político-administrativa. o sistema constitucional brasileiro
distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não
admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos:
o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei nº 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, ‘c’, (disciplinado pela
Lei nº 1.079/1950). se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse
abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial,
ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, i, ‘c’, da Constituição.
ii.3.regime especial. ministros de estado. os ministros de estado, por estarem regidos por normas especiais de
responsabilidade (CF, art. 102, i, ‘c’; Lei nº 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no
regime comum da Lei de improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
As sanções aplicadas dependem do enquadramento do ato de improbidade em
uma das três categorias admitidas. indicamos, em seguida, a categoria do ato de improbidade e as respectivas sanções:
- Importe em enriquecimento sem causa – Perda dos bens ou valores acrescidos
ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver,
perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos,
pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e
proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos
fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de
pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;
- Cause prejuízo ao erário – ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou
valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito
anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição
de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais
ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa
jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos; e
ii.4.Crimes de responsabilidade. Competência do supremo tribunal Federal. Compete exclusivamente ao supremo
tribunal Federal processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, i, ‘c’, da Constituição.
somente o stF pode processar e julgar ministro de estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos.
ii.5.Ação de improbidade administrativa. ministro de estado que teve decretada a suspensão de seus direitos
políticos pelo prazo de 8 anos e a perda da função pública por sentença do Juízo da 14ª vara da Justiça Federal seção Judiciária do distrito Federal. incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação
civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o
supremo tribunal Federal, por crime de responsabilidade, conforme o art. 102, i, ‘c’, da Constituição.
iii. reclamação julgada procedente.” (rcl nº 2.138-dF, Pleno. rel. min. nelson Jobim. rel. p/ acórdão min. Gilmar
mendes. Julg. 13.6.2007. DJe, 18 abr. 2008)
no âmbito do superior tribunal de Justiça, prevalece o entendimento de que os agentes políticos submetem-se
às disposições da Lei de Improbidade Administrativa, conforme se verifica da ementa abaixo transcrita.
“Administrativo. Ação de improbidade administrativa. Tipificação. Indispensabilidade do elemento subjetivo
(dolo, nas hipóteses dos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 e culpa, nas hipóteses do art. 10). Precedentes. demonstração do elemento subjetivo da conduta. reexame de matéria fático-probatória. impossibilidade. súmula 07/stJ.
1. está assentado na jurisprudência do stJ, inclusive da Corte especial que, por unanimidade, o entendimento
segundo o qual, ‘excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da república (art. 85,
v), cujo julgamento se dá em regime especial pelo senado Federal (art. 86), não há norma constitucional alguma
que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, §4º. seria incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza’ (rcl 2.790/sC, dJe de 04/03/2010 e rcl 2.115, dJe de 16.12.09).
2. Também está afirmado na jurisprudência do STJ, inclusive da sua Corte Especial, o entendimento de que ‘a
improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo,
a jurisprudência do stJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente
seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de
culpa grave, nas do artigo 10’ (AiA 30, dJe de 28.09.11).
3. não é compatível com essa jurisprudência a tese segundo a qual, mesmo nas hipóteses de improbidade capituladas no art. 10 da Lei 8.429/92, é indispensável a demonstração de dolo da conduta do agente, não bastando
a sua culpa. tal entendimento contraria a letra expressa do referido preceito normativo, que admite o ilícito
culposo. Para negar aplicação a tal preceito, cumpriria reconhecer e declarar previamente a sua inconstitucionalidade (súmula vinculante 10/stF), vício de que não padece. realmente, se a Constituição faculta ao legislador
tipificar condutas dolosas mesmo para ilícitos penais, não se mostra inconstitucional a norma que qualifica com
tipificação semelhante certos atos de improbidade administrativa.
4. no caso, as instâncias ordinárias reconheceram expressamente a conduta culposa do agente, conclusão que não
pode desfazer sem afronta à súmula 07/stJ.
5. recurso especial a que se nega provimento. (Agrg na sLs nº 1.630-PA/Ce, rel. min. Felix Fischer. Julg.
19.09.2012. DJe, 02 out. 2012)
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
- Atente contra princípio da Administração Pública – ressarcimento integral do dano,
se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a
cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração
percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber
benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda
que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo
de três anos.
em razão do princípio da proporcionalidade, o juiz pode condenar o agente pela
prática de ato de improbidade e não aplicar todas as sanções previstas no art. 12 para
cada uma das respectivas hipóteses. em razão da pouca gravidade do ato, o juiz pode
determinar, tão somente, a anulação do ato, ou a aplicação de multa, conforme juízo
de ponderação por ele realizado. vale dizer: as sanções previstas no art. 12 constituem
o limite máximo para a prática de cada um dos atos que menciona, devendo a pena a
ser aplicada no caso concreto considerar todas as circunstâncias objetivas e subjetivas
afetas ao ato.
A Lei nº 10.628/02 alterou o Código de Processo Penal de modo a estender aos
acusados pela prática de ato de improbidade o foro privilegiado da ação penal previsto
no texto constitucional. em face da natureza civil da ação de improbidade, todavia, o
stF declarou inconstitucional (Adi nº 2.797 e nº 2.860) referido dispositivo do Código
de Processo Penal, o que importa em conferir competência aos juízos de primeiro grau
para o julgamento da ação de improbidade, independentemente de o agente público
possuir foro privilegiado para fins criminais. Ao julgar referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, o eg. stF declarou igualmente inconstitucional a extensão do foro
privilegiado, para fins criminais, àqueles que não mais ocupam o cargo público.
outro aspecto a ser considerado diz respeito à possibilidade de a condenação
pela prática de ato de improbidade importar em perda de cargo. se a Constituição Federal determina que a perda do cargo de determinada autoridade pública deve observar
procedimento próprio, de que é exemplo o impeachment do Presidente da república
(CF, art. 86), não pode juiz de primeiro grau que julgue ação de improbidade contra
ato praticado por referida autoridade aplicar esta sanção. As demais sanções ou consequências decorrentes do julgamento pela procedência da ação de improbidade podem,
todavia, ser aplicadas.
Acerca da ação de improbidade, importa ainda observar:
- A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo ministério Público
ou pela pessoa jurídica interessada, nos termos do art. 17;
- É vedada a realização de qualquer transação ou acordo; e
- se o ministério Público não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente, como fiscal da lei, sob pena de nulidade.
10.2.4 dever de prestar contas
este constitui outro consectário do dever de agir imposto aos agentes públicos.
É inerente ao exercício da atividade administrativa a incumbência de gerir, administrar ou de aplicar recursos ou bens públicos. impor aos administradores públicos o
dever de prestar contas importa em verdadeira inversão do ônus da prova da correta
aplicação desses recursos. os agentes públicos são responsáveis não apenas pela correta aplicação dos recursos públicos, mas devem igualmente ser capazes de fazer a
demonstração dessa correta aplicação.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
se determinado agente público ou privado (CF, art. 70, parágrafo único) recebe a
incumbência de aplicar ou de administrar recursos públicos, ele deve ser capaz de fazer
a prova, nos termos da lei ou do instrumento contratual que lhe delegou a competência
para aplicar referidos recursos, da sua correta aplicação.
no caso de agente que receba recursos em razão de convênio, por exemplo, a
prestação de contas deve ser feita ao próprio órgão que lhe repassou os recursos. Caso
este agente responsável pela aplicação dos recursos não proceda à devida prestação de
contas ao órgão repassador, ou se o fizer, caso o órgão de controle interno não aceite como
legítima a aplicação dos recursos, deve ser instaurado pelo próprio órgão repassador,
ou por seu respectivo órgão de controle interno, processo de tomada de contas especial.
de se observar que a competência do órgão repassador dos recursos, ou do respectivo
órgão de controle interno, resume-se à instauração e à instrução do processo de tomada
ou de prestação de contas, devendo este processo ser posteriormente encaminhado ao
competente tribunal de Contas para julgamento.
em razão do dever de prestar contas imposto ao agente público, não estão os
órgãos repassadores ou o tribunal de Contas obrigados a provar o desvio ou a má aplicação dos recursos. Basta que o agente não disponha de elementos capazes de demonstrar
a correta aplicação dos recursos para que suas contas sejam julgadas irregulares, para
que sejam aplicadas as sanções cabíveis (multa, inabilitação para o exercício de cargo em
comissão ou outras sanções previstas na Lei nº 8.443/92) e para que sejam este agente e
os terceiros que colaboraram para o dano condenados solidariamente a ressarcir o erário.
Caso não tenha havido a devida prestação de contas, mas os órgãos repassadores
dos recursos, ou o tribunal de Contas sejam capazes de demonstrar a correta aplicação
dos recursos, as contas do agente devem, ainda assim, ser julgadas irregulares. nesta
hipótese, ainda que não seja imputado débito ao agente, mas somente multa (Lei nº 8.443/92,
art. 16, iii, “a”, c/c art. 19, parágrafo único), as contas serão julgadas irregulares em
razão do descumprimento do dever de prestar contas. em outras palavras, o agente
público ou privado que administre recursos públicos deve aplicar corretamente esses
recursos, o que pressupõe a observância dos deveres de eficiência e de probidade, e ser
capaz de demonstrar essa correta aplicação. ou seja, ainda que aplique corretamente os
recursos, se o agente responsável não for capaz de fazer a prova dessa aplicação, suas
contas serão julgadas irregulares.
10.3 Abuso de poder
os administradores públicos, em razão do dever de agir que se lhes impõe, devem
exercer suas prerrogativas conforme define o ordenamento jurídico. Isto equivale a afirmar que tendo recebido determinada potestade pública, deve o agente público exercê-la
nos limites e nas condições definidos pela regra legal que lhe outorgou competência.
o exercício das prerrogativas públicas, isto é, o uso do poder público, pressupõe
a observância de determinados limites e condições constantes da própria lei que fixa a
competência do agente. Se se afastar dos limites ou dos fins legais, o agente incorre em
abuso de poder e pratica, em consequência, ato nulo.
o exame da legitimidade do exercício do poder conferido ao agente deve ser
buscado na própria regra legal de competência. Esta fixa os limites para o exercício da
competência do agente e serve de parâmetro para aferir eventuais desvios de finalidade
do ato.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
Verifica-se que o abuso de poder admite duas modalidades básicas: o excesso de
poder e o desvio de poder.
o ato abusivo praticado na modalidade excesso é de mais simples e fácil identificação. se o agente extrapola os limites da sua competência legal, ele incorre em abuso
de poder.
esta modalidade de abuso está diretamente relacionada à violação de um dos
requisitos de validade do ato administrativo: a competência. É considerada menos
grave que o desvio, sendo admitida a correção do vício por meio da convalidação do
ato, desde que não haja prejuízo para terceiro.
Pode ser apresentada como exemplo de excesso de poder sanção aplicada por
comissão de processo disciplinar. nos termos da Lei nº 8.112/90, artigos 149, 165 e 166,
incumbe à comissão a condução do inquérito do processo disciplinar, e se encerra a
participação da comissão com a elaboração do relatório acerca do cometimento da
infração o qual deve indicar a sanção a ser eventualmente aplicada. o julgamento e a
aplicação respectiva da sanção devem ser feitos pela autoridade competente (art. 167),
conforme indicado pelo art. 141 da mencionada Lei nº 8.112/90.
Caso determinada comissão extrapole os limites das suas atribuições e aplique
sanção disciplinar, ocorrerá excesso de poder.
o desvio de poder ou de finalidade ocorre quando o agente se afasta dos fins definidos em lei que justificam a outorga da competência ao agente. O desvio não requer,
portanto, a violação da moralidade ou de qualquer outro princípio ou preceito legal.
A definição do interesse público, constante no Capítulo 3, deve ser buscada no
próprio ordenamento jurídico, a partir da perspectiva de que a atividade administrativa
não é um fim em si.
Fixada a premissa de que a Administração Pública é meio para a consecução de
determinados objetivos definidos pelo ordenamento jurídico, é possível identificar na
regra legal de competência o fim que justifica e legitima o exercício da atividade administrativa. A esse fim legal podemos denominar de fim mediato da atividade administrativa.
Quando o administrador, no caso concreto, se utiliza da regra legal de competência, ele não atua ao acaso. Ao motivar o ato, motivação que se impõe como requisito
formal de validade de todo ato administrativo, o administrador deve explicitar, além
dos motivos que o levam a agir, o fim que ele busca. A este fim denominaremos de fim
imediato do ato.
independentemente de quaisquer outros fatores, haverá desvio de poder ou de
finalidade se o fim imediato do ato não se conformar com o fim mediato, a ser buscado
no ordenamento jurídico. Este fim mediato do ato, como pode ser constatado, é o próprio
interesse público.
Assim, sempre que o ato praticado se afastar da finalidade que justificou a outorga
da competência ao administrador público, ou seja, sempre que o ato praticado visar a fim
incompatível ou excludente do interesse público, haverá abuso de poder sob a modalidade
desvio.
trata-se de vício a ser considerado, como regra, insanável e, portanto, insusceptível de convalidação.
Exemplo de desvio de finalidade sistematicamente apresentado pela doutrina
pátria se verifica em remoções de servidores públicos.
nos termos do art. 36 da Lei nº 8.112/90, remoção é “o deslocamento do servidor,
a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede”,
525
526
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
devendo a remoção de ofício ocorrer no interesse da Administração Pública. A remoção
não pode ser utilizada como forma de punição de agente público, tenha ou não ele
cometido infração funcional, mereça ou não ele ser punido. se existem razões que
justificam a punição do servidor, deve ser instaurado o devido processo disciplinar, e,
comprovado o cometimento da infração, ser aplicada a sanção cabível, conforme indicado
pelo art. 127 e seguintes da Lei nº 8.112/90.
É conferida competência ao chefe da unidade administrativa para determinar a
remoção de ofício dos servidores tendo em vista o interesse da Administração, vale dizer,
para atender à necessidade do serviço. se esta autoridade se utiliza desta competência
para perseguir fim diverso, o que ocorre com infeliz frequência no serviço público, o
ato de remoção é abusivo e, portanto, nulo.
A abordagem adotada para a definição do interesse público não impede ou afasta
a possibilidade de interesses privados serem satisfeitos no âmbito da Administração
Pública. desde que os interesses dos particulares sejam compatíveis com o interesse
público — o que ocorre, por exemplo, quando uma empresa é contratada para executar
obra pública —, não há que se falar em desvio de finalidade. Ao contrário, se a satisfação
dos interesses privados ocorrer em detrimento do interesse público, haverá o desvio.
exemplo dessa segunda hipótese ocorre quando se determina a realização de viagem
de serviço de agente público, com o pagamento de passagens e diárias, sem que haja
qualquer interesse ou benefício para o serviço público, mas cujo único propósito é o
deleite do agente pago com recursos públicos.
10.4 discricionariedade e vinculação administrativa
10.4.1 Poder discricionário e poder vinculado
A discricionariedade administrativa não corresponde propriamente a um poder
da Administração Pública. A liberdade conferida pela lei para que administrador adote
a melhor solução para casos concretos com base em juízo de conveniência ou de oportunidade não corresponde ao exercício de potestade pública de modo que a terminologia
“poder vinculado” e “poder discricionário” é mantida por mera tradição, mas não por
acerto jurídico ou técnico.
os poderes administrativos importam em exercício de prerrogativa. Ao exercer
suas prerrogativas, o poder público interfere na esfera individual dos direitos por meio
da imposição de encargos ou de sanções aos particulares ou a servidores públicos.
o exercício do poder discricionário ou do poder vinculado importa no exercício
da atividade administrativa vinculada ou de atividade administrativa discricionária,
mas não legitimam, de per si, o exercício de qualquer prerrogativa pública. não negamos, é evidente, a existência de atividades vinculadas e discricionárias. negamos, ao
contrário, que o simples fato de determinada atividade administrativa ser discricionária
(quando exercida pelo administrador público em razão da liberdade conferida por
lei para a definição do conteúdo dos atos a serem praticados) ou vinculada (o que se
verifica quando a atividade está totalmente definida em lei, inclusive quanto ao conteúdo dos atos administrativos dela decorrentes) importe em exercício de prerrogativa
pública. Ao exercer uma prerrogativa, a Administração Pública, ao contrário, define o
comportamento de particulares ou de agentes públicos, aplica sanções ou restringe o
exercício de direitos ou de atividades.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
A confusão e a equiparação da discricionariedade administrativa ou do exercício
de atividades vinculadas aos poderes administrativos se devem ao fato de que o exercício dos poderes — de polícia, hierárquico, disciplinar e regulamentar — envolve, em
alguns casos, o exercício de atividade vinculada e, em outras hipóteses, de atividade
discricionária.
na aplicação de sanções a servidores públicos pela violação de deveres funcionais, por exemplo, há situações em que a lei confere certa liberdade para o administrador definir a sanção mais adequada ao caso concreto — se uma advertência ou uma
suspensão. em outras situações, em razão da gravidade da conduta do servidor, a lei
impõe ao administrador o dever de aplicar pena determinada — o que se verifica com
a aplicação da pena de demissão (Lei nº 8.112/90, art. 132), por exemplo. em uma hipótese ou na outra, a Administração se valeu do poder disciplinar, e não de um pretenso
poder discricionário ou vinculado.
Conforme examinado ao longo deste trabalho, a exclusão da discricionariedade
administrativa do âmbito dos poderes administrativos não lhe reduz em nada a importância jurídica, permanecendo intacta a distinção entre ato administrativo discricionário
e ato administrativo vinculado, conforme examinado no Capítulo 5.
superada a discussão acerca do enquadramento da discricionariedade como
modalidade específica de poder administrativo, devemos enfrentar alguns importantes
conceitos a ela relacionados. devemos distinguir discricionariedade de interpretação,
discricionariedade de mérito e verificar como se procede ao controle judicial dos atos
praticados pela Administração Pública no exercício de atividade discricionária. Antes,
porém, devemos examinar o conceito de discricionariedade.
10.4.2 Conceito de discricionariedade
A discricionariedade mantém relação direta com a ideia de liberdade.
diferentemente do direito Privado, onde a liberdade dos particulares está ligada
à ideia de licitude (“ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em
virtude de lei”), no âmbito do direito Administrativo, a liberdade do administrador
público decorre da lei. somente onde houver lei e, portanto, nos limites da lei, é lícito
ao administrador exercer a liberdade que lhe é conferida. Absurda a conclusão de que
a discricionariedade decorre da ausência de lei. É esta que confere ao administrador a
prerrogativa para, diante de determinadas circunstâncias, praticar certos atos e definir
o conteúdo desses atos em razão do juízo de conveniência ou de oportunidade.
A definição do ato como vinculado ou discricionário reside na relação entre
motivo e objeto do ato (conforme examinado no Capítulo 5), e deve ser examinada em
função do que dispõe a lei. se diante de certo motivo a lei indica o objeto do ato a ser
praticado e não permite que razões de conveniência ou de oportunidade administrativas interfiram na prática do ato, trata-se de ato vinculado. Ao contrário, se diante de
determinadas circunstâncias, a lei permite que o administrador defina algum aspecto do
conteúdo ou objeto do ato em razão do seu juízo de conveniência ou de oportunidade,
estaremos diante do ato discricionário.
A discricionariedade administrativa pode ser apresentada como a liberdade conferida
pela lei ao administrador público para a adoção da melhor solução para o caso concreto, com
vista à realização das finalidades legais, em razão do juízo de conveniência e de oportunidade
da Administração Pública.
527
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Sempre que a lei tenha conferido ao administrador a liberdade para definir o
conteúdo do ato com base em seu juízo de conveniência ou de oportunidade, estaremos diante de ato discricionário; nesta hipótese, esse vazio de conteúdo somente pode
ser preenchido pelo administrador público, nunca pelo juiz. isso explica por que nas
situações em que o Poder Judiciário anula ato discricionário, a providência judicial
não pode permitir que o juiz defina o conteúdo do novo ato a ser praticado, papel a ser
exercido exclusivamente pelo administrador.
o exercício da discricionariedade pressupõe que:
- Lei haja conferido liberdade ao administrador para a definição do conteúdo
do ato;
- A liberdade seja exercida nos limites da lei;
- o administrador se utilize da liberdade legal com o propósito de melhor realizar
as finalidades legais que justificaram a outorga da competência para o exercício
da atividade;
- A definição da solução mais adequada decorre do juízo de conveniência do
administrador público.
10.4.3 Como surge a discricionariedade
são várias as fórmulas utilizadas pela legislação para conferir discricionariedade
ao administrador.
surge a discricionariedade, em primeiro lugar, quando 1) a legislação atribui
competências genéricas ao administrador — o que ocorre, por exemplo, quando a
Constituição Federal confere competência à união, aos estados e aos municípios para
prestarem serviços na área de saúde ou para cuidarem da proteção das pessoas deficientes. nestas hipóteses, ainda que o administrador tenha o dever de agir, de prestar o
serviço de forma adequada, a escolha de como será realizada a prestação é discricionária.
Em outras situações, verificada a ocorrência de determinadas circunstâncias, 2) a lei
apresenta opções a serem adotadas e confere ao administrador a liberdade para a eleição
daquela que lhe pareça mais adequada — o que ocorre, por exemplo, na hipótese de
comissão disciplinar ter comprovado o cometimento de infração punível com pena de
suspensão, e, a critério do poder público, a suspensão poder ser convertida em multa
com base em 50% da remuneração do servidor, nos termos da Lei nº 8.112/90, art. 130, §2º.
Há ainda hipóteses em que 3) a lei permite que a escolha do melhor momento
para a prática do ato seja definida pelo administrador — o que ocorre, por exemplo,
na concessão de férias a servidores públicos, em que o gozo das férias é direito do
servidor, mas a definição do momento mais oportuno para esse gozo fica a critério
do poder público.
surge ainda a discricionariedade quando 4) a legislação é clara ao determinar que
o conteúdo do ato a ser praticado será definido em função do juízo de conveniência do
administrador — por exemplo, será concedida licença a servidor para tratar de interesse
particular a critério da Administração (Lei nº 8.112/90, art. 91) ou ainda o que ocorre na
livre nomeação e exoneração de ocupantes de cargos em comissão (CF, art. 37, ii).
10.4.4 discricionariedade e interpretação
o exercício de qualquer atividade administrativa pressupõe a existência de lei.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
seja discricionária ou vinculada, a aplicação do princípio da legalidade estrita
ao direito Administrativo impõe como requisito de validade ao exercício da atividade
administrativa a prévia existência de norma jurídica. É de se concluir, destarte, que a
prática de quaisquer atos ou o exercício de qualquer atividade administrativa deve ser
antecedida do exame das normas que servem de amparo para o administrador.
A interpretação das normas administrativas é, em razão de imperativo lógico,
inafastável ao desempenho das diversas atividades administrativas do estado. em outras
palavras, toda norma jurídica, e para o direito Administrativo o princípio da legalidade
restrita apenas reforça a tese, deve ser interpretada como requisito à sua aplicação. não
se pode, todavia, confundir a interpretação, que antecede o juízo de discricionariedade,
com a própria discricionariedade.
somente após a interpretação da norma jurídica administrativa é possível concluir se ela confere ao administrador liberdade para a adoção da solução que venha a
julgar mais adequada ou se, em razão das circunstâncias do caso concreto, é imposta
ao administrador solução única, definida pela própria norma jurídica interpretada.
os conceitos jurídicos indeterminados podem ser utilizados como exemplos para
demonstrar a distinção entre interpretação e discricionariedade.
Não resta dúvida de que a utilização desses conceitos amplia significativamente
a margem de interpretação da norma, mas não necessariamente confere discricionariedade ao gestor público. somente após a interpretação e aplicação da norma jurídica
ao caso concreto é possível afirmar se haverá liberdade para a adoção de mais de uma
solução possível. Exemplo de conceito jurídico indeterminado pode ser identificado em
normativo que vede “comportamento indecoroso” nas dependências de universidade
pública. suponhamos que referido normativo estabeleça que professor que adote esse
comportamento deva ser demitido, e se for aluno, que ele seja expulso da universidade.
indiscutível que a expressão em exame admite ampla margem de interpretação, mas
não necessariamente discricionariedade. Para comprovar a distinção, podemos imaginar
que aluno comparece à aula embriagado e que decide permanecer em sala sem roupas.
Haveria alguma dúvida de que a atitude do aluno se enquadra no conceito de comportamento indecoroso? Comprovado o fato, seria possível falar em discricionariedade da
Administração no dever de expulsar mencionado aluno?
A definição da atividade administrativa como discricionária ou vinculada pressupõe, desse modo, o esgotamento da fase interpretativa. esgotada essa fase e construída a
norma do caso, será possível falar em discricionariedade se for possível extrair que dessa
norma do caso é conferida liberdade ao gestor para adotar mais de um comportamento
ou para praticar ato administrativo conforme seu juízo de conveniência e oportunidade.
10.4.5 discricionariedade e mérito
trata-se de conceitos muito próximos e frequentemente um é confundido com
o outro.
não obstante a proximidade dos conceitos, faz-se necessário distinguir um do
outro. A discricionariedade corresponde à liberdade conferida pela lei ao administrador
para a adoção da melhor solução para o caso concreto em razão do mérito administrativo.
Este corresponde ao juízo de conveniência e oportunidade para a definição da solução
mais adequada, tendo como parâmetro o princípio da razoabilidade. o mérito integra,
529
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
530
portanto, a discricionariedade, e não obstante esta esteja sujeita ao controle judicial, o
mérito não está, conforme será examinado em seguida.
em resumo, podemos concluir que a discricionariedade é a liberdade que a lei
confere ao administrador; e que o mérito é o juízo de conveniência e de oportunidade
de que se vale o administrador para definir a solução que melhor realize os fins legais
quando a lei houver conferido discricionariedade ao administrador.
10.4.6 Controle judicial da discricionariedade
Quando a lei confere competência (ou poder) ao administrador público, ela define
se sua atuação será discricionária ou se, ao contrário, ela será vinculada.
É no exame da lei — ou do texto constitucional — que devem ser buscados os
limites para a atuação discricionária da Administração Pública e para o seu controle
judicial.4 Desse modo, além de evitar eventuais desvios de finalidade, o papel a ser
exercido pelo controle judicial em relação à discricionariedade administrativa consiste
em definir os limites desta discricionariedade, a fim de identificar o seu núcleo, que
4
No julgamento do REsp nº 617.444-PR, o STJ reafirmou o entendimento de que a discricionariedade surge quando
a lei deixa campo de apreciação ao administrador, insindicável pelo Poder Judiciário, porque interditada a intervenção no mérito do ato administrativo:
“Processual Civil. recurso especial. Admissibilidade. Administrativo. Artigos 18 e 23, da Lei 9636/98. Cessão de
imóvel. discricionariedade. Licitação. suspensão.
1. o deferimento de pedido administrativo de cessão de imóvel depende do juízo discricionário, nos termos do
artigo 18, da Lei 9636/98, efetuado por meio de ‘escala de prioridades’, instituída por orientação interna.
2. É sabido que os atos discricionários autorizam certa margem de liberdade, porquanto a lei, ao regular a matéria, deixa um campo de apreciação ao administrador, insindicável pelo Poder Judiciário, porque interditada a
intervenção no mérito do ato administrativo.
3. sobressai da doutrina de Celso Antônio Bandeira de mello acerca dos atos discricionários e seu controle, in
Curso de Direito Administrativo, editora malheiros, 15ª edição, páginas 395/396 - 836/837, in verbis: ‘(...) Já se tem
reiteradamente observado, com inteira procedência, que não há ato propriamente discricionário, mas apenas
discricionariedade por ocasião da prática de certos atos. isto porque nenhum ato é totalmente discricionário,
dado que, conforme afirma a doutrina prevalente, será sempre vinculado com relação ao fim e à competência,
pelo menos. Com efeito, a lei sempre indica, de modo objetivo, quem é competente com relação à prática do ato
— e aí haveria inevitavelmente vinculação. Do mesmo modo, a finalidade do ato é sempre e obrigatoriamente
um interesse público, donde afirmarem os doutrinadores que existe vinculação também com respeito a este aspecto. (...) Em suma: discricionariedade é liberdade dentro da lei, nos limites da norma legal, e pode ser definida
como: ‘A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar
com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a
fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal’. (...) Nada há de surpreendente, então, em que
o controle judicial dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda
necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Nenhum empeço
existe a tal proceder, pois é meio — e, de resto fundamental — pelo qual se pode garantir o atendimento da lei,
a afirmação do direito. (...) Assim como ao Judiciário compete fulminar todo o comportamento ilegítimo da
Administração que apareça como frontal violação da ordem jurídica, compete-lhe, igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo que, a pretexto de exercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar
as fronteiras dela, isto é, desbordar dos limites de liberdade que lhe assistiam, violando, por tal modo, os ditames normativos que assinalam os confins da liberdade discricionária.’
4. Precedentes desta Corte: rms 18151/rJ relator ministro Gilson dipp dJ 09.02.2005; resp 239222/dF relator
ministro José Arnaldo da Fonseca dJ 29.10.2001.
5. deveras, a possibilidade de participação em procedimento licitatório, nos termos das informações prestadas
pela recorrida, à fl. 445, no sentido de que a Gerência do Patrimônio da União do Paraná, ‘aguarda a decisão
final da lide para adotar providências visando iniciar novo procedimento licitatório, embora a segurança tenha
sido denegada no tribunal a quo’, permite-se à recorrente habilitar-se no certame, concorrendo em igualdade de
condições com os demais interessados, a fim de adjudicar o imóvel desejado.
6. recurso especial desprovido.” (resp nº 617.444-Pr, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 7.3.2006. DJ, 20 mar.
2006)
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
está isento de controle por força do princípio da separação dos poderes do estado, bem
como a zona periférica dessa mesma discricionariedade, que se sujeita ao controle
judicial. Definidos esses parâmetros, torna-se possível indicar em que medida e com
que intensidade se deve proceder à intervenção por parte do Poder Judiciário nas atividades discricionárias do Poder executivo.
Ante a estreita relação entre discricionariedade administrativa e mérito, e em
razão da impossibilidade de se exercer controle judicial do mérito, muita controvérsia
se estabeleceu quanto à possibilidade e quanto aos limites para o exercício do controle
judicial da discricionariedade administrativa.
em primeiro lugar, deve ser esclarecido que a simples arguição de discricionariedade administrativa, ou de que o mérito do ato não está sujeito a controle judicial,
não afasta a possibilidade de apreciação do ato pelo Poder Judiciário.
A tutela judicial a ser empreendida em face da discricionariedade administrativa,
que está relacionada ao exame da conformidade dos atos com a ordem jurídica, é inafastável e deve se realizar em diferentes etapas.
A primeira etapa do processo de controle judicial consiste no exame da própria
legislação que tenha fundamentado a prática do ato, a fim de verificar se ela efetivamente
confere liberdade ao administrador para a adoção de mais de uma solução possível.
A segunda etapa corresponde à avaliação da situação ou circunstância de fato
ou de direito que, segundo o administrador, tenha justificado a prática do ato — exame
dos motivos.
em terceiro lugar, ou como terceira etapa do processo, deve-se proceder à avaliação de ponderação ou de razoabilidade da solução efetiva ou concretamente adotada
em face da lei e dos motivos invocados para a prática do ato.
em quarto lugar, ao se proceder ao controle da discricionariedade, cabe examinar se as regras procedimentais aplicáveis foram observadas, especialmente no que
diz respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa, do direito de recurso,
do acesso aos autos etc. os atos praticados no exercício de atividades discricionárias
decorrem de processos administrativos sujeitos a controle. Por meio do controle desses
processos de formação da manifestação de vontade do administrador será possível aferir
a legitimidade do próprio ato discricionário resultante do processo. vícios processuais,
falhas ou falta de motivação, eventuais desvios de finalidade são facilmente percebíveis
nos atos discricionários quando se examina o processo administrativo de formação da
vontade administrativa.
A distinção entre atos administrativos discricionários e vinculados é de grande
importância no estudo do Direito Administrativo e define, dentre outros aspectos, a
postura a ser adotada pelo Poder Judiciário por ocasião do exercício do controle de legalidade do ato. Assim, diante da omissão do administrador na prática do ato vinculado,
o juiz deve expedir determinação em que se indica o conteúdo do ato a ser praticado.
Na eventualidade da omissão na prática de ato administrativo discricionário, confirmada a mora administrativa, a determinação judicial a ser expedida deve restringir-se
à fixação do prazo para que o ato seja praticado, sem que, todavia, possa o Judiciário
definir o objeto do ato administrativo. O mesmo raciocínio deve ser adotado na hipótese
de ser anulado ato discricionário. A anulação desse ato não permite que o juiz indique
o conteúdo do novo ato a ser praticado. Por exemplo: se for anulado ato por meio do
qual se aplicou ao servidor público a pena disciplinar de demissão, em razão da falta
de razoabilidade na aplicação dessa sanção, o juiz não pode indicar que a pena correta
531
532
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
seria a de suspensão ou de advertência. Verificada a ilegalidade na aplicação da pena
de demissão, deve o juiz restringir sua atuação ao exercício do controle de legalidade
anulando o ato por meio do qual foi aplicada a pena de demissão e informar sua decisão
à Administração a fim de que esta decida acerca da nova pena a ser aplicada.
Para maiores considerações acerca do controle judicial da discricionariedade
administrativa, remetemos o leitor ao Capítulo 18, relativo ao controle da Administração Pública.
10.5 Poder de polícia (atividade ordenadora do estado)
10.5.1 Aspectos gerais
examinada a atuação da Administração Pública a partir de uma perspectiva histórica, constata-se que as duas principais funções administrativas do estado podem ser
divididas em: 1. atividade prestacional, cujo objetivo é pôr à disposição da população
utilidades; e 2. atividade de polícia, ou ordenadora, cujo propósito é intervir, ordenar
ou limitar as atividades dos particulares.
examinaremos, neste ponto, a atividade de polícia administrativa do estado.
A partir da premissa adotada, de que o estado é instrumento para assegurar à
sociedade a satisfação das suas necessidades básicas, o ponto de partida para a definição das funções administrativas estatais pressupõe a identificação das condutas ou
atividades que afetam ou permitem a realização dos interesses gerais da população, e
que não possam ser deixadas sob encargo exclusivo dos particulares.
independentemente da visão utilizada, se mais ou menos estatizante, é inconcebível em uma sociedade moderna imaginar que os particulares irão por sua própria
conta assumir o papel de construir estradas, pontes, aeroportos etc. essas atividades
sensíveis aos interesses de toda a sociedade são qualificadas como serviços públicos
e são prestadas sob regime público, cujo controle é exercido de modo extremamente
restrito pelo próprio estado.
Todavia, por maior que seja o rol das atividades definidas pelo ordenamento
jurídico como serviço público, ao menos em regimes constitucionais que incorporam
os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, de que é exemplo o modelo
adotado no Brasil pelo texto de 1988, a primazia no atendimento das necessidades da
sociedade é atribuição da própria sociedade. ou seja, na divisão das tarefas entre estado
e sociedade, a primazia cabe a esta última.
Ao se proceder ao estudo do poder de polícia do estado, constata-se que as
atividades desenvolvidas pelos particulares necessitam de ordenação, de planificação,
de limitação, de controle, a fim de evitar que os abusos cometidos pelos particulares
atentem contra os interesses da própria sociedade.
tomemos exemplo extremamente simples: o uso de veículo automotor. seria
possível imaginar, nos dias atuais, o caos urbano se a simples atividade de conduzir
veículos não estivesse totalmente ordenada pelo direito?
somente pode conduzir veículo automotor o particular que tenha obtido a devida
carteira de habilitação. Ademais, todas as condições para o uso do veículo se encontram
definidas em lei e em normas regulamentares. O mesmo raciocínio vale, por exemplo,
para o exercício de profissões, para a execução de edificações, para a comercialização
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
de bens nocivos ou perigosos à saúde etc. nos dias atuais, o simples funcionamento
de uma banca para vender pipoca em praça pública necessita da autorização da Administração Pública.
A esse rol de atividades desenvolvido pelo estado se convencionou denominar
de poder de polícia administrativa, que constitui um dos aspectos mais importante do
direito Administrativo.
importa consignar que não obstante o propósito dessa atividade pública seja
assegurar o bem-estar da sociedade por meio da limitação ou ordenação das atividades privadas, a atividade de polícia administrativa importa em intervenção na esfera
privada da liberdade dos particulares, o que não raro gera aversão por parte da própria
sociedade.5
10.5.2 Poder de polícia e demais poderes administrativos
A fim de realizar suas atividades, o Estado necessita de instrumentos que o
habilitem a impor sua vontade — vontade que se confunde com o cumprimento dos
preceitos legais e constitucionais —, independentemente ou mesmo contra a vontade
dos agentes privados.
Quando o ordenamento jurídico confere ao estado prerrogativas que o habilitam
a ordenar atividades privadas, a Administração Pública irá exercer atividade externa,
que extrapola os seus limites internos de atuação e invade a esfera dos particulares.
outros poderes administrativos existem que, ao contrário, afetam pessoas que,
de algum modo, estão submetidas à Administração Pública, pessoas que se encontram
em seu âmbito interno de atuação. o poder hierárquico e o poder disciplinar, conforme
será examinado adiante, dizem respeito a atividades estritamente internas da Administração Pública.
Por meio do poder hierárquico são definidas as atribuições e as funções dos
órgãos públicos e são dadas ordens aos subordinados, dentre outros aspectos a serem
examinados em seguida.
o poder disciplinar, considerado por parte da doutrina simples manifestação do
poder hierárquico, alcança igualmente apenas os que se encontram, em razão de regime
legal ou contratual, inseridos no âmbito interno da Administração Pública, de que são
exemplos os servidores públicos e as empresas contratadas pela Administração Pública.
Relativamente ao poder regulamentar, ainda que não seja correto identificá-lo
como poder interno, o seu propósito é tão somente o de conferir ao Chefe do executivo
a função de definir, dentre as opções de interpretação legal possíveis, aquela que será
adotada pela Administração Pública. Ao regulamentar uma lei, o chefe do executivo
define como a Administração Pública irá aplicar o texto legal. Nesse sentido, ainda que
determinada pessoa não esteja submetida à Administração Pública, é necessário que
ela mantenha relação jurídica com a Administração Pública para poder ser afetada pela
regulamentação da lei.
5
Como exemplo de aversão à tentativa de intervir na esfera de liberdade dos cidadãos pode ser lembrado o plebiscito sobre a proibição de comercializar armas realizado em outubro de 2005. A resposta dada pela sociedade
brasileira, que por ampla maioria rejeitou a possibilidade de o estado proibir a comercialização e o porte de
armas de fogo, demonstra o quanto a sociedade preza pela sua esfera de liberdade e como a intervenção por
meio do poder de polícia necessita ser exercido com cautela para não agredir a vontade da população.
533
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
534
diversa é a situação do poder de polícia.
Ao exercer as prerrogativas que lhes são inerentes, o estado extrapola os limites
ou o âmbito da Administração Pública e invade a esfera privada dos direitos e deveres
dos particulares. esta particularidade confere ao poder de polícia importância especial
no estudo dos poderes administrativos.
Por meio do poder de polícia, o estado interfere na esfera privada dos particulares e define como atividades e direitos, inclusive o de propriedade, serão exercidos.
10.5.3 Poder de polícia e serviço público
estas duas atividades, que constituem as mais importantes exercidas pela função
executiva do Estado, costumam ser fonte de infindável confusão.
Adotada uma perspectiva puramente teórica, não há grandes dificuldades para
distinguir as duas atividades. Por meio da prestação de serviços públicos, o estado põe
à disposição da população utilidades com vista ao atendimento das necessidades básicas da sociedade (como por exemplo: saúde, educação, iluminação pública, segurança
pública ou telefonia). nesse sentido, a atividade prestacional pode ser entendida como
uma intervenção positiva do estado na esfera privada.
diversa é a situação da atividade de polícia administrativa. Ao exercê-la, o estado
invade a esfera privada, não para pôr à disposição da população utilidades ou comodidades, mas para restringir, limitar, condicionar ou ordenar o exercício de atividades
que, de outro modo, poderiam ser livremente desempenhadas pelos particulares. deve-se
ter em mente que no âmbito privado, a regra é a liberdade: é lícito aos particulares fazer
tudo, desde que não haja lei dispondo em sentido contrário.
A atividade de polícia administrativa pode ser entendida, nesse sentido, como
uma intervenção negativa do estado na sociedade, dado que não acrescenta utilidades,
mas restringe a autonomia dos particulares (ainda que em algumas situações isoladas
possa ser exercida por meio da imposição, aos particulares, de obrigações positivas,
conforme será examinado adiante).
A afirmação anterior não importa, todavia, em transformar as atividades alcançadas pelas normas administrativas em proibições para os particulares. se determinada
profissão é regulamentada (de médico, de dentista, de advogado etc.), não significa que
ela se torna ilícita. É lícito a qualquer cidadão exercer essas profissões, desde que cumpra
as exigências ou condições previstas na lei pertinente. se determinado indivíduo exerce
a atividade de médico, por exemplo, sem o necessário registro, incorrerá em ilegalidade
em razão da não observância da condição prevista em lei, e não por ter praticado ato
restrito ao estado. ou seja, a ilegalidade, no caso, reside no não cumprimento ou na
não observância da condição legal, e não na exploração de atividade ilícita.
A fim de melhor distinguir a atividade de polícia da prestacional, podemos examinar as funções desenvolvidas pela ordem dos Advogados do Brasil (oAB).6
Além de importantes atribuições políticas, de defesa da ordem democrática, a
OAB desempenha diversas tarefas administrativas: ordena o exercício da profissão do
advogado e presta serviços de advocacia ou consultoria gratuita à população carente,
6
sobre a natureza jurídica desta entidade, é recomendável o exame da Adi nº 3.026-dF (Pleno. rel. min. eros Grau.
Julg. 8.6.2006. DJ, 29 set. 2006), em que o stF procedeu ao exame da sua natureza jurídica.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
por exemplo. essas atividades constituem serviço público ou poder de polícia? no
segundo caso, de assistência jurídica a pessoas carentes, identifica-se uma utilidade
posta à disposição da população, o que conduz à conclusão de que se trata de serviço
público. no primeiro caso, que constitui o próprio objeto da atividade da oAB, ao
limitar, condicionar e ordenar o exercício de uma profissão, a entidade exerce poder
de polícia administrativa.
se a distinção conceitual entre serviço público e polícia administrativa é nítida,
essa distinção se torna bem mais confusa quando são examinadas situações concretas.
Historicamente, a concessão e a permissão, por exemplo, são apresentadas como
instrumentos para a outorga de serviços públicos a particulares; a autorização, ao contrário, é o meio mais usual de o estado interferir na esfera privada, constituindo-se em
importante instrumento do poder de polícia. Há situações previstas na própria Constituição Federal (art. 21, Xii), todavia, em que a autorização deixa de ser instrumento
do poder de polícia e se transforma em meio de outorga de serviço público.
A dificuldade verificada em algumas situações concretas para distinguir instrumentos de polícia administrativa dos instrumentos de prestação de serviço decorre da
maior interação que se verifica, com cada vez maior intensidade, entre as esferas pública
e privada. essa distinção — entre o público e o privado — até muito recentemente se
apresentava mais nítida ou perceptível. Atualmente, resta praticamente impossível
imaginar atividade privada que não sofra alguma influência estatal, sendo igualmente
significativo o caminho inverso, em que o Estado se utiliza com muito maior frequência
dos institutos do direito Privado.
essa maior aproximação entre as esferas pública e privada torna menos nítida
a distinção entre o poder de polícia do serviço público, e a dificuldade de distinção
entre as duas atividades talvez tenha sido a razão que levou o constituinte de 1988 a
estabelecer como fato gerador para a cobrança de taxas o “exercício do poder de polícia
ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis” (CF,
art. 145, ii).
10.5.4 áreas de atuação
Em nome da segurança da sociedade, tem-se verificado significativa ampliação
do campo de intervenção da atividade de polícia administrativa.
sem qualquer pretensão de esgotar as áreas de atuação da polícia administrativa,
podemos mencionar os seguintes campos afetados pelo poder de polícia do estado:
preservação do meio ambiente, divertimento público, metrologia, trânsito de mercadorias, de pessoas e de veículos, edificações, saúde, segurança, moralidade, higiene e
tranquilidade públicas, patrimônio histórico e paisagístico, atividades profissionais,
registro público e economia popular.
10.5.5 Agências reguladoras e poder de polícia
Algumas agências, de que seria exemplo a Agência nacional de vigilância sanitária (AnvisA), têm como atividade básica o exercício de polícia administrativa. isto não
se verifica, todavia, com as denominadas agências reguladoras, como a Agência Nacional
de energia elétrica (AneeL) e a Agência nacional de telecomunicações (AnAteL).
535
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
536
É comum se reconhecer como principal atividade desenvolvida por essas entidades
o poder de polícia que elas exerceriam em relação às concessionárias de serviços públicos. A
atividade de regulação por elas desempenhada, que inclui a normatização e a fiscalização,
não se enquadra, todavia, como atividade de polícia do estado.
Conforme já foi constatado, a atividade de polícia administrativa interfere no
exercício de direitos e atividades cujo exercício se insere no âmbito privado, interferindo
na esfera de liberdade dos particulares. Isto não se verifica com as concessionárias de
serviço público. Como o próprio nome indica, elas não exploram atividades privadas
reguladas pelo estado, mas atividades inerentes ao poder público, que se inserem no
âmbito da competência do estado (CF, art. 175) e que por motivos de ordem técnica,
política ou econômica são outorgadas a empresas privadas, que as exploram em seu
nome e por sua conta, sem, contudo, perderem a natureza de atividade pública.
A atividade desenvolvida pelas agências reguladoras se enquadra como simples
gestão e regulação dos contratos de concessão e de permissão de serviços públicos. isto
em nada lhes reduz a importância ou as potestades. Ao contrário, amplia a possibilidade
de intervenção estatal.7
em razão de as concessionárias explorarem atividade pública delegada, amplia-se
sobremaneira a possibilidade de intervenção do estado, que não se limita aos instrumentos da polícia administrativa. se a atividade desenvolvida pelas agências reguladoras
se inserisse como poder de polícia, as restrições ao exercício dessa atividade seriam
aplicáveis, inclusive no que concerne à necessidade de lei específica.
Definida a atividade das agências reguladoras como regulação de contratos, os
limites para a intervenção estatal, relativamente às concessionárias, podem decorrer
não apenas da lei, mas igualmente do contrato firmado. Pode o contrato de concessão
conferir à agência poderes outros não previstos em lei, desde que constantes no edital da
licitação e no respectivo contrato de concessão ou de permissão. Amplia-se igualmente
o poder normativo da agência, o que não poderia ocorrer se a atividade fosse de polícia
administrativa, que deve observar estritamente o princípio da legalidade administrativa.
Ademais, o regime jurídico que trata dos serviços públicos permite intervenção
estatal mais invasiva em razão de se tratar de atividade pública delegada, diversamente
do que ocorre com as atividades privadas reguladas e objeto de ordenação pelo poder
de polícia.
7
não obstante as atividades das agências reguladoras dirigirem-se precipuamente à gestão e à regulação dos
contratos de concessão e de permissão de serviços públicos, podem essas entidades exercer típico poder de polícia administrativa sobre particulares que não sejam concessionários ou permissionários de serviços públicos,
conforme entendimento defendido pelo supremo tribunal Federal no seguinte julgado:
“reclamação. Alegado descumprimento do que decidido na medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade n. 1.668/dF. Agência reguladora. decisão judicial que determina a busca e a apreensão de equipamentos
radiofônicos de emissora de rádio comunitária clandestina.
1. no julgamento da medida Cautelar na Ação direta de inconstitucionalidade n. 1.668/dF, entre vários dispositivos questionados e julgados, decidiu-se pela suspensão do inc. Xv do art. 19 da Lei n. 9.472/97, que dispunha
sobre a competência do órgão regulador para ‘realizar busca e apreensão de bens’.
2. decisão reclamada que determinou o lacre e a apreensão dos equipamentos da rádio clandestina fundamentada no exercício do regular poder de polícia.
3. Ao tempo da decisão judicial reclamada, já estava em vigor a Lei n. 10.871/2004, na redação da Lei n. 11.292/2006,
que prevê aos ocupantes dos cargos de fiscal dos órgãos reguladores as prerrogativas de apreensão de bens e produtos.
4. Ausência de descumprimento da medida Cautelar na Ação direta de inconstitucionalidade 1.668-mC/dF.
5. reclamação: via inadequada para o controle de constitucionalidade. 6. reclamação julgada improcedente.”
(rcl nº 5.310-mt, Pleno. rel. min. Cármen Lúcia. Julg. 3.4.2008. DJe, 16 maio 2008)
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
Não é possível, todavia, afirmar que não possam referidas entidades — que possuem
natureza autárquica — exercer poder de polícia, inclusive em relação a terceiros que não
sejam concessionários ou permissionários de serviços públicos. A possibilidade de exercício
do poder de polícia por parte das agências reguladoras depende, todavia, do que dispuser
a lei e deve ser exercido nos limites desta lei.
10.5.6 impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares
A impossibilidade de delegação a particulares constitui aspecto em que o poder
de polícia se distingue do serviço público.8
A vedação de delegação do poder de polícia a particulares não decorre de qualquer dispositivo legal expresso. A razão da vedação é de ordem material e mantém
relação com o princípio da dignidade humana. Conforme será examinado adiante, o
poder de polícia tem como um dos seus atributos a imperatividade, que legitima o uso
da violência pelo estado.
em sociedades democráticas, ressalvadas situações excepcionais — de legítima
defesa ou de estado de necessidade — somente ao estado é dado usar da violência
para impor aos particulares o cumprimento de suas obrigações. daí ser inquestionável
a vedação de delegação a particulares do poder de polícia, posto que a outorga desta
potestade poderia legitimar o uso da violência por parte de particular contra particular,
o que fere a noção básica do princípio da dignidade humana.
A impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares não se estende,
todavia, a outros órgãos ou entidades públicas. Verifica-se delegação do poder de polícia
entre entidades ou órgãos públicos quando, por exemplo, os DETRANs estaduais firmam convênios com a Polícia Militar ou com as guardas municipais para a fiscalização
do trânsito e aplicação das respectivas sanções.
A impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares não impede,
todavia, que estes últimos possam interferir no desempenho de atividades de apoio, ou
acessórias ao exercício desta potestade pública. É perfeitamente legítima, por exemplo,
a contratação de empresas para auxiliar o poder público na aplicação de multas de trânsito.9
8
9
No julgado da ADI nº 1.717-DF, o STF firmou o entendimento de que o poder de polícia é indelegável a particulares: “direito constitucional e administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade do art. 58 e seus parágrafos
da Lei Federal nº 9.649, de 27.05.1998, que tratam dos serviços de fiscalização de profissões regulamentadas. 1.
estando prejudicada a Ação, quanto ao §3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário,
quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se
a inconstitucionalidade do caput e dos §§1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. isso porque a interpretação
conjugada dos artigos 5º, Xiii, 22, Xvi, 21, XXiv, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à
conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de estado, que abrange
até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. decisão unânime” (Adi nº 1.717-dF, Pleno. rel. min.
sidney sanches. Julg. 7.11.2002. DJ, 28 mar. 2003).
Ao tratar de Ação direta de inconstitucionalidade nº 3.026, em que se discutia a necessidade de a oAB ser obrigada a realizar concurso público, o eg. stF decidiu que, não obstante exerça poder de polícia, a oAB é entidade
privada. trata-se de decisão casuística em que a conclusão adotada decorre de argumentos de força, e não de direito.
Com a decisão do stF no julgamento desta ação (decisão proferida em outubro de 2006), foi admitida pela primeira vez a possibilidade de entidade privada exercer poder de polícia. Firmada a natureza privada da oAB,
restaria a dúvida de saber o fundamento que ela não pague iPvA, iPtu, iss etc., cujo não pagamento se atribuía
à sua natureza autárquica. Cf. stF. Adi nº 3.026-dF, Pleno. rel. min. eros Grau. Julg. 8.6.2006. DJ, 29 set. 2006.
no julgamento do resp nº 712.312-dF, o stJ manifesta o entendimento de que o exercício do poder de polícia, a despeito caber a agentes do estado, pode ser auxiliado por particulares:
537
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
A participação da empresa contratada não pode, todavia, importar em que ela venha
a manter qualquer relação direta com o cidadão. deve a participação das empresas
em atividades que envolvam o exercício do poder de polícia ser acessória, no sentido
de tão somente subsidiar ou fornecer elementos que permitam ao estado o efetivo
exercício da atividade de polícia. A possibilidade de particulares colaborarem com o
poder público no exercício do poder de polícia se mostra relevante, por exemplo, nas
concessões rodoviárias.
10.5.7 Definição do poder de polícia
Em razão do que foi exposto acerca do poder de polícia, podemos defini-lo como
a atividade estatal cujo objetivo consiste em restringir ou condicionar a esfera de liberdade ou
de direitos dos particulares em razão do bem-estar da sociedade.
10.5.8 Formas de atuação
A Administração Pública exerce o seu poder de polícia por meio de atos administrativos, sejam eles gerais, de caráter normativo (decretos, instruções, portarias etc.),
cujo objetivo consiste em limitar o exercício da discricionariedade administrativa, seja
por meio de atos concretos de execução da polícia administrativa (de fiscalização ou
de sancionamento). o ato administrativo corresponde, portanto, ao instrumento básico
de que se vale o estado para executar o seu poder de polícia.
rejeitamos a possibilidade de se denominar atividade de polícia aquela desenvolvida pelo estado resultante de acordos de vontade. A fonte que legitima a intervenção
estatal na ordenação das atividades privadas, impondo limitações administrativas,
vedações, condicionamentos ou sanções etc., decorre sempre e necessariamente de lei,
e nunca de contrato ou de outro acordo de vontade. se não houver lei impondo padrão
de comportamento em matéria de preservação do meio ambiente, por exemplo, não
pode a Administração Pública criar essa obrigação por meio de contrato firmado com
particular. A obrigação de preservar o meio ambiente e a definição de parâmetros para
o exercício das atividades privadas com vista a essa preservação são definidos em lei.
“Administrativo. Recurso Especial. Multa de trânsito. Necessidade de identificação do agente. Auto de infração.
1. nos termos do artigo 280, §4º, do Código de trânsito, o agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o
auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência. o aresto consignou que toda e qualquer
notificação é lavrada por autoridade administrativa.
2. ‘daí não se segue, entretanto, que certos atos materiais que precedem atos jurídicos de polícia não possam ser
praticados por particulares, mediante delegação, propriamente dita, ou em decorrência de um simples contrato de
prestação. Em ambos os casos (isto é, com ou sem delegação), às vezes, tal figura aparecerá sob o rótulo de ‘credenciamento’. Adílson dallari, em interessantíssimo estudo, recolhe variado exemplário de ‘credenciamentos’. É o que
sucede, por exemplo, na fiscalização do cumprimento de normas de trânsito mediante equipamentos fotossensores, pertencentes e operados por empresas privadas contratadas pelo Poder Público, que acusam a velocidade do
veículo ao ultrapassar determinado ponto e lhe captam eletronicamente a imagem, registrando dia e momento da
ocorrência’ (Celso Antônio Bandeira de mello, in Curso de Direito Administrativo, malheiros, 15ª edição, pág. 726):
3. É descabido exigir-se a presença do agente para lavrar o auto de infração no local e momento em que ocorreu
a infração, pois o §2º do CtB admite como meio para comprovar a ocorrência ‘aparelho eletrônico ou por equipamento audiovisual (...) previamente regulamentado pelo ContrAn’.
4. não se discutiu sobre a impossibilidade da administração valer-se de cláusula que estabelece exceção para notificação pessoal da infração para instituir controle eletrônico.
5. recurso especial improvido”. (resp nº 712.312-dF, 2ª turma. rel. min. Castro meira. Julg. 18.8.2005. DJ, 21 mar. 2006)
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
É possível, todavia, que a lei possa admitir que a solução para casos concretos
relacionados ao exercício do poder de polícia decorra de acordo de vontade entre a Administração Pública e o particular, e não por meio de solução definida unilateralmente
pela primeira. servindo-nos uma vez mais do exemplo da legislação ambiental, podemos
mencionar os termos de ajustamentos de conduta – tAC utilizados como instrumentos
para viabilizar o exercício da polícia administrativa. A restrição ou a limitação, que
constituem a fonte (ou origem) da regulação do estado em matéria de proteção do meio
ambiente, decorrem da lei. o ato concreto por meio do qual se viabiliza a execução da
obra que causa impacto ao meio ambiente, que pode requerer a adoção de medidas de
compensação ambiental, por exemplo, não necessariamente terá que ser o ato administrativo unilateral, sendo admitida pela lei uma solução consensual definida pelo TAC.
10.5.9 Atributos
A atividade de polícia administrativa desenvolvida pelo estado não se distingue
em forma ou dos meios de atuação das demais atividades estatais.
o regime jurídico utilizado para disciplinar o exercício do poder de polícia é
o direito Administrativo, e o meio de atuação pelo qual se exterioriza a atividade de
polícia é o ato administrativo.
em razão do poder de polícia se exteriorizar por meio de atos administrativos,
não vemos qualquer razão para estabelecer para a polícia administrativa atributos distintos dos indicados para os atos administrativos (vide Capítulo 5). não há razão, por
exemplo, para que se atribua ao ato administrativo, como o faz Hely Lopes meirelles,10
o atributo da presunção de legitimidade, e que esse mesmo atributo não seja adotado
para o poder de polícia, que se utiliza do ato administrativo para se exteriorizar.
A polícia administrativa é uma das atividades desenvolvidas pelo estado; o ato
administrativo é o meio pelo qual essa atividade se manifesta. ou seja, a atividade de
polícia administrativa deve observar os elementos e o regime jurídico dos atos administrativos porque é por meio deles que se manifesta, inclusive em relação aos seus
atributos e requisitos de validade.
A rigor, qualquer que seja a atividade administrativa exercida pelo estado (de
polícia, de fomento, prestacional etc.), se ela se utiliza do ato administrativo, o regime
jurídico relativo a este deve ser observado. Aliás, a atividade de polícia administrativa
é a que mais se utiliza do ato administrativo. As demais atividades (de fomento e
prestacional) têm buscado nos contratos e em outros acordos de vontade a forma mais
usual de se manifestarem.
nesse sentido, os atos administrativos praticados com o propósito de dar efetividade à atividade de polícia administrativa apresentam os seguintes atributos:
- Presunção de legitimidade – todos os atos praticados pelo estado no exercício
do poder de polícia são reputados legítimos e, portanto, a eles deve ser dada
executoriedade. somente pode ser negada a execução de ato praticado no
exercício do poder de polícia, se houver declaração judicial ou administrativa
de ilegitimidade;
10
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 120-122.
539
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
- Auto-executoriedade – a execução dos atos de polícia administrativa independe
de qualquer manifestação judicial, ressalvadas as hipóteses em que a execução
importe em transferência patrimonial do particular para o estado (cobrança
de multa, por exemplo);
- Imperatividade – no exercício do poder de polícia, é legítimo ao poder público
impor obrigações unilaterais ao particular e, se necessário, usar dos necessários
meios de coação para sua execução;
- Exigibilidade – em algumas situações, o particular pode ser obrigado a fazer algo
com o propósito de atender a alguma condição imposta pelo poder de polícia.
A exigibilidade surge nos atos decorrentes do exercício do poder de polícia de
modo acessório, como condição a ser cumprida pelo particular para o exercício
de direitos ou de atividades.
dos atributos dos atos administrativos, o que mais se evidencia no exercício da
polícia administrativa é a imperatividade.
em razão de o poder de polícia importar em restrição ao âmbito privado de
liberdades, faz-se necessário com frequência o uso da força. o uso da violência estatal —
que o estágio evolutivo da humanidade não permitiu, até o momento, superar — deve
necessariamente buscar conformação com o princípio da proporcionalidade, pressuposto
constitucional indispensável à legitimidade da coação pelo estado.
Hely Lopes meirelles inclui a discricionariedade dentre os atributos do poder de
polícia. Talvez influenciado pelo exemplo que apresenta (autorização para uso de arma
de fogo), o ilustre autor defende que a atividade de polícia é discricionária. discordamos, máxima vênia, do mestre.
Que a autorização para porte de arma efetivamente se insere no âmbito da polícia
administrativa, e que há elementos discricionários na prática desse ato, não há dúvida.
esse exemplo não pode levar, contudo, à ilação de que o poder de polícia, como gênero,
tem a discricionariedade como atributo.
A rigor, se nos dermos ao trabalho de examinar as situações em que o estado
exerce a atividade de polícia, verificaremos que a quase totalidade delas se insere no
âmbito vinculado da atuação administrativa. Exemplo: se guarda de trânsito verifica o
cometimento de infração, toda a sua atuação está definida em lei, desde o dever de punir
o infrator à indicação da sanção a ser especificamente aplicada. Não dispõe o agente
público, na hipótese, de qualquer margem discricionária, de modo que seria insistir em
erro enquadrar a polícia administrativa dentre as atividades discricionárias do estado.
Há situações em que a escolha da sanção a ser aplicada aos que violam os preceitos legais pertinentes ao poder de polícia é deixada a juízo do agente público — o
que se verifica com certa frequência na atividade da vigilância sanitária, por exemplo.
isto não permite concluir que a polícia administrativa seja essencialmente discricionária
ou vinculada. no exercício do poder de polícia administrativa, há situações em que
são identificados elementos discricionários e, em outras situações, a atuação ocorre de
modo vinculado.
A polícia administrativa observa de forma estrita o princípio da legalidade. Para
cada atuação da polícia administrativa, é requerida a edição de lei específica. Deve ser
buscada nesta legislação específica a existência de discricionariedade ou de vinculação
administrativa. não é possível, portanto, estabelecer para o poder de polícia qualquer
generalização quanto ao seu enquadramento como atividade vinculada ou discricionária
em razão da imensa variedade de leis que regulam as diversas hipóteses de incidência
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
da polícia administrativa. seria engano estabelecer ou buscar uniformidade entre as
leis de trânsito, as que cuidam das edificações, da autorização para porte de arma, para
o transporte ou a exploração de madeira, para o exercício de atividades profissionais,
para a vigilância sanitária etc. Cada uma dessas leis estabelece regras específicas de
competência, algumas discricionárias e outras vinculadas.
10.5.10 estado constitucional e poder de polícia: pressupostos
nos estados absolutistas, com vista a assegurar a “ordem pública”, o poder de
polícia podia ser exercido de modo ilimitado. ele era tido como poder indeterminado e
expansivo. em seu nome, o estado se credenciava a adotar qualquer medida interventiva
na esfera dos direitos e das liberdades individuais sem que pudessem ser impostos
limites ou condições para o exercício dessa atividade estatal em razão do dever de todo
particular de não perturbar a ordem pública.
esta concepção de polícia fere frontalmente a concepção de estado constitucional,
em especial o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, e o direito fundamental da dignidade humana. A ideia de um poder de polícia exercido ilimitadamente é incompatível
com o próprio fim do Estado, cujo objetivo é a realização dos direitos fundamentais
da população.
A necessidade de conformação com os direitos fundamentais constitui, destarte, o
primeiro pressuposto a ser observado para justificar qualquer intervenção do Estado
na esfera das liberdades individuais.
o segundo pressuposto para o exercício legítimo do poder de polícia está vinculado ao princípio da legalidade, haja vista qualquer intervenção estatal compulsória na
esfera da liberdade dos particulares, que importe em limitação, proibição ou mesmo
condicionamento ao exercício de direitos ou de liberdades,11 ter como pressuposto a
existência de lei.
A necessidade de estrita observância do princípio da legalidade administrativa
não importa em suprimir da Administração Pública espaço para regulamentação. não
se admite, todavia, que a pretexto de regulamentar a lei, o regulamento extrapole os
limites legais e crie restrição, limitação, condicionamento ou qualquer outro empecilho
ao exercício de direitos ou de liberdades não previstos ou não autorizados em lei.
diante desse contexto, surge a dúvida para saber se a autorização legislativa poderia ser emitida em caráter genérico. Lei poderia conferir poder genérico à Administração
Pública para estabelecer requisitos, por exemplo, ao exercício de determinada profissão?
Admitir essa possibilidade importa em atentar contra o próprio princípio da
reserva de lei. Poderíamos falar, destarte, no princípio da especificidade como consectário
do princípio da legalidade. Não apenas as situações concretas que justificam e reclamam
11
no julgamento do rms nº 19.510-Go, o stJ decidiu que, no exercício do poder de polícia, é descabida a aplicação de sanção administrativa à conduta que não está prevista em lei como infração:
“direito Administrativo. recurso ordinário em mandado de segurança. Procon. Aplicação de multa no exercício do poder de polícia. Princípio da legalidade. Ausência de tipicidade da infração. 1. o procedimento administrativo pelo qual se impõe multa, no exercício do Poder de Polícia, em decorrência da infringência a norma
de defesa do consumidor deve obediência ao princípio da legalidade. É descabida, assim, a aplicação de sanção
administrativa à conduta que não está prevista como infração. 2. recurso ordinário provido”. (rms nº 19.510-Go,
1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki. Julg. 20.6.2006. DJ, 03 ago. 2006)
541
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
542
a intervenção estatal, mas os próprios instrumentos para essa intervenção devem estar
previstos em lei. Relativamente ao exercício de profissões, por exemplo, é necessário
que a lei indique a profissão a ser regulamentada, as condições para o exercício da
profissão e os instrumentos de que o poder público pode dispor para fazer cumprir os
condicionamentos legais.
outro aspecto a ser examinado diz respeito ao fato de que a lei que limita, condiciona ou restringe o exercício de direitos deve ser confrontada com o benefício que essa
restrição gera para a sociedade. em outras palavras, deve-se proceder ao exame dos
ganhos para a sociedade em face das perdas ou restrições aos direitos ocasionadas pela
intervenção estatal.
É de se examinar, assim, a necessidade e a proporcionalidade da intervenção estatal.
Quando se analisa, por exemplo, a regulamentação da profissão de médico, é
fácil perceber o ganho para a sociedade decorrente da ordenação dessa atividade. o
que está em jogo é a saúde da população, que somente pode ser entregue a profissional
que tenha demonstrado a necessária capacidade técnica. A restrição ao exercício da
profissão de médico é, portanto, facilmente justificada em função dos ganhos advindos
da restrição ao livre exercício da atividade.
No Brasil, tem-se cogitado com alguma frequência de regulamentar a profissão
dos jornalistas. A pergunta a ser feita é a seguinte: o que a sociedade brasileira ganha
com essa intervenção na livre manifestação do pensamento? seriam a honra e o direito
à privacidade dos particulares os valores a serem protegidos? iria o eventual Conselho
de Jornalismo impedir agressões à honra ou invasões à privacidade das pessoas, argumento reiteradamente utilizado para justificar a regulamentação da profissão?
Desse choque de interesses, verifica-se que a perda de direitos decorrente da
imposição de limites à manifestação do pensamento e à liberdade de imprensa não
geraria ganhos para a sociedade que compensassem os sacrifícios (raciocínio decorrente
da aplicação do princípio da proporcionalidade, que requer ponderação entre meios
e fins), e que, ademais, a criação do referido Conselho de Jornalismo não constituiria
meio para impedir ofensas à honra ou à privacidade de quem quer que seja.
A conclusão deve ser no sentido de que a imposição de restrição à autonomia
privada de atuar como profissional nos meios de comunicação não se justifica em termos
de benefícios para a sociedade, constatação que resulta em que mencionada regulamentação, não obstante seja feita por meio de lei, deva ser reputada inconstitucional.12
Nesse sentido, a fim de que o exercício do poder de polícia do Estado seja legítimo,
é necessário, além de lei específica, que a restrição ao exercício das liberdades privadas possa
ser justificada em face dos ganhos para a sociedade. A necessidade da intervenção estatal e a
ponderação ou o juízo de proporcionalidade entre as perdas decorrentes da ordenação
da atividade pelo estado e os ganhos para a sociedade correspondem, portanto, ao
quarto requisito ao exercício do poder de polícia do estado.
o quinto requisito de ordem constitucional ao exercício do poder de polícia
do estado está relacionado à forma de aplicação da lei pela Administração Pública.
12
registre-se, sobre esse assunto, que, em julho de 2006, a Presidência da república vetou integralmente o Projeto
de Lei nº 79/2004, que dispunha sobre o exercício da profissão de jornalista. Nas razões de veto, argumentou-se ser
inadequada a exigência indiscriminada de diploma em curso superior de jornalismo para o exercício de qualquer
atividade ligada à comunicação.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
Caso a lei confira à Administração Pública mais de uma opção de agir, com vista a
condicionar ou limitar o exercício das liberdades ou direitos, deve ela optar por aquela
que seja menos gravosa para o particular. Assim, se for possível alcançar os fins visados
pela lei sem que seja necessário proibir o exercício da atividade, mas tão somente por
meio da imposição de restrições ou limitações, esta solução é de adoção obrigatória
para o administrador. esta discussão foi enfrentada pelo stF no julgamento do re
nº 414.426-sC (Informativo STF, n. 406), que tratou do exercício da profissão de músico.
Para cobrar as anuidades devidas, poderia o Conselho de músicos impedir o músico
de cantar? esta foi a questão enfrentada no julgamento da ação. A relatora, ministra
ellen Gracie, apontou a existência de outras opções para a cobrança da anuidade sem
que para tanto houvesse necessidade de impedir o exercício da atividade. Afirmou que,
na hipótese da música, a livre expressão artística é de sua essência e, por conseguinte,
a obrigatoriedade de inscrição na OMB para que os profissionais da música se apresentem profissionalmente equivale à exigência de licença expressamente proibida pelo
art. 5º, iX, da CF. Ademais, salientou que a exigência de comprovação de pagamento
de anuidade é despropositada, visto que, conforme acentuara o acórdão impugnado,
a recorrente possui outros meios legais para efetuar a cobrança.
trata-se da adoção do princípio pro libertate, segundo o qual sempre que o estado
dispuser de mais de uma opção de intervir na autonomia dos agentes privados, deve
optar por aquela menos gravosa. desse modo, por força desse princípio, se for possível,
por exemplo, coibir a prática de ilicitudes no desempenho de determinada atividade
empresarial por meio da aplicação de multa, não deve ser promovida a interdição do
estabelecimento.
10.5.11 regulamentos de polícia
A velocidade com que se formam e se modificam as relações jurídicas em uma
sociedade moderna resultou na flexibilização do princípio da reserva legal, o que
torna o estado mais capaz de responder de forma mais expedida às novas demandas
da sociedade.
Não afirmamos que essa concepção de legalidade deva ser implantada na Administração Pública; afirmamos que esta é a realidade existente na Administração Pública
brasileira.
nos dias atuais, é comum a Administração Pública se servir com cada vez mais
frequência dos regulamentos para tratar de programas sociais ou para regular atividades estatais (especialmente as de fomento e as prestacionais), que não geram obrigações unilaterais para os particulares, observada, dentre outros requisitos, a existência
de órgão ou entidade pública com competência genérica para atuar naquela área e da
necessária previsão orçamentária.
A maior dificuldade ao uso da regulamentação por parte da Administração Pública
reside exatamente na área da polícia administrativa. defendemos que o regulamento
possa ser utilizado, desde que não imponha obrigação positiva ou negativa aos particulares. evidentemente que nos referimos aqui ao regulamento que inova no mundo
jurídico: afinal, de que serviria o regulamento se sua função fosse apenas a de repetir a lei?
ora, a atividade de polícia administrativa, ao ordenar o exercício das atividades
privadas, invade a esfera dos direitos e das liberdades basicamente por meio da imposição
543
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
544
de obrigações negativas (restrições, condicionamentos, vedações, limitações etc.). É,
portanto, de se concluir que a atividade de polícia administrativa afasta a possibilidade
de utilização da regulamentação como técnica de ordenação da atividade administrativa?
de todas as atividades desenvolvidas pelo estado, a de polícia é a que mais requer
a observância da legalidade administrativa. de acordo com os postulados básicos do
estado constitucional, qualquer medida restritiva da liberdade dos cidadãos pressupõe competência administrativa outorgada não apenas por lei, mas por lei específica,
sendo vedada a outorga de competência genérica de poder de polícia para adotar, por
exemplo, qualquer medida necessária à manutenção da ordem pública.
O exercício do poder de polícia pressupõe: 1. lei específica; 2. órgão especificamente indicado para o exercício da potestade pública; 3. situações que justifiquem a
intervenção estatal; e 4. medidas de intervenção definidas em lei. Não é possível, por
exemplo, lei conferir competência à vigilância sanitária ou à polícia militar para apreender mercadorias ou deter pessoas, respectivamente, sem que indique os motivos e a
finalidade da apreensão das mercadorias ou da detenção das pessoas.
Essas afirmações bastam para que se afaste qualquer tentativa da adoção do regulamento de polícia autônomo, o que violaria frontalmente o princípio do estado democrático
de direito.
não obstante, ainda que em caráter meramente acessório ou secundário, o regulamento está presente na atividade de polícia administrativa.
A própria lei pode remeter ao regulamento a função de ordenar as técnicas e as
situações que ela mesma tenha estabelecido. não se trata de legislar em branco, o que
importaria em outorga de ampla competência normativa, mas de formalizar as regras
técnicas de atuação a partir dos parâmetros ou standards definidos em lei.
o objetivo da regulamentação não é, portanto, em matéria de polícia administrativa, diversamente do que possa parecer, o de ampliar a capacidade de intervenção
estatal, mas de limitar a discricionariedade dos agentes incumbidos de aplicar as normas
administrativas restritivas de liberdade.
exemplo: lei pode estabelecer que materiais explosivos ou tóxicos somente possam
ser transportados em quantidades máximas, ou em determinadas condições especiais.
dado que é impossível à lei indicar, para cada material ou produto que se enquadre nessas
especificações, as quantidades máximas a serem transportadas, pergunta-se: do ponto
de vista da segurança jurídica da sociedade, é mais adequado deixar a fixação desses
limites para o agente encarregado de fiscalizar o transporte do material ou, ao contrário,
convém que a indicação desses limites seja previamente definida em regulamento?
em matéria de vigilância sanitária e de segurança do trabalho para o transporte,
a comercialização e o consumo de produtos alimentícios, químicos e farmacêuticos, por
exemplo, a regulamentação desempenha papel fundamental.
A regulamentação não objetiva, portanto, ampliar a possibilidade de intervenção
do estado na esfera da liberdade dos particulares. ela tem propósito inverso e objetiva
limitar a discricionariedade do administrador, conferindo maior segurança e previsibilidade aos particulares.
não pode o regulamento prever novas hipóteses de intervenção ou de sanção
não previstas em lei, mas pode, dentro dos limites ou parâmetros fixados em lei, indicar
como a Administração Pública deve agir em determinadas situações.13
13
no julgado do resp nº 451.242-rs, o stJ manifestou o entendimento de que, no exercício do poder de polícia, o
juízo de razoabilidade ou proporcionalidade na regulamentação das leis de trânsito cabe ao administrador, pelo
que seria indevida a intromissão do poder judicante na questão:
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
10.5.12 Polícia administrativa e polícia judiciária
vários critérios têm sido utilizados para distinguir as duas polícias. o mais
comum diz respeito ao momento da intervenção: a polícia administrativa teria caráter
preventivo; a polícia judiciária, caráter repressivo.
Quando o ordenamento jurídico estabelece qualquer sanção, penal ou administrativa, o seu propósito último é prevenir, evitar que a conduta vedada se verifique. Ao
interferir na esfera de liberdade dos particulares, o direito Administrativo estabelece
limitações, vedações, restrições ou condições ao exercício de atividades ou de direitos.
A fim de dar efetividade a esses preceitos, o regime jurídico administrativo pertinente
ao poder de polícia fixa as respectivas sanções. Assim, ainda que se possa entender a
atividade de polícia administrativa como preventiva, ela não se afasta quando ocorre
violação do preceito legal e quando se faz necessária a adoção das medidas repressivas
ou punitivas.
exemplo: o guarda exerce poder de polícia quando orienta o tráfego de veículos
ou quando aplica multas aos condutores que tenham violado as normas de trânsito.
A polícia judiciária, a seu turno, é apresentada como de natureza eminentemente
repressiva. ela é normalmente chamada a intervir quando o ilícito já foi praticado e
com o objetivo de esclarecer o seu cometimento e identificar os responsáveis. É cada
vez mais comum, todavia, as polícias judiciárias — exercidas pela Polícia Federal e pela
Polícia Civil — buscarem medidas de prevenção aos ilícitos em seu âmbito de atuação.
Exemplo: incumbe à Polícia Federal a investigação dos ilícitos relacionados ao tráfico
internacional de entorpecentes. A Polícia Federal utiliza, nos dias atuais, com grande
frequência, técnicas e táticas de prevenção à prática desse ilícito, sem falar nas atividades
de caráter eminentemente preventivos, como a expedição de passaportes, por exemplo.
o critério do momento da intervenção de uma e de outra polícia — a administrativa, como preventiva, e a judiciária, como repressiva — não nos parece apropriado
para distingui-las.
outro critério de distinção frequentemente utilizado toma como parâmetro o
objeto da atuação das duas polícias: a polícia administrativa atuaria em relação a bens,
direitos e atividades; a polícia judiciária atuaria sobre pessoas.
Discordamos igualmente desse critério. Não nos parece possível afirmar que a
polícia administrativa interfere na atividade desenvolvida por certa pessoa sem que
isto interfira na vida da própria pessoa. Ao contrário, a atividade de tráfico de entorpecentes é objeto da atuação da polícia judiciária. Não nos parece razoável afirmar que
“Administrativo. infração de trânsito. excesso de velocidade detectado por equipamento eletrônico. multa. Cabimento. Princípio da proporcionalidade inaplicável. interesse público que se sobrepõe ao particular.
1. o Código de trânsito Brasileiro permite ao administrador, no exercício do seu poder de polícia, insindicável
pelo Judiciário, regular a velocidade considerando o local e o horário de tráfego. em conseqüência, não malfere
a lei o ato administrativo de polícia que fixa esses limites, porquanto a razoabilidade ou proporcionalidade da
velocidade admitida é fruto da técnica do administrador, cuja aferição escapa ao poder judicante na esfera do
recurso especial, quer pela invasão da matéria fática, quer pela intromissão indevida no âmbito do administrador.
2. os redutores eletrônicos de velocidade, em regra, sob a forma de “pardais” e barreiras eletrônicas, são frutos
de acentuada preocupação da Administração Pública com os alarmantes índices de acidentes de trânsito causados pelo excesso de velocidade dos condutores de veículos automotores, mercê de legitimados pelo Código de
trânsito Brasileiro.
3. A atitude do condutor de veículo em ultrapassar a velocidade estabelecida pela administração no exercício do
seu poder de polícia desautoriza o cancelamento da multa ao pálio da proporcionalidade, posto implicar essa
investida substituição do administrador pelo Judiciário. supremacia do interesse público.
4. recurso especial provido.” (resp nº 451.242-rs, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 11.2.2003. DJ, 10 mar. 2003)
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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haja interferência apenas em relação às pessoas que exploram essa atividade ilícita sem
que haja interferência em relação à atividade em si.
o critério mais adequado para distinguir a polícia administrativa da polícia judiciária diz respeito ao regime jurídico utilizado para disciplinar o objeto da análise. se
determinada ação ou omissão se enquadra no âmbito das normas do direito Penal, a
polícia judiciária é chamada a atuar e terá como parâmetro de atuação o direito Processual
Penal. se o fato objeto da atuação estatal é tratado pelas normas do direito Administrativo,
intervirá a polícia administrativa.
importa observar que a atuação das duas polícias não é de modo algum excludente.
ilícitos cometidos contra o meio ambiente, por exemplo, que importem em violação de
normas de direito Penal e de direito Administrativo, reclamam a intervenção de ambas
as polícias, a judiciária e a administrativa.
Aspecto que distingue uma da outra é o fato de que as competências para o
exercício das atividades da polícia administrativa se encontram dispersas por vários
órgãos e entidades públicas (e não apenas na Polícia Militar, como se costuma afirmar);
a atividade de polícia judiciária, ao contrário, se concentra, como mencionado, nas
Polícias Civil e Federal.
10.5.13 Polícia geral e polícia especial
Hely Lopes meirelles menciona a distinção originária do direito francês do poder
de polícia em geral e especial, “sendo aquela a que cuida genericamente da segurança, da
salubridade e da moralidade públicas, e esta de setores específicos da atividade humana
que afetem bens de interesse coletivo, como a construção, a indústria de alimentos, o uso
das águas, a exploração das florestas e das minas, para os quais há restrições próprias
e regime jurídico peculiar”.14
em contraponto, Celso Antônio Bandeira de mello menciona a reprodução “de
modo acrítico” dessa divisão que, segundo este ilustre autor, “não tem qualquer sentido” para o direito brasileiro.15
A crítica feita pelo ilustre professor Bandeira de mello à divisão apresentada pelo
não menos ilustre professor Hely Lopes meirelles reside no fato de que, na França, “em
matéria de segurança, tranquilidade e salubridade públicas a Administração interfere
através de regulamentos”, o que não poderia ser admitido no direito brasileiro, onde
“só existem regulamentos executivos, isto é, para fiel execução da lei”.
entre nós, independentemente de se tratar de polícia geral ou especial, o fundamento para qualquer intervenção estatal na esfera dos direitos e liberdades dos
particulares depende de lei. não há como buscar no regulamento o fundamento para
o exercício da atividade de polícia, não obstante este possa desempenhar papel secundário ou acessório na atividade de polícia administrativa. em relação ao exercício do
poder de polícia, o regulamento tem sido utilizado com alguma frequência em áreas
especiais (relativa a produtos farmacêuticos e alimentícios, ao meio ambiente, às edificações etc.) afetas a questões pendentes de definição técnica, insusceptíveis de serem
indicadas em lei.
14
15
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 115.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 734.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
nesse sentido, no Brasil, interessa a distinção entre polícia geral e especial, porém,
de modo inverso ao que se passa na França. neste país, a fonte do poder de polícia geral
pode ser o regulamento (decreto); no Brasil, a fonte do poder de polícia, seja geral seja
especial, é sempre a lei.
no Brasil, o interesse na distinção dá-se por razão distinta; aliás, por razão inversa
ao que se passa na França. no Brasil, ainda que em caráter subsidiário e complementar
da lei, a polícia especial se utiliza com muito maior frequência dos regulamentos do
que o faz a polícia geral, exercida entre nós basicamente pelas Polícias militares. esta
última, a polícia geral, lida basicamente com conceitos jurídicos indeterminados —
tranquilidade, segurança e salubridade públicas —, insusceptíveis de serem tratados
ou especificados em regulamentos, devendo seus abusos serem identificados pelo uso
do princípio da proporcionalidade.
ou seja, em matéria de polícia geral, o instrumento básico para restringir a discricionariedade administrativa, evitando eventuais abusos, é o princípio da proporcionalidade; em matéria de polícia especial, o regulamento.
10.5.14 técnicas de ordenação
A Administração Pública tem-se utilizado de inúmeras técnicas ao longo da
história para ordenar as atividades privadas. de tão variadas, há quem postule a
impossibilidade de se desenvolver uma única teoria acerca desse importante aspecto
do estudo do poder de polícia.16
Quando nos referimos às técnicas de ordenação, buscamos identificar como
a Administração Pública interfere na esfera privada; em outras palavras, buscamos
identificar o tipo de obrigação imposta ao particular e como a Administração Pública
se comporta diante dessa obrigação.
A atividade de polícia interfere de diferentes formas na esfera dos direitos dos
particulares. em alguns casos, ela impõe aos particulares a obrigação de prestar informações; em outros, a obrigação de cumprir e de demonstrar o cumprimento de algumas
condições para exercício de atividades ou de direitos. em situações diversas, simplesmente fixa sanções para o não cumprimento de comportamentos impostos.
diante desse imenso rol, podemos dividir as técnicas de atuação do poder de
polícia em três grandes categorias: de informação, de condicionamento e sancionatória.
10.5.14.1 técnica de informação
As técnicas de informação são de utilização cada vez mais frequentes nas sociedades modernas. Com cada vez mais intensidade, o estado invade a liberdade dos
cidadãos e deles exige a prestação de informação sobre a própria existência das pessoas
físicas e jurídicas (a necessidade de registro civil e os registros em cartórios e em juntas
comerciais) e sobre atividades por elas desenvolvidas.
o dever de prestar informações ao estado sobre circunstâncias pessoais afeta
especialmente o âmbito fiscal, em que as declarações para o fisco sobre a situação patrimonial não podem ser sonegadas.
16
sAntAmAríA PAstor. Principios de derecho administrativo general.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
dentro da técnica de informação, insere-se igualmente o dever de comunicar
ao estado a ocorrência de determinados fatos, de que é exemplo o que se impõe aos
médicos de comunicar a ocorrência de certas doenças contagiosas, ou às companhias
de capital aberto de publicarem demonstrações contábeis.
de se observar que há limites para o exercício desta e de qualquer técnica para
o exercício do poder de polícia do estado, que deve observar o direito à privacidade e
o princípio básico da dignidade humana.
Trata-se de polêmica recorrente em nossa sociedade a definição dos limites entre
o dever de informar, de um lado, e o direito à privacidade, do outro, sobretudo quando
as informações fornecidas irão constar de bancos de dados acessíveis ao público em
geral. A resposta a essas indagações não foi adequadamente apresentada pelo direito.
estamos em processo de construção dessas respostas, que terão, de qualquer forma,
que considerar a melhor solução para a realização dos direitos fundamentais.
10.5.14.2 técnica de condicionamento
A segunda técnica de ordenação utilizada pelo estado impõe aos particulares o
cumprimento de uma série de exigências ou de requisitos legais a fim de que possam
exercer licitamente certas atividades. Cuida-se das técnicas de condicionamento.
Em alguns casos, o exercício de atividades profissionais requer a comprovação
de determinados requisitos (obtenção de diploma e registro em entidades responsáveis
pela fiscalização de determinadas profissões regulamentadas — OAB, CREA, CRM
etc.), que normalmente não dependem de qualquer juízo discricionário por parte da
entidade ou órgão público incumbido de comprovar a existência dos requisitos. no caso
do exercício da profissão de advogados, desde que obtenha o diploma de bacharel em
direito e seja aprovado nos exames da ordem, tem o advogado direito à sua inscrição
e de exercer licitamente a profissão.
dentro das técnicas de condicionamento, a mais importante corresponde às
autorizações fornecidas pelo poder público.
Incumbe à lei definir as atividades privadas potencialmente lesivas ao interesse
geral da sociedade. Identificadas essas atividades, a lei subordina o seu exercício à
prática de ato por meio do qual: 1. a Administração Pública verifica se determinado
indivíduo pode exercer referida atividade e o declara apto ou habilitado ao desempenho da atividade; ou 2. são estabelecidas condições específicas para que o exercício da
atividade não gere lesões aos interesses gerais da sociedade.
A autorização constitui ato de liberação. expedida a autorização, elimina-se o
obstáculo imposto ao exercício de um direito preexistente do particular. Haverá, portanto, sempre caráter declaratório na expedição da autorização que, uma vez emitida,
libera o particular para exercer o direito ou a atividade.
As autorizações alcançam praticamente todos os campos da convivência social.
Desde a possibilidade de edificar em propriedade privada, à realização de eventos desportistas em vias públicas, do funcionamento de instituições financeiras, à autorização
para conduzir veículo.
A expedição de autorizações constitui, como regra, atividade estatal vinculada
(exemplo: se o proprietário apresenta projeto para a obtenção de alvará para construir
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
que observe as especificações técnicas, ele tem direito subjetivo à obtenção da autorização
para construir). Haverá, no entanto, situações em que a lei pode estabelecer a necessidade de que, além da observância de determinados requisitos, ela seja considerada
conveniente pela Administração Pública. Como exemplo desta categoria de autorização
discricionária pode ser mencionada legislação adotada em alguns municípios que permite
o funcionamento de restaurantes em áreas residenciais.
Problema específico do regime jurídico desta técnica de condicionamento decorre
da fixação de número limitado ou previamente definido de autorizações a serem expedidas. se a expedição de uma autorização não constituir empecilho à expedição de tantas
outras quantas sejam solicitadas por novos interessados que demonstrem preencher os
requisitos legais, a questão da impessoalidade não se apresenta. em situações outras, em
que a lei fixa número máximo de autorizações, em que, portanto, o exercício do direito
por parte de uns impede o exercício do mesmo direito por outros, deve ser estabelecido,
como decorrência natural do princípio da impessoalidade, critério objetivo e isonômico
de seleção. não se está a exigir a adoção de procedimento licitatório complexo, mas de
procedimentos mínimos que assegurem a observância da publicidade e da isonomia.
se não for possível, em razão da natureza da atividade, a adoção de procedimentos que
por meio da utilização de critérios objetivos indiquem os beneficiários, é de se exigir ao
menos o sorteio entre os interessados. do contrário, a discricionariedade na expedição
de autorizações tornar-se-á fonte certa de arbítrio e de corrupção.
10.5.14.3 técnica sancionatória
Como terceira técnica de ordenação pelo Estado de atividades privadas, verifica-se
a imposição de sanções aos particulares que violem as regras necessárias ao desempenho
dessas atividades.
em inúmeras situações, e com o objetivo de dar efetividade às regras concernentes
à atividade de polícia, que impõem restrições, limitações, condições ou vedações ao
exercício de direitos ou de atividades, o estado vê-se obrigado a se utilizar da técnica
sancionatória como forma de ordenação de atividades.
A polícia de trânsito é bom exemplo dessa técnica. Para poder conduzir veículo
automotor, o particular é obrigado a obter a necessária carteira de habilitação. este
exemplo se insere no âmbito da técnica de condicionamento. o uso do veículo em
vias públicas deve ainda observar inúmeras regras ou, mais precisamente, inúmeras
proibições, tais como: de não ultrapassar pela faixa da direita, de não avançar sinal
vermelho, de não dirigir alcoolizado, de dar preferência ao pedestre na faixa etc. A técnica de que a Administração Pública se utiliza para dar efetividade a essas proibições
é, basicamente, a sancionatória.
Não se quer com isso afirmar que o poder de polícia seja eminentemente repressivo, ou que ele se vincula à prática de atos ilícitos. Ao contrário, a fixação de sanção de
natureza administrativa a ser aplicada ao infrator tem o objetivo de evitar que o ilícito se
verifique. Uma vez cometido, a aplicação da sanção resta, em algumas hipóteses, como
única solução ao poder público para fazer cumprir o preceito legal, o que interessa a
toda a sociedade.
o poder de polícia mantém natureza preventiva. não é, todavia, estranha à sua
natureza a imposição de sanção como técnica para ordenar a esfera de liberdade dos
particulares.
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Curso de direito AdministrAtivo
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nem toda sanção imposta pelo direito Administrativo, todavia, é decorrência
do poder de polícia. o seu âmbito de atuação corresponde à esfera de liberdade dos
particulares, de modo que não é correto identificar, por exemplo, a aplicação de sanções a servidores públicos que tenham violado deveres funcionais como manifestação
da polícia administrativa. ou seja, o poder de polícia pode utilizar-se da imposição de
sanção como técnica para ordenar atividades privadas, mas nem toda sanção aplicada
pela Administração Pública pode ser atribuída ao exercício do poder de polícia.
discordamos, nesse ponto, do entendimento de marçal Justen Filho. Admite o
autor que nem todo dever imposto pela Administração Pública é “manifestação necessária do poder de polícia, mas a apuração da ocorrência do ilícito e o sancionamento
daí derivado correspondem ao exercício da competência de polícia administrativa”.
o competente autor apresenta como exemplo do poder de polícia violação do dever
imposto a particular por meio de contrato administrativo (contrato de fornecimento),
em que a aplicação da respectiva sanção contratual “será uma manifestação da competência do poder de polícia”.17
Conforme examinamos no início do estudo acerca do poder de polícia, o seu campo
de atuação ultrapassa os limites da Administração Pública. Por meio dele, o estado
invade a esfera de atuação dos particulares, restringindo-lhes a esfera de liberdade.
outros poderes, como o hierárquico e o disciplinar, ao contrário, são poderes internos.
A Administração Pública pode deles se valer para impor obrigações e, eventualmente,
sancionar aqueles que por livre consentimento — decorrente de posse em cargo público
ou da assinatura de contrato administrativo ou de trabalho — concordaram em se
submeter a determinado regime jurídico.
o campo para o exercício do poder de polícia correspondente à esfera de liberdade
dos particulares. não se pode querer ampliar a esfera de atuação desse poder para
alcançar situações outras, que não se inserem em seu âmbito. As regras decorrentes do
poder de polícia emanam necessariamente da lei, e cabe a ela, e somente a ela, fixar a
sanção a ser aplicada.
Admitir que a sanção aplicada a uma empresa contratada pelo poder público
constitui manifestação do poder de polícia importa em permitir que o estado possa
invadir a liberdade dos particulares por meio de contrato, o que viola um dos pressupostos constitucionais para o exercício da atividade de polícia administrativa: a
existência de lei específica.
As sanções aplicadas às empresas contratadas pela Administração Pública que
violam cláusulas do contrato ou aos servidores públicos que descumprem seus deveres
funcionais são manifestações do poder disciplinar, e não do poder de polícia do estado.
do ponto de vista prático, todavia, o nomem iuris pouco afeta o regime jurídico
a ser observado. Qualquer que seja a natureza da sanção a ser aplicada pela Administração Pública, se de polícia ou disciplinar, pressupõe-se que tanto a conduta ilícita
quanto a sanção a ser aplicada tenham sido previstas em lei (reserva legal, tipicidade
e especificidade). Ademais, todos os consectários do devido processo legal devem ser
observados (contraditório, ampla defesa, proporcionalidade, direito a duplo grau etc.),
quer se trate de sanção a ser aplicada em decorrência do poder disciplinar, quer se trate
de sanção vinculada ao exercício da atividade de polícia administrativa.
17
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 397.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
Discordamos, nesse ponto, das afirmações que admitem a possibilidade de o
direito Administrativo sancionador adotar a chamada tipicidade aberta. À semelhança
do direito Penal, e da respectiva sanção penal, o direito Administrativo sancionador
pressupõe que lei tenha definido a conduta ilícita e que indique a sanção a ser aplicada.
o Direito Penal se distingue do Direito Administrativo sancionador basicamente
por dois aspectos: 1. a natureza da sanção, que no direito Administrativo não pode
importar em aplicação de pena restritiva de liberdade de locomoção (CF, art. 5º, LXi:
“ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada
de autoridade judiciária, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente
militar, definidos em lei”); e 2. a autoridade responsável pela aplicação, que no Direito
Penal é autoridade judicial, no direito Administrativo é autoridade administrativa.
os princípios básicos do Direito Penal (legalidade, anterioridade, tipicidade, culpabilidade, proporcionalidade, devido processo legal etc.) hão de ser observados pelo
direito Administrativo sancionador, assim como as excludentes de ilicitude.
A aplicação das sanções administrativas depende de previsão em lei específica.
não é possível, por exemplo, utilizar para sancionar conduta que importe em infração
de preceito vinculado à legislação ambiental sanção prevista na legislação de trânsito,
ou pertinente à vigilância sanitária, por exemplo.
A título meramente ilustrativo, podemos listar as sanções administrativas normalmente utilizadas pelas normas concernentes ao poder de polícia. são elas: advertência,
multa, interdição de estabelecimento, inabilitação para exercício de atividade, apreensão
ou destruição de mercadorias e perda de licença ou de autorização.
A aplicação das sanções administrativas faz surgir a discussão acerca de um dos
atributos do ato administrativo, a auto-executoriedade.
A Administração Pública não necessita da intervenção judicial para aplicar qualquer das sanções administrativas, inclusive a multa. em relação a esta última, todavia,
não havendo o pagamento voluntário, não pode a Administração Pública utilizar seus
instrumentos de coerção para transferir o valor do patrimônio do particular para o erário.
É necessário que a questão seja levada à apreciação judicial. se, por exemplo, a
vigilância sanitária verifica a necessidade de interditar estabelecimento, pode fazê-lo
por seus próprios meios, servindo-se, se necessário, da força física. no caso de ser aplicada multa, não atendido o prazo fixado para pagamento, esgota-se a possibilidade de
atuação da Administração Pública. Para poder penhorar o valor correspondente, faz-se
necessária a sua inscrição em dívida ativa e a execução deve ser feita por oficial de justiça
em cumprimento a ordem judicial.
resta discutir se a Administração Pública pode utilizar meios indiretos para
forçar o particular a pagar a multa. Pode a Administração Pública impedir o exercício
de algum direito (de que seria exemplo a transferência da propriedade de veículo) caso
o particular não pague a multa?
desde que esses meios indiretos de cobrança da multa estejam previstos em lei e
que observem regras de proporcionalidade e de razoabilidade, a resposta deve ser
afirmativa. Não é possível, por exemplo, para obrigar o músico a efetuar o pagamento
devido ao Conselho Regional de Músicos, impedir o exercício de sua profissão. Há, no
caso, evidente desproporção entre a medida indireta utilizada, que impede o exercício
de uma profissão, e o fim colimado, que corresponde à cobrança do valor devido.
sabemos que a cobrança judicial dos créditos gera para o estado elevado ônus,
situação, aliás, que afeta não apenas o estado, mas todos os que se veem obrigados a
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buscar ajuda do Poder Judiciário. impedir a Administração Pública de utilizar meios
indiretos para cobrar multas importa, em muitos casos, em abrir as portas para a impunidade, cuja maior vítima não é o estado, mas a própria sociedade.
A impossibilidade de abrir ou movimentar conta corrente bancária, de obter
passaporte, de emitir Cadastro de Pessoa Física (CPF), de transferir a propriedade de
veículo, de celebrar contrato com o poder público são alguns exemplos de medidas
indiretas que, desde que previstas em lei, podem ser utilizadas para obrigar os particulares a pagar multas ou de adimplirem outras obrigações impostas pelo estado no
exercício do poder de polícia.
10.5.15 obrigações positivas
o poder de polícia tem sido apresentado historicamente como a atividade do
estado cujo propósito consiste na imposição de limitações, condicionamentos, proibições. A ideia básica ligada ao poder de polícia reside no fato de impor abstenções
aos particulares. nesse sentido, a polícia administrativa tem sido apresentada como
atividade negativa do estado, dado que restringe a esfera de direitos e de liberdades
dos particulares.
marçal Justen Filho, em seu inovador Curso de Direito Administrativo, defende
tese contrária. Admite o competente autor que “a promoção da ordem pública envolve
também deveres de colaboração ativa. Para defender seu argumento, apresenta o autor o
exemplo das edificações: os edifícios públicos devem contemplar saídas de emergência,
edificadas segundo normas apropriadas”.
Não resta dúvida de que o exercício de alguns direitos fica condicionado pelo
poder de polícia do estado. os exemplos apresentados pelo professor Justen Filho devem
ser entendidos como condições ao exercício de atividades ou de direitos, e não como
a imposição de obrigação de fazer, pura e simplesmente. se alguém decide construir
prédio, somente poderá fazê-lo se forem observadas as normas técnicas de segurança.
se alguém decide comercializar alimentos, deve observar as normas sanitárias relativas
à conservação e à higiene dos produtos. As hipóteses mencionadas pelo autor como
obrigações de fazer constituem, com a devida vênia, condicionamentos impostos ao
exercício de direitos: o estado não obriga ninguém a construir saídas de emergência
ou a acondicionar adequadamente alimentos. Se alguém decide, todavia, edificar ou
comercializar alimentos, deve observar as limitações e condições impostas pelo poder
de polícia do estado para o exercício desses direitos ou dessas atividades.
A fim de examinar em que situações o poder de polícia pode impor aos particulares obrigações de fazer (positivas), devemos considerar a existência das três técnicas de
que o estado se vale para ordenar o exercício das atividades ou dos direitos privados,
conforme mencionadas no item anterior.
em relação à técnica de condicionamento e à sancionatória, o estado não impõe
obrigações positivas diretamente aos particulares, ou ao menos não o faz de modo
isolado. Os deveres básicos de limitação, condicionamento, vedação ou sanção, enfim,
a ordenação do exercício de direitos e de atividades imposta pelo poder de polícia do
estado por meio dessas duas técnicas tem como objetivo principal a imposição de obrigações de não fazer (exemplo: o indivíduo não pode exercer a atividade, salvo se obtiver
o registro junto ao órgão competente, ou se realizar determinada conduta vedada será
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
punido). somente em caráter acessório, e dentro do contexto de condicionar o exercício
de atividades, a polícia administrativa impõe obrigações positivas.
em relação à técnica de informação, por meio da qual o particular é obrigado a
fornecer ao estado informações básicas sobre ele próprio ou sobre atividade que desenvolva, o estado pode impor, de forma isolada ou como obrigação principal, o dever de
fazer: o indivíduo é obrigado a proceder ao seu registro junto aos órgãos de arrecadação
tributária, por exemplo.
vê-se que a ampliação da atuação do estado e o surgimento de novas técnicas
para ordenar as atividades privadas impõem a revisão da própria concepção do poder
de polícia, que deixa de ser atividade de caráter exclusivamente negativo e passa, em
algumas situações, a exigir dos particulares atuações positivas.
10.5.16 segurança e liberdade
o poder de polícia administrativa se manifesta em diversas áreas da atividade
privada. A rigor, nos dias atuais, é mais fácil apontar setores de atuação dos particulares afetados em alguma medida pela atividade de polícia administrativa do que áreas
privadas imunes a essa intervenção.
A crescente perda de liberdade dos cidadãos se apresenta quase de forma inexorável, como preço a ser pago pelos eventuais avanços advindos da modernidade. o
conflito entre liberdade e segurança está presente em cada movimento realizado nesta
“disputa” entre sociedade e estado.
A impossibilidade de definição do ponto de equilíbrio para esse jogo de força
tem-se revelado fonte constate de atritos e de controvérsias.
em nome da segurança, ampliam-se os instrumentos de intervenção do estado
e a atividade de polícia ganha terreno. não raramente observamos sociedades pretensamente evoluídas cometerem verdadeiras atrocidades aos direitos fundamentais em
nome da segurança da sociedade.
o estudo do poder de polícia administrativa não pode jamais perder a noção de
que o estado é mero instrumento para a realização das necessidades da população e dos
direitos fundamentais do cidadão. no momento em que esquecermos esse pressuposto,
teremos que desenvolver outra forma de organização social, porque a que adotamos,
baseada no princípio do estado democrático e social, terá fracassado.
10.6 Poder hierárquico
o estado brasileiro, nos termos do art. 1º da Constituição Federal, é organizado
como uma república Federativa “formada pela união indissolúvel dos estados, municípios e do distrito Federal”. Cada uma das esferas que compõe a nossa Federação
— federal, estadual, distrital e municipal — dispõe de autonomia de organização,
observados os parâmetros fixados pelo próprio texto constitucional de 1988.18
O poder de que dispõem as entidades políticas para definir a estrutura administrativa se denomina potestade organizatória.19
18
19
Eventuais conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as
respectivas entidades da Administração indireta, devem ser resolvidos na esfera judicial, sendo competente o
supremo tribunal Federal (CF, art. 101, i, “f”).
sAntAmAríA PAstor. Principios de derecho administrativo general, p. 440.
553
554
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o funcionamento racional de cada uma dessas estruturas pressupõe que sua
configuração interna esteja baseada em relações que assegurem coordenação entre as
diversas unidades que desenvolvem a atividade administrativa, bem como que estejam
presentes mecanismo de subordinação, a partir do princípio da hierarquia.
A necessidade de legitimação, decorrente do princípio democrático e do sufrágio universal, outorga às unidades administrativas encarregadas de exercer a função
de governo o poder de direção da estrutura administrativa. este poder de direção das
entidades políticas se manifesta pela capacidade de:
1. decidir sobre a criação de órgãos ou de entidades administrativas;
2. Planejar a atividade administrativa de toda a Administração Pública em sua
respectiva esfera de governo;
3. orientar as esferas administrativas inferiores, o que se faz por meio de atos
concretos ou normativos de caráter vinculante; e
4. Adotar medidas de sanção e de correção, na eventualidade de os agentes
subordinados não observarem as orientações superiores.
outra vertente a ser considerada diz respeito à realização do princípio democrático, que pressupõe a subordinação da Administração Pública às instâncias políticas.
nesse sentido, incumbe ao direito Administrativo disciplinar as relações entre as unidades administrativas superiores, a quem costumamos denominar governo, e todas as
demais unidades administrativas inferiores, que buscam neste sistema hierarquizado
a legitimidade democrática e o meio para atuar de modo harmônico.
Ao se organizar como sistema hierarquizado, torna-se possível distribuir a legitimidade democrática do governo a todas as esferas administrativas que compõem a
estrutura da Administração Pública, desde a esfera política mais elevada até aquelas
que desempenham atividades de mera execução administrativa.
daí porque tanto se discute a carência democrática ou a falta de legitimidade da
atuação das agências independentes, cujos dirigentes não são eleitos pela população
nem se encontram inseridos na rede de direção definida pela hierarquia. Em nome da
segurança jurídica que essas entidades pretensamente conferem a alguns segmentos da
sociedade regulados pelo Estado, verifica-se evidente perda de legitimidade política,
legitimidade que somente pode ser, em parte, compensada pelo exercício de atividade
técnica e pela estrita observância da legalidade. ou seja, a fonte da legitimidade das
agências autônomas deixa de ser a indicação dos seus dirigentes e passa a ser a própria
lei. Para maiores considerações sobre as agências, remetemos o leitor ao Capítulo 4.
o poder de direção é amplo. Por meio da direção, por exemplo, o chefe do executivo federal deve ser capaz de interferir nas atividades desempenhadas pelas entidades
integrantes da Administração indireta. Por meio de diferentes técnicas ou instrumentos
jurídicos, o chefe do Executivo deve ser capaz de definir toda a atividade da Administração
Pública direta e indireta, respeitados os limites constitucionais e legais.
A hierarquia deve ser vista como critério interno de organização.
A estrutura da Administração Pública se utiliza dos processos de desconcentração
e de descentralização como critérios organizacionais, e deve buscar no direito Administrativo o fundamento para a atuação racional dessas diversas unidades administrativas
de modo a assegurar eficiência na realização dos fins do Estado que correspondem, em
última instância, à efetividade dos direitos fundamentais.
A hierarquia desempenha papel fundamental no processo de organização da
Administração Pública. segundo Hely Lopes meirelles, “é a relação de subordinação
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
existente entre vários órgãos e agentes do executivo, com a distribuição de funções e a
gradação da autoridade de cada um”.20
eis o campo da hierarquia, ou da subordinação hierárquica: a relação entre órgãos ou
entre agentes públicos integrantes da estrutura de uma mesma pessoa jurídica.
o poder de direção é, portanto, mais amplo que o poder hierárquico e é exercido
em área distinta deste último. A hierarquia é exercida dentro de uma pessoa jurídica,
política ou administrativa. o poder de direção, ao contrário, confere ao chefe do executivo a potestade de organizar a Administração Pública utilizando-se das técnicas da
descentralização e da desconcentração administrativa.
utilizada a técnica da descentralização, não há que se falar em hierarquia, mas
em vinculação administrativa. A direção a ser exercida nestas relações, que alcançam e
vinculam as diversas entidades administrativas (que compõem a Administração Pública
indireta) à respectiva entidade política (união, estados, distrito Federal e municípios),
é feita mediante a possibilidade de nomeação e afastamento dos agentes incumbidos
da gestão das entidades administrativas.
na vinculação administrativa, o controle é político e mais limitado do que o
que se verifica no âmbito interno de uma entidade. Não é possível, por exemplo, aos
que exercem o poder de direção (no âmbito da entidade política) dar ordens ou rever
os atos praticados pelos gestores das entidades administrativas. Cabe a esses observar
as orientações emanadas da esfera política, e se não o fizerem, a responsabilidade deve
ser exclusivamente política: afastamento do cargo.
As relações hierarquizadas alcançam tão somente os órgãos integrantes da estrutura de uma mesma entidade (seja ela política ou administrativa), bem como os agentes
neles lotados. no exercício do poder hierárquico, os agentes lotados nas unidades superiores têm competência, em relação aos agentes lotados em unidades inferiores, para:
1. dar ordens;
2. rever atos;
3. Avocar atribuições;
4. delegar competência; e
5. Fiscalizar.
onde houver hierarquia, esses poderes estão presentes. É possível, todavia,
identificar o exercício de alguns desses poderes de forma isolada, como manifestação
autônoma ou isolada e sem qualquer vinculação com o poder hierárquico. isto se verifica, por exemplo, com o Tribunal de Contas da União, que exerce ampla “fiscalização
contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades
da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade e economicidade”
(CF, art. 70, caput). não obstante os órgãos e entidades não estejam subordinados aos
Tribunais de Contas, eles podem ser fiscalizados por estes a partir de amplo espectro
de instrumentos jurídicos conferidos pela Constituição Federal (art. 71).
Para maiores considerações acerca da delegação e da avocação, remetemos o leitor
ao Capítulo 5.
Como decorrência do poder de rever atos, é conferida ao superior hierárquico
a faculdade de revogar ou de anular os atos dos subordinados. ou seja, de ofício ou
mediante provocação, os agentes ou órgãos que exercem poder hierárquico podem
20
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 105.
555
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
556
proceder ao exame da conveniência e oportunidade do ato, nas hipóteses e condições
permitidas pela legislação, ou verificar a adequação do ato à ordem jurídica, procedendo
à sua anulação, independentemente da anuência do órgão ou agente subordinado.
A fiscalização corresponde ao acompanhamento constante dos atos e atividades
exercidos pelos órgãos e agentes da Administração Pública. o seu objetivo é o de permitir a identificação de atos ou atividades ilegítimas, com vista à sua revisão e punição
dos responsáveis.
o poder de dar ordens corresponde ao aspecto que mais se identifica com o exercício do poder hierárquico. Por meio de atos concretos ou normativos, são expedidas
determinações aos subordinados, cujo não cumprimento enseja o exercício do poder
disciplinar.
A íntima relação entre o poder hierárquico, por meio do qual são dadas ordens, e
o poder disciplinar, por meio do qual são punidas as ordens não cumpridas, tem gerado
alguma confusão conceitual, sendo comum autores identificarem o poder sancionador
como decorrência direta do poder hierárquico,21 e não como manifestação de poder
autônomo, o disciplinar.
o poder disciplinar, por meio do qual são aplicadas sanções aos servidores públicos e a outras pessoas sujeitas à Administração Pública, em algumas hipóteses, tem sua
origem no poder hierárquico. É o que se verifica com o dever funcional dos servidores
de cumprir ordens e de serem punidos pelo não cumprimento.
Há outros deveres funcionais que decorrem diretamente da lei e que não mantêm,
no entanto, qualquer relação com o poder hierárquico. o servidor que, por exemplo,
pratica ato de improbidade administrativa, nos termos do art. 132 da Lei nº 8.112/90,
deve responder a processo disciplinar e ser punido com pena de demissão. Verifica-se,
no caso, o exercício do poder disciplinar sem que se faça necessário qualquer manifestação do poder hierárquico.
Há situações excepcionais em que, não obstante o poder hierárquico esteja
presente, o dever de cumprir as ordens dadas é, se não afastado completamente, ao
menos mitigado.
Isso pode se verificar, por exemplo, nas seguintes situações:
- Lei tiver conferido competência exclusiva para a prática do ato ao órgão subordinado;
- tratar-se de atividade de consultoria jurídica ou técnica (na medida em que a
prática desses atos, que muitas vezes se traduzem na elaboração de pareceres,
depende do convencimento pessoal do agente que o pratica e pode ensejar
sua responsabilidade pessoal, em razão da própria natureza consultiva desses
órgãos, eles devem gozar de ampla autonomia de atuação, o que afasta ou
mitiga o dever de cumprir ordens); ou
- tratar-se de órgão incumbido de adotar decisões administrativas (exemplo: o
Conselho de Contribuintes da receita Federal se encontra subordinado administrativamente ao superintendente da Receita, mas este não pode definir como
as decisões do Conselho devem ser adotadas).
21
A ilustre autora maria sylvia Zanella di Pietro (Direito administrativo) adota a tese de que a aplicação de sanções
a servidores públicos é decorrência do poder hierárquico.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
Acerca do dever dos subordinados de cumprir as ordens que lhes são dadas,
independentemente de qualquer previsão legal, eles não podem ser compelidos a obedecer àquelas manifestamente ilegais. não obstante essa disposição seja desnecessária, a
Lei nº 8.112/90 o prevê expressamente.
A expressão manifestamente ilegal se trata de conceito jurídico indeterminado.
em situações concretas, e diante de todos os aspectos que envolvam o caso concreto, o
servidor pode identificar a ordem como manifestamente ilegal a partir dos critérios da
interpretação da legalidade, balizando sua interpretação pelo princípio da razoabilidade.
nesta hipótese, de concluir que se trata de ordem manifestamente ilegal, o servidor não
apenas pode descumprir a ordem, ele tem o dever de descumpri-la, e se decidir seguir a
ordem, deve ser responsabilizado, juntamente com o superior, pela prática do ato ilegal.
o poder hierárquico é exercido exclusivamente no âmbito das atividades administrativas do estado. isto importa em que, no exercício das atividades legislativas
e judiciais, não há que se falar em hierarquia. isto é, quando os Poderes Legislativo e
Judicial desempenham suas atividades fins, não se faz presente qualquer manifestação
do poder hierárquico. os mecanismos de revisão dos atos judiciais obedecem às regras
do direito processual civil e penal, e não ao direito Administrativo. não pode, por
exemplo, o Presidente do tribunal de Justiça determinar como o juiz substituto deve ou
não decidir seus processos, mas pode decidir se concede ou não a licença solicitada pelo
juiz ou quando este irá gozar suas férias. ou seja, no exercício de qualquer atividade
meio dos Poderes Legislativo e Judiciário, o poder hierárquico está presente.
10.7 Poder disciplinar
10.7.1 Aspectos gerais
o poder punitivo do estado se utiliza basicamente do direito Penal e do direito
Administrativo.
em dois aspectos básicos, conforme observado, o direito Administrativo se
distingue do direito Penal quanto à manifestação do poder punitivo do estado: 1. a
autoridade competente para aplicar as sanções, que no caso do direito Penal é autoridade judiciária e, no direito Administrativo, autoridade administrativa; e em razão da
natureza das penas, que no direito Administrativo não pode importar em restrição à
liberdade de locomoção das pessoas (CF, art. 5º, LXi).
no âmbito do direito Administrativo, o poder punitivo se manifesta por meio
do poder disciplinar e em algumas situações do poder de polícia. distinguem-se os
dois (o poder de polícia e o poder disciplinar), porque atuam em campos distintos.
o poder de polícia interfere na esfera privada; o poder disciplinar, na esfera pública. o
poder de polícia alcança os particulares, impondo-lhes restrições e condicionamentos
ao exercício de direitos e atividades privadas; o poder disciplinar alcança pessoas que
em razão de livre consentimento se sujeitam ao âmbito interno da Administração Pública e que com ela colaboram por meio da prestação de serviço, fornecimento de bens,
execução de obras etc.
A aplicação de multas de trânsito e a apreensão de madeira transportada ilegalmente constituem manifestações do poder de polícia, porque dizem respeito a hipóteses
em que a Administração Pública interfere em atividades exercidas pelos particulares.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
diversa é a situação daqueles afetados pelo poder disciplinar, que podem sofrer
punições em razão de infrações relacionadas com atividades exercidas no âmbito da
própria Administração Pública.
somente os servidores públicos e outras pessoas que colaborem com a Administração Pública, de que seria exemplo uma empresa contratada, sujeitam-se ao poder
disciplinar do estado.
Ao tomarem posse em cargos públicos ou firmarem contratos com a Administração Pública, os servidores e as empresas contratadas se sujeitam a determinados
regimes jurídicos que lhes impõem uma série de deveres e proibições. o poder disciplinar corresponde à atividade administrativa do estado por meio da qual são aplicadas
sanções àqueles que violem esses deveres ou que pratiquem ato vedado pela legislação
ou pelo contrato.
A fonte do poder disciplinar é a lei. Cabe a ela, e tão somente a ela, indicar as
sanções disciplinares a serem aplicadas. o contrato, quando utilizado, pode prever as
infrações a serem punidas, bem como estabelecer a relação entre o ilícito e a respectiva
sanção. em virtude da diversidade de condutas que podem resultar da execução dos
inúmeros contratos celebrados pela Administração Pública, seria impossível à lei
indicar quais se caracterizam como ilícitas. se cabe ao contrato indicar os deveres e as
proibições impostas às empresas e aos profissionais contratados, cabe igualmente ao
contrato estabelecer que a sua infração deva ser punida, apontando igualmente a pena
a ser aplicada, dentre aquelas previstas em lei.
o princípio do devido processo legal impõe a procedimentalização do exercício
do poder disciplinar. vale dizer, somente por meio do devido processo disciplinar é
legítimo ao poder público exercer os instrumentos do poder disciplinar.
Conforme observado, são dois os grandes campos de atuação do processo disciplinar: 1. o relativo aos servidores públicos; e 2. o relativo às empresas contratadas
pela Administração Pública.
examinaremos, em seguida, cada um desses processos disciplinares.
10.7.2 Processo disciplinar: servidores públicos
10.7.2.1 sanções disciplinares
Estudaremos o processo administrativo disciplinar a partir das regras definidas
pela Lei nº 8.112/90, que cuida dos servidores públicos federais. em razão da autonomia dos estados e municípios em matéria de pessoal, que se vinculam tão somente às
regras constitucionais, mas não às leis federais, não necessariamente o procedimento
aqui exposto é aplicável aos servidores estaduais e municipais. As leis estaduais e
municipais em muitas hipóteses seguem os parâmetros da legislação federal. não se
pode, todavia, estabelecer que as regras aqui expostas sejam aplicáveis aos servidores
estaduais ou municipais.
o ponto de partida para o estudo do processo disciplinar é o exame das sanções
disciplinares, indicadas no art. 127 da Lei nº 8.112/90. são elas: advertência, suspensão,
demissão, cassação e destituição.
A pena de advertência deve ser aplicada nos casos “de violação de proibição constante do art. 117, incisos i a viii e XiX, e de inobservância de dever funcional previsto
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade
mais grave”.
A suspensão, que não pode exceder o prazo de 90 dias, deve ser aplicada “em caso
de reincidência das faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições
que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão”.
A critério da Administração Pública, a pena de suspensão pode ser convertida em
multa, “na base de 50% (cinqüenta por cento) por dia de vencimento ou remuneração,
ficando o servidor obrigado a permanecer em serviço”.
A pena de demissão, nos termos do art. 132, será aplicada nos seguintes casos:
icrime contra a administração pública;
ii - abandono de cargo;
iii - inassiduidade habitual;
iv - improbidade administrativa;
v - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;
vi - insubordinação grave em serviço;
vii - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa
própria ou de outrem;
viii - aplicação irregular de dinheiros públicos;
iX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;
X - lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;
Xi - corrupção;
Xii - acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;
Xiii - transgressão dos incisos iX a Xvi do art. 117.
A pena de cassação é destinada a servidores inativos, o que compreende os
aposentados e os postos em disponibilidade. nos termos do art. 134, será cassada a
aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade,
falta punível com a demissão.
Finalmente, a pena de destituição de cargo em comissão exercido por servidor não
ocupante de cargo efetivo, nos termos do art. 135, será aplicada nos casos de infração
sujeita às penalidades de suspensão e de demissão. vale dizer, o servidor comissionado
sem vínculo efetivo não é suspenso nem demitido. Caso cometa infração punível com
qualquer dessas duas sanções, ele será destituído do cargo comissionado.
As penas mais graves são a demissão, a cassação e a destituição, que se diferenciam
apenas em razão da situação do servidor a ser punido. A pena de demissão é privativa do
servidor ocupante de cargo efetivo que esteja em atividade; a pena de cassação de aposentadoria
ou disponibilidade, do servidor inativo (aposentado ou em disponibilidade); e a pena de
destituição, do servidor comissionado sem vínculo efetivo com o serviço público.
se a pena de demissão, ou de destituição de cargo em comissão, tiver sido aplicada
por infringência do art. 117, incisos IX e XI, o ex-servidor ficará incompatibilizado para
nova investidura em cargo público federal, pelo prazo de cinco anos, e se o fundamento
tiver sido alguma das infrações previstas no art. 132, incisos i, iv, viii, X e Xi, o servidor
não poderá retornar ao serviço público federal a qualquer tempo, nos termos do art.
137, todos da Lei nº 8.112/90.
Não obstante seja comum a afirmação de que existe discricionariedade na aplicação das sanções disciplinares,22 a lei não necessariamente dá margem a essa afirmação. A
22
Hely Lopes Meirelles afirma que “outra característica própria do poder disciplinar é o seu discricionarismo,
no sentido de que não está vinculado a prévia definição da lei sobre a infração funcional e a respectiva sanção”
(Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 109).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Lei nº 8.112/90 indica as infrações a serem punidas com as penas de advertência (art. 129)
e de demissão (art. 132). Para as demais infrações, a pena a ser aplicada é a suspensão.
onde haverá discricionariedade na aplicação de sanções disciplinares?
o exercício do poder disciplinar em relação aos servidores públicos federais
se insere no âmbito das atividades vinculadas: verificado o cometimento de infração,
deve ser instaurado o devido processo disciplinar; comprovado por meio do processo
disciplinar o cometimento da infração, deve ser aplicada a sanção; sendo, ademais,
indicada a pena a ser aplicada em razão da infração praticada.
Verificado o abandono de cargo (art. 132, II), ou a prática de improbidade administrativa (art. 132, iv), haveria discricionariedade por parte da Administração Pública
para aplicar outra sanção que não a demissão, ou se o servidor já estiver aposentado,
a pena de cassação de aposentadoria, ou ainda, se se tratar de servidor comissionado,
a pena de destituição? Como falar então em discricionariedade?
A técnica legislativa utilizada pelo direito Administrativo para indicar a sanção a
ser aplicada se diferencia do direito Penal. em relação ao ilícito penal, para cada tipo, a
lei indica, no mesmo dispositivo legal, a correspondente pena. no direito Administrativo, ao contrário, são indicadas as proibições e os deveres, e, em dispositivos distintos,
é feita a indicação da sanção a ser aplicada em razão do cometimento da infração. não
obstante essa diferença de técnica de redação legislativa, não se pode falar nem em
tipificação aberta, nem em discricionariedade na aplicação das sanções administrativas.
o art. 128 da Lei nº 8.112/90, ao dispor que “na aplicação das penalidades serão
consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes
funcionais”, pode ser utilizada tão somente para a aplicação da pena de suspensão, que
nos termos da lei pode ser de até 90 dias. ou seja, as circunstâncias a serem consideradas na aplicação das sanções, conforme indicadas pelo art. 128 (gravidade da infração,
antecedentes, agravantes etc.), devem ser utilizadas para indicar se determinada infração
justifica a aplicação da pena de suspensão de um, de trinta ou de 90 dias. Não é possível
utilizar o disposto no art. 128 com o objetivo de fazer com que determinada conduta
prevista em lei como punível com demissão seja punida com suspensão.
o exame das sanções disciplinares é importante porque a escolha do procedimento disciplinar para a apuração e punição dos servidores será feita em função da
pena a ser utilizada:
- se se tratar de advertência ou suspensão de até 30 dias, pode ser utilizada
sindicância; e
- se a pena for superior a 30 dias de suspensão, demissão, destituição, ou cassação, deve ser utilizado o processo disciplinar.
10.7.2.2 Processo administrativo disciplinar
não obstante a falta de uniformidade da Lei nº 8.112/90, a expressão processo
administrativo disciplinar pode ser considerada gênero do qual existem duas espécies
básicas: a sindicância e o processo disciplinar. nos termos do art. 143, “a autoridade que
tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração
imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao
acusado ampla defesa”.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
A sindicância, nos termos do art. 145, é o procedimento indicado para a apuração
das infrações puníveis com sanções leves (advertência e suspensão de até 30 dias).
instaurada a sindicância, nos termos do mencionado art. 145, dela pode resultar:
i - arquivamento do processo;
ii - aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias;
iii - instauração de processo disciplinar.
A lei é extremamente lacônica no tratamento da sindicância, restringindo-se a fixar
que o seu prazo “não excederá 30 (trinta) dias, podendo ser prorrogado por igual período,
a critério da autoridade superior”. em razão do laconismo legal, a sindicância deve
observar os padrões do processo disciplinar quanto à apuração, defesa, julgamento etc.
o termo sindicância tem sido utilizado pela Administração Pública para designar não apenas um dos procedimentos disciplinares, mas também para procedimento
genérico indicado para a apuração de fatos ou circunstâncias.23 esta sindicância denominada inquisitorial objetiva tão somente apurar fatos, não sendo necessário assegurar
direito a contraditório ou a ampla defesa em razão de que dela não resulta a aplicação
de qualquer sanção. diversa é a situação da sindicância disciplinar, modalidade de processo disciplinar, da qual pode resultar a aplicação das sanções indicadas e que requer
a observância do direito ao contraditório e à ampla defesa.
tem sido praxe no serviço público a instauração de processo de sindicância para
a apuração de qualquer ilícito, inclusive daqueles puníveis com penas mais rigorosas.
se ao longo da sindicância for comprovado o cometimento da infração punível com
qualquer das sanções para as quais a lei requer a instauração do processo disciplinar,
a sindicância conclui pela instauração deste último (art. 145, iii). não obstante esta seja
a praxe, não há qualquer ilegalidade em que seja instaurado diretamente o processo
disciplinar para a apuração das infrações mais graves.
o processo disciplinar, nos termos do art. 146, deve ser instaurado “sempre que
o ilícito praticado pelo servidor ensejar a imposição de penalidade de suspensão por
mais de 30 (trinta) dias, de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade,
ou destituição de cargo em comissão”.
A aplicação das penas mais rigorosas pressupõe a instauração do processo disciplinar, conforme visto. esta regra encontra, no texto da própria Lei nº 8.112/90 algumas
poucas exceções. nos termos do art. 133, “detectada a qualquer tempo a acumulação
ilegal de cargos, empregos ou funções públicas, a autoridade a que se refere o art. 143
23
no sentido de que na sindicância não se faz necessário assegurar o direito ao contraditório e à ampla defesa, o
seguinte julgado do stJ:
“Processo civil – Administrativo – recurso ordinário em mandado de segurança – servidor público estadual
– impossibilidade de dilação probatória – sindicância – Procedimento sumário – Princípios constitucionais –
Ampla defesa – Contraditório – devido processo legal – incabimento.
1 - A prova, na via mandamental, deve vir pré-constituída, não podendo ocorrer a chamada dilação probatória,
já que o direito que se visa proteger deve ser líquido e certo e, de plano demonstrado.
2 - A sindicância é um procedimento preliminar sumário, instaurada com o fim único de investigação de irregularidades funcionais, que precede ao processo administrativo disciplinar, não se confundindo com este. sendo,
desse modo, prescindível, nesta fase, a observância dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal.
3 - Precedentes (roms nºs 2.530/Pi e 10.574/es).
4 - recurso conhecido, porém, desprovido.” (rms nº 12.680-ms, 5ª turma. rel. min. Jorge scartezzini. Julg.
23.4.2002. DJ, 05 ago. 2002)
561
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
562
notificará o servidor, por intermédio de sua chefia imediata, para apresentar opção no
prazo improrrogável de dez dias, contados da data da ciência e, na hipótese de omissão, adotará procedimento sumário para a sua apuração e regularização imediata, cujo
processo administrativo disciplinar se desenvolverá nas seguintes fases”. o procedimento
sumário indicado pelo art. 133 deve ser igualmente utilizado “na apuração de abandono
de cargo ou inassiduidade habitual”, conforme dispõe o art. 140.
A razão para adoção desse procedimento sumário reside no fato de que todas as
infrações indicadas (acumulação ilegal de cargos, inassiduidade habitual e abandono de
cargo) devem ser punidas com pena de demissão. isto importaria em que sua apuração
deveria ser feita por meio do devido processo disciplinar. ocorre que, não obstante
sejam infrações graves, puníveis com demissão, os fatos são de fácil comprovação. daí
por que a lei utiliza procedimento sumário, cujas etapas são indicadas pelos parágrafos
do mencionado art. 133.
À exceção desse procedimento sumário, não existe possibilidade de ser adotado
qualquer outro para a apuração de infrações funcionais.
É mencionado pela doutrina outro procedimento sumário denominado verdade
sabida. Por meio deste, se a infração punível com pena leve é cometida na presença da
autoridade competente para sua aplicação, não haveria necessidade de instauração de
processo formal, devendo a autoridade competente aplicar diretamente a sanção. esse
procedimento não pode ser utilizado por duas razões básicas: 1. não está previsto na
Lei nº 8.112/90; e 2. não havendo espaço para o exercício do direito do contraditório
e da ampla defesa, sua utilização é incompatível com a vigente Constituição de 1988.
no plano federal, existem, portanto, dois procedimentos disciplinares básicos
e um procedimento especial. são procedimentos administrativos disciplinares básicos: o
processo disciplinar e a sindicância; é especial o procedimento sumário mencionado no
art. 133 da Lei nº 8.112/90.
10.7.2.3 etapas do processo disciplinar
o processo disciplinar, nos termos do art. 151, se desenvolve nas seguintes fases:
i - instauração;
ii - inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório; e
iii - julgamento.
A instauração do processo disciplinar é feita por portaria por meio da qual a autoridade competente designa comissão “composta de três servidores estáveis designados
pela autoridade competente, observado o disposto no §3º do art. 143, que indicará,
dentre eles, o seu presidente, que deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou
de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado”. Com
a publicação da portaria, considera-se instaurado o processo disciplinar, cujo prazo
para a conclusão “não excederá 60 (sessenta) dias, contados da data de publicação do
ato que constituir a comissão, admitida a sua prorrogação por igual prazo, quando as
circunstâncias o exigirem”.24
24
A jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de não considerar ilegal a extrapolação do prazo previsto no
art. 152.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
não obstante a lei disponha que o processo disciplinar será conduzido pela comissão,
a esta incumbe tão somente a condução da segunda etapa do processo, o inquérito.
na fase do inquérito, a comissão promoverá a tomada de depoimentos, acareações, investigações e diligências cabíveis, objetivando a coleta de prova,25 recorrendo,
quando necessário, a técnicos e peritos, de modo a permitir a completa elucidação dos
fatos, sendo assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente
ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e
contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial. esta corresponde,
dentro do inquérito, à etapa de instrução do processo.
Tipificada a infração disciplinar, será formulada a indiciação do servidor, com
a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas. Inicia-se a etapa da
defesa. nela, o indiciado será citado por mandado expedido pelo presidente da comissão
para apresentar defesa escrita, no prazo de 10 dias, assegurando-se-lhe vista do processo
na repartição. Havendo dois ou mais indiciados, o prazo será comum e de 20 dias.
de acordo com a súmula vinculante nº 5, aprovada pelo stF, “a falta de defesa
técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.
25
sobre o aproveitamento, em processo administrativo disciplinar, das informações produzidas na investigação
penal ou na instrução processual penal, citem-se os seguintes julgados:
- stF: “Prova emprestada. Penal. interceptação telefônica. escuta ambiental. Autorização judicial e produção
para fim de investigação criminal. Suspeita de delitos cometidos por autoridades e agentes públicos. Dados
obtidos em inquérito policial. uso em procedimento administrativo disciplinar, contra outros servidores, cujos
eventuais ilícitos administrativos teriam despontado à colheita dessa prova. Admissibilidade. Resposta afirmativa a questão de ordem. inteligência do art. 5º, inc. Xii, da CF, e do art. 1º da Lei federal nº 9.296/96. Precedente.
voto vencido. dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem
ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às
quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessa
prova” (inq 2.424-rJ, Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg. 26.11.2008. DJe, 26 mar. 2010).
- STF: “Prova emprestada. Penal. Interceptação telefônica. Documentos. Autorização judicial e produção para fim
de investigação criminal. suspeita de delitos cometidos por autoridades e agentes públicos. dados obtidos em
inquérito policial. uso em procedimento administrativo disciplinar, contra outros servidores, cujos eventuais ilícitos administrativos teriam despontado à colheita dessa prova. Admissibilidade. Resposta afirmativa a questão
de ordem. inteligência do art. 5º, inc. Xii, da CF, e do art. 1º da Lei federal nº 9.296/96. Precedentes. voto vencido.
dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas, judicialmente autorizadas para produção de prova
em investigação criminal ou em instrução processual penal, bem como documentos colhidos na mesma investigação, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em
relação às quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita
dessas provas” (Pet 3.683-Qo/mG, Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg. 13.8.2008. DJe, 20 fev. 2009).
- stJ: “mandado de segurança. servidor público civil. Processo administrativo disciplinar. demissão. Comissão
disciplinar. impedimento. inocorrência. Cerceamento de defesa. Princípio do contraditório. violação. inocorrência. Prova emprestada. Legalidade. interceptação telefônica. Auto circunstanciado. degravação integral. desnecessidade. (...) iv A doutrina e a jurisprudência se posicionam de forma favorável à ‘prova emprestada’, não havendo
que suscitar qualquer nulidade, tendo em conta que foi respeitado o contraditório e a ampla defesa no âmbito do
processo administrativo disciplinar, cujo traslado da prova penal foi antecedido e devidamente autorizado pelo
Juízo Criminal. (Precedente do c. STF: Plenário, QO no Inq. 2275, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 26/9/2008; Precedentes desta e. Corte superior: ms 11.965/dF, 3ª seção, rel. min. Paulo medina, rel. p/Acórdão min. Arnaldo
esteves Lima, dJ de 18/10/2007; ms 9.212/dF, 3ª seção, rel. min. Gilson dipp, dJ de 1º/6/2005; ms 7.024/dF, 3ª
seção, rel. min. José Arnaldo da Fonseca, dJ de 4/6/2001). v - É desnecessária a transcrição integral dos diálogos
colhidos em interceptação telefônica, nos termos do art. 6º, § 2º, da Lei nº 9.296/96, que exige da autoridade policial
apenas a feitura de auto circunstanciado, com o resumo das operações realizadas. (Precedente do c. stF: Plenário,
HC 83.615/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 4/3/2005). VI - Demais disso, a fundamentação do julgamento final
do processo administrativo disciplinar não está limitada ao conteúdo das escutas telefônicas, vez que, por outros
meios probatórios, restaram sobejamente demonstradas as condutas ilícitas imputadas ao impetrante. segurança
denegada” (ms nº 13.501-dF, 3ª seção. rel. min. Felix Fischer. Julg. 10.12.2008. DJe, 9 fev. 2009).
563
564
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Apreciada a defesa, a comissão elaborará relatório minucioso, onde resumirá
as peças principais dos autos e mencionará as provas em que se baseou para formar a
sua convicção.
o relatório será sempre conclusivo quanto à inocência ou à responsabilidade do
servidor, e na hipótese de ser reconhecida a responsabilidade do servidor, a comissão
indicará o dispositivo legal ou regulamentar transgredido, bem como as circunstâncias
agravantes ou atenuantes.
elaborado o relatório, encerra-se o inquérito e a atuação da comissão, devendo
o processo disciplinar ser remetido à autoridade que determinou a sua instauração,
para julgamento.
A competência para julgamento é igualmente definida em razão da sanção a ser
aplicada.
O art. 141 define as seguintes regras de competência:
i - quando se tratar de demissão e cassação de aposentadoria ou disponibilidade de servidor, a pena será aplicada pelo Presidente da república, pelos
Presidentes das Casas do Poder Legislativo e dos tribunais Federais e pelo
Procurador-Geral da república, conforme o caso;
ii - quando se tratar de suspensão superior a 30 dias, pelas autoridades administrativas de hierarquia imediatamente inferior àquelas mencionadas no
art. 141, i;
iii - nos casos de advertência ou de suspensão de até 30 dias, pelo chefe da
repartição e outras autoridades na forma dos respectivos regimentos ou
regulamentos; e
iv - quando se tratar de destituição de cargo em comissão, pela autoridade que
houver feito a nomeação.
Aspecto controvertido do julgamento diz respeito à eventual vinculação da autoridade competente às conclusões do relatório elaborado pela comissão.
dispõe a lei (art. 168) que o “julgamento acatará o relatório da comissão, salvo
quando contrário às provas dos autos”.
Há, portanto, regra e exceção. A regra é o dever da autoridade de acatar as conclusões do relatório. A exceção, que pressupõe a devida motivação por parte da autoridade
competente para o julgamento, ocorre “quando o relatório da comissão contrariar as
provas dos autos”. nesta hipótese, “a autoridade julgadora poderá, motivadamente,
agravar a penalidade proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de responsabilidade”.
A ocorrência de prescrição pode ser verificada pela comissão processante ou
pela autoridade competente para o julgamento. Verificar-se a prescrição, nos termos
do art. 142:
i - em cinco anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
ii - em dois anos, quanto à suspensão;
iii - em 180 dias, quanto à advertência.
o prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido e
se as infrações disciplinares estiverem igualmente capituladas como crime, os prazos de
prescrição previstos na lei penal prevalecem sobre os prazos previstos na Lei nº 8.112/90.
encerrado o processo, ele poderá sofrer a qualquer tempo revisão, não sendo admitida (art. 176) a simples alegação de injustiça da penalidade como fundamento para a
revisão, “que requer elementos novos, ainda não apreciados no processo originário”.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
dispõe o art. 174 que “o processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo,
a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de
justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada”. A revisão
do processo, conforme indicado, somente pode ser utilizada para abrandar a situação
do servidor, nunca para agravar.
Caso seja identificada falha no processo e que possa resultar em agravamento da
situação do servidor, a única opção a ser utilizada pela Administração Pública é a anulação do processo disciplinar. nesta hipótese, deverão ser utilizados os procedimentos
previstos na Lei nº 9.784/99, que cuida do processo administrativo.
10.7.3 Processo disciplinar: empresas contratadas pela Administração
Pública
o poder disciplinar alcança não apenas os servidores públicos. são igualmente
afetadas pelas sanções disciplinares as empresas que celebram contratos com a Administração Pública.
O poder disciplinar aplicável às empresas e profissionais contratados pela Administração Pública se manifesta de forma diversa do que se verifica relativamente aos
servidores públicos. estes se sujeitam ao regime jurídico legal. vale dizer, ao tomar posse
em cargos públicos, seus deveres, obrigações e vedações estão definidos na própria lei.
eis a razão pela qual as infrações disciplinares estão igualmente previstas em lei, a qual
indica as respectivas sanções.
No caso das empresas e profissionais contratados, não obstante devam observar o disposto na Lei nº 8.666/93 e eventual legislação especial, o regime jurídico que
os vincula com a Administração Pública é contratual. Isto importa em afirmar que os
deveres, obrigações e vedações impostos a essas empresas e profissionais decorrem do
contrato, e não diretamente da lei. não obstante, o contrato deve observar as regras
previstas na legislação pertinente, inclusive no que diz respeito à indicação das sanções
passíveis de aplicação.
nos termos do art. 87 da Lei nº 8.666/93, somente podem ser aplicadas às empresas
e profissionais contratados pelo poder público as seguintes sanções:
i - advertência;
ii - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
iii - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
iv - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração
Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até
que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou
a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção
aplicada com base no inciso anterior.
Chama a atenção a absoluta falta de precisão da legislação na indicação das
condutas que podem ser enquadradas como ilícitos puníveis e a sua vinculação com
alguma das sanções previstas.
esse laconismo obriga os administradores a redigirem os instrumentos contratuais
de modo a suprir a falta de previsão legal. devem os contratos indicar, a partir do princípio
565
566
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
da proporcionalidade as infrações puníveis com advertência, multa, suspensão temporária
ou declaração de inidoneidade.
Cabe ao contrato indicar as infrações leves a serem punidas com a pena de advertência, e que na reincidência no cometimento dessas infrações ela será punida com multa.
A aplicação da pena de multa pode resultar do descumprimento de obrigações
contratuais (art. 87, II) que não justifiquem a rescisão do contrato, bem como do “atraso
injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma
prevista no instrumento convocatório ou no contrato” (art. 86).
A aplicação da multa moratória de que trata o art. 86 não impede que a Administração rescinda unilateralmente o contrato e que aplique as outras sanções previstas
nesta lei.
A fim de exigir o pagamento da multa, a Administração Pública poderá promover
o seu desconto da garantia do contratado, e se a multa for de valor superior ao valor da
garantia prestada, além da perda desta, “responderá o contratado pela sua diferença, a
qual será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou
ainda, quando for o caso, cobrada judicialmente”.
A suspensão temporária deve ser reservada para violações ao contrato que, em
razão de sua gravidade, resultem na rescisão do contrato, e a declaração de inidoneidade
para hipóteses de fraude ou de prática de outros atos ilegais, de que seria exemplo a
apresentação de documentos falsos.
relativamente, ao procedimento a ser observado, a Lei nº 8.666/93 se restringe a
indicar que deve ser “facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo processo,
no prazo de 5 (cinco) dias úteis”. Para suprir lacunas no processo disciplinar aplicável
às empresas e profissionais contratados, deve ser utilizado o disposto na Lei nº 9.784/99,
que trata do processo administrativo.
Para maiores considerações acerca do processo disciplinar relativo às empresas
contratadas pela Administração Pública, remetemos o leitor ao Capítulo 6, que trata
dos contratos administrativos.
10.8 Poder regulamentar
A técnica de separação de poderes adotada pela Constituição Federal de 1988
não confere aos Poderes Judiciário, executivo e Legislativo exclusividade nas funções
de julgar, administrar e legislar. É comum o texto constitucional utilizar técnicas por
meio das quais os órgãos integrantes das três funções desempenham tarefas que, em
sua natureza, são afetos a outro Poder. essa mitigação de funções ocorre, por exemplo,
quando o senado Federal julga o Presidente e o vice-Presidente da república nos crimes
de responsabilidade (CF, art. 52, i).
O mesmo se verifica com a função de normatizar as matérias de interesse do
estado (públicas) ou da sociedade (privadas). não obstante a primazia para disciplinar
todas as matérias de competência da União seja conferida ao Congresso nacional (CF, art. 48,
caput), o poder normativo não se esgota na elaboração de leis, nem está adstrito ao Poder
Legislativo.
o texto constitucional é rico em situações em que órgãos estranhos ao Poder
Legislativo exercem funções normativas (artigos 84, iv e vi, 87, parágrafo único, ii, que
tratam da competência do Presidente da república para editar decretos e dos ministros
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
de estado para expedir instruções; e art. 96, i, “a”, que confere competência aos tribunais
para aprovar seus regimentos internos).
o poder regulamentar constitui uma das manifestações do poder normativo
do estado. o fundamento constitucional para o exercício desse poder é o art. 84, iv.
trata-se da competência privativa dos chefes do executivo para expedir decretos que
definam a fiel execução da lei.
no exercício dessa potestade, o chefe do executivo indica, dentre as opções normativas permitidas pela lei, aquela a ser utilizada pela Administração Pública.
A Constituição Federal, em seu art. 84, iv, comete evidente equívoco terminológico
ao dispor que o Presidente expedirá decretos e regulamentos para a fiel execução da lei.
no exercício do poder regulamentar são expedidos regulamentos. o decreto é o instrumento formal utilizado pelo chefe do executivo. o regulamento, ao contrário, indica a
natureza do ato (geral e abstrato) por meio do qual é definida, em caráter normativo, a
solução a ser adotada pela Administração Pública na aplicação da lei.
o destinatário da regulamentação são os gestores públicos, encarregados de
aplicar as normas de Direito Administrativo. Identifica-se, assim, o âmbito ou o campo
de atuação do poder regulamentar: somente as normas cuja aplicação requeira a intervenção da Administração Pública são passíveis de regulamentação.
não cabe ao Presidente da república regulamentar leis cuja aplicação independa
da intervenção da função administrativa do estado. Assim, normas de direito Privado
ou mesmo de direito Público, cuja aplicação independa da intervenção da Administração Pública — no âmbito do direito Público, não cabe ao Presidente da república
regulamentar, por exemplo, leis penais, cuja aplicação requer a intervenção do estado,
mas não da Administração Pública —, não podem ser objeto de regulamentação.
o primeiro aspecto a ser observado para o exercício do poder regulamentar é
que se trate de matéria afeta ao direito Administrativo. o segundo aspecto diz respeito
ao fato de que o exercício do poder regulamentar depende do que dispuser a lei. vale
dizer, quando a lei tiver expressamente requerido a regulamentação, ela deve ser feita
pelo chefe do executivo, e, nessa hipótese, terá caráter vinculante para todos aqueles a
quem incumbe a aplicação da lei.
Se determinada lei requer a sua regulamentação e o chefe do Executivo define,
por meio de decreto, a solução a ser adotada pela Administração Pública, não é facultado a qualquer administrador público, ainda que não se encontre no âmbito do Poder
executivo, aplicar a lei adotando solução diversa daquela apontada pelo regulamento.
dúvida constante em nossa doutrina consiste em saber se o regime constitucional
vigente admite o chamado decreto-autônomo, aquele que, diversamente do decretoregulamentar, não objetiva disciplinar a aplicação de nenhuma lei em especial.
Hely Lopes meirelles admite o uso do decreto autônomo como manifestação
do poder regulamentar. Em sua definição, o ilustre autor afirma que “o poder regulamentar é faculdade de que dispõem os chefes do executivo de explicitar a lei para sua
correta execução, ou de expedir decretos autônomos sobre matéria de sua competência
ainda não disciplinada por lei”.26 em lado oposto, Celso Antônio Bandeira de mello
conceitua regulamento como “ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa
do Chefe do Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições
26
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 112.
567
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
568
uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da
Administração Pública”.27
vê-se que o tema não é de fácil solução. diante da divergência, seguimos, com
algumas reservas conceituais, a tese defendida pelo professor Hely Lopes meirelles.28
o poder regulamentar, conforme já observado, é uma das manifestações do poder
normativo do estado. A competência normativa da Administração Pública não se esgota,
todavia, no exercício do poder regulamentar. o próprio Presidente da república, bem
como outros órgãos ou entidades públicas podem exercer competência normativa
diversa do poder regulamentar, conforme defina a lei ou, em relação a matérias internas,
independentemente da existência de lei.
A competência normativa das agências reguladoras é exemplo do exercício do
poder normativo do estado não enquadrado no âmbito do poder regulamentar. A necessidade de regulação de determinadas matérias técnicas decorre do exercício da margem
de discricionariedade conferida pela lei a referidas entidades, que, por meio de resoluções, indicam a interpretação legal por elas considerada tecnicamente mais adequada.
o decreto-autônomo pode ser utilizado para cuidar de situações não previstas
em lei, de que seria exemplo a realização dos concursos públicos para provimento
dos cargos públicos. não existe no ordenamento jurídico federal texto normativo de
qualquer nível, legal ou infralegal, dispondo sobre a realização de concursos públicos.
A questão que se apresenta é a seguinte: poderia o Presidente da república, por meio
de decreto, disciplinar a realização desses certames? A resposta é afirmativa. Ao disciplinar a realização dos concursos públicos não é criada qualquer obrigação para os
particulares, nem importa, a edição do decreto, em aumento de despesa. Ademais, a
Constituição Federal não requer que esse tema seja tratado por lei. não existindo lei
a ser regulamentada, não poderíamos falar em poder regulamentar, mas em simples
exercício do poder normativo do Presidente para regular situação de interesse da
Administração Pública.
não se tratando de exercício do poder regulamentar, mas de manifestação decorrente do poder hierárquico, a regra adotada no decreto editado pelo chefe do executivo
não poderia ser imposta aos concursos realizados no âmbito dos Poderes Legislativo ou
Judiciário. É de se perguntar se haveria alguma ilegitimidade ou inconstitucionalidade
na edição desse decreto. Alguns poderiam afirmar que ocorreria violação do princípio
da legalidade. Esta afirmação não nos parece correta.
o princípio da legalidade está consagrado no art. 5º, ii, do texto constitucional.
Por meio dele é dito que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei. Ao ser disciplinado o concurso público, não é imposta qualquer obrigação aos particulares. se não há violação ao princípio da legalidade, qual
outro dispositivo ou princípio constitucional seria violado? Aparentemente nenhum.
27
28
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 311.
não negamos a importância da lei em nosso sistema normativo, que dispõe de primazia sobre o decreto. em
relação ao direito Administrativo, a lei é necessária para dispor sobre:
1. situações em que a intervenção da Administração Pública importe na criação de obrigação de fazer ou de não
fazer para particulares;
2. matéria para a qual a Constituição Federal tenha expressamente demandado lei; e
3. A criação de órgãos ou entidades públicas.
Para maiores informações sobre o princípio da legalidade, remetemos o leitor ao Capítulo 3.
CAPítuLo 10
Poderes AdministrAtivos
daí por que admitimos a possibilidade de ser ampliado o poder normativo do chefe
do executivo, que não se restringe ao exercício do poder regulamentar, e que encontra
limites definidos pela Constituição Federal.
Admitida a possibilidade de os concursos públicos serem regulamentados por
meio de decreto, poder-se-ia indagar se as licitações, que têm natureza semelhante à dos
concursos públicos, poderiam ser disciplinados por meio de decreto. diversamente dos
concursos públicos, as licitações não podem ser objeto de regulamentação por meio de
decreto, haja vista a Constituição Federal expressamente requerer que os contratos e as
licitações sejam disciplinados por meio de lei (artigos 22, XXvii, 37, XXi, e 173, §1º, iii).
em razão do exposto, admitimos a adoção em nosso regime jurídico do decretoautônomo, cuja origem é o poder normativo do estado, e não o poder regulamentar.
A demonstração de que o decreto-autônomo é compatível com nosso regime jurídico consta de modo expresso no texto constitucional que, em seu art. 84, vi, confere
competência ao Presidente da república para dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar
aumento de despesa nem criação de ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos.
o dispositivo constitucional acima mencionado cria excepcionalidade em nosso
sistema normativo. A dificuldade não reside na possibilidade de ser editado decretoautônomo, mas em admitir que decreto possa revogar lei: para criar cargo, emprego ou
função, é necessária a aprovação de lei (CF, art. 48, X); para extinguir cargo ou função,
quando vagos, basta a edição de decreto (CF, art. 84, vi, “b”).
observados os limites constitucionais, especialmente o princípio da legalidade,
os órgãos, entidades e autoridades públicas podem, em seus respectivos campos de
atuação, exercer poder normativo por meio de decretos, instruções, portarias ou resoluções para disciplinar aspectos de suas atuações internas, podendo, inclusive, invadir
a esfera privada (atuação externa), desde que essa invasão não importe na imposição
de obrigações aos particulares e não discipline matéria reservada pela Constituição
Federal para a lei.29
29
nos seguintes julgados, o supremo tribunal Federal apontou inconstitucionalidade na edição de decreto autônomo e na edição de lei que atribuiu a decreto autônomo matérias reservadas à lei:
“ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. medida liminar. decreto 1.719/95. telecomunicações: concessão
ou permissão para a exploração. decreto autônomo: possibilidade de controle concentrado. ofensa ao artigo
84-iv da CF/88. Liminar deferida. A ponderabilidade da tese do requerente é segura. decretos existem para
assegurar a fiel execução das leis (artigo 84-IV da CF/88). A Emenda Constitucional nº 8, de 1995 — que alterou
o inciso Xi e alínea a do inciso Xii do artigo 21 da CF — é expressa ao dizer que compete à união explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei.
não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada
em lei formal. o decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde
a Constituição a exige. A Lei 9.295/96 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto.
Pela ótica da maioria, concorre, por igual, o requisito do perigo na demora. medida liminar deferida.” (Adi-mC
nº 1.435-dF, Pleno. rel. min. Francisco rezek. Julg. 7.11.1996. DJ, 06 ago. 1999).
“ementa: 1. Ação direta de inconstitucionalidade. Condição. objeto. decreto que cria cargos públicos remunerados e estabelece as respectivas denominações, competências e remunerações. execução de lei inconstitucional.
Caráter residual de decreto autônomo. Possibilidade jurídica do pedido. Precedentes. É admissível controle
concentrado de constitucionalidade de decreto que, dando execução a lei inconstitucional, crie cargos públicos
remunerados e estabeleça as respectivas denominações, competências, atribuições e remunerações. 2. inconstitucionalidade. Ação direta. Art. 5º da Lei nº 1.124/2000, do estado do tocantins. Administração pública. Criação
de cargos e funções. Fixação de atribuições e remuneração dos servidores. efeitos jurídicos delegados a decretos
do Chefe do executivo. Aumento de despesas. inadmissibilidade. necessidade de lei em sentido formal, de iniciativa privativa daquele. ofensa aos arts. 61, §1º, inc. ii, ‘a’, e 84, inc. vi, ‘a’, da CF. Precedentes. Ações julgadas
procedentes. são inconstitucionais a lei que autorize o Chefe do Poder executivo a dispor, mediante decreto,
sobre criação de cargos públicos remunerados, bem como os decretos que lhe dêem execução.” (Adi nº 3.232-to,
Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg. 14.8.2008. DJ, 03 out. 2008)
569
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo
nA ordem eConômiCA
11.1 serviços públicos e o estado
11.1.1 surgimento da atividade prestacional do estado
nas monarquias absolutistas, as funções do estado se reduziam a um rol de atividades eminentemente coativas, de limitação das liberdades dos particulares. nesse
contexto, o estado surgiu e se organizou tendo em vista basicamente a realização da
função de polícia administrativa.
Ao longo do século Xvii, com o surgimento das concepções mercantilistas, os
estados passaram a desenvolver, ainda que em caráter bastante rudimentar e assistemático, políticas de incentivo às atividades empresariais, função que bem mais tarde
seria denominada de fomento. não se incluía no rol das atividades estatais a prestação
de serviços públicos, ao menos não como hoje a conhecemos.
Até o advento do estado democrático de direito, as atividades enquadradas na
concepção genérica de serviço público eram basicamente de justiça, de defesa territorial
e de relações exteriores, cujo exercício estava mais voltado à manutenção dos sistemas
absolutistas de poder do que em proporcionar utilidades ou benefícios à sociedade.
nesse período, a atividade dos juízes, por exemplo, era tida como instrumento de
repressão e de dominação exercida pelo estado sobre a população, e não como o instrumento estatal de interesse da coletividade voltado para solução de conflitos e para
a aplicação do direito.
Somente com as revoluções liberais ocorridas a partir do final do século XVIII,
os estados passaram a desenvolver, de forma organizada, um terceiro grupo de atividades, voltadas ao atendimento das necessidades da população e que iriam constituir
os serviços públicos.
11.1.2 desenvolvimento das atividades prestacionais
As atividades prestacionais desenvolvidas pelo estado até o início do século
XiX estavam voltadas ao público em geral (serviços uti universi: polícia, forças armadas, justiça, relações exteriores), e não à satisfação de necessidades que pudessem ser
572
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
atribuídas a indivíduos determinados e suscetíveis de divisão e mensuração na sua
utilização (serviços uti singuli).
Com a implantação dos ideais revolucionários, os estados assumiram atividades
assistenciais, especialmente nas áreas da saúde e da educação. diversamente do que se
verificava anteriormente, as novas atividades prestacionais passaram a ser exercidas de
modo sistemático e com o propósito de atender às necessidades de pessoas determinadas, o que atualmente se denomina de serviços uti singuli. Para a prestação desses novos
serviços foi necessário criar nova estrutura para a Administração Pública, daí por que
esse momento histórico é considerado extremamente rico e assume grande importância
para a formação do Estado moderno e definição do Direito Administrativo.
A perda de importância da igreja no contexto político e social vigente e as revoluções liberais, que em nome do ideal revolucionário propugnavam pela universalização
do ensino público como instrumento de igualdade social, podem ser consideradas as
razões que levaram os estados a assumir essas atividades.
A falta de experiência dos estados na prestação desses serviços (educação e saúde),
que denominaremos de serviços sociais, aliada à impossibilidade de a iniciativa privada assumi-los de modo a atender à demanda de toda sociedade talvez explique as
dificuldades ainda hoje existentes na qualificação dessas atividades (serviços públicos,
serviços de utilidade pública, serviços não essenciais do estado, serviços virtuais). Fato
é que os estados, que jamais se atribuíram a titularidade ou a exclusividade na prestação desses serviços, tiveram de assumi-los, sem, no entanto, excluir a possibilidade
de a iniciativa privada também explorá-los como atividades privadas. não obstante as
dificuldades jurídicas existentes na qualificação dessas atividades, a sua assunção pelo
estado representou a primeira etapa do processo de modificação na concepção sobre
as funções do estado que, além das atividades de polícia, foi igualmente chamado a
desenvolver atividades positivas, de fornecimento de utilidades com vista à satisfação
das necessidades da população.
A segunda etapa na construção do estado “prestacional” ocorreu quando se
constatou que seria impossível aos particulares construírem e manterem os sistemas
de infraestrutura (estradas, pontes, ferrovias, instalações para o fornecimento de água,
de energia elétrica) necessários ao desenvolvimento da sociedade. Atribui-se, então,
ao estado o encargo de construir esse sistema de infraestrutura e, consequentemente,
a incumbência de assegurar o bom funcionamento dessa estrutura pela prestação de
serviços públicos de conservação e manutenção a ela relacionados.
Aliás, em 1775, Adam smith, em sua obra An Inquiry into the Nature and Causes
of the Wealth of Nations, já advertia sobre a necessidade de os estados manterem estabelecimentos e obras públicas que, não obstante sua utilidade pública, não poderiam
ser construídos ou mantidos por particulares.
os conceitos de obra pública e de serviço público, não obstante estejam intimamente
ligados, não se confundem, conforme se depreende da sempre abalizada lição de Celso
Antônio Bandeira de mello:
a) a obra é, em si mesma, um produto estático; o serviço é uma atividade, algo dinâmico;
b) a obra é uma coisa: o produto cristalizado de uma operação humana; o serviço é a
própria operação ensejadora do desfrute;
c) a fruição da obra, uma vez realizada, independe de uma prestação, é captada diretamente, salvo quando é apenas o suporte material para a prestação de um serviço; a fruição
do serviço é a fruição da própria prestação; assim, depende sempre integralmente dela;
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
d) a obra, para ser realizada, não presume a prévia existência de um serviço; o serviço
público, normalmente, para ser prestado, pressupõe uma obra que lhe constitui o suporte
material.1
A construção pelo estado das redes de infraestrutura e a necessidade da prestação dos serviços a ela inerentes importaram em significativo avanço na concepção de
serviço público e na própria construção do estado social.
Até então, a relação entre o incipiente direito Administrativo e o setor privado
estava relacionada à ideia absenteísta de que quanto menor a intervenção do estado,
maior a liberdade para o setor privado.
Com a necessidade de o estado assumir novas atividades que não importavam
apenas em criar vedações ou limitações para a sociedade, mas que significavam benefícios ou utilidades postas à disposição da população, abriam-se as portas para o estado
expandir suas atividades prestacionais.
Os esforços doutrinários para estudar esse novo fenômeno e para definir juridicamente essa gama de atividades assumidas pelo estado resultaram, na França, na
elaboração da chamada escola do serviço público, cujos maiores representantes foram
Léon duguit e Gaston Jèze.
A concepção elaborada por esta escola buscava eliminar a noção de soberania
como o ponto central da teoria do estado, para substituí-la pela ideia de serviço público:
o aspecto que mais caracterizaria o estado não seria sua soberania, mas a capacidade de
prestar serviços públicos com base em regime jurídico exorbitante do direito Privado.
esta escola entrou em crise quando não foi capaz de incorporar em seus fundamentos as atividades empresariais que viriam a ser assumidas pelo estado. ela representou, no entanto, substancial progresso na construção da teoria Geral do direito
Administrativo moderno.
11.2 serviço público e outras atividades estatais
As atividades desenvolvidas pelo estado, sem qualquer pretensão exaustiva,
podem ser divididas em três grandes grupos: de polícia, prestacional e de fomento.
não se confunde a atividade de polícia com a prestacional. A primeira se caracteriza
por interferir na esfera privada por meio da imposição de limitações ou de restrições
ao exercício das liberdades dos particulares. A atividade prestacional do estado, ao
contrário, desempenha função oposta. ela cria utilidades e as põe à disposição da sociedade. nesse sentido, a atividade de polícia tem sido considerada, portanto, negativa; a
prestacional, positiva. Quando o estado abre um posto de saúde, ou uma escola, não
está restringindo qualquer direito ou impondo obrigação aos particulares. trata-se, ao
contrário, de utilidades postas à disposição da sociedade com vista a satisfazer as necessidades da população. Diversa é a situação da atividade de polícia. Aqui, o Estado fixa
requisitos para particular poder, por exemplo, explorar determinada atividade privada.
Ademais, as atividades definidas como serviço público se submetem a regime jurídico
rígido. em razão de se tratar de atividades públicas, os particulares somente podem
explorá-las por meio de delegação do estado, caso essa delegação seja admitida e nos
1
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 631.
573
574
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
estritos limites da delegação. ou seja, a qualificação de determinada atividade como serviço
público importa, em princípio, na exclusão de sua titularidade do âmbito dos particulares e a sua
exploração por estes passa a depender do consentimento do Estado. nessas circunstâncias, ainda
que exploradas por particulares sob regime de delegação, as atividades qualificadas
como serviço público se sujeitam a regime jurídico rígido, que define precisamente a
forma como devem ser exploradas (quem pode explorar, onde será feita a exploração,
em que circunstâncias, sob que limites de produção etc.), não se restringindo o estado
a estabelecer algumas vedações, limitações ou condicionamentos ao seu exercício —
técnicas utilizadas pela atividade de polícia administrativa.
diversa é a situação das atividades objeto do poder de polícia do Estado. trata-se
de atividades privadas e que, não obstante sofram intervenção do estado, continuam
privadas. esta conclusão resulta em um nível de intervenção pública menor ou menos
invasiva do que a verificada na exploração das atividades qualificadas como serviço
público.
deve ser observado, todavia, que se torna cada vez mais difícil estabelecer com
nitidez a distinção entre atividades públicas delegadas e atividades privadas reguladas. essa
dificuldade se torna evidente na exploração dos serviços sociais. A prestação dos serviços
de saúde é atividade pública ou privada? Quando um particular explora essa atividade,
ele presta serviços públicos? As respostas a essas e a outras perguntas buscaremos responder adiante. no momento, interessa destacar a crescente utilização pelo estado dos
instrumentos privados para disciplinar a gestão das atividades públicas, bem como, de
modo inverso, a maior intervenção do estado nas atividades privadas.
Esse processo verificado com cada vez maior intensidade nas sociedades modernas
faz com que a clássica dicotomia público-privado utilizada pelos instrumentos tradicionais
do direito Administrativo não seja mais capaz de responder satisfatoriamente a uma
série de perguntas sobre os limites da atividade prestacional do estado.
do ponto de vista tradicional, todavia, quando se compara a atividade de polícia
com a prestação de serviços públicos, verifica-se que apresentam naturezas opostas.
Essa evidente distinção não se verifica quando se compara a prestação de serviços
com as atividades de fomento. tratam-se estas de atividades positivas, no sentido de que,
ao exercê-las, o estado não impõe qualquer restrição ou limitação ao exercício de atividades ou direitos dos particulares, mas cria utilidades ou benefícios. não obstante essa
semelhança, a prestação de serviços públicos e a atividade de fomento não se confundem.
A ideia básica de fomento pressupõe a livre iniciativa e a livre concorrência. Por
meio da atividade de fomento, o Estado identifica no âmbito privado as atividades
privadas cuja exploração possa gerar maiores benefícios para a coletividade e nelas
interfere com o propósito de incentivar ou de promover o seu incremento por meio
da utilização de um conjunto de técnicas jurídicas próprias, com vista à realização de
interesses de toda a sociedade.
na prestação de serviços públicos, o estado, direta ou indiretamente, põe utilidades à disposição da sociedade, ao passo que no fomento, o estado estimula os
agentes privados a desenvolver atividades privadas cujos benefícios possam interessar
à população. A concessão de incentivos fiscais ou de benefícios creditícios, por exemplo, não
poderiam ser enquadrados como serviços públicos, posto que não se trata de utilidade
posta à disposição da sociedade, mas se enquadra como técnica de promoção das atividades privadas inserida no rol das atividades de fomento.
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
11.3 Formas de intervenção do estado na economia
Antes de avançarmos no estudo relativo à separação das atividades em públicas
e privadas, devemos identificar os meios admitidos pela Constituição Federal para o
estado intervir na esfera privada.
As atividades privadas, conforme definido pelo modelo constitucional adotado
pelo texto de 1988, observam as regras do mercado, a partir dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. não obstante a liberdade de iniciativa e de exploração
outorgadas pelo texto constitucional ao mercado, são admitidas duas modalidades
básicas de interferência estatal: 1. direta; e 2. indireta.
1. Intervenção direta do estado na ordem econômica – art. 173: “ressalvados os
casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica
pelo estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
2. Intervenção indireta do estado na ordem econômica – art. 174: “Como agente
normativo e regulador da atividade econômica, o estado exercerá, na forma
da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
relativamente à prestação dos serviços públicos, o tema é tratado pelo art. 175:
“incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
A intervenção direta do estado na ordem econômica ocorre por meio da criação
de empresas públicas e de sociedades de economia mista, nos termos definidos pelo
art. 173 da Constituição. Conforme examinado no Capítulo 4, a intervenção estatal
direta somente pode ocorrer em caráter excepcional (quando necessária aos imperativos
da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo), e em situação de subsidiariedade
à iniciativa privada.
Categoria especial de intervenção direta do Estado na economia se verifica quando
a união é obrigada, em razão de disposição constitucional expressa, a explorar em regime
de monopólio as atividades indicadas no art. 177. são elas:
I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;
II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
iii - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades
previstas nos incisos anteriores;
iv - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos
de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo
bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
v - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja
produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão,
conforme as alíneas b e c do inciso XXiii do caput do art. 21 desta Constituição Federal.
(Redação dada pela Emenda Constitucional n. 49, de 2006)
A exploração das atividades em regime de monopólio estatal, não obstante não as
transforme em serviços públicos, não necessariamente a sujeita ao regime jurídico das
empresas privadas. Quando o estado intervém diretamente na economia por meio de
empresas públicas ou sociedades de economia mista, o regime jurídico, conforme dispõe
575
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
576
o art. 173, §1º, da Constituição Federal, é o aplicável às empresas privadas,2 ressalvadas
as situações em que, por força de disposição constitucional, seja determinada a observância de normas públicas. A sujeição do estado ao direito Privado nessas hipóteses
objetiva preservar a paridade entre as empresas estatais e as empresas privadas que irão
atuar em regime de concorrência, daí a vedação imposta pelo art. 173, §2º: “As empresas
2
o supremo tribunal Federal reconhece que o tratamento jurídico que se deve dispensar às empresas estatais
prestadoras de serviço público é distinto daquele que se deve dispensar às estatais que exercem atividade econômica e atuam em regime de concorrência com a iniciativa privada. nesse sentido, os julgados que se seguem:
“Constitucional. tributário. empresa Brasileira de Correios e telégrafos: imunidade tributária recíproca: C.F.,
art. 150, vi, a. empresa pública que exerce atividade econômica e empresa pública prestadora de serviço público:
distinção. i. - As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A
empresa Brasileira de Correios e telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do
estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art. 150, vi, a. ii. - r.e. conhecido
e provido”. (re nº 354.897-rs, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg. 17.8.2004. DJ, 03 set. 2004, grifos nossos)
“Constitucional. Advogados. Advogado-empregado. empresas públicas e sociedades de economia mista. medida
Provisória 1.522-2, de 1996, artigo 3º. Lei 8.906/94, arts. 18 a 21. C.F., art. 173, §1º. i - As empresas públicas, as sociedades
de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica em sentido estrito, sem monopólio, estão sujeitas ao
regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. C.F., art. 173, §1º. ii - suspensão parcial da eficácia das expressões ‘às empresas públicas e às sociedades de economia mista’, sem redução
do texto, mediante a aplicação da técnica da interpretação conforme: não aplicabilidade às empresas públicas e às
sociedades de economia mista que explorem atividade econômica, em sentido estrito, sem monopólio. iii - Cautelar deferida.” (Adi nº 1.552-mC/dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 17.4.1997. DJ, 17 abr. 1998, grifos nossos)
“desapropriação, por estado, de bem de sociedade de economia mista federal que explora serviço público
privativo da união. (...) 7. A norma do art. 173, par. 1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem
atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas
que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. 8. O dispositivo constitucional não alcança, com maior
razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado a União. 9. O artigo 173, par. 1., nada tem
a ver com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas públicas ou sociedades de economia mista; seu
endereço e outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exercem ou venham a exercer
atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade
econômica na mesma área ou em área semelhante. 10. o disposto no par. 2., do mesmo art. 173, completa o disposto
no par. 1., ao prescrever que ‘as empresas publicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de
privilégios fiscais não extensivos as do setor privado’. 11. Se o serviço de docas fosse confiado, por concessão, a
uma empresa privada, seus bens não poderiam ser desapropriados por estado sem autorização do Presidente
da republica, súmula 157 e decreto-Lei n. 856/69; não seria razoável que imóvel de sociedade de economia
mista federal, incumbida de executar serviço público da união, em regime de exclusividade, não merecesse tratamento legal semelhante. 12. não se questiona se o estado pode desapropriar bem de sociedade de economia
mista federal que não esteja afeto ao serviço. imóvel situado no cais do rio de Janeiro se presume integrado no
serviço portuário que, de resto, não e estático, e a serviço da sociedade, cuja duração e indeterminada, como o
próprio serviço de que esta investida. 13. re não conhecido. voto vencido.” (re nº 172.816-rJ, Pleno. rel. min.
Paulo Brossard. Julg. 9.2.1994. DJ, 13 maio 1994, grifos nossos)
“Constitucional. tributário. empresa Brasileira de Correios e telégrafos: imunidade tributária recíproca: C.F.,
art. 150, vi, a. empresa pública que exerce atividade econômica e empresa pública prestadora de serviço público:
distinção. i - As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A empresa Brasileira de Correios e telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória
e exclusiva do estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art. 150, vi, a.
ii - r.e. conhecido em parte e, nessa parte, provido.” (re nº 407.099-rs, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg.
22.6.2004. DJ, 06 ago. 2004)
“Ação direta de inconstitucionalidade. Alínea ‘d’ do inciso XXiii do artigo 62 da Constituição do estado de
minas Gerais. Aprovação do provimento, pelo executivo, dos cargos de presidente das entidades da Administração Pública indireta estadual pela Assembléia Legislativa. Alegação de violação do disposto no artigo 173,
da Constituição do Brasil. distinção entre empresas estatais prestadoras de serviço público e empresas estatais
que desenvolvem atividade econômica em sentido estrito. regime jurídico estrutural e regime jurídico funcional
das empresas estatais. inconstitucionalidade parcial. interpretação conforme à constituição. (...) 2. As sociedades
de economia mista e as empresas públicas que explorem atividade econômica em sentido estrito estão sujeitas,
nos termos do disposto no §1º do artigo 173 da Constituição do Brasil, ao regime jurídico próprio das empresas
privadas. 3. distinção entre empresas estatais que prestam serviço público e empresas estatais que empreendem
atividade econômica em sentido estrito. 4. o §1º do artigo 173 da Constituição do Brasil não se aplica às empresas públicas, sociedades de economia mista e entidades (estatais) que prestam serviço público.” (Adi nº 1.642-mG,
Pleno. rel. min. eros Grau. Julg. 3.4.2008. DJe, 19 set. 2008)
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais
não extensivos às do setor privado”.
em relação às atividades indicadas pelo mencionado art. 177, a serem exploradas
pelo estado em regime de monopólio, o regime jurídico a ser adotado depende do que dispuser
a lei, sendo lícita a adoção do direito Privado ou do direito Público.
A liberdade para a adoção do regime jurídico não é admitida para as outras
hipóteses de intervenção direta do estado na economia em razão da competição entre
o poder público e os particulares. não havendo competição na exploração das atividades empresariais sujeitas ao regime do monopólio, não se aplica a regra prevista no
mencionado art. 173, §1º.
A intervenção indireta do estado na ordem econômica compreende, conforme
definido pelo art. 174, “as funções de fiscalização, incentivo e planejamento”.
o planejamento da ordem econômica não pode ser considerado, em si, uma função
estatal. ou seja, não é por meio do planejamento que o estado intervém na ordem
econômica. o planejamento é inerente ao exercício de outra atividade, no sentido de
que não é possível ao estado utilizar qualquer instrumento de intervenção indireta ou
exercer qualquer atividade sem que tenha havido o necessário planejamento.
os instrumentos de intervenção indireta do estado na ordem econômica dividem-se
basicamente em duas atividades:
1. De ordenação ou de polícia, definida pelo texto constitucional como a função de
fiscalização; e
2. De fomento, referida pela Constituição como a função de incentivo.
Por meio da atividade de ordenação, o estado limita, condiciona, impõe vedações
ao exercício de atividade privada, conforme estudamos no capítulo anterior (Capítulo 10).
A atividade de fomento, por meio da qual o estado incentiva iniciativas privadas
na ordem econômica será examinada no próximo capítulo.
11.4 intervenção do estado na ordem econômica: os princípios do
estado subsidiário e do estado cooperativo
independentemente da técnica utilizada para intervir na ordem econômica, dois
aspectos chamam a atenção no que diz respeito à postura a ser adotada pelo estado no
processo de intervenção:
1. A subsidiariedade da intervenção estatal em relação aos agentes privados; e
2. A necessidade de cooperação entre os diversos agentes, públicos e privados,
que atuam na ordem econômica.
o conceito de Estado subsidiário desenvolvido ao longo deste trabalho impõe
como requisitos constitucionais à legitimidade da intervenção estatal a observância
dos seguintes parâmetros:
1. Que seja justificada a necessidade da intervenção; e
2. Que haja proporcionalidade na utilização dos instrumentos de intervenção.
Antes de intervir na sociedade, seja direta seja indiretamente, deve o estado
preliminarmente justificar a necessidade da intervenção. Não há dúvida de que toda e
qualquer atividade desenvolvida pelo estado importa em algum tipo de ônus para a
sociedade — ainda que se trate do ônus exclusivamente orçamentário de ter que manter
577
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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a estrutura estatal.3 nesse sentido, se os agentes privados forem capazes de se organizar
e de desenvolver adequadamente suas atividades sem qualquer interferência estatal
direta ou indireta, a regra deve ser a não intervenção estatal.
A dúvida residual consistiria em saber quando as atividades privadas se desenvolveriam adequadamente, ou regularmente. Que parâmetros devem ser utilizados
para aferir essa regularidade?
A resposta deve ser buscada na realização dos princípios da ordem econômica.
Se o mercado for capaz de se organizar e de tornar efetivos os princípios definidos pelo art. 170 da Constituição Federal,4 não se faz necessária a intervenção estatal.
3
4
nos seguintes julgamentos, o stF expôs seu entendimento acerca da composição dos preceitos constitucionais
que, de um lado, acolhem e incentivam a livre iniciativa, e, de outro lado, reclamam a intervenção do estado na
economia com vistas à satisfação de um interesse público:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 7.844/92, do estado de são Paulo. meia entrada assegurada aos
estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino. ingresso em casas de diversão, esporte,
cultura e lazer. Competência concorrente entre a união, estados-membros e o distrito Federal para legislar sobre
direito econômico. Constitucionalidade. Livre iniciativa e ordem econômica. mercado. intervenção do estado na
economia. Artigos 1º, 3º, 170, 205, 208, 215 e 217, §3º, da Constituição do Brasil. 1. É certo que a ordem econômica
na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa
circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o estado só intervirá na economia em situações excepcionais. 2. mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e
fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado
e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre iniciativa é
expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao
contemplá-la, cogita também da ‘iniciativa do estado’; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas
à empresa. 4. se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao estado a adoção
de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto
[artigos 23, inciso v, 205, 208, 215 e 217 §3º, da Constituição]. na composição entre esses princípios e regras há de
ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 5. o direito ao acesso à cultura, ao esporte
e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada
improcedente.” (Adi nº 1.950-sP, Pleno. rel. min. eros Grau. Julg. 3.11.2005. DJ, 02 jun. 2006)
“Ação direta de inconstitucionalidade: Associação Brasileira das empresas de transporte rodoviário intermunicipal, interestadual e internacional de Passageiros - ABrAti. Constitucionalidade da Lei n. 8.899, de 29 de
junho de 1994, que concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência. Alegação de afronta aos princípios
da ordem econômica, da isonomia, da livre iniciativa e do direito de propriedade, além de ausência de indicação de fonte de custeio (arts. 1º, inc. iv, 5º, inc. XXii, e 170 da Constituição da república): improcedência. 1.
A Autora, associação de associação de classe, teve sua legitimidade para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade reconhecida a partir do julgamento do Agravo regimental na Ação direta de inconstitucionalidade
n. 3.153, rel. min. Celso de mello, DJU, 09 set. 2005. 2. Pertinência temática entre as finalidades da Autora e a
matéria veiculada na lei questionada reconhecida. 3. em 30.3.2007, o Brasil assinou, na sede das organizações das
Nações Unidas, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como seu Protocolo Facultativo, comprometendo-se a implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado. 4. A Lei n. 8.899/94 é
parte das políticas públicas para inserir os portadores de necessidades especiais na sociedade e objetiva a igualdade de oportunidades e a humanização das relações sociais, em cumprimento aos fundamentos da república
de cidadania e dignidade da pessoa humana, o que se concretiza pela definição de meios para que eles sejam
alcançados. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.” (Adi nº 2.649-dF, Pleno. rel. min.
Cármen Lúcia. Julg. 8.5.2008. DJe, 17 out. 2008)
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
i - soberania nacional;
ii - propriedade privada;
iii - função social da propriedade;
iv - livre concorrência;
v - defesa do consumidor;
vi - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 42,
de 2003)
vii - redução das desigualdades regionais e sociais;
viii - busca do pleno emprego;
iX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham
sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 6, de 1995)”
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
nos dias atuais, todavia, é impossível conceber a observância desses princípios sem que
o Estado desenvolva efetivos mecanismos de intervenção. ou seja, a necessidade de realização
dos princípios econômicos impõe ao estado o dever de agir: a ideia da abstenção ou
da não interferência do estado, que deveria ser a regra, torna-se exceção. Poder-se-ia
conceber, por exemplo, a defesa do consumidor ou do meio ambiente, a redução das
desigualdades regionais ou o tratamento favorecido para as pequenas empresas plenamente assegurados pelos instrumentos do mercado, sem que o Estado se fizesse presente?
A ideia de subsidiariedade na atuação do estado em relação à ordem econômica
não o afasta do mercado ou dos agentes privados. Ao contrário, impõe-lhe o dever de
identificar as falhas na realização dos princípios econômicos e de utilizar os instrumentos ou técnicas adequadas a cada caso: para a proteção do meio ambiente, devem
ser utilizados os instrumentos do poder de polícia; para a redução das desigualdades
regionais, as técnicas de fomento etc.
Justificada a intervenção do Estado como necessária à realização dos princípios
da ordem econômica, o princípio do estado subsidiário requer ainda a proporcionalidade
dos instrumentos utilizados. Poderia, por exemplo, ser vedada a exploração agrícola na
região da Amazônia Legal como meio de preservar o meio ambiente?
A preservação do meio ambiente na região amazônica, ou em qualquer outra
região do País, é dever do estado. não é lícito, todavia, que a pretexto de realizar esse
princípio seja proibida a exploração da atividade agrícola nessa região. A exploração
dessa ou de qualquer outra atividade deve ser regulada por meio dos instrumentos da
polícia administrativa a partir de parâmetros razoáveis. exemplo: ao invés de proibir
o exercício de toda e qualquer atividade agrícola na região, pode ser feita a indicação
das áreas a serem preservadas (nascentes e matas ciliares), de percentuais de área de
propriedades privadas a serem mantidas como de preservação permanente etc.
A intervenção do estado na ordem econômica deve igualmente observar o princípio do Estado cooperativo.
Historicamente, o ato administrativo se apresenta como a forma usual de atuação
do estado que por meio de manifestações unilaterais impõe sua vontade aos particulares. A partir da ideia do estado cooperativo, passam a ser valorizados os instrumentos
jurídicos que necessitam do consentimento do particular. ou seja, se o estado puder
intervir na ordem econômica por meio de instrumentos que dependam da livre adesão
dos agentes privados, deve afastar os instrumentos de aplicação compulsória.
o incremento da atividade de fomento, em detrimento dos tradicionais instrumentos de polícia, reforça a ideia de cooperação entre o estado e os agentes privados,
que devem ser chamados a participar não apenas da execução das políticas públicas,
mas da própria formulação dessas políticas.
A cooperação entre o Estado e os agentes privados deve ser estimulada pelo estado
como meio para alcançar os objetivos atribuídos pela Constituição Federal ao próprio
estado. isto importa em que os agentes privados sejam chamados a participar do processo de
identificação das necessidades da sociedade, da escolha dos meios para a satisfação dessas necessidades e da execução das tarefas estatais. A preservação do meio ambiente pode ser utilizada
como exemplo: pode alguém admitir que o estado possa, sozinho, adotar providências
efetivas para a preservação do meio ambiente se não houver o engajamento dos agentes
privados nas três etapas do processo de realização da atividade estatal (identificação
da necessidade, indicação do instrumento a ser utilizado e execução da função estatal)?
579
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Curso de direito AdministrAtivo
o desempenho de qualquer atividade estatal, especialmente daquelas que afetam
o setor privado, requer o exame das possibilidades de os agentes privados colaborarem
com o estado. Essa é a idéia básica do Estado cooperativo: buscar a colaboração dos agentes
privados, empresariais e não empresariais, para o desempenho mais eficiente e eficaz das funções
estatais.
11.5 serviço público: concepção subjetiva e objetiva
Com a afirmação do conceito de Estado Social, o ordenamento jurídico de diversos países passou a considerar pública uma série de atividades até então consideradas
privadas. A mudança se verifica quando o Direito, por meio dos instrumentos definidos
pela Constituição, afasta a ideia de livre iniciativa e de livre concorrência e, por meio de
um processo de publicização (publicatio), confere legitimidade exclusiva e excludente ao
estado em relação à titularidade e ao exercício de algumas atividades pelos particulares.
Com a evolução social, verificar-se-á, no entanto, uma mitigação da exclusividade da titularidade e da prestação do serviço pelo estado, conforme será examinado
em seguida.
A concepção subjetiva do serviço público está ligada ao poder de que dispõe o
estado de assumir determinadas atividades como suas. ou seja, o serviço é público, ou
passa a ser público, em razão de a sua titularidade ser conferida ao estado. A esse poder
de tornar públicas determinadas atividades, a concepção subjetiva acrescenta outra, a
de definir a organização das estruturas públicas voltadas ao exercício dessas atividades
por meio das técnicas de descentralização e de desconcentração administrativas. ou
seja, a concepção subjetiva atribui ao Estado poder de definir o que é serviço público
e de como será organizada a Administração Pública com vista à prestação do serviço.
A concepção subjetiva de serviço público suscita, todavia, a questão dos limites
ao poder do Estado de publicizar atividades. Afinal, desde que sejam observados todos
os procedimentos definidos pelo ordenamento jurídico, o Estado poderia transformar
em serviço público e, portanto, tornar-se titular de toda e qualquer atividade? Poderia,
por exemplo, ser definido que a produção artística passaria a ser serviço público, e que
os particulares somente poderiam exercê-la por meio de delegação?
Outra dificuldade suscitada pela concepção subjetiva do serviço público está
ligada à impossibilidade de a população exigir do estado o desempenho de atividades
que não tenham sido qualificadas como serviços públicos. Ou seja, se a definição das
atividades públicas depende exclusivamente da conveniência do estado, poderia um
particular exigir — como direito subjetivo público — o desempenho pelo estado de
atividade tendente a satisfazer necessidade básica, ainda que essa atividade não tenha
sido qualificada como pública?
A concepção exclusivamente subjetiva de serviço público atenta contra a realidade
social e jurídica da grande maioria dos estados modernos, cujos sistemas econômicos
repousam nos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
A definição das atividades qualificadas como serviço público não pode ficar
restrita à generosidade dos estados, ou dos seus legisladores. evidentemente que estes
devem ter participação no processo, inclusive por meio do exame das limitações orçamentárias e financeiras à atuação estatal. Há outros aspectos que ultrapassam o exame
político e orçamentário e que devem ser considerados na definição das atividades a
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
serem qualificadas como serviço público. Um desses aspectos é de ordem negativa — no
sentido de que impõe limites ao estado para publicizar todas as atividades —, o outro
aspecto é positivo, e obriga o estado a assumir a titularidade da atividade.
são os seguintes os aspectos a serem considerados:
1. A capacidade dos agentes privados de atender satisfatoriamente às necessidades da sociedade — que, de acordo com a concepção de estado subsidiário,
importa em limitação constitucional ao poder do Estado de qualificar a atividade como pública; e
2. A necessidade de observância dos direitos fundamentais — que impõe ao
estado o dever de atuar em áreas relacionadas à satisfação das necessidades
da população vinculadas aos direitos fundamentais que não possam ser plenamente atendidas pelos agentes privados.
opondo-se à concepção subjetiva ou formal de serviço público, desenvolveu-se
a concepção objetiva, segundo a qual somente podem ser qualificados como públicos os
serviços essenciais, aqueles de interesse de toda a coletividade.
Marçal Justen Filho, ao definir serviço público, atribui a ela a função de “instrumento de satisfação direta e imediata dos direitos fundamentais”. Acrescenta o competente autor que “há um vínculo de natureza direta e imediata entre o serviço público
e a satisfação dos direitos fundamentais. se esse vínculo não existir, será impossível
reconhecer a existência de um serviço público”.5
A maior dificuldade enfrentada por esta concepção está no fato de a expressão
serviço essencial inserir-se no âmbito dos conceitos jurídicos indeterminados. ela varia
em função do lugar, da concepção ideológica ou política adotada, e ainda em razão do
nível de desenvolvimento social, econômico e tecnológico de cada sociedade.
O processo de criação ou de definição das atividades que haverão de ser qualificadas como serviços públicos deve considerar os aspectos (e críticas) desenvolvidos
em relação às concepções subjetiva e objetiva do serviço público.
no exercício da atividade de prestação de serviços públicos, ou sob o pretexto de
exercer essa atividade, o estado desenvolve tarefas tão variadas que resulta impossível
apresentar um conceito que alcance todas as suas particularidades ou manifestações.
Devemos buscar identificar, no entanto, o núcleo da atividade prestacional. Nesse processo, teremos de examinar os aspectos subjetivos, materiais (ou objetivos) e formais
dessa atividade pública.
11.6 elementos caracterizadores do serviço público
A concepção clássica do direito Administrativo adota a noção de serviço público
em três aspectos fundamentais:
1. trata-se de uma atividade estatal;
2. destinada à satisfação das necessidades essenciais da população;
3. sujeita a regime jurídico administrativo exorbitante do direito comum.
examinaremos, em seguida, cada um desses elementos.
5
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 480.
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Curso de direito AdministrAtivo
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11.6.1 titularidade do serviço público
Historicamente, o elemento (ou concepção) dominante na definição do serviço
estava ligado à sua titularidade: o serviço é público porque o estado é seu titular. Conforme examinado no item anterior, esta teoria importa em excluir os particulares da
titularidade e da prestação desses serviços.
essa teoria ou concepção de serviço público se sujeita a severas críticas. A primeira
ruptura sofrida por essa teoria ocorre quando o próprio estado se vê forçado a delegar
a particulares a prestação de alguns serviços públicos, não obstante a titularidade da
atividade permaneça com o estado.
A segunda ruptura na concepção subjetiva questiona a titularidade exclusiva do
serviço público pelo estado.
A fim de melhor entender essa crítica, tomemos uma vez mais como exemplo
a prestação de serviços na área de saúde, que a Constituição Federal qualifica como
serviço de relevância pública (art. 197).
trata-se de serviço público a ser prestado pela união, pelos estados, pelos municípios e pelo distrito Federal por meio de um sistema único, nos termos dos arts. 23,
ii, 196 e 198 da Constituição Federal.
O texto constitucional, todavia, em seu art. 199 expressamente afirma que “a
assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.
Afinal, a prestação de serviços na área de saúde é serviço público ou é atividade
privada? será serviço público somente quando a atividade for exercida pelo estado?
e, ao contrário, quando for desenvolvida por agentes privados será atividade privada,
sujeitando-se tão somente à intervenção estatal por meio do poder de polícia?
De acordo com a concepção clássica, se determinada atividade é qualificada como
pública, os particulares somente podem exercê-la se receberem delegação do estado, o
que não se verifica no caso.6
6
No julgamento do RMS nº 7.730-RS, o Superior Tribunal de Justiça afirmou a tese de que a delegação de serviços
públicos a particulares não se faz somente mediante concessão ou permissão. no caso, o stJ manifestou o entendimento de que a delegação a particulares de serviços públicos notariais e de registro realiza-se de modo peculiar, em
que o poder público detém maior controle sobre a prestação do serviço público delegado:
“Constitucional. interpretação do art. 236, par. 1., da CF, e da Lei 8.935, de 18.11.1994, arts. 22, 28 e 37.
1. o novo sistema nacional de serviços notariais e registrais imposto pela lei 8.935, de 18.11.1994, com base no
art. 236, par. 1., da CF, não outorgou plena autonomia aos servidores dos chamados ofícios extrajudiciais em
relação ao poder judiciário, pelo que continuam submetidos a ampla fiscalização e controle dos seus serviços
pelo referido poder.
2. Os procedimentos notariais e registrais continuam a ser serviços públicos delegados, com fiscalização em
todos os aspectos pelo poder judiciário.
3. O texto da carta maior impõe que os serviços notariais e de registro sejam executados em regime de caráter privado,
porém, por delegação do poder público, sem que tenha implicado na ampla transformação pretendida pelos impetrantes, isto
é, de terem se transmudados em serviços públicos concedidos pela União federal, a serem prestados por agentes puramente
privados, sem subordinação a controles de fiscalização e responsabilidades perante o Poder Judiciário.
4. A razão desse entendimento está sustentada nos argumentos seguintes:
a) vinculo-me a corrente doutrinaria que defende a necessidade de se interpretar qualquer dispositivo constitucional de forma sistêmica, a fim de se evitar a valorização isolada da norma em destaque e, conseqüentemente, a
sua possível incompatibilidade com os princípios regedores do ordenamento jurídico construído sob o comando
da carta maior para a entidade ou entidades jurídicas reguladas.
b) influenciado por tais posições, o meu primeiro posicionamento e o de fixar o conceito técnico-jurídico da
expressão ‘delegação do poder público’, que constitui o tema central do debate, haja vista que e o modo institucional como os serviços notariais e de registro são, hoje, exercidos no país.
c) o conceito de delegação de serviço público, apos algumas variações, esta hoje pacificado como sendo a possibilidade do poder público conferir a outra pessoa, quer pública ou privada, atribuições que originariamente lhe
competem por determinação legal.
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
A questão da saúde — e o mesmo ocorre com a educação, a assistência social, a
previdência social, o desporto e a cultura — admite duas vertentes.
A primeira vertente importa em admitir que o ordenamento jurídico possa incorporar determinadas atividades e transformá-las em serviço público, independentemente
de sua titularidade ser conferida em caráter exclusivo ao poder público. A titularidade
dessas atividades de interesse de toda a coletividade seria da própria sociedade, e o
estado seria apenas um dos agentes — certamente o mais abalizado, daí ser ele o responsável não apenas pela prestação dos serviços, mas também nos termos da lei, pela
regulamentação, fiscalização e controle (CF, art. 197).
Admitir a distribuição de atividades públicas a agentes distintos do estado requer
algumas considerações acerca da ideia de interesse público (vide Capítulo 3) cuja titularidade normalmente é também atribuída em caráter exclusivo ao estado.
A realização dos interesses qualificados pelo ordenamento jurídico como públicos
é conferida com maior frequência ao estado. Há inúmeras hipóteses, todavia, em que
se atribui a agentes privados a titularidade do interesse público e, em consequência, a
legitimidade para o exercício de algumas prerrogativas a ele inerentes, podendo agir,
inclusive, contra o próprio Estado. Isto se verifica, por exemplo, quando entidade privada é legitimada a propor ação civil pública contra o poder público para a defesa da
legalidade ou da moralidade, e não de direito subjetivo próprio.
no caso dos serviços sociais de saúde e de educação, teríamos, adotada essa
vertente, que admitir que particulares sejam titulares de serviços públicos, cabendo
d) por a autoridade delegante ter a competência originaria, exclusiva ou concorrente, do exercício das atribuições
fixadas por lei, no momento em que delega, por para tanto estar autorizado, também, por norma jurídica positiva, estabelece-se uma subordinação entre as pessoas envolvidas no sistema hierárquico entre o transferidor da
execução do serviço e quem o vai executar, em outras palavras, entre o delegante e o delegado.
e) o dispositivo constitucional em comento, no caso o art. 236, da CF, ao determinar que os serviços notariais
e de registro são exercidos em caráter privado, porem, por delegação do poder público, não descaracterizou a
natureza pública de tais serviços, nem restringiu a forma de sua fiscalização, notadamente porque no par. 1.,
de forma expressa, esta dito que ‘lei regulara as atividades, disciplinara a responsabilidade civil e criminal dos
notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definira a fiscalização de seus atos pelo poder judiciário.
f) a seguir, o legislador constituinte, numa demonstração inequívoca de que não se afastou do conceito tradicional de delegação de serviço público, portanto, respeitando, em toda a sua plenitude, o principio da subordinação
hierárquica a existir entre delegante e delegado, dispôs, ainda, que ‘a lei federal estabelecera normas gerais para
fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e do registro’, bem como que ‘o
ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que
qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção por mais de seis meses’.
g) é evidente que a prestação de serviços notariais e de registro público no Brasil, apos a CF/1988, não tomou as características preconizadas pelos impetrantes, isto e, de que passaram a se submeter ao regime de concessão de serviço público,
onde o poder fiscalizador e limitado, apenas, aos atos notariais, jamais a gestão interna da entidade que a exerce em regime
absolutamente privado, por ter deixado de ser uma serventia pública da justiça.
h) não importa, com as minhas homenagens ao patrono dos impetrantes, em face do profundo trabalho jurídico
desenvolvido, não só na petição inicial, como na do recurso, a interpretação que os impetrantes assentaram a
respeito do texto constitucional em discussão.
i) o fato, por si só, de no art. 235, caput, da CF, estar inserida a expressão de que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, não conduz ao entendimento posto no recurso, pois, logo a seguir, esta a
determinação nuclear de que tais serviços, por continuarem a ser públicos, necessitam de delegação do poder
público para quem vai exercê-los, pelo que deverão executá-los de acordo como a lei determinar e só poderão
receber tal delegação os que forem, pelo próprio poder público, julgados aptos pela via do concurso público.
j) a natureza pública dos serviços notariais e de registro não sofreu qualquer desconfiguração com a CF/1988.
em razão de tais serviços estarem situados em tal patamar, isto e, como públicos, a eles são aplicados o entendimento de que cabe ao estado o poder indeclinável de regulamentá-los e controlá-los exigindo sempre sua
atualização e eficiência, de par com o exato cumprimento das condições impostas para sua prestação ao público.
5. nego provimento ao recurso.” (rms nº 7.730-rs, 1ª turma. rel. min. José delgado. Julg. 1º.9.1997. DJ, 27 out.
1997, grifos nossos)
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ao estado organizar e coordenar as atividades prestadas pelo próprio estado e pelos
particulares.
A outra vertente importa em reconhecer que as atividades de saúde e de educação
somente são públicas quando prestadas pelo estado, assumindo feição de atividades
privadas reguladas por meio do poder de polícia quando exercidas pelos particulares.
ou seja, não seria a natureza do serviço, mas o fato de ser assumido pelo estado
que tornaria o serviço público.
essa discussão, ainda não resolvida, demonstra que a concepção subjetiva do
serviço público, ainda que sujeita a críticas, pode contribuir para a definição dos elementos que irão caracterizar o serviço público.
Ademais, as atividades aqui utilizadas para exemplo (saúde e educação) servem
para demonstrar a dificuldade de distinguir, ao menos em alguns setores, atividade
pública delegada das atividades privadas reguladas. Qualquer dessas duas vertentes
permite concluir que os instrumentos utilizados pelo regime jurídico administrativo
para o exercício dos serviços públicos e da atividade de polícia administrativa em matéria de saúde ou de educação são tão próximos que se torna praticamente impossível
distingui-los.
11.6.2 objeto do serviço público: atividades privadas x serviços públicos
o segundo elemento a ser enfrentado diz respeito ao objeto do serviço público.
A principal pergunta a ser feita nesse ponto do estudo da teoria do serviço público é a
de saber se toda atividade pode ser qualificada como pública.
o foco da teoria do serviço público moderno reside na dicotomia entre iniciativa privada e iniciativa pública: a satisfação das necessidades da população deve ser
atendida preferencialmente por uma ou pela outra?
de acordo com o modelo constitucional adotado pela maioria dos países, inclusive no Brasil, a ordem econômica se submete aos princípios da livre iniciativa e da
livre concorrência. de acordo com esses princípios, a satisfação das necessidades da
população deve ser promovida pela própria sociedade, a partir da ideia de liberdade
de empresa e de economia de mercado. o núcleo básico desses conceitos reside no fato
de que a iniciativa e a decisão sobre quais atividades vão ser desenvolvidas no âmbito
privado com vista à satisfação das necessidades da população permanecem nas mãos
dos particulares, e não do estado.
essa discussão é relevante porque permite concluir que a primazia para a satisfação das necessidades da população é tarefa dos agentes privados, e não do estado. ou
seja, se os agentes privados forem capazes de satisfazer adequadamente às necessidades
de toda a coletividade, não deve o estado intervir por meio da prestação do serviço,
mas, se for necessário, tão somente por meio da atividade de polícia administrativa.
outra conclusão resultante do embate entre iniciativa privada e iniciativa pública,
e que está diretamente relacionada à ideia de estado subsidiário (vide capítulos 1 e 2),
é a de que se a iniciativa privada não é capaz de atender as necessidades da população
relacionadas à realização dos direitos fundamentais, especialmente o da dignidade da
pessoa humana — que nos termos do art. 1º, iii, da Constituição Federal constitui um dos
fundamentos do estado brasileiro —, o estado tem o dever de assumir a incumbência
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
dessa prestação, sendo legítimo aos particulares utilizar a via judicial para obrigar o
estado a fornecer o serviço à população.7
na busca dos elementos caracterizadores do serviço público, a partir da perspectiva objetiva, podemos extrair duas conclusões:
1. em razão do modelo constitucional vigente, a primazia para a satisfação das
necessidades da coletividade, na disputa entre iniciativa privada e iniciativa
pública, é conferida ao setor privado;
2. se o setor privado não for capaz de atender adequadamente a demanda da
coletividade por serviços relacionados à realização dos direitos fundamentais,
o estado está obrigado a assumir a prestação dessa atividade.
A principal função do estado neste processo de seleção das atividades a serem
qualificadas como públicas deve consistir na identificação das demandas sociais — que
em razão dos avanços tecnológicos, sociais, econômicos estão em constante processo
de mutação — e verificar se os agentes privados são capazes de atender a essas demandas, assumindo o encargo de atendê-las se elas estiverem relacionadas à satisfação dos
direitos fundamentais.
outra pergunta que decorre das conclusões a que chegamos é a seguinte: somente
os serviços prestados com o propósito de realizar os direitos fundamentais são serviços
públicos?
não trataremos, neste capítulo, das atividades empresariais desenvolvidas pelo
estado. desse aspecto nos ocuparemos adiante. temos que enfrentar, no momento,
outro aspecto.
Quando uma prefeitura decide, por exemplo, disponibilizar em uma biblioteca
pública serviço de acesso gratuito à internet, ou decide criar uma banda de música
7
este tema foi magistralmente examinado pelo stF no julgamento do re nº 436.996-sP. o relator do recurso, o
sempre brilhante ministro Celso de mello, tratou o tema de forma precisa. no caso, se examinava a alegação de
que limitações orçamentárias liberariam o estado do dever de prestar serviços de educação infantil e de atendimento em creche. transcrevemos trecho do artigo publicado:
“não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais — além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização — depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro
subordinado às possibilidades orçamentárias do estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então,
considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele — a partir
de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa — o ilegítimo, arbitrário e
censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da
pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (AdPF 45/dF, rel. min. Celso de mello,
informativo stF nº 345/2004). Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ — ressalvada
a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível — não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de
exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa
conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. daí a correta observação de regina maria
Fonseca muniz (O direito à educação, p. 92, item n. 3, 2002, Renovar), cuja abordagem do tema — após qualificar
a educação como um dos direitos fundamentais da pessoa humana — põe em destaque a imprescindibilidade
de sua implementação, em ordem a promover o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida de todos,
notadamente das classes menos favorecidas, assinalando, com particular ênfase, a propósito de obstáculos governamentais que possam ser eventualmente opostos ao adimplemento dessa obrigação constitucional, que ‘o estado
não pode se furtar de tal dever sob alegação de inviabilidade econômica ou de falta de normas de regulamentação’.” (re nº 436.996-sP, decisão monocrática. rel. min. Celso de mello. Julg. 26.10.2005. DJ, 07 nov. 2005)
Ao acolher o voto do Relator, o STF firma em nossa jurisprudência a tese de que limitações orçamentárias não
podem ser utilizadas como fundamento para eximir o estado do dever de cumprir seus deveres constitucionais
básicos, especialmente no que diz respeito àqueles relacionados à realização dos direitos fundamentais.
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para participar de eventos oficiais ou simplesmente para alegrar a população em dias
festivos, ou ainda quando é criado grupo de balé, ou de ópera ou uma orquestra sinfônica, o exercício dessas simples atividades pelo poder público poderia ser considerado
serviço público? não se trata, é evidente, de iniciativas de caráter empresarial, ou de
atividades de fomento, ou que possam ser enquadradas em qualquer outra categoria
de atividade estatal.
As atividades a que acima nos referimos são serviços públicos, ainda que não
estejam relacionadas à satisfação dos direitos fundamentais.
A partir da perspectiva objetiva, podemos concluir que os direitos fundamentais
desempenham função essencial na identificação das atividades a serem consideradas
serviços públicos. Adotada a concepção de estado subsidiário, este, por imposição
constitucional, obriga-se a assumir os serviços voltados à satisfação das necessidades
da população relacionadas aos direitos fundamentais que não possam ser atendidas
pelos agentes privados.
todavia, outras atividades ou utilidades — não enquadradas igualmente como
atividades empresariais — podem igualmente ser qualificadas como serviço público,
desde que o legislador assim o decida. ou seja, não apenas os serviços reputados essenciais,
mas igualmente os considerados úteis podem ser qualificados como serviços públicos
(ou de utilidade pública, como preferem alguns autores).
Para que se possa ter uma visão mais realista do serviço público, devemos admitir
que ele não se esgota nos elementos objetivos da teoria. isto é, a ideia clássica de serviços
essenciais ou de atendimento dos direitos fundamentais é extremamente relevante e continua válida para qualificar o serviço público, mas não é suficiente. Ainda resta espaço,
na construção da teoria do serviço público, para os elementos subjetivos, no sentido de
que certas atividades úteis à sociedade hão que ser qualificadas como serviços públicos
em razão de serem prestadas pelo estado.
devemos defender a construção da teoria unitária do serviço público, que considera
aspectos subjetivos, relacionados à titularidade pública do serviço, e aspectos objetivos,
de satisfação dos direitos fundamentais.
Com base nessa perspectiva unitária, o serviço público pode ser identificado nas
seguintes situações:
1. titularidade e exercício exclusivos do estado;
2. titularidade exclusiva do estado e exercício sujeito a delegação a particulares; e
3. titularidade e exercício compartidos entre o estado e os particulares.
em qualquer caso, deve ser reconhecida a existência de limites constitucionais
ao poder do estado de assumir determinadas atividades como serviços públicos, respeitando a esfera privada de atuação dos particulares.
11.6.3 serviço público e regime jurídico administrativo
Conforme exposto, a noção clássica do serviço público pressupõe a adoção do
regime jurídico administrativo exorbitante do direito Privado.
essa noção é adotada por inúmeros autores pátrios. Celso Antônio Bandeira de
Mello afirma que o regime jurídico-administrativo “é que confere caráter jurídico à
noção de serviço público. sua importância, pois, é decisiva”.8
8
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 625.
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
idêntica solução é adotada por marçal Justen Filho: “sob o ângulo formal,
configura-se o serviço público pela aplicação do regime jurídico de direito público”.
Acrescenta o autor, todavia, que “um serviço é público porque se destina à satisfação
de direitos fundamentais e não por ser de titularidade estatal, nem por ser desenvolvido sob regime de direito público. essas duas são conseqüências da existência de um
serviço público”.9
A necessidade de sujeição do serviço público ao regime jurídico administrativo
desponta como uma constante na doutrina pátria.
A evolução da realidade política, social e econômica impõe à Administração
Pública e, consequentemente, ao direito Administrativo a ruptura dessa visão.
nos dias atuais, amplia-se o rol dos serviços públicos regidos, ainda que parcialmente, por normas de direito Privado.
em qualquer hipótese de delegação da prestação de serviços públicos, não
obstante os contratos de concessão ou de permissão imponham aos concessionários
e permissionários deveres decorrentes dos princípios do serviço público (a serem
examinados em seguida), de origem eminentemente pública, a relação estabelecida
entre os usuários e referidos prestadores de serviços é regida por normas de direito
Privado, salvo exceções: a relação entre o concessionário ou permissionário de serviço
público e o usuário, ao contrário, é disciplinada pelo direito Privado, ainda que sujeita
a derrogações parciais pelo direito Público, de que seria exemplo a responsabilidade
objetiva do prestador do serviço público.10
o exame do aspecto formal do serviço público não nos parece, portanto, adequadamente apresentado.
especialmente nas hipóteses em que tenha ocorrido delegação da prestação do
serviço a empresas privadas, parece-nos equivocado defender a adoção de uma gestão
exclusivamente pública; sendo igualmente equivocado defender o contrário, ou seja, uma
gestão exclusivamente privada. não há nenhum serviço público que possa ser prestado
com submissão absoluta ao regime público ou ao regime privado. em cada caso, ocorra
ou não a delegação, cabe ao regime administrativo específico de cada serviço indicar
como as normas públicas e privadas irão coexistir.
A primazia, não há dúvida, é do regime público. no entanto, é cada vez mais
comum o próprio regime público ceder espaço ao regime privado. no Brasil, a Lei Geral
de telecomunicações expressamente adota essa solução.
Ademais, independentemente da prestação do serviço ser delegada a particulares,
a progressiva interferência do direito Privado no direito Administrativo é uma realidade
cada vez mais comum não apenas na regulação dos serviços públicos, mas em quase
todas as áreas de atuação do estado, inclusive quando ele desenvolve diretamente a
atividade de prestação de serviços.
9
10
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 482.
o particular concessionário ou permissionário de serviço público não se submete à exigência de licitação nas
relações comerciais com seus fornecedores. nesse sentido, o seguinte julgamento do stJ:
“mandado de segurança. Ato de empresa privada concessionária de serviço público. descabimento. 1. As empresas privadas, embora concessionárias de serviço público, não estão obrigadas a submeter suas compras ou a contratação de
serviços ao regime de licitação. Se os submetem, o fazem por interesse próprio, mas os atos assim praticados não se transformam em ato administrativo, e o contrato que daí resulta não será um contrato de direito público. Continua, como é da
sua natureza, um simples ato particular de gestão, típico ato jurídico privado. Não sendo ato de autoridade, não há como
supor-se presente a viabilidade de atacá-lo pela via do mandado de segurança. 2. Recurso especial a que se nega provimento.”
(resp nº 429.849-rs, 1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki. Julg 9.9.2003. DJ, 10 nov. 2003, grifos nossos)
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Curso de direito AdministrAtivo
não defendemos, em absoluto, a gestão exclusivamente privada dos serviços
públicos. A razão da aplicação das normas públicas reside exatamente na incapacidade do mercado, por seus próprios instrumentos, de atender satisfatoriamente às
necessidades da população. Admitimos, todavia, que o regime administrativo relativo
à prestação dos serviços públicos admite convivência pacífica com normas do Direito
Privado, especialmente em matéria de contratos, de pessoal e de bens vinculados à
prestação do serviço.
os instrumentos formais utilizados pelo próprio estado para desenvolver a
atividade prestacional, que cada vez se vale menos dos atos unilaterais ou dos instrumentos de coação, resultam na necessidade de incorporação dos instrumentos privados
de formalização de acordos de vontade adotados na esfera privada.
sob o aspecto formal, portanto, a prestação dos serviços públicos está sujeita a
normas públicas e privadas, conforme dispuser a legislação pertinente a cada categoria
de serviço público.
11.7 Conceito de serviço público
em razão do que foi até o momento exposto, é fácil perceber que conceituar o serviço público constitui uma das mais difíceis tarefas no estudo do direito Administrativo.
Com o objetivo de alcançar as diversas manifestações dessa função estatal,
pode-se conceituar o serviço público como a atividade de satisfação das necessidades da
população, desenvolvida pelo Estado ou por particulares, por meio da qual são postas utilidades
ou comodidades à disposição da coletividade.
11.8 Princípios
A teoria do serviço público adota o pressuposto de que os cidadãos têm direito
subjetivo à sua prestação, ou seja, a qualificação de determinada atividade como serviço
público constitui dever para o estado de prestá-lo à coletividade (CF, art. 175).
nesse ponto, não se pode falar em discricionariedade do poder público na
implantação do serviço, ainda que a decisão sobre como este serviço será prestado (se
será prestado diretamente pelo poder público, se será criada entidade administrativa
para a sua prestação, se haverá delegação do serviço a particulares) esteja inserida no
âmbito discricionário do estado, que poderá adotar a forma de prestação que considere
mais adequada.
A escolha da forma da prestação dos serviços públicos, não obstante seja discricionária, deve observar alguns parâmetros básicos fixados pelo ordenamento jurídico,
dentre os quais se destacam alguns princípios.
desenvolvidos inicialmente pela doutrina francesa, são apresentados como
princípios do serviço público a continuidade, a igualdade e a mutabilidade. Além desses,
em razão do que dispõe o ordenamento jurídico pátrio acerca do serviço adequado,
podemos apresentar os princípios da eficiência, da modicidade tarifária e da cortesia.
A continuidade está ligada à concepção de que os serviços públicos existem para
atender às necessidades básicas da população. em razão dessa particularidade, não
pode haver interrupção no fornecimento dos serviços.
Acerca da continuidade, a Lei nº 8.987/95, em seu art. 6º, §3º, dispõe:
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serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
§3º não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação
de emergência ou após prévio aviso, quando:
i - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
ii - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
A possibilidade de suspensão da prestação do serviço é tema recorrente em
nossos tribunais. em regra, admite-se a suspensão por inadimplemento, nos termos
do dispositivo legal acima mencionado, pois o princípio da continuidade não é absoluto, mas limitado pela necessidade de assegurar a própria continuidade e qualidade
do serviço ao conjunto de usuários.11 entretanto, conforme mencionado no capítulo 8,
a jurisprudência do STJ também tem afirmado que a falta de pagamento não pode
importar em suspensão da prestação de serviços essenciais para a coletividade. ou seja,
se o município não paga pela prestação dos serviços de energia elétrica, considerado o
interesse da coletividade, não pode a empresa fornecedora suspender o fornecimento do
serviço para as unidades essenciais.12
Ainda sobre a interrupção do serviço por inadimplemento, o stJ entende que
não pode decorrer de débitos do usuário anterior, em razão da natureza pessoal da
obrigação de pagar a tarifa.13
o dever de continuidade imposto ao prestador do serviço tem sido igualmente
objeto de questionamento quando são realizadas greves, especialmente no serviço público.
11
12
13
no julgamento do resp nº 257.084-mG, o stJ admite que a interrupção no fornecimento de energia elétrica ao
consumidor inadimplente não configura afronta ao princípio da continuidade do serviço público, uma vez que
a inadimplência pode prejudicar a prestação de serviços em favor da coletividade:
“Administrativo. recurso especial. Fornecimento de energia elétrica. Consumidor inadimplente. suspensão do
serviço. Previsão legal. Possibilidade. Princípio da proporcionalidade. 1. A interrupção no fornecimento de energia
elétrica ao consumidor inadimplente realizada na forma do art. 6º, §3º, II, da Lei n. 8.987/95 não configura descontinuidade
na prestação do serviço para fins de aplicação dos arts. 22 e 42 do CDC. 2. destoa do arcabouço lógico-jurídico que
informa o princípio da proporcionalidade o entendimento que, a pretexto de resguardar os interesses do usuário inadimplente, cria embaraços às ações implementadas pela fornecedora de energia elétrica com o propósito
de favorecer o recebimento de seus créditos, prejudicando, em maior escala, aqueles que pagam em dia as suas
obrigações. 3. Se a empresa deixa de ser, devida e tempestivamente, ressarcida dos custos inerentes às suas atividades, não
há como fazer com que os serviços permaneçam sendo prestados com o mesmo padrão de qualidade. Tal desequilíbrio, uma
vez instaurado, vai refletir, diretamente, na impossibilidade prática de observância do princípio expresso no art. 22, caput,
do Código de Defesa do Consumidor. 4. recurso especial a que se dá provimento” (resp nº 257.084-mG, 2ª turma.
rel. min. João otávio de noronha. Julg. 16.12.2003. DJ, 17 out. 2005, grifos nossos).
“Processual Civil e Administrativo. suspensão do fornecimento de água tratada. Fraude no hidrômetro. não
comprovação. matéria fática. sucumbência recíproca. Honorários. Compensação. Assistência judiciária gratuita.
Possibilidade. 1. A Lei 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços
públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, prevê, nos incisos i e ii do §3º do art. 6º, duas hipóteses em
que é legítima sua interrupção, em situação de emergência ou após prévio aviso: (a) por razões de ordem técnica
ou de segurança das instalações; (b) por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade. 2.
tem-se, assim, que a continuidade do serviço público, assegurada pelo art. 22 do CdC, não constitui princípio
absoluto, mas garantia limitada pelas disposições da Lei 8.987/95, que, em nome justamente da preservação da
continuidade e da qualidade da prestação dos serviços ao conjunto dos usuários, permite, em hipóteses entre
as quais a fraude no registro geral, a suspensão no seu fornecimento. Precedentes: resP 363.943/mG, 1ª seção,
min. Humberto Gomes de Barros, DJ, 1º mar. 2004; e resP 302.620/sP, 2ª turma, rel. p/ o acórdão min. João otávio
de noronha, DJ, 16 fev. 2004. 3. Entretanto, não ficou comprovada a violação ao relógio medidor, atraindo, no
caso, a incidência da súmula 7 do stJ. 4. É possível a compensação da verba honorária em casos de sucumbência recíproca, ainda que uma das partes seja beneficiária da assistência judiciária gratuita. Precedentes: REsp
693741/rs, 2ª turma, min. Castro meira, DJ, 30 maio 2005; resp 684150/rs, 4ª turma, min. Aldir Passarinho,
DJ, 16 maio 2005. 5. recurso especial parcialmente conhecido e, nesse ponto, provido” (resp nº 791.909-rs, 1ª
turma. rel. min. teori Albino Zavascki. Julg. 6.12.2005. DJ, 19 dez. 2005).
Agrg no eresp 1.003.667-rs, 1ª seção. rel. min. Luis Fux. Julg. 23.6.2010. DJe, 25 ago. 2010.
Agrg no resp 1.203.818-sP, 1ª turma. rel. min. Arnaldo esteves Lima. Julg. 22.11.2011. DJe, 29 nov. 2011; resp
1.267.302-sP, 2ª turma. rel. min. mauro Campbell marques. Julg. 8.11.2011. DJe, 17 nov. 2011.
589
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
590
não obstante o direito de greve esteja reconhecido pela Constituição, e tenha
sido corretamente estendido aos servidores públicos (art. 37, vii), no caso dos serviços
essenciais, as leis nº 7.783/89 e nº 11.473/07 impõem a prestação de serviços mínimos,
sob pena, dentre outros aspectos, de a greve ser reputada abusiva.
o princípio a ser examinado em seguida é o da igualdade, que admite várias
vertentes quando aplicado à prestação dos serviços públicos, quais sejam:
- Impessoalidade na sua prestação – não pode o prestador do serviço público negar
a sua prestação a qualquer usuário, que deve receber, ressalvadas situações
especiais devidamente justificadas (por exemplo: pessoas idosas, portadoras
de deficiência, gestantes etc.) o mesmo tratamento independentemente do
sexo, opção religiosa etc.;
- Não discriminação tarifária – Poderia a isonomia tarifária ser apresentada como
decorrência direta da impessoalidade. todavia, a importância da questão,
suscitada especialmente em razão da criação das chamadas tarifas sociais adotadas para o fornecimento de energia elétrica, por exemplo, confere ao tema
importância especial. ou seja, a não discriminação tarifária impede a cobrança
de tarifas diferenciadas em razão de critérios irrelevantes, como sexo ou opção
religiosa, mas admite, todavia, diferenciação em razão de circunstâncias de
ordem social, como a renda familiar;
- Universalidade – o dever imposto aos prestadores de serviço público de estender
o fornecimento a todo o território nacional, esteja o usuário em pequena cidade
da região norte ou na Grande são Paulo, é decorrência direta da aplicação do
princípio da universalidade. nos setores de energia elétrica e telefonia, por
exemplo, a fixação de metas de universalização, por meio das quais os concessionários se obrigam, em prazos contratualmente definidos, a disponibilizar o
serviço a todos os brasileiros é um dos aspectos mais importantes dos contatos
de concessão;
A mutabilidade corresponde a outro princípio adotado pelo regime jurídico dos
serviços públicos. Conforme observa marçal Justen Filho, “há um dever para a Administração de atualizar a prestação do serviço, tomando em vista as modificações técnicas,
jurídicas e econômicas supervenientes. Isso significa ausência de direito adquirido
dos prestadores do serviço e dos usuários à manutenção das condições anteriores ou
originais”.14
A aplicação desse princípio se faz sentir de modo mais evidente nas concessões
de serviço público celebradas por longos prazos, que não raramente ultrapassam os 30
anos. A necessidade de atualização dos serviços (que, nos termos do art. 6º, §2º, da Lei
nº 8.987/95, “compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações
e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço”) e a superveniência
de circunstâncias geopolíticas imprevisíveis impõem a adoção, no próprio contrato, de
técnicas que permitam incorporar as modificações econômicas, sociais, tecnológicas e
manter o equilíbrio econômico-financeiro da tarifa.
A adoção de mecanismos adequados para a plena realização do princípio da
mutabilidade constitui um dos maiores desafios para os que estudam as concessões
de serviço público e a maior fonte de risco para os empresários que se aventuram a
explorar concessões de serviço público.
14
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 490.
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
no Brasil, a Constituição Federal (art. 175, parágrafo único, iv) determina que lei
deve estabelecer o conceito de serviço adequado. Com o objetivo de dar cumprimento
ao dispositivo constitucional, a Lei nº 8.987/95, que cuida das concessões e permissões
de serviço público, em seu art. 6º, §1º, define serviço adequado como “o que satisfaz as
condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
Ao fixar a ideia de serviço adequado — que compreende todos os princípios
—, o ordenamento jurídico pátrio permite extrair uma série de parâmetros a serem
observados na prestação dos serviços públicos.
Além dos princípios da continuidade (expressamente mencionado pelo supracitado dispositivo da Lei nº 8.987/95 e que compreende a regularidade), igualdade (que
compreende o conceito legal de generalidade) e mutabilidade (que compreende o dever
de atualidade do serviço) já mencionados, devem ser acrescentados outros, como a
eficiência, a modicidade tarifária e a cortesia.
o princípio da eficiência aplicável aos serviços públicos importa em que a sua
prestação seja precedida do necessário planejamento por parte do poder público de
modo a melhor atender à demanda da população. devem ser buscadas soluções que
sejam capazes de atender de forma adequada ao maior número possível de usuários
ao menor custo possível para a sociedade.
o princípio da modicidade tarifária substitui o da gratuidade, anteriormente propugnado pelos estudiosos do tema como de aplicação compulsória a todos os serviços,
tanto os uti universi quanto os uti singuli. A adoção de novas concepções políticas tem
levado o estado a prestar inúmeros serviços uti singuli mediante a cobrança de taxas,
quando a prestação é feita em caráter compulsório, ou de tarifas, quando o serviço é
prestado em razão de prévio consentimento entre o prestador e o usuário.15
A adoção do princípio da modicidade tarifária obriga os prestadores de serviço
a fixarem as tarifas em parâmetros que permitam compreender o maior número possível de usuários — o que igualmente permite a realização do princípio da isonomia.
A adoção do princípio da modicidade tarifária importa em que não seja observada a
lógica do mercado na fixação do preço a ser cobrado do usuário. De acordo com os
parâmetros da microeconomia, o preço do produto ou do serviço deve ser fixado de
modo a maximizar o lucro do empresário, e não necessariamente de modo a alcançar
o número possível de usuários.
no caso das concessões, não obstante o valor da tarifa seja indicado pelo empresário em sua proposta apresentada na licitação, cumpre ao poder concedente indicar
15
no seguinte julgado, o supremo tribunal Federal tratou da distinção entre taxas e tarifas (ou preços públicos):
“tributário. energia elétrica. encargos criados pela Lei 10.438/02. natureza jurídica correspondente a preço
público ou tarifa. inaplicabilidade do regime tributário. Ausência de compulsoriedade na fruição dos serviços.
receita originária e privada destinada a remunerar concessionárias, permissionárias e autorizadas integrantes
do sistema interligado nacional. re improvido. i - os encargos de capacidade emergencial, de aquisição de
energia elétrica emergencial e de energia livre adquirida no mAe, instituídos pela Lei 10.438/02, não possuem
natureza tributária. ii - encargos destituídos de compulsoriedade, razão pela qual correspondem a tarifas ou
preços públicos. iii - verbas que constituem receita originária e privada, destinada a remunerar concessionárias,
permissionárias e autorizadas pelos custos do serviço, incluindo sua manutenção, melhora e expansão, e medidas para prevenir momentos de escassez. iv - o art. 175, iii, da CF autoriza a subordinação dos referidos encargos à política tarifária governamental. v - inocorrência de afronta aos princípios da legalidade, da não-afetação,
da moralidade, da isonomia, da proporcionalidade e da razoabilidade. iv - recurso extraordinário conhecido,
ao qual se nega provimento.” (re nº 541.511-rs, Pleno. rel. min. ricardo Lewandowski. Julg. 22.4.2009. DJe,
26 jun. 2009)
591
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
592
os valores máximos e, quando possível, admitir mecanismos de competição de modo
a forçar os prestadores do serviço a reduzir as tarifas cobradas.
o princípio da cortesia, finalmente, traduz-se no simples dever imposto aos prestadores do serviço de tratar os usuários com respeito.
11.9 regime jurídico do usuário: Código de defesa do Consumidor
os princípios do serviço público se impõem aos prestadores não em caráter
meramente programático, mas como obrigações capazes de gerar direitos subjetivos
oponíveis tanto aos concessionários quanto ao estado.
os usuários não são, é evidente, titulares apenas de direitos. A eles são igualmente
impostas algumas obrigações, de modo que se pode falar em regime jurídico do usuário.
A preocupação com a proteção do usuário levou à modificação do texto constitucional (emenda Constitucional nº 19/98) que fez inserir no art. 37, §3º, a determinação
para que lei disciplinasse “as formas de participação do usuário na administração pública
direta e indireta, regulando especialmente: i - as reclamações relativas à prestação dos
serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao
usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços”.
não obstante a não aprovação deste que deveria ser o estatuto de Proteção do
usuário do serviço Público,16 a necessidade de observância dos princípios aqui mencionados e das regras decorrentes das leis especiais reguladoras das diversas categorias de
serviço público permite fixar alguns parâmetros acerca do regime jurídico do usuário.
Antes de avançar na fixação dos direitos e das obrigações do usuário, deve ser
levado em conta que a relação jurídica estabelecida entre ele e o poder público (ou
entidade privada encarregada da prestação) apresenta algumas particularidades:
- trata-se de uma relação de submissão, em que o usuário se sujeita aos poderes
de ordenação do estado sem dispor de liberdade para discutir as condições em
que o serviço será prestado, ainda que a prestação decorra do consentimento
do usuário a ser formalizado por meio de contrato de adesão;
- A execução do serviço pode originar-se de situação regida pelo direito Público
ou pelo direito Privado. Há situações em que a relação jurídica entre o usuário
e o prestador surge de um ato administrativo (a expedição de um passaporte,
por exemplo), da simples ocorrência de determinada situação fática e de sua
sujeição aos termos da lei (hipótese que se verifica com mais frequência na
prestação de serviço uti universi, de que seria exemplo a prestação de serviços
de segurança pública ou de iluminação pública) ou da adesão do usuário a
um contrato (o que ocorre com os serviços de telefonia, de energia elétrica de
transporte coletivo ou com a cobrança de pedágios nas vias públicas).
Feitas essas considerações iniciais acerca das condições em que os serviços públicos
são prestados, podemos, desde já, concluir pela necessidade de observância do Código
de Defesa do Consumidor (CDC).17
16
17
ressalva-se que o inciso ii do §3º do art. 37 da CF foi regulamentado pela Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à
informação).
no seguinte acórdão, o stJ deixou assente que a responsabilidade civil — objetiva — do ente público ou privado prestador de serviço público a que se refere o §6º do art. 37 da CF implica o dever de indenizar o usuário
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
discordamos, nesse ponto, das conclusões a que chega o ilustre advogado e autor
marçal Justen Filho, para quem “se cada usuário pretendesse invocar o maior benefício
individual possível, por meio das regras do direito do consumidor, os efeitos maléficos
recairiam sobre outros consumidores”.18 Argumenta ainda o autor que sendo o serviço
público “um instrumento de satisfação dos direitos fundamentais, em que as condições
unilateralmente fixadas pelo Estado refletem o modo de satisfazer o maior número de
sujeitos”, não seria possível aplicar aos serviços públicos o CdC.
não vemos, com a devida vênia, por que a vinculação dos serviços públicos aos
direitos fundamentais afaste a aplicação das regras do CdC, que buscam conferir proteção jurídica ao usuário. Afinal, os serviços públicos não são criados e prestados para a
satisfação das necessidades dos usuários vinculadas aos direitos fundamentais? Como,
então, a limitação dos direitos dos usuários pode realizar os direitos fundamentais?
18
independentemente de se configurar uma relação de consumo, tal como prevista no CDC, entre o prestador do
serviço público e o usuário:
“responsabilidade civil. Concessionária de telefonia. serviço público. interrupção. incêndio não criminoso. danos
materiais. empresa provedora de acesso à internet. Consumidora intermediária. inexistência de relação de consumo. Responsabilidade objetiva configurada. Caso fortuito. Excludente não caracterizada. Escopo de pacificação
social do processo. recurso não conhecido.
1. No que tange à definição de consumidor, a Segunda Seção desta Corte, ao julgar, aos 10.11.2004, o REsp
nº 541.867/BA, perfilhou-se à orientação doutrinária finalista ou subjetiva, de sorte que, de regra, o consumidor
intermediário, por adquirir produto ou usufruir de serviço com o fim de, direta ou indiretamente, dinamizar
ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo, não se enquadra na definição constante no art. 2º do CDC.
Denota-se, todavia, certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente, a aplicação das normas do CDC a determinados consumidores profissionais, desde que demonstrada, in
concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica.
2. A recorrida, pessoa jurídica com fins lucrativos, caracteriza-se como consumidora intermediária, porquanto se
utiliza dos serviços de telefonia prestados pela recorrente com intuito único de viabilizar sua própria atividade
produtiva, consistente no fornecimento de acesso à rede mundial de computadores (internet) e de consultorias
e assessoramento na construção de homepages, em virtude do que se afasta a existência de relação de consumo.
Ademais, a eventual hipossuficiência da empresa em momento algum foi considerada pelas instâncias ordinárias, não sendo lídimo cogitar-se a respeito nesta seara recursal, sob pena de indevida supressão de instância.
3. Todavia, in casu, mesmo não configurada a relação de consumo, e tampouco a fragilidade econômica, técnica ou jurídica
da recorrida, tem-se que o reconhecimento da responsabilidade civil da concessionária de telefonia permanecerá prescindindo
totalmente da comprovação de culpa, vez que incidentes as normas reguladoras da responsabilidade dos entes prestadores
de serviços públicos, a qual, assim como a do fornecedor, possui índole objetiva (art. 37, §6º, da CF/88), sendo dotada, portanto, dos mesmos elementos constitutivos. neste contexto, importa ressaltar que tais requisitos, quais sejam, ação
ou omissão, dano e nexo causal, restaram indubitavelmente reconhecidos pelas instâncias ordinárias, absolutamente soberanas no exame do acervo fático-probatório.
4. Por fim, com base na análise do conjunto fático-probatório, principalmente das perícias realizadas, cujo reexame
é vedado nesta seara recursal (súmula 07 da Corte), entenderam as instâncias ordinárias que o incêndio que acometeu as instalações telefônicas da concessionária não consubstancia caso fortuito, não havendo que se falar em
excludente da responsabilidade civil objetiva da recorrente.
5. diante do exposto, a manutenção da condenação da empresa concessionária de telefonia é medida de rigor,
mesmo que por outros fundamentos, alterando-se tão-somente a qualificação jurídica dos fatos delineados pelas
instâncias ordinárias, da responsabilidade consumerista para a dos entes prestadores de serviço público, ante a
identidade e comprovação dos elementos configuradores da responsabilização civil, ambas de ordem objetiva,
a par de restar comprovada a ausência de qualquer causa excludente da responsabilidade civil.
6. Com efeito, não se mostraria razoável, à luz dos princípios da celeridade na prestação jurisdicional, da economia processual, da proporcionalidade e da segurança jurídica, anular-se todo o processo, equivalente a 05
(cinco) anos de prestação de serviço judiciário, no qual restou exaustivamente discutida e demonstrada a responsabilidade civil da empresa concessionária de telefonia, sob pena de se privilegiar indevidamente o formalismo exacerbado em total detrimento do escopo de pacificação social do processo, mantendo-se situação de
instabilidade e ignorando-se por completo a orientação preconizada pelos modernos processualistas.
7. recurso especial não conhecido.” (resp nº 660.026-rJ, 4ª turma. rel. min. Jorge scartezzini. Julg. 3.5.2005. DJ,
27 jun. 2005)
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 492.
593
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
594
Ademais, se o argumento de que a invocação do maior benefício individual possível
resultasse em efeitos maléficos para os que prestam serviços, o CdC não deveria ser utilizado para regular qualquer relação jurídica, e não apenas as que envolvam a prestação
de serviços públicos.
o CdC (art. 3º), ao contrário, expressamente menciona a possibilidade de a
Administração Pública ser considerada fornecedora de serviços com vista a configurar
a relação entre ela e o usuário como de consumo.19 evidentemente que se algum dia
vier a ser aprovada a lei mencionada pelo art. 37, §3º, da Constituição Federal, que
cuidaria especificamente da proteção dos usuários dos serviços públicos, poder-se-ia
admitir a não aplicação do CdC em razão da prevalência dessa, que seria legislação
especial, em face do CdC.
em razão da realidade atual, não vemos qualquer razão de ordem jurídica ou
prática que justifique a não aplicação do CDC para definir direitos dos usuários de
serviço público.
Feitas essas considerações, pode-se afirmar que os direitos básicos do usuário
consistem, basicamente, em:
1. ter acesso ao serviço (que pode sofrer limitações em razão de condições especiais
eventualmente impostas por lei ou pela própria natureza do serviço, como a
de estar doente para poder ser internado em hospital público); e
2. Que a prestação do serviço seja feita de forma adequada, observando, além
dos princípios mencionados, as demais condições legais, regulamentares e
contratuais.
relativamente aos deveres, o usuário se encontra igualmente submetido, em
razão da aplicação direta da lei ou por força contratual, às normas da prestação do
serviço (e daí surgem obrigações como a de tratar com respeito outros usuários e os
servidores encarregados da prestação do serviço). Ademais, quando exigido, o usuário
tem a obrigação de pagar tarifa ou taxa, conforme o regime seja, respectivamente, privado ou público. no caso do regime público, o dever de pagar taxa pode ser imposto
independentemente de o serviço ser fruído, sendo suficiente para que o usuário assuma
essa obrigação que o serviço seja simplesmente posto à disposição (CF, art. 145, ii).
19
o superior tribunal de Justiça, no julgado que se segue, decidiu que se descaracteriza a relação de consumo entre
a administração pública e o usuário se o serviço público não é prestado mediante remuneração direta arcada pelo
usuário:
“Processual Civil. recurso especial. exceção de competência. Ação indenizatória. Prestação de serviço público.
Ausência de remuneração. Relação de consumo não-configurada. Desprovimento do recurso especial.
1. Hipótese de discussão do foro competente para processar e julgar ação indenizatória proposta contra o estado,
em face de morte causada por prestação de serviços médicos em hospital público, sob a alegação de existência de
relação de consumo.
2. O conceito de ‘serviço’ previsto na legislação consumerista exige para a sua configuração, necessariamente, que a atividade seja prestada mediante remuneração (art. 3º, §2º, do CDC).
3. Portanto, no caso dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de
Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo
hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento
de garantia fundamental (art. 196 da CF).
4. Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira universal, o que
impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica, afastando a possibilidade da incidência
das regras de competência contidas na legislação específica.
5. recurso especial desprovido.” (resp nº 493.181-sP, 1ª turma. rel. min. denise Arruda. Julg. 15.12.2005. DJ, 1º
fev. 2006, grifos nossos)
CAPítuLo 11
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11.10 Classificação do serviço público
Diversos critérios de classificação podem ser utilizados para estabelecer distintas
categorias de serviços públicos. Os mais importantes critérios de classificação são os
seguintes.
11.10.1 Classificação quanto ao destinatário: serviços públicos
uti universi (ou gerais) e serviços públicos uti singuli
(ou individuais)
todos os serviços (gerais ou individuais) devem ser disponibilizados pelo estado
à população, independentemente de quem seja seu destinatário. A divisão dos serviços
públicos em gerais e individuais examina a questão sob a ótica do usuário do serviço.
Verifica-se se é possível identificar a parcela de serviço que cada indivíduo usufrui. Por
exemplo: os serviços de iluminação pública (das vias públicas) são considerados uti
universi,20 porque não é possível indicar a parcela do serviço utilizada por cada possível
beneficiário. Diversa é a situação dos serviços de energia elétrica fornecidos em domicílio. Aqui, pode-se indicar a parcela utilizada por cada usuário.21
A relevância dessa classificação afeta a prerrogativa do poder público de cobrar
taxa, que somente é admitida para os serviços uti singuli (CF, art. 145, ii).22
11.10.2 Classificação quanto à titularidade: serviços federais, estaduais
e municipais
A distribuição das competências materiais entre as entidades que compõem a
Federação brasileira é tema constitucional dos mais complexos.
A Constituição Federal define, em primeiro lugar, as competências comuns (art. 23),
a serem exercidas pela união, pelos estados e pelos municípios. em relação a alguns
desses serviços, com vista ao melhor aproveitamento das iniciativas e esforços de todos
os entes envolvidos na prestação, a Constituição cria mecanismos de atuação conjunta.
É o que ocorre, por exemplo, com a criação do sistema único de saúde (CF, art. 200).
20
21
22
nesse sentido, stF: “Constitucional. tributário. taxa de iluminação Pública. município de Andradas, mG. i ilegitimidade da taxa, dado que o serviço de iluminação pública é um serviço destinado à coletividade toda,
prestado uti universi e não uti singuli. ii - Precedentes do stF. iii - Agravo não provido” (re nº 385.955-Agr/mG,
2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg. 19.8.2003. DJ, 26 set. 2003).
A emenda Constitucional n. 39, de 2002, expressamente admite a possibilidade de cobrança de “contribuição” em
razão da prestação dos serviços de iluminação pública. A mencionada emenda fez inserir no texto constitucional
o art. 149-A, que dispõe nos seguintes termos:
“Art. 149-A os municípios e o distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para
o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, i e iii.
Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia
elétrica.”
No julgado a que seguir se refere, o STF firmou entendimento sobre a natureza do serviço público de coleta
de lixo residencial: “Agravo regimental. recurso extraordinário. tributário. taxa de coleta de lixo domiciliar.
Município de Natal. Serviço específico e divisível. Precedentes. O acórdão recorrido afirmou que ‘o serviço de
coleta e remoção de lixo domiciliar, fornecido pelo município, é uti singuli, efetivamente usufruído pelo contribuinte, gerando benefícios que o atingem diretamente...’. Logo, é legítima a cobrança da taxa de Limpeza Pública,
dado que instituída em face de uma atuação estatal específica e divisível. Precedentes: RE 232.393, Relator o
ministro Carlos velloso, e re 241.790, relator o ministro sepúlveda Pertence. Agravo regimental a que se nega
provimento” (RE nº 440.992-AgR/RN, 1ª Turma. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 30.5.2006. DJ, 17 nov. 2006).
595
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
596
A Constituição estabelece, em seguida, as competências da União (art. 21).
Aos Estados “são reservadas as competências que não lhes sejam vedadas por
esta Constituição” (art. 25, §1º). Além da competência material residual, a Constituição
expressamente confere aos estados a competência para a prestação dos serviços locais
de gás canalizado (art. 25, §2º).
Para os Municípios, a Constituição Federal (art. 30, v) reserva a competência
para “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou de permissão,
os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter
essencial”. Além do serviço de transporte coletivo, a Constituição confere ainda expressamente aos Municípios o dever de “manter, com a cooperação técnica e financeira da
união e do estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental” (CF, art. 30,
vi, com redação dada pela emenda Constitucional nº 53/2006), de prestar os “serviços
de atendimento à saúde da população” (CF, art. 30, vii) e de “promover a proteção do
patrimônio histórico-cultural local” (CF, art. 30, iX).
Ao Distrito Federal “são atribuídas as competências legislativas reservadas aos
estados e municípios” (CF, art. 32, §1º).
A competência dos entes federativos não se esgota, todavia, nas hipóteses expressamente mencionadas pela Constituição Federal.23 Além desses serviços, a união, os estados, os municípios e o distrito Federal podem prestar outros, desde que não invadam:
1. A esfera de atuação dos agentes particulares, atribuindo indevidamente natureza
pública à atividade privada (conforme examinado neste capítulo, há limites ao
poder do estado de publicizar atividades); ou
2. A esfera privativa de atuação de outra entidade política (município não pode
prestar serviço reservado pela Constituição à união, por exemplo).
23
nos julgamentos a que abaixo se refere, o supremo tribunal Federal considerou indevida a interferência de
estado-membro nas relações jurídico-contratuais entre o poder concedente federal ou municipal e as empresas
concessionárias:
“Ação direta de inconstitucionalidade – Concessão de serviços públicos – invasão, pelo estado-membro, da
esfera de competência da união e dos municípios – impossibilidade de interferência do estado-membro nas
relações jurídico-contratuais entre o poder concedente federal ou municipal e as empresas concessionárias –
inviabilidade da alteração, por lei estadual, das condições previstas na licitação e formalmente estipuladas em
contrato de concessão de serviços públicos, sob regime federal e municipal – medida cautelar deferida. – Os
Estados-membros — que não podem interferir na esfera das relações jurídico-contratuais estabelecidas entre o poder concedente (quando este for a União Federal ou o Município) e as empresas concessionárias — também não dispõem de competência para modificar ou alterar as condições, que, previstas na licitação, acham-se formalmente estipuladas no contrato
de concessão celebrado pela União (energia elétrica – CF, art. 21, XII, “b”) e pelo Município (fornecimento de água – CF,
art. 30, I e V), de um lado, com as concessionárias, de outro, notadamente se essa ingerência normativa, ao determinar a
suspensão temporária do pagamento das tarifas devidas pela prestação dos serviços concedidos (serviços de energia elétrica,
sob regime de concessão federal, e serviços de esgoto e abastecimento de água, sob regime de concessão municipal), afetar o
equilíbrio financeiro resultante dessa relação jurídico-contratual de direito administrativo.” (Adi nº 2.337-mC/sC, Pleno.
rel. min. Celso de mello. Julg. 21.6.2002. DJ, 21 jun. 2002, grifos nossos)
“Ação direta de inconstitucionalidade. Argüição de inconstitucionalidade da Lei 11.462, de 17.04.2000, do estado
do rio Grande do sul. Pedido de liminar. – Plausibilidade jurídica da argüição de inconstitucionalidade com
base na alegação de afronta aos artigos 175, caput, e parágrafo único, i, iii e v, e 37, XXi, todos da Constituição
Federal, porquanto Lei estadual, máxime quando diz respeito à concessão de serviço público federal e municipal, como
ocorre no caso, não pode alterar as condições da relação contratual entre o poder concedente e os concessionários sem causar
descompasso entre a tarifa e a obrigação de manter serviço adequado em favor dos usuários. – Caracterização, por outro
lado, do periculum in mora. Liminar deferida, para suspender, ex nunc, a eficácia da Lei nº 11.462, de 17.04.2000,
do estado do rio Grande do sul.” (Adi nº 2.299-mC/rs, Pleno. rel. min. moreira Alves. Julg. 28.3.2001. DJ, 29
ago. 2003, grifos nossos)
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
11.10.3 Classificação quanto à essencialidade: serviços essenciais e
serviços não essenciais
A divisão dos serviços quanto à essencialidade, não obstante não observe parâmetros precisos, possui relevância prática.
A necessidade de reconhecer a alguns serviços o caráter de essencial é adotada
pela própria Constituição Federal que, em seu art. 30, v, confere aos serviços de transporte coletivo o caráter de essencial. nessa mesma linha, a Lei nº 7.783/89, que regula o
direito de greve, em seu art. 10, considera essenciais os seguintes serviços: “i - tratamento
e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
ii - assistência médica e hospitalar; iii - distribuição e comercialização de medicamentos
e alimentos; iv - funerários; v - transporte coletivo; vi - captação e tratamento de esgoto
e lixo; vii - telecomunicações; viii - guarda, uso e controle de substâncias radioativas,
equipamentos e materiais nucleares; iX - processamento de dados ligados a serviços
essenciais; X - controle de tráfego aéreo; Xi - compensação bancária”.
Idêntica solução é a adotada pela Lei nº 11.473/07, que define, em seu art. 3º, as
atividades e serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio: “i - o policiamento ostensivo; ii - o cumprimento
de mandados de prisão; iii - o cumprimento de alvarás de soltura; iv - a guarda, a
vigilância e a custódia de presos; v - os serviços técnico-periciais, qualquer que seja
sua modalidade; vi - o registro de ocorrências policiais”.
A essencialidade do serviço interessa não apenas ao exercício do direito de greve,
mas igualmente a situações em que ele esteja ligado à cobrança de tarifas. se se trata
de serviço essencial, a falta de pagamento não pode justificar a suspensão do fornecimento do serviço, o que obriga o prestador a utilizar outros instrumentos para cobrar
do usuário o valor devido.
11.10.4 Classificação quanto à forma de prestação: serviço centralizado
e serviço descentralizado
A Constituição Federal distribui competências às distintas entidades políticas
integrantes do sistema federativo. se a própria entidade política (união, estado ou município) presta o serviço, verificar-se-á prestação centralizada do serviço. Ao contrário,
se são criadas entidades administrativas (autarquias, fundações públicas ou empresas
públicas)24 às quais são outorgadas a prestação do serviço e, em alguns casos, a própria
titularidade do serviço, haverá prestação do serviço descentralizado.
11.10.5 Classificação quanto à gestão da prestação: gestão direta e
gestão indireta
O critério de classificação dos serviços quanto à forma de prestação (subitem
anterior) indica a possibilidade de o serviço ser prestado de forma centralizada ou
descentralizada.
24
A possibilidade de particulares integrarem o capital social das sociedades de economia mista parece-nos
constituir fato impeditivo para estas entidades prestarem serviços públicos, devendo esta entidade ser utilizada
somente quando o estado decidir intervir diretamente na ordem econômica.
597
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
598
em qualquer das duas hipóteses, a entidade incumbida da prestação do serviço
pode utilizar seus próprios meios (pessoal, material, equipamentos etc.) ou pode contratar empresa para proceder à prestação do serviço. na primeira hipótese, haverá gestão
direta; na segunda, gestão indireta.
exemplos:
1. se determinado município contrata empresa para prestar serviços de coleta
de lixo, de acordo com a classificação quanto à forma de prestação, o serviço
será centralizado, e a sua gestão será indireta;
2. se empresa pública municipal é criada para cuidar da preservação das praças
e das vias públicas e o faz com pessoal e equipamentos próprios, haverá serviço descentralizado (porque o município outorgou sua prestação a entidade
administrativa, no caso uma empresa pública) e gestão direta (porque a empresa pública não contratou empresa privada para cuidar do serviço, sendo
este prestado pela própria empresa pública).
A possibilidade de ser utilizada a gestão direta ou indireta é, muitas vezes, relacionada
com a essencialidade do serviço. Diogenes Gasparini afirma que os serviços essenciais são
“em princípio de execução privativa da Administração Pública”.25
Com a devida vênia, não há qualquer relação entre a essencialidade do serviço
e a sua gestão, que pode ser direta ou indireta.
Diversamente do que se verifica em relação à atividade de polícia administrativa,
em que há consenso acerca da impossibilidade de delegação a particulares, não existe
em nosso ordenamento jurídico qualquer definição legal ou jurisprudencial dos serviços
públicos que seriam ou não passíveis de gestão indireta.26
A jurisprudência não admite a delegação da atividade de polícia administrativa
a entidades privadas em razão do uso da força ou da violência ser “atributo” privativo
do Estado. Se formos utilizar o mesmo parâmetro, poderíamos afirmar que os serviços apontados pela Lei nº 11.473/07 como imprescindíveis, de que seriam exemplo a
guarda, a vigilância e a custódia de presos, ou os de defesa nacional, ou qualquer outro
que envolva a possibilidade de uso da força em sua prestação, não são passíveis de
delegação a particulares.
de outro lado, não obstante os serviços mencionados pela Lei nº 7.783/89 sejam
igualmente apontados como essenciais (energia elétrica, gás, telecomunicações etc.),
todos eles podem ser, em princípio, objeto de delegação a particulares, porque sua
prestação não envolve o uso da violência.
neste contexto, estamos a utilizar a expressão delegação a particulares em sentido
amplo, compreendendo não apenas a possibilidade de ser instituída uma concessão de
serviço público, mas também a simples contratação de empresa privada sob o regime
da Lei nº 8.666/93 para prestar os serviços.
25
26
GAsPArini. Direito administrativo.
não nos referimos, aqui, à possibilidade de ser instituída concessão ou permissão de serviço público — matéria
tratada no Capítulo 8. referimo-nos à simples contratação de empresa privada para prestar o serviço, ainda que
não se estabeleça qualquer vínculo entre a empresa privada e o usuário do serviço.
CAPítuLo 11
serviço PúBLiCo e intervenção do estAdo nA ordem eConômiCA
11.10.6 Outros critérios de classificação
Costumam-se dividir os serviços em administrativos e industriais. não admitimos
a validade dessa classificação porque os denominados serviços industriais são muitas
vezes confundidos com as atividades empresariais desenvolvidas pelo estado e não
podem, portanto, ser rotuladas como serviço público.
dividem-se ainda os serviços em próprios ou impróprios do estado. A absoluta
falta de sistemática para indicar o que é serviço próprio e o que é impróprio do estado
não permite igualmente a utilização desse critério. em casos extremos (defesa nacional,
por exemplo), poder-se-ia afirmar que se trate de serviço próprio do Estado.27 do outro
lado, todavia, o que seria impróprio? educação, cultura, assistência social, reconhecidos
como passíveis de exploração pela iniciativa privada, não são por acaso igualmente
próprios do estado? As atividades industriais são atividades impróprias do estado,
mas não podem ser enquadradas como serviços públicos impróprios pelo simples fato
de que não são serviços públicos.
27
Na seguinte deliberação do STJ adotou-se a classificação dicotômica serviços públicos próprios versus serviços
públicos impróprios:
“Administrativo – serviço de fornecimento de energia elétrica – Pagamento à empresa concessionária sob a
modalidade de tarifa – Corte por falta de pagamento: legalidade.
1. Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados
pelos tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde, educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como
os serviços de telefone, água e energia elétrica.
2. Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente,
por delegação, como previsto na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos
serviços públicos.
3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo
CDC, o que a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio.
4. os serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, porque prestados por concessionárias do serviço,
podem sofrer interrupção quando há inadimplência, como previsto no art. 6º, §3º, ii, da Lei 8.987/95, exige-se,
entretanto, que a interrupção seja antecedida por aviso, existindo na Lei 9.427/96, que criou a AneeL, idêntica
previsão.
5. A continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o
enriquecimento sem causa, repudiado pelo direito (arts. 42 e 71 do CdC, em interpretação conjunta).
6. recurso especial improvido.” (resp nº 705.203-sP, 2ª turma. rel. min. eliana Calmon. Julg. 11.10.2005. DJ,
07 nov. 2005)
599
CAPítuLo 12
AtividAde de Fomento
12.1 desenvolvimento da atividade de fomento
o exame do processo de formação das democracias modernas deve considerar
a existência de duas vertentes: uma relativa à formação do modelo econômico e outra
relativa à incorporação dos direitos fundamentais nos textos constitucionais.
o modelo econômico se fundamenta nos princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência; o modelo social e democrático, na realização de princípios relacionados
à função social da propriedade, à defesa do consumidor, à defesa do meio ambiente, à
redução das desigualdades regionais e sociais, dentre outros.
diante dessas duas vertentes, em função do modelo constitucional vigente no
Brasil, podemos chegar a duas conclusões:
1. os agentes privados não são capazes de alcançar, por seus próprios meios, os
objetivos propugnados pelo modelo democrático e social;
2. somente com a efetiva participação do estado, atuando em parceria com os
agentes privados, é possível conceber políticas que busquem realizar os objetivos e princípios do Estado Democrático e Social definidos pela Constituição
Federal.
Com a constatação de que o estado não é mera estrutura de dominação política,
mas instrumento para a realização das necessidades da população, especialmente as
relativas aos direitos fundamentais, a ele são atribuídos vários objetivos, muitos dos
quais coincidentes com os dos agentes privados.
o aumento da riqueza do País, por exemplo, é objetivo comum do estado e de
todos os agentes privados. Como pode o estado proceder ou de que instrumentos pode-se
valer para interferir na ordem econômica e promover o aumento da riqueza nacional? As
atividades estatais até o momento estudadas (de polícia e de prestação de serviços) são
suficientes e adequadas para que o Estado possa estimular os agentes privados a atuarem
de modo a garantir o desenvolvimento nacional, a erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais, a promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação?
A obrigação do estado de promover e orientar os agentes privados de modo a
que desenvolvam suas atividades de maneira a que seus benefícios sejam maximizados
e aproveitados por toda a sociedade e a constatação de que as atividades de polícia e de
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
602
serviço não são adequadas ao desempenho dessa atividade de promoção, orientação
e estímulo dos agentes privados levaram à criação dessa nova e importante atividade
estatal: a atividade de fomento.
no Dicionário de termos relacionados ao Terceiro Setor, a atividade de fomento é
apresentada como:
(...) a atuação do estado incentivando entidades privadas a prestar serviços de relevância
social em parceria com ele. A atividade de fomento pode se dar de várias formas, como
a concessão de títulos honoríficos (utilidade pública), concessão de vantagens tributárias
(imunidades e isenções) e transferência de recursos, seja mediante autorização em lei
(geralmente a lei do orçamento) ou convênios e termos de cooperação em geral. Aos poucos
o fomento público começa a ocupar maior espaço e importância junto ao estado, mudando
sua forma de atuação junto à sociedade. o estado percebe muitas vezes a conveniência
em incentivar entidades do terceiro setor para que exerçam suas atividades e produzam
serviços que revertam em diversos benefícios à sociedade em geral, reconhecendo, ao
mesmo tempo, sua incapacidade para suprir de forma satisfatória as demandas sociais
e a inadequação na prestação isolada e monopolizada de serviços públicos. o estado
estimula o particular a se associar e atingir o bem comum, fornecendo meios para tanto.
Como ponto positivo, a atividade de fomento permite a busca e realização do interesse
público sem aumento do aparelho estatal, bem como o incentivo aos particulares na
criação e desenvolvimento de uma cultura associativista, o que, sem dúvida, constitui
fator importante no desenvolvimento de uma cidadania mais consciente e atuante.1
no presente capítulo, examinaremos as técnicas jurídicas utilizadas pelo estado
na atividade de fomento.
devemos chamar a atenção do leitor para o fato de que é perceptível a falta de
importância que a doutrina e a legislação pátrias têm conferido ao tema. esse menosprezo talvez explique os vários erros incorridos nessa área que, no Brasil, ao invés de
cumprir seus propósitos de reduzir desigualdades regionais e sociais e de contribuir
para a melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro, tem sido, em muitas ocasiões,
fonte de corrupção, além de contribuir para a ampliação da concentração de riqueza.
esses desvios podem ser atribuídos à falta de planejamento e à utilização inadequada das técnicas de fomento, que ferem princípios básicos de moralidade e de
impessoalidade.
12.2 Fomento e outras atividades estatais
sem a pretensão de esgotar as atividades da Administração Pública, temos
buscado dividi-las em três grandes grupos: de polícia administrativa, prestacional e
de fomento.
A atividade de fomento não se confunde com a de prestação de serviços públicos.
esta se desenvolve quando a Administração Pública põe à disposição da população
utilidades públicas. se dividirmos as atividades em públicas e privadas, constatamos
que a prestação de serviço público consiste em uma atividade pública por meio da qual
1
diCionário de termos relacionados ao terceiro setor. Integração: revista eletrônica do terceiro setor. Fundação
Getulio Vargas. Disponível em: <http://integracao.fgvsp.br/ano5/12/administrando.htm>.
CAPítuLo 12
AtividAde de Fomento
a Administração Pública põe utilidades à disposição da coletividade, mas sem interferir
no funcionamento das atividades privadas. Por meio da atividade de fomento, ao contrário, o estado busca interferir nas atividades desenvolvidas pelos particulares por
meio de estímulos ou de vantagens concedidas.
Quando comparada com a polícia administrativa, o fomento apresenta aspectos
em comum, haja vista ambos serem atividades públicas que buscam interferir no desempenho das atividades desenvolvidas pelos agentes privados. distinguem-se, todavia, na
medida em que a atividade de polícia interfere na esfera privada por meio da imposição
de limitações, vedações ou condicionamentos ao exercício de direito e de atividades;
ao passo que, no desempenho da atividade de fomento, a Administração Pública se
utiliza de técnicas de estímulo e de promoção das atividades privadas. A atividade de
polícia, ademais, se vale da coação como instrumento básico para a realização dos seus
propósitos, o que pressupõe a estrita observância do princípio da legalidade; enquanto
os instrumentos de fomento não são impostos, mas simplesmente postos à disposição
dos particulares, que podem querer ou não utilizar a ajuda ou os incentivos fornecidos
pela Administração Pública.
em razão de as técnicas de fomento serem utilizadas em função do livre consentimento dos particulares, admite-se a mitigação do princípio da reserva de lei, conforme
será examinado adiante.
Podemos ainda comparar a atividade de fomento com a intervenção direta do
estado na economia.
Conforme definido pela Constituição Federal (art. 173, caput), um dos fatores
que justificam a intervenção direta do Estado na economia é a identificação de relevante
interesse coletivo no desempenho daquela atividade. nesse sentido, a atividade de fomento
pode-se apresentar como opção à intervenção direta: ao invés de criar empresa estatal
para desempenhar atividade empresarial de interesse coletivo, a Administração Pública
pode estimular os agentes privados a desempenharem a mesma função por meio das
técnicas de fomento.
A opção pela utilização das técnicas de fomento, preferencialmente à intervenção direta, pode resultar em benefícios maiores para a sociedade a um custo bem mais
reduzido, caso essas técnicas sejam corretamente utilizadas.
12.3 Atividade de fomento como dever constitucional
Em diversos dispositivos, a Constituição Federal define áreas em que o Estado
é chamado a intervir por meio da atividade de fomento.
em algumas situações, esse dever é imposto por meio de princípios gerais ou por
meio de normas de caráter programático. Isto se verifica quando o texto constitucional
define os objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º), ou ainda quando indica
os princípios da ordem econômica (art. 170). em outras situações, a Constituição abandona o caráter programático e impõe ao estado, de modo direto, o dever de incentivar
determinadas áreas ou atividades.
No art. 3º, são definidos como objetivos da República Federativa os seguintes:
i - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
ii - garantir o desenvolvimento nacional;
iii - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
603
604
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
iv - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.
no art. 170, ao indicar os princípios da ordem econômica, o texto constitucional
menciona, dentre outros, a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a
defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca pelo
pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte.
A busca pela realização dos citados objetivos e princípios deve envolver todos os
instrumentos de que o estado possa dispor. não podem ser descartados os instrumentos
da polícia administrativa e a prestação de serviços públicos.
A defesa do meio ambiente, por exemplo, pode ser feita por meio da atividade de
polícia (quando são fixados limites ou quando é exigida autorização para a exploração
de madeira, por exemplo), pela prestação de serviços (que objetivem, por exemplo, informar à população como proceder para preparar o solo para a colheita sem que se faça
necessária a realização de queimadas) ou por meio da atividade de fomento (quando
são oferecidas vantagens para as empresas substituírem equipamentos ou materiais
danosos ao meio ambiente).
Além das hipóteses mencionadas, a Constituição Federal, em diversas outras
oportunidades, impõe ao poder público o dever de utilizar técnicas de fomento, o que
se verifica, por exemplo, nas seguintes áreas:
- Cooperativismo (art. 174, 2º): “A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e
outras formas de associativismo”;
- educação (art. 205): “A educação, direito de todos e dever do estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho”;
- turismo (art.180): “A união, os estados, o distrito Federal e os municípios
promoverão e incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social
e econômico”;
- Cultura (art. 215): “o estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”;
- desporte (art. 217): “É dever do estado fomentar práticas desportivas formais
e não-formais”;
- Ciência e tecnologia (art. 218): “o estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”.
12.4 áreas de atuação
A atividade de fomento é normalmente associada à ideia de estímulo ao desenvolvimento econômico.
o exame dos dispositivos constitucionais permite concluir que fomento público
não está relacionado apenas ao estímulo das atividades empresariais, não obstante este
seja um dos seus principais focos de atuação. A ideia tradicional acerca da atividade
de fomento público é a de promoção e estímulo à melhoria da qualidade de vida da
população em todos os seus aspectos.
CAPítuLo 12
AtividAde de Fomento
Adotada essa concepção ampla, resta difícil identificar área social que não possa
ser afetada pela atividade de fomento: redução de desigualdades regionais, preservação
do patrimônio artístico, histórico e cultural, criação de empregos, incentivo a atividades
culturais e artísticas, desenvolvimento científico e tecnológico, planejamento urbanístico,
preservação do meio ambiente, cumprimento da função social da propriedade etc.
o desordenado crescimento dessa atividade e as crises estruturais do estado, que
têm levado à adoção de políticas macroeconômicas de redução dos gastos públicos, têm
resultado na redução da atividade de fomento.
outro aspecto a ser considerado em relação à utilização do fomento diz respeito
à possibilidade de ele esconder deficiências do mercado, afetando a competitividade
de alguns setores ou empresas em detrimento de outros.
A denominada “guerra fiscal” entre os Estados da Federação pode ser utilizada
como exemplo da utilização desordenada das técnicas de fomento. Ao invés de gerar
emprego e renda, os mecanismos fiscais utilizados por alguns Estados têm resultado
em queda das receitas públicas e no aumento das taxas de desemprego em diversas
regiões do País.
As políticas públicas de fomento devem igualmente considerar os padrões internacionais de competitividade e de livre comércio, sobretudo em razão das regras fixadas
pela organização mundial do Comércio (omC), da qual o Brasil faz parte.
no plano internacional, a propósito, podemos mencionar as mazelas que a adoção
das políticas de subsídios agrícolas utilizadas pela união europeia tem ocasionado aos
países em desenvolvimento.
12.5 Fomento como atividade jurídica
Diversamente do que se verificou com as atividades de polícia e prestacional, que
têm sido objeto de intensa preocupação e cuidado por parte da doutrina e do legislador,
a atividade de fomento tem sido relegada aos desígnios da conveniência dos administradores públicos. A importância que essa atividade assume nos dias atuais, o volume
dos recursos envolvidos e a possibilidade de serem geradas distorções no mercado
pela má utilização dos seus instrumentos impõem a plena submissão da atividade de
fomento ao direito.
Cumpre, portanto, cotejar a atividade de fomento e os seus instrumentos com
algumas questões relevantes para o direito Administrativo.
o primeiro aspecto jurídico a ser considerado na atividade de fomento diz respeito
ao seu relacionamento com o princípio da legalidade administrativa.2
2
Acerca da necessidade da atividade de fomento desenvolvida pelo Banco do Brasil se submeter ao princípio da
legalidade, vide a decisão proferida pelo tCu no exame do Processo tC nº 007.272/2000-2 (Acórdão nº 1.162/04,
Plenário). seguem trechos do relatório e voto proferidos:
“112. Logo, prescinde-se, como quer o recorrente, que se faça qualquer distinção entre recursos públicos e privados, fontes que compõem os chamados recursos controlados empregados nas atividades de fomento ao crédito
rural, estando esses, indistintamente, submetidos à jurisdição do tCu. saliente-se, mais uma vez, que o Banco
do Brasil, nas operações relacionadas ao Crédito rural, está estritamente executando uma atividade administrativa, submetida à avaliação de sua legalidade. (...)
Como ressaltado na fundamentação que precedeu a decisão embargada, o tribunal, ao exercer sua missão
constitucional de controle externo da atividade administrativa, busca zelar pelo interesse público primário,
tendo pouca relevância o interesse secundário, próprio da entidade. no caso concreto, o interesse primário,
estabelecido pelo constituinte e pelo legislador infraconstitucional a ser tutelado pelo tribunal, ao exercer sua
função fiscalizadora, é a viabilização do setor rural, por intermédio da concretização de atividades de fomento.”
(grifos nossos)
605
606
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
em princípio, a observância estrita da legalidade é necessária para regular atividades
estatais que importem em restrição de direitos. esse não é o caso da atividade de fomento,
que, ao contrário, consiste em oferecer estímulos aos agentes privados com vista à adoção
de comportamentos que possam gerar benefícios para a coletividade. É de se observar,
todavia, que em diversos dispositivos constitucionais é expressamente exigido do estado
que a utilização dos instrumentos de fomento tenha sido previamente aprovada em lei. É
o que se verifica, por exemplo:
- em matéria tributária (art. 150, §6º): “Qualquer subsídio ou isenção, redução
de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante
lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as
matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem
prejuízo do disposto no art. 155, §2º, Xii”;
- em matéria cultural (art. 216, §3º): “A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”;
- Em matéria de desenvolvimento científico e tecnológico (art. 218, §4º): “A lei
apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos
e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado,
desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da
produtividade de seu trabalho”.
Além da legalidade, o exercício da atividade de fomento deve submeter-se a
diversos outros princípios do direito Administrativo.
É imperioso que a concessão de benefícios observe critérios de impessoalidade e
de moralidade.
Conforme já foi observado, os incentivos regionais efetuados por meio de juros
favorecidos para financiamento de atividades prioritárias (CF, art. 43, §2º, ii) concedidos
historicamente pelo Banco do nordeste do Brasil (BnB) e pelo Banco da Amazônia
(BAsA), em razão da absoluta falta de critério para concessão, durante longo período,
foram utilizados apenas para favorecer grupos políticos, sendo fonte de concentração
de renda nessas regiões, e não instrumento de desenvolvimento regional.
A concessão de benefícios, incentivos ou de quaisquer outros instrumentos de
fomento, em razão de evidentes limitações orçamentárias, normalmente não alcança
todos os possíveis interessados. É necessário, então, definir critérios objetivos que
permitam identificar aqueles que irão receber o benefício e os que serão preteridos.
se não for possível conceder empréstimos com juros subsidiados a todos os empresários que atuem na região nordeste, ou que se dediquem ao turismo, por exemplo,
devem ser necessariamente definidos os critérios prioritários de concessão, de modo a
evitar qualquer discricionariedade administrativa.
em igual sentido, vide igualmente o Acórdão tCu nº 624/03, Plenário: “Assim sendo, sempre que a realização de
licitação não trouxer prejuízos à consecução dos objetivos da entidade, por não afetar a agilidade requerida para
sua atuação eficiente no mercado concorrencial, remanesce a obrigatoriedade da licitação. Quanto à natureza
do crédito rural, examinei a matéria exaustivamente quando do Acórdão nº 55/2003 - Plenário, relativo ao tC
007.272/2000-2, que tratava de solicitação da Comissão de Agricultura e Política rural da Câmara dos deputados. Concluí, naquela oportunidade, que a concessão de crédito rural, por suas características, é uma atividade
de fomento e não econômica. Por essa razão, não seria de aplicar, nesta oportunidade, a jurisprudência do tCu
invocada pelo recorrente” (grifos nossos).
CAPítuLo 12
AtividAde de Fomento
em nenhuma outra área da Administração Pública a discricionariedade administrativa deve ser repelida com tanta ênfase. se não for estabelecido, de forma prévia
e objetiva, como será feita a distribuição desses benefícios, o resultado será um só:
corrupção.
A distribuição dos incentivos ou benefícios públicos deve ainda observar regras
de publicidade, de modo a garantir a competitividade entre os possíveis interessados.
A necessidade de observância desses e de outros princípios do direito Administrativo sujeita a atividade de fomento à procedimentalização administrativa, que deve
observar diferentes etapas.
A primeira etapa consiste no planejamento dos incentivos ou benefícios a serem
concedidos. Devem ser definidas as áreas prioritárias e identificados os possíveis beneficiários, bem como o exame acerca dos resultados que poderão advir da concessão dos
benefícios. Definidos esses parâmetros, devem ser estabelecidos os requisitos a serem
preenchidos pelos eventuais pretendentes. se houver concorrência, isto é, se o número
de interessados em obter os benefícios for superior ao volume de benefícios disponibilizados, devem ser indicados os critérios para deferimento e indeferimento dos pedidos.
Concedidos os benefícios, devem ser fortalecidas as atividades de acompanhamento e
de fiscalização da utilização dessas ajudas públicas.
deve haver a necessária segregação de funções públicas: o agente público encarregado da escolha dos beneficiários não pode participar do processo de prestação de
contas da aplicação dos recursos, por exemplo.
essas são normas básicas a serem observadas na concessão de benefícios pelo
poder público a fim de evitar o desvio dos recursos ou o favorecimento indevido de
pessoas.
12.6 técnicas de fomento
Ao longo da história, diversos instrumentos têm sido utilizados como técnicas
de fomento. A concessão de títulos nobiliários ou de cargos honoríficos, por exemplo,
foi durante algum tempo mencionada como instrumento de fomento.
A evolução dessa atividade impôs a restrição das técnicas de fomento, no sentido de
que somente podem ser reputadas como tal aquelas que tenham o propósito de beneficiar
a coletividade, e não apenas o particular a quem é outorgado o benefício.
Podem ser apontadas as seguintes técnicas de fomento:
1. Fiscais – os instrumentos disponibilizados pelo direito tributário, como os incentivos fiscais, as isenções, o parcelamento de débitos tributários, por exemplo,
podem ser utilizados para favorecer determinadas áreas ou atividades. nesse
sentido, o art. 43, §2º, iii, dispõe que os incentivos regionais compreenderão
“isenções, reduções ou diferimento temporário de tributos federais devidos
por pessoas físicas ou jurídicas”.3
2. Creditícias – A concessão de benefícios creditícios pode ser feita por diferentes
formas. A mais comum consiste na utilização de recursos públicos para a
concessão de financiamentos com taxas de juros subsidiadas, ou pela fixação
3
A título de exemplo dessa técnica de fomento, veja-se a gama de medidas tributárias referentes à realização, no
Brasil, da Copa das Confederações FiFA 2013 e da Copa do mundo FiFA 2014, adotadas mediante a Lei nº 12.350/10.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
608
de prazos especiais de pagamento. os bancos públicos4 (Banco nacional de
desenvolvimento econômico e social – Bndes, o Banco do Brasil, a Caixa
econômica Federal – CeF, o Banco do nordeste e o Banco da Amazônia) são
os principais agentes de que se tem valido o poder público federal para a
concessão dos benefícios creditícios.5
3. Transferências diretas – As transferências diretas de capitais para particulares,
no Brasil, têm sido utilizadas com grande ênfase em áreas sociais sem que
tenham o objetivo de desenvolver qualquer tipo de atividade privada. Como
exemplo desse tipo de ajuda pública, pode ser mencionado o Programa Bolsa
Família, de iniciativa do Governo do Presidente Luís inácio Lula da silva. A
concessão de subvenções somente pode ser considerada técnica da atividade
de fomento se for utilizada com o objetivo de estimular os agentes privados
a desenvolver atividades de interesse público. Podemos considerar as bolsas
de estudos concedidas por instituições federais (CnPQ e CAPes) como inseridas no âmbito do fomento público, na medida em que objetivam estimular
atividades científicas.
4
5
o uso da técnica de fomento pelos bancos de desenvolvimento foi objeto da seguinte decisão do supremo tribunal Federal:
“execução fiscal: débito representado por Cédula de Crédito Industrial em favor do BRDE – Banco Regional
de desenvolvimento do extremo sul: inidoneidade da via processual, resultante da solução negativa a questão
constitucional da suposta natureza autárquica interestadual, que se arroga o credor exequente: re provido. i.
Atividade econômica do estado: intervenção suplementar no domínio econômico ou exploração de serviço
público. 1. Ainda que se devesse reduzir a participação suplementar do estado na atividade econômica ‘stricto
sensu’ — objeto do art. 170 CF/69 — aquela que se faça mediante o apelo a técnica privatística das empresas
estatais de forma mercantil não basta a descaracterização, em tese, da natureza autárquica de um banco de
desenvolvimento criado pelo Poder Público. 2. em tese, a assunção estatal, como serviço público, da atividade
dos bancos de desenvolvimento e tanto mais viável quanto e certo que, desde a Constituição de 1967, a elaboração e a execução de planos regionais de desenvolvimento foram explicitamente incluídos no rol da competência
da união: dispensa demonstração que, nosso regime de liberdade de iniciativa, a atividade de fomento dela,
desenvolvida pelos bancos de desenvolvimento — mediante empréstimos com prazo ou condições favorecidas,
prestação de garantias, intermediação de empréstimos externos ou tomada de participações acionarias —, são
um dos instrumentos primaciais da tarefa estatal de execução do planejamento econômico. ii. Autarquia interestadual de desenvolvimento: sua inviabilidade constitucional. 3. o dado diferencial da autarquia e a personalidade
de direito público (Celso Antônio), de que a podem dotar não só a união, mas também as demais entidades
políticas do Estado Federal, como técnicas de realização de sua função administrativa, em setor especifico subtraído a administração direta. 4. Por isso mesmo, a validade da criação de uma autarquia pressupõe que a sua
destinação institucional se compreenda toda na função administrativa da entidade matriz: 5. o objetivo
de fomento do desenvolvimento de região composta pelos territórios de três estados Federados ultrapassa o
raio da esfera administrativa de qualquer um deles, isoladamente considerado; só uma norma da Constituição
Federal poderia emprestar a manifestação conjunta, mediante convênio, de vontades estatais incompetentes
um poder que, individualmente, a todos eles falece. 6. As sucessivas Constituições da republica — além de não
abrirem explicitamente as unidades federadas a criação de entidades públicas de administração interestadual
—, têm reservado a união, expressa e privativamente, as atividades de planejamento e promoção do desenvolvimento regional: análise da temática regional no constitucionalismo federal brasileiro.” (re nº 120.932-rs, 1ª
turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 24.3.1992. DJ, 30 abr. 1992)
Consoante o que dispõe o §2º do art. 165 da Constituição Federal, a política de aplicação das agências financeiras
oficiais de fomento deve ser estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs
de intervenção do estAdo nA
ProPriedAde PrivAdA
13.1 Fundamentos para a intervenção do estado na propriedade
privada
Nos capítulos anteriores, verificamos que a efetividade dos princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência nos estados democráticos e sociais pressupõe a intervenção do estado na economia. essa constatação se contrapõe à perspectiva clássica
utilizada pelo direito Privado para examinar os instrumentos de atuação do direito
Público, segundo a qual a intervenção pública no âmbito privado importa, necessariamente, em restrição de liberdades e de direitos. Quando examinamos os instrumentos
públicos de intervenção na ordem econômica, percebemos que, ao contrário, em inúmeras situações o direito Público interfere no âmbito privado com o objetivo de assegurar
o exercício dos direitos privados e para garantir que a liberdade de atuação dos agentes
privados não seja afetada pela atuação dos próprios agentes privados.
em relação à propriedade privada, a situação não ocorre de modo diverso.
do ponto de vista do direito Privado, as limitações ao exercício da propriedade
privada somente deveriam encontrar limites no direito de propriedade de outrem,
sendo bom exemplo dessa situação as hipóteses relacionadas ao exercício do direito
de vizinhança.
A superação do estado liberal e a adoção do modelo de estado social e democrático impõem à propriedade privada limitações de outra ordem, como o dever de
cumprir sua função social. isso não importa na criação de dois regimes jurídicos para
a propriedade privada, um definido pelo Direito Privado e outro de natureza pública.
O regime jurídico do Direito de propriedade é um só: definido pelo Direito Privado com as derrogações impostas pelo Direito Público.
A aplicação dos preceitos de ordem pública à propriedade privada não deve ser
considerada, portanto, interferência indevida ou estranha do público em relação ao
privado. Ao contrário, o próprio direito Privado deve incorporar e absorver as normas
públicas como essenciais ao exercício da propriedade privada, que passa a ser considerada, em sua própria essência, um direito limitado e condicionado, especialmente no
que concerne à realização da sua função social.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
deve ser considerado inerente ao direito de propriedade privada que o seu exercício
esteja sujeito a limitações, que ele tenha que se submeter a servidões, que ele possa ser
objeto de requisições ou de tombamento ou, em casos extremos, que a propriedade possa
ser desapropriada pelo Estado em razão de interesses públicos definidos pela ordem jurídica
e que se sobrepõem aos do proprietário do bem.
É fácil perceber que de todos os instrumentos dos quais o estado pode se valer
para intervir na propriedade privada, o mais drástico é a desapropriação. Ainda quando
sujeito às limitações, servidões ou tombamentos, o proprietário do bem conserva sua
propriedade. Quando a propriedade privada é desapropriada, ao contrário, extingue-se
o direito de propriedade.
o exercício da potestade de desapropriar não se enquadra no modelo tripartite
clássico que temos aqui utilizado para definir as funções administrativas do Estado:
de polícia, prestacional e de fomento. Há autores que defendem, portanto, a existência
da atividade expropriatória como categoria distinta de atividade estatal.
A adoção do modelo tripartite de divisão das funções da Administração Pública
não tem a pretensão de esgotar ou de compreender todas as manifestações ou atividades
desenvolvidas pelo poder público. É o que se verifica com a atividade expropriatória do
estado, que se sujeita ao regime jurídico administrativo sem que possa ser enquadrada
em qualquer das outras três funções. Trata-se, portanto, de atividade específica do
estado, sujeita às normas da teoria Geral do direito Administrativo, mas disciplinada
por regras próprias que conferem prerrogativas especiais ao poder público.
13.2 desapropriação e fundamentos constitucionais: necessidade ou
utilidade pública e interesse social
A sujeição da propriedade privada ao cumprimento da sua função social pode
ser utilizada para justificar uma série de limitações ou de condicionamentos impostos
pelo estado.
Poderia ser questionada, todavia, se a necessidade de cumprimento da função
social poderia ser utilizada, de per si, para justiçar a adoção de medida tão drástica
que importe na perda da propriedade, especialmente diante da importância que o
ordenamento jurídico confere ao direito de propriedade, reconhecido como direito
fundamental pela Constituição Federal (art. 5º, caput e inciso XXii).
não se pode, ademais, admitir que o exercício da potestade expropriatória, que
constitui agressão efetiva e direta a um dos direitos fundamentais, seja utilizado com
fundamento apenas no conceito indeterminado de interesse público.
Conforme examinamos ao longo do presente trabalho, o interesse público não
é um conceito metajurídico. não podemos admitir que o exercício das prerrogativas
públicas possa ser justificado em razão de situações que não tenham sido devidamente
reguladas pela ordem jurídica.
Cabe à ordem jurídica indicar as situações e os fundamentos que legitimam o
estado a intervir na esfera dos direitos dos proprietários, devendo ainda indicar os
limites a serem observados pelo poder público no exercício dessas prerrogativas.
Diante da possibilidade de choques ou de conflitos entre os diversos interesses
e direitos existentes na sociedade e da necessidade de orientação desses direitos e interesses para a obtenção de benefícios para toda a coletividade, o ordenamento jurídico
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
eleva alguns desses interesses à categoria de públicos, atribuindo-lhes primazia sobre
os demais. Definidos os interesses públicos, cabe ainda ao ordenamento jurídico indicar
o seu titular, que não necessariamente é o estado, e as prerrogativas a serem utilizadas
por esse titular com vista à realização desses interesses.
em matéria de desapropriação, a Constituição Federal, em seu art. 5º, XXiv, estabelece os fundamentos básicos a serem observados. são eles: 1. necessidade ou utilidade pública;
e 2. interesse social.
A fim de não permanecer exclusivamente no campo dos conceitos indeterminados,
o texto constitucional faz referência direta à lei, atribuindo a esta a função de definir o
procedimento expropriatório e, portanto, o de indicar as situações de necessidade ou
de utilidade pública, e de interesse social.
As hipóteses de desapropriação por utilidade pública, que compreendem a necessidade pública, estão previstas no decreto-Lei nº 3.365/41, que em seu art. 5º indica as
seguintes hipóteses: a segurança nacional; a defesa do estado; o socorro público em
caso de calamidade; a salubridade pública; a criação e melhoramento de centros de
população, seu abastecimento regular de meios de subsistência; o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica; a assistência
pública, as obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações de clima e
fontes medicinais; a exploração ou a conservação dos serviços públicos; a abertura,
conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de
urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização
econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais;
o funcionamento dos meios de transporte coletivo; a preservação e conservação dos
monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou
rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais
valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente
dotados pela natureza; a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens móveis de valor histórico ou artístico; a construção de edifícios
públicos, monumentos comemorativos e cemitérios; a criação de estádios, aeródromos
ou campos de pouso para aeronaves; a reedição ou divulgação de obra ou invento de
natureza científica, artística ou literária; além de outros casos previstos por leis especiais.
A desapropriação por interesse social é disciplinada pela Lei nº 4.132/62.
são indicadas como hipóteses de interesse social: o aproveitamento de todo bem
improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino
econômico; a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração
não se obedeça a plano de zoneamento agrícola; o estabelecimento e a manutenção de
colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola: a manutenção de posseiros
em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham
construído sua habilitação, formando núcleos residenciais de mais de dez famílias; a
construção de casas populares; as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos,
transporte, eletrificação, armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam
ditas áreas socialmente aproveitadas; a proteção do solo e a preservação de cursos e
mananciais de água e de reservas florestais; a utilização de áreas, locais ou bens que,
por suas características, sejam apropriados ao desenvolvimento de atividades turísticas.
611
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
612
A Constituição Federal faz menção expressa a duas hipóteses de desapropriação
por interesse social (desapropriação para fins de política urbana: CF, art. 182, §4º, iii, e Lei
nº 10.257/01; e desapropriação para fins de reforma agrária: CF, art. 184, leis nº 4.504/64 e
nº 8.629/93, e Lei Complementar nº 76/93).
não obstante o texto da Constituição mencione a existência de necessidade ou
utilidade pública, não é apresentada qualquer distinção entre uma hipótese e outra. A
utilidade e a necessidade pública devem ser consideradas uma única hipótese de desapropriação.
são desprovidas de fundamento legal ou constitucional as tentativas de distinguir a
utilidade pública (que estaria relacionada a situações de conveniência administrativa)
da necessidade pública (que, de acordo com essa doutrina, estaria vinculada a hipóteses
de urgência e que obrigariam o poder público a desapropriar o bem).
A pontuação utilizada pela Constituição (“a lei estabelecerá o procedimento para
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social”), que
após a expressão necessidade ou utilidade pública inclui vírgula separando-a da expressão
interesse social, indica a evidente intenção de distinguir a primeira hipótese, de necessidade ou utilidade pública, da segunda, relacionada ao interesse social. As situações
apresentadas pelo decreto-Lei nº 3.365/41 e pela Lei nº 4.132/62 indicam como principal
característica da desapropriação por utilidade ou necessidade pública o fato de que
o bem desapropriado é tomado do particular com vista à sua utilização pelo próprio
poder público; ao passo que no interesse social, o poder público expropria o bem de
seu proprietário com vista a transferi-lo a outro particular, e não para mantê-lo com o
poder público expropriante.
devemos observar que as hipóteses de desapropriação por utilidade ou necessidade pública e por interesse social não se esgotam na legislação mencionada (decreto-Lei
nº 3.365/41 e pela Lei nº 4.132/62), sendo possível legislação especial expressamente admitir
a existência de outras hipóteses de desapropriação.
13.3 requisitos constitucionais
A leitura do mencionado art. 5º, XXiv, da Constituição Federal, permite extrair
os requisitos constitucionais a serem observados para a desapropriação. são eles:
1. A observância de procedimento administrativo;
2. A comprovação de necessidade ou utilidade pública, ou de interesse social;
3. o pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro, ressalvadas as hipóteses
previstas na Constituição Federal.
o segundo requisito constitucional à desapropriação diz respeito à necessidade
de realização de utilidade ou necessidade pública, ou de interesse social, já examinado
no item anterior. os demais requisitos serão examinados em seguida.
13.4 Procedimento administrativo
o primeiro requisito constitucional em matéria de desapropriação está relacionado
à necessidade de que ela deve ser o resultado de um procedimento administrativo definido em lei. A denominada desapropriação indireta, a ser examinada adiante, conforme
bem observa Hely Lopes meirelles, “não passa de esbulho da propriedade particular”.1
1
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 513.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
o procedimento administrativo da desapropriação é composto de três fases, a
saber: declaratória, executória e administrativa.
A primeira etapa do processo de desapropriação corresponde à fase declaratória.
Por meio de decreto (denominado decreto expropriatório), ou de lei, o poder
público declara bem ou bens específicos de utilidade pública ou de interesse social.
o ato deve, além de individualizar o bem, indicar a fundamentação legal da
desapropriação e a finalidade a que se destina.
não obstante a declaração de utilidade pública ou de interesse social seja atividade administrativa afeta ao Poder executivo, o art. 8º do decreto-Lei nº 3.365/41
autoriza o Poder Legislativo a tomar a iniciativa da desapropriação. nesta hipótese,
o instrumento para a declaração será a lei, cabendo ao Poder executivo praticar os atos
necessários à sua efetivação.
A declaração de utilidade pública ou de interesse social do bem não importa
em qualquer limitação ou restrição ao direito do proprietário, que está livre para usar
e dispor do bem. Alguns poucos efeitos, todavia, decorrem dessa declaração. são eles:
1. Fixa o estado do bem para a indicação do valor da indenização;
2. dá início à contagem do prazo de caducidade do ato declaratório; e
3. Autoriza o poder público a penetrar no imóvel.
A declaração de utilidade pública ou de interesse social do bem, em primeiro
lugar, fixa o seu estado para fins de avaliação da indenização a ser paga: nos termos
da súmula stF nº 23, é lícito ao proprietário construir no bem declarado de utilidade
pública ou de interesse social, mas não se incluirá no valor da indenização as eventuais
construções que venham a ser realizadas.
A declaração de utilidade pública ou de interesse social fixa, ainda, prazo para
que seja iniciada a fase seguinte, a fase executória, sob pena de, decorridos cinco ou
dois anos para as desapropriações por utilidade pública ou por interesse social, respectivamente, ocorrer a caducidade do ato declaratório. importa observar que se ocorrer a
caducidade, “somente decorrido um ano poderá ser o mesmo objeto de nova declaração”
(decreto-Lei nº 3.365/41, art. 10).
Finalmente, declarada a utilidade pública, nos termos do art. 7º do decreto-Lei
3.365/41, “ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios
compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de
força policial”. Com a faculdade de penetrar nos prédios, objetiva-se permitir a realização das avaliações estritamente necessárias à avaliação do bem com vista à fixação do
valor a ser pago.
A fase executória corresponde à segunda etapa da desapropriação.
esta fase pode ser conduzida exclusivamente no âmbito administrativo ou pode
ter de ser levada à apreciação judicial.
na fase administrativa, o poder público apresenta ao proprietário sua proposta
de indenização. se houver acordo, será efetuado o pagamento e a desapropriação será
considerada encerrada. Caso não haja acordo, o poder público necessitará da instauração da ação de desapropriação.
o rito da ação é especial, conforme estabelecido pelo decreto-Lei nº 3.365/41, e,
no caso de desapropriação para fins de reforma agrária, serão observados os procedimentos especial e sumário previstos na Lei Complementar nº 76/93.
A ação de desapropriação possui objetivo específico: obter, pela via judicial, o valor a
ser pago ao proprietário a título de indenização.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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em razão do poder de império de que se vale o poder público, a desapropriação
não necessita do consentimento do proprietário para se consumar. É necessário, todavia,
para que a desapropriação resulte na perda da propriedade, que ocorra o pagamento da
indenização. se houver consenso quanto ao valor a ser pago, encerra-se o processo na
instância administrativa. Se não houver consenso, é necessário que o valor seja definido
pelo Poder Judiciário em sentença.
Havendo consenso, o pagamento será efetuado em espécie (ou por meio da
entrega de outros imóveis ou bens, se o proprietário do bem desapropriado consentir); se houver a necessidade da propositura da ação judicial, devem ser observados
os procedimentos previstos no art. 100 da Constituição Federal, relativos à emissão de
precatórios, caso o autor da ação seja pessoa de direito público.
são igualmente relevantes os seguintes aspectos da ação de desapropriação:
- somente é lícito discutir no âmbito da ação de desapropriação o valor a ser
pago a título de indenização e eventuais incidentes da própria ação de desapropriação. outros aspectos relativos à desapropriação, que podem resultar
na anulação do processo, como o desvio de finalidade, devem ser levados à
apreciação judicial por meio de ação autônoma, que o decreto-Lei nº 3.365/41
denomina de ação direta (“Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício
do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá
ser decidida por ação direta”);
- o autor da ação de desapropriação será entidade política ou administrativa
(união, estado, município, empresa pública, autarquia, sociedade de economia
mista) ou pessoa privada que tenha recebido delegação do poder público (concessionário ou permissionário de serviço público).
- o réu da ação de desapropriação será o proprietário ou o superficiário do bem
(CC, art. 1.376), que, conforme examinaremos adiante, podem ser pessoas de
direito Privado ou de direito Público;2
- A participação do Ministério Público, não obstante esteja prevista de modo
expresso apenas na Lei Complementar nº 76/93 (art. 18, §2º) para as desapropriações para fins de reforma agrária, tem sido considerada obrigatória pela
jurisprudência do stJ em todas as ações;3
- É legítimo ao poder público expropriante solicitar, nos casos de urgência, a imissão provisória na posse do bem. Conforme já observado, o expropriante somente
adquire a propriedade com o pagamento da indenização. na hipótese de não
ter havido acordo, e da consequente propositura da ação de desapropriação,
não se poderia imaginar que importantes obras públicas ficassem paralisadas
no aguardo do trânsito em julgado da sentença judicial que fixará o valor a ser
pago. Havendo urgência, destarte, é legítimo ao poder público expropriante
requerer a sua imissão provisória na posse do bem de modo a poder executar
2
3
o stF, por ocasião do julgamento do ms nº 24.908-dF (Pleno. rel. min. Joaquim Barbosa. Julg. 27.10.2005. DJe,
29 jun. 2007), por maioria, reconheceu legitimidade ao promitente comprador para impugnar a validade de
decreto expropriatório.
Ademais, o Código Civil de 2002, em seu art. 1.376, que cuida do direito de superfície dispõe que “no caso de
extinção do direito de superfície em conseqüência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao
superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um”.
stJ. resp nº 486.645-sP, 1ª turma. rel. min. José delgado. Julg. 18.11.200. DJ, 09 fev. 2004.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
os fins que fundamentam a desapropriação, sendo necessário que efetue
depósito prévio nos termos indicados pelo art. 15, §1º, do mencionado decretolei. Efetuado o depósito, o proprietário do bem poderá levantar 80% do valor
depositado, nos termos do art. 33, §2º do decreto-Lei nº 3.365/41. o supremo
tribunal Federal tem jurisprudência no sentido de que não é obrigatório o
pagamento integral da indenização para a imissão na posse.4
13.5 indenização
13.5.1 indenização prévia, justa e em dinheiro
o terceiro requisito constitucional à desapropriação diz respeito ao pagamento
da indenização, aspecto do processo expropriatório que suscita inúmeros debates.
o primeiro aspecto a ser considerado acerca da indenização nas desapropriações
diz respeito à hipótese prevista no art. 243 da Constituição Federal. Procura-se, nessa
discussão, saber se essa hipótese se enquadra no conceito de desapropriação. dispõe o
mencionado artigo nos seguintes termos:
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de
plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao
assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem
qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
4
Precedentes:
“desapropriação. depósito prévio. imissão na posse. Precedentes da Corte. 1. Já assentou a Corte que o ‘depósito
prévio não importa o pagamento definitivo e justo conforme o artigo 5º, XXIV, da Lei Maior de 1988’, com o que não
existe ‘incompatibilidade do art. 3º do Decreto-Lei nº 1075/1970 e do art. 15 e seus parágrafos, Decreto-Lei nº 3.365/1941,
com os dispositivos constitucionais aludidos (incisos XXII, XXIII e XXIV do art. 5º e 182, §3º, da Constituição)’ (re
nº 184.069/sP, relator o ministro néri da silveira, dJ de 8/3/02). também a Primeira turma decidiu que a ‘norma
do artigo 3º do Decreto-Lei n. 1.075/70, que permite ao desapropriante o pagamento de metade do valor arbitrado, para
imitir-se provisoriamente na posse de imóvel urbano, já não era incompatível com a Carta precedente (RE 89.033 – RTJ
88/345 e RE 91.611 – RTJ 101/717) e nem o é com a atual’ (re nº 141.795/sP, relator o ministro ilmar Galvão, dJ de
29/9/95). 2. recurso extraordinário conhecido e provido.” (re nº 191.078-sP, 1ª turma. rel. min. menezes direito.
Julg. 15.4.2008. DJe, 20 jun. 2008)
“recurso extraordinário. Constitucional. desapropriação. imissão provisória na posse. exigência do pagamento
prévio e integral da indenização. impossibilidade. Constitucionalidade do art. 15 e parágrafos do decreto-Lei
nº 3.365/41. Precedente. 1. o Plenário desta Corte declarou a constitucionalidade do art. 15 e parágrafos do
decreto-Lei nº 3.365/41 e afastou a exigência do pagamento prévio e integral da indenização, para ser deferida a
imissão provisória na posse do bem expropriado. 2. recurso extraordinário conhecido e provido.” (re nº 216.964-sP,
2ª turma. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 10.11.1997. DJ, 16 fev. 2001)
“Ação de desapropriação. imissão na posse. – A imissão na posse, quando há desapropriação, é sempre provisória. – Assim, o §1º e suas alíneas do artigo 15 do decreto-Lei 3.365/41 é compatível com o princípio da justa e
prévia indenização em dinheiro previsto no art. 5º, XXiv, da atual Constituição. recurso extraordinário conhecido e provido.” (re nº 176.108-sP, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 12.6.1997. DJ, 26 fev. 1999)
“desapropriação. imóvel urbano. Justa indenização. decreto-Lei nº 1.075/70. imissão na posse. depósito prévio.
A jurisprudência do supremo tribunal Federal posiciona-se no sentido de que a garantia constitucional da justa
indenização, nas desapropriações, diz respeito ao pagamento do valor definitivo fixado — seja por acordo das
partes, seja por decisão judicial — momento em que ocorre a transferência do domínio. o depósito prévio permite ao desapropriante a simples imissão na posse do imóvel. A norma do art. 3º do decreto-Lei nº 1.075/70, que
permite ao desapropriante o pagamento da metade do valor arbitrado, para imitir-se provisoriamente na posse
de imóvel urbano, já não era incompatível com a Carta precedente (re 89.033 - rtJ 88/345 e re 91.611 - rtJ
101/717) e nem o é com a atual. recurso extraordinário não conhecido.” (re nº 164.186-sP, 1ª turma. rel. min.
ilmar Galvão. Julg. 19.11.1996. DJ, 07 fev. 1997)
615
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
616
o instituto disciplinado pelo dispositivo constitucional supra, e que se encontra
disciplinada pela Lei nº 8.257/91, mais se aproxima do simples confisco de bens, instituto
comum no direito Penal. não obstante o texto constitucional utilize o termo “expropriadas” (sinônimo de desapropriadas), falta ao instituto um dos requisitos constitucionais
necessários ao seu enquadramento como desapropriação: o pagamento de indenização.
de qualquer modo, seja hipótese especial de desapropriação, conforme admite
parte da doutrina,5 seja instituto distinto da desapropriação e mais próximo do confisco,
a hipótese prevista no art. 243 acima transcrito apresenta configuração jurídica própria
definida pelo próprio texto constitucional, de modo que o nome a ser utilizado para
designar-lhe não se mostra tema de maior relevância prática.
Sobre desapropriação-confisco, observa-se no STF parca jurisprudência, podendo-se
mencionar que a questão da extensão da desapropriação foi submetida ao descortino do
Plenário, conforme se vê no re nº 543.974-mG.6
superada a questão do art. 243 do texto constitucional, cumpre examinar outros
aspectos relevantes à indenização em desapropriação.
Quando se examina o pagamento da indenização, outro aspecto a ser considerado
diz respeito ao seu caráter preliminar.
Quando a Constituição Federal menciona que a indenização deve ser prévia,
determina que somente com o pagamento ocorrerá a transferência da propriedade,
não obstante seja legítimo ao poder público solicitar, conforme examinado, a imissão
provisória na posse.
Além de prévio, o pagamento da indenização deve ser justo. A definição do que
é justo, se fossem considerados tão somente os pontos de vista das partes do processo,
jamais seria objeto de consenso.
o critério básico a ser considerado pela Administração Pública expropriante em
sua proposta ou pelo juiz para pautar a definição do justo preço é o valor de mercado do
5
6
nesse sentido, cf. CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 19. ed.
A turma, acolhendo proposta do min. eros Grau, submeteu ao Plenário julgamento de recurso extraordinário,
do qual relator, em que se discutia se a desapropriação das glebas onde fossem localizadas culturas ilegais de
plantas psicotrópicas, nos termos do disposto no art. 243 da CF, restringir-se-ia à área efetivamente cultivada ou
estender-se-ia a todo o terreno:
“recurso extraordinário. Constitucional. expropriação. Glebas. Culturas ilegais. Plantas psicotrópicas. Artigo 243
da Constituição do Brasil. interpretação do direito. Linguagem do direito. Linguagem jurídica. Artigo 5º, Liv
da Constituição do Brasil. o chamado princípio da proporcionalidade. 1. Gleba, no artigo 243 da Constituição
do Brasil, só pode ser entendida como a propriedade na qual sejam localizadas culturas ilegais de plantas
psicotrópicas. o preceito não refere áreas em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, mas as glebas, no seu
todo. 2. A gleba expropriada será destinada ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios
e medicamentosos. 3. A linguagem jurídica corresponde à linguagem natural, de modo que é nesta, linguagem
natural, que se há de buscar o significado das palavras e expressões que se compõem naquela. Cada vocábulo nela
assume significado no contexto no qual inserido. O sentido de cada palavra há de ser discernido em cada caso.
no seu contexto e em face das circunstâncias do caso. não se pode atribuir à palavra qualquer sentido distinto
do que ela tem em estado de dicionário, ainda que não baste a consulta aos dicionários, ignorando-se o contexto
no qual ela é usada, para que esse sentido seja em cada caso discernido. A interpretação/aplicação do direito se
faz não apenas a partir de elementos colhidos do texto normativo [mundo do dever-ser], mas também a partir de
elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de dados da realidade [mundo do ser]. 4. o direito, qual
ensinou Carlos maximiliano, deve ser interpretado ‘inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva
um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis’. 5. o entendimento
sufragado no acórdão recorrido não pode ser acolhido, conduzindo ao absurdo de expropriar-se 150 m² de
terra rural para nesses mesmos 150 m² assentar-se colonos, tendo em vista o cultivo de produtos alimentícios e
medicamentosos. 6. não violação do preceito veiculado pelo artigo 5º, Liv da Constituição do Brasil e do chamado
‘princípio’ da proporcionalidade. Ausência de ‘desvio de poder legislativo’. recurso extraordinário a que se dá
provimento.” (stF. re nº 543.974-mG, Pleno. rel. min. eros Grau. Julg. 26.3.2009. DJe, 29 maio 2009)
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
bem, avaliação que deve adotar como parâmetro básico os laudos periciais apresentados.7
Assim, coberturas florestais que em razão de limitações administrativas não possam ser
objeto de exploração econômica, por exemplo, não são compreendidas no cálculo da
indenização — o STJ firmou a tese de que, não sendo possível a exploração econômica,
não há que se falar em condenação ao pagamento de indenização pela cobertura vegetal.8 Além disso, independentemente de eventual limitação, o stJ também entende que,
inexistindo prova de efetiva exploração lícita da cobertura vegetal quando do início da
desapropriação, seu valor não pode ser calculado em separado, devendo-se considerar
compreendido no preço de mercado do imóvel.9
A indenização deve, finalmente, ser paga em dinheiro, ressalvadas as hipóteses
previstas na Constituição Federal.
se houver consenso, é legítimo ao poder público efetuar o pagamento da indenização em dinheiro ou por meio da entrega de outros bens, inclusive de bens imóveis.
Não havendo consenso, a sentença judicial que fixe o valor a ser pago pelo poder
público deverá indicar o valor em moeda nacional corrente, devendo ser observados,
nesta hipótese, os procedimentos para emissão de precatórios, nos termos do art. 100
da Constituição Federal caso o expropriante seja pessoa de direito Público.
13.5.2 indenização em títulos
A regra é, portanto, o poder público pagar a indenização em espécie. As exceções
a essa regra, hipóteses em que o pagamento deve ser prévio, deve ser justo, mas não
é efetuado em dinheiro, estão previstas no texto da própria Constituição Federal, não
sendo lícito ao legislador ordinário criar outras situações.
o ordenamento constitucional somente admite duas hipóteses em que o pagamento da indenização será prévio, justo e em títulos. são elas:
1. Desapropriação para fins de política urbana;
2. Desapropriação para fins de reforma agrária.
A desapropriação para fins de política urbana está prevista no art. 182, §4º, iii,
da Constituição Federal e é regulada pela Lei nº 10.257/01, que instituiu o estatuto da
Cidade. Alguns autores a denominam de desapropriação sanção ou de desapropriação
urbanística sancionatória10 em razão de a indenização não ser paga em dinheiro e da
sua efetivação pressupor o não cumprimento da função social da propriedade.
o exame do dispositivo constitucional permite concluir que a desapropriação
para fins de política urbana:
7
8
9
10
Cf. stJ. resp nº 1.036.289-PA, 1ª turma. rel. min. Hamilton Carvalhido. Julg. 22.3.2011. DJe, 13 abr. 2011. Reafirma
o entendimento de que o juiz, ao fixar o valor da indenização, não pode desconsiderar o laudo pericial. Embora o
magistrado não esteja vinculado às conclusões do laudo, a prova pericial é indispensável ao pleito expropriatório,
devendo ser realizada nova perícia, caso o laudo inicialmente apresentado se mostre inadequado.
Nesse sentido, STJ: “Administrativo. Desapropriação. Reserva florestal. Indenização. Cobertura vegetal. 1. É
inviável examinar afronta a dispositivos constitucionais, cuja análise é de competência exclusiva da suprema
Corte, a teor do artigo 102, iii, da C.F. 2. Não havendo exploração econômica não há como haver condenação ao pagamento de indenização pela cobertura vegetal. 3. deve ser excluído do quantum indenizatório o valor referente
à cobertura vegetal. 4. recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido” (resp nº 617.527-ms, 2ª
turma. rel. min. Castro meira. Julg. 18.10.2005. DJ, 07 nov. 2005, grifos nossos).
stJ. Agrg no resp nº 1.099.359-mt, 1ª turma. rel. min. teori Zavascki. Julg. 14.2.2012. DJe, 17 fev. 2012.
nesse sentido, CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 650.
617
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
618
1. somente pode ser proposta pelo poder público municipal (e ao distrito Federal,
que acumula as competências municipais, nos termo do art. 32 da Constituição);
2. somente pode alcançar áreas incluídas no plano diretor, definido por meio de lei
municipal;
3. somente pode alcançar o solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado;
4. Deve observar os parâmetros e procedimentos definidos em lei federal, no caso
a Lei nº 10.257/01 — importa observar que não obstante a competência para
desapropriar para fins de política urbana seja do Município, a competência para
legislar sobre este tema é sempre da união, conforme será examinado adiante;
5. somente pode ser utilizada se a adoção de duas medidas preliminares não
forem suficientes para promover o adequado aproveitamento do solo. São elas
o “parcelamento ou edificação compulsórios” e o “imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana progressivo no tempo”; e
6. importará em pagamento da indenização “mediante títulos da dívida pública de
emissão previamente aprovada pelo senado Federal, com prazo de resgate
de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor
real da indenização e os juros legais”.
A segunda hipótese de desapropriação em que o pagamento da indenização é efetuado mediante a emissão de títulos ocorre na que se realiza para fins de reforma agrária.
essa categoria especial de desapropriação deve observar o que dispõe a Constituição
Federal (artigos 184, 185 e 186), bem como o previsto na Lei nº 8.629/93 e na Lei Complementar nº 76/93.
na desapropriação para fins de reforma agrária, devem ser observados os seguintes
parâmetros:
1. trata-se de desapropriação de competência exclusiva da União;
2. somente o imóvel que não esteja cumprindo sua função social pode ser objeto dessa
espécie de desapropriação;
3. o pagamento da indenização deve ser prévio e justo, mediante a emissão de “títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo
de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão”;
4. As benfeitorias úteis e necessárias localizadas no imóvel serão indenizadas em dinheiro;
5. são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária a pequena e a média
propriedade rural,11 assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua
outra, e a propriedade produtiva.
13.5.3 súmulas do supremo tribunal Federal e do superior tribunal
de Justiça sobre desapropriação
nenhum outro tema tem sido objeto de tantos enunciados de súmulas do superior
tribunal de Justiça e do supremo tribunal Federal quanto à desapropriação. Questões
relacionadas à incidência de juros, critérios para o cálculo dos honorários advocatícios e
para a atualização monetária do valor da indenização são os aspectos mais recorrentes.
11
no ms nº 25.066 (Pleno. rel. min. marco Aurélio. Julg. 14.12.2011. DJe, 16 abr. 2012), o stF entendeu que o cálculo da dimensão territorial da propriedade, para avaliar a possibilidade de desapropriá-la para fins de reforma
agrária, deve considerar a área global, ainda que inclua áreas economicamente inaproveitáveis, a exemplo daquelas de preservação permanente.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
transcrevemos, a seguir, em razão da sua importância, os enunciados das mencionadas súmulas:
- Supremo Tribunal Federal
Súmula nº 23 – Verificados os pressupostos legais para o licenciamento da obra, não o
impede a declaração de utilidade pública para desapropriação do imóvel, mas o valor da
obra não se incluirá na indenização, quando a desapropriação for efetivada.
Súmula nº 157 – É necessária prévia autorização do Presidente da república para
desapropriação, pelos estados, de empresa de energia elétrica.
Súmula nº 164 – no processo de desapropriação, são devidos juros compensatórios desde
a antecipada imissão de posse, ordenada pelo juiz, por motivo de urgência.
Súmula nº 218 – É competente o juízo da fazenda nacional da capital do estado, e não o
da situação da coisa, para a desapropriação promovida por empresa de energia elétrica,
se a união federal intervém como assistente.
Súmula nº 345 – na chamada desapropriação indireta, os juros compensatórios são devidos
a partir da perícia, desde que tenha atribuído valor atual ao imóvel (revogada)
Súmula nº 378 – na indenização por desapropriação incluem-se honorários do advogado
do expropriado
Súmula nº 416 – Pela demora no pagamento do preço da desapropriação não cabe
indenização complementar além dos juros.
Súmula nº 476 – desapropriadas as ações de uma sociedade, o poder desapropriante,
imitido na posse, pode exercer, desde logo, todos os direitos inerentes aos respectivos
títulos.
Súmula nº 479 – As margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de
expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização.
Súmula nº 561 – em desapropriação, é devida a correção monetária até a data do efetivo
pagamento da indenização, devendo proceder-se à atualização do cálculo, ainda que por
mais de uma vez.
Súmula nº 617 – A base de cálculo dos honorários de advogado em desapropriação é a
diferença entre a oferta e a indenização, corrigidas ambas monetariamente.
Súmula nº 618 – na desapropriação, direta ou indireta, a taxa dos juros compensatórios é
de 12% (doze por cento) ao ano.
Súmula nº 652 – não contraria a constituição o art. 15, §1º, do decreto-lei 3365/1941 (lei da
desapropriação por utilidade pública).
- Superior Tribunal de Justiça
Súmula nº 12 – em desapropriação, são cumuláveis juros compensatórios e moratórios.
Súmula nº 56 – na desapropriação para instituir servidão administrativa são devidos os
juros compensatórios pela limitação de uso.
Súmula nº 67 – na desapropriação, cabe a atualização monetária, ainda que por mais de
uma vez, independente do decurso de prazo superior a um ano entre o calculo e o efetivo
pagamento da indenização.
Súmula nº 69 – na desapropriação direta, os juros compensatórios são devidos desde a
antecipada imissão na posse e, na desapropriação indireta, a partir da efetiva ocupação
do imóvel.
Súmula nº 70 – os juros moratórios, na desapropriação direta ou indireta, contam-se desde
o transito em julgado da sentença.
Súmula nº 102 – A incidência dos juros moratórios sobre os compensatórios, nas ações
expropriatórias, não constitui anatocismo vedado em lei.
Súmula nº 113 – os juros compensatórios, na desapropriação direta, incidem a partir da
imissão na posse, calculados sobre o valor da indenização, corrigido monetariamente.
619
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
620
Súmula nº 114 – os juros compensatórios, na desapropriação indireta, incidem a partir da
ocupação, calculados sobre o valor da indenização, corrigido monetariamente.
Súmula nº 119 – A ação de desapropriação indireta prescreve em vinte anos.
Súmula nº 131 – nas ações de desapropriação incluem-se no calculo da verba advocatícia
as parcelas relativas aos juros compensatórios e moratórios, devidamente corrigidas.
Súmula nº 141 – os honorários de advogado em desapropriação direta são calculados sobre
a diferença entre a indenização e a oferta, corrigidas monetariamente.
Apresentadas as súmulas do stF e do stJ, examinaremos, em seguida, questões
acerca do cálculo dos juros, da correção monetária e dos honorários advocatícios em
desapropriação.
13.5.4 Juros compensatórios
O pagamento da indenização acrescida dos juros compensatórios, à base de 12%
ao ano, conforme definido pela Súmula STF nº 618, objetiva compensar o proprietário
do bem expropriado pela perda antecipada da posse.12
A desapropriação, conforme já foi mencionado, somente se consuma com o
pagamento da indenização. A expectativa, portanto, é de que o proprietário conserve
a posse do bem enquanto conservar a propriedade. Caso se verifique a perda da posse
antes da conclusão do processo de desapropriação, no cálculo do valor da indenização
devem ser computados os juros compensatórios. ou seja, em razão da necessidade
de que o pagamento da indenização nas desapropriações observe critérios de justiça,
a indenização a ser paga deve compreender não apenas o valor da propriedade, mas
igualmente o valor correspondente ao da perda da posse, caso esta última tenha ocorrido
antecipadamente à consumação da desapropriação.
tendo os juros compensatórios o objetivo de indenizar a perda da posse, se faz
necessário distinguir a desapropriação direta da desapropriação indireta. na desapropriação direta, fica caracterizada a perda da posse, com a imissão provisória na posse; na
desapropriação indireta, com a efetiva ocupação do bem pelo poder público. É de se concluir, portanto, que se em determinada desapropriação direta não tiver ocorrido imissão
na posse, não são devidos juros compensatórios. em relação à desapropriação indireta,
ao contrário, os juros compensatórios são devidos sempre, haja vista a caracterização
dessa impropriedade (ou esbulho), a que se convencionou denominar de desapropriação indireta, decorrer exatamente de situações em que o poder público, sem observar os
trâmites legais do processo expropriatório, impede o proprietário de exercer seus direitos
de propriedade, impondo restrições ao exercício dos direitos que decorreriam da posse.
Na busca pela definição de critérios para a incidência dos juros moratórios, foi editada a medida Provisória nº 2.183, em agosto de 2001, que, dentre outras alterações, inseriu
o art. 15-A no decreto-Lei nº 3.365/41,13 e que teve sua constitucionalidade questionada
perante o stF por meio da Adi nº 2.332-mC/dF.
12
13
STF: “Desapropriação. Juros compensatórios. Taxa. 12% ao ano. Súmula 618. 1. A jurisprudência do Supremo é
firme no sentido de que, ‘na desapropriação, direta ou indireta, a taxa dos juros compensatórios é de 12% [doze
por cento] ao ano’. Agravo regimental a que se nega provimento” (re nº 562.846, 2ª turma. rel. min. eros Grau.
Julg. 17.6.2008. DJe, 1º ago. 2008).
o art. 15-A do decreto-Lei nº 3.365/41, com a redação dada pela mP nº 2.332-2, dispõe nos seguintes termos:
“Art. 15-A. no caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse
social, inclusive para fins de reforma agrária, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
Por ocasião do julgamento do pedido de cautelar formulado na mencionada ação
direta de inconstitucionalidade, por maioria, foi determinada a suspensão de praticamente todos os dispositivos da mencionada mP.
em relação ao caput do citado art. 15-A, o stF, no exame do pedido de cautelar,
considerou a expressão “de até seis por cento” incompatível com o disposto na súmula
nº 618 do próprio tribunal, que determina que “a taxa de juros compensatórios é de
12% (doze por cento) ao ano”. Este último critério, ou seja, de que a taxa de juros deve
ser de 12% ao ano, e não de “até” 12% ao ano, como pretendia a medida provisória,
deve continuar a ser observado.14
Foi igualmente concedida cautelar para conferir “interpretação conforme à Constituição Federal no sentido de que a base de cálculo dos juros compensatórios será a
diferença eventualmente apurada entre 80% do preço ofertado em juízo e o valor do bem
fixado na sentença”.15 na eventualidade de ter ocorrido imissão provisória na posse,
conforme observamos, deve o poder público proceder ao depósito do valor do bem
nos termos definidos pelo caput do art. 15-A do decreto-lei, sendo lícito ao proprietário
levantar 80% desse valor. Em razão da possibilidade de levantamento, que pode ser
considerada como pagamento antecipado de parcela da indenização, a base de cálculo
para a incidência da taxa dos juros compensatórios deve ser o valor fixado na sentença,
deduzido do montante levantado pelo proprietário.
o fundamento utilizado pelo stF para conceder a cautelar e suspender os efeitos
dos diversos dispositivos do mencionado art. 15-A foi a ofensa ao princípio da justa
indenização na desapropriação, que restaria comprometido pela adoção dos critérios
de cálculo dos juros compensatórios definidos pela medida provisória.
nesse sentido, até o julgamento do mérito da mencionada Adi nº 2.332-mC/dF,
devem ser observados os critérios de cálculo dos juros compensatórios definidos pelas
súmulas do stF e stJ.
14
15
do bem, fixado na sentença, expressos em termos reais, incidirão juros compensatórios de até seis por cento ao
ano sobre o valor da diferença eventualmente apurada, a contar da imissão na posse, vedado o cálculo de juros
compostos.
§1º os juros compensatórios destinam-se, apenas, a compensar a perda de renda comprovadamente sofrida pelo
proprietário.
§2º Não serão devidos juros compensatórios quando o imóvel possuir graus de utilização da terra e de eficiência
na exploração iguais a zero.
§3º o disposto no caput deste artigo aplica-se também às ações ordinárias de indenização por apossamento
administrativo ou desapropriação indireta, bem assim às ações que visem a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público, em especial aqueles destinados à proteção ambiental, incidindo os juros sobre
o valor fixado na sentença.
§4º nas ações referidas no §3º, não será o Poder Público onerado por juros compensatórios relativos a período
anterior à aquisição da propriedade ou posse titulada pelo autor da ação.”
Acerca do tema, vide igualmente stJ: “Administrativo. desapropriação. Juros compensatórios. Percentual.
Eficácia da MP nº 1.577/97. ADIN nº 2.332/2001. Princípio do tempus regit actum. 1. em ação expropriatória os
juros compensatórios devem ser fixados à luz do princípio tempus regit actum nos termos da jurisprudência
predominante do STJ, no sentido de que a taxa de 6% (seis por cento) ao ano, prevista na MP nº 1.577/97, e suas
reedições, é aplicável, tão-somente, às situações ocorridas após a sua vigência. 2. A vigência da mP nº 1.577/97,
e suas reedições, permanece íntegra até a data da publicação do julgamento proferido na medida liminar
concedida na Adin nº 2.332 (dJu de 13.09.2001), que suspendeu, com efeitos ex nunc, a eficácia da expressão
de “até seis por cento ao ano”, constante do art. 15-A, do decreto-Lei nº 3.365/41. 3. ocorrida a imissão na posse
do imóvel desapropriado, após a vigência da mP nº 1.577/97 e em data anterior a liminar proferida na Adin
nº 2.332/DF, os juros compensatórios devem ser fixados no limite de 6% (seis por cento) ao ano, exclusivamente,
no período compreendido entre 21.08.00 (data da imissão na posse) e 13/09/2001 (publicação do acórdão
proferido pelo stF). 4. recurso especial provido em parte” (resp nº 437.577-sP, 1ª seção. rel. min. Castro meira.
Julg. 8.2.2006. DJ, 06 mar. 2006).
stF. Adi nº 2.332-mC/dF, Pleno. rel. min. moreira Alves. Julg. 5.9.2001. DJ, 02 abr. 2004.
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622
em resumo, podemos apresentar as seguintes regras acerca do pagamento dos
juros compensatórios em desapropriação:
1. A taxa de juros é de 12% ao ano, tanto na desapropriação direta quanto na desapropriação indireta (súmula stF nº 618);
2. os juros são devidos:
2.1 na desapropriação direta, desde a imissão provisória na posse e devem ser
calculados sobre o valor da indenização, corrigido monetariamente (súmulas stJ nº 69 e nº 113, e súmula stF nº 164); e
2.2 na desapropriação indireta, a partir da efetiva ocupação do imóvel, devendo
ser calculados sobre o valor da indenização, corrigido monetariamente
(súmulas stJ nº 69 e nº 114);
3. na desapropriação para instituir servidão administrativa, são devidos juros
compensatórios pela limitação do uso (súmula stJ nº 56);
4. As parcelas relativas aos juros compensatórios (assim como aos juros moratórios) incluem-se no cálculo da verba advocatícia; e
5. não poder haver cumulação de juros moratórios com lucros cessantes ou danos
emergentes, pois têm a mesma finalidade.16
13.5.5 Juros moratórios
os juros moratórios objetivam punir o devedor pela demora no cumprimento
de suas obrigações. em matéria de desapropriação, a expectativa é a de que, tão logo
ela seja encerrada, o pagamento da indenização seja efetuado.
em razão dessa expectativa, o stJ aprovou a súmula nº 70, cujo enunciado estabelece que, tanto na desapropriação direta quanto na desapropriação indireta, os juros
moratórios são devidos desde o trânsito em julgado da sentença.
A solução adotada pela súmula stJ nº 70 foi parcialmente revogada em razão da
vigência do art. 15-B do decreto-Lei nº 3.365/41, que dispõe nos seguintes termos:
Art. 15-B. nas ações a que se refere o art. 15-A, os juros moratórios destinam-se a recompor
a perda decorrente do atraso no efetivo pagamento da indenização fixada na decisão final
de mérito, e somente serão devidos à razão de até seis por cento ao ano, a partir de 1º de
janeiro do exercício seguinte àquele em que o pagamento deveria ser feito, nos termos
do art. 100 da Constituição.
nesse sentido, dentre outros aspectos, o mencionado art. 15-B estabelece que os
juros moratórios são devidos “a partir de 1º de janeiro do exercício seguinte àquele em
que o pagamento deveria ser feito, nos termos do art. 100 da Constituição”, e não do
trânsito em julgado da sentença, conforme definia a Súmula STJ nº 70.
o propósito do mencionado art. 15-B é adequar o pagamento dos juros moratórios,
em desapropriações, ao pagamento dos precatórios. ora, se os juros moratórios têm
por função punir o atraso no pagamento, sendo o devedor a Fazenda Pública, somente
16
nesse sentido, vide stJ: “Agravo regimental. desapropriação indireta. Honorários advocatícios – súmula 07 stJ
– Juros compensatórios e lucros cessantes – inadmissível a cumulação” (Agrg no Ag nº 342.117-rJ, 1ª turma.
rel. min. Humberto Gomes de Barros. Julg. 18.9.2001. DJ, 05 nov. 2001).
CAPítuLo 13
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seria possível falar em mora “a partir de 1º de janeiro do exercício seguinte àquele em
que o pagamento deveria ser feito”, e não da data do trânsito em julgado da sentença
em razão dos critérios constitucionais definidos pelo art. 100 da Constituição Federal.
resta evidente, no entanto, que a adoção do novo critério procura adequar a
contagem dos juros moratórios à sistemática de pagamento dos precatórios.
A conclusão inequívoca a que se deve chegar é no sentido de que o critério
indicado pelo art. 15-B, de que os juros sejam contados “a partir de 1º de janeiro do
exercício seguinte”, seja válido tão somente para as hipóteses em que o expropriante
seja a Fazenda Pública.
Para as demais hipóteses, em que a ação de desapropriação seja proposta por
pessoa de Direito Privado, vale dizer, por empresa pública, sociedade de economia mista,
concessionária ou permissionária de serviço público, o critério para o cálculo dos juros
deve continuar a ser o indicado pela súmula stJ nº 70, isto é, desde o trânsito em julgado
da sentença.
outro aspecto adotado pelo art. 15-B diz respeito ao percentual a ser utilizado,
de até 6%.
no caso dos juros compensatórios, poder-se-ia admitir alguma gradação na
fixação dos juros por parte do juiz que adotaria, por exemplo, o limite de 12% ao ano
para situações em que a perda do uso fosse mais gravosa para o proprietário, e que
utilizaria percentual mais reduzido quando a perda não afetasse de modo tão intenso
o uso da propriedade. Não obstante essa possível lógica para justificar a gradação na
fixação dos juros compensatórios, o STF, conforme mencionado, concedeu cautelar
para suspender os efeitos dessa possível gradação. em relação aos juros moratórios, ao
contrário, não há sequer lógica em se fixar gradação. Se a função dos juros moratórios
é punir a demora no pagamento da indenização, por que o juiz iria, em determinado
caso, fixar a taxa em 6% ao ano, e em outro, adotar a taxa de 3% ao ano de juro moratório, por exemplo? Não há lógica que justifique a possibilidade de variação na fixação
da taxa dos juros moratórios. isto leva à conclusão de que eles devem continuar a ser
fixados pelos juízes nos tradicionais 6%.
em razão do exposto, acerca do pagamento dos juros moratórios em ações de
desapropriação, podemos apresentar as seguintes conclusões:
1. os juros moratórios têm o objetivo de punir o atraso no pagamento do valor
fixado pela sentença nas ações de desapropriação;
2. Os juros moratórios podem ser cumulados com os juros compensatórios (súmulas
stJ nº 12 e nº 102);
3. Devem ser calculados no percentual de 6% ao ano sobre o valor fixado na sentença;
4. o atraso no pagamento por parte do expropriante não pode ser objeto de indenização
complementar, devendo a punição pelo atraso ser feita pela aplicação da taxa
de juros moratórios (sumula stF nº 416);
5. Os juros moratórios devem ser calculados a partir do:
5.1 dia “1º de janeiro do exercício seguinte àquele em que o pagamento deveria
ser feito, nos termos do art. 100 da Constituição”, caso o expropriante seja
pessoa de Direito Público (decreto-Lei nº 3.365/41, art. 15-B);
5.2 Trânsito em julgado da sentença, caso a desapropriação seja promovida por
pessoa de Direito Privado (súmula stJ nº 70);
6. o cálculo dos honorários advocatícios deve considerar as parcelas relativas aos juros
moratórios e compensatórios (súmula stJ nº 131).
623
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
624
13.5.6 Acumulação de juros compensatórios e moratórios
o direito brasileiro não admite a contagem cumulativa de juros sobre juros,
prática denominada de anatocismo.
em processos de desapropriação, as súmulas stJ nº 12 e nº 102, de redação
praticamente idêntica, admitem, todavia, a incidência dos juros moratórios sobre os
compensatórios.17
no cálculo da indenização, deve-se, em primeiro lugar, fazer incidir a taxa de
juros compensatórios sobre o valor da indenização fixado na sentença. Agregada a taxa
de juros compensatórios ao valor principal, é obtido novo valor, e sobre este devem ser
calculados os juros moratórios.
em razão de os fatos geradores dos juros moratórios e compensatórios serem
distintos, é possível que não ocorra essa acumulação. se em determinada desapropriação
direta não tiver ocorrido imissão provisória na posse, mas ocorra atraso no pagamento
do valor fixado na sentença, são devidos tão somente os juros moratórios. Ao contrário,
se tiver ocorrido imissão provisória, mas não ocorra atraso no pagamento da indenização, devem ser calculados apenas os juros compensatórios. se, todavia, estiverem
presentes os dois fatores (imissão provisória na posse e atraso no pagamento), os juros
moratórios devem incidir sobre os juros compensatórios.
13.5.7 Atualização monetária
A atualização ou correção monetária dos valores relativos aos processos de desapropriação não apresenta grandes dificuldades.
ela é tratada pela súmula nº 561 do stF cujo enunciado dispõe nos seguintes
termos:
em desapropriação, é devida a correção monetária até a data do efetivo pagamento da
indenização, devendo proceder-se à atualização do cálculo, ainda que por mais de uma vez.
o decreto-Lei nº 3.365/41, em seu art. 26, §2º, dispunha, originariamente, que
somente ocorreria a atualização do montante definido na avaliação se decorresse período
superior a um ano até a data do pagamento.
A questão foi pacificada em razão do enunciado na Súmula STJ nº 67 que, a par
de confirmar o critério definido pela Súmula STF nº 561, de que se deve proceder à
atualização do cálculo ainda que por mais de uma vez, expressamente admite a atualização
“independentemente do decurso de prazo superior a um ano entre o cálculo e o efetivo
pagamento da indenização”.
dispõe a súmula nº 67 do stJ nos seguintes termos:
na desapropriação, cabe atualização monetária, ainda que por mais de uma vez,
independentemente do decurso do prazo superior a um ano entre o cálculo e o efetivo
pagamento da indenização.
17
súmula stJ nº 102: “A incidência dos juros moratórios sobre os compensatórios, nas ações expropriatórias, não
constitui anatocismo vedado em lei”.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
nesse sentido, independentemente da realização de nova perícia, se houver
demora no pagamento, deve-se proceder a tantas atualizações do cálculo do valor da
indenização quantas se façam necessárias até que se verifique o efetivo pagamento.
13.5.8 Honorários de advogado
o primeiro aspecto a ser considerado para o cálculo dos honorários do advogado
em desapropriação diz respeito à definição da base de cálculo sobre a qual eles incidirão.
no processo expropriatório, o expropriante apresenta sua avaliação ao expropriado. Caso essa proposta não seja aceita, é proposta a ação de desapropriação que
definirá o valor a ser pago.
A base de cálculo para a incidência dos honorários do advogado não corresponde
ao montante fixado pelo juiz na sentença, mas à diferença entre este montante e aquele
apresentado pelo expropriante. exemplo: se o poder público apresentou oferta de
R$500.000,00, e ao final da ação o valor fixado é de R$800.000,00, os honorários advocatícios devem ser calculados sobre o montante de r$300.000,00.
o critério para o cálculo dos honorários advocatícios encontra-se disciplinado
pelas súmulas stF nº 617 e stJ nº 131 e nº 141.
dispõem referidas súmulas nos termos seguintes:
- Súmula STF nº 617 – A base de cálculo dos honorários de advogado em desapropriação é a diferença entre a oferta e a indenização, corrigidas ambas monetariamente;
- Súmula STJ nº 131 – nas ações de desapropriação incluem-se no cálculo da
verba advocatícia as parcelas relativas aos juros compensatórios e moratórios,
devidamente corrigidas;
- Súmula STJ nº 141 – os honorários de advogado em desapropriação direta são
calculados sobre a diferença entre a indenização e a oferta, corrigidas monetariamente.
A medida Provisória nº 2.183, editada em agosto de 2001, deu nova redação ao
art. 27, §1º, do Decreto-Lei nº 3.365/41, e determinou que “a sentença que fixar o valor da
indenização quando este for superior ao preço oferecido condenará o desapropriante a
pagar honorários do advogado, que serão fixados entre meio e cinco por cento do valor
da diferença, observado o disposto no §4º do art. 20 do Código de Processo Civil, não
podendo os honorários ultrapassar r$151.000,00 (cento e cinqüenta e um mil reais)”. A
constitucionalidade desse dispositivo, à semelhança do que ocorreu com diversos outros
da mencionada medida provisória, foi questionada por meio da Adi nº 2.332-mC/dF
perante o supremo tribunal Federal. Foi deferida liminar para suspender todos os efeitos
desse dispositivo com base no argumento de que não há “razoabilidade na imposição
de um valor absoluto para o limite dos honorários advocatícios” (DJ, 02 abr. 2004).
enquanto não for julgado o mérito da ação direta de inconstitucionalidade, o
cálculo dos honorários advocatícios nas ações de desapropriação deve observar os
parâmetros do Código de Processo Civil e das mencionadas súmulas do stF e stJ.
13.6 Bens passíveis de desapropriação
o decreto-Lei nº 3.365/41, em seu art. 2º, estabelece que “todos os bens podem
ser desapropriados”. essa regra geral permite concluir que bens móveis ou imóveis,
625
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
626
corpóreos ou incorpóreos, fungíveis ou infungíveis, públicos ou privados podem ser objeto
de desapropriação.
em razão da amplitude do dispositivo mencionado, podemos admitir, por exemplo, que uma patente de um medicamento (bem móvel, incorpóreo e infungível), uma
ação de sociedade anônima (bem móvel, incorpóreo e fungível), mercadorias, safra
agrícola, além, evidentemente, de imóveis, podem ser objeto de declaração de utilidade
pública ou de interesse social com vista à sua expropriação.
A generalidade contida no art. 2º do decreto-Lei nº 3.365/41 deve ser entendida,
todavia, com ressalvas.
deve ser considerada, em primeiro lugar, a existência de impedimentos e limitações
jurídicos à desapropriação de certos bens.
A Constituição Federal, por exemplo, expressamente veda a desapropriação da
pequena propriedade rural para fins de reforma agrária, desde que o proprietário não
possua outra, e da propriedade produtiva (art. 185), vedação que, todavia, não alcança
outras hipóteses de desapropriação. nesse sentido, não há qualquer vedação a que a
propriedade produtiva possa ser desapropriada por utilidade pública para a construção
de uma rodovia, por exemplo.
José dos santos Carvalho Filho considera como exemplo de impossibilidade jurídica “a hipótese de desapropriação, por um estado, de bens particulares situados em
outro estado”, o que poderia importar, segundo o autor, em “vulneração da autonomia
estadual sobre a extensão de seu território”.18
os bens públicos, desde que haja autorização legislativa, estão sujeitos a desapropriação. o decreto-Lei nº 3.365/41, em seu art. 2º, §2º, impõe algumas restrições jurídicas
à expropriação dos bens públicos. deve ser respeitado, em primeiro lugar, o que muito
indevidamente poderíamos denominar de hierarquia entre as entidades que compõem
as diferentes esferas de governo. nesse sentido, a união pode desapropriar bens dos
estados, do distrito Federal e dos municípios; os estados podem desapropriar bens dos
municípios. estes últimos, portanto, não possuem competência para desapropriar bens
públicos; e os bens públicos federais não podem ser desapropriados.19 outra limitação
18
19
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 652.
Acerca da competência dos estados para desapropriar bens pertencentes a empresas estatais que atuam em regime
de monopólio, vide a seguinte decisão do stF:
“desapropriação, por estado, de bem de sociedade de economia mista federal que explora serviço público privativo da união.
1. A união pode desapropriar bens dos estados, do distrito Federal, dos municípios e dos territórios e os estados, dos Municípios, sempre com autorização legislativa especifica. A lei estabeleceu uma gradação de poder
entre os sujeitos ativos da desapropriação, de modo a prevalecer o ato da pessoa jurídica de mais alta categoria,
segundo o interesse de que cuida: o interesse nacional, representado pela união, prevalece sobre o regional,
interpretado pelo estado, e este sobre o local, ligado ao município, não havendo reversão ascendente; os estados
e o distrito Federal não podem desapropriar bens da união, nem os municípios, bens dos estados ou da união,
decreto-Lei n. 3.365/41, art. 2., par. 2.
2. Pelo mesmo princípio, em relação a bens particulares, a desapropriação pelo estado prevalece sobre a do
município, e da união sobre a deste e daquele, em se tratando do mesmo bem.
3. doutrina e jurisprudência antigas e coerentes. Precedentes do stF: re 20.149, ms 11.075, re 115.665, re
111.079.
4. Competindo a união, e só a ela, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, art. 21, XII, f, da CF, esta caracterizada a natureza pública do serviço de docas.
5. A Companhia docas do rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço
portuário em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo estado.
6. inexistência, no caso, de autorização legislativa.
7. A norma do art. 173, par. 1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem atividade econômica em regime
de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas que, embora exercendo atividade
econômica, gozam de exclusividade.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
à expropriação dos bens públicos está relacionada ao âmbito territorial em que os
estados exercem sua potestade, vale dizer, determinado estado não pode expropriar
bens de municípios localizados em outras unidades da Federação, bem como não pode
expropriar bens pertencentes a outros estados.
outra limitação jurídica à potestade expropriatória dos estados, municípios e
distrito Federal decorre do disposto no §3º do art. 2º do decreto-Lei nº 3.365/41 acima
mencionado, que expressamente veda a desapropriação, por parte dessas entidades,
“de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas cujo
funcionamento dependa de autorização do Governo Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da república”.
As ações, cotas e direitos representativos do capital social das empresas indicadas não são bens públicos. A referência legal alcança, por exemplo, as instituições
financeiras privadas, cujo funcionamento depende de autorização federal. Não pode,
assim, determinado estado desapropriar ações de um banco privado, salvo se obtiver
prévia autorização do Presidente da república.
em relação aos bens objeto de tombamento, não vemos qualquer obstáculo de
ordem jurídica ou material à sua desapropriação. Pouco importa se o bem particular
foi objeto de tombamento pela união, por estado ou por município, haja vista o tombamento não impedir a transferência da propriedade, parece-nos legítimo que município
possa desapropriar bem tombado pela união. É de se observar, em qualquer caso, que
o ente expropriante se submete às limitações e exigências impostas pelo tombamento.
não nos parece razoável impedir que município possa desapropriar bem tombado
pelo estado ou pela união, ou que estado não possa desapropriar bem tombado pela
união. É possível, ao contrário, que o ente local saiba reconhecer e dar a importância
devida a determinado bem integrante do patrimônio histórico, e, considerando o
descaso ou a situação caótica em que se encontre o bem privado tombado pela união,
decida desapropriá-lo com o exato propósito de preservá-lo. Consideremos, por exemplo, a possibilidade de que antigo casarão objeto de tombamento pela união possa ser
desapropriado pelo estado ou pelo município para ser utilizado como museu. desde
que o ente expropriante observe as regras impostas pelo tombamento, situações como
estas devem ser incentivadas, e não proibidas. Ademais, em nosso sistema federativo,
é totalmente descabido falar em primazia da união sobre os estados, ou destes em
8. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço
público, reservado a União.
9. O artigo 173, par. 1., nada tem a ver com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas públicas ou
sociedades de economia mista; seu endereço e outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas
que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades
privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante.
10. o disposto no par. 2., do mesmo art. 173, completa o disposto no par. 1., ao prescrever que ‘as empresas
publicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos as do setor
privado’.
11. Se o serviço de docas fosse confiado, por concessão, a uma empresa privada, seus bens não poderiam ser
desapropriados por estado sem autorização do Presidente da republica, súmula 157 e decreto-Lei n. 856/69;
não seria razoável que imóvel de sociedade de economia mista federal, incumbida de executar serviço público
da união, em regime de exclusividade, não merecesse tratamento legal semelhante.
12. não se questiona se o estado pode desapropriar bem de sociedade de economia mista federal que não esteja
afeto ao serviço. imóvel situado no cais do rio de Janeiro se presume integrado no serviço portuário que, de resto,
não e estático, e a serviço da sociedade, cuja duração e indeterminada, como o próprio serviço de que esta investida.
13. re não conhecido. voto vencido” (re nº 172.816-rJ, Pleno. rel. min. Paulo Brossard. Julg. 9.2.1994. DJ, 13
maio 1994, grifos nossos).
627
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
628
relação aos municípios. são esferas dotadas de competências distintas e que devem
atuar de forma coordenada, sem que se configure qualquer relação de subordinação
de uma esfera em relação à outra.
Quando se discute a desapropriação de bens públicos, outro aspecto específico a
ser considerado diz respeito aos bens pertencentes às empresas estatais (empresas públicas
e sociedades de economia mista). Pode um município desapropriar bens pertencentes
a uma empresa pública federal, por exemplo? A resposta a essa pergunta requer o
exame de outra questão, relativa à natureza jurídica dos bens pertencentes a referidas
empresas estatais.
vale antecipar que no subitem 18.8.4 deste livro tratamos da não onerabilidade dos
bens públicos. de qualquer forma, é oportuno esclarecer que o supremo tribunal Federal
entende que os bens das estatais prestadoras de serviço público são impenhoráveis.20
A definição da natureza dos bens das empresas estatais não é, todavia, questão simples. não obstante a natureza privada dessas pessoas jurídicas, o regime jurídico a elas
aplicável sofre influências do Direito Público, e, em inúmeras situações, essas entidades são utilizadas para a prestação de serviços públicos. A vinculação da atividade da
20
stF: “recurso extraordinário. Constitucional. empresa Brasileira de Correios e telégrafos. impenhorabilidade de
seus bens, rendas e serviços. recepção do artigo 12 do decreto-Lei nº 509/69. execução. observância do regime
de precatório. Aplicação do artigo 100 da Constituição Federal. 1. À empresa Brasileira de Correios e telégrafos,
pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas
e serviços. recepção do artigo 12 do decreto-Lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, §1º,
da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que
explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência
da união Federal e por ela mantido. execução. observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do
disposto no artigo 100 da Constituição Federal. recurso extraordinário conhecido e provido” (re nº 229.696-Pe, 1ª
turma. rel. min. ilmar Galvão. rel. p/ acórdão min. maurício Corrêa. Julg. 16.11.2000. DJ, 19 dez. 2002).
o tribunal, por maioria, concedeu liminar em ação cautelar para conferir suspensão dos efeitos de decisão de 1ª
instância — que, em execução, determinara a penhora dos recursos financeiros da Companhia do Metropolitano
de são Paulo (metrô), até o julgamento de recurso extraordinário por esta interposto, e para restabelecer
esquema de pagamento antes concebido na forma do art. 678, parágrafo único, do CPC. sustenta a ora requerente,
no recurso extraordinário, que não se lhe aplica o regime jurídico próprio das empresas privadas (CF, art. 173,
§1º, ii), porquanto não exerce atividade econômica em sentido estrito, razão pela qual pleiteia a prerrogativa da
impenhorabilidade de seus bens, tal como concedida pela Corte à empresa Brasileira de Correios e telégrafos
(eCt) no julgamento dos re nº 220.906-dF (Pleno. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 16.11.2000. DJ, 14 nov. 2002).
tendo em conta tratar-se de empresa estatal prestadora de serviço público de caráter essencial, qual seja, o
transporte metroviário (CF, art. 30, v), e que a penhora recai sobre as receitas obtidas nas bilheterias da empresa
que estão vinculadas ao seu custeio, havendo sido reconhecida, nas instâncias ordinárias, a inexistência de
outros meios para o pagamento do débito, entendeu-se, com base no princípio da continuidade do serviço
público, bem como no disposto no art. 620 do CPC, densa a plausibilidade jurídica da pretensão e presente
o periculum in mora. vencido o min. marco Aurélio, que indeferia a liminar ao fundamento de que a empresa
em questão é sociedade de economia mista que exerce atividade econômica em sentido estrito, não lhe sendo
extensível a orientação fixada pelo Supremo em relação à ECT. Cf. STF. AC nº 669-MC/SP, Decisão Monocrática.
Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 10.3.2005. DJ, 29 mar. 2005
Considerando a orientação firmada pelo Plenário no julgamento dos recursos extraordinários nº 220.906-DF (DJ,
14 nov. 2002), nº 225.011-mG (DJ, 19 dez. 2002) e nº 229.696-Pe (DJ, 19 dez. 2002), no sentido de que a empresa
Brasileira de Correios e telégrafos (eCt) tem o direito à execução de seus débitos trabalhistas pelo regime de
precatórios, por se tratar de empresa que presta serviço público, a turma não conheceu de recurso extraordinário
no qual se pretendia a reforma de acórdão do trF da 5ª região, que assegurara à eCt a impenhorabilidade dos
seus bens.
stF: “Constitucional. Processual Civil. empresa pública prestadora de serviço público: execução: Precatório. i. os bens da empresa Brasileira de Correios e telégrafos, uma empresa pública prestadora de serviço público, são
impenhoráveis, porque ela integra o conceito de fazenda pública. Compatibilidade, com a Constituição vigente,
do d.L. 509, de 1969. exigência do precatório: C.F., art. 100. ii. - Precedentes do supremo tribunal Federal: rree
220.906-dF, 229.696-Pe, 230.072-rs, 230.051-sP e 225.011-mG, Plenário, 16.11.2000. iii. - r.e. não conhecido” (re
nº 229.444-Ce, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg. 19.6.2001. DJ, 31 ago. 2001).
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
entidade, e, portanto, dos seus bens a determinado fim público é argumento suficiente
para equiparar os bens das entidades administrativas aos da entidade política a que
estejam vinculadas.21 nesse sentido, se determinado estado cria empresa pública e lhe
atribui a incumbência de prestar serviços públicos, os seus bens devem ser tratados,
para fins de desapropriação, como se fossem bens do próprio Estado, vale dizer, seus
bens podem ser desapropriados pela união, mas não pelos municípios.
Por outro lado, o stJ considera, em regra, impenhoráveis os bens públicos. todavia,
entende que em algumas hipóteses, por exceção, são penhoráveis.22
21
22
no julgamento dos recursos especiais nº 489.732-dF (4ª turma. rel. min. Barros monteiro. Julg. 5.5.2005. DJ,
13 jun. 2005) e nº 695.928-dF (4ª turma. rel. min. Jorge scartezzini. Julg. 3.3.2005. DJ, 21 mar. 2005), o stJ
adotou o entendimento de os bens da terracap, empresa pública do distrito Federal, serem bens públicos, não
se sujeitando à usucapião.
stJ: “Ação monitória. Fazenda Pública. não é cabível a cobrança de débito da Fazenda Pública mediante ação
monitória. A pronta expedição de mandado de pagamento ou de entrega da coisa, permitida no âmbito da ação
monitória (art. 1.102b do CPC), choca-se com a obrigatoriedade do pagamento desses débitos via precatório
(art. 100 da CF/1988). outrossim a possibilidade de nomeação de bens à penhora, constante do art. 1.102c do
CPC, é, à toda evidência, incompatível com a impenhorabilidade dos bens públicos. Além disso, a celeridade
do sistema injuntivo não se coaduna com a obrigatoriedade de as sentenças desfavoráveis aos entes públicos
se sujeitarem ao duplo grau (art. 475, II, do CPC). Por fim, na ausência de embargos, os efeitos da revelia não
ensejariam a constituição do crédito, pois se cuida de direito indisponível, sem possibilidade de incidência de
confissão ficta (art. 320, II, do CPC). Precedente citado: REsp 197.605-MG, DJ 18/6/2001” (REsp nº 202.277-SP, 2ª
Turma. Rel. Min. Franciulli Netto. Julg. 11.5.2004. DJ,06 set. 2004).
stJ: “Fornecimento. medicamento. estado. trata-se de recurso contra acórdão que, ao apreciar agravo de instrumento, deferiu a tutela antecipada para que o estado entregasse remédio ao ora recorrido sob pena de bloqueio
de verbas públicas. A turma negou provimento ao recurso, por entender que é cabível a aplicação de multa diária (astreintes) como forma cabível de impor o cumprimento de medida antecipatória ou de sentença definitiva
de obrigação de fazer ou entregar coisas (art. 461 e 461-A do CPC), inclusive contra a Fazenda Pública. Aduziu
ainda que a obrigação de pagar quantia, mesmo oriunda de conversão ou obrigação de fazer ou entregar coisa,
rege-se por procedimento próprio (art. 730 do CPC e art. 100 da CF/1988) que não prevê, salvo excepcionalmente,
a possibilidade de execução direta por expropriação por meio de seqüestro de bens ou qualquer outro bem público,
que são impenhoráveis. Contudo o regime da impenhorabilidade dos bens públicos e da submissão dos gastos públicos decorrentes de ordem judicial à prévia indicação orçamentária deve se coadunar com os demais
princípios constitucionais. Logo prevalece o direito fundamental à saúde sobre o regime de impenhorabilidade
dos bens públicos, sendo legítima a determinação judicial do bloqueio de verbas públicas para que se efetive o
direito aos medicamentos, além de que, na espécie, não se põe em dúvida a necessidade e a urgência para sua
aquisição. Precedentes citados: Agrg no Ag 646.240-rs, dJ 13/6/2005, e resp 155.174-sP, dJ 6/4/1998” (resp
nº 806.765-rs, 1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki. Julg. 20.4.2006. DJ, 02 maio 2006).
stJ: “Processual Civil. Agravo regimental em recurso especial. emissão de certidão positiva de débito com
efeito de negativa. CPd-en. devedor. município. em sede de embargos à execução. Possibilidade. independentemente de garantia. Fundamento: impenhorabilidade dos bens públicos. Fundamentação lógica que deve
ser aplicada quando o ente público devedor propõe ação anulatória de débito. 1. trata-se de recurso especial
em apelação que julgou mandado de segurança, no qual a Fazenda nacional questiona a emissão de Certidão
Positiva de débito com efeitos de negativa a município junto ao inss. sustenta a reforma do decisum que
negou seguimento ao seu apelo extremo porque este fez constar hipótese em que a certidão fora concedida ao
ente político em situação diversa, na qual havia embargos à execução, o que não ocorrera no caso dos autos. 2.
não obstante constar da decisão agravada julgados em que município obteve a Certidão após ter embargado a
execução fiscal, isto, só por si, não revela fundamento apto a reformá-lo. Há precedente no decisum que espelha
jurisprudência desta Corte superior de que deve ser disponibilizada a Certidão Positiva de débito com efeitos
de Certidão negativa – CPd-en, quando interpostos embargos à execução ou proposta ação anulatória de débito
fiscal pela Fazenda Municipal. 3. A mesma linha de raciocínio que se faz com relação à expedição da certidão
(CPD-EN) para os municípios devedores que embargam a execução fiscal promovida por outro ente público, ou
seja, em decorrência da impenhorabilidade de seus bens, deve ser utilizada para a hipótese na qual o suposto
devedor público questiona e requer, em ação própria, a anulação de procedimento administrativo de constituição do crédito tributário. A propósito: [Proposta ação anulatória pela Fazenda municipal, ‘está o crédito tributário com a sua exigibilidade suspensa, porquanto as garantias que cercam o crédito devido pelo ente público são
de ordem tal que prescindem de atos assecuratórios da eficácia do provimento futuro’, sobressaindo o direito de
ser obtida certidão positiva com efeitos de negativa (resp 601.313/rs, segunda turma, rel. min. Castro meira,
dJ de 20.9.2004)]. 4. Agravo regimental não-provido” (Agrg no resp nº 1.010.917-mG, 1ª turma. rel. min.
Benedito Gonçalves. Julg. 16.12.2008. DJe, 11 fev. 2009).
629
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Curso de direito AdministrAtivo
630
A dúvida persiste, todavia, em relação aos bens das empresas estatais que não
prestam serviços públicos. Hely Lopes meirelles requer a vinculação do bem da empresa
estatal a um fim público de modo a justificar a impossibilidade de desapropriação.23 José
dos santos Carvalho Filho defende tese em sentido contrário. de acordo com o autor,
“a desapropriação de bens públicos, como se viu, é fundada na hierarquia das pessoas
federativas considerando sua extensão territorial. o princípio deve ser o mesmo para
os bens de pessoas administrativas, ainda que alguns deles possam ser qualificados
como bens privados”.24
Com a devida vênia do professor Carvalho Filho, perfilhamos a tese de que,
ressalvadas as situações em que os bens da empresa estatal estejam vinculados a determinado fim público, não há razão para atribuir-lhes natureza pública e torná-los imunes
à desapropriação por parte das entidades inferiores. A Constituição Federal determina
expressamente que as empresas estatais que explorem atividades empresariais devem-se
sujeitar ao regime jurídico das empresas privadas, ressalvadas as hipóteses expressamente definidas pelo texto constitucional (art. 173, §1º). Não vemos razão para que
determinado município não possa desapropriar bem pertencente ao Banco do Brasil,
por exemplo, não obstante se trate de entidade integrante da Administração Pública
federal. são bens privados os pertencentes a essa entidade, sujeitos a regime jurídico
privado por determinação expressa da Constituição Federal, não se vinculam à prestação
de serviço público, mas à exploração de atividade empresarial, qual a razão para que
os bens dessa entidade, observado o disposto §3º do art. 2º do decreto-Lei nº 3.365/41,
não possam ser desapropriados pelos estados ou pelos municípios?
Diversa é a situação dos bens pertencentes a empresa estatais vinculados a fim
público, e que por essa razão são tratados como bens públicos.25
o argumento da hierarquia entre as diferentes entidades políticas é totalmente
despropositado em nosso sistema federativo. não há qualquer vinculação ou hierarquia
dos municípios em relação aos estados ou destes em relação à união para que se busque nesse sistema impedimento ou autorização para o exercício de qualquer potestade
pública. em relação à desapropriação, ao contrário, o art. 2º do decreto-Lei nº 3.365/41
autoriza a desapropriação de quaisquer bens e, em relação aos bens públicos, veda a
desapropriação, pelos estados, dos bens da união e, pelos municípios, dos bens dos
estados e da união. essa vedação pode ser utilizada para alcançar os bens das autarquias, que são bens públicos. ou seja, os bens de uma autarquia federal devem ser
equiparados aos bens da união, o que os torna imunes à desapropriação em razão de
expressa disposição legal. A regra contida no art. 2º do decreto-Lei nº 3.365/41 não pode
ser utilizada, todavia, para alcançar os bens privados das empresas estatais exploradoras
23
24
25
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 509.
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 654.
nesse sentido, stJ: “Administrativo. Processual Civil. desapropriação para construção ou ampliação de distrito
industrial. sociedade de economia mista. impenhorabilidade dos bens. Lei 6.404, de 1976, art. 242. decretoLei 3.365/41, art. 35. i - Bens desapropriados para a construção ou ampliação de distrito industrial pelo Poder
Público municipal e incorporados ao patrimônio de sociedade de economia mista constituída para esse fim,
a CiC – Cidade industrial de Curitiba (dL 3.365/41, art. 5., alinea ‘i’, parágrafos 1. e 2., com a redação da Lei
n. 6.602/78). impossibilidade de serem penhorados em execução promovida contra a CiC, para recebimento de
indenização decorrente da desapropriação, já que são bens públicos, porque sujeitos a uma destinação pública.
A execução, contra o poder expropriante, a Fazenda Municipal, devera observar o figurino próprio, art. 730,
CPC. ii - recurso especial não conhecido” (resp nº 978-Pr, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg. 7.5.1990.
DJ, 28 maio 1990).
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
de atividades empresariais, que se sujeitam, portanto, à desapropriação. diante do
possível conflito entre o interesse na exploração direta da atividade empresarial por
entidade integrante do poder público e o interesse a ser materializado na declaração de
utilidade pública ou de interesse social desses bens para fins de desapropriação, deve
ser dada prevalência a este último.
outro aspecto a ser considerado acerca da possibilidade de desapropriação dos
bens públicos diz respeito às margens dos rios navegáveis. Conforme define a Súmula
stF nº 479, “as margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de
expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização”.
A mencionada súmula parte do pressuposto de que os imóveis localizados
nas margens dos rios navegáveis são públicos para concluir pela impossibilidade de
desapropriação. Se, todavia, houver título legítimo que confira o domínio do imóvel a
particulares, esses bens passam a se sujeitar à desapropriação e deve haver, portanto,
a necessária indenização. A discussão acerca da desapropriação das margens dos rios
navegáveis se resume a saber se esses imóveis são bens públicos ou privados. Como
regra, as margens dos rios navegáveis integram o domínio público e não podem ser
desapropriados. se houver título que lhe atribua natureza privada, sujeitam-se à desapropriação e devem ser indenizados.26
13.7 Competência em matéria de desapropriação
As competências a serem exercidas relativas à desapropriação podem ser divididas em três diferentes categorias: para legislar, para desapropriar e para executar ou
promover desapropriação.
13.7.1 Competência para legislar
A competência para legislar sobre desapropriação é reservada à união, conforme
dispõe o art. 22, ii, da Constituição Federal.
todas as leis em matéria de desapropriação devem ser aprovadas pela união,27
inclusive as que disponham sobre desapropriação a serem declaradas e conduzidas em
26
27
nesse sentido, stJ: “Administrativo. desapropriação. terrenos reservados. Pretensão de indenizabilidade. descabimento. 1. os terrenos reservados nas margens das correntes públicas, como o caso dos rios navegáveis,
são, na forma do art. 11 do Código de águas, bens públicos dominiais, salvo se por algum título legítimo não
pertencerem ao domínio particular. 2. tratando-se de bens públicos às margens dos rios navegáveis, o título
que legitima a propriedade particular deve provir do poder competente, no caso, o Poder Público. Isto significa
que os terrenos marginais presumem-se de domínio público, podendo, excepcionalmente, integrar o domínio
de particulares, desde que objeto de concessão legítima, expressamente emanada da autoridade competente. 3.
Concluindo as instâncias ordinárias, com base em laudo de avaliação elaborado pelo perito judicial e em documento oriundo da Capitania dos Portos, que o rio Cabuçu de Cima não constitui via navegável, e, portanto, as
suas áreas marginais não configuram terrenos reservados, na forma prevista pelos arts. 11 e 14 do Código de
águas, é devida a indenização aos expropriados. 4. Ainda que demonstrada a navegabilidade do rio Cabuçu
de Cima, a indenização das áreas marginais não poderia ser afastada, porquanto os expropriados comprovaram
a titularidade do imóvel desapropriado. 5. inaplicabilidade da súmula 479/stF, verbis: ‘As margens dos rios
navegáveis são domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização’. 6.
Precedente da 2ª turma do stJ: resp 443.370/sP, rel. min. eliana Calmon, dJ 16/08/2004. 7. recurso especial a
que se nega provimento” (resp nº 637.726-sP, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 3.3.2005. DJ, 28 mar. 2005).
No julgamento da ADI nº 969-DF, o STF confirmou a tese de que a competência para legislar sobre desapropriação
é privativa da união: “É inconstitucional, por invadir a competência legislativa da união e violar o princípio
da separação dos poderes, norma distrital que submeta as desapropriações, no âmbito do distrito Federal,
à aprovação prévia da Câmara Legislativa do distrito Federal. Ação direta de inconstitucionalidade julgada
procedente” (Adi nº 969-dF, Pleno. rel. min. Joaquim Barbosa. Julg. 27.9.2006. DJ, 20 out. 2006).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
outras esferas de governo. É exemplo desta última categoria a desapropriação para fins
urbanísticos, a ser conduzida pelos municípios, e que deve observar o procedimento
definido pela Lei Federal nº 10.257/01.
13.7.2 Competência para desapropriar
A competência para desapropriar corresponde à competência para declarar bens
de utilidade pública ou de interesse social para fins de desapropriação. Esta competência
está prevista no art. 2º do decreto-Lei nº 3.365/41.
A competência para a edição do ato declaratório está reservada às entidades
políticas, vale dizer, à união, aos estados, aos municípios e ao distrito Federal. não
obstante o meio comum para a declaração de utilidade pública ou de interesse social
seja o decreto expedido pelo chefe do executivo, denominado decreto expropriatório,
o decreto-Lei nº 3.365/41 (art. 8º) faculta idêntica iniciativa ao Poder Legislativo. nesta
hipótese, a lei será utilizada como instrumento para declarar o bem de utilidade pública
ou de interesse social.
em caráter excepcional, a competência para iniciar o processo de desapropriação, declarando o bem de utilidade pública, foi conferida a duas autarquias federais. As
leis nº 10.233/01 e nº 9.074/95, com a redação alterada pela Lei nº 9.648/98, conferem ao
departamento nacional de infraestrutura de transportes (dnit) e à Agência nacional
de energia elétrica (AneeL), respectivamente, competência para iniciar processos de
desapropriação sem que haja necessidade de intervenção do Presidente da república.
A razão para essa competência ter sido conferida em caráter excepcional a essas duas
autarquias pode ser buscada nas atividades por elas exercidas (construção de estradas,
no caso do dnit, e de redes de transmissão e de barragens que importam em inundações
de imensas áreas a serem desapropriadas, no caso da AneeL), que exigem frequentemente a utilização da potestade expropriatória do estado. nessas desapropriações
teremos, em consequência da não participação do chefe do executivo federal, outra
exceção: a declaração não será feita por decreto, mas por portaria baixada pela autarquia.
não obstante o instrumento seja distinto do decreto, os requisitos formais devem ser
os mesmos daquele: individualização do bem, indicação da finalidade precisa a que se
destina e fundamentação legal para a desapropriação.
13.7.3 Competência para promover desapropriação
A competência para promover desapropriação, terceiro nível em que a questão
é tratada, pode ser igualmente denominada de competência executória.
iniciada a desapropriação pela entidade competente para declarar o bem de
interesse social ou de utilidade pública, o decreto-Lei nº 3.365/41 (art. 2º, §3º) amplia
o rol daqueles que podem executar a desapropriação ao admitir que em razão de lei
ou de contrato possam as entidades políticas competentes para desapropriar (ou para
declarar o bem de utilidade pública ou de interesse social) delegar a competência para
praticar os atos relativos à execução da desapropriação.
nesse sentido, a união, os estados, os municípios e o distrito Federal podem,
por meio de lei, outorgar às suas respectivas entidades administrativas (autarquias,
fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista) ou, por meio de
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
contrato, delegar idêntica competência a empresas concessionárias ou permissionárias
de serviços públicos.
A desapropriação para fins de reforma agrária, por exemplo, somente pode ser
iniciada se for editado decreto do Presidente da república que declare o imóvel de
interesse social. iniciado o processo por meio do ato editado pela união (competente
para desapropriar), o instituto nacional da Colonização e da reforma Agrária – inCrA
irá praticar todos os atos necessários à execução da desapropriação, que compreendem
as avaliações, as tentativas de obtenção de acordo com o proprietário do bem acerca do
valor a ser pago, e, caso não seja possível o acordo, a propositura da ação de desapropriação, o pagamento da indenização etc.
no caso das desapropriações necessárias em razão da construção de represas
de usinas hidrelétricas, a competência para desapropriar é exercida em caráter excepcional pela AneeL (Lei nº 9.074/95). Firmado o contrato de concessão entre a agência
e a empresa privada concessionária, a declaração de utilidade pública do imóvel a ser
alagado é feita pela própria AneeL, e desde que o contrato tenha conferido à empresa
concessionária a necessária competência, esta poderá praticar todos os atos necessários
à execução da desapropriação.
13.8 desapropriação indireta
13.8.1 distinção entre desapropriação direta e desapropriação indireta
o instituto da desapropriação, conforme examinamos, constitui o mais agressivo
meio de que se pode valer o estado para intervir na propriedade privada. daí resulta
a necessidade de serem observados diversos requisitos constitucionais (procedimento
administrativo definido em lei; comprovação de necessidade ou utilidade pública, ou
de interesse social; pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro, ressalvadas
as hipóteses previstas na Constituição Federal).
A divisão da desapropriação em duas categorias (direta e indireta) somente
se justifica em razão do reconhecimento que a jurisprudência pátria tem conferido a
situações em que o poder público, sem observar qualquer dos requisitos constitucionais
acima indicados,28 põe fim à propriedade privada.
28
“1. A chamada ‘desapropriação indireta’ é construção pretoriana criada para dirimir conflitos concretos entre o direito de
propriedade e o princípio da função social das propriedades, nas hipóteses em que a Administração ocupa propriedade privada, sem observância de prévio processo de desapropriação, para implantar obra ou serviço público.
2. Para que se tenha por caracterizada situação que imponha ao particular a substituição da prestação específica
(restituir a coisa vindicada) por prestação alternativa (indenizá-la em dinheiro), com a conseqüente transferência
compulsória do domínio ao Estado, é preciso que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes circunstâncias: (a)
o apossamento do bem pelo estado, sem prévia observância do devido processo de desapropriação; (b) a afetação
do bem, isto é, sua destinação à utilização pública; e (c) a impossibilidade material da outorga da tutela específica
ao proprietário, isto é, a irreversibilidade da situação fática resultante do indevido apossamento e da afetação.
3. no caso concreto, não está satisfeito qualquer dos requisitos acima aludidos, porque (a) a mera edição do
Decreto 37.536/93 não configura tomada de posse, a qual pressupõe necessariamente a prática de atos materiais;
(b) a plena reversibilidade da situação fática permite aos autores a utilização, se for o caso, dos interditos possessórios, com indubitável possibilidade de obtenção da tutela específica.
4. não se pode, salvo em caso de fato consumado e irreversível, compelir o estado a efetivar a desapropriação,
se ele não a quer, pois se trata de ato informado pelos princípios da conveniência e da oportunidade.
5. recurso especial a que se nega provimento.” (stJ. resp nº 628.588-sP, 1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki.
Julg. 2.6.2005. DJ, 1º ago. 2005, grifos nossos)
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Desapropriação direta é, portanto, aquela conduzida pelo poder público com a
observância dos requisitos procedimentais exigidos pela Constituição Federal e pela
legislação. na desapropriação indireta, ao contrário, ainda que igualmente importe na
perda da propriedade privada, não são observados os procedimentos constitucionais e
legais pertinentes. reconhece-se como tal a situação em que o particular se vê impedido
de usar sua propriedade em razão de fatos imputáveis ao poder público, o que resulta
em uma expropriação de fato.
Com o instituto da desapropriação descrito pela Constituição Federal e pela
legislação pertinente, a desapropriação indireta apresenta, portanto, apenas um traço
em comum: importa em perda da propriedade privada.
temos duas desapropriações, uma direta e outra indireta: a desapropriação direta
é a que observa os procedimentos legais e constitucionais necessários à intervenção do
estado na propriedade privada; desapropriação indireta corresponde àquela que, não
obstante não observe os procedimentos pertinentes, põe fim à propriedade privada em
razão de situações atribuídas ao poder público.
A terminologia utilizada para designar esse instituto (desapropriação indireta)
eleva a pura e simples agressão promovida pelo poder público contra a propriedade
particular a uma categoria especial de desapropriação, instituto de estatura constitucional e cercado de inúmeras precauções por parte da Constituição Federal e da lei.
se em razão de circunstâncias de fato (ou de direito, como será demonstrado
em seguida) imputáveis ao poder público, o particular for impossibilitado de exercer
o direito de propriedade, e se essas circunstâncias forem irreversíveis, caracterizar-se-á
a desapropriação indireta. esse é o entendimento dominante em nossa jurisprudência
sobre o tema.
A questão, no entanto, deve ser examinada com bastante cuidado.
Caracterizado o esbulho à propriedade privada, a observância do interesse público
impõe à Administração Pública, em primeiro lugar, o dever de restituir ao particular
a posse do bem. Caso isto não ocorra, ao Poder Judiciário cumpre dar provimento às
eventuais ações possessórias propostas pelos particulares de modo a assegurar o efetivo
exercício do direito de propriedade (ação de manutenção de posse, na eventualidade de
haver turbação; ação de reintegração de posse, caso já se tenha caracterizado o esbulho;
e o interdito possessório, a fim de impedir a turbação ou o esbulho, conforme dispõem
os artigos 920 et seq. do Código de Processo Civil).
o argumento de que o interesse público prevalece sobre o interesse privado, ou de que
a incorporação do bem particular ao patrimônio público melhor realizará o interesse
público, não pode servir de fundamento para o exercício abusivo das potestades públicas. o interesse público não se afasta nem se realiza fora do ordenamento jurídico. o
interesse público não existe como conceito difuso ou fora do direito e não pode servir
de fundamento para o estado intervir no exercício de um dos direitos fundamentais,
o direito à propriedade privada. somente é possível falar em realização do interesse
público com estrita observância dos direitos fundamentais e das normas constitucionais
e legais vigentes.
se os órgãos da Administração Pública entendem que o apossamento pelo estado
da propriedade privada é necessário à realização do interesse público, o ordenamento
jurídico confere a esses órgãos potestades necessárias à incorporação desses bens ao
patrimônio público, mas impõe a observância de requisitos e de procedimentos. Caso
esses requisitos ou procedimentos não sejam observados, será totalmente descabido
CAPítuLo 13
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buscar no interesse público o fundamento para legitimar a agressão pública ou para
transferir a propriedade particular ao patrimônio público.
É dever do Poder Judiciário assegurar o pleno exercício dos direitos dos particulares, inclusive, e, sobretudo, quando a agressão parte do próprio estado. o exercício dos
direitos dos particulares pressupõe a restituição da posse, o que deve ser considerado
inclusive por meio das medidas cautelares cabíveis.
somente em situações consumadas, em que seja impossível restituir ao particular
a posse do bem, parece-nos possível admitir a perda da propriedade particular e a sua
transformação em indenização.
na busca de legitimar esse esbulho promovido pelo estado, o decreto-Lei nº 3.365/41,
em seu art. 35, dispôs nos termos seguintes:
Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de
reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer
ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos. (grifos nossos)
Conforme anteriormente mencionado, o procedimento expropriatório deve
observar os requisitos definidos pela Constituição Federal. Não pode o dispositivo do
decreto-lei acima transcrito ser fundamento para afastar todos os requisitos constitucionais impostos, tornando o exercício deste direito fundamental letra morta e transformando a propriedade privada em perdas e danos.
O disposto no mencionado art. 35, que fixa a regra segundo a qual uma vez consumada a perda da propriedade particular em razão da sua incorporação à Fazenda
Pública qualquer ação resolver-se-á em perdas e danos, não deve ser interpretado como a
legitimação ao esbulho público da propriedade privada. A sua correta e constitucional
interpretação deve, ao contrário, considerar a ação de perdas e danos como faculdade
do proprietário do bem, salvo situações excepcionais. A regra deve ser a restituição do
bem; a exceção, a sua transformação em perdas e danos.
As situações excepcionais justificadoras da transformação da propriedade privada
em perdas e danos devem corresponder àquelas em que:
1. tenha sido instaurado o procedimento expropriatório e este tenha sido anulado;
e
2. Circunstâncias de fato impossibilitem a restituição da propriedade privada ao
seu legítimo proprietário.
seriam exemplos dessas situações excepcionais a construção de uma rodovia ou
de um cemitério em propriedade privada. não há, nesses exemplos, como ser restituída
a propriedade ao antigo dono, o que impõe a sua conversão em perdas e danos em razão
da impossibilidade de reversão do bem ao seu antigo proprietário. sendo possível a
restituição, as melhorias realizadas pelo estado na propriedade privada devem ser
consideradas benfeitorias e a situação deve receber o mesmo tratamento que o Código
Civil dispensa aos terceiros que realizam benfeitorias em propriedade alheia, conforme
dispõem os artigos 1.219 e 1.220 do Código Civil.29
29
os mencionados dispositivos do Código Civil dispõem nos seguintes termos:
“Art. 1.219. o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como,
quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá
exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.
Art. 1.220. Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito
de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias.”
635
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Curso de direito AdministrAtivo
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essa conclusão decorre da redação do art. 35 do decreto-Lei nº 3.365/41, que
impede a restituição do bem ao antigo proprietário somente quando os bens tiverem
sido incorporados à Fazenda Pública. A interpretação constitucional desse dispositivo leva
à conclusão de que:
1. A regra deve ser a restituição dos bens ao proprietário, assegurando-se ao
poder público direito à indenização nos termos do Código Civil (artigos 1.219
e 1.220);
2. A exceção deve ser a extinção do direito de propriedade do particular e a sua
conversão em perdas e danos, que somente pode ser reconhecida pelo Poder
Judiciário quando for irreversível a restituição do bem ao antigo proprietário.
A desapropriação indireta pode resultar de duas situações distintas, uma de fato
e outra de direito.
o art. 35 do decreto-Lei nº 3.365/41, quando menciona que é a incorporação
dos bens privados à Fazenda Pública o fundamento para a desapropriação indireta,
faz referência a situações de fato. A partir da redação contida em mencionado artigo, é
possível concluir, por exemplo, que a execução de obra pública em propriedade privada
importa em perda da propriedade, o que irá caracterizar a desapropriação indireta.
A jurisprudência tem identificado esse instituto não apenas em razão de situações
de fato, mas também de direito. A criação de parques públicos em propriedade privada
tem sido constantemente fonte geradora de inúmeras ações de indenização. Alega-se
que se a criação de parques ecológicos ou de áreas de preservação ambiental extrapola a
imposição das limitações administrativas, que deveriam observar patamares razoáveis,
e impede o proprietário de usar o bem, a situação deixa de se enquadrar como mera
limitação para se transformar em desapropriação indireta. nessas hipóteses, não seria
uma situação de fato, mas a promulgação de uma lei (situação de direito), a fonte da
desapropriação indireta.30
13.8.2 natureza da ação de desapropriação indireta e prazo prescricional
outra questão controvertida acerca da desapropriação indireta diz respeito à
natureza da ação, em que se busca identificar se se trata de ação real ou pessoal.
nos termos da súmula stJ nº 119, trata-se de ação real, e seu prazo prescricional
é de 20 anos.31
30
31
stJ: “Administrativo. desapropriação. Parque estadual serra do mar. Legitimidade. Prescrição. indenização.
Cobertura vegetal. Juros compensatórios. 1. É impossível conhecer-se do recurso especial pela alegada violação
ao artigo 535 do Código de Processo Civil nos casos em que a argüição é genérica. 2. enquanto não revogados
os decretos estaduais que o gravaram com a já mencionada servidão, a Fazenda do estado continua sendo
responsável pelos efeitos respectivos. 3. o prazo prescricional nas desapropriações indiretas, por tratar-se de
ação de direito real, não se sujeitam ao prazo prescricional qüinqüenal estabelecido no decreto nº 20.910/32,
mas sim ao prazo vintenário, que, em princípio, deve ser contado a partir do decreto expropriatório (súmula
119/stJ). 4. A área já sofria as limitações impostas pelo Código Florestal anteriormente à implantação do Parque
serra do mar, o que tornava inviável a exploração econômica. não havendo exploração econômica não há como
condenar a recorrente ao pagamento pela cobertura vegetal” (resp nº 194.689-sP, 2ª turma. rel. min. Castro
meira. Julg. 1º.9.2005. DJ, 03 out. 2005).
A ementa do acórdão transcrito enfrenta algumas questões importantes acerca da desapropriação indireta:
- firma o entendimento de que se trata de ação de natureza real, o que mantém seu prazo prescricional em 20 anos;
- não admite indenização em relação à cobertura vegetal que não poderia ser objeto de exploração econômica.
nesse sentido, vide stJ: “Processual civil. Administrativo. desapropriação indireta. Juros moratórios. termo inicial
de incidência. Ausência de prequestionamento. Ação de natureza real. Prescrição vintenária. súmula 119/stJ. Honorários
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
o parágrafo único do art. 10 do decreto-Lei nº 3.365/41 foi alterado pela mP
nº 2.027 e estabeleceu que “extingue-se em cinco anos o direito de propor ação que vise
a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público”. A redação desse
dispositivo foi atacada por meio de ação direta de inconstitucionalidade (nº 2.260). o
eg. stF concedeu a medida cautelar para suspender a incidência desse dispositivo em
relação às “ações de indenização por apossamento administrativo ou desapropriação
indireta” em razão de eventual ofensa “à garantia constitucional da justa e prévia
indenização em dinheiro (CF, art. 5º, XXiv)”.32
suspensa a redação do parágrafo único do art. 10 do decreto-Lei nº 3.365/41, em
razão da medida cautelar concedida pelo stF, poder-se-ia entender que o prazo prescricional a ser adotado voltaria a ser o de 20 anos definido pela Súmula nº 119 do STJ.
A primeira importante observação acerca da fixação do prazo prescricional para
a ação de desapropriação indireta reside no fato de que o vigente Código Civil, diversamente do texto de 1916, não mais fixa prazo prescricional específico para as ações
reais. dispõe, ao contrário, de forma genérica, em seu art. 205 que “a prescrição ocorre
em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.
É de se observar, ademais, que os precedentes da mencionada súmula stJ nº 119
(rtJ 37/297 e 47/134) levam à inequívoca conclusão de que foi adotado o prazo de 20
anos para a ação de indenização em desapropriação indireta em razão de que era este o
prazo utilizado pelo Código Civil de 1916 para a usucapião extraordinária. ocorre que,
no Código Civil de 2002, o prazo para a usucapião extraordinária foi reduzido para 15
anos, conforme dispõe o art. 1.238 do Código. esta mudança, aliada à inexistência de
prazo prescricional específico para ações reais, deve levar à conclusão de que o prazo de
15 anos deve ser igualmente utilizado para definir a prescrição na ação de indenização
em desapropriação indireta.
32
advocatícios. Fixação. Aplicação da lei vigente ao tempo em que prolatada a sentença. Juros compensatórios. incidência. Alegado abandono do imóvel expropriado. matéria de prova. súmula 7/stJ. 1. Ausente o questionamento
prévio dos dispositivos legais cuja violação é apontada, apesar dos embargos de declaração opostos, é inviável o conhecimento do recurso especial. Aplicação do princípio consolidado na súmula 211/stJ. 2. A ação indenizatória por
desapropriação indireta, de natureza real, sujeita-se ao prazo prescricional vintenário, a teor do disposto na súmula
119/stJ. 3. o supremo tribunal Federal, no julgamento da mC na Adin 2.260/dF, ao examinar a norma contida no
parágrafo único do art. 10 do decreto-Lei 3.365/41, com a redação dada pela mP 2.027-40/2000 — “extingue-se em
cinco anos o direito de propor ação de indenização por apossamento administrativo ou desapropriação indireta,
bem como ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público” —, deferiu, em parte,
a medida cautelar para suspender a eficácia da expressão “ação de indenização por apossamento administrativo
ou desapropriação indireta, bem como”, tanto é assim que a redação do mencionado preceito foi substancialmente
alterada nas reedições posteriores. 4. A orientação desta superior Corte de Justiça, invocando o princípio tempus regit
actum, firmou-se no sentido de que a fixação dos honorários advocatícios rege-se pela lei vigente ao tempo em que
prolatada a sentença que os impõe. 5. Proferida a sentença em 4 de agosto de 2003, deve o percentual dos honorários
advocatícios amoldar-se aos novos limites estabelecidos pela nova redação do art. 27, §1º, do decreto-Lei 3.365/41.
6. os juros compensatórios, na desapropriação, remuneram o capital que o expropriado deixou de receber desde a
perda da posse, e não os possíveis lucros que deixou de auferir com a utilização econômica do bem expropriado.
7. Qualquer conclusão em sentido contrário ao que decidiu o aresto atacado, relativamente à existência do indevido apossamento administrativo, envolve o reexame do contexto fático-probatório dos autos. ‘A pretensão
de simples reexame de prova não enseja recurso especial’ (súmula 7/stJ). 8. recurso especial parcialmente
conhecido e, nessa parte, parcialmente provido” (resp nº 829.526-rs, 1ª turma. rel. min. denise Arruda. Julg.
3.8.2006. DJ, 28 ago. 2006, grifos nossos).
stF. Adi nº 2.260-mC/dF, Pleno. rel. min. moreira Alves. Julg. 14.2.2001. DJ, 02 ago. 2001.
vale mencionar que o prazo prescricional quinquenal previsto no parágrafo único do art. 10 do decreto-Lei
nº 3.365/1941 não se aplica às ações relativas a desapropriações indiretas, nos termos da citada decisão proferida
na Adi nº 2.260. Contudo, é aplicável, por exemplo, a pretensões indenizatórias decorrentes de limitações
administrativas. Vide stJ. Agrg no resp nº 177.692-mG, 2ª turma. rel. min. Herman Benjamin. Julg. 18.9.2012. DJe,
24 set. 2012; e Agrg nos eresp nº 1.192.971-sP, 1ª seção. rel. napoleão nunes maia. Julg. 12.9.2012. DJe, 18 set. 2012.
637
638
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
A relação entre a prescrição da ação de indenização por desapropriação indireta
e a usucapião extraordinária reside no fato de que, se o particular não postular a indenização neste prazo, operar-se-á em favor do poder público a usucapião, o que elidirá
a possibilidade do antigo proprietário de pleitear a indenização. Assim fixado o prazo
da usucapião extraordinária em 15 anos pelo vigente Código Civil, este mesmo prazo
deve ser utilizado para definir a prescrição da ação de indenização na desapropriação
indireta.
esperamos que a jurisprudência, que até o momento continua a seguir a prescrição
vintenária, considere as alterações verificadas no Código Civil e adote o prazo de 15
anos para a propositura da ação de indenização por desapropriação indireta.
tratando-se de ação de natureza real, ela deve ser proposta no foro do local do
imóvel.
13.9 desapropriação por zona
A desapropriação por zona está disciplinada pelo art. 4º do decreto-Lei nº 3.365/41.
Caracteriza-se pela inclusão das áreas contíguas àquelas de que o poder público efetivamente necessita para a realização da obra pública, a fim de que o poder público se
beneficie da valorização dessas áreas contíguas em função da execução da obra.
A desapropriação por zona, isto é, de área superior àquela de que o poder público
necessita, pode ter dois objetivos distintos:
1. A realização de futuras obras; ou
2. A posterior venda dos bens desapropriados a terceiros.
exemplo: consideremos que a execução de determinada obra pública demandaria
a desapropriação de apenas 2000 metros quadrados de um imóvel. os imóveis contíguos
a este, que somados podem corresponder a 5000 metros quadrados, não são necessários
à execução da obra, mas uma vez realizada esta obra, sofreriam significativa valorização.
diante dessa constatação, o poder público pode decidir desapropriar toda a área, correspondente aos 7000 metros quadrados. utilizaria os 2000 metros para a execução da
obra e à zona restante, correspondente aos 5000 metros quadrados, poderiam ser dados
dois diferentes destinos: 1. execução de futuras obras; ou 2. venda dos bens a terceiros.
A lógica dessa categoria especial de desapropriação reside no fato de que seria
legítimo ao poder público se beneficiar da valorização desses imóveis contíguos dado
que a valorização ocorreu em razão da obra realizada às expensas do poder público.
A desapropriação por zona tem sido muito criticada, especialmente quando não
se destina à realização de obras no futuro, mas à venda a terceiros. nesta hipótese, a
motivação do poder público se resume à apropriação das vantagens econômicas ocasionadas pela realização das obras públicas.
ora, a desapropriação, nos termos da Constituição Federal, deve ter por objetivo
a utilidade pública ou o interesse social. Qual a utilidade pública ou o interesse social
presente na expropriação, pelo poder público, de propriedade privada, se o objetivo
dessa apropriação é a revenda dos bens de modo a assegurar ao poder público vantagem econômica? Ademais, para essas situações, em que a realização de obras públicas
ocasione a valorização de imóveis particulares, a Constituição Federal indica o instituto
da contribuição de melhoria (art. 145, iii).
A constitucionalidade dessa modalidade de desapropriação foi examinada pelo
supremo tribunal Federal (Ai nº 42.240-Agr/GB), que se manifestou no sentido de
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
que a desapropriação “poderá abranger área maior do que a estritamente necessária
para a obra, desde que a destine a autoridade a fim público ou de utilidade pública”.33
Máxima vênia, são incompatíveis os conceitos de fim público ou de utilidade pública
e o de apropriação de vantagens econômicas pelo poder público, sobretudo por que
a apropriação dessas vantagens econômicas se faz à custa do direito de propriedade,
reconhecido pela Constituição Federal como direito fundamental.
Para assegurar ao poder público a possibilidade de reaver, ao menos em parte,
o que gastou com a obra pública, a Constituição Federal indica, como observado, o
instituto da contribuição de melhoria. ora, se existem à disposição do administrador
público dois distintos caminhos a serem utilizados para permitir o ressarcimento dos
gastos com a obra (a desapropriação por zona e a contribuição de melhoria), o princípio pro libertatis ou in dubio pro libertate impõe a adoção do instrumento menos gravoso
para o particular, que no caso é a contribuição de melhoria, que lhe permite conservar
a propriedade do bem.
em conclusão, a desapropriação por zona que tenha o propósito de permitir a
futura venda dos bens para assegurar ao poder público a apropriação da valorização
dos imóveis é inconstitucional.
13.10 direito de extensão
o direito de extensão não foi previsto no decreto-Lei nº 3.365/41, que estabelece as
regras básicas sobre desapropriação. ele consta do decreto nº 4.956/03, que em seu art. 12
expressamente prevê que o proprietário pode obrigar o poder público a incluir na área a
ser desapropriada o restante do bem, que em razão da desapropriação tornar-se-ia de inútil
ou de difícil utilização. esse direito encontra-se igualmente previsto na Lei Complementar
nº 76/93, que em seu art. 4º dispõe:
Art. 4º intentada a desapropriação parcial, o proprietário poderá requerer, na contestação,
a desapropriação de todo o imóvel, quando a área remanescente ficar:
i - reduzida a superfície inferior à da pequena propriedade rural; ou
ii - prejudicada substancialmente em suas condições de exploração econômica, caso seja
o seu valor inferior ao da parte desapropriada.
Poder-se-ia indagar qual seria o interesse do proprietário em ter parcela do
seu imóvel desapropriado? Por que iria ele requerer do poder público a inclusão no
âmbito da desapropriação de parcelas não mencionadas no decreto expropriatório? A
resposta é simples: é preferível ao proprietário obter a justa indenização pelo imóvel
desapropriado a permanecer com parcelas remanescentes daquele imóvel inúteis ou
de difícil utilização.
não obstante seja discutível a vigência do art. 12 do antigo decreto federal nº 4.956,
de 1903, é tão razoável o direito de extensão que sua adoção em nosso regime jurídico é
inquestionável.
o proprietário pode solicitar do poder público a inclusão dessas áreas tanto pela
via administrativa, quando apresenta contraoferta ao expropriante, quanto pela via
33
stF. Ai nº 42.240-Agr/GB – Guanabara, 2ª turma. rel. min. Aliomar Baleeiro. Julg. 16.4.1968. DJ, 06 set. 1968.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
640
judicial, quando apresenta sua contestação na ação de desapropriação. expiradas essas
etapas, operar-se-á preclusão do direito de extensão.34 se se tratar de desapropriação
indireta, todavia, enquanto for possível ao proprietário a propositura da ação de indenização, a ele será lícito arguir o direito de extensão.
13.11 tredestinação
o ato declaratório, que inicia o processo expropriatório, além de individualizar
o bem, deve indicar o fim a que se destina a desapropriação.
Conforme examinado, a desapropriação constitui a forma mais drástica de
intervenção do Estado na propriedade particular, agressão que se justifica em face da
utilidade pública ou do interesse social que resultará da transferência do domínio do
bem ao próprio expropriante (nas hipóteses de utilidade pública) ou a terceiros (o que
ocorre nas desapropriações por interesse social).
O desvio de finalidade em matéria de desapropriação ganha dimensão tão elevada
que se desenvolveu terminologia própria para especificá-lo: a tredestinação.
Caracteriza-se a tredestinação quando é dada ao bem desapropriado finalidade
incompatível com o interesse público. Se ao bem desapropriado for dada finalidade
diversa daquela especificada no ato declaratório (exemplo: desapropria-se o bem para a
construção de escola pública e é construído hospital público em seu local), mas esta nova
finalidade for compatível com o interesse público, não há que se falar em tredestinação
(José dos santos Carvalho Filho refere-se a essas hipóteses como tredestinações lícitas35).
o Código Civil de 2002 ao tratar do direito de preferência (art. 519) expressamente
menciona que “se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública,
ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo
preço atual da coisa”. o intuito do dispositivo é evidente: afastar a caracterização da
tredestinação na eventualidade de o bem desapropriado não ter “o destino para que se
desapropriou, desde ele seja utilizado em obras ou serviços públicos”. ou seja, se for
dado ao bem fim diverso daquele inicialmente indicado, mas compatível com a utilidade
pública ou o interesse social, não há que se falar em desvio de finalidade.
Nas hipóteses em que o poder público der ao bem finalidade incompatível com
o interesse público, o que ocorreria, por exemplo, se determinado imóvel é desapropriado para nele ser construído hospital público e é revendido a terceiro, resta evidente
a tredestinação.
A dúvida reside em saber se haveria tredestinação caso não seja dado ao bem
finalidade alguma. Ou seja, se o bem é desapropriado e nele não se faz nada, poder-se-ia
falar em tredestinação?
A resposta não é simples e nem pacífica na doutrina.
Há entendimentos no sentido de que tendo a lei sido omissa acerca da inação do
poder público, não seria possível falar em tredestinação.
34
35
Em sentido contrário ao que adotamos, José dos Santos Carvalho Filho advoga a tese de que “a inação não significa
renúncia. desse modo, ainda que não exercido o direito nesses momentos, tem o prejudicado ação de indenização
contra o expropriante para lhe ser restaurado o direito atingido pela desapropriação parcial, a menos que, como é
óbvio, já se tenha consumado a prescrição” (Manual de direito administrativo, 14. ed.).
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 704.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
Com a devida vênia, seguimos orientação diversa.
A tredestinação nada mais é do que a aplicação do instituto do desvio de finalidade às desapropriações. Conforme examinamos no Capítulo 10, o abuso de poder
pode-se caracterizar não apenas pela prática de atos, mas igualmente pela omissão da
Administração Pública.
Ademais, não pode prosperar o argumento de que, não tendo a lei fixado prazo
para o poder público dar ao bem expropriado finalidade pública, não seria possível
exigir do administrador a adoção de medidas tendentes a realizar a utilidade pública
ou interesse social que motivaram a perda da propriedade. o abuso do poder, e isto é
pacífico, pode ocorrer em qualquer situação em que o administrador tenha o dever de
praticar ato, e não o faça, não obstante lei não tenha fixado prazo para fazê-lo, devendo
nessas hipóteses ser utilizada regra de razoabilidade para caracterizar a omissão abusiva do poder público.
Se a tredestinação nada mais é do que a adaptação da teoria do desvio de finalidade à desapropriação, por que seria aqui adotada solução diversa, no sentido de que
a omissão legislativa na fixação do prazo legitimaria a inação eterna do administrador?
A desapropriação, que constitui a mais séria forma do estado intervir na propriedade, se justifica em nome do interesse coletivo e em razão da finalidade social ou
pública a ser dada ao bem. Se não se dá ao bem finalidade alguma, como é possível
justificar tão drástica invasão na propriedade privada?
Diante da omissão legislativa na fixação do prazo para o poder público dar ao
bem finalidade pública, tem sido utilizado, por analogia, o prazo de caducidade, de
dois anos na desapropriação por interesse social e de cinco anos para a desapropriação
por utilidade pública.
este prazo de caducidade se aplica, a rigor, ao ato declaratório da desapropriação.
ou seja, editado o decreto expropriatório, deve ser iniciada a fase executória da desapropriação em determinado prazo fixado em lei (de dois ou de cinco anos, conforme
o caso), sob pena de o decreto expropriatório ser declarado extinto por falta de uso. o
prazo de caducidade, que tem essa função específica, pode ser utilizado por analogia
para balizar o prazo dentro do qual deve ser dada ao bem desapropriado alguma finalidade pública. nesse sentido, consumada a desapropriação, deve o poder público dar
ao bem finalidade compatível com o interesse público dentro do prazo de dois anos, se
se tratar de desapropriação por interesse social, e de cinco anos, na desapropriação por
utilidade pública, sob pena de restar caracterizada a tredestinação por omissão.
importa observar que se o poder público não tiver adotado as providências necessárias à adequada utilização do bem por motivos estranhos à sua vontade (limitações
orçamentárias, por exemplo), mas mantenha o efetivo interesse de dar ao bem finalidade
pública, não se caracteriza a inação, e não se pode falar em tredestinação por omissão.
O interesse do poder público de usar o bem não se configura, todavia, com a
simples manifestação, expedida pela via administrativa ou formulada em juízo, do
poder público expropriante no sentido de que pretende dar ao bem finalidade pública.
expirado prazo a que nos referimos, e caso o antigo proprietário alegue a tredestinação
por omissão, é necessário que o poder público demonstre por meio de projetos básicos
ou planos executivos ou por meio de outras medidas administrativas quaisquer que
tem a efetiva intenção de utilizar o bem.
A discussão acerca do prazo dentro do qual pode ser alegada a tredestinação e das
medidas cabíveis para atacar a validade da desapropriação serão examinadas em seguida.
641
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
642
13.12 Anulação, cassação e retrocessão
Poucos temas são objeto de tamanha controvérsia em direito Administrativo
quanto a vigência e a natureza do instituto da retrocessão nas desapropriações. Antes
de enfrentarmos essas questões, devemos buscar melhor distingui-la da anulação e da
cassação da desapropriação.
A anulação da desapropriação pode ocorrer por razões formais ou materiais. Quando
o decreto expropriatório é editado por autoridade incompetente, por exemplo, teremos
a anulação de todo o processo expropriatório em razão da incompetência do agente.
Quando é editado o decreto expropriatório com o intuito de perseguir determinado
indivíduo, ou para favorecê-lo, a anulação da desapropriação seria de ordem material,
por motivo de desvio de finalidade na escolha do bem a ser expropriado.
A não observância dos requisitos legais que podem resultar na anulação da desapropriação pode verificar-se não apenas na fase declaratória, mas igualmente ao longo
da fase executória. nesta última hipótese, a anulação dos atos ou etapas no processo
de desapropriação não necessariamente importará em anulação de todo o processo,
sendo possível, por exemplo, desde que não tenha ocorrido caducidade, aproveitar-se
o ato declaratório de utilidade pública ou de interesse social.
A anulação, em resumo, deve ser declarada nas hipóteses em que, ao longo das
fases declaratória ou executória da desapropriação, for identificada a violação das
normas que devem pautar o processo.
distinta é a hipótese em que se deve promover a cassação da desapropriação, ou,
mais precisamente, do ato declaratório da desapropriação.
de acordo com Hely Lopes meirelles, “outra modalidade de anulação é a cassação do ato que, embora legítimo na sua origem e formação, torna-se ilegal na sua
execução”.36 raciocínio semelhante é adotado por maria sylvia Zanella di Pietro.37 Celso
Antônio Bandeira de Mello afirma que a cassação ocorre “porque o destinatário do ato
descumpriu condições que deveriam permanecer atendidas a fim de poder continuar
desfrutando da situação jurídica”.38 À semelhança desses entendimentos, José dos
santos Carvalho Filho sustenta que “a cassação é forma extintiva que se aplica quando
o beneficiário de determinado ato descumpre condições que permitem a manutenção
do ato e de seus efeitos”.39
Nas manifestações dos ilustres autores, é comum a afirmação de que deve ser
cassado o ato quando o destinatário não adotar as providências para dar efetividade
ao ato. Apresentam, todavia, como exemplos de atos a serem cassados aqueles que
favorecem o particular (licenças, alvarás etc.), e que não tendo o particular beneficiário
do ato tomado medidas para tornar efetivo o ato, ou ocorrendo desvios na execução do
ato (Celso Antônio Bandeira de mello cita como exemplo de ato a ser cassado a licença
para funcionamento de hotel que se transforma em casa de saliência), devem importar
na adoção dessa modalidade especial de invalidação do ato.
vê-se que a cassação se distingue da anulação porque esta se deve a falhas ocorridas por ocasião da prática ou da formação do ato, ao passo que a cassação diz respeito
a falhas que tornam a execução do ato incompatível com a ordem jurídica.
36
37
38
39
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 187.
di Pietro. Direito administrativo, p. 226.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 408.
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 127.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
defendemos a tese de que as hipóteses de tredestinação devem importar em
cassação da desapropriação. Conforme observado, a abalizada doutrina mencionada
faz referência à cassação quando o beneficiário do ato não executado ou objeto de desvio em sua execução é o particular. não vemos, todavia, por que afastar a aplicação do
instituto da cassação às hipóteses em que o beneficiário imediato do ato seja a própria
Administração Pública, de que seria exemplo a desapropriação.
em todas as hipóteses, consumada a desapropriação, o poder público se torna
o proprietário do bem (não obstante haja situações em que o poder público objetive
transferir esse bem a terceiros, o que ocorre nas desapropriações por interesse social).
ora, a desapropriação não é ato meramente formal, que se esgota com a sua
consumação. ela objetiva produzir efeitos futuros, que estão diretamente vinculados
aos motivos de interesse social ou de utilidade pública que justificaram a expropriação do bem. não nos parece juridicamente possível separar a desapropriação do bem
da finalidade a que ele se destina. Caso ocorra desvio na prática dos atos relativos à
consecução dos fins da desapropriação, seja na hipótese de ser o bem utilizado em
finalidade incompatível com a sua função pública, seja em razão da inação do poder
público, à semelhança do que se verifica com os particulares, o ente expropriante se
encontra sujeito ao âmbito da cassação.
A cassação se verifica, e isto é ponto pacífico na doutrina, quando o destinatário
não cumpre as condições necessárias à manutenção do ato e que “deveriam permanecer
atendidas a fim de poder continuar desfrutando da situação jurídica”. Não há qualquer
motivo que justifique a exclusão da Administração Pública do âmbito do alcance da
cassação.
Para as hipóteses em que tenha ocorrido tredestinação, a solução mais adequada
para o antigo proprietário reaver o bem é pleitear, administrativa ou judicialmente, a
cassação do ato declaratório da desapropriação. expirados os prazos de dois ou de cinco
anos dentro dos quais deve ser dada finalidade pública ao bem (conforme examinado
no item anterior) inicia-se a contagem do prazo para que seja pleiteada a cassação da
desapropriação.
Ainda que não se confunda com a anulação, a cassação mantém com esta estreita
proximidade haja vista ambas estarem relacionadas à necessidade de conformação
com a ordem jurídica (a anulação no que diz respeito à formação do ato; e a cassação,
à execução do ato). nesse sentido, pode ser pleiteada a cassação (do ato declaratório)
da desapropriação nos mesmos prazos aplicáveis à anulação. se utilizada a via administrativa, aplica-se o prazo de cinco anos previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, e se for
utilizada a via judicial, haja vista se tratar de ação de natureza pessoal, o prazo prescricional será igualmente de cinco anos, conforme determina o decreto nº 20.910/32, que
fixou a prescrição quinquenal em favor do Estado. Em qualquer das duas hipóteses, o
prazo de cinco anos deve ser iniciado da data em que reste caracterizada a tredestinação.
se se trata de hipótese de tredestinação por omissão, consumada a desapropriação por
utilidade pública ou por interesse social, inicia-se a contagem dos prazos de cinco ou de
dois anos, respectivamente. Findo esse prazo, a inação do poder público caracterizará a
tredestinação. nesse momento inicia-se a contagem do novo prazo de cinco anos para a
propositura da ação judicial, cujo pedido deve consistir na cassação do ato declaratório
da desapropriação e restituição do bem ao seu proprietário. nessa hipótese, o que tiver
sido pago a título de indenização deverá ser restituído ao poder público em valores
643
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
644
atualizados, sem que se justifique, todavia, o acréscimo de quaisquer juros moratórios
ou compensatórios.
A retrocessão tem sido objeto de inúmeras divergências doutrinárias. maria sylvia
Zanella di Pietro menciona a existência de três correntes acerca do tema:
- trata-se de direito pessoal de pleitear perdas e danos;
- trata-se de direito real de reivindicação do imóvel;
- A terceira corrente citada pela autora admite que a retrocessão seria direito
de natureza mista “cabendo ao expropriado a ação de preempção ou de preferência (de natureza real) ou, se preferir, perdas e danos”.40
o instituto da retrocessão tem sido objeto de profundas transformações em nossa
legislação pátria:
- o decreto nº 4.956/1903 o disciplinava como direito real do expropriado de
reaver o bem.
- o Código Civil de 1916, em seu art. 1.150, conferiu ao tema tratamento de
direito pessoal de preferência, resolúvel, portanto, em perdas (conforme observa
Celso Antônio Bandeira de mello41).
- A solução adotada pelo Código de 1916 teria sido aparentemente confirmada
pelo decreto-Lei nº 3.365/41, o texto legal básico em matéria de desapropriação,
quando afirma (art. 35) que “os bens expropriados, uma vez incorporados à
Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada
em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação julgada procedente
resolver-se-á em perdas e danos”.
- o Código Civil de 2002, em seu art. 519, expressamente dispõe que “se a coisa
expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em
obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo
preço atual da coisa”.
em razão do emaranhado de teses acerca da retrocessão, entendemos, à semelhança do que defende Celso Antônio Bandeira de mello, que a proteção conferida pela
Constituição Federal ao direito de propriedade não pode ser afastada pela legislação
ordinária pertinente ao tema. eventuais incompatibilidades entre os textos legais e o
constitucional importam, além da prevalência deste último, na necessidade de que os
dispositivos legais (decreto-Lei nº 3.365/41, art. 35, e Código Civil de 2002, art. 519) sejam
interpretados de modo a dar a maior efetividade possível aos preceitos constitucionais.
não nos parece compatível com a Constituição Federal admitir que a única
solução a ser adotada para as hipóteses de tredestinação — fundamento tradicionalmente apontado para o direito de retrocessão — seja assegurar ao expropriado direito
de preferência, especialmente por que este direito de preferência, conforme preceitua
o art. 513 do Código Civil de 2002, está condicionado à eventualidade de o comprador
(que no caso seria o expropriante) querer vender, ou dar em pagamento o bem. ou seja, se
o único instrumento de que dispõe o expropriado para atacar a tredestinação for a ação
de retrocessão, e se esta ação estiver condicionada à eventualidade de o poder público
não dar finalidade pública ao bem e de decidir revendê-lo, a proteção constitucional à
propriedade privada restaria totalmente esvaziada.
40
41
di Pietro. Direito administrativo, p. 179-180.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 785.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
A solução que buscamos construir assenta a proteção ao expropriado em duas
perspectivas.
A primeira perspectiva que assegura a efetiva proteção constitucional do direito
de propriedade, relacionada à eventualidade de não ser dada ao bem expropriado finalidade pública (ou seja, de ter ocorrido tredestinação), pode ser realizada mediante ação
judicial inominada por meio da qual o expropriado restitui ao poder público o valor
pago, monetariamente atualizado, e pede ao juiz: 1. seja decretada a cassação do decreto
expropriatório; e 2. seja condenado o poder público a restituir o bem desapropriado.
A segunda perspectiva para a proteção à propriedade expropriada está relacionada
à ação de retrocessão, cujo fundamento é o art. 519 do Código Civil. independentemente
do decurso de prazo ou de se ter caracterizado tredestinação na desapropriação, caso
o poder público decida revender o bem (CC, art. 513), deverá assegurar o expropriado
direito de preferência pelo valor atual da coisa (CC, art. 519), devendo ser obrigado
a indenizar o expropriado se não lhe tiver assegurado a oportunidade de exercer seu
direito de preferência (CC, art. 518).
violado o direito de preferência, o expropriado dispõe de cinco anos para intentar a ação de retrocessão pleiteando perdas e danos. isto por que, conforme dispõe o
decreto nº 20.910, de 06.01.1932, em seu art. 1º: “as dívidas passivas da união, estados
e dos municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal,
estadual ou municipal, seja qual for sua natureza, prescrevem em cinco anos, contados
da data do ato ou fato do qual se originaram”.
13.13 requisição
À semelhança da desapropriação, a requisição administrativa constitui importante modalidade de intervenção do estado na propriedade. o âmbito, os motivos e
os objetivos buscados pelo estado para promover desapropriações não se confundem,
todavia, com aqueles pertinentes à requisição.
A Constituição Federal dispõe sobre requisições no art. 5º, XXv, in verbis:
no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade
particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver prejuízo.
A competência para legislar sobre a matéria é privativa da união (art. 22, iii).
A competência para promover requisições, todavia, não se restringe ao poder público
federal, alcançando todas as entidades políticas.
trata-se de atividade típica do estado que não se confunde com qualquer das
demais funções apresentadas ao longo deste trabalho. Para fins didáticos, conforme
observado, buscamos apresentar as funções estatais por meio da divisão tripartite
(atividades prestacionais, de polícia e de fomento), que não tem, todavia, a pretensão
de compreender o imenso rol de atividades desenvolvidas pelo estado. É comum nos
depararmos com atividades como a desapropriação e a requisição, que não se enquadram
como prestação de serviço, como atividade de polícia ou de ordenação da atividade
econômica, ou como atividade de fomento. São atividades específicas, com natureza e
regime jurídico próprios.
o diploma legal básico sobre requisições é o decreto-Lei nº 4.812/42, que cuida
das requisições civis e militares. A matéria é ainda objeto de alguns textos esparsos,
645
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
646
como a Lei delegada nº 4/62,42 que “dispõe sobre a intervenção no domínio econômico
para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo”, o
Código eleitoral (Lei nº 4.737/65), que permite tanto a requisição de serviços (convocação de mesários e de escrutinadores) quanto de bens, e a Lei nº 4.375/64, que trata do
serviço militar obrigatório.
A requisição não se confunde com a desapropriação em razão dos seguintes
fatores:
- Fundamento – na desapropriação, o poder público assume a propriedade para
dar-lhe fim de utilidade pública ou de interesse social; na requisição, o poder
público, para atender casos de iminente perigo público ou outras situações previstas em legislação especial pode usar bens ou serviços;
- Objeto – A desapropriação somente pode ter por objeto bens; a requisição pode
alcançar bens ou serviços;
- Objetivo – na desapropriação, o poder público se apropria de bens para
transferi-los a terceiros (na desapropriação por interesse social), ou para
mantê-los para si próprio (nas hipóteses de utilidade pública); na requisição,
o poder público usa bens ou serviços de particulares. não tem a requisição o
propósito de extinguir a propriedade. Há hipóteses, todavia, em que o uso do
bem (o que se aplica irremediavelmente aos bens consumíveis, por exemplo:
requisição de bens comestíveis) pelo poder público importa em sua extinção.
Há requisições (exemplo: requisições de imóveis privados pela Justiça eleitoral
para funcionarem como zonas eleitorais), todavia, em que o uso não importa
em extinção;
- Indenização – na desapropriação, sempre haverá indenização,43 que deve ser
prévia. em outras palavras, somente se consuma a desapropriação com o pagamento da indenização. na requisição, o pagamento da indenização depende
da ocorrência de dano. Confirmado o prejuízo do particular em decorrência
da requisição, o eventual pagamento somente ocorrerá após o uso do bem
pelo poder público.
- Executoriedade – Conforme observa Celso Antônio Bandeira de mello,44 a desapropriação não é auto-executória. Caso não haja acordo entre o poder público
e o particular acerca do valor da indenização, é necessário que o poder público
se socorra da via judicial por meio da ação de desapropriação. A requisição, ao
contrário, pode ser promovida pelo poder público pelos seus próprios meios,
independentemente do consentimento do particular e sem a necessidade da
propositura de qualquer ação judicial.
13.14 Limitação administrativa
As limitações administrativas se assemelham às desapropriações e às requisições na medida em que constituem instrumentos de que o estado pode valer-se para
42
43
44
A última vez de que se tem notícia da utilização da Lei delegada nº 4 ocorreu durante a década de 1980, por
ocasião do congelamento de preços de inúmeros produtos e que resultou no desabastecimento de carne. Foi
utilizada a lei delegada para requisitar gado no pasto. A Polícia Federal foi acionada para “laçar bois” utilizando
“helicópteros”. este exemplo talvez sirva para demonstrar o quanto evoluímos dos anos 1980 para os dias atuais.
Convém uma vez mais recordar o confisco previsto no art. 243 da Constituição Federal, a que alguns autores se
referem como sendo hipótese de desapropriação não indenizável.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 798.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
intervir na propriedade privada. diversamente da desapropriação e da requisição, que
apresentam natureza própria, as limitações administrativas se inserem no âmbito do poder
de polícia administrativa.
Conforme examinado no Capítulo 10, o poder de polícia corresponde à atividade
estatal por meio da qual são impostas condições, vedações ou limitações ao exercício
de bens, direitos e atividades. As limitações administrativas correspondem a um dos
aspectos por meio do qual o poder de polícia atua. seu âmbito de alcance é, todavia,
mais restrito, e alcança tão somente o exercício da propriedade imobiliária.
A forma mais usual das limitações administrativas se manifestarem é por meio da
imposição de obrigações negativas fixadas em lei para o uso da propriedade imobiliária.
É o caso da proibição de construir acima de determinada altura, ou para fim diverso
daquele previsto no plano diretor. Admite-se, todavia, como obrigações acessórias
decorrentes das limitações, a imposição de obrigações positivas.
A legislação urbanística é repleta de normas por meio das quais são fixados os
padrões de construção. Define essa legislação o fim a que se pode destinar a edificação
(habitacional, comercial, industrial etc.), o gabarito dos prédios (que indica o número
se andares admitidos).
o instrumento hábil para a criação da limitação é a lei, sendo evidentemente
admitidos atos administrativos apenas para dar executoriedade ao diploma legal que
cria a limitação.
As limitações são fixadas, como regra, por meio de proposições de caráter genérico.
ou seja, a lei que cria a limitação o faz sem indicar a propriedade ou as propriedades
a serem afetadas. É descrito o âmbito de incidência da lei (zona litorânea, bairros específicos, áreas de relevância histórica ou urbanística, áreas de relevância ambiental) e
todos os imóveis localizados nessas áreas são indistintamente afetados. É o caso, por
exemplo, das áreas especificadas na Lei nº 12.651/2012, que delimita as áreas de preservação permanente.
excepcionalmente, a limitação pode ser instituída por meio de lei de efeito concreto.
É o que ocorre quando são criados parques ecológicos.
As limitações administrativas não são passíveis de indenização. A impossibilidade
de serem indenizados os eventuais prejuízos sofridos pelo proprietário em razão da
redução da capacidade de uso do bem resulta do caráter abstrato da norma que, como
regra, institui a limitação.45
45
no sentido de que não cabe indenização em razão de limitações administrativas, vide stJ: “Administrativo.
Ação de indenização por desapropriação indireta. Parque estadual da serra do mar. Limitações administrativas de caráter geral. Função social da propriedade. Ausência de prejuízo. impossibilidade de indenização.
i - inexiste a alegada violação ao artigo 535, i e ii do CPC na medida em que o aresto recorrido examinou todos
os pontos pertinentes ao desate da lide. ii - o exame do conjunto fático-probatório exposto nos autos atestou a
impossibilidade de exploração econômica da propriedade dos autores, de modo a impor a conclusão de que da
ausência de qualquer prejuízo decorre a impossibilidade de indenização. iii - o ato administrativo que criou o
Parque estadual da serra do mar não impôs aos proprietários outras restrições que não aquelas decorrentes da
legislação constitucional e infraconstitucional, sendo certo que essas limitações administrativas, de caráter geral,
não constituem direito que ampare qualquer indenização. iv - Precedente: resp nº 468.405/sP, rel. min. JosÉ
deLGAdo, dJ de 19/12/2003, voto-vista min. teori ALBino ZAvAsCKi. v - em sede de recurso especial
revela-se inviável rediscutir matéria de direito local, bem como revolver o conjunto fático-probatório exposto
nos autos, em face do que dispõem as súmulas 280/stF e 07/stJ. vi - recurso especial não conhecido” (resp
nº 596.645-sP, 1ª turma. rel. min. Francisco Falcão. Julg. 28.9.2004. DJ, 03 nov. 2004).
em igual sentido: “Processual Civil. Administrativo. Agravo regimental no recurso especial. Ação de indenização. decreto estadual 10.251/77. Criação do Parque estadual da serra do mar. esvaziamento do conteúdo
econômico da propriedade. indenização indevida. Limitações preexistentes em decorrência de outras normas.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
648
importa observar que a limitação não pode criar restrição que impeça o uso do
bem. Ainda que sujeito à restrição, o bem deve admitir a sua exploração pelo proprietário
ou possuidor. nesse sentido, percebe-se que a limitação deve observar parâmetros de
razoabilidade. se fosse estabelecido, por exemplo, que a área da Amazônia Legal seria
insusceptível de exploração econômica, sendo todos os imóveis rurais nela localizados
de preservação permanente, não seria possível admitir o direito dos proprietários de
obter indenização, mas, ao contrário, dever-se-ia concluir que se trata de norma inconstitucional.46
Há hipóteses, todavia, em que a tentativa de criar limitação administrativa decorre
de leis de efeito concreto. É o que se verifica com a criação de parques ecológicos em
propriedade particular. nessas hipóteses, em que são afetados imóveis determinados
cuja utilização resta totalmente comprometida, não se deve concluir pela inconstitucionalidade da lei, mas que a situação por ela criada não mais se configura como limitação.
se se torna impossível o uso do bem, o que seria mera limitação, transforma-se em
desapropriação indireta, legitimando o proprietário ao direito de obter indenização
pela perda da propriedade. É esse o entendimento pacífico em nossos tribunais.
se, todavia, a limitação decorrer de lei de efeito concreto — que individualiza
o imóvel afetado — e não comprometer totalmente o seu uso, abrem-se duas possibilidades de enquadramento. A primeira possibilidade seria a de considerar a hipótese
como sendo uma servidão administrativa; a segunda seria considerá-la uma limitação.
Ambas as soluções não são perfeitas. na primeira hipótese, teríamos uma servidão
decorrente de lei e cuja obrigação básica imposta ao proprietário do bem seria a de
não fazer (na medida em que ele não poderia explorar livremente os recursos naturais
existentes no imóvel). teríamos, portanto, uma servidão com características de limitação.
A outra solução, de considerá-la uma limitação, não seria igualmente adequada, pois
seria instituída por meio de lei de efeito concreto e, causando prejuízo ao proprietário,
seria indenizável. A criação de parques nacionais ou estaduais feita por lei constitui
exemplo desse tipo de situação. em razão da obrigação imposta aos proprietários, de
não fazer, entendemos mais adequado considerar a situação como hipótese especial
de limitação administrativa.
A especialidade dessa limitação está relacionada à sua instituição estar vinculada
a lei de efeito concreto e à possibilidade de ser objeto de indenização. não vemos como
considerá-la, distintamente do que fazem renomados autores, como servidão, porque
ela não impõe qualquer ônus real sobre a propriedade, mas, de forma genérica, restringe o seu uso.
É de se concluir, portanto, que diversamente da desapropriação (indenizável
sempre) e da requisição (indenizável se houver dano), a limitação administrativa não
46
1. A ausência de prequestionamento dos dispositivos legais ditos violados atrai o óbice da súmula 211/stJ. 2. A
criação do Parque estadual da serra do mar, por intermédio do decreto estadual 10.251/77, do estado de são
Paulo, não acrescentou qualquer limitação às previamente estabelecidas em outros atos normativos, os quais,
à época da edição do referido decreto, já vedavam a utilização indiscriminada da propriedade. Precedentes. 3.
daí se conclui que é indevida qualquer indenização em favor dos proprietários dos terrenos atingidos pelo ato
administrativo em questão, salvo se comprovada limitação administrativa mais extensa que as já existentes. 4.
Agravo regimental desprovido” (stJ. Agrg no resp nº 610.158-sP, 1ª turma. rel. min. denise Arruda. Julg.
21.3.2006. DJ, 10 abr. 2006).
A exploração de áreas de florestas na Amazônia Legal, conforme definido pelo art. 16, II, do Código Florestal,
deve importar em preservação de ao menos 80% da propriedade rural.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
gera, como regra, direito ao proprietário do imóvel de obter indenização. se ela decorrer de
lei de efeito concreto (conforme o mencionado exemplo da criação de parque ecológico),
importar em restrição ao uso da propriedade, sem, todavia, comprometer totalmente
o uso, e causar prejuízo ao proprietário, é possível considerar a hipótese como sendo
de limitação indenizável.
13.15 servidão administrativa
A servidão administrativa constitui modalidade especial de intervenção do estado
na propriedade privada cujas origens remontam ao Direito Privado, especificamente,
às servidões de passagem ou de trânsito.
São exemplos de servidões administrativas a passagem de fiação elétrica, de
aquedutos, de gasodutos, de oleodutos etc. A afixação de placas de sinalização, com a
identificação dos nomes de ruas ou de bairros nos muros das propriedades privadas, é
também apresentada como exemplo de servidão administrativa. não obstante extrapole
a origem do instituto, que está relacionado ao direito de passagem de terceiro decorrente
da relação que se estabelece entre o “prédio dominante, e que grava o prédio serviente,
que pertence a dono diverso”, conforme dispõe o Código Civil, é possível flexibilizar
o conceito de servidão administrativa para considerá-lo como o meio de intervenção do
Estado que sujeita a propriedade privada ao dever de suportar a restrição em seu uso em razão
de utilidade pública.
Conforme observa maria sylvia Zanella di Pietro, a servidão administrativa
observa os seguintes princípios: “o da perpetuidade (art. 695 do Código Civil de 1916 ou
1.378 do novo Código); o de que a servidão não se presume (art. 696 do Código de 1916,
não repetido no novo Código); o da indivisibilidade (art. 707 do Código Civil de 1916 e
1.386 do novo Código); o uso moderado (arts. 704, 705 e 706 do Código de 1916 e art. 1.385
do novo Código)”.47
A servidão administrativa não se confunde com a desapropriação porque o
proprietário do bem conserva sua propriedade. ou seja, se a utilização do bem em
favor da coletividade importar em cerceamento ao uso do bem de modo a impedir sua
utilização pelo proprietário, será hipótese de desapropriação. Podemos imaginar o
exemplo da construção de rodovia em propriedade privada. não há, nesta hipótese, como
o proprietário do bem usar a área do imóvel por onde passará a rodovia. A passagem
de fiação elétrica, ao contrário, não obstante importe em restrição ao uso do bem, não
o suprime a ponto de justificar a desapropriação do bem, sendo bastante que sobre a
propriedade seja instituída a servidão.
Ao ser adotada no âmbito da Administração Pública, a servidão administrativa
conserva sua natureza de direito real,48 mas se diferencia da servidão prevista no Código
Civil (art. 1.378 et seq.) em razão, basicamente, de envolver interesses públicos que se
contrapõem aos dos proprietários dos imóveis dependentes. ou seja, institui-se a servidão privada em razão de interesses privados; institui-se a servidão administrativa
em razão do interesse coletivo (público) na passagem de redes (de energia, de água, de
gás etc.) cuja fruição interessa à coletividade.
47
48
di Pietro. Direito administrativo, p. 143.
sobre o tema, vide súmula stF nº 415: “servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo
pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória”.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
tomemos, uma vez mais, o exemplo das redes de transmissão de energia elétrica
para melhor esclarecer a servidão administrativa.
A demanda pelos serviços de energia elétrica se concentra nos grandes centros
urbanos, localizados, na maior parte dos casos, a centenas ou milhares de quilômetros
dos locais onde a energia é gerada. É imperioso, em termos de economia de recursos e
de eficiência do sistema, que se busque reduzir a distância entre o local da produção e o
destino da transmissão. isto importa em traçar uma linha entre esses dois pontos, e por
essa linha, fazer passar a fiação elétrica, cuja redução de custos e eficiência interessa a
toda a sociedade. inconcebível, além de desnecessário, que se tenha de desapropriar os
imóveis ao longo de todo o trecho por onde a fiação elétrica será conduzida. A partir da
idéia de servidão de trânsito, de origem civilista, institui-se a servidão administrativa ao
longo de todo o trecho por onde irá passar a rede de transmissão da energia elétrica, e,
se essa passagem importar em danos ou prejuízos aos proprietários, será ele indenizado.
o tratamento legislativo acerca das servidões administrativas é bastante lacônico.
restringe-se o decreto-Lei nº 3.365/41, que cuida da desapropriação, a fazer menção
em seu art. 40 a que “o expropriante poderá constituir servidões, mediante indenização
na forma desta lei”.
Por força desse dispositivo, a instituição de servidões administrativas deve observar
os mesmos trâmites pertinentes à desapropriação.
inicia-se o processo com a declaração de utilidade pública do imóvel ou dos
imóveis que irão suportar a servidão. se houver consentimento entre o poder público
e o proprietário do imóvel acerca do uso que o poder público dará ao bem e quanto
ao valor a ser pago ao particular, o processo de instituição da servidão ocorrerá pela
via administrativa e “constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários e
subseqüente registro no Cartório de registro de imóveis” (CC, art. 1.378).
Caso não haja acordo, o poder público deve propor ação judicial específica
com vista à obtenção de sentença judicial que decrete a servidão, sentença que deve
ser igualmente levada a registro em Cartório de registro de imóveis. em virtude da
aplicação à ação para instituir a servidão administrativa do procedimento pertinente
à desapropriação, é de se admitir, em casos de urgência, a possibilidade de o poder
público requerer a imissão provisória na posse para poder realizar as obras necessárias
à servidão.
Caso a instituição da servidão administrativa não observe os procedimentos
descritos acima, sendo instituída pelo poder público sem o consentimento do particular ou sem a instauração da necessária ação judicial, restaria caracterizada situação
que poderíamos denominar, por analogia com a desapropriação indireta, de servidão
administrativa de fato ou indireta. À semelhança do que se verifica com a desapropriação
indireta deve ser examinada, em primeiro lugar, a possibilidade de ser restituída a posse
ao proprietário do imóvel. se a situação resultante da servidão administrativa indireta
se tornar fato consumado, insuscetível de ser desconstituída em razão dos benefícios
proporcionados à coletividade, cabe ao proprietário do imóvel o direito de propor ação
judicial pleiteando a necessária indenização.
Há grande interesse prático em distinguir a servidão administrativa da limitação
administrativa em razão de esta última não ser, em regra, indenizável.
Ambos os institutos têm em comum o objeto em relação ao qual atuam: somente
a propriedade imobiliária pode ser afetada pela servidão administrativa ou pela limitação administrativa.
CAPítuLo 13
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A servidão administrativa se diferencia da limitação administrativa, em primeiro
lugar, em razão da natureza da obrigação imposta: na servidão, impõe-se ao proprietário
o dever de suportar (a passagem de fiação elétrica, do oleoduto, do aqueduto, a fixação de
placas de sinalização), ao passo que na limitação o proprietário assume o dever genérico
de não fazer (de não construir acima de determinada altura, de não construir para fim
diverso daquele previsto em lei etc.). A servidão institui ônus real sobre o imóvel ou
imóveis identificados; a limitação é uma manifestação do poder de polícia do estado que
condiciona o exercício do direito de propriedade imobiliária.
em segundo lugar, diferencia-se a limitação da servidão porque esta última afeta
imóvel ou imóveis individualizados, determinados. não obstante a servidão administrativa
possa alcançar centenas ou milhares de imóveis (imagine quantos afetados pelo gasoduto Brasil-Bolívia), é possível individualizar cada um desses imóveis, o que pressupõe
que o poder público realize acordo ou proponha ação judicial com vista à instituição
da servidão para cada imóvel a ser afetado.
na limitação, ao contrário, que decorre de lei, salvo exceções, são afetados imóveis indeterminados.
esse aspecto é relevante porque está diretamente relacionado ao eventual dever
de indenizar prejuízos sofridos. A servidão administrativa é indenizável porque afeta
imóveis específicos; a limitação, ao contrário, não é indenizável porque decorre, em
regra, de preceitos genéricos.
Há situações, todavia, em que a limitação, não obstante decorra de lei, afeta imóveis específicos, impondo-lhes obrigações de não fazer. É o que ocorre com a criação
de parques em propriedade privada. Conforme examinamos, se a limitação imposta
por lei impede o uso do bem, ela se transforma em desapropriação indireta. Caso não
impeça o uso dos imóveis especificamente identificados, mas lhes cause prejuízo, o poder público tem dever de proceder à sua indenização. em resumo, a limitação decorre,
como regra, de lei geral que alcança imóveis indeterminados e, nessa condição, não gera
para os proprietários direito de pleitear indenização por eventuais prejuízos sofridos.
Se a limitação decorrer de lei específica, que individualize os imóveis afetados, cabe
aos respectivos proprietários direito de obter indenização.
A servidão, ao contrário, que sempre decorre de atos específicos, se causar prejuízo, gera para o proprietário direito de obter indenização.49
Aspecto importante na distinção dos dois institutos diz respeito, portanto, à sua
instituição.
no caso da limitação, promulgada a lei que a instituiu, a sua efetivação independe
da adoção de qualquer medida por parte do poder público. exemplo: aprovada lei que
fixe que em determinados bairros não poderão ser construídos edifícios com mais de
49
o stJ (resp nº 154.686-sP, 1ª turma. rel. min. Garcia vieira. Julg. 17.4.1998. DJ, 21 set. 1998) afirmou que a instituição de parque nacional constitui hipótese de servidão administrativa. o exame mais atento do acórdão permite
identificar que o interesse prático evidenciado no julgamento buscou definir caminhos para assegurar ao proprietário direito à indenização. Concluiu o eg. stJ que se tratava de servidão tão somente para permitir a indenização.
Não haveria distinção alguma se se afirmasse que se tratava de limitação que, tendo afetado imóveis específicos,
teria gerado direito à indenização.
ou seja, mais importante, nessas hipóteses, do que identificar conceitualmente se se trata de servidão decorrente
de lei que imponha obrigação de não fazer, ou se se trata de limitação específica, o que constitui, em ambos os
casos, contradição, é assegurar ao particular o direito de obter indenização em razão de sua propriedade ter sido
afetada por medidas específicas e que lhe causaram prejuízos.
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Curso de direito AdministrAtivo
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cinco andares, a medida é valida e aplicável a todos os imóveis independentemente de o
poder público praticar qualquer ato administrativo de execução. no caso das servidões
administrativas, ao contrário, a instituição de cada uma delas depende de ato específico
a ser adotado pelo poder público, sendo necessário, a fim de que ela produza efeitos
erga omnes, que o acordo ou a sentença que a formalizem sejam levados a registro em
cartório. ou seja, a instituição da servidão administrativa decorre de atos administrativos
específicos; a limitação administrativa decorre diretamente da lei e não necessita de atos
administrativos de execução para ser válida e para criar obrigações para os proprietários
dos imóveis.
Percebe-se que não obstante a servidão e a limitação serem institutos conceitualmente distintos, há situações práticas em que não é fácil o seu enquadramento. o Código
de águas (decreto nº 24.643/34), por exemplo, cuida do uso das faixas marginais de
rios e lagos. Hely Lopes meirelles e Celso Antônio Bandeira de mello relacionam essa
hipótese como sendo servidão administrativa;50 José dos santos Carvalho Filho como
limitação administrativa.51 As restrições impostas ao uso dos imóveis localizados nas
proximidades dos aeroportos, que maria sylvia Zanella di Pietro considera como servidão administrativa, é objeto de crítica por grande parte da doutrina, que reconhecem
na hipótese aplicação de regras da limitação administrativa.
A relação entre a servidão administrativa e o tombamento, outra hipótese de
intervenção do estado na propriedade privada, será examinada em seguida.
13.16 tombamento
A preocupação com a preservação do patrimônio histórico e cultural é evidenciada pelo texto constitucional em razão do número de referências feitas ao tombamento:
- Art. 5º, LXXiii, que confere legitimidade a qualquer cidadão para a propositura
de ação popular que vise ato lesivo ao patrimônio histórico e cultural;
- Art. 23, iii, que confere competência administrativa comum à união, aos estados,
ao distrito Federal e aos municípios para “proteger (...) outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, monumentos”;
- Art. 24, vii, que confere competência concorrente à união e aos estados e ao
distrito Federal para legislar sobre “proteção ao patrimônio histórico, cultural,
artístico, turístico e paisagístico”;
- Art. 30, IX, que define como competência dos Municípios o dever de “promover
a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a
ação fiscalizadora federal e estadual”;
- Art. 129, iii, que admite a propositura de ação civil pública para a preservação
do patrimônio artístico cultural;
- Art. 216, IV e V, que atribui às obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico culturais e aos conjuntos urbanos
e sítios de valor histórico e artístico a natureza de patrimônio cultural brasileiro;
50
51
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 538; e BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 800.
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 618.
CAPítuLo 13
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- Art. 216, §1º, que incumbe ao poder público o dever de promover e proteger o
patrimônio cultural “por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento
e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”;
- Art. 216, §5º, que institui o tombamento “de todos os documentos e os sítios
detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”.
o texto legal básico sobre tombamento é o decreto-Lei nº 25/37, que em seu art. 1º
dispõe que “constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer
por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional
valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.
o tombamento corresponde a uma das diversas opções de que dispõe o estado
para intervir na propriedade privada. ele afeta bens móveis ou imóveis tendo em vista
a realização de fim específico: a proteção do patrimônio histórico e cultural nacional.
o termo tombamento, conforme observa Hely Lopes meirelles, é utilizado no
sentido de registrar ou de inscrever nos “arquivos do reino, guardados na torre do
tombo”.52
Constitui sujeição da propriedade privada à função social na medida em que o uso
do bem fica condicionado à preservação de aspectos históricos ou culturais relevantes.
nos termos do decreto-Lei nº 25/37, somente os bens do patrimônio histórico
e cultural podem ser objeto de preservação por meio do tombamento. Podem ser igualmente
objeto de tombamento “os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que
importem conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela
natureza ou agenciados pela indústria humana”. Podem, portanto, se objeto de tombamento bens de qualquer natureza cuja preservação seja relevante em razão de seu
valor histórico, artístico ou cultural.
Hely Lopes Meirelles critica a prática inadequada de serem tombadas florestas,
parques ecológicos etc., que não obstante devam ser objeto de proteção, não se deve
buscar no tombamento a forma mais adequada à sua preservação.
em relação aos bens de origem estrangeira, o art. 3º do mencionado decreto-lei
expressamente os exclui da possibilidade de serem afetados por meio do tombamento.
Por meio de ato administrativo declaratório, a união, os estados, os municípios
e o distrito Federal indicam os bens móveis ou imóveis a serem preservados. A instituição do tombamento decorre de ato administrativo, mas esse ato não é praticado de
modo isolado. ele é o resultado de um processo que varia em função de se tratar de
tombamento voluntário ou compulsório.
na hipótese de se tratar de tombamento compulsório, é imprescindível que seja
assegurado ao proprietário direito ao contraditório e à ampla defesa. em qualquer caso,
consuma-se o tombamento com a inscrição do bem no Livro do tombo e a consequente
averbação no registro imobiliário.
A instituição do tombamento gera diferentes efeitos que afetam o uso e a alienação
do bem e que resultam na imposição de obrigações positivas e negativas ao proprietário
e aos vizinhos do imóvel tombado.
52
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 490.
653
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Curso de direito AdministrAtivo
654
Podemos apresentar como obrigações positivas53 impostas ao bem:
- Fazer obras de conservação, e se não dispuser de meios financeiros para a
realização dessas obras, deve comunicar ao órgão competente (que no plano
federal é o instituto do Patrimônio Histórico Artístico nacional – iPHAn);
- em caso de alienação, o proprietário deve assegurar à união, aos estados e
aos municípios, nessa ordem, direito de preferência;
- no caso de transferência de propriedade dos bens particulares tombados, deverá
o adquirente proceder ao seu registro, ainda que se trate de transmissão judicial
ou causa mortis;
- na hipótese de deslocação de tais bens, deverá o proprietário inscrevê-los no
registro do lugar para o qual tiverem sido deslocados;
- no caso de extravio ou furto de qualquer bem tombado, o proprietário deverá
dar conhecimento do fato ao órgão competente.
As obrigações negativas compreendem regras de não fazer e de suportar. são elas:
- o proprietário não pode destruir, demolir ou mutilar o bem, e somente poderá
restaurá-lo, repará-lo ou pintá-lo após a obtenção de autorização especial do
órgão competente;
- Caso o bem tombado seja móvel, somente pode ser retirado do País por curto
período e para fim de intercâmbio cultural, a critério do IPHAN;
- os vizinhos não podem, sem a prévia autorização do órgão competente, fazer
construções que impeçam ou reduzam a visibilidade do bem tombado, nem
colocar cartazes ou anúncios;
- Os proprietários do bem tombado são obrigados a suportar a fiscalização dos
órgãos competentes;
- o tombamento de bens públicos torna-os inalienáveis, ressalvada a possibilidade de transferência para outra entidade pública.
outro possível efeito decorrente da instituição do tombamento seria o direito do
proprietário de obter indenização. Celso Antônio Bandeira de mello entende que o só
fato de ter sido instituído o tombamento é suficiente para caracterizar dano ao bem, o
que tornaria o tombamento, como regra, indenizável.54 maria sylvia Zanella di Pietro
e José dos santos Carvalho Filho, ao contrário, sustentam que o tombamento, pelas
suas características e pelos efeitos que produz, relacionados à preservação do bem,
nada mais importa do que sujeitá-lo à sua função social.55 ou seja, em razão de o uso
da propriedade privada estar condicionado ao atendimento da sua função social, seria
inerente à propriedade privada a possibilidade de ela ser objeto de tombamento pelo
poder público, o que elidiria, como regra, o direito do proprietário de obter indenização.
A segunda corrente mencionada parece bem mais consentânea com as exigências
constitucionais pertinentes à função social da propriedade e à preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. somente em situações excepcionais, em que seja
demonstrado que o tombamento importou em efetivo prejuízo ao proprietário, deve
53
54
55
stJ: “tombamento - obrigação de realizar obras de conservação - Poder público - Proprietário. o proprietário
é obrigado a conservar e reparar o bem tombado. somente quando ele não dispuser de recursos para isso e que
este encargo passa a ser do poder publico. recurso provido” (resp nº 97.852-Pr, 1ª turma. rel. min. Garcia
vieira. Julg. 7.4.1998. DJ, 08 jun. 1998).
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 364.
di Pietro. Direito administrativo, p. 107; e CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 639.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
ser-lhe assegurado direito à indenização. Assim, se o tombamento cria novas obrigações
para o proprietário relativas, por exemplo, à conservação do bem, gerando despesas
antes inexistentes, ou se o tombamento importa em efetiva redução do valor econômico
do bem, deve-se admitir o direito excepcional do proprietário de obter indenização.
Aspecto controvertido acerca do tombamento diz respeito à definição da sua natureza jurídica. Celso Antônio Bandeira de mello o enquadra como servidão administrativa;
Hely Lopes meirelles como limitação administrativa;56 maria sylvia Zanella di Pietro
e José dos santos Carvalho Filho como instituto dotado de natureza jurídica própria.57
efetivamente, o tombamento apresenta aspectos que o aproximam da limitação
e da servidão administrativa, e outros que impedem o seu enquadramento como qualquer dos dois outros institutos.
o tombamento afeta bens individualizados, aspecto que muito o aproximaria das
servidões. destas se afasta, todavia, em razão da natureza das obrigações que impõe
ao proprietário do bem. A servidão administrativa gera para o proprietário o dever de
suportar a instituição de um ônus real sobre o imóvel, o que não se verifica com o tombamento. neste, ao contrário, são impostas obrigações de fazer e de não fazer, sendo
meramente acessórias as obrigações de suportar imputadas ao proprietário.
em razão da imposição de obrigações de não fazer, poder-se-ia argumentar que
se trata de limitação. A instituição da limitação, todavia, decorre diretamente da lei e
independe de ato administrativo para o seu aperfeiçoamento. diversa é a situação do
tombamento, cujo aperfeiçoamento sempre requer a adoção de atos administrativos de
execução, sendo totalmente descabido falar-se em tombamento decorrente diretamente
de lei. esta regula os trâmites a serem observados pelo poder público necessários ao
tombamento, mas a efetividade deste sempre requer a prática de ato administrativo.
É, de fato, impossível enquadrar o tombamento dentro de qualquer outro instituto
pertinente à intervenção do estado na propriedade privada. A conclusão a que se chega
é no sentido de que se trata de instituto dotado de natureza jurídica própria, distinto das
demais formas de intervenção na propriedade privada.
Apresenta o tombamento perfil e regime jurídico próprios. Os efeitos decorrentes
da sua instituição e as obrigações que impõe, não obstante em alguns aspectos possam
se assemelhar aos da limitação ou aos da servidão, configuram a existência de categoria
especial de intervenção do estado na propriedade.
Aspecto igualmente controvertido em relação ao tombamento diz respeito à sua
instituição: trata-se de atividade administrativa discricionária ou vinculada?
O primeiro passo na busca da definição da natureza do ato que institui o tombamento deve consistir no exame da expressão constitucional patrimônio artístico e
cultural, que identifica o propósito do tombamento. Somente os bens que tenham sido
objeto de tombamento podem ser considerados integrantes desse patrimônio artístico
e cultural nacional?
o tratamento conferido pela Constituição Federal (art. 216, §1º) ao tema, que
impõe ao poder público o dever de promover e proteger o patrimônio histórico e cultural “por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e
56
57
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 494.
di Pietro. Direito administrativo, p. 141; e CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 634.
655
656
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
de outras formas de acautelamento e preservação”, permite concluir que o tombamento
constitui importante forma de preservação desse patrimônio, mas ele não é requisito para
que determinados bens integrem esse patrimônio histórico e cultural. nesse sentido, o
disposto no art. 1º, §1º do decreto-Lei nº 25/37, que dispõe que “os bens a que se refere
o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros
do tombo, de que trata o art. 4º desta lei”, deve ser considerado revogado tacitamente
pela Constituição Federal de 1988.
Fixada essa premissa, e identificado o tombamento como o meio adequado para a
preservação de determinados bens de relevante valor histórico ou cultural, a conclusão
deve ser no sentido de que a instituição do tombamento constitui atividade administrativa vinculada. daí resulta possível admitir, por exemplo, a propositura de ação civil
pública cujo objetivo seja o de obrigar o poder público a tombar determinados bens.
são admitidas diferentes modalidades de tombamento em razão da iniciativa para
sua instituição e da eficácia do ato de instituição.
em razão da iniciativa, o tombamento pode ser de ofício, voluntário ou compulsório. Quando o tombamento recai sobre bens públicos, denomina-se de ofício. nos
termos do art. 5º do decreto-Lei nº 25/37, institui-se o tombamento de ofício mediante
simples notificação à “entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a coisa
tombada, a fim de produzir os necessários efeitos”.
Proceder-se-á ao tombamento voluntário, nos termos do art. 7º do mencionado
decreto-Lei, “sempre que o proprietário o pedir e a coisa se revestir dos requisitos
necessários para constituir parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional,
a juízo do Conselho Consultivo do serviço do Patrimônio Histórico e Artístico nacional,
ou sempre que o mesmo proprietário anuir, por escrito, à notificação, que se lhe fizer,
para a inscrição da coisa em qualquer dos Livros do tombo”.
Caso o proprietário se recuse a anuir à inscrição do bem, proceder-se-á, nos
termos do art. 8º do decreto-lei, ao tombamento compulsório que observará o seguinte
procedimento:
1. o serviço do Patrimônio Histórico e Artístico nacional, por seu órgão competente, notificará o proprietário para anuir ao tombamento, dentro do prazo
de quinze dias, a contar do recebimento da notificação, ou para, si o quiser
impugnar, oferecer dentro do mesmo prazo as razões de sua impugnação.
2. no caso de não haver impugnação dentro do prazo assinado, que é fatal, o
diretor do serviço do Patrimônio Histórico e Artístico nacional mandará por
simples despacho que se proceda à inscrição da coisa no competente Livro do
tombo.
3. se a impugnação for oferecida dentro do prazo assinado, far-se-á vista da
mesma, dentro de outros quinze dias fatais, ao órgão de que houver emanado
a iniciativa do tombamento, a fim de sustentá-la. Em seguida, independentemente de custas, será o processo remetido ao Conselho Consultivo do serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico nacional, que proferirá decisão a respeito,
dentro do prazo de sessenta dias, a contar do seu recebimento. dessa decisão
não caberá recurso.
CAPítuLo 13
desAProPriAção e outrAs FormAs de intervenção do estAdo nA ProPriedAde PrivAdA
Quanto à eficácia do ato de instituição, o tombamento será provisório ou definitivo,58
conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do tombo, conforme dispõe o art. 10 do
decreto-Lei nº 25/37.
o parágrafo único desse artigo estabelece que, salvo o disposto no art. 13 (transcrição no registro de imóveis), o tombamento provisório se equipara ao definitivo. A esse
respeito, o stJ tem entendido que o tombamento provisório, cujo caráter é preventivo,
assemelha-se ao definitivo quanto às restrições incidentes sobre o bem tutelado. Desse
modo, mesmo antes do ato formal de inscrição no livro próprio, que caracteriza o tombamento definitivo, o descumprimento das restrições enseja o dever de restabelecer
o estado anterior da coisa, ou, caso não seja possível, excepcionalmente converter tal
obrigação em perdas e danos.59
Caso o poder público reconheça, de ofício ou mediante solicitação do proprietário do bem, que os motivos que justificaram a instituição do tombamento não mais
existem, deverá ser promovido o seu desfazimento. A decisão acerca do desfazimento
do tombamento é vinculada em dois sentidos. em primeiro lugar, sendo reconhecido
que o valor histórico ou artístico deixou de existir, o poder público deve desconstituir
o tombamento; e, em segundo lugar, no sentido de que se for reconhecido que o fundamento para o tombamento ainda persiste, não é possível ao poder público decidir
discricionariamente promover o “destombamento”.
58
59
stJ: “recurso ordinário em mandado de segurança. serra do Guararú. tombamento. discussão quanto à precedência do processo de tombamento provisório ao definitivo. Incoerência. 1. O instituto do tombamento provisório não é fase procedimental precedente do tombamento definitivo. Caracteriza-se como medida assecuratória
da eficácia que este poderá, ao final, produzir. 2. A caducidade do tombamento provisório, por excesso de prazo,
não prejudica o definitivo, Inteligência dos arts. 8º, 9º e 10º, do Decreto Lei 25/37. 3. Recurso ordinário desprovido”
(rms nº 8.252-sP, 2ª turma. rel. min. Laurita vaz. Julg. 22.10.2002. DJ, 24 fev. 2003).
stJ. resp nº 753.534-mt, 2ª turma. rel. min. Castro meira. Julg. 25.10.2011. DJe, 10 nov. 2011.
657
PArte iv
estruturA dA AdministrAção PúBLiCA
nos capítulos precedentes, estudamos diferentes aspectos relacionados à Administração Pública. examinamos o regime jurídico administrativo, a organização da
Administração Pública, as formas jurídicas utilizadas pelo estado para desenvolver
suas atividades administrativas e, finalmente, as atividades ou funções administrativas
do estado.
nos próximos capítulos, examinaremos o regime jurídico relativo à estrutura da
Administração Pública.
o enfoque utilizado no presente trabalho confere ênfase especial às atividades
ou funções do estado. este é considerado instrumento necessário ao atendimento das
necessidades da população, cabendo ao ordenamento jurídico definir as atividades
estatais. Utilizamos ao longo do presente trabalho a técnica residual para identificar,
dentro do amplo espectro de atividades estatais, aquelas de natureza administrativa. ou
seja, dentro do rol das atividades estatais, parece-nos ser juridicamente mais adequado
identificar e distinguir as atividades legislativas e as atividades judiciais. A partir do
modelo residual, toda e qualquer função pública a ser desenvolvida pelo estado que
não seja judicial ou legislativa deve ser reputada executiva, ou administrativa.
Para a condução das tarefas administrativas do Estado, é necessário definir o
regime jurídico administrativo que disciplinará o exercício dessas atribuições, a organização das estruturas incumbidas de referidas atividades, as formas instrumentais
660
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
por meio das quais as atividades serão desenvolvidas, e, finalmente, as estruturas da
Administração Pública.
nos capítulos pertinentes à organização da Administração Pública, em que
examinamos o direito da organização administrativa, as estruturas estatais foram
examinadas sob o aspecto formal da organização.
nos capítulos seguintes, as estruturas da Administração Pública serão examinadas a partir de uma perspectiva distinta, sob o enfoque dos pressupostos fáticos ao
exercício das atividades, e não sob o aspecto organizacional.
A partir do ponto de vista fático, o desenvolvimento de qualquer atividade
ou função — seja ela pública ou privada — pressupõe a existência de pessoas físicas
incumbidas do seu desempenho e de bens móveis e imóveis vinculados ao exercício
dessas funções.
os agentes públicos e os bens públicos constituem as bases de que se vale o estado
para formar suas estruturas administrativas e desenvolver suas funções. são esses dois
temas — bens públicos e agentes públicos — o objeto de estudo nos capítulos a seguir.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
14.1 domínio público e domínio eminente
A definição dos bens compreendidos no domínio público pode observar dois
diferentes aspectos.
O primeiro critério considerado para a definição do domínio público toma como
parâmetro a titularidade dos bens. essa perspectiva atribui natureza pública aos bens
pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público. Outra opção para a definição do
domínio público toma como parâmetro a finalidade a que se destinam os bens. Se sua
utilização estiver vinculada ao desempenho de qualquer atividade estatal, ou se forem
destinados ao uso diretamente pela população, compreenderiam esses bens o domínio
público.
Hely Lopes meirelles adota a primeira perspectiva. Para o ilustre autor, bens
públicos são “todas as coisas, corpóreas ou incorpóreas, imóveis, móveis ou semoventes, créditos, direitos e ações, que pertençam, a qualquer título, às entidades estatais,
autárquicas, fundacionais e empresas governamentais”.1
Celso Antônio Bandeira de mello exclui do âmbito do domínio público os bens
pertencentes às entidades administrativas dotadas de personalidade de direito Privado.
reputa bens públicos os que “pertencem às pessoas jurídicas de direito Público, isto
é, união, estados, distrito Federal, municípios, respectivas autarquias e fundações de
direito Público, bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam
afetados à prestação de um serviço público”.2 vê-se que o autor adota o critério subjetivo, ao reputar públicos os bens pertencentes às pessoas de direito Público, mas não
restringe o âmbito do domínio público à titularidade do bem. Admite o ilustre autor
como igualmente públicos os bens “afetados à prestação de um serviço público”. nesse
sentido, bens pertencentes a particulares, de que seriam exemplos os bens das empresas concessionárias de serviços públicos, seriam igualmente públicos de acordo com a
concepção adotada pelo ilustre professor Celso Antônio.
1
2
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 493.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 803.
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
662
José dos santos Carvalho Filho, à semelhança de Cretella Júnior,3 confere sentido
mais amplo ao domínio público. de acordo com Carvalho Filho, o domínio público
compreende “o conjunto de bens móveis e imóveis destinados ao uso direto do Poder
Público ou à utilização direta ou indireta da coletividade, regulamentados pela Administração e submetidos a regime jurídico de direito público”.4
Ao definir domínio público, Maria Sylvia Zanella Di Pietro chama a atenção para
a necessidade de ser observada a regra contida no parágrafo único do art. 99 do Código
Civil de 2002, que considera “dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de
direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado”.5 destaca a ilustre
autora a existência do domínio privado do estado, em oposição ao domínio público.
A discussão suscitada pela autora é relevante para a definição do regime jurídico dos
bens públicos, conforme será examinado adiante.
o grande número de teorias elaboradas pela doutrina pátria pode ser explicado
em razão das falhas existentes em nosso sistema jurídico acerca do tema. A primeira
crítica que pode ser feita se refere à forma encontrada pelo legislador para disciplinar
a matéria, inserindo capítulo sobre bens públicos dentro do Código Civil.
A discussão, todavia, não é trivial. sua importância está relacionada à construção
do regime jurídico administrativo relativo ao domínio público, e a maior dúvida reside
na definição do âmbito de aplicação desse regime.
discordamos, nesse ponto, com a devida vênia, de alguns aspectos relacionados
ao conceito de domínio público apresentado pelo renomado autor Carvalho Filho.
defende o autor que quaisquer bens utilizáveis pela coletividade seriam enquadrados
no domínio público, inclusive “quando se caracterizassem pela inapropriabilidade
natural (como o ar, por exemplo)”. ora, a “inapropriabilidade” de determinados bens
não deve resultar na sua inclusão no domínio público, mas na sua exclusão do alcance
do conceito de direito de propriedade, seja ela pública ou privada.
A ideia de domínio está diretamente relacionada à de propriedade, e esta, à de
apropriação. o conceito de domínio público diz respeito àqueles bens pertencentes ao
estado ou afetados a uma função pública — conforme seja adotada a perspectiva subjetiva ou da afetação do bem para a definição do âmbito desse domínio. Não obstante a
existência dessa dupla possibilidade de enquadramento, somente faz sentido falar em
domínio público para alcançar os bens passíveis de apropriação por alguém, seja este
pessoa pública ou pessoa privada, que utilize o bem em uma função pública.
os bens inapropriáveis, de que é exemplo o ar atmosférico, sujeitam-se ao domínio
eminente exercido pelo estado. esse domínio é de natureza política, está relacionado ao
conceito de soberania e alcança não apenas bens, mas igualmente as pessoas. É a partir
do domínio eminente que o estado pode regular situações relativas ao ar atmosférico ou
às águas do mar, definindo, inclusive, se entender necessário, o regime jurídico a eles
aplicável. A regulamentação do uso desses bens não os converte, todavia, em direito
de propriedade, seja ela pública ou privada.
o domínio eminente confere ao estado a potestade de disciplinar todos os temas,
áreas, atividades, bens, direitos, obrigações etc. Enfim, tudo o que possa ser objeto
3
4
5
CreteLLA Júnior. Dicionário de direito administrativo.
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 871.
di Pietro. Direito administrativo, p. 542.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
de regulação pelo direito está sujeito ao domínio eminente do estado. esse domínio
eminente não se manifesta, como outrora,6 por meio do direito de propriedade pública,
mas como o poder de submeter ao direito todos os temas suscetíveis de apropriação
pelo ordenamento jurídico.
em razão da distinção entre domínio eminente e domínio patrimonial, não se
pode afirmar que o território nacional seja propriedade da União, ou propriedade da
República Federativa do Brasil. É possível afirmar, tão somente, que o território nacional constitui o âmbito para o exercício do domínio eminente do estado, o que evidente
não importa em converter o território em bem submetido ao direito de propriedade.
o conceito extensivo de domínio público apresentado por Celso Antônio Bandeira
de mello inclui os bens pertencentes a particulares afetados ao serviço público. máxima
vênia, perfilhamos tese contrária. Em vez de ampliar o conceito de domínio público,
parece-nos mais adequado restringir esse conceito. A necessidade de restrição do conceito decorre da fixação do regime jurídico a ele aplicável. De nada serve admitir que
os bens pertencentes a particulares e utilizados para a prestação de serviços públicos
são bens públicos, se o regime jurídico a eles aplicável for o privado. A essa conclusão,
aliás, chega o próprio Bandeira de Mello quando afirma que “a noção de bem público,
tal como qualquer outra noção em direito, só interessa se for correlata a um dado regime
jurídico. Assim, todos os bens que estiverem sujeitos ao mesmo regime jurídico deverão
ser havidos como bens públicos”.
Discordamos, todavia, da afirmação do ilustre autor de que os “bens particulares
quando afetados a uma atividade pública (enquanto o estiverem) ficam submetidos ao
mesmo regime jurídico dos bens de propriedade pública”.
os bens utilizados pelas pessoas de direito Privado para a prestação de serviços
públicos são bens privados sujeitos ao regime jurídico privado. evidentemente que
sua afetação ao desempenho de atividades públicas importa na aplicação de preceitos
públicos que derrogam (ou revogam parcialmente) o direito Privado, e não, diferentemente do que afirma a lição do ilustre autor, na revogação total (ou ab-rogação) do
regime privado que cederia lugar ao regime público. exemplo: não se pode admitir a
penhora judicial de bens pertencentes às pessoas de direito Privado caso essa penhora
resulte em solução de continuidade na prestação de serviços públicos essenciais. se essa
pessoa de direito Privado for uma empresa privada concessionária de serviço público,
ela pode, todavia, alienar livremente o bem, conforme seu critério de conveniência,
sem que a alienação tenha que observar quaisquer exigências previstas na legislação
pertinente aos bens públicos. A aplicação excepcional de preceitos públicos — relativos
à impenhorabilidade — não afasta total, mas apenas parcialmente, o regime privado
dos bens pertencentes às pessoas de direito Privado afetados à prestação de serviços
públicos, regime privado que continua a disciplinar o direito de propriedade relativamente a todos os seus outros aspectos.
em razão dessa constatação, são considerados públicos tão somente os bens
pertencentes às pessoas jurídicas dotadas de personalidade jurídica de direito Público.
6
marçal Justen Filho, ao tratar do tema se manifesta nos seguintes termos: “rejeita-se a clássica concepção do ‘domínio eminente’, que vigorou no passado. Essa teoria afirmava que o Estado deteria uma propriedade latente sobre
todos os bens existentes em seu território. Portanto, os particulares seriam titulares de um domínio limitado, que
poderia ser extinto a qualquer momento, se assim o desejasse o estado” (Curso de direito administrativo, p. 703).
663
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
664
esta, aliás, é a solução adotada pelo art. 98 do Código Civil de 2002, que dispõe nos
seguintes termos: “São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas
de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que
pertencerem” (grifos nossos).
14.2 regime jurídico dos bens públicos
Importa, nesse ponto, observar que não é possível definir o domínio público em
razão do regime jurídico público. esse método cria confusão entre causa e efeito. no
caso, a aplicação do regime público deve ser a consequência de se ter reconhecido o bem
como público, e não o contrário. ou seja, os bens não são públicos em razão de o regime a
eles aplicável ser o de Direito Público; ao contrário, o regime jurídico público é aplicável aos bens
previamente reconhecidos como públicos. e são públicos os bens pertencentes à união, aos
estados, aos municípios, ao distrito Federal, bem como às suas respectivas autarquias
e fundações de direito Público.
O direito de propriedade exercido pelo Estado sobre os seus bens é definido
pelo direito Público e pelas normas relativas ao direito de propriedade previstas na
legislação civil.
A relação mantida pelo estado com o domínio público não se submete integralmente às normas da propriedade privada. As distinções verificadas no uso dos bens
públicos, que no caso dos de uso comum são destinados à população em geral e não
à pessoa de direito Público proprietária, e as restrições impostas ao poder público de
dispor dos bens públicos não negam a existência de uma relação de direito real, sujeita
ao regime de propriedade. Essas particularidades, todavia, justificam a criação de uma
nova teoria de propriedade assentada nos preceitos do direito Público. Cria-se, assim,
a teoria da propriedade pública dos bens pertencentes ao estado.
14.3 Bens pertencentes às empresas estatais
o raciocínio desenvolvido em relação aos bens particulares utilizados para a
prestação de serviços públicos é aplicável àqueles pertencentes às entidades de direito
Privado que compõem a Administração Pública.
Ao interpretar o art. 99, parágrafo único, do Código Civil, Celso Antônio Bandeira
de Mello e Marçal Justen Filho afirmam que a referência feita pelo Código às pessoas
jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado deve ser entendida
como sendo às pessoas jurídicas de direito Privado pertencentes à Administração
Pública.7 máxima vênia, não nos parece ser esta a interpretação mais adequada. em
primeiro lugar porque não é adequado interpretar a expressão pessoas jurídicas de direito
público por pessoas jurídicas de direito Privado. em segundo lugar, discordamos da
solução apontada pelos renomados autores, que levaria à conclusão de que todos os bens
pertencentes às entidades administrativas de direito Privado, vale dizer, as empresas
públicas e as sociedades de economia, são bens públicos.
7
Vide BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 804; e Justen FiLHo. Curso de direito
administrativo, p. 720.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
ocorre que a Constituição Federal determina a aplicação das regras do direito
Privado às referidas empresas estatais exploradoras de atividades empresariais (art. 173,
§1º). A interpretação do mencionado art. 99, parágrafo único, do Código Civil deve
buscar solução que o harmonize com o texto constitucional, e nos parece ser contrário
ao espírito da Constituição que os bens dessas entidades de direito Privado sejam,
por força de lei e sem qualquer previsão constitucional, elevados à estatura de bens
públicos dominicais.
A má redação do dispositivo do Código dá margem a inúmeras interpretações.
de qualquer modo, ainda que o Código tivesse tido a intenção de conferir aos bens
das empresas estatais, especialmente em relação àquelas exploradoras de atividades
empresariais, estatura pública, essa intenção seria inconstitucional, porque somente a
Constituição Federal pode conferir às referidas entidades privilégios não extensíveis
às demais empresas privadas.
os bens pertencentes às empresas públicas e sociedades de economia mista são bens
privados.
em razão dessa premissa, de que os bens pertencentes a empresas estatais são
privados, o stF, em outubro de 2002, chegou à conclusão de que o tribunal de Contas
da União não possui competência para fiscalizar as empresas estatais.8 em 2005, por
unanimidade, o eg. stF, por ocasião do julgamento dos ms nº 25.092-dF e nº 25.181-dF,
reconsiderou a decisão anterior e concluiu que, não obstante os bens pertencentes às
referidas empresas estatais sejam privados, estão os seus dirigentes sujeitos ao dever de
prestar contas ao tCu em razão de essas entidades integrarem a Administração Pública
e de que prejuízos por eles causados podem resultar em prejuízo ao erário, em razão
do que dispõem os artigos 71, ii e iv, e 173, §1º, i, da Constituição Federal.9
A conclusão de que os bens das empresas estatais são privados não impede,
todavia, que algumas regras ou princípios do direito Público lhes sejam aplicáveis. A
eventual afetação dos bens das empresas estatais à prestação de serviços públicos, por
exemplo, resulta na impenhorabilidade desses bens.
reportamo-nos aqui ao julgamento do re nº 220.906, proferido pelo eg. supremo
tribunal Federal.10 Ao firmar o entendimento de que os bens pertencentes à Empresa
Brasileira de Correios e telégrafos (eCt) são impenhoráveis, não se serviu o stF da
tese da natureza pública dos bens pertencentes àquela empresa pública. Ao contrário,
se públicos fossem, não haveria qualquer dúvida acerca da constitucionalidade do
disposto no art. 12 do decreto-Lei nº 509/69, que determina a regra da impenhorabilidade daqueles bens. Concluiu o stF que, não obstante se trate de bens privados, eles
são impenhoráveis em razão de estarem vinculados à prestação de serviços essenciais.
Assim, no caso, os bens da eCt são privados, sujeitos a regime jurídico de direito Privado, com a derrogação decorrente de aplicação da norma do direito Público relativa
ao princípio constitucional da continuidade do serviço público e que lhes confere o
caráter da impenhorabilidade.
8
9
10
stF. ms nº 23.627-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 7.3.2002. DJ, 16 jun. 2006.
stF: ms nº 25.092-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 10.11.2005. DJ, 17 mar. 2006; ms nº 25.181-dF, Pleno.
rel. min. marco Aurélio. Julg. 10.11.2005. DJ, 16 jun. 2006.
stF. re nº 220.906-dF, Pleno. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 16.11.2000. DJ, 14 nov. 2002.
665
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
666
no caso da eCt, em razão da decisão do stF mencionada, todos os seus bens são
impenhoráveis. em relação a outras empresas estatais que prestam serviços públicos,
devem ser reputados impenhoráveis tão somente aqueles diretamente vinculados à
prestação de serviços públicos essenciais.11 Ainda que se trate de bens pertencentes à
empresa estatal prestadora de serviço público, os bens não afetados ao serviço podem
ser penhorados, alienados, adquiridos por usucapião etc., desde que isso não ponha
em risco o desempenho de atividade de interesse da coletividade.12 essa hipótese se
verificou no Estado de São Paulo quando a justiça paulista determinou “o bloqueio
de vultosa quantia nas contas bancárias da executada, Companhia do metropolitano de
são Paulo – metrô”. o stF, ao apreciar o AC nº 669-sP tornou sem efeito a penhora
incidente sobre a receita de bilheterias “em homenagem ao princípio da continuidade do
serviço público, sobre o qual, a princípio, não pode prevalecer o interesse creditício de
terceiros. Caráter que se reforça, no caso, ante o caráter essencial do transporte coletivo,
assim considerado pelo inciso v do art. 30 da Lei maior”.13
A discussão acerca do enquadramento dos bens pertencentes a empresas estatais
como públicos afeta, além da possibilidade de penhora, outros aspectos da discussão,
como a possibilidade de eles serem adquiridos por terceiros por meio de usucapião.
o superior tribunal de Justiça examinou essa questão por ocasião do julgamento
do resp nº 695.928-dF. Ao enfrentar a discussão acerca da possibilidade de bens pertencentes a empresa pública do distrito Federal (terrACAP) serem objeto de usucapião,
o stJ viu-se obrigado a defender a tese de que referida estatal seria responsável tão
somente pela administração dos mencionados imóveis, cuja titularidade pertenceria,
de fato, ao próprio distrito Federal. do contrário, se pertencessem à própria empresa
pública, que tem personalidade de direito Privado, os imóveis seriam bens privados e,
como tais, poderiam sujeitar-se à aquisição por meio de usucapião.14
11
12
13
14
nesse sentido, stJ: “Processo civil. execução de título extrajudicial. Penhora em bens de sociedade de economia
mista que presta serviço público. A sociedade de economia mista tem personalidade jurídica de direito privado
e está sujeita, quanto à cobrança de seus débitos, ao regime comum das sociedades em geral, nada importando o
fato de que preste serviço público; só não lhe podem ser penhorados bens que estejam diretamente comprometidos com a prestação do serviço público. recurso especial conhecido e provido” (resp nº 176.078-sP, 2ª turma.
rel. min. Ari Pargendler. Julg. 15.12.1998. DJ, 08 mar. 1999).
Por isso mesmo não se aplica o regime de precatórios às sociedades de economia mista, consoante decisão do stF
no RE nº 599.628-RG/DF (Repercussão Geral. Rel. Min. Ayres Britto. Julg. 11.3.2010. DJe, 26 mar. 2010). A Corte
suprema manteve acórdão que reputara inaplicável dito regime sob os argumentos de que tais entidades possuem
personalidade jurídica de direito privado e de que não se confundem o regime especial de precatório com a impossibilidade de penhora de bens que possa comprometer a prestação do serviço público.
AC nº 669-MC/SP, Decisão Monocrática. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 10.3.2005. DJ, 29 mar. 2005.
Na ementa do acórdão que julgou o mencionado recurso especial, é afirmado: “Civil – TERRACAP – Reivindicação de imóvel – reconhecimento da propriedade do imóvel – ocupação indevida de área pública – usucapião – impossibilidade – divergência jurisprudencial – recurso não conhecido. 1 - Ao que se extrai do decisum
impugnado, a conclusão de que a terrACAP é uma empresa pública que administra terras públicas do distrito
Federal adveio de previsão legal (Lei nº 5.861/72). Com efeito, a Lei nº 5.861/72, em seu artigo 2º, determinou
a criação da Companhia imobiliária de Brasília – terrACAP para suceder a novACAP, que tinha por objeto
a realização de obras e serviços de urbanização e construção civil de interesse do dF. do capital social original
da nova empresa pública, conforme dispõe o §1º do citado dispositivo, participam o Distrito Federal com 51%
e a União com 49%. Assim, a TERRACAP substituiu a NOVACAP assumindo seus direitos e obrigações na
execução das atividades imobiliárias de interesse do distrito Federal. sob esse prisma, pois, muito embora a
terrACAP possua natureza privada, já que se trata de empresa pública, gere bens públicos pertencentes ao
dF, e, como tais, não são passíveis de usucapião” (stJ. resp nº 695.928-dF, 4ª turma. rel. min. Jorge scartezzini.
Julg. 3.3.2005. DJ, 21 mar. 2005).
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
A existência de bens públicos no patrimônio das empresas estatais é tema antigo
e fonte de eternas controvérsias. A maior dificuldade para definir a natureza desses
bens está relacionada ao fato de que a explicação para a existência de dinheiros, valores
ou quaisquer outros bens públicos no patrimônio de referidas entidades é dada pela
contabilidade, e não pelo direito.
Ao ser criada uma empresa pública, por exemplo, a entidade política criadora
necessita deslocar parcela do seu patrimônio (público) para compor o capital social da
nova entidade. o capital social da empresa pública é, portanto, todo ele público, porque
pertencente a uma entidade política (união, estado, distrito Federal ou município). esse
capital social não se confunde, todavia, nem alcança todo o patrimônio nem os bens da
própria empresa pública. os bens ou valores públicos utilizados para formar o capital
social das empresas estatais não podem ser confundidos com aqueles que integram o
ativo dessas pessoas jurídicas.
Confundir o capital social das empresas estatais com os bens que compõem o seu
ativo importa em negar-lhes a existência de patrimônio próprio e de personalidade jurídica
distinta das entidades políticas que as criaram. em outras palavras, essa confusão patrimonial importaria em negar o consagrado princípio da autonomia da pessoa jurídica.
Em resumo, é correto afirmar que o capital social das empresas estatais é público (no
caso da empresa pública, ele é exclusivamente público; no caso da sociedade de economia
mista, majoritariamente público). todavia, os bens que compõem o ativo das empresas
estatais — vale dizer, os seus bens móveis e imóveis — são privados e, portanto, disciplinados pelo regime jurídico privado, com eventuais derrogações pelo direito Público.
14.4 destinação dos bens públicos
o Código Civil de 2002 trata da destinação dos bens públicos em seu art. 99. são
apresentadas três espécies de bem público em razão da utilização a eles conferida. são eles:
- Bens de uso comum;
- Bens de uso especial; e
- Bens dominicais.
examinaremos, em seguida, cada uma dessas espécies.
14.4.1 Bens de uso comum
os bens de uso comum são aqueles destinados à utilização por parte de toda a
população. Recebem essa qualificação em razão da sua própria natureza, em razão de
se destinarem à coletividade em geral, de forma indistinta.
são exemplos de bens de uso comum, conforme observa o próprio art. 99, i, do
Código Civil, os rios, os mares, as estradas, as ruas e as praças.
não obstante esses bens estejam vocacionados, em razão, conforme observamos,
da sua própria natureza, a serem utilizados pela população em geral, o seu uso pode
ser objeto de algumas limitações. o direito de reunião “em locais abertos ao público”,
conforme menciona o art. 5º, Xvi, da Constituição Federal, é reconhecido como direito
fundamental, mas pode sofrer restrições por parte do poder público se, por exemplo,
frustar reunião anteriormente convocada para o mesmo local, se causar tumultos despropositados à população em geral ou se se transformar em manifestação violenta.
667
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
668
A possibilidade de serem instituídas concessões em rodovias públicas e de ser
exigido o pagamento da correspondente tarifa do usuário, por exemplo, não transforma
esses bens públicos de uso comum em bens de uso especial. A imposição de restrição
ou, no caso, de condição ao uso do bem não o torna de uso especial. se o critério para
enquadrar as vias públicas como bens de uso comum é a sua destinação, e se esta não
é alterada em razão da instalação dos postos de pedágio, não nos parece razoável
transformá-los em bens de uso especial.15
A principal particularidade dos bens públicos de uso comum é o fato de serem
destinados ao uso da população, ainda que esse uso possa estar sujeito a eventuais
condições ou restrições previstas em lei ou em regulamento.
14.4.2 Bens de uso especial
Os bens de uso especial, conforme define o art. 99, II, do Código Civil, são aqueles
destinados “a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial
ou municipal, inclusive os de suas autarquias”.
distinguem-se dos bens de uso comum porque se destinam, primordialmente, ao
uso pelas entidades e órgãos da Administração Pública, e não pela população em geral.
Os edifícios e terrenos públicos cuja finalidade consiste em permitir o funcionamento
das entidades e órgãos públicos são de uso especial.
evidente que toda estrutura do estado está vocacionada ao atendimento dos
interesses da população. no entanto, se o bem é utilizado diretamente por uma unidade
administrativa qualquer, e apenas indiretamente para o atendimento da população,
trata-se de bem de uso especial. nesse sentido, não apenas bens imóveis, mas igualmente
bens móveis podem ser considerados de uso especial. vê-se, por exemplo, o caso de
ambulância pertencente a hospital público. o seu uso objetiva, evidentemente, atender
às necessidades da população. Aliás, é esse o objetivo de toda a estrutura do estado. não
pode cidadão comum, todavia, pura e simplesmente utilizar o bem, tarefa conferida
aos servidores do hospital público.
A ideia central relativa aos bens de uso especial reside na particularidade de que
eles devem constituir a estrutura básica de que se vale o estado para prestar serviços
ou desenvolver quaisquer atividades públicas.
Podemos apresentar como exemplos de bens de uso especial, além dos móveis e
imóveis utilizados diretamente pelas repartições públicas, incluídos aqueles pertencentes
aos órgãos judiciais e legislativos, os mercados públicos, os teatros públicos, os cemitérios públicos. tem sido comum a menção de que as terras reservadas aos indígenas
também são de uso especial.
não obstante a divisão dos bens públicos quanto à destinação seja feita pelo
Código Civil, o regime jurídico aplicável a essas duas categorias é absolutamente
idêntico, conforme será examinado adiante. nesse sentido, resulta que não há grande
interesse em sua distinção.
15
A tese aqui defendida é igualmente adotada por Celso Antônio Bandeira de mello (Curso de direito administrativo,
8. ed., p. 817). Afirma o autor que “ao dizer-se que o uso é livre, está-se caracterizando que ele independente de
algum ato administrativo reportado a alguma individualização especificadora de tal ou qual utente. Assim, verbi
gratia, o pagamento de pedágio, a que se vem de aludir, é condição geral imponível a quaisquer condutores de
veículos — e não decisão individualmente tomada à vista deste ou daquele usuário”. em sentido contrário, José
dos santos Carvalho Filho defende que as vias públicas pedagiadas se tornam bens de uso especial.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
14.4.3 Bens dominicais
os bens dominicais constituem a terceira categoria de bens públicos.16
As referências a eles feitas pelo Código Civil são absurdamente imprecisas:
- Art. 99, iii – são dominicais os bens “que constituem o patrimônio das pessoas
jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada
uma dessas entidades”;
- Art. 99, parágrafo único – “não dispondo a lei em contrário, consideram-se
dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que
se tenha dado estrutura de direito privado”.
A primeira referência, contida no inciso iii do art. 99, não diz absolutamente
nada, ou ao menos não diz nada que permita identificar quais são os bens dominicais.
A segunda afirmação apresentada pelo parágrafo único do art. 99 citado reputa
dominicais os bens pertencentes às pessoas de direito público a que se tenha dado estrutura
de direito privado.
A expressão “a que se tenha dado estrutura de direito privado” tem sido objeto
de inúmeras controvérsias. Alguns autores a interpretam no sentido de que estaria relacionada às pessoas de direito público. Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que “a redação
do dispositivo permite concluir que, nesse caso, a destinação do bem é irrelevante, pois,
qualquer que seja ela, o bem se inclui como dominical só pelo fato de pertencer a pessoa
jurídica de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado, a menos
que lei disponha em sentido contrário”.17
essa interpretação, máxima vênia, não nos parece a mais acertada, porque simplesmente não existe pessoa de direito Público com estrutura de direito Privado em
nosso regime administrativo constitucional. tal forma de pensar não alcança as empresas
estatais que são pessoas de direito Privado e cujos bens, conforme já examinamos, são
privados. Poder-se-ia indagar se alcançaria as fundações públicas. Como examinado
no Capítulo 4, referidas entidades são pessoas de direito Público ou de direito Privado
conforme a lei instituidora lhes tenha conferido natureza autárquica ou não.
Admitir que pessoa de direito Público possa assumir estrutura de direito Privado
constitui contradição com a própria natureza da personalidade da entidade. ora, quando
se afirma que determinada pessoa possui personalidade pública ou privada, busca-se
definir o regime jurídico a ela aplicável. Não cabe, portanto, indagar da possibilidade
de existirem pessoas de direito Público com estrutura de direito Privado.
Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “o parágrafo único do citado artigo
pretendeu dizer que serão considerados dominicais os bens das pessoas da Administração indireta que tenham estrutura de direito privado”.18 Com a devida vênia,
discordamos do ilustre autor.
os bens pertencentes às pessoas de direito Privado que integram a Administração
Pública são bens privados, sujeitos ao regime jurídico privado com derrogações parciais
16
17
18
de acordo com Hely Lopes meirelles e Celso Antônio Bandeira de mello, as expressões bens dominicais e bens
dominiais são sinônimas. José dos santos Carvalho Filho (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 878) menciona
a obra de Cretella Junior (Licitações e contratos do Estado, p. 391) no sentido de que a expressão bens dominiais é
mais ampla e alcança todo o domínio do estado, diferente dos bens dominicais, que correspondem a apenas uma
categoria residual de bens públicos. utilizamos as duas expressões como sinônimas.
di Pietro. Direito administrativo, p. 541.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 804.
669
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
pelo regime público, e não bens públicos dominicais, tese defendida pelo autor. somente
na eventualidade de estarem afetados à prestação de serviços públicos esses bens se
sujeitam às regras específicas do regime público. Nesse sentido, os bens das empresas
estatais podem, como regra, ser objeto de penhora judicial, o que não é admitido para
os bens públicos dominicais.
A expressão “estrutura de direito privado”, contida no mencionado art. 99,
parágrafo único, somente faz algum sentido se interpretada em relação aos “bens”
pertencentes às pessoas de direito Público, e não em relação às próprias “pessoas de
Direito Público”. Assim, se em razão da finalidade dada aos bens pertencentes às pessoas de Direito Público verificar-se a aplicação do Direito Privado, ou seja, se a relação
que os afeta for estruturada com base no direito Privado — de que seriam exemplos os
títulos da dívida pública ou os bens públicos objeto de contrato de locação ou de cessão
(contratos regidos pelo direito Privado) —, referidos bens são reputados dominicais,
ainda que pertencentes às pessoas de direito Público.
Adotada essa interpretação, podemos concluir, ademais, que somente os bens
dominicais podem ser objeto de regulação pelo direito Privado. ou seja, os bens públicos
afetados ao uso comum do povo ou utilizados pelas repartições públicas para a prestação
de serviços públicos não podem ter seu uso regulado pelo direito Privado, devendo
ser necessariamente regidos por regime jurídico público. somente por meio de regime
de direito Público, de que seriam exemplos a autorização de uso, a permissão de uso
ou a concessão de uso, poderiam os bens afetados (de uso comum ou de uso especial)
terem seu uso transferido a particular. Ao contrário, se o bem não está afetado ao uso
comum ou ao uso especial, ele pode ser objeto de regulação com base no direito Privado,
sendo possível sua locação ou cessão de uso por meio de arrendamento ou concessão
de direito real de uso, por exemplo.
dada essa compreensão ao dispositivo legal, vê-se que o uso de estruturas do
direito Privado somente é legítimo para a utilização dos bens públicos dominicais, não
sendo admissível para os bens de uso comum ou de uso especial.
A rigor, a classificação do Código Civil leva à conclusão de que o enquadramento
dos bens públicos como dominicais decorre de critério residual. ou seja, se os bens públicos não se destinarem diretamente ao uso pela população (bens de uso comum), ou às
repartições públicas para a execução de suas atividades (de uso especial), serão eles bens
dominicais.
As terras devolutas, os prédios públicos não afetados ao desempenho de qualquer
atividade pública, os bens móveis inservíveis e os títulos da dívida pública são alguns
exemplos de bens dominicais.
incorreto, portanto, apresentar esses bens como inservíveis ou ociosos. efetivamente, os bens que estejam nessas condições são dominicais. o que os caracteriza,
todavia, é tão somente o fato de não estarem afetados ao uso comum do povo ou às
estruturas do estado para a prestação de serviços públicos ou de outras atividades
públicas. Assim, bens públicos que tenham sido alugados por uma autarquia com o
objetivo de gerar receitas são dominicais em razão de sua não afetação. A compreensão
dos bens dominicais requer, em consequência, o exame dos conceitos de afetação e de
desafetação dos bens, tarefa a ser empreendida em seguida.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
14.5 Afetação e desafetação
Os termos afetação e desafetação estão diretamente relacionados à classificação
dos bens apontada pelo Código Civil porque dizem respeito ao fim a que eles se destinam.
diz-se que o bem está afetado quando se destina diretamente ao uso pela população ou quando forem utilizados pelas entidades e órgãos públicos para a realização das
suas atividades públicas. Ao contrário, se o bem não se destina a essas duas finalidades,
diz-se que não está afetado.
são afetados os bens de uso comum e os de uso especial; são desafetados os
dominicais.
Quando se fala em afetação ou em desafetação, examina-se a possibilidade de
mudança da destinação do bem. Ao se transformar bem dominical em bem de uso especial ou em bem de uso comum (exemplo: se terra devoluta é utilizada para a construção
de uma repartição pública ou de uma praça pública) diz-se que houve afetação. Ao
contrário, quando bem de determinada entidade pública que estava afetado à prestação
de serviços públicos ou quando se destinava ao uso direto da população perde essa
finalidade e fica sem utilização específica (tornando-se abandonado o edifício onde
funcionava repartição pública ou, no caso de bens móveis, tornando-se inservíveis, por
exemplo) terá ocorrido desafetação.
É de se observar que, em princípio, todos os bens de uso especial podem sofrer
desafetação. Em relação aos de uso comum, todavia, há alguns em que a finalidade
de interesse geral que encerram decorre da sua própria natureza, sendo irrelevante
a vontade do administrador ou a ocorrência de fatos administrativos. Isto se verifica
com as praias, em que, ressalvadas situações excepcionais (de nelas ser edificada uma
construção militar, por exemplo, hipótese em que se transformariam em bem de uso
especial), sua destinação como bem de uso comum é definida em razão da sua própria
natureza.
Admite-se ainda a possibilidade de mudança na espécie de afetação de bem já
afetado. É o caso de ser construído edifício para receber repartição pública em imóvel
onde antes funcionava praça pública. não obstante tenha ocorrido mudança na destinação do bem, que de uso comum passa a ser de uso especial, não se pode afirmar
que a nova destinação importou em nova afetação, haja vista o bem já se encontrar
previamente afetado.
A afetação ou a desafetação podem decorrer de atos formais, praticados pelo
poder público, ou de fatos administrativos. Há situações em que, por exemplo, por meio
de lei ou de ato administrativo é definido o fim a que se destinam certos bens. Na grande
maioria dos casos, todavia, a afetação ou a desafetação do bem decorre de situações de
fato, como a realização de obras públicas (construção de edifícios ou de logradouros
públicos). Nessas hipóteses, não se pode afirmar que a afetação do bem decorre de
uma manifestação de vontade da Administração Pública, mas da circunstância de fato
ocorrida, ou seja, da execução da obra e do consequente uso a que ela se destina.
Caso a afetação do bem tenha decorrido de ato formal, é necessário que se pratique outro de mesma natureza para a sua desafetação. Se, por exemplo, lei define que
em determinado imóvel deve funcionar uma praça pública, será necessária a edição de
outra lei como requisito à sua desafetação.
A desafetação, todavia, conforme observado, normalmente independe de qualquer ato formal. Pode decorrer de situações de fato: o simples fato de um veículo ou
671
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
672
de um computador pertencentes a um órgão público terem-se tornado inservíveis
transforma esses bens de uso especial em bens dominicais.
Há bens que em razão da própria natureza sofrem restrições quanto à possibilidade de desafetação. uma rodovia ou o curso de um rio não podem ser desafetados ou
afetados a fim diverso daqueles definidos pela sua própria natureza. Se for construída
nova rodovia tornando a anterior sem utilidade para a população, ou se o curso do rio
secar, ou mudar, pode-se admitir a desafetação como consequência natural dos fatos
ocorridos.
desse modo, se determinado bem de uso especial foi desafetado porque se tornou
inservível, passando, portanto, para a categoria dos dominicais, seria correto afirmar
que essa desafetação alterou o regime jurídico a ele aplicável? o fato de o bem dominical
não estar afetado não faz com que ele deixe de ser considerado bem público ou que se
submeta a regime diferenciado.
14.6 Classificação dos bens quanto a sua titularidade
A Constituição Federal indica alguns bens cuja titularidade é atribuída à união
e aos estados. o objetivo dessas referências não é restringir a titularidade da união e
dos estados apenas a esses bens. ou seja, as referências feitas a alguns bens como pertencentes à união ou aos estados têm o propósito de evitar questionamentos acerca
de sua titularidade,19 e não o de restringir o domínio público federal ou estadual aos
bens mencionados.
A Constituição Federal se serviu de diferentes critérios para conferir a titularidade
de determinados bens à União.
o critério da segurança nacional foi utilizado pelo art. 20 da Constituição para
conferir à união a titularidade dos seguintes bens:
- Das terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações
e construções militares, das vias federais de comunicação (inciso ii);
- dos lagos, rios e quaisquer correntes de água que sirvam de limites com outros
países, ou que se estendam a território estrangeiro ou dele provenham (inciso iii);
- Das ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; das praias
marítimas; das ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e
a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, ii — que compreendem
as áreas pertencentes aos estados e municípios (inciso iv);
- do mar territorial (inciso vi);
- dos terrenos de marinha e dos seus acrescidos (inciso vii).
o critério da proteção do patrimônio, a partir da perspectiva da exploração econômica,
resultou no enquadramento pelo art. 20 da CF dos seguintes bens em favor da união:
- dos recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva
(inciso v);
- dos potenciais de energia hidráulica (inciso viii);
- dos recursos minerais, inclusive os do subsolo (inciso iX).
19
exemplo de titularidade controvertida entre a união e um estado pode ser visto na Adi stF nº 255-rs (Pleno.
rel. min. ilmar Galvão. rel. p/ acórdão min. ricardo Lewandowski. Julg. 16.3.2011. DJe, 24 maio 2011), em que
se discutia a situação das terras dos extintos aldeamentos indígenas.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
o critério da preservação do patrimônio paisagístico, cultural e ambiental resultou
no enquadramento, como bens da união:
- Das terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental, definidas em lei
(inciso ii);
- das cavidades naturais subterrâneas e dos sítios arqueológicos e pré-históricos
(inciso X); e
- das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
São ainda definidos como bens da União pelo art. 20:
- os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos (inciso i);
- os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou
que banhem mais de um estado, bem como os terrenos marginais e as praias
fluviais (inciso III).
não obstante os recursos do subsolo pertençam à união (art. 20, iX), o §1º do
art. 20 assegura “aos estados, ao distrito Federal e aos municípios, bem como a órgãos
da administração direta da união, participação no resultado da exploração de petróleo
ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros
recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona
econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração”.
os imóveis localizados na faixa de até 150Km de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, não são declarados públicos. são
reconhecidos como de importância “fundamental para defesa do território nacional, e
sua ocupação e utilização serão reguladas em lei”, conforme estabelece o art. 20, §2º,
do texto constitucional.
no plano federal, o regime jurídico relativo aos imóveis da união é disciplinado
pelo decreto-Lei nº 9.760, de 1946, e pela Lei nº 9.636, de 1998.
em relação aos Estados, e o mesmo vale para o distrito Federal, a Constituição
Federal (art. 26) elenca os seguintes bens:
I - As águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito,
ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da união;
ii - As áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio,
excluídas aquelas sob domínio da união, municípios ou terceiros;
III - As ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União;
iv - As terras devolutas não compreendidas entre as da união.
A mesma afirmação relativa aos bens da União, no sentido de que o objetivo da
Constituição Federal com a elaboração dessas listas não é o de conferir caráter exaustivo, mas simplesmente evitar dúvidas quanto à sua titularidade, aplica-se aos bens
dos estados. Assim, outros bens podem pertencer aos estados e ao distrito Federal,
como aqueles objeto de desapropriações ou onde estejam localizadas as repartições
públicas estaduais.
Quanto aos bens dos Municípios, a Constituição Federal não lhes faz qualquer
referência.20 ou seja, não há bens que em razão da sua natureza ou da sua utilização
20
ressalvando a alteração promovida no inciso iv do art. 20 da Constituição Federal pela emenda Constitucional
nº 46/2005, in verbis:
“Art. 20. são bens da união: (...)
iv - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e
as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço
público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, ii.”
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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sejam necessariamente municipais. Pertencem aos municípios tão somente aqueles bens
móveis ou imóveis que tenham sido por eles adquiridos (por desapropriação, compra,
permuta, doação etc.) ou que passem a integrar o seu patrimônio em decorrência de
situações previstas em lei — de que seria exemplo a transferência aos municípios das
vias públicas decorrentes dos loteamentos imobiliários, em razão do que dispõe a Lei
nº 6.766/79. Assim, se o poder público municipal desapropria imóvel para a construção
de via pública, ele pertence ao município (como de uso comum); se adquire edifício
para funcionar repartição pública municipal, trata-se de bem municipal de uso especial,
por exemplo.
importa observar que os bens pertencentes às pessoas administrativas de Direito Público
(autarquias e fundações públicas de direito Público) devem observar o mesmo regime
jurídico aplicável às entidades políticas a que estejam vinculadas. ou seja, os bens pertencentes às autarquias federais devem observar o mesmo regime aplicável aos bens
da união, devendo essa mesma regra ser observada nas esferas estaduais e municipais.
14.7 domínio público e domínio privado do estado
A classificação dos bens públicos definida pelo Código Civil toma como critério
a utilização conferida ao bem. são apresentadas, conforme examinado, três categorias:
bens de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que, não obstante “a classificação do
Código Civil abranja três modalidades de bens, quanto ao regime jurídico existem
apenas duas”.21 A ilustre autora apresenta, em seguida, a divisão dos bens públicos
em razão do regime jurídico adotado, dividindo-os em bens do domínio público, que
compreenderia os bens de uso comum e os de uso especial, e os bens do domínio
privado, categoria que alcançaria tão somente os bens dominicais.
A primeira observação a ser feita a esse critério de classificação diz respeito ao
seu alcance, que compreende apenas os bens pertencentes às pessoas de direito Público.
Quando se fala em domínio privado do estado, portanto, não é feita referência aos
bens pertencentes às pessoas de direito Privado da Administração Pública, mas aos
bens públicos pertencentes às pessoas de direito Público que não estão afetados ao uso
comum ou à prestação de serviços públicos, ou seja, aos bens não afetados.
desde já manifestamos, com a devida vênia, nossa discordância em relação a
essa divisão.
As três categorias de bens públicos se sujeitam ao mesmo regime jurídico público.
As mesmas características do regime jurídico público dos bens de uso comum e dos bens
de uso especial (bens afetados) alcançam os bens dominicais (não afetados). são elas a
alienação condicionada, a impenhorabilidade, a imprescritibilidade e a impossibilidade
de oneração, conforme será examinado no item seguinte.
em razão de não estarem afetados, o Código Civil admite a possibilidade de os
bens dominicais se servirem de estruturas de direito privado, faculdade não conferida aos
bens afetados. essas estruturas de direito Privado não importam, todavia, em afastamento ou derrogação das normas públicas pertinentes a esses mesmos bens. ou seja,
ainda quando sujeito a alguma estrutura de direito Privado (que ocorreria na hipótese
21
di Pietro. Direito administrativo, p. 543.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
de um bem público dominical ser objeto de contrato de locação, por exemplo), não são
afastadas as normas do regime jurídico público. isto importa em que, não obstante
sujeito às regras privadas do contrato de locação, esse bem público mantém suas
características de alienação condicionada, de impenhorabilidade, de imprescritibilidade
e de impossibilidade de oneração decorrentes do regime jurídico público.
ora, se as características pertinentes ao regime público são mantidas em relação
aos bens dominicais, como seria possível admitir que estes últimos se submeteriam a
regime jurídico diverso, de direito Privado? Como é possível falar em domínio privado
do estado para compreender os bens dominicais se eles continuam submetidos às
mesmas regras pertinentes ao domínio público?
distinguem-se os bens afetados dos não afetados tão somente nas hipóteses
em que o poder público decida pela delegação de seu uso a particulares. Assim, se se
faz necessário transferir o uso de bem afetado a pessoa de direito Privado, devem ser
utilizadas as formas jurídicas pertinentes ao regime jurídico público (concessão de uso,
permissão de uso etc.); se houver necessidade de transferir o uso de bem público não
afetado a particulares, poderão ser utilizados os instrumentos formais do regime jurídico privado (locação, enfiteuse ou cessão de uso) para disciplinar essa transferências.22
os bens dominicais que tenham seu uso transferido a particulares se submetem
integralmente ao mesmo regime jurídico público que regula os bens afetados, no que
toca à alienabilidade condicionada, impenhorabilidade, imprescritibilidade e não onerabilidade. nesse sentido, como é possível falar que o ordenamento jurídico pátrio admite
dois domínios relativos aos bens públicos se o regime jurídico pertinente a eles é um só?
em razão do que dispõem os artigos 100 (“os bens públicos de uso comum do
povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na
forma que a lei determinar”) e 101 (“os bens públicos dominicais podem ser alienados,
observadas as exigências da lei”) do Código Civil, poder-se-ia argumentar que o patrimônio público, que compreenderia apenas os bens afetados, seria inalienável e que o
patrimônio privado do estado, que compreenderia os bens não afetados, seria alienável.
A rigor, dispõe o Código Civil que, enquanto qualquer bem público estiver afetado
ao interesse público, no sentido de ser utilizado diretamente pela população ou pelas
repartições públicas para a prestação de serviços públicos, ele não pode ser alienado.
ora, essa constatação independe de disposição expressa em lei. A simples aplicação
do princípio da continuidade do serviço público importa em vedação à alienação dos
bens afetados. Ademais, a desafetação dos bens públicos não se submete a regras tão
formais que possam justificar a criação de dois regimes jurídicos para cuidar do patrimônio do estado.
22
o decreto-Lei nº 9.760/46, que cuida dos imóveis pertencentes à união, dispõe em seu art. 64 nos seguintes termos:
“Art. 64. os bens imóveis da união não utilizados em serviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza,
ser alugados, aforados ou cedidos.
§1º A locação se fará quando houver conveniência em tornar o imóvel produtivo, conservando porém, a união,
sua plena propriedade, considerada arrendamento mediante condições especiais, quando objetivada a exploração de frutos ou prestação de serviços.
§2º o aforamento se dará quando coexistirem a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e a de manter-se
o vínculo da propriedade pública.
§3º A cessão se fará quando interessar à união concretizar, com a permissão da utilização gratuita de imóvel seu,
auxílio ou colaboração que entenda prestar.”
em razão de o caput do supratranscrito dispositivo fazer referência expressa a “imóveis da união não utilizados
em serviço público, qualquer que seja a sua natureza”, resta evidente que os institutos de direito Privado estão
reservados aos bens não afetados, vale dizer, aos bens dominicais.
675
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
676
A bem da verdade, tanto os bens afetados quanto os não afetados se sujeitam a
restrições impostas pelo direito Público à sua alienação. nos termos do art. 17, i, da Lei
nº 8.666/93, os bens imóveis públicos — independentemente da sua natureza — somente
poderão ser alienados após a demonstração do interesse público, de avaliação prévia,
de autorização legislativa, e de licitação na modalidade de concorrência. Caso se trate
de bem imóvel afetado, além dessas condições, deve ser observada outra, relativa à
desafetação do bem, conforme dispõe a parte final do caput do art. 100 do Código Civil
anteriormente transcrito. vê-se que sequer os aspectos relacionados à alienação dos
bens afetados e não afetados se prestam para a construção de dois regimes relativos
aos bens públicos.
em conclusão, os bens públicos compreendem uma única categoria: o domínio
público do estado. independentemente de se tratar de bem de uso comum, de uso
especial ou dominical, o regime jurídico dos bens públicos não se altera, sendo comum
às três categorias. somente nas hipóteses em que haja interesse na delegação do uso do
bem público a particulares, distinguem-se os bens de uso comum e os de uso especial
em relação aos bens dominicais, haja vista a delegação do uso destes últimos (dos bens
dominicais) poder ser formalizada por meio de contratos privados, o que não se verifica em relação aos bens afetados (de uso comum e de uso especial), em que eventuais
delegações de uso a particulares se sujeitam exclusivamente aos institutos do direito
Público (exemplo: a utilização, a título precário, de áreas de domínio da união para
a realização de eventos de curta duração, de natureza recreativa, esportiva, cultural,
religiosa ou educacional, conforme dispõe o art. 22 da Lei nº 9.636/98, será formalizada
mediante permissão de uso).
14.8 Características do regime jurídico dos bens públicos
Costuma-se apresentar como primeira característica dos bens públicos a inalienabilidade. Conforme observa com a costumeira precisão José dos santos Carvalho Filho,
atribuir aos bens públicos essa característica constitui equívoco, haja vista a própria
Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), em seu art. 17, definir de modo preciso os requisitos
necessários à alienação dos bens pertencentes às entidades integrantes da Administração Pública.23 Como se pode falar, portanto, em inalienabilidade se a própria lei que
regula as licitações indica os requisitos a serem observados para a alienação dos seus
bens públicos imóveis (art. 17, §1º) e móveis (art. 17, §2º)?
14.8.1 Alienabilidade condicionada
A primeira característica dos bens públicos diz respeito à existência de restrições
à sua alienação. mais correta, portanto, apontar a alienabilidade condicionada como a
primeira característica dos bens públicos.
independentemente de se tratar de bem móvel ou imóvel, a primeira condição
a ser observada para a alienação dos bens públicos diz respeito à necessidade de desafetação. Conforme dispõe o caput do art. 100 do Código Civil, enquanto os bens de uso
23
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 882.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
especial e os de uso comum conservarem essa “qualificação”, isto é, enquanto estiverem
afetados, são inalienáveis. no caso dos bens dominicais, em razão de não estarem afetados, a primeira condição necessária à sua alienação já se encontra observada.
A rigor, a necessidade de desafetação, mais do que condição jurídica, é requisito
lógico à alienação de qualquer bem público. Consideremos, por exemplo, a alienação
de veículo de serviço. enquanto ele estiver sendo utilizado em serviço, não há como
aliená-lo. seria ilógico admitir que referido bem pudesse ser alienado e, ainda assim,
continuar afetado à prestação de serviço público. A sua desafetação ocorre, todavia,
com a sua simples exclusão da frota de serviço e o seu encaminhamento ao órgão
responsável pela alienação. Conforme examinado, a desafetação decorre, como regra,
de fatos administrativos, sendo desnecessária a sua formalização. no exemplo, o ato
por meio do qual o responsável pela frota de veículos encaminha o bem ao setor competente pela alienação é juridicamente irrelevante para a legalidade da alienação do
bem. Para que a alienação se aperfeiçoe e se torne válida, é necessária a observância das
condições previstas na Lei de Licitações. teoricamente, o bem pode ser utilizado em
serviço até o momento anterior ao da sua alienação, sem que isso importe na criação
de impedimento à alienação. Para que esta ocorra, todavia, é necessário desafetá-lo do
serviço a que se prestava.
Além da desafetação, as demais condições para a alienação dos bens públicos
encontram-se previstas no art. 17 da Lei nº 8.666/93.
Para a alienação de bens públicos imóveis, devem ser ademais observadas as seguintes
condições:
- Interesse público devidamente justificado;
- Avaliação prévia;
- Autorização legislativa;
- Licitação na modalidade de concorrência, ressalvadas as hipóteses previstas na
Lei de Licitações, em que é admitido o leilão para alienação de imóveis (art. 19,
iii), ou em que a licitação é dispensada (art. 17, §1º).
no caso de tratar de bens públicos móveis, além da igualmente necessária desafetação, são requisitos à alienação:
- interesse público;
- Avaliação prévia;
- Licitação na modalidade de leilão, ressalvadas as hipóteses em que a Lei de
Licitações obriga a adoção da concorrência (art. 17, §6º), ou aquelas em que a
licitação é dispensada (art. 17, §2º).
Verifica-se que esta característica, relativa à imposição de condições, alcança a
alienação de todos os bens públicos, independentemente da sua natureza. são, portanto,
incorretas as afirmações de que os bens dominicais são alienáveis e de que os bens de
uso comum e os de uso especial são inalienáveis. ressalvadas situações especiais decorrentes da natureza do bem ou de disposição legal ou constitucional expressa, todos
os bens públicos apresentam, como primeira característica de seu regime jurídico, a
alienabilidade condicionada.
A inalienabilidade, em razão da natureza, afeta tão somente alguns bens de
uso comum, como as praias e os rios navegáveis. Como exemplo de inalienabilidade
decorrente de disposição constitucional expressa pode ser mencionada a regra contida
no art. 225, §5º, da Constituição Federal que confere caráter de indisponibilidade às
677
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
678
“terras devolutas ou arrecadadas pelos estados, por ações discriminatórias, necessárias
à proteção dos ecossistemas naturais”.
14.8.2 impenhorabilidade
A segunda característica dos bens públicos é a impenhorabilidade.
A penhora corresponde ao procedimento judicial por meio do qual se objetiva
tomar bens do devedor com vista à sua alienação em juízo para a satisfação do direito
do credor.
A impenhorabilidade alcança os bens públicos em razão de as regras previstas no
art. 100 da Constituição Federal determinarem procedimento específico para a satisfação
dos créditos decorrentes das condenações judiciais da Fazenda Pública. ora, se são bens
públicos todos aqueles pertencentes às pessoas de direito Público (CC, art. 98), se as pessoas de direito Público integram a Fazenda Pública, e se o pagamento das condenações da
Fazenda Pública observa os procedimentos previstos no texto constitucional e na legislação
processual civil (CPP, artigos 730 e 731) relativos à emissão dos precatórios,24 a conclusão
necessária é no sentido da impossibilidade absoluta de penhora dos bens públicos.25
14.8.3 imprescritibilidade
A terceira característica a ser apontada para o regime dos bens públicos corresponde
à imprescritibilidade, o que equivale a afirmar que os bens públicos são insusceptíveis
de serem objeto de usucapião.
muito se discutiu no passado acerca da possibilidade de determinados bens
públicos, como as terras devolutas ou quaisquer outros bens dominicais, poderem ser
alcançados pela usucapião.
Hoje o tema está pacificado. A Constituição Federal, por meio de dois dispositivos
de idêntica redação (art. 183, §3º e 191, parágrafo único), expressamente dispõem que
“os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Para reforçar o argumento, o
24
25
vale notar, contudo, que a recíproca não é verdadeira em relação ao raciocínio aqui desenvolvido, conforme ilustra
decisão do STF no RE nº 599.628-RG/DF (Repercussão Geral. Rel. Min. Ayres Britto. Julg. 11.3.2010. DJe, 26 mar.
2010). A Corte Suprema confirmou acórdão no qual se afirma que a impossibilidade de penhora de bens que comprometam a prestação de serviço público não se confunde com o regime de execução por meio de precatórios.
É de se notar que mesmo no presente caso vale a máxima de que não há direitos absolutos. Significa dizer que,
em situações excepcionais, a impenhorabilidade do bem público pode dar lugar à proteção de outro bem jurídico
constitucionalmente mais relevante. sobre o assunto, é elucidativa a decisão do stJ:
“Processual Civil. recurso especial. tutela antecipada. meios de coerção ao devedor (CPC, arts. 273, §3º e 461,
§5º). Fornecimento de medicamentos pelo estado. Bloqueio de verbas públicas. Conflito entre a urgência na
aquisição do medicamento e o sistema de pagamento das condenações judiciais pela fazenda. Prevalência da
essencialidade do direito à saúde sobre os interesses financeiros do Estado. (...) 3. Em se tratando da Fazenda
Pública, qualquer obrigação de pagar quantia, ainda que decorrente da conversão de obrigação de fazer ou de
entregar coisa, está sujeita a rito próprio (CPC, art. 730 do CPC e CF, art. 100 da CF), que não prevê, salvo excepcionalmente (v.g., desrespeito à ordem de pagamento dos precatórios judiciários), a possibilidade de execução
direta por expropriação mediante seqüestro de dinheiro ou de qualquer outro bem público, que são impenhoráveis. 4. Todavia, em situações de inconciliável conflito entre o direito fundamental à saúde e o regime de
impenhorabilidade dos bens públicos, prevalece o primeiro sobre o segundo. sendo urgente e impostergável a
aquisição do medicamento, sob pena de grave comprometimento da saúde do demandante, não se pode ter por
ilegítima, ante a omissão do agente estatal responsável, a determinação judicial do bloqueio de verbas públicas
como meio de efetivação do direito prevalente. 5. recurso especial a que se nega provimento.” (resp nº 851.760-rs,
1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki. Julg. 22.8.2006. DJ, 11 set. 2006)
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
Código Civil, em seu art. 102, reafirma a tese de que os “bens públicos não estão sujeitos
a usucapião”, encontrando-se o tema igualmente disciplinado pela súmula stF nº 340.
um aspecto indiretamente relacionado à imprescritibilidade dos bens públicos
consiste nas consequências da posse. em regra, um dos efeitos da posse é a aquisição
originária da propriedade mediante usucapião (quando atendidos os requisitos), o que,
como visto, não é possível no caso de bens públicos. diante disso, o stJ tem entendido
que a ocupação irregular de bem público nem mesmo configura posse, mas tão somente
mera detenção, de modo que o ocupante não pode se valer das ações possessórias contra o poder público e, quando demandado, não pode invocar “posse velha” para fins
de aplicação do art. 924 do CPC, tampouco tem direito de retenção por benfeitorias.26
Por fim, vale mencionar que, embora não seja possível usucapir a propriedade
de bem público, a jurisprudência admite usucapião do domínio útil de bem público que
esteja aforado a particular. isso porque, nesse caso, o usucapiente não adquire o bem
público, mas tão somente o direito do particular enfiteuta.27
14.8.4 não onerabilidade
A quarta característica do regime jurídico dos bens públicos está relacionada à
impossibilidade de oneração (ou a não onerabilidade, conforme observa José dos santos
Carvalho Filho28).
Onerar o bem significa instituir sobre ele garantia real. Nesse sentido, o Código
Civil admite três distintas espécies de garantia real: hipoteca (art. 1.473), penhor (art. 1.431)
e anticrese (art. 1.506). institui-se a garantia com o intuito de assegurar ao credor, na
eventualidade da dívida não ser paga, que a penhora judicial recairá sobre os bens
onerados, e que o credor poderá ter seu crédito satisfeito por meio da alienação judicial
dos bens dados em garantia.
A impossibilidade de oneração dos bens públicos é decorrência direta de duas
outras características: a impenhorabilidade e a alienabilidade condicionada.
Considerando que a constituição da garantia real objetiva assegurar ao credor
que não receba o pagamento voluntário a possibilidade de executar o devedor e de
penhorar judicialmente os bens dados em garantia, considerando, ainda, o disposto no
art. 100 da Constituição Federal, se conclui pela impossibilidade de os bens públicos
serem penhorados, e considerando que a oneração dos bens se presta tão somente a
uma possível penhora judicial, o entendimento deve ser no sentido da impossibilidade
de oneração.
Chega-se a idêntica conclusão quando se examina a questão a partir da perspectiva
da alienação dos bens públicos. em razão de a lei estabelecer requisitos ou condições a
serem observados para a legitimidade desse ato, condições que não poderiam ser observadas caso a alienação se realizasse pela via judicial, o raciocínio deve ser no idêntico
26
27
28
stJ. resp nº 932.971-sP, 4ª turma. rel. min. Luis Felipe salomão. Julg. 10.5. 2011. DJe, 26 maio 2011; e resp
nº 841.905-dF, 4ª turma. rel. min. Luis Felipe salomão. Julg. 17.5. 2011. DJe, 24 maio 2011.
“usucapião de domínio útil de bem público (terreno de marinha). (...) o ajuizamento de ação contra o foreiro, na
qual se pretende usucapião do domínio útil do bem, não viola a regra de que os bens públicos não se adquirem
por usucapião. Precedente: re 82.106, RTJ 87/505” (re nº 218.324-Agr/Pe, 2ª turma. rel. min. Joaquim Barbosa.
Julg. 20.4.2010. DJe, 28 maio 2010).
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 884.
679
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
sentido de que esses bens não podem ser onerados, haja vista a oneração ter o propósito
de garantir a satisfação do direito do credor por meio da alienação judicial dos bens.
14.8.5 Características e espécies de bens públicos
As características apresentadas são aplicáveis às três espécies de bens públicos: de
uso comum, de uso especial e dominicais.
em razão dessa constatação, refutamos — uma vez mais — a existência de dois
diferentes regimes de bens públicos, um que compreenderia o domínio público (bens
de uso comum e de uso especial), e outro que alcançaria o domínio privado, relativo
aos bens dominicais.
o regime dos bens públicos é um só, de direito Público. A existência do denominado domínio privado do estado teria como pressuposto a existência de um regime
jurídico próprio, que assegurasse a essa categoria características distintas daquelas
pertinentes aos demais bens públicos, conforme se verifica em alguns regimes jurídicos
estrangeiros. no direito brasileiro, ao contrário, as características apresentadas alcançam
indistintamente todos os bens públicos, razão suficiente para tornar inócua qualquer
tentativa de admitir a existência de dois regimes ou de dois domínios de bens públicos.
14.9 uso ordinário e uso extraordinário dos bens públicos
O critério utilizado pelo Código Civil para classificar os bens públicos utiliza
como parâmetro a destinação do bem e os divide em bens de uso comum, de uso especial e dominicais.
não obstante o enquadramento de determinado bem em uma ou em outra
categoria decorrer de sua aptidão natural, da finalidade a que ele se destina em razão
das suas características naturais ou atribuídas, há situações em que o bem pode, sem
perder o seu enquadramento como bem de uso comum, de uso especial ou dominical,
sofrer variações no que toca ao fim a que se destina.
tomemos o exemplo dos bens de uso comum. são enquadrados nesta categoria
os bens públicos utilizados indiscriminadamente por qualquer pessoa, independentemente de qualquer manifestação ou autorização da Administração Pública. seu uso
ordinário, ademais, não sujeita o usuário ao pagamento de qualquer taxa ou tarifa. em
situações especiais, todavia, tendo em vista o interesse coletivo, pode ocorrer variações
nessas condições gerais relativas ao seu uso ordinário. Verificada variação, estaríamos
diante de hipótese de uso extraordinário do bem de uso comum.
As rodovias são facilmente identificadas como bens de uso comum. Se for instituída a cobrança de pedágios, não obstante se mantenha seu uso comum na medida em
que o bem se destina à população e não à manutenção das estruturas administrativas
do estado, este uso passa a depender do pagamento da tarifa e irá caracterizar o uso
extraordinário do bem.
outro exemplo de uso extraordinário dos bens de uso comum ocorre quando
são expedidas autorizações para a realização de eventos esportivos ou culturais em
logradouros públicos. É possível, em razão do que defina a legislação municipal, a
realização, em praça pública, de apresentação de grupos musicais somente àqueles
que se disponham a pagar pelos ingressos oferecidos pelos organizadores do evento
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
(a realização das micaretas seria exemplo desse uso). esta situação caracterizaria o uso
extraordinário do bem público.
não é apenas a necessidade de pagamento que caracteriza o uso extraordinário do
bem (a cobrança de entradas em museu importa em uso extraordinário de bem de uso
especial). A exclusividade do uso ou a necessidade de consentimento da Administração
Pública como requisito ao uso podem igualmente caracterizar o uso extraordinário.
o funcionamento de restaurantes ou de agências bancárias em repartições públicas
ou de bancas de jornal ou de quiosques em vias públicas igualmente importa em uso
extraordinário do bem. nesse sentido, o funcionamento de agência bancária em uma
repartição pública importa em uso extraordinário de bem de uso especial.
14.10 delegação de uso
Uma das distinções verificadas entre os bens afetados e os não afetados diz
respeito à possibilidade da delegação destes últimos ser feita mediante instrumentos
de direito Privado, o que não se admite para os bens afetados. em outras palavras,
somente os bens dominicais admitem que o direito Privado possa disciplinar a delegação do seu uso a particulares. nesse sentido, os bens de uso comum e os bens de
uso especial somente podem ter seu uso delegado a particulares por meio dos instrumentos do direito Público (autorização de uso, permissão de uso, concessão de uso e
cessão de uso). os bens dominicais podem ter seu uso trespassado a particulares pelos
instrumentos do direito Público ou por meio das formas jurídico-privadas, tais como
enfiteuse, locação e comodato.
examinaremos, em seguida, cada uma dessas hipóteses.
14.10.1 Autorização de uso
A autorização de uso é o meio pelo qual o poder público discricionariamente
consente em que bem público possa ser usado precária e transitoriamente por particular
em caráter privado.
A autorização é formalizada por meio de ato administrativo precário, o que
permite ao poder público promover a sua revogação a qualquer tempo.
três aspectos podem ser utilizados para indicar que o trespasse do uso do bem
público a particular seja feito por meio da autorização de uso:
- O interesse do particular em usar em caráter privado e para fins privados bem
público;
- A discricionariedade da Administração Pública; e
- A sua transitoriedade do uso.
o primeiro aspecto — relacionado ao uso em caráter privado do bem público — diz
respeito a situações em que interessa ao particular a realização de eventos ou de outras manifestações em áreas públicas. seria a hipótese da realização de evento cultural
(apresentação de músicos), esportivo (corrida de bicicletas) ou político (comício) em
vias públicas.
não há restrição a que o evento tenha caráter empresarial. em condições normais,
as vias públicas podem ser frequentadas por qualquer pessoa. Autorizado o seu uso a
determinada pessoa, a ela é assegurado o direito de definir quem poderá ter acesso à
área objeto de autorização durante a vigência desta.
681
682
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Quando é afirmado que a autorização de uso se destina a atender a interesse do
particular, deve ser entendido que não há um interesse público ou da Administração
Pública a ser realizado diretamente ou imediatamente pelo uso a ser conferido ao bem.
esse interesse privado no uso transitório do bem público não pode, é evidente, contrapor-se
ao interesse da coletividade. não é para atender ao interesse da coletividade, todavia,
que se institui a autorização de uso. esse o primeiro aspecto que caracteriza o instituto.
A segunda característica do instituto diz respeito ao fato de que a expedição do
ato de autorização é feita em caráter discricionário pela Administração Pública. ou seja,
não pode um particular arguir direito subjetivo de obter a autorização. se existe legislação municipal, por exemplo, que admite a autorização de uso de praça pública para
a realização de eventos musicais, é legítimo ao poder público municipal negar pedido
formulado por particular, não obstante este atenda a todos os requisitos necessários
à expedição do ato de autorização. Cabe ao poder público, em razão do que dispuser
sua legislação, decidir acerca da conveniência de autorizar o uso do bem ou de negar
o pedido formulado por meio de decisão motivada, em que sejam indicadas as razões
que o levam a expedir o ato ou a negar o pedido formulado. Por meio da motivação
deve ser possível identificar eventuais desvios de finalidades ou favorecimentos ilícitos.
A transitoriedade do uso constitui a terceira característica da autorização. o bem a
ser objeto de autorização deve ser utilizado necessariamente para eventos ou situações
que pela sua natureza não se estendam no tempo. A realização de uma apresentação
musical, por exemplo, pode ser objeto da autorização de uso, mas não pode a autorização
ser utilizada para transformar bem público em casa de espetáculos. o que diferencia
uma situação da outra é a transitoriedade da primeira hipótese e o caráter continuado
da segunda.
em razão do caráter precário e discricionário da autorização de uso, muitos
autores defendem que o seu desfazimento pelo poder público não acarretaria dever
de pagar qualquer indenização.
sendo discricionária e precária, é evidente que o poder público pode a qualquer
tempo revogar o ato por meio do qual foi expedida a autorização. isto não importa em
que possam ser praticados atos arbitrários ou abusivos. todavia, desde que devidamente motivado, e desde que os motivos invocados sejam suficientes para justificar a
medida, a autorização pode ser revogada antes mesmo de ser iniciado o uso do bem
pelo particular. em qualquer caso, é de se observar se houve prejuízo para o particular
com vista ao eventual pagamento de indenização.
ou seja, a autorização pode ser a qualquer tempo revogada pelo poder público,
mas havendo prejuízo para o particular que licitamente a obteve, devem esses prejuízos,
conforme o caso, efetivamente sofridos ser ressarcidos.
A regra deve ser o dever de ressarcir os prejuízos sofridos pelo particular; a
exceção deve ser a liberação do poder público do dever de indenizar.
na hipótese de revogação da autorização, o dever de indenizar somente pode
ser afastado se as condições em que ela foi expedida justificarem essa solução. Não nos
parece correto ou jurídico admitir que empresário possa obter autorização para a realização de evento em via pública, pagar as taxas estipuladas, realizar despesas vultosas e
ter sua autorização revogada sem que o poder público assuma responsabilidade pelos
prejuízos que venha a causar. A necessidade de indenização decorre diretamente do
princípio da segurança jurídica. isto não importa em tornar a autorização irrevogável,
mas, ao contrário, em obrigar o poder público a indenizar os prejuízos que a revogação
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
da autorização cause ao particular. em situações especiais, todavia, se for inerente à
autorização a possibilidade de revogação independentemente de qualquer indenização,
e desde que assim tenha sido expressamente previsto no ato que a formalizou, é de se
admitir que a revogação não gere dever de indenizar. maria sylvia Zanella di Pietro
admite a indenização dos prejuízos comprovados, desde que a revogação tenha ocorrido
antes de findo o prazo previsto para a utilização.29
A estipulação de prazo para a autorização de uso constitui outra questão controvertida relativa ao tema.
A impossibilidade de fixação do prazo decorreria, segundo inúmeros autores,
da natureza precária da autorização.30 A rigor, esta não deve ser expedida com prazo
certo em razão da natureza dos eventos que justificam a sua utilização, os quais são de
natureza transitória. ou seja, a autorização é precária porque o uso a ser conferido ao
bem está vinculado à realização de evento de curta duração e em data certa. se particular
solicita, por exemplo, autorização de uso de bem público para a realização de evento
esportivo, este ocorrerá em dia certo e em hora certa. A autorização não deve ser concedida por um mês ou por um ano. se for expedida a autorização, ela deve simplesmente
indicar o momento — dia, hora e local — em que o evento será realizado. não há que
se falar, portanto, em prazo certo, mas em autorização para uso do bem público em dia
e hora certos e previamente indicados no ato que a formaliza.
Aspecto relacionado ao uso de bens públicos que mereceu atenção especial do
constituinte de 1988 diz respeito ao direito de livre reunião em locais abertos ao público.
Nos termos da Constituição Federal, “todos podem reunir-se pacificamente, sem
armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não
frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade competente” (CF, art. 5º, Xvi). Com essa regra, o
texto constitucional retira do administrador público a discricionariedade da decisão
de consentir ou de negar o direito de reunião em locais públicos e transforma o direito
de reunião em locais públicos em hipótese de uso ordinário dos bens de uso comum.
outro aspecto relevante acerca da autorização de uso diz respeito à desnecessidade
de realização de prévia licitação. não se tratando de contrato, a ela não se aplica a Lei nº 8.666/93.
se houver, todavia, interesse de mais de uma pessoa na utilização concomitante do bem,
deve ser instaurado procedimento que assegure isonomia e impessoalidade na escolha do
particular a ser favorecido. não necessariamente essa escolha deve ser feita com base em
critérios econômicos ou financeiros, que envolvam a apresentação de propostas de melhor
preço, mas que seja utilizado critério objetivo de escolha, ainda que se trate de sorteio.
Finalmente, a autorização de uso pode ser gratuita ou onerosa, conforme disponha
a legislação aplicável.
14.10.2 Permissão de uso
em termos conceituais, são apresentados dois critérios básicos para distinguir a
autorização de uso da permissão de uso.
29
30
di Pietro. Direito administrativo, p. 389.
É esse o ensinamento de CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 900.
683
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
684
de acordo com maria sylvia Zanella di Pietro e José dos santos Carvalho Filho,
a principal distinção entre os dois institutos reside no fim a ser dado ao bem, que no
caso da autorização de uso seria privado, ou seja, que seria transferido o uso privativo do bem a determinado particular tendo em vista o interesse deste, ao passo que
na permissão de uso ocorreria o trespasse do bem ao particular tendo por objetivo a
satisfação do interesse público.
Critério distinto é utilizado por Celso Antônio Bandeira de mello e marçal Justen
Filho. esses dois últimos autores defendem que o critério discriminatório entre os
institutos residiria no prazo de utilização do bem público. no caso da autorização de
uso, o bem seria utilizado por breves períodos (comícios, eventos esportivos, culturais
etc.), enquanto a permissão envolveria utilização por longos períodos (bancas de jornal,
quiosques, lanchonetes etc.).
vale a pena transcrever o ensinamento de marçal Justen Filho:
o ponto nodal da diferença reside na natureza transitória ou da utilização pretendida pelo
particular. Quanto menos transitória for a utilização pretendida, tanto maior deverá ser o
grau de compatibilidade entre a fruição privativa e as necessidades coletivas.
Assim, pode admitir-se que uma instituição pleiteie autorização para realizar festividade
que impeça o tráfego em uma via pública durante algumas horas. mas é pouco concebível
admitir permissão para instalar um restaurante numa rua e impedir o tráfego na via
pública durante meses.31
na disputa entre as duas vertentes, parece-nos mais acertado o critério de distinção utilizado pelos dois últimos autores, de que é o prazo de utilização do bem que
indicará o instrumento adequado, se autorização ou permissão de uso. igualmente
acertada, nos parece, a crítica que apresentam ao critério do interesse público ou privado para justificar a utilização de um ou do outro instituto. Perfeita, uma vez mais, a
assertiva que apresenta Justen Filho:
Não se afigura cabível estabelecer distinção entre autorização de uso e permissão de uso
fundada no interesse do particular. É problemático afirmar que a autorização é aplicável
nos casos em que o bem público se destina a satisfazer interesse do autorizado e que a
permissão é instrumento de produção de interesse coletivo. em todos os casos, o particular
busca realizar um interesse predominantemente não estatal, ainda que a atuação por ele
pretendida deva ser compatível com o Bem Comum.
Assim, quem solicita autorização para promover um comício em praça pública nutre
interesses similares àquele que pleiteia permissão para instalar uma banca de revistas.32
Apresentadas essas considerações acerca da distinção entre os dois institutos,
cumpre observar que os demais aspectos relacionados à formalização, à necessidade de
licitação, à gratuidade ou onerosidade, à precariedade e à discricionariedade relativos
à autorização de uso são igualmente aplicáveis à permissão de uso. nesse sentido, a
permissão de uso:
31
32
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 725.
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 725.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
- Formaliza-se por meio de ato administrativo;33
- deve ser precedida de procedimento que assegure aos possíveis interessados
no uso do bem idêntica oportunidade de obter a permissão, devendo a escolha
se pautar em critérios objetivos;
- Pode ser instituída em caráter gratuito ou oneroso, conforme disponha a legislação aplicável;
- Pode ser instituída com prazo certo (hipótese em que será denominada permissão qualificada ou condicionada) ou por prazo indeterminado — não obstante
a fixação de prazo nos pareça o critério mais justo no sentido de oportunizar
a outros o direito de igualmente usar o bem;
- somente será instituída se o poder público entender conveniente ou oportuno
o trespasse em caráter privativo do uso do bem público ao particular.
33
o art. 2º, caput, da Lei nº 8.666/93 determina que diversos contratos, dentre os quais expressamente menciona as
permissões, devem ser licitados. Ademais, a mesma Lei de Licitações em seu art. 17, i, “f”, indica situação em
que é dispensada a licitação para “a alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso,
locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no
âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos
ou entidades da administração pública” (grifos nossos).
As referências não se aplicam, é evidente, às permissões de serviço público, reguladas pela Lei nº 8.987/95. A
referência é feita efetivamente às permissões de uso de bens públicos, as quais, conforme dispõe a lei, devem ser,
como regra, precedidas de licitação. não obstante essas referências feitas à permissão de uso pela Lei das Licitações e dos Contratos Administrativos, mantemos nosso ponto de vista de que o instrumento jurídico adequado
para formalizar as permissões de uso é o ato administrativo. este dispositivo deve ser interpretado no sentido
de que, qualquer que seja a natureza do instrumento — que no caso é de ato administrativo e não de contrato
—, se houver competição entre possíveis interessados em obter o uso de imóvel por meio de permissão, ela deve
ser licitada.
diversa é a situação das permissões de serviço público, que, nos termos do art. 40 da Lei nº 8.987/95, formalizam-se
por meio de contrato de adesão.
A esse respeito, convém transcrever as judiciosas ponderações do exmo. ministro Benjamin Zymler, por ocasião
da prolação do Acórdão tCu nº 1.054/2004, Plenário, para quem haveria a necessidade de licitação nas permissões de uso tidas como qualificadas. eis a lição daquele administrativista:
“(...) o art. 2º da Lei nº 8.666/93 estabelece o seguinte:
‘As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas
as hipóteses previstas nesta Lei.’
Pela redação do dispositivo transcrito, observa-se que as permissões efetuadas pela Administração Pública somente
deverão ser objeto de licitação quando sua formalização for realizada por meio de contrato. É o caso, por exemplo,
das permissões de serviço público, contempladas pelo art. 175 da Constituição Federal.
Permissões de uso de bem público, em regra, manifestam-se por meio de ato administrativo unilateral, discricionário e precário. desta sorte, não há falar em procedimento licitatório. tais permissões não são abarcadas pelo
art. 2º da Lei de Licitações.
entretanto, desviando-se da regra geral, existem as permissões de uso qualificadas. Estas, eis que caracterizadas
pela existência da realização de benfeitorias por parte do permissionário e de prazo de término, aproximam-se
do instituto da concessão de uso. A existência de prazo, e também da realização das ditas benfeitorias, faz com
que a precariedade do ato diminua, de modo que, como dito, a permissão passe a se assemelhar à concessão de
uso. Essas permissões qualificadas, ao contrário das outras, devem ser precedidas de procedimento licitatório.
sofrem, portanto, a incidência do art. 2º da Lei de Licitações. neste sentido, permito-me citar maria sylvia
Zanella di Pietro (Direito administrativo, 17. ed., p. 591):
‘Além disso, a permissão de uso, embora seja ato unilateral, portanto excluído da abrangência do artigo 2º, às
vezes assume a forma contratual, com características iguais ou semelhantes à concessão de uso; é o que ocorre
na permissão qualificada, com prazo estabelecido. Neste caso, a licitação torna-se obrigatória. A Lei nº 8.666/93
parece ter em vista precisamente essa situação quando, no artigo 2º, parágrafo único, define como o contrato
como ‘todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja
um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a
denominação utilizada’. Quer dizer: ainda que se fale em permissão, a licitação será obrigatória se a ela for dada
a forma contratual, sendo dispensada a licitação na hipótese do art. 17, i, f, da Lei nº 8.666/93, alterada pela Lei
nº 8.883, de 8-6-94”.
685
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
686
em relação a este último item, cumpre observar que não é o fato de alguém
solicitar a expedição de uma permissão para funcionamento de banca de jornal ou de
lanchonete em área pública que se justifica a sua instituição. É necessário que o poder
público avalie a conveniência da transferência do uso desse bem a particular e, se houver
a possibilidade de mais de um interessado para esse uso, que seja instaurado procedimento que a todos assegure a oportunidade de participar do certame. Ademais, uma
vez instituída a permissão de uso, o poder público pode a qualquer tempo promover
a sua revogação, desde que o faça por meio de decisão devidamente motivada, nos
termos do art. 50, i e vi, da Lei nº 9.784/99.34
no plano federal, a Lei nº 9.636/98 indica, em seu art. 22, as hipóteses em que
deve ser utilizada a permissão de uso. dispõe a mencionada lei, em seu art. 22, que “a
utilização, a título precário, de áreas de domínio da união para a realização de eventos
de curta duração, de natureza recreativa, esportiva, cultural, religiosa ou educacional,
poderá ser autorizada, na forma do regulamento, sob o regime de permissão de uso,
em ato do Secretário do Patrimônio da União, publicado no Diário Oficial da União”.
o legislador cometeu evidente equívoco. As situações elencadas correspondem,
em tese, àquelas em que deve ser utilizada a autorização de uso — a ponto de a lei dispor
que “a utilização (...) poderá ser autorizada, na forma do regulamento, sob regime de
permissão de uso”. nos termos literais da lei, teríamos uma autorização formalizada
por meio de permissão!
do ponto de vista prático, em razão das semelhanças entre os dois institutos, a
utilização de um no lugar do outro não deve ensejar maiores discussões ou dificuldades.
trata-se de institutos formalizados por meio de atos administrativos discricionários e precários. Acertada, nesse ponto, a orientação defendida por José dos santos Carvalho Filho:
em suma, parece-nos hoje que o melhor e mais lógico seria uniformizar os atos sob um
único rótulo — seja autorização seja permissão de uso —, visto que a distinção atual causa
aos estudiosos mais hesitações do que precisão quanto à qualificação jurídica.35
As dificuldades para a correta distinção dos dois institutos somente se prestam
para conclusões equivocadas, de que são exemplo as observações feitas no processo
6.130/95 do Tribunal de Contas do Distrito Federal. Nestes autos foi afirmado que a
delegação a particular de área pública para funcionamento de bancas em feira de confecções poderia ser feita mediante “autorização de uso sem licitação. Contudo para a
permissão é obrigatória a licitação”.36
Evidente que não é a forma jurídica a ser utilizada que irá definir a necessidade
da realização da licitação ou de outro processo seletivo. nos termos da mencionada
decisão do mencionado tribunal de Contas, se para o mesmo objeto for utilizada a autorização, não haveria necessidade de licitação, ao passo que se for utilizada a permissão
34
35
36
stJ: “Administrativo – Autorização – Banca de jornais – revogação – inexistência de motivo – impossibilidade –
Anulação. A autorização conferida para exploração de banca de jornais e revistas só pode ser cancelada se houver
motivo superveniente que justifique tal ato. Existindo mais de uma banca no mesmo local, a revogação operada a
apenas uma delas fere o princípio da igualdade. tratando-se de ato arbitrário, é cabível sua anulação pelo Poder
Judiciário. recurso provido” (rms nº 9.437-rJ, 1ª turma. rel. min. Garcia vieira. Julg. 20.5.1999. DJ, 1º jul. 1999).
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 901.
Conforme mencionado por JACoBY FernAndes. Vade-mécum de licitações e contratos: legislação selecionada e
organizada com jurisprudência, notas e índices, p. 47.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
a licitação seria obrigatória. essa conclusão não é jurídica. o que impõe a instauração
de processo objetivo para a escolha do autorizatário ou do permissionário de uso é a
existência de competição. se houver mais de um interessado no uso da área, o princípio
constitucional da isonomia impõe a realização de procedimento objetivo e impessoal.
Mais acertada, nesse sentido, a Decisão nº 397/96, TCU, Plenário, em que se afirmou
que a delegação de uso de boxes em mercado público depende de licitação.
Feitos esses esclarecimentos, podemos definir a permissão de uso como o meio pelo
qual o poder público discricionariamente consente em que bem público possa ser usado, em
caráter privado e de modo continuado, por particular.37
14.10.3 Concessão de uso
14.10.3.1 Conceito e características
A concessão de uso é o contrato por meio do qual o poder público transfere a particular
o uso de bem público por período determinado.
Da definição acima, dois aspectos chamam a atenção para a caracterização do
instituto:
- A formalização ser feita por meio de contrato; e
- A necessária fixação de prazo certo.
esses dois aspectos permitem distinguir a concessão de uso da autorização e da
permissão de uso: estes dois últimos se formalizam por meio de ato administrativo,
ao passo que na concessão de uso a formalização é feita por meio de contrato. A autorização e a permissão de uso não necessariamente se sujeitam a prazo determinado; a
concessão de uso deve necessariamente observar a fixação de prazo.
A escolha entre autorização, permissão ou concessão de uso é matéria de política
legislativa. no plano federal, por exemplo, a Lei nº 9.636/98 indica as hipóteses em que
se deve utilizar cada um dos institutos.
As hipóteses em que se recomenda ao legislador a utilização da concessão de uso
são aquelas em que o particular necessita de segurança jurídica, que não lhe é conferida
pelo ato administrativo que formaliza a autorização e a permissão de uso. nas hipóteses
em que o particular-usuário do bem necessite realizar grandes investimentos, ele não
pode sujeitar-se a um regime que apresenta como uma das características a possibilidade de a qualquer tempo ser revogado pelo poder público. Para essas hipóteses, ou
seja, para conferir maior segurança àquele a quem será efetuado o trespasse do uso do
bem, é recomendável a utilização da concessão de uso que em razão da sua natureza
contratual somente poderá ser rescindida nas hipóteses previstas no art. 78 da Lei
nº 8.666/93, sendo igualmente aplicáveis as regras contidas no art. 79 da mesma lei,
37
stJ: “Administrativo. recurso ordinário em mandado de segurança. Permissão de uso de bem público. rescisão. ilegalidade ou abuso de poder inocorrência. Precariedade do ato concessivo. demonstração de descumprimento da avença. I - A permissão de uso de bem público configura ato administrativo precário, no qual o
particular está sujeito à rescisão unilateral do ato concessivo, desde que respeitados os critérios de oportunidade
e conveniência, de modo a atender ao interesse público, o que ocorreu na hipótese vertente. ii - A demonstração de descumprimento das cláusulas do termo de Permissão de uso de Bem Público, lavrada por técnico da
municipalidade, goza de fé pública, de modo a constituir prova que demonstra a motivação necessária do ato
rescisório. iii - recurso ordinário improvido” (rms nº 17.160-rJ, 1ª turma. rel. min. Francisco Falcão. Julg.
26.10.2004. DJ, 29 nov. 2004).
687
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
688
que indica as situações em que deve ocorrer o pagamento de indenização em razão da
rescisão do contrato.
sendo contrato, a concessão de uso deve ser precedida de licitação, nos termos
do art. 45, §1º, iv, da Lei nº 8.666/93.38
14.10.3.2 Concessão de direito real de uso
Costuma ser apresentada como modalidade especial de concessão de uso a concessão de direito real de uso, disciplinada pelo decreto-Lei nº 271/67.
dispõe o caput do art. 7º do mencionado decreto que “é instituída a concessão
de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo
ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização,
industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social”.
trata-se de hipótese de direito real resolúvel — e nesse ponto se diferencia da
concessão de uso, que se trata de direito pessoal, de natureza obrigacional — que se
resolve “antes de seu termo, desde que o concessionário dê ao imóvel destinação diversa
da estabelecida no contrato ou termo, ou descumpra cláusula resolutória do ajuste,
perdendo, neste caso, as benfeitorias de qualquer natureza”. o decreto-lei admite que
a concessão possa, “salvo disposição contratual em contrário”, ser transferida “por ato
inter vivos, ou por sucessão legítima ou testamentária, como os demais direitos reais
sobre coisas alheias, registrando-se a transferência”.
Admite, finalmente, o art. 8º do decreto-lei “a concessão de uso do espaço aéreo
sobre a superfície de terrenos públicos ou particulares, tomada em projeção vertical”.
A principal característica dessa modalidade especial de concessão está relacionada
à possibilidade de a Administração Pública indicar a finalidade específica que pretende
dar ao bem público: “urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra
utilização de interesse social”.
em razão da cláusula resolutória, se o concessionário originário, ou aquele que
o sucedeu, não der ao bem a finalidade especificada no termo do contrato, extingue-se
a concessão e o bem retorna ao poder público com todas as benfeitorias realizadas pelo
concessionário sem que este possa em relação àquelas pedir indenização.
Além da sua natureza de direito real, diferencia-se a concessão de direito real de
uso da concessão de uso igualmente em razão da possibilidade de ser fixada por prazo
indeterminado, o que não é admitido para esta última, que deve necessariamente ser
firmada por prazo certo.39
38
39
Mediante o Acórdão nº 2.844/2010, Plenário, o TCU afirmou a possibilidade legal de utilização da modalidade
pregão para a licitação destinada à outorga de concessões de uso de áreas comerciais em aeroportos.
tCu: “2. A concessão de uso, lato sensu, engloba duas modalidades: a concessão administrativa de uso e a concessão de direito real de uso. Por se tratar de institutos distintos, regem-se por normas próprias. Considerando
que a concessão de direito real de uso atribui o uso do bem público como um direito real, transferível a terceiros, requerendo, por isso, especial processo seletivo, mereceu destaque no estatuto das Licitações. Assim, a Lei
nº 8.666/1993 a contemplou em seu art. 23, §3º, sendo in verbis: ‘§3º A concorrência é a modalidade de licitação
cabível, qualquer que seja o valor de seu objeto, tanto na compra ou alienação de bens imóveis, ressalvado o
disposto no art. 19, como nas concessões de direito real de uso e nas licitações internacionais, admitindo-se neste
último caso, observados os limites deste artigo, a tomada de preços, quando o órgão ou entidade dispuser de
cadastro internacional de fornecedores ou o convite, quando não houver fornecedor do bem ou serviço no País’.
3. A concessão administrativa de uso, também denominada concessão comum de uso, apenas confere ao concessionário um direito pessoal, intransferível a terceiros. Daí a menor rigidez em sua contratação. A maior flexibilidade conferida ao Administrador não se confunde, contudo, com desnecessidade de realização do procedimento
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
14.10.3.3 Concessão de uso especial para fins de moradia
outra categoria especial apresentada como modalidade de concessão de uso de
bem público se trata da concessão de uso especial para fins de moradia.
o art. 183 da Constituição Federal dispõe acerca da usucapião especial de imóvel
urbano e confere àquele “que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para
sua moradia ou de sua família”, e desde que não seja proprietário de outro imóvel
urbano ou rural, o domínio do bem.
essa hipótese somente é aplicável aos que ocupem imóveis privados. no caso dos
bens públicos, em razão da vedação expressamente contida no §3º desde mesmo artigo
do texto constitucional, não se lhes aplica referida usucapião especial (disciplinada pelo
estatuto das Cidades – Lei nº 10.257/01).
Com o objetivo de realizar política social distributiva (ou compensatória), foi
editada a medida Provisória nº 2.220, em 2001. A lógica utilizada para a edição desta
mP foi a de que não seria justo assegurar aos ocupantes dos imóveis privados a usucapião especial e, em razão da inaplicabilidade desse instituto aos imóveis públicos,
não ser assegurado aos ocupantes destes últimos qualquer benefício ou compensação.
Com esse propósito, a mP nº 2.220, assegurou “àquele que, até 30 de junho de 2001,
possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e
cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o
para sua moradia ou de sua família, e desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural”, o direito à concessão de uso
especial para fins de moradia.
Merece referência a possibilidade da concessão especial para fins de moradia
ser outorgada de forma coletiva, nos termos do art. 2º da referida mP: “nos imóveis
de que trata o art. 1º, com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, que, até 30
de junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar
os terrenos ocupados por possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia
será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprietários ou
concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural”.40
40
licitatório, uma vez que caracterizada a predominância do interesse público sobre o particular, que fez com que a
jurisprudência pátria reiteradamente a proclamasse como um contrato tipicamente administrativo (a propósito, vide
Revista do Tribunal de Justiça de São Paulo, ns. 220, p. 273, 307, p. 237, 318, p. 172; e Revista do Tribunal de Alçada de São
Paulo, ns. 209, p. 352, e 240, p. 408).
4. nesse sentido, vale lembrar a abrangência do art. 2º da Lei nº 8.666/1993, que dispôs: ‘As obras, serviços, inclusive
de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta lei’.
5. Conforme se verifica, o mencionado art. 2º utilizou o termo ‘concessão’ referindo-se ao gênero, e não à espécie.
Assim o fazendo, tornou necessária a licitação em toda e qualquer concessão, seja ela ‘administrativa de uso’
ou ‘de direito real de uso’. o estatuto fez distinção apenas quanto à modalidade de licitação a ser empregada,
tornando obrigatória a realização de concorrência somente para as concessões de direito real de uso.” (decisão
nº 207/1995, 2ª Câmara)
trata-se de situação especial inserida no âmbito dos direitos coletivos, no sentido de que se reconhece a existência
de uma relação jurídica ainda que não seja possível identificar ou precisar o objeto da relação. Os direitos coletivos
são identificados em situações em que não é possível identificar com precisão os sujeitos da relação. Na hipótese
prevista na mencionada mP nº 2.220, os sujeitos são conhecidos, mas o objeto não pode ser discriminado entre seus
titulares. Reconhece-se, desse modo, a concessão de uso especial para fins de moradia de forma coletiva.
689
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
690
Podemos ainda apresentar como características dessa modalidade de concessão:
- É concedida por prazo indeterminado;
- É conferida de forma gratuita;
- O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido de cinco anos, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas;
- A concessão é transferível por ato inter vivos ou causa mortis.
O direito à concessão de uso especial para fins de moradia se extingue no caso
de o concessionário:
- dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família; ou
- Adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural.
Não obstante a medida provisória cuide da concessão especial para fins de
moradia, em seu art. 9º é prevista a possibilidade de ser concedida autorização de uso,
igualmente de forma gratuita, “àquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros
quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para fins comerciais”.
Distingue-se esta autorização de uso da concessão especial, em primeiro lugar, em
razão da finalidade a que cada uma se destina: enquanto a concessão de uso especial
se destina à moradia, a autorização, na hipótese, destina-se a fins comerciais. Ademais,
a concessão de uso especial é prevista na mP como direito subjetivo do ocupante do
imóvel público, sendo prevista, inclusive, a possibilidade de ser proposta ação judicial
para obrigar o poder público a instituí-la, ao passo que a autorização está prevista como
faculdade que o poder público poderá, no caso, negar.
Há autores, como marçal Justen Filho, que entendem que a concessão de direito
real de uso e a concessão de uso especial para fins de moradia não constituem modalidades
de concessão de uso, mas instrumentos substitutivos da alienação de bens públicos, como
direitos reais limitados. Afirma o autor que esses “institutos não se destinam a criar
situações anômalas ou excepcionais de utilização privativa ou exacerbada de bens
públicos dominicais por particular. trata-se, muito mais, de um meio alternativo para
o cumprimento pelo Estado de funções específicas. Em vez de alienar o bem a um particular, o Estado produz um direito real, cuja existência pode manter-se indefinidamente,
excluindo-se a extinção antecipada por conveniência administrativa”.41
Assiste inteira razão ao autor. As duas modalidades examinadas — concessão real
de uso e concessão especial de uso para fins de moradia — distinguem-se da concessão
de uso ordinária em razão de aspectos essenciais:
- elas asseguram ao usuário direto real sobre o bem por prazo indeterminado (no
caso da concessão de direito real de uso, é possível a fixação de prazo certo);
- A concessão ordinária de uso cria relação de direito pessoal formalizada por
meio de contrato por prazo necessariamente determinado.
Ademais, a instituição da concessão de uso está vinculada a situações em que o
poder público, entendendo necessário ou conveniente que determinado bem público
seja explorado por particular, realiza a licitação para escolha do concessionário, ao
passo que as duas modalidades especiais aqui referidas são instituídas em razão de
situações relacionadas à exploração dos imóveis públicos por prazo indeterminado
e para fins determinados, os quais estão relacionados ao interesse social existente na
destinação do bem.
41
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 727.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
14.10.4 Cessão de uso
A cessão de uso de bens públicos é instrumento utilizado para viabilizar a cooperação entre órgãos ou entidades públicos.
essa hipótese foi prevista no art. 64, §3º do decreto-Lei nº 9.760/46, que ao disciplinar a utilização de bens da união dispõe, in verbis:
A cessão se fará quando interessar à união concretizar, com a permissão da utilização
gratuita de imóvel seu, auxílio ou colaboração que entenda prestar.
Assim, quando for julgado conveniente, determinado órgão poderá ceder o uso
de espaços em edifícios públicos a fim de que outro órgão possa desenvolver atividade
que interesse às duas unidades administrativas. seria o caso, no exemplo citado por José
dos santos Carvalho Filho, de “o tribunal de Justiça ceder o uso de determinada sala
do prédio do foro para o uso de órgão de inspetoria do tribunal de Contas”.42
o instituto encontra-se disciplinado no art. 18 da Lei nº 9.636/98, com redação alterada pela Lei nº 11.481/07, que estabelece as situações e condições para a cessão de imóveis
públicos. Admite a lei que a cessão possa ser feita sob regime de concessão de direito real
de uso nas hipóteses em que o cessionário se tratar de:
- Estados, Distrito Federal, Municípios e entidades sem fins lucrativos das áreas
de educação, cultura, assistência social ou saúde;
- Pessoas físicas ou jurídicas, em se tratando de interesse público ou social ou
de aproveitamento econômico de interesse nacional.
vê-se que a lei ampliou as hipóteses de utilização da cessão de uso. de instituto
destinado à colaboração entre órgãos públicos, hoje pode ser utilizado para permitir
que particulares possam igualmente dele se servir para a realização de empreendimentos, ainda que haja fim lucrativo. Nesta hipótese, a cessão “será onerosa e, sempre
que houver condições de competitividade, deverão ser observados os procedimentos
licitatórios previstos em lei”.
em conclusão, além das hipóteses de colaboração entre órgãos públicos, a cessão
pode ser utilizada como instrumento para viabilizar que bens públicos possam ser
utilizados por particulares para atender a interesses coletivos ou sociais.43
42
43
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 908.
Caso interessante de cessão de uso apreciado pelo tribunal de Contas da união refere-se a processo de representação em que se discutiu a possibilidade jurídica de utilização de espaços públicos do Senado Federal, para fins
privados dos partidos políticos e das respectivas fundações e institutos. veja-se o excerto do voto que conduziu
o Acórdão nº 2.289/2005, Plenário:
“em princípio, a utilização de espaços do Senado Federal para fins privados das entidades partidárias e institutos a elas vinculados não caracteriza, propriamente, desvirtuamento das finalidades preordenadas para aqueles
bens públicos de uso especial. Não se cogita, na espécie, do emprego de imóveis em finalidades completamente
estranhas às atribuições daquela casa legislativa.
Ao contrário, ainda que tais entidades associativas utilizem os imóveis para o desenvolvimento de ações privadas,
os seus trabalhos, em última instância, têm nítido contorno público, na medida em que se destinam a fortalecer as
legendas partidárias a que se acham jungidas e a promover a memória de importantes referências democráticas e
republicanas. Portanto, também nesse aspecto, a representação deve ser considerada improcedente.
nesse passo, à guisa de orientação, convém estabelecer o instrumento jurídico mais adequado à utilização desses bens de uso especial pelo senado Federal.
tanto a autorização quanto a permissão de uso são autorizações unilaterais e precárias, destinadas normalmente
a eventos de curta duração, as quais não se harmonizam com as atividades permanentes desenvolvidas por
essas sociedades civis.
691
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
14.10.5 Formas de delegação de uso do direito Privado: bens dominicais
dispõe o art. 99, parágrafo único, do Código Civil, que “não dispondo a lei em
contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito
público a que se tenha dado estrutura de direito privado”. Como já observado, o disposto
no mencionado dispositivo do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que
somente os bens dominicais — em razão da sua não afetação — podem sujeitar-se às
estruturas do direito Privado. ou seja, somente essa categoria de bens públicos pode
ter seu uso disciplinado pelas formas jurídico-privadas.
todos os bens públicos — de uso comum, de uso especial e dominicais — podem
admitir que seu uso seja objeto de delegação a particulares para serem utilizados em
caráter privado. nos dois primeiros casos — de bens de uso comum e de uso especial
—, todavia, nas hipóteses em que caiba o trespasse do uso, este somente pode ser feito
por meio dos instrumentos disciplinados pelo direito Público (autorização de uso,
Gize-se que algumas dessas instituições ocupam imóveis do senado Federal há mais de 20 anos, como é o caso
do Partido da Frente Liberal.
embora as atividades desenvolvidas por essas entidades tenham por fim mediato subsidiar os trabalhos de
parlamentares cuja legenda representam, não atendem estritamente ao interesse da coletividade, integrante da
Administração Pública daquela Casa Legislativa, o que contraria a natureza desses mecanismos de uso de bens
públicos.
também não se justifica a utilização dos espaços públicos em espécie pelo instituto da concessão de uso. Esse
instrumento tem por finalidade estabelecer relação contratual necessária à realização de atividades de utilidade
pública de maior vulto, a exigir certa estabilidade das relações jurídicas. não é o caso dos partidos políticos e
respectivas fundações, quanto ao desenvolvimento de suas atividades privativas. embora essas entidades realizem trabalhos de grande e inquestionável relevância, suas atividades não podem ser caracterizadas como de
utilidade pública a demandar significativos investimentos que somente seriam amortizáveis por intermédio de
relações contratuais estabelecidas.
Finalmente, verifico na cessão de uso o título mais apropriado à ocupação dos espaços físicos do Senado Federal,
tendo em vista as finalidades mencionadas na representação.
A utilização desses bens imóveis não desnatura os fins para os quais aqueles prédios públicos foram concebidos,
a qual também foi caracterizada pela autoridade administrativa competente como típica atividade de apoio do
senado Federal, conforme autorizam o art. 20 da Lei 9.636/98 e o art. 12, inciso vi, do decreto 3.725/2001.
outro aspecto relevante que confere legitimidade aos atos administrativos praticados pelo senado Federal refere-se
ao fato de as cessões de uso ora questionadas terem sido deferidas a título oneroso, o que afasta qualquer possibilidade de prejuízo ao erário advindo dessas ocupações. embora tais entidades desenvolvam atividades sem
fins lucrativos, não estão sendo beneficiadas com nenhuma utilização gratuita de prédio público.
A esse respeito, o art. 18, §3º, da Lei 9.363/98 exige da autoridade administrativa que as cessões para a execução
de empreendimentos de fins lucrativos sejam realizados a título oneroso e, sempre que houver condições de
competitividade, precedidos de procedimentos licitatórios previstos em lei. nos casos em análise, além de não
haver cessão de uso gratuita a entidades associativas, mesmo consideradas sem fins lucrativos, não restaram
caracterizadas as condições que frustrassem a realização de uma licitação pública. Refiro-me ao fato de não estar
caracterizado, nos autos, uma demanda de todos os partidos e entidades a eles vinculadas para a utilização de
bens imóveis do senado Federal com vistas ao desenvolvimento de suas atividades privadas.
se ocorrer essa hipótese, isto é, diante da impossibilidade de o senado Federal acolher a eventuais requisições de
cessão de uso por todas as entidades da espécie e dada a escassez de espaços físicos não-utilizados pela Administração Pública para o atendimento daquelas solicitações, deverá a autoridade administrativa competente deflagrar
o certame público, conforme determina o art. 18, §3º, in fine, da Lei 9.363/98.
em arremate, não há, nos autos, indícios veementes de que a administração do senado Federal não tenha adotado os procedimentos necessários e preliminares às cessões de uso ora impugnadas, previstas no art. 13, do
decreto 3.725/2001, o qual regulamentou a Lei 9.636/2001.
dentre essas condições, destaco a disponibilidade de espaço físico, de forma que não venha a prejudicar a atividadefim da repartição; inexistência de qualquer ônus para a União, sobretudo no que diz respeito aos empregados da
cessionária; compatibilidade de horário de funcionamento da cessionária com o horário de funcionamento do órgão
cedente; obediência às normas relacionadas com o funcionamento da atividade e às normas de utilização do imóvel;
precariedade da cessão, que poderá ser revogada a qualquer tempo, havendo interesse do serviço público, independentemente de indenização; participação proporcional da cessionária no rateio das despesas com manutenção,
conservação e vigilância do prédio.”
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
permissão de uso, concessão de uso ou cessão de uso). no caso dos bens dominicais,
ou seja, quando se tratar de bens não afetados ao uso comum do povo ou às estruturas
administrativas do estado, em razão do que dispõe o Código Civil (art. 99, parágrafo
único), a delegação do uso aos particulares pode ser feita tanto por meio das formas
jurídico-públicas (concessão de uso, permissão de uso etc.), como por meio das formas
privadas.
Deve ser observado, todavia, que na eventualidade de conflito entre norma de
direito Privado, de caráter geral, de que seria exemplo a Lei de Locações (Lei nº 8.245/91),
e norma pública, de caráter especial, evidentemente prevalece esta última. Assim, no
caso de locação de imóveis da união, por exemplo, em razão de o decreto-Lei nº 9.760/46
estabelecer regras especiais sobre locações de imóveis pertencentes a essa entidade federal, deverão necessariamente ser observadas as normas do direito Público não obstante
o imóvel a ser locado se trate de bem dominical.
A regra prevista no art. 99, parágrafo único, do Código Civil, que admite a utilização das formas privadas para regular o uso dos bens dominicais, deve ser examinada,
portanto, como autorização genérica à utilização dos instrumentos jurídico-privados
somente na eventualidade de não existir norma pública específica.
Assim, se determinado município brasileiro, por hipótese, não possuir regra
especial sobre a locação dos seus bens imóveis, pode ser utilizada a Lei de Locações (Lei
nº 8.245/91). no caso da união, em razão da vigência do decreto-Lei nº 9.760/46, ainda
que se trate de bem dominical, são aplicáveis as regras específicas do Direito Público.
são previstas no direito Privado como formas que admitem a delegação do uso
de bens a terceiros a enfiteuse, a locação e o comodato.
examinaremos, em seguida, cada um desses instrumentos.
nos termos do art. 12 da Lei nº 9.636/98, “os imóveis dominiais da união, situados em zonas sujeitas ao regime enfitêutico, poderão ser aforados, mediante leilão ou
concorrência pública, respeitado, como preço mínimo, o valor de mercado do respectivo
domínio útil” (grifos nossos).
o regime da enfiteuse, ou do aforamento, não foi, todavia, recepcionado pelo
Código Civil de 2002, que se restringiu a admitir como válidos os já instituídos. nesse
sentido, não obstante a Lei nº 9.636/98 seja especial em face do Código Civil, não há como
admitir a possibilidade de serem instituídas novas enfiteuses sobre bens públicos, haja
vista se tratar de hipótese em que o estado se serve do direito Privado para regular a
delegação de seus bens a particulares. ora, se no âmbito do próprio direito Privado não
é mais admitida a instituição dessa forma jurídica, o mesmo não mais poderá ocorrer
com a Administração Pública.
outra hipótese de utilização de instrumento do direito Privado para a delegação
de uso de bem público é a locação.
de se observar, todavia, que o regime jurídico a que se submete a locação dependerá
do que dispuser a legislação vigente em cada esfera de governo — conforme observado.
No plano federal, o Decreto-Lei nº 9.760/46 expressamente define as regras que
irão regular as locações dos bens da união.
Admite referida legislação que os bens da união possam ser alugados:
i - Para residência de autoridades federais ou de outros servidores da união,
no interesse do serviço;
ii - Para residência de servidor da união, em caráter voluntário;
iii - A quaisquer interessados.
693
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
694
Define ainda o mencionado decreto-lei (art. 89, §2º) que “a rescisão poderá ser
feita em qualquer tempo, por ato administrativo da União, sem que esta fique por isso
obrigada a pagar ao locatário indenização de qualquer espécie, excetuada a que se refira
a benfeitorias necessárias”.
Em razão da aplicação dessas regras específicas, observa Celso Antônio Bandeira
de mello, que “resta ver se alguém se interessaria em locar sob tais condições”.44
o comodato constitui outra hipótese de utilização de instrumento privado para a
delegação de bens públicos a particulares.
nos termos do art. 579 do Código Civil, trata-se “de empréstimo gratuito de coisa
não fungível”. nesse ponto, o comodato se diferencia da locação, que constitui contrato
oneroso. distingue-se da cessão de uso, por outro lado, porque nesta o cessionário pode
ser outro órgão ou entidade pública e também entes privados, enquanto no comodato
o comodatário é exclusivamente entidade privada.45
44
45
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 821.
do ponto de vista jurídico, assiste inteira razão o ilustre professor Bandeira de mello. do ponto de vista prático,
todavia, não faltam interessados em alugar bens da união. isto não se deve às razões jurídicas apontadas pelo
ilustre autor, mas à absoluta falta de organização da secretaria do Patrimônio da união, órgão responsável pela
administração dos bens desta entidade política. Poucos setores da Administração Pública são tão absurdamente
geridos quanto o patrimônio da união. em razão disso, os que locam bens federais contam com a incapacidade
da Administração Pública federal de sequer cobrar seus aluguéis. em muitos casos, a sPu sequer sabe que o
bem foi alugado, conforme tem sido constatado pelo tribunal de Contas da união em inúmeras auditorias.
Quanto à utilização indevida do contrato de comodato para reger relações entre entes públicos, destaca-se excerto
do voto que fundamentou o Acórdão nº 1.817/2004, 1ª Câmara, proferido nos autos do tC nº 002.411/2000-5, da
relatoria do min. Augusto sherman Cavalcanti, em que se discutia a substituição dos contratos de comodato celebrados pela FunAsA com os estados e municípios por termos de cessão de uso, in verbis:
“6. em primeiro lugar, ainda que não exista legislação que regule a aplicação da cessão de uso para os bens das
fundações públicas, há que se reconhecer que isso não deixa espaço para que o administrador haja com inteira
discricionariedade na escolha do instituto mais adequado a suprir a lacuna normativa em relação à situação
fática. requer-se, nesse caso, um exercício de integração face às normas existentes, buscando-se, por meio dos
métodos de interpretação, aquela que melhor se ajusta ao caso concreto.
7. Assim, existindo instrumentos do direito privado, tal como o comodato, e de direito público, tal como a cessão de uso, ainda que tratando apenas de imóveis pertencentes à união, conforme disposto pelo decreto-Lei
9.760/46, uma simples interpretação analógica é suficiente para demonstrar que a norma que melhor se aplica
à cessão dos imóveis da fundação aos estados e municípios é a cessão de uso, a uma, por se tratar de instituto
do direito público, adequado, portanto, à Administração Pública; a duas, pelas suas vantagens em relação ao
comodato, tal como a possibilidade de a entidade reaver a posse do imóvel a qualquer tempo, sem necessidade
de decisão judicial, medida necessária no comodato, conforme reza o art. 581 do Código Civil de 2002.
8. Ademais, para o caso da cessão de bens imóveis pela Administração Pública, é assente neste tribunal a jurisprudência de que o instituto do comodato não é aplicável, por pertencer ao ramo do direito privado, devendo
ser utilizado em seu lugar a cessão de uso. nesse sentido, podemos citar diversas decisões prolatadas por esta
Corte de Contas, tais como as decisões Plenárias 688/1998, 211/2000, 422/2000 e 426/2000, apenas para mencionar algumas.
9. Quanto à questão suscitada de que a cessão de uso somente poderia ser utilizada para os bens dominicais,
conforme doutrina de maria sylvia Zanella di Pietro, tal entendimento esposado pela ilustre administrativista
tem claramente como base o caput do art. 64 do decreto-Lei 9.760/46:
‘Art. 64. os bens imóveis da união não utilizados em serviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza,
alugados, aforados ou cedidos.’
10. Por outro lado, o art. 18 da Lei 9.636/98, que dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da união, estabelece:
‘Art. 18. A critério do Poder executivo poderão ser cedidos, gratuitamente ou em condições especiais, sob qualquer dos regimes previstos no decreto-Lei no 9.760, de 1946, imóveis da união a:
i - Estados, Municípios e entidades, sem fins lucrativos, de caráter educacional, cultural ou de assistência social; (...)’
11. Conforme pode ser verificado nesse dispositivo mais atual sobre a matéria, não há nenhuma referência
sobre a afetação do imóvel a ser cedido. Assim, entendo que essa nova legislação estendeu aos imóveis de uso
especial, que é o caso em tela, a aplicação do instituto da cessão de uso. observe-se que a hipótese do inciso i do
referido artigo enquadra-se exatamente na situação enfrentada pela Funasa. de qualquer forma, esse é mais um
impeditivo ao uso do comodato, já que esse instituto, sim, somente pode ser aplicado aos bens dominicais.”
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
em razão da gratuidade, o comodato não pode ser utilizado em situações que
envolvam interesses econômicos dos particulares comodatários. seu uso deve ser restrito, e é necessário que se justifique o interesse público na utilização de área pública
por entidade privada sem fim lucrativo.
14.11 Alienação de bens
As regras básicas acerca das alienações dos bens públicos estão previstas na Lei
nº 8.666/93 que, em seu art. 17, indica os critérios que diferenciam a alienação dos bens
imóveis da alienação dos bens móveis.
no caso de se tratar de bens imóveis, a alienação dependerá de:
- Interesse público devidamente justificado;
- Avaliação prévia;
- Autorização legislativa (regra aplicável somente para a Administração Pública
direta, autarquias e fundações públicas); e
- Licitação na modalidade de concorrência (que é dispensada nas hipóteses
enumeradas no art. 17, i, da Lei nº 8.666/93).46
Quando se tratar de bens móveis, a alienação dependerá de:
- interesse público;
- Avaliação prévia; e
- Licitação na modalidade de leilão (sendo obrigatória a realização de licitação
na modalidade de concorrência caso o valor dos bens móveis seja superior a
r$650 mil – art. 17, §6º, e sendo dispensada a realização de licitação nos casos
mencionados no art. 17, ii, da Lei nº 8.666/93).47
os meios jurídicos de que se pode servir a Administração Pública para alienar
seus bens são a venda, a doação, a permuta e a dação em pagamento.48
14.12 Aquisição de bens
A aquisição de bens pela Administração Pública pode ser feita por meio de instrumentos regidos pelo Direito Público ou pelo Direito Privado.
dentro das hipóteses regidas pelo direito Privado, destacam-se os contratos. Por
meio da compra, da doação, da permuta ou da dação em pagamento é viabilizada a
aquisição de bens pela Administração Pública.
46
47
48
no caso de o imóvel ter sido adquirido por meio de dação em pagamento ou de ação judicial, o poder público
poderá revendê-lo por meio de leilão, nos termos do art. 19 da Lei nº 8.666/93.
Para maiores considerações acerca das hipóteses de licitações dispensadas para a alienação dos bens públicos,
remetemos o leitor para o Capítulo 7.
A Lei de Licitações, em seu art. 17, menciona a investidura como categoria especial de alienação distinta da venda.
Na verdade, a investidura é uma hipótese de venda de bens sem licitação. O art. 17, §3º, da Lei de Licitações define
investidura como:
“i - a alienação aos proprietários de imóveis lindeiros de área remanescente ou resultante de obra pública, área
esta que se tornar inaproveitável isoladamente, por preço nunca inferior ao da avaliação e desde que esse não
ultrapasse a 50% (cinqüenta por cento) do valor constante da alínea ‘a’ do inciso II do art. 23 desta lei;
ii - a alienação, aos legítimos possuidores diretos ou, na falta destes, ao Poder Público, de imóveis para fins residenciais construídos em núcleos urbanos anexos a usinas hidrelétricas, desde que considerados dispensáveis na
fase de operação dessas unidades e não integrem a categoria de bens reversíveis ao final da concessão”.
695
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Curso de direito AdministrAtivo
696
em razão da aplicação das regras do direito Privado, o contrato não transfere,
mas apenas viabiliza a transferência da propriedade do bem móvel ou imóvel. Quando
a aquisição do bem decorrer de instrumentos do direito Privado, a transferência da
propriedade, nos exatos termos do Código Civil, somente ocorrerá, no caso de imóvel,
em razão do registro imobiliário (art. 1.245); e em se tratando de bens móveis, com a
tradição (art. 1.267).
das modalidades contratuais, a mais usual é a compra, que, nos termos do art. 37,
XXi, da Constituição Federal deve, ressalvadas as hipóteses previstas em lei, ser precedida de procedimento licitatório.
As compras celebradas pelo poder público se submetem às regras do direito
Privado, conforme expressamente determina a Lei de Licitações, que, em seu art. 15,
iii, dispõe que as compras celebradas pelo poder público deverão “submeter-se às
condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado”.
Há, no entanto, regras específicas previstas na própria Lei de Licitações que
impõem às compras de bens imóveis ou de bens móveis (às quais a Lei de Licitações se
refere como contrato de fornecimento) a observância de determinados padrões definidos
pelo direito Público. o primeiro diz respeito ao próprio dever de realizar licitação, ou,
nas hipóteses de dispensa ou de inexigibilidade,49 de justificar, nos termos do art. 26
da Lei de Licitações, a razão da escolha do fornecedor ou executante e o preço, dentre
outras exigências.
Caso se trate de compra de bens móveis, a Lei de Licitações determina que elas
devem ainda (art. 15):
i - Atender ao princípio da padronização, que imponha compatibilidade de
especificações técnicas e de desempenho, observadas, quando for o caso, as
condições de manutenção, assistência técnica e garantia oferecidas;
ii - ser processadas através de sistema de registro de preços;
iii - submeter-se às condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor
privado;
iv - ser subdivididas em tantas parcelas quantas necessárias para aproveitar as
peculiaridades do mercado, visando economicidade;
v - Balizar-se pelos preços praticados no âmbito dos órgãos e entidades da
Administração Pública.
As compras de bens pela Administração Pública se diferenciam daquelas celebradas no setor privado também em relação ao momento em que se considera liberado o
vendedor. no âmbito privado, ressalvadas as hipóteses de vício redibitório e da evicção
(Código Civil, artigos 441 e 447, respectivamente), a liberação do vendedor ocorre com
a tradição. no âmbito da Administração Pública, a Lei de Licitações (art. 73) distingue
o recebimento provisório do recebimento definitivo e determina que a tradição dos
bens seja considerada mero recebimento provisório (art. 73, ii, “a”). somente com o
recebimento definitivo dos bens — que ocorre “após a verificação da qualidade e quantidade do material e conseqüente aceitação” pela Administração — reputa-se liberado
o vendedor. Ou seja, não obstante a tradição transfira a propriedade dos bens ao poder
49
Podem-se citar como exemplos a aquisição de bem móvel de fornecedor exclusivo (art. 25, i) ou a compra de
imóvel “destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação
e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo
avaliação prévia” (art. 24, X).
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
público, ela não desonera o vendedor. A rigor, a própria Lei de Licitações (art. 73, §2º)
determina que “o recebimento provisório ou definitivo não exclui a responsabilidade
civil pela solidez e segurança da obra ou do serviço, nem ético-profissional pela perfeita execução do contrato, dentro dos limites estabelecidos pela lei ou pelo contrato”.
Ainda em relação à utilização dos instrumentos privados para regular a incorporação
de bens ao patrimônio público, merece menção o disposto no Código Civil (art. 1.822), que
trata da declaração de vacância da herança. dispõe este artigo do Código que “a declaração
de vacância da herança não prejudica os herdeiros que legalmente se habilitarem; mas,
decorridos cinco anos da abertura da sucessão, os bens arrecadados passarão ao domínio do município ou do distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições,
incorporando-se ao domínio da união quando situados em território federal”.
não é correto, portanto, apontar o poder público como herdeiro, ou que ele
adquire a propriedade de bens por força de herança. Ao contrário, se a herança for
declarada vaga, os bens que a compõem podem vir a integrar o patrimônio público,
nos termos indicados pelo Código Civil, em razão do decurso do tempo (cinco anos
contados da abertura da sucessão).
Alguma discussão existe em relação à possibilidade de o poder público adquirir
bens em razão de usucapião. essa controvérsia, todavia, nos parece mal apresentada,
conforme examinaremos em seguida.
É indiscutível que o poder público pode desapropriar, e é igualmente indiscutível
o reconhecimento pela jurisprudência pátria do instituto denominado desapropriação
indireta — apesar deste último nos parecer absurdamente inconstitucional.
A rigor, os dois institutos — usucapião e desapropriação indireta — guardam
imensa pertinência, conforme será examinado em seguida. Antes, porém, algumas
considerações acerca da desapropriação indireta se fazem necessárias.
Conforme examinamos no Capítulo 13, os tribunais têm reconhecido a ocorrência da desapropriação indireta quando a Administração Pública, sem a observância
dos procedimentos previstos na Constituição Federal para a desapropriação, impede
o proprietário de determinado imóvel de usar o bem. Assim, se em razão da execução
de obras públicas em propriedade privada, por exemplo, for impossível a restituição
do bem ao antigo dono, entende-se que o poder público dele se tornou proprietário
e que ao antigo proprietário deve ser simplesmente assegurado o direito de pleitear
indenização. ou seja, na desapropriação indireta, é a criação de situação de fato imputável à Administração Pública, situação que impeça o particular de usar o bem, e não o
exercício de posse mansa e pacífica durante determinado prazo, que transfere ao poder
público a propriedade do bem.50
A interpretação dada ao art. 35 do decreto-Lei nº 3.365/41 pela jurisprudência
é no sentido de que “os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública,
50
sobre o tema, maria sylvia Zanella di Pietro (Direito administrativo) assevera: “Quando o particular não pleiteia
a indenização em tempo hábil, deixando prescrever o seu direito, o Poder Público, para regularizar a situação
patrimonial do imóvel, terá de recorrer à ação de usucapião, já que a simples afetação do bem a um fim público não constitui
forma de transferência da propriedade. desse modo, quando se aplica à desapropriação indireta a regra do artigo 35
do decreto-Lei 3.365/41, há que se entender que essa aplicação se faz por analogia, já que essa desapropriação não
é medida suficiente para incorporar o bem à Fazenda Pública”. Registro que, em sentido contrário, encontramos
a opinião de José Carvalho dos santos Filho (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 688), para quem “é a
incorporação [do bem ao patrimônio público] que ocasiona a transferência da propriedade para o Poder Público”.
tanto isso é verdade, esclarece o autor, que “a única discussão plausível após a desapropriação indireta diz
respeito ao valor da indenização a que faz jus o ex-proprietário”.
697
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698
não podem ser objeto de reivindicação”. este trecho do dispositivo legal importaria,
segundo a jurisprudência, em reconhecimento pelo ordenamento jurídico do instituto
da desapropriação indireta. esta interpretação, que não é consentânea com a Constituição Federal tanto no que concerne à proteção ao direito de propriedade quanto em
relação às regras constitucionais relativas à desapropriação — que pressupõe indenização
prévia, justa e em dinheiro —, tem apenas servido para legitimar o esbulho por parte
da Administração Pública.51
Caso o estado execute obras em propriedade privada, ou por qualquer outro
meio impeça o particular de usar sua propriedade sem a observância dos procedimentos previstos em lei e na própria Constituição Federal, os tribunais deveriam assegurar
ao proprietário a restituição dos bens aos seus legítimos proprietários por meio das
cabíveis ações possessórias. em vez disso, tem-se reconhecido que os bens esbulhados
pelo poder público passam a integrar a Fazenda Pública, o que legitima a infeliz desapropriação indireta e deixa para o proprietário tão somente a possibilidade de propor
ação de indenização pela perda da propriedade.
dever-se-ia, ao contrário, entender que a regra contida no mencionado art. 35
do decreto-Lei nº 3.365/41 somente é aplicável às hipóteses em que tenha efetivamente
sido instaurado procedimento de desapropriação, e que este procedimento tenha sido
anulado. Aliás, é isto o que dispõe o mencionado art. 35: “os bens expropriados, uma
vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que
fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente,
resolver-se-á em perdas e danos”.
ora, esse malsinado dispositivo pressupõe:
1. A ocorrência do procedimento desapropriatório;52
51
52
no mesmo sentido, José Carvalho dos santos Filho (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 683) adverte que
a desapropriação indireta “trata-se de situação que causa tamanho repúdio que, como regra, os estudiosos a
têm considerado verdadeiro esbulho possessório. Com efeito, esse mecanismo, a despeito de ser reconhecido
na doutrina e na jurisprudência, e mais recentemente até por ato legislativo, não guarda qualquer relação com
os termos em que a Constituição e a lei permitiram o processo de desapropriação. Primeiramente, porque a
indenização não é prévia, como exige a Lei maior. depois, porque o Poder público não emite, como deveria, a
necessária declaração indicativa de seu interesse. Limita-se a apropriar-se do bem e fato consumado!” (grifos nossos).
em sentido contrário, entendendo que a ocorrência de procedimento desapropriatório não é necessária para a
configuração da desapropriação indireta, o STJ decidiu: “Administrativo. Criação do Parque Estadual da Serra
do mar (decreto estadual 10.251/77). desapropriação indireta. Pressupostos: apossamento, afetação à utilização
pública, irreversibilidade. não-caracterização. (...) 3. A chamada ‘desapropriação indireta’ é construção
pretoriana criada para dirimir conflitos concretos entre o direito de propriedade e o princípio da função social
das propriedades, nas hipóteses em que a Administração ocupa propriedade privada, sem observância de prévio
processo de desapropriação, para implantar obra ou serviço público. 4. Para que se tenha por caracterizada
situação que imponha ao particular a substituição da prestação específica (restituir a coisa vindicada) por
prestação alternativa (indenizá-la em dinheiro), com a conseqüente transferência compulsória do domínio ao
Estado, é preciso que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes circunstâncias: (a) o apossamento do bem
pelo estado, sem prévia observância do devido processo de desapropriação; (b) a afetação do bem, isto é, sua destinação
à utilização pública; e (c) a impossibilidade material da outorga da tutela específica ao proprietário, isto é,
a irreversibilidade da situação fática resultante do indevido apossamento e da afetação. 5. no caso concreto,
não está satisfeito qualquer dos requisitos acima aludidos, porque (a) a mera edição do decreto 10.251/77 não
configura tomada de posse, a qual pressupõe necessariamente a prática de atos materiais; (b) no plano jurídiconormativo, muito pouco foi inovado, com a edição do decreto, em relação ao direito de propriedade da autora,
cujo conteúdo era delimitado por normas constitucionais (arts. 5º, XXii e XXiii, 170 e 225) e pela legislação
ordinária (Código Florestal, Lei de Parcelamento do solo), tendo o citado decreto apenas declarado de utilidade
pública as áreas particulares compreendidas no Parque por ele criado, tornando-as passíveis de ulterior processo
expropriatório — o qual, no entanto, no que se refere às terras da autora, jamais veio a se concretizar. 6. não se
pode, salvo em caso de fato consumado e irreversível, compelir o estado a efetivar a desapropriação, se ele não
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
2. Que os bens tenham sido incorporados ao patrimônio público; e
3. Que o procedimento desapropriatório tenha sido anulado.
totalmente distintas são as situações em que nossos egrégios tribunais têm entendido aplicável a regra segundo a qual, “uma vez incorporados [os bens] à Fazenda Pública,
não podem ser objeto de reivindicação”, e de que “qualquer ação (...) resolver-se-á em
perdas e danos”.
A posição que defendemos é a seguinte: instaurado procedimento desapropriatório, se for autorizada pelo juiz a imissão provisória na posse, se forem executadas obras
públicas na propriedade privada e se, posteriormente, o procedimento desapropriatório
for anulado, aplica-se o disposto no mencionado art. 35 do decreto-Lei nº 3.365/41, que
preceitua que o bem não pode ser objeto de reivindicação, cabendo ao proprietário pedir
tão somente indenização pela perda do bem.
Com efeito, se o poder público, sem a observância dos procedimentos legais e
constitucionais, executa obras em propriedade privada, deve ser assegurado ao proprietário, como regra, o direto de reaver os bens, cabendo ao poder público o direito
de pedir indenização pelas benfeitorias realizadas, nos termos do Código Civil, artigos
1.219 e 1.220.
Não obstante, os tribunais não demonstram qualquer tendência de modificar a
interpretação dada ao dispositivo, interpretação que, em nosso sentir, além de equivocada, é inconstitucional.
diante desse quadro, resta-nos apenas distinguir a desapropriação indireta da
usucapião como meios hábeis à aquisição de bens pela Administração Pública.
Para que o poder público pudesse usucapir determinado imóvel, além da execução das obras, haveria a necessidade de que a posse se estendesse pelo prazo de 15
anos, nos termos do art. 1.238 do Código Civil.
isto, todavia, não é exigido do poder público.
Para melhor esclarecer a questão, podemos apresentar, a título de exemplo,
situação em que o poder público ocupa propriedade privada há um ano e nela executa
obras. se a restituição do bem ao particular importar em prejuízo à utilização pública
que lhe foi dada, o bem já se considera integrado ao patrimônio público, cabendo ao
particular pleitear indenização pela perda da propriedade.
se as mesmas obras tivessem sido executadas, ao contrário, por particular em
propriedade alheia, ele somente irá adquirir a propriedade após o decurso de 15 anos
(Código Civil, art. 1.238). Antes do decurso desse prazo de 15 anos, cabe ao possuidor
de boa-fé simplesmente o “direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis,
bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o
puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das
benfeitorias necessárias e úteis” (Código Civil, art. 1.219). e se se tratar de “possuidor
de má-fé, serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito
de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias” (Código Civil,
art. 1.220).
a quer, pois se trata de ato informado pelos princípios da conveniência e da oportunidade. 7. Fica ressalvado à
autora o direito de, em ação própria, pleitear do estado de são Paulo indenização dos prejuízos reais e efetivos
que porventura lhe tenham sido causados pela edição do decreto 10.251/77, nomeadamente os que poderiam
ter decorrido de novas ou indevidas limitações à sua propriedade, diversas ou maiores das que já existiam por
força da legislação federal. 8. recurso especial provido” (resp nº 442.774-sP, 1ª turma. rel. min. teori Albino
Zavascki. Julg. 2.6.2005. DJ, 20 jun. 2005, grifos nossos).
699
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
700
em razão das exigências necessárias à caracterização da desapropriação indireta
serem mais benéficas ao poder público do que aquelas pertinentes à usucapião, entendemos, com devida vênia de ilustres autores que defendem tese contrária,53 que o poder
público não se utiliza da usucapião para adquirir a propriedade de bens. isto se deve ao
fato de que, antes de se caracterizar a usucapião, o poder público já se tornou proprietário
do bem por força da desapropriação indireta, segundo posição firmada pelos tribunais.
Conforme observamos, os dois institutos guardam, todavia, pertinência relacionada ao prazo de 15 anos: o prazo prescricional aplicável à ação de indenização na
desapropriação indireta é o mesmo aplicável à caracterização da usucapião.54 ou seja,
particular, na usucapião, necessita ocupar por 15 anos, sem interrupção ou oposição, o
imóvel para adquirir-lhe a propriedade. nas hipóteses em que tenha ocorrido desapropriação indireta, aplica-se o mesmo prazo de 15 anos, contados da data em que o poder
público ocupou o bem para delimitar o direito do antigo dono de obter indenização.
segundo a lição maria sylvia Zanella di Pietro, o que se entendia quanto ao
prazo na desapropriação indireta era que este devia observar o mesmo prazo para a
usucapião extraordinária (20 anos, conforme prescrevia Código Civil de 1916). nesta
hipótese, o raciocínio era de que “embora se pleiteie indenização, argumentava-se que
o direito do proprietário permanece enquanto o proprietário do imóvel não perde a
propriedade pelo usucapião extraordinário em favor do poder público”. no entanto,
adverte a autora que, “com a redação dada ao artigo 10, parágrafo único, do decreto-Lei
nº 3.365/41 pela Medida Provisória nº 2.183/01, o direito de propor ação de indenização
por apossamento administrativo ou desapropriação indireta extingue-se em cinco anos.
Com essa norma, ficou derrogada a jurisprudência anterior sobre a matéria”.55
A questão foi enfrentada pelo stF no julgamento da Adi nº 2.260-mC/dF, in verbis:
o tribunal deferiu, em parte, medida cautelar requerida em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Conselho Federal da ordem dos Advogados do Brasil para suspender,
até decisão final, a expressão abaixo sublinhada, contida no parágrafo único do art. 10
do dL 3.365/41, na redação dada pela mP 2.027-40/2000, e suas subseqüentes reedições
(“Parágrafo único. extingue-se em cinco anos o direito de propor ação de indenização
por apossamento administrativo ou desapropriação indireta, bem como ação que vise a
indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público”). o tribunal entendeu,
à primeira vista, que a redução do prazo prescricional para as ações de indenização por
apossamento administrativo ou desapropriação indireta ofende a garantia constitucional
da justa e prévia indenização em dinheiro (CF, art. 5º, XXiv). vencido, em parte, o min.
marco Aurélio, que deferia integralmente o pedido de medida cautelar.56
53
54
55
56
no sentido contrário ao que defendemos, vide CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo. 14. ed., p. 887;
e GAsPArini. Direito administrativo, p. 506.
nesse sentido, stF: “recurso extraordinário. desapropriação indireta. Prescrição. enquanto o expropriado não
perde o direito de propriedade por efeito do usucapião do expropriante, vale o princípio constitucional sobre o
direito de propriedade e o direito a indenização, cabendo a ação de desapropriação indireta. o prazo, para esta
ação, e o da ação reivindicatória. Confere-se a ação de desapropriação indireta o caráter de ação reivindicatória,
que se resolve em perdas e danos, diante da impossibilidade de o imóvel voltar a posse do autor, em face do
caráter irreversível da afetação pública que lhe deu a Administração Pública. subsistindo o título de propriedade
do autor, dai resulta sua pretensão a indenização, pela ocupação indevida do imóvel, por parte do Poder Público,
com vistas a realização de obra pública. Hipótese em que não ocorreu prescrição, recurso extraordinário não
conhecido” (re nº 109.853-sP, 1ª turma. rel. min. néri da silveira. Julg. 5.8.1988. DJ, 19 dez. 1991).
di Pietro. Direito administrativo, p. 178.
stF. Adi nº 2.260-mC/dF, Pleno. rel. min. moreira Alves. Julg. 14.2.2001. DJ, 02 ago. 2008.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
no mérito, a Adi foi julgada prejudicada pelo stF em razão da alteração da norma
impugnada. A liminar então deferida destinava-se a suprimir a expressão “ação de
indenização por apossamento administrativo ou desapropriação indireta, bem como”.
Acontece que após o deferimento da liminar, a medida provisória foi objeto de sucessivas alterações no tocante ao dispositivo controverso, o qual passou a ter a seguinte
redação (mP nº 2.109-49, 23.2.2001):
Art. 10. (...)
Parágrafo único. extingue-se em cinco anos o direito de propor ação que vise a indenização
por restrições decorrentes de atos do Poder Público. (grifos nossos)
A vigência do acima transcrito dispositivo do decreto-Lei nº 3.365/41, com a
redação dada pela MP nº 2.109, e que fixa o prazo de cinco anos para as ações de indenização contra o poder público, não tem afastado a vinculação entre o prazo da usucapião
extraordinária e o prazo para pedir indenização em razão de desapropriação indireta.57
não obstante os prazos serem os mesmos, a usucapião não se confunde com a
desapropriação indireta em razão do momento em que se configura a transferência da
propriedade: na usucapião, o possuidor somente irá adquirir a propriedade do bem
após o decurso do prazo de 15 anos de posse; na desapropriação indireta, ao contrário,
o poder público adquire a propriedade tão logo a execução das obras torne-se fato consumado, em razão da impossibilidade de retorno do bem ao seu proprietário. A partir
desse momento, aplica-se o prazo de 15 anos à desapropriação indireta para definir o
prazo prescricional para a propositura da ação de indenização.
Além da aquisição em razão de contratos e da desapropriação indireta, outros
institutos do direito Privado são aplicáveis para legitimar a aquisição da propriedade
imobiliária, tais como as hipóteses de acessão previstas no Código Civil (art. 1.248 et seq.).
57
nesse sentido, vide stJ: “Processual Civil. Administrativo. desapropriação indireta. Juros moratórios. termo
inicial de incidência. Ausência de prequestionamento. Ação de natureza real. Prescrição vintenária. súmula 119/
stJ. Honorários advocatícios. Fixação. Aplicação da lei vigente ao tempo em que prolatada a sentença. Juros
compensatórios. incidência. Alegado abandono do imóvel expropriado. matéria de prova. súmula 7/stJ.
1. Ausente o questionamento prévio dos dispositivos legais cuja violação é apontada, apesar dos embargos
de declaração opostos, é inviável o conhecimento do recurso especial. Aplicação do princípio consolidado
na súmula 211/stJ. 2. A ação indenizatória por desapropriação indireta, de natureza real, sujeita-se ao prazo
prescricional vintenário, a teor do disposto na súmula 119/stJ. 3. o supremo tribunal Federal, no julgamento da
mC na Adin 2.260/dF, ao examinar a norma contida no parágrafo único do art. 10 do decreto-Lei 3.365/41, com
a redação dada pela mP 2.027-40/2000 — ‘extingue-se em cinco anos o direito de propor ação de indenização por
apossamento administrativo ou desapropriação indireta, bem como ação que vise a indenização por restrições
decorrentes de atos do Poder Público’ —, deferiu, em parte, a medida cautelar para suspender a eficácia da
expressão ‘ação de indenização por apossamento administrativo ou desapropriação indireta, bem como’, tanto
é assim que a redação do mencionado preceito foi substancialmente alterada nas reedições posteriores. 4. A
orientação desta superior Corte de Justiça, invocando o princípio tempus regit actum, firmou-se no sentido
de que a fixação dos honorários advocatícios rege-se pela lei vigente ao tempo em que prolatada a sentença
que os impõe. 5. Proferida a sentença em 4 de agosto de 2003, deve o percentual dos honorários advocatícios
amoldar-se aos novos limites estabelecidos pela nova redação do art. 27, §1º, do decreto-Lei 3.365/41. 6. os juros
compensatórios, na desapropriação, remuneram o capital que o expropriado deixou de receber desde a perda
da posse, e não os possíveis lucros que deixou de auferir com a utilização econômica do bem expropriado.
7. Qualquer conclusão em sentido contrário ao que decidiu o aresto atacado, relativamente à existência do
indevido apossamento administrativo, envolve o reexame do contexto fático-probatório dos autos. ‘A pretensão
de simples reexame de prova não enseja recurso especial’ (súmula 7/stJ). 8. recurso especial parcialmente
conhecido e, nessa parte, parcialmente provido” (resp nº 829.526-rs, 1ª turma. rel. min. denise Arruda. Julg.
3.8.2006. DJ, 28 ago. 2006, grifos nossos).
701
702
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o Código Civil prevê (art. 1.276) que nas hipóteses de abandono de bem imóvel,
observados os requisitos legais, ele passa a integrar o patrimônio do município ou do
distrito Federal, caso se trate de imóvel urbano, e o patrimônio da união, se se tratar
de imóvel rural.
em relação à possibilidade de a Administração Pública adquirir bens por meio
de arrematação ou de adjudicação judicial (Código de Processo Civil, artigos 686 e 714,
respectivamente), como se trata de situações em que a vontade do poder público é
determinante para a aquisição do bem, deve ser observado se elas se enquadram nas
situações de dispensa ou de inexigibilidade de licitação previstas na Lei nº 8.666/93.
Caso contrário, a aquisição seria ilegal em razão da falta de licitação. ou seja, é lícito
ao poder público arrematar ou adjudicar bens em juízo desde que a hipótese possa ser
enquadrada nos permissivos legais para a contratação direta de bens.
Além das hipóteses em que a incorporação do bem ao patrimônio público decorre
da aplicação dos instrumentos do direito Privado, outras há decorrentes do Direito Público.
A hipótese mais expressiva da aquisição de bem pelo poder público regida pelo direito
Público é a desapropriação, uma das mais evidentes manifestações da supremacia pública
na esfera privada. Para maiores considerações acerca do tema, remetemos o leitor ao
Capítulo 13.
Além da desapropriação, são decorrentes do direito Público diversas situações a
que se tem convencionado denominar de aquisição ex vi legis. As situações mais comuns
de incorporações de bens ao patrimônio público enquadradas nessa categoria são:
- As decorrentes dos loteamentos imobiliários. em razão do que dispõe a Lei
nº 6.766/79, que trata do parcelamento do solo urbano, parcelas dos imóveis
loteados — como as áreas onde funcionarão as vias públicas — passam a
integrar o patrimônio dos municípios;
- As hipóteses de perdimento de bens, previstas no Código Penal (art. 91, i e ii).
14.13 Bens públicos em espécie
A Constituição Federal atribui a titularidade de determinados bens à união
(art. 20) e aos estados (art. 26). Além desses dois dispositivos constitucionais, existem
leis esparsas que disciplinam e regulam o exercício do direito de propriedade e o uso
ordinário e extraordinário desses bens. dentre as leis que regulam o patrimônio público podemos mencionar o Código de águas (decreto nº 24.643, de 1934), o estatuto
da terra (Lei nº 4.504, de 1964), o Código de Contabilidade Pública (decreto nº 4.536,
de 1922) e a Lei nº 9.636, de 1998, que trata especificamente dos bens da União. Além
dessa legislação, merecem ainda destaque o Código de minas, o Código Florestal e o
próprio Código Civil, de 2002.
examinaremos, em seguida, as principais categorias de bens públicos.
14.13.1 terrenos reservados
nos termos do art. 14 do Código de águas, “terrenos reservados são os que,
banhados pelas correntes navegáveis [de rios ou lagos], fora do alcance da maré, vão
até a distância de 15 metros para a parte da terra, contados desde o ponto médio das
enchentes ordinárias”.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
o art. 31 confere aos estados a propriedade dos terrenos reservados, salvo se,
“por algum título (...), forem do domínio federal, municipal ou particular”.
nesse sentido, é de se observar que os bens reservados podem ser públicos ou
privados. maria sylvia Zanella di Pietro observa com razão que “há uma presunção
em favor da propriedade pública, devido à própria história das terras no Brasil: todas
pertenciam à coroa”.58
sobre bens reservados merece destaque ainda a súmula stF nº 479: “As margens
dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso
mesmo, excluídas de indenização”.59
Categoria especial de bens reservados compreende os terrenos marginais. o conceito destes, apresentado pelo decreto-Lei nº 9.760/46, se assemelha ao dos terrenos
reservados. deles se diferenciam tão somente pelo fato de se localizarem em territórios
federais.
Assim sendo, os “terrenos banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance
da maré, (...) até a distância de 15 metros para a parte da terra, contados desde o ponto
médio das enchentes ordinárias” pertencem aos estados (salvo se houver título legítimo
que lhes atribua a propriedade à união, aos municípios ou a particulares). se esses
terrenos estiverem localizados em territórios federais, pertencem à união (salvo se
título legítimo lhes conferir a propriedade a particulares).60
14.13.2 terrenos de marinha
são terrenos de marinha os que, “banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças craveiras, para a parte da terra, contadas desde
58
59
60
di Pietro. Direito administrativo, p. 582.
Conforme observamos no Capítulo 13, a mencionada súmula do stF tem aplicação somente nas hipóteses em
que referidas margens de rios navegáveis forem públicas, caso em que não seria cabível falar em desapropriação. se, todavia, houver título que os legitime como bens privados, eles se submetem à desapropriação e, consequentemente, à indenização.
stJ: “Administrativo. Processual Civil. Ação de indenização por desapropriação indireta. terrenos reservados
à margem de rio. Ausência de título de domínio particular. Propriedade pública. 1. não há falar em violação ao
artigo 535 do CPC, por omissão no julgamento, quando o acórdão examinado todos os pontos relevantes para
a solução da causa. 2. não se conhece de recurso especial fundado em divergência jurisprudencial quando não
apontado, como exige a Constituição também para esse caso (CF, art. 105, iii, c), o dispositivo de lei federal objeto da interpretação alegadamente divergente. 3. segundo o Código de águas, os terrenos reservados às margens
de correntes e lagos navegáveis (a) são bens públicos dominicais, exceto se estiverem destinados ao uso comum
ou por algum título legítimo pertencerem ao domínio particular; (b) pertencem aos estados se, por algum título,
não forem de domínio federal, municipal ou particular; e (c) vão até a distância de 15 metros para a parte de terra,
contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias (decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934, arts. 11, 14 e
31). 4. ‘As margens dos rios navegáveis são domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo,
excluídas de indenização’ (súmula 479/stF). Portanto, sem título de domínio concedido pelo Poder Público, não
tem o particular direito a indenização dessas áreas, no caso de desapropriação. Precedentes. 5. recurso especial
a que se nega provimento” (resp nº 775.476-sP, 1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki. Julg. 4.11.2008. DJe,
12 nov. 2008, grifos nossos).
stJ: “(...) 3. os terrenos de marinha são bens públicos dominiais. desse modo, as pretensões dos particulares sobre
eles não podem ser acolhidas, nos termos do art. 198 do decreto-Lei nº 9.760/46. 4. É notório que, após a demarcação
da linha de preamar e a fixação dos terrenos de marinha, a propriedade passa ao domínio público e os antigos proprietários passam à condição de ocupantes, sendo provocados a regularizar a situação mediante pagamento de foro
anual pela utilização do bem. 5. na hipótese, não há informação ou documento nos autos que afaste a presunção de
que os terrenos de marinha em questão se tratam de bens públicos dominiais, por isso, não pode o particular pretender isentar-se da cobrança da taxa de ocupação, porquanto este domínio, frise-se, é da união. 6. recurso especial
não provido” (resp nº 693.032-rJ, 2ª turma. rel. min. Castro meira. Julg. 25.3.2008. DJe, 7 abr. 2008, grifos nossos).
703
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
704
o ponto em que chega o preamar médio”. Esta definição foi inicialmente apresentada
pelo Aviso imperial de 1833, daí a terminologia pouco convencional para os dias atuais,
que utiliza como critério de medição a denominada braça craveira.
Preamar significa maré alta. O alcance da maré alta oscila ao longo do ano e tende a
se modificar com o passar do tempo, daí por que o Aviso Imperial adotou a linha definida
pela preamar média do ano de 1831 — critério mantido até os dias atuais pelo Código
de águas (decreto nº 24.643/34) —, que corresponde à média do limite alcançado pelas
marés altas daquele ano. A partir dessa linha que acompanha todo o litoral brasileiro, são
definidas as 15 braças craveiras, que correspondem a 33 metros, e que irão compreender
os terrenos de marinha.61
o Aviso imperial faz referência, além dos terrenos banhados pelo mar, àqueles
banhados pelos rios navegáveis. neste caso, somente são reputados de marinha os
terrenos banhados pelos rios navegáveis afetados pelas marés. Caso contrário, esses
terrenos serão tidos como terrenos reservados.
os terrenos de marinha são bens da união por expressa disposição constitucional
(art. 20, vii).
É de observar, todavia, que inúmeras áreas de marinha se encontram hoje densamente urbanizadas. Assim, não obstante se trate de bens federais, “no que concerne
às construções e edificações particulares, incidem regularmente as normas próprias
editadas pelos estados e pelos municípios, estes, inclusive, dotados de competência
urbanística local por preceito expresso da Constituição (art. 30, viii)”, conforme observa
José dos santos Carvalho Filho.62
A utilização dessas áreas por particulares pode ser feita por meio de enfiteuse
— válida somente para as constituídas anteriormente ao advento do Código Civil de
2002 — ou por meio de ocupação, conforme observa o decreto-Lei nº 9.760/46. neste
último caso, os ocupantes deverão pagar a denominada taxa de ocupação.
Além dos terrenos de marinha, o decreto-Lei nº 9.760/46 faz referência aos terrenos acrescidos, que são igualmente bens públicos federais. nos termos do art. 3º do
mencionado decreto-lei, são terrenos acrescidos “os que se tiverem formado, natural
ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos
de marinha”.
os terrenos de marinha são, como regra, reconhecidos como bens dominicais.
todavia, se na área a eles correspondentes existirem praias marítimas (que nos termos
da Constituição Federal, art. 20, iv, são igualmente bens da união), esses terrenos passam a ser qualificados como bens de uso comum.
Por fim, vale mencionar a Súmula 496 do STJ, cujo enunciado estabelece que “os
registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não
61
62
Segundo observa Celso Antônio Bandeira de Mello, com base na definição legal de praia, utiliza-se a linha de
jundu como critério para demarcar os terrenos de marinha, apesar de ser uma prática que não atende à legalidade estrita no processo de gestão dos bens públicos. vejamos o que diz a respeito o douto administrativista:
“Definição de praia: ‘a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida faixa subseqüente de
material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde começa um outro ecossistema’ (§3º do art. 10 da Lei nº 7.661/88).
A linha de vegetação natural referida no dispositivo é habitualmente conhecida como ‘linha de jundu’. É esta
linha que, como anota diogenes Gasparini, à falta da demarcação da preamar média de 1831, é utilizada na
prática para iniciar a contagem dos terrenos de marinha, inobstante assim se desatenda a dicção legal” (Curso de
direito administrativo, 16. ed., p. 789).
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 921.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
são oponíveis à União”. Isso significa que eventual título de propriedade inscrito no
registro de imóveis apenas gera presunção relativa de propriedade particular, impondo
a notificação do suposto proprietário para exercer o contraditório no procedimento de
demarcação da linha de preamar média.63 Tal procedimento identificará os limites do
terreno de marinha, de modo que, quando concluído, acaso se constate que o imóvel
referido no título está situado nessa área, tanto o título quanto o respectivo registro
não terão validade.
14.13.3 terras devolutas
A concepção de terras devolutas está associada à de terra sem uso específico,
não obstante, por equívoco, a ideia dominante sempre foi a de que corresponderiam
a terra de ninguém.
maria sylvia Zanella di Pietro apresenta bem elaborado estudo acerca da evolução
histórica das terras devolutas no Brasil e aponta que, em sua origem, elas “eram terras
vagas, abandonadas, não utilizadas quer pelo Poder Público quer por particulares.
essa concepção corresponde ao sentido etimológico do vocábulo: devolvido, vazio,
desocupado”.64
A Lei nº 601, de 1850, definiu terras devolutas como:
Art. 3º (...)
§1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal;
§2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem
havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas
em comisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura;
§3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que
apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei;
§4º As que não se acharem ocupadas por posses que, apesar de não se fundarem em título
legal, foram legitimadas por esta lei.
em relação à sua titularidade, até o advento da república, pertenciam à Coroa.
A partir de então, elas foram conferidas aos estados federados que, em alguns casos,
as transferiram aos municípios.65 o decreto-Lei nº 9.760/46 indicou, todavia, situações
especiais em que referidas terras pertenceriam à união. As regras estabelecidas pelo
mencionado decreto-lei foram confirmadas pela Constituição Federal de 1988, que, em
seu art. 20, ii, determina que pertencem à união “as terras devolutas indispensáveis
63
64
65
O STJ também fixou entendimento, em sede de recurso repetitivo, no sentido de que a identificação de determinado imóvel como terreno de marinha depende de prévio procedimento administrativo com contraditório e
ampla defesa. Contudo, a mera atualização do valor das taxas de ocupação, que decorre da atualização do valor
venal do imóvel, prescinde de procedimento com prévia participação dos interessados. Após a divulgação da
nova planta de valores venais e da atualização dela advinda, os administrados podem recorrer administrativa
e judicialmente dos pontos que reputarem ilegais ou abusivos (resp nº 1.150.579-sC, 1ª seção, rel. min. mauro
Campbell marques. Julg. 10.08.2011. DJe, 17 ago. 2011).
di Pietro. Direito administrativo, p. 587.
Exemplo de transferência de terras devolutas para os Municípios verificou-se no Estado de São Paulo. Por meio
da Lei de organização municipal (Lei nº 16, de 1891), o estado concedeu aos municípios as “terras devolutas
adjacentes às povoações de mais de mil almas em raio de círculo de seis quilômetros a partir da praça central”
para a formação de cidades e povoados (meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 463).
705
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
706
à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de
comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei”.
A regra, todavia, é que sua titularidade caiba aos estados.
essa regra está contida na Constituição Federal (art. 26, iv) que determina que
se incluem entre os bens dos estados “as terras devolutas não compreendidas entre as
da união”.
Temos, portanto, o seguinte critério para a definição da titularidade das terras
devolutas:
1. Pertencem, como regra, aos estados (CF, art. 26, iv);
2. Se localizadas em áreas “indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação
ambiental, definidas em lei” (CF, art. 20, II), pertencem à União; e
3. Pertencem aos municípios aquelas que lhes foram transferidas pelos estados
em razão de leis estaduais.
Ainda acerca da titularidade das terras devolutas, merece uma vez mais referência
à obra de Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Afirma a ilustre autora: “É irrepreensível o
voto do ministro rodrigues Alckmin no recurso extraordinário nº 72.020, de são Paulo:
‘não cabe ao estado provar que determinada gleba é devoluta: cabe a quem a afirma no
domínio particular o ônus da prova’.66 na ementa está dito que ‘as terras devolutas se
conceituam por exclusão: são devolutas as terras que nunca entraram, legitimamente,
no domínio particular’”.
Finalmente, a não vinculação das terras devolutas a qualquer finalidade pública,
seja em relação à sua utilização pelas estruturas do estado, seja pela população em geral,
permite o seu enquadramento como bens dominicais.
14.13.4 terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
As mais importantes regras acerca das terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios estão definidas no artigo 231 da Constituição Federal. O §1º deste artigo dispõe que:
são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
determina ainda a Constituição Federal que essas terras se destinam à posse
permanente dos índios, “cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos
rios e dos lagos nelas existentes” (art. 231, §2º).
o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
“com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes
assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”, nos termos do §3º
do art. 231 do texto constitucional.
66
não obstante, a 4ª turma do stJ entendeu que a inexistência de registro imobiliário de bem objeto de ação de
usucapião não induz à presunção de que o imóvel seja bem público (terra devoluta), cabendo ao estado provar a
titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da usucapião (resp nº 964.223-rn, rel. min. Luis Felipe
salomão. Julg. 18.10.2011. DJe, 04 abr. 2011).
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
Finalmente, o §4º do mencionado artigo da Constituição determina que “as
terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis”.
A titularidade é conferida pela Constituição Federal à união, nos termos do
art. 20, Xi.67
não obstante não se destinem às estruturas administrativas do estado, são consideradas bens públicos de uso especial em razão da sua afetação pública específica.
14.13.5 Plataforma continental e mar territorial
No Brasil, a definição de plataforma continental é feita pela Lei nº 8.617/93.
o artigo 11 da lei dispõe que a plataforma continental “do Brasil compreende
o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territorial,
em toda a extensão do prolongamento natural de seu território terrestre, até o bordo
exterior da margem continental, ou até uma distância de duzentas milhas marítimas
das linhas de base, a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casos
em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância”. dispõe
ainda o parágrafo único do mencionado art. 11 que “o limite exterior da plataforma
continental será fixado de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 76 da
Convenção das nações unidas sobre o direito do mar, celebrada em montego Bay, em
10 de dezembro de 1982”.
A Constituição de 1967 atribuía à plataforma continental a qualidade de bem, e
expressamente conferia a sua titularidade à união.
A Constituição Federal de 1988 não faz referência à plataforma continental como
bem pertencente à união; faz referência tão somente aos “recursos naturais da plataforma
continental e da zona econômica exclusiva” (art. 20, v). estes, os recursos naturais, e
não mais a plataforma continental, são considerados bens da união.
Em relação à plataforma continental, conforme definida pelo art. 11 da Lei nº 8.617/93
e pela Convenção das nações unidas sobre o direito do mar, e à denominada zona contígua — “que compreende uma faixa que se estende das doze às vinte e quatro milhas
marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar
territorial” (Lei nº 8.617/93, art. 4º), a união não exerce direito de propriedade, mas poder
de fiscalização decorrente do exercício da soberania.
A mudança verificada no tratamento conferido pela vigente Constituição Federal
leva-nos a concluir que a plataforma continental não é tratada como bem sujeito ao
direito de propriedade. A Constituição Federal de 1988 modificou o tratamento para
conferir à união o direito de propriedade sobre os recursos naturais localizados na
plataforma continental, direito igualmente estendido ao mar territorial (CF, art. 20, vi).
A mencionada Lei nº 8.617/93, além de cuidar da exploração da zona econômica,
trata do mar territorial, definido pelo art. 1º da lei como a “faixa de doze milhas marítima
de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular, tal
como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil”.
67
Acerca do tema, o stF editou a súmula nº 650, que dispõe nos termos seguintes: “os incisos i e iX do art. 20 da
CF não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.
707
708
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
nos termos do art. 2º da citada lei, “a soberania do Brasil estende-se ao mar
territorial, ao espaço aéreo sobrejacente, bem como ao seu leito e subsolo”.
14.13.6 águas públicas
o Código de águas (decreto nº 24.643/34) estabelece uma série de categorias
para a titularidade das águas. elas podem, em primeiro lugar, ser:
- Públicas; ou
- Privadas.
em relação às públicas, o Código prevê a sua divisão em águas:
- de uso comum; ou
- dominicais.
nos termos do art. 3º do decreto-Lei nº 852/38, que alterou o Código de águas,
são águas públicas de uso comum, “em toda a sua extensão, as águas dos lagos, bem como
dos cursos d’água naturais, que em algum trecho, sejam flutuáveis ou navegáveis por
um tipo qualquer de embarcação”.
A perenidade das águas, nos termos do Código de águas, é condição essencial
para que elas se possam considerar públicas. Ainda se consideram públicas (art. 5º), de
uso comum, “todas as águas situadas nas zonas periodicamente assoladas pelas secas,
nos termos e de acordo com a legislação especial sobre a matéria”.
são públicas dominicais “todas as águas situadas em terrenos que também o sejam,
quando as mesmas não forem do domínio público de uso comum, ou não forem comuns”
(art. 6º do Código de águas).
em relação à titularidade, a Constituição Federal estabelece a sua divisão entre
a união e os estados.
Além do mar territorial, a Constituição Federal (art. 20, iii) considera águas públicas
federais os “lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou
que banhem mais de um estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam
a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias
fluviais”.
Aos Estados é conferida a titularidade das “águas superficiais ou subterrâneas,
fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da união” (CF, art. 26, i).
A crescente importância que a preservação e a utilização das águas assumem para
a vida moderna levou a união a aprovar a Lei nº 9.984, de 2000, por meio da qual foi
criada a Agência nacional de águas (AnA). infelizmente, a falta de estrutura mínima
de funcionamento tem impedido referida autarquia de exercer adequadamente suas
funções.
14.13.7 ilhas
A titularidade das ilhas é dividida entre a união e os estados.
nos termos do art. 20, iv, da Constituição Federal (com redação dada pela emenda
Constitucional nº 46, de 2005) pertencem à união:
- As ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países;
- As praias marítimas; e
- As ilhas oceânicas e as costeiras.
CAPítuLo 14
Bens PúBLiCos
em relação a estas últimas — às ilhas oceânicas e costeiras —, a Constituição
exclui da titularidade da união as áreas que contenham a sede de municípios e as que
estejam sob domínio dos estados ou de terceiros, nos termos do art. 26, ii, da Constituição Federal.
Aos Estados pertencem (CF, art. 26, III) “as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União”. Ou seja, se ilha fluvial ou lacustre fizer fronteira com outro país (CF,
art. 20, iv), ela pertence à união; caso contrário, pertencerá ao estado.68
68
Acerca do tema, merece referência especial o exame realizado pelo stF por ocasião do julgamento do re
nº 285.615-sC (decisão monocrática. rel. min. Celso de mello. Julg. 15.2.2005. DJ, 23 fev. 2005). nessa ocasião,
examinou-se a possibilidade de bens localizados na ilha de Florianópolis serem objeto de usucapião.
709
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
15.1 Agentes públicos e atividade estatal
15.1.1 Agentes públicos e estrutura do estado
o estado, conforme temos buscado demonstrar ao longo do presente trabalho,
é um instrumento para a satisfação de certas necessidades da população. Para que
o estado possa desempenhar suas funções constitucionais, são criadas as estruturas
administrativas que se relacionam basicamente à existência de dois aspectos: estruturas
físicas (edifícios, bens móveis, equipamentos etc.) e estruturas de pessoal administrativo.
No Capítulo 4, relativo à organização administrativa, verificamos que o Estado
se utiliza das formas jurídico-privadas para se organizar em pessoas jurídicas (entidades), e que, de acordo com o modelo federativo brasileiro, as atribuições públicas são
distribuídas entre as entidades políticas localizadas nos diferentes níveis de governo
(federal, estadual e municipal) que podem, por meio do processo de descentralização
administrativa, transferir algumas das suas atribuições a entidades autárquicas, fundacionais ou às empresas estatais.
As entidades políticas e administrativas para melhor desenvolver suas atribuições se subdividem em órgãos, que nada mais são do que unidades internas de atribuições
desprovidas de personalidade.
o ordenamento jurídico-constitucional distribui as atribuições estatais às entidades e aos órgãos públicos que compõem a organização do estado, e, somente em
raras oportunidades — de que seria exemplo o art. 84 da Constituição Federal, que
trata das atribuições do Presidente da república —, confere competência diretamente
a agentes públicos.
não obstante a regra seja a atribuição de competência às entidades e aos órgãos
públicos, na prática, todas as atividades estatais são desempenhadas por pessoas físicas
lotadas em cargos, empregos e funções públicas.
Quando a Constituição Federal determina, por exemplo, que compete à união
manter relações com estados estrangeiros (art. 21, i), ou assegurar a defesa nacional
(art. 21, iii), ela determina que os agentes lotados nas unidades administrativas que
integram a união às quais foram conferidas mencionadas atribuições irão desempenhar
essas e todas as demais tarefas federais.
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
712
nesse sentido, o desempenho de todas as atividades estatais é feito por agentes
públicos. se algum ato foi praticado, se algum ato deixou de ser praticado, toda ação
ou omissão estatal estará necessariamente relacionada à ação ou à omissão de um
agente público.
eis a razão da importância do estudo do regime jurídico dos agentes públicos:
sem a existência de uma estrutura de pessoal, nenhuma atividade administrativa pode
ser realizada.
são evidentes os avanços da tecnologia, especialmente da tecnologia da informação, no desempenho das atividades estatais. É possível, por exemplo, por meio do
acesso à internet serem obtidas certidões, ou ser feita a divulgação de atos administrativos, ou ainda por meio de equipamentos de radar instalados nas vias públicas, que se
encontram ligados aos computadores dos departamentos de trânsito, serem aplicadas
multas àqueles que cometem infrações.
Por trás de todo sistema de informação, inexoravelmente sempre existirá (ao menos
até a presente data) uma pessoa física com a incumbência de alimentar o sistema com
os dados necessários ao desempenho das atividades públicas. Quando o contribuinte
envia sua declaração de imposto de renda pela internet e obtém a resposta de que ela
foi processada, essa atividade exigiu necessariamente a intervenção de agentes públicos, ainda que sua função tenha sido a de desenvolver o sistema que recebe, processa
e informa ao contribuinte a situação da sua declaração.
o desenvolvimento das novas tecnologias da informação tem representado verdadeira revolução nas sociedades modernas, e a atividade do estado não se poderia
manter ao largo dessa realidade.
esses avanços tecnológicos devem tornar a atividade dos agentes públicos mais
célere, mais efetiva, e, em alguns casos, mais simples.
É evidente que a possibilidade de dispor de recursos tecnológicos modernos
permite a redução do número de agentes incumbidos da execução de certas tarefas, mas
não em que a tarefa seja executada exclusivamente por equipamentos de informática.
Por trás dos equipamentos sempre haverá uma pessoa física, e se essa tarefa é pública,
ela será desempenhada por agente público, expressão utilizada para designar todas as
pessoas físicas que desempenham atividades em razão do exercício de cargo, emprego
ou função pública.
Em resumo, pode-se afirmar que a prática de todos os atos e a realização de todas
as tarefas do estado são feitas por agentes públicos, vale dizer, por pessoas físicas que,
investidas em cargos, empregos ou funções públicas, integram a estrutura das entidades
e dos órgãos públicos.1 daí se conclui que agente público é toda pessoa que fala em nome do
Estado e exerce competência atribuída a entidade ou a órgão da Administração Pública.
15.1.2 teoria do órgão
A etapa seguinte na discussão do presente tema consiste em saber como é possível,
a partir da perspectiva jurídica, atribuir a prática do ato ao estado, se quem efetivamente
o pratica são os agentes públicos.
1
A Lei de improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) apresenta em seu art. 2º o conceito de agente público, a
saber: “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas
entidades mencionadas no inciso anterior”.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
Bom exemplo da aplicação desta regra pode ser identificado na redação do art. 37,
§6º, do texto constitucional quando dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público
ou de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”. vê-se, na hipótese, que o ato que
causa prejuízo a terceiro é praticado pelo agente, no entanto são as pessoas jurídicas
que por ele respondem. em razão de a prática do ato que causa prejuízo ser atribuída
às pessoas jurídicas, é contra estas, e não contra os agentes, que devem ser propostas
as ações de indenização, sendo regressiva a responsabilidade dos agentes, conforme
será examinado adiante, no Capítulo 17.
desde há muito se discute a atribuição da prática dos atos dos agentes às respectivas pessoas jurídicas. não se trata de tema exclusivamente afeto ao direito Público.
Ao contrário, no âmbito do direito Privado foram desenvolvidas diversas teorias para
buscar explicar como ocorre a transferência da atribuição da prática dos atos ou das
manifestações de vontade das pessoas físicas que compõem as estruturas das pessoas
jurídicas.
o Código Civil de 2002 trata a questão nos artigos 1.015 e 1.016.
dispõe o art. 1.015 que “no silêncio do contrato, os administradores podem
praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade”. em outras palavras, os administradores da sociedade praticam todos os atos necessários à gestão da sociedade, e
estes atos são reputados como tendo sido praticados pela própria pessoa jurídica, e não
pelo administrador — o que enseja a responsabilidade exclusiva da pessoa jurídica e
não do gestor.
em caráter excepcional, o Código Civil de 2002 adota a teoria ultra vires (teoria
do excesso do poder). nos termos do parágrafo único do art. 1.015, dispõe o Código
que não obstante o administrador tenha praticado o ato em nome da pessoa jurídica,
o excesso de poder por parte do gestor pode ser oposto ao terceiro como fundamento
para eximir a sociedade de qualquer responsabilidade nas seguintes hipóteses:
1. se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da
sociedade;
2. Provando-se que era conhecida do terceiro;
3. tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.
o art. 1.016 do Código Civil dispõe, ademais, que “os administradores respondem
solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.
em razão dessas disposições legais, pode-se concluir que o Código Civil adota,
como regra, a teoria da aparência. de acordo com esta teoria, os atos praticados pelos
administradores ou que, para terceiros, apresentem-se com a aparência de terem sido
praticados em nome da pessoa jurídica, em razão da boa-fé do terceiro, ensejam responsabilidade da pessoa jurídica, não sendo possível cogitar-se de atribuir a prática do ato
ao próprio administrador ou de responsabilizá-lo. A responsabilidade do administrador
deve ser apurada em eventual ação regressiva proposta pela pessoa jurídica.
As exceções à regra que atribui responsabilidade às pessoas jurídicas em razão
dos atos praticados por seus agentes estão mencionadas no parágrafo único do art. 1.015.
nessas três hipóteses, o Código adota a teoria ultra vires e exime a pessoa jurídica de
qualquer responsabilidade pelos atos que os administradores tenham praticado, não
obstante tenham usado o nome da pessoa jurídica. nessas hipóteses, o ato é reputado
713
714
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
como tendo sido praticado pelo próprio administrador (pessoa física), sendo lícito à
pessoa jurídica eximir-se de qualquer responsabilidade.
Trata-se de questão controvertida a busca pela definição da natureza da relação
existente entre os agentes que atuam em nome da pessoa jurídica e a pessoa jurídica.
não obstante seja usual mencionar que determinado agente representa certa pessoa
jurídica, talvez a única certeza que se tem em torno do tema é a de que não se trata de
relação jurídica de representação. tem-se a representação quando certa pessoa (física
ou jurídica) pratica atos em nome e por conta de outra. ocorre representação na relação
entre mandante e mandatário (procurador). Aqui, o mandatário representa o mandante.
Ou seja, na representação é possível identificar a pessoa que atua em nome de outra,
e que a esta última é atribuída a responsabilidade pelos atos praticados pela primeira.
na relação entre administrador (agente) e pessoa jurídica, ao contrário, não se tem
uma pessoa que pratica ato em nome de outra. Quando o administrador (agente) de pessoa jurídica celebra contrato em nome da pessoa jurídica, o ato é praticado pela própria
pessoa jurídica. Foi a própria pessoa jurídica que celebrou o contrato em razão de que
ela atua necessariamente por meio dos seus agentes. A questão a ser enfrentada, então, é
a seguinte: se a natureza da relação não é de representação, então, qual é sua natureza?
Fala-se em teoria da presentação, no sentido de que as pessoas jurídicas estão
presentes por meio dos atos praticados por seus agentes. Fala-se também em imputação
(talvez mero eufemismo ou substituto para o termo representação) de responsabilidade.
de acordo com esta teoria, o agente atuaria de modo a imputar responsabilidade à
pessoa jurídica.
A teoria mais difundida entre nós, e que no Brasil foi divulgada por Pontes de
Miranda, defende que as pessoas jurídicas, em razão de se tratar de entidades fictícias,
que existem como sujeitos de direito e obrigação tão somente em razão de ficção jurídica reconhecida pelo ordenamento jurídico, atuam por meio dos seus órgãos, que são
unidades internas de atribuição, e que aos agentes lotados nesses órgãos seria conferida
a legitimidade para praticar todos os atos de gestão, para produzir todas manifestações
de vontade, enfim, para agirem em nome da entidade.
essa teoria desenvolvida no âmbito do direito Privado é adotada pelo direito
Público e serve para definir a relação entre os agentes públicos e as entidades públicas.
ou seja, as entidades públicas se subdividem em órgãos (unidades internas de atuação),
nos quais estão lotados os agentes. Ao atuarem, desde que o façam na qualidade de
agentes públicos, atribuem responsabilidade direta às entidades públicas.
15.1.3 Agente de fato
Quando os agentes públicos atuam no exercício das suas funções públicas, é
fácil perceber que a prática do ato seja atribuída às respectivas entidades públicas. A
responsabilidade da Administração Pública não é tão evidente, todavia, quando o ato
é praticado por pessoa que, sem estar investido em cargo, emprego ou em função pública
— o denominado agente de fato —, se faz passar por agente e cria perante terceiros
a ilusão de que atua em nome da entidade pública. nestas hipóteses, é de se atribuir
igualmente responsabilidade às entidades públicas?
A resposta deve variar em razão da eventual conivência da entidade pública com
a atuação do agente de fato. se por culpa ou dolo da Administração Pública foi permitido que terceiro se apresentasse perante terceiros como agente público, e nenhuma
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
providência foi tomada para impedir a prática do ilícito, a entidade pública responde
nos moldes que responderia caso o ato fosse praticado por agente público. ou seja, se
particular exerce de fato uma função pública e a Administração Pública, tendo condições
de impedir a ocorrência do ilícito, não adota as providências cabíveis, ela responde pelo
ato. trata-se, conforme dito, de mera aplicação da teoria da aparência.
Ao contrário, se não for razoável, em razão das particularidades da situação de
fato que envolvem a questão, supor que determinado indivíduo se faz passar por agente
público, ou seja, se não houver como a Administração Pública tomar conhecimento da
atuação do agente e adotar as medidas para impedir essa atuação, não é jurídico atribuir
responsabilidade ao poder público. se, por exemplo, certo indivíduo se faz passar por
fiscal do trabalho e realiza extorsão em empresa privada, não é razoável supor que o
estado deva arcar com a responsabilidade pelo ato praticado por este indivíduo.
A aplicação à Administração Pública da teoria da aparência, que resulta em
atribuir-lhe responsabilidade pelos atos praticados pelos denominados agentes de
fato, pressupõe, além da boa-fé do terceiro, que a Administração Pública tenha de algum
modo contribuído para criar perante esse terceiro a ilusão de que se tratava de agente
público e, mesmo assim, não tenha tomado providências para impedir essa atuação.
15.2 Cargo, emprego e função pública
15.2.1 distinções e conceitos
Agente público é a pessoa que ocupa cargo, emprego ou função pública. Cumpre-nos,
portanto, para que se possa ter uma compreensão mais precisa do que é o agente público,
explicar em que consiste o cargo, o emprego e a função pública.
A primeira observação acerca do tema diz respeito ao fato de que a Constituição
Federal diferencia essas três diferentes categorias quando a elas faz referência em seu
artigo 37, i, e determina que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos
brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”.
examinaremos, em seguida, cada uma dessas figuras jurídicas.
o cargo público é o lugar ocupado pelo agente na estrutura da Administração
Pública.
Na organização da Administração Pública, são identificadas, em primeiro lugar,
as entidades públicas. estas, conforme visto, são subdivididas em unidades internas de
atribuição denominadas órgãos públicos. ou seja, as tarefas a serem desempenhadas pelas
entidades são internamente distribuídas aos diversos órgãos que compõem suas respectivas estruturas organizacionais. Finalmente, os agentes públicos são distribuídos e lotados
nos diversos órgãos em seus respectivos cargos públicos. estes correspondem ao local (ou
posição jurídica) a ser ocupado pelo agente na estrutura da Administração Pública.
outras observações acerca do regime jurídico pertinente aos cargos públicos
ainda se fazem necessárias.
em primeiro lugar, a existência do cargo público está condicionada à adoção
de regime jurídico estatutário, vale dizer, de regime jurídico público. se o agente público
tem sua relação jurídica com o poder definida diretamente por lei — de que seriam
exemplos os servidores públicos regidos pela Lei nº 8.112/90, os magistrados regidos
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716
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
pela Lei Complementar nº 35/79, os membros do ministério Público regidos pela Lei
Complementar nº 75/93 —, diz-se que o regime jurídico é estatutário, porque disciplinado diretamente por um estatuto jurídico legal.
nessas hipóteses, o lugar a ser ocupado pelo agente, independentemente de se
tratar de agente político ou de servidor público, dentro da estrutura da Administração
Pública estatal será um cargo público.
Além de se caracterizar pelo regime jurídico estatutário, o cargo apresenta outras
peculiaridades. ele está necessariamente ligado a uma função pública.
É certo que não se pode confundir o cargo público com a função pública. são conceitos distintos. não obstante, a todo cargo público seja atribuída uma função pública.
A função pública corresponde ao conjunto de atribuições conferidas ao agente
público. nesse sentido, a todo cargo seja atribuída uma função ou, em outras palavras, todo cargo se caracteriza pela existência de um conjunto de atribuições públicas
definidas em lei.
É possível identificar, no entanto, situações excepcionais em que o agente público
desempenha atribuições sem ocupar cargo (ou emprego público). A Constituição Federal
(art. 37, iX) admite a “contratação por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público”. nas hipóteses de contratação temporária,
o agente público exerce atribuições públicas como mero prestador de serviço, sem que
para tanto precise ocupar um local na estrutura da Administração Pública. o denominado agente temporário é um prestador de serviço, e nessa qualidade exerce atribuições
públicas sem ocupar cargo ou emprego. vê-se, por exemplo, que o professor de uma
universidade pública contratado em regime temporário (usualmente denominado
professor substituto) desempenha as mesmas atribuições do professor ocupante de
cargo público. este último ocupa um lugar na estrutura da Administração Pública;
aquele, contratado temporariamente, presta os mesmos serviços, exerce, portanto, as
mesmas atribuições, mas não ocupa qualquer cargo ou emprego público na estrutura
administrativa da entidade. É mero prestador de serviço cujo regime jurídico é definido,
no plano federal, pela Lei nº 8.745, de 1993.
nesse sentido, todo cargo tem função; há situações excepcionais, todavia, em que
o agente público poderá desempenhar função sem ocupar cargo público.
relembramos que o art. 37, i, da Constituição Federal requer que todos os cargos,
empregos e funções sejam “acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos
em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei” (grifos nossos).
Outra situação em que se verifica a separação entre cargo e função dá-se nas hipóteses em que o servidor ocupante de cargo efetivo é designado para exercer função de
confiança. Sendo ocupante de cargo efetivo — requisito constitucional para poder ser
designado para exercer função de confiança (art. 37, V) —, o servidor deve exercer a
função ou as atribuições do seu cargo. ele poderá, nos termos da lei, ser designado para
exercer outra atividade, de chefia, de direção ou de assessoramento, cujas atribuições
não se inserem nas previstas em lei para o seu cargo. nesta hipótese, o servidor efetivo
deixa de exercer as atribuições do seu cargo e passa a exercer as atribuições relativas
à função de confiança.
Vê-se que o servidor não é nomeado para ocupar uma função de confiança. Ao
contrário, ele é simplesmente designado para exercer essa função. o servidor é, portanto,
nomeado e ocupa o cargo efetivo; desde que ocupe o cargo efetivo, ele pode ser designado
para exercer a função de confiança.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
A criação de cargos, empregos e funções depende, nos termos do art. 61, §1º, i,
“a”, de lei de iniciativa do Presidente da república — regra aplicável no âmbito do
Poder executivo federal.
No caso do cargo, a lei deve apontar os elementos necessários à sua identificação.
A Lei nº 8.112/90, art. 3º, busca apontar suposto conceito de cargo público. A rigor,
a lei — ou quem a redigiu — comete equívoco conceitual ao afirmar que “cargo público
é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional
que devem ser cometidas a um servidor”. o parágrafo único deste dispositivo da Lei
nº 8.112/90 acrescenta que “os cargos públicos, acessíveis a todos os brasileiros, são
criados por lei, com denominação própria e vencimento pago pelos cofres públicos,
para provimento em caráter efetivo ou em comissão”.
o conjunto de atribuições não corresponde ao conceito de cargo, mas apenas a uma
de suas características. o conjunto de atribuições conferido ao cargo, em termos jurídicos,
corresponde ao conceito de função pública. o mencionado art. 3º da Lei nº 8.112/90, não
obstante o equívoco, apresenta os elementos ou características do cargo.
são características do cargo, definidas em lei:
- As atribuições (ou a função do cargo);
- A denominação;
- A remuneração; e
- As responsabilidades.
Além do cargo e da função, o art. 37, i, da Constituição Federal menciona a
existência do emprego público.
o emprego se diferencia do cargo em razão do regime jurídico aplicável. no caso
do cargo, aplica-se o denominado regime jurídico legal. no caso do emprego público, ao
contrário, o regime jurídico é contratual. Isto importa em afirmar que o agente ocupante
de emprego público celebra com a Administração Pública contrato de trabalho regido
pela Consolidação de Leis do trabalho (CLt) e pelas normas constitucionais pertinentes.
o estudo do cargo público está afeto ao direito Administrativo; o do emprego,
ao direito do trabalho. As regras constitucionais pertinentes aos cargos públicos, ou a
seus titulares, não são automaticamente aplicáveis aos empregos públicos. exemplos:
1. A estabilidade, prevista no art. 41 do texto constitucional, somente é aplicável
aos titulares de cargos de provimento efetivo;2
2. As regras relativas à aposentadoria no serviço público previstas no art. 40 da
Constituição Federal somente são aplicáveis aos titulares de cargos efetivos,
aplicando aos empregados públicos (bem como aos titulares de cargo em
comissão sem vínculo efetivo e de cargo temporário) o regime geral da previdência social (art. 37, §12).
o emprego público é disciplinado pela CLt, sendo disciplinado, em caráter excepcional,
por norma de Direito Público nas hipóteses definidas pela Constituição Federal. Dentre
essas regras constitucionais se destacam:
2
Cumpre mencionar o entendimento do supremo tribunal Federal no sentido de estender o direito à estabilidade
prevista no artigo 41 da Constituição Federal ao empregado público celetista, admitido antes do advento da
emenda Constitucional nº 19/98. nesse sentido, registra-se:
“Constitucional. empregado de fundação pública. Aprovação em concurso público em data anterior à eC 19/98.
direito à estabilidade. i - A estabilidade prevista no caput do art. 41 da Constituição Federal, na redação anterior
à eC 19/98, alcança todos os servidores da administração pública direta e das entidades autárquicas e fundacionais, incluindo os empregados públicos aprovados em concurso público e que tenham cumprido o estágio
probatório antes do advento da referida emenda, pouco importando o regime jurídico adotado. ii - Agravo
regimental improvido” (Ai nº 628.888-Agr/sP, 1ª turma. rel. min. ricardo Lewandowski. DJe, 19 dez. 2007).
717
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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- necessidade de ser brasileiro, ou estrangeiro na forma da lei (art. 37, i)
- necessidade de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas
e títulos (art. 37, ii);3
- observância do teto de remuneração constitucional (art. 37, Xi);4
- irredutibilidade de vencimentos (art. 37, Xv);
- Aplicação da vedação de acumulação com outros empregos, cargos ou funções
públicas, ressalvadas as hipóteses expressamente previstas na Constituição
Federal (art. 37, Xvi e Xvii).
não se costuma apresentar qualquer comparação entre emprego e função pública. esta é normalmente cotejada com o cargo em razão de que se trata de situações
regidas pelo direito Administrativo, sendo a função pública — ressalvadas as hipóteses
de contratação temporária — o conjunto de atribuições do cargo.
o emprego público, que está sujeito às normas constitucionais e à CLt, alinha-se
ao cargo no sentido de que ambos são os locais ou posições jurídicas a serem ocupadas
pelos agentes públicos, diferenciando-se um do outro em razão da natureza da relação
jurídica estabelecida, que no caso do emprego público é contratual, e no caso do cargo
público é legal e sujeita ao direito Administrativo.
15.2.2 Âmbito de utilização do emprego e do cargo público no serviço
público
Questão pouco estudada em nosso direito diz respeito ao âmbito da Administração Pública onde podem ou onde devem ser utilizados os regimes legal, pertinente aos
cargos públicos, e o contratual, do emprego público. seria possível, por exemplo, admitir
a criação de empregos públicos na Administração Pública direta? está a utilização do
regime do emprego público restrita ao âmbito das empresas estatais?
em relação às empresas estatais, ou ao menos em relação àquelas que exploram
atividades empresariais, nos termos do art. 173, §1º, ii, que determina a sujeição dessas
entidades ao mesmo regime trabalhista aplicável às empresas privadas, é obrigatória
a adoção do regime jurídico do emprego público. em outras palavras, seria inconstitucional, por exemplo, a criação de cargos públicos no âmbito do Banco do Brasil ou
da Petrobras.
3
4
Algumas empresas estatais têm preferido denominar os certames para provimento dos seus empregados públicos de seleção pública (ou de seleção simplificada), e não de concurso público. Pouco importa, a rigor, o nome
que se dê a essa seleção. importa que ela seja acessível ao público em geral, que seja dada a necessária publicidade, que os critérios de escolha dos candidatos sejam claros, objetivos e previamente definidos, e que a seleção
se dê em razão da aplicação de provas ou de provas e títulos. observados esses requisitos constitucionais, passa
a ser irrelevante a terminologia utilizada para designar a seleção dos empregados públicos. Caso não sejam
observados esses requisitos, independentemente do nome utilizado para identificar a seleção, a contratação é
nula por força de expressa disposição constitucional (art. 37, §2º).
o art. 37, §9º, determina que a regra contida no inciso Xi do mesmo artigo, vale dizer, a regra do teto de remuneração, deve ser observada pelas empresas estatais “que receberem recursos da união, dos estados, do distrito Federal e dos municípios para pagamento de despesas com pessoal ou custeio em geral”. um empregado
público lotado em uma empresa estatal como o Banco do Brasil ou a Petrobras, por exemplo, que não recebem
repasses da União para essas finalidades, não devem observar o teto remuneratório. Se se tratar de uma empresa
que receba repasses públicos para tais finalidades (pagamento de pessoal ou custeio em geral), de que é exemplo
o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), é de se observar a regra definida no mencionado artigo
37, Xi. ou seja, a condição de empregado público não afasta a aplicação do teto constitucional. A não aplicação
dessa regra constitucional está vinculada às empresas estatais que não receberem repasses públicos.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
no caso das empresas estatais, especialmente das que exploram atividades
empresariais, que devem observar, como regra, o regime jurídico privado, não lhes é
facultado a adoção do regime jurídico do cargo público, seja ele em caráter efetivo ou
em comissão. resta-lhes a contratação em regime de emprego público. A questão que
poderia daí surgir seria a seguinte: todos os que trabalham em empresas estatais são empregados públicos e devem submeter-se à prévia aprovação em concurso público?
A resposta é afirmativa. Admite-se, todavia, uma exceção. Os dirigentes das
empresas estatais, sejam eles diretores ou membros do conselho de administração, não
são empregados. A relação entre eles e a entidade estatal é de direito Privado, sendo-lhes
aplicáveis as regras previstas no Código Civil e na Lei nº 6.404, de 1976, a Lei das sociedades Anônimas, e não as da CLt.
temos, portanto, que todos os que trabalham nas empresas estatais são empregados ou administradores, e que somente os diretores e membros dos conselhos de
administração e fiscal guardam esse traço particular de poderem ser admitidos nos
quadros das empresas estatais sem que tenham que se submeter ao necessário e prévio
concurso público. situações outras, em que são admitidos, por exemplo, gerentes em
pretensos “empregos em comissão” constituem evidente violação do texto constitucional (art. 37, ii).
em conclusão, o âmbito de adoção obrigatória do regime do emprego público compreende as empresas estatais exploradoras de atividades empresariais.
em relação ao restante da Administração Pública, vale dizer, em relação às entidades políticas (união, estados, distrito Federal e municípios), autarquias e fundações
públicas, a adoção do regime legal, pertinente aos cargos públicos, ou do regime do
emprego público depende, como regra, da lei.
desde a promulgação da eC nº 19, de 1998, que extinguiu o denominado regime
jurídico único, não há vedação constitucional à adoção do regime jurídico celetista no
âmbito da Administração Pública, seja ela Administração Pública direta ou indireta.
ocorre, todavia, que o supremo tribunal Federal, no julgamento da Adi nº 2.135mC/dF, declarou inconstitucional liminarmente o art. 39, caput, da Lei maior, segundo
a redação que lhe foi atribuída pela emenda Constitucional nº 19/98, em razão de vício
relacionado ao processo legislativo de aprovação das emendas constitucionais.5
nesse cenário, o julgamento cautelar da Adi nº 2.135-dF acarretou o retorno da
obrigatoriedade do regime jurídico único originalmente previsto pela Constituição de
1988 no âmbito da Administração direta, Autárquica e Fundacional.
5
“em conclusão de julgamento, o tribunal deferiu parcialmente medida liminar em ação direta ajuizada pelo Partido dos trabalhadores – Pt, pelo Partido democrático trabalhista – Pdt, pelo Partido Comunista do Brasil – PC
do B, e pelo Partido socialista do Brasil – PsB, para suspender a vigência do art. 39, caput, da Constituição Federal,
com a redação que lhe foi dada pela emenda Constitucional 19/98 (‘A união, os estados, o distrito Federal e os
municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores
designados pelos respectivos Poderes’), mantida sua redação original, que dispõe sobre a instituição do regime
jurídico único dos servidores públicos – v. informativos 243, 249, 274 e 420. entendeu-se caracterizada a aparente
violação ao §2º do art. 60 da CF (‘A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso nacional, em dois
turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros’), uma vez
que o Plenário da Câmara dos deputados mantivera, em primeiro turno, a redação original do caput do art. 39, e a
comissão especial, incumbida de dar nova redação à proposta de emenda constitucional, suprimira o dispositivo,
colocando, em seu lugar, a norma relativa ao §2º, que havia sido aprovada em primeiro turno. esclareceu-se que a
decisão terá efeitos ex nunc, subsistindo a legislação editada nos termos da emenda declarada suspensa. vencidos os
ministros ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e nelson Jobim, que indeferiam a liminar” (Adi nº 2.135-mC/dF,
Pleno. rel. min. néri da silveira. rel. p/ acórdão min. ellen Gracie. Julg. 2.8.2007. DJe, 07 mar. 2008).
719
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
720
A vedação constitucional implícita — decorrente do que dispõe o art. 247 da
Constituição Federal6 —, está relacionada à atividade a ser exercida pelo agente, e não
à natureza da entidade política ou administrativa a que se vincule esse agente. se a
atividade a ser desenvolvida pelo agente for considerada típica de estado, de que seria
exemplo o exercício do poder de polícia, é vedada a utilização do regime da CLt. ou seja,
lei pode admitir a existência de empregados públicos em qualquer esfera de governo
se não lhes for atribuído o desempenho de atividades de estado. estas atividades se
reservam aos titulares dos cargos públicos, regidos pelo direito Administrativo.
Em resumo, pode-se afirmar:
- no âmbito das empresas estatais exploradoras de atividades empresariais, é
obrigatória a adoção do regime do emprego público;
- Para o exercício de atividades típicas de estado — independentemente de se
tratar de Administração Pública direta ou indireta —, é obrigatória a adoção
do regime do cargo público;
- Para todas as demais situações, o legislador pode utilizar qualquer dos dois outros
regimes, respeitado o que o stF decidiu no julgamento da Adi nº 2.135-dF.
15.2.3 Cargo efetivo e cargo em comissão
não obstante as expressões cargo efetivo e cargo em comissão tenham-se vulgarizado, tecnicamente é mais adequado falar-se em cargo de provimento efetivo e em
cargo de provimento em comissão.
distingue-se um do outro em razão dos requisitos necessários à investidura
do agente. no caso do cargo efetivo, a investidura pressupõe aprovação em concurso
público; ao passo que no provimento em comissão, a escolha do servidor é feita a partir
de critérios de livre nomeação e de livre exoneração.
A Constituição Federal busca valorizar o provimento em caráter efetivo ao estabelecer que os cargos em comissão somente podem ser criados para o exercício de
atividades de chefia, de direção e de assessoramento (art. 37, V). Cabe à lei a criação
de cargos efetivos ou em comissão. estes últimos, todavia, somente podem ser criados
se a função a eles atribuída compreender uma dessas atividades indicadas. Busca-se,
dessa forma, fazer com que os cargos efetivos — cujo critério de provimento melhor
realiza o princípio constitucional da impessoalidade — sejam a regra, e o provimento
dos cargos em comissão a exceção.
A efetividade do cargo está relacionada à necessidade de prévia aprovação em
concurso público. o concurso público não é exclusividade dos cargos efetivos, sendo
igualmente exigido para o provimento dos empregos públicos. ou seja, o concurso
público caracteriza os cargos efetivos e os empregos públicos, sendo o critério da livre
escolha e da livre exoneração reservado pela Constituição Federal exclusivamente para
os cargos em comissão.
nesse ponto, convém observar que os ocupantes dos cargos em comissão são
servidores públicos. nem todos os direitos dos servidores públicos ocupantes de cargos
efetivos lhes são conferidos, tais como a estabilidade (CF, art. 41) e o regime previdenciário especial (CF, art. 40).
6
o art. 247 do texto constitucional dispõe nos seguintes termos: “As leis previstas no inciso iii do §1º do art. 41 e
no §7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável
que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de estado”.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
15.2.4 Cargo em comissão e função de confiança
A Constituição Federal, em seu art. 37, V, dispõe que “as funções de confiança,
exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em
comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos definidos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia
e assessoramento”.
A parte inicial do mencionado dispositivo é bastante simples e define com precisão o requisito para o exercício das funções de confiança: somente pode ser designado
para exercer função de confiança aquele que ocupa cargo efetivo.
Após a aprovação em concurso público, o servidor é investido no respectivo
cargo de provimento em caráter efetivo. A esse cargo é conferida, por lei, determinada
função, vale dizer, um conjunto de atribuições. observados os requisitos previstos
em lei, esse servidor poderá ser designado para exercer atribuições distintas daquelas
afetas ao seu cargo efetivo, atribuições de chefia, de direção ou de assessoramento. Em
qualquer dessas hipóteses, ele será designado para exercer função de confiança. Ou
seja, o servidor continua a ocupar o mesmo lugar (cargo) no serviço público, mas não
mais exercerá as funções deste cargo, devendo exercer as novas atribuições pertinentes
à função de confiança.
É característica da função de confiança ser privativa de quem é titular de cargo
efetivo. Em razão do que tenha sido definido em lei, é possível, no entanto, que somente
possam ser designados para a função de confiança servidores efetivos do órgão ou
entidade a que esteja vinculada aquela função ou, ao contrário, que possam ser requisitados servidores efetivos lotados em outros órgãos, entidades, poderes ou mesmo
quem integre outra esfera de governo. Trata-se de questão a ser definida na própria lei
que deve indicar os requisitos necessários à designação.
Distingue-se a função de confiança do cargo em comissão. Este corresponde ao
lugar a ser ocupado pelo agente público não concursado, não integrante do quadro
efetivo do serviço público. ou seja, nas hipóteses previstas em lei, para exercer atribuições de chefia, de direção ou de assessoramento, se a pessoa não ocupa nenhum cargo
efetivo, ela poderá ser nomeada para cargo em comissão.
Conforme examinado anteriormente, a todo cargo está vinculada uma função.
no caso do cargo em comissão, idêntico raciocínio se aplica, ou seja, a ele está vinculada
uma função de chefia, de direção ou de assessoramento. Esse corresponde ao aspecto
em que a função de confiança e o cargo em comissão se assemelham: a todo cargo em
comissão são conferidas atribuições equivalentes às de uma função de confiança. Caso
a lei autorize a convocação de pessoas não concursadas, não integrantes do quadro
efetivo do serviço público, essa pessoa será nomeada e investida no cargo em comissão.
se, todavia, essa pessoa já for titular de cargo efetivo, ela será simplesmente designada
para exercer a função de confiança.
Grande confusão é causada pela referência feita pelo mencionado art. 37, v, da
Constituição Federal, aos cargos em comissão quando dispõe que eles serão “preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos definidos
em lei”. o equívoco em que incorre o texto constitucional reside no fato de que se o
servidor é de carreira, vale dizer, se se trata de servidor efetivo, ele não é nomeado para
outro cargo em comissão. isso porque a nomeação assim procedida não redundará em
acumulação de cargos (efetivo e comissionado), uma vez que o servidor exercerá apenas
721
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
722
as atribuições do cargo em comissão, tampouco na vacância do cargo efetivo. nesse
contexto, seria tecnicamente mais adequado dizer que o servidor efetivo exercerá as
funções do cargo em comissão e não simplesmente que o servidor ocupará outro cargo
(em comissão) na administração pública.
o servidor de carreira, conforme já mencionado, é tão somente designado para
exercer funções de confiança. Sendo assim, qual será, então, o propósito do dispositivo
constitucional?
A expressão “percentuais mínimos definidos em lei” tem como destinatário o
legislador. sempre que lei for criar na estrutura de qualquer órgão ou entidade pública
cargos em comissão, observadas determinadas condições, devem ser adotados mecanismos, como a fixação de percentual mínimo, de modo a favorecer os servidores do
quadro efetivo daquele órgão ou entidade. se, por exemplo, em determinado órgão
são criados 100 cargos em comissão, a lei pode estabelecer que pelo menos 50% devam
ser preenchidos por servidores de carreira. ocorre que, na hipótese de a atividade ser
exercida por um desses servidores de carreira, ele não será nomeado para o cargo em
comissão, que está reservado para quem não ocupa cargo efetivo. ele será simplesmente
designado para a respectiva função de confiança.
15.3 Categorias de agente público
Quando se examinam as diferentes categorias de agentes públicos, o único ponto
de consenso na doutrina é no sentido de que a expressão agente público corresponde
ao termo genérico e que compreende diversas categorias. A adoção da expressão agente
público para designar o gênero é utilizada pela Lei de improbidade Administrativa (Lei
nº 8.429/92), que em seu art. 2º define agente público “todo aquele que exerce, ainda que
transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação
ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função
nas entidades mencionadas no artigo anterior”.
Verifica-se certa uniformidade doutrinária quanto à indicação da expressão agente
público para designar o gênero que incluiria inúmeras espécies. no momento de indicar
as categorias, no entanto, há enorme divergência entre os autores.
Hely Lopes meirelles aponta quatro diferentes espécies de agentes públicos:
agentes políticos; agentes administrativos; agentes delegados; e agentes honoríficos.7
maria sylvia Zanella di Pietro igualmente admite a existência de quatro categorias
básicas de agentes públicos, os quais se dividem em outras subcategorias. de acordo
com a autora, são agentes públicos os: agentes políticos; os servidores públicos (que se
subdividem em servidores estatutários, empregados públicos e servidores temporários);
os militares; e os particulares em colaboração com o poder público.8
Celso Antônio Bandeira de mello divide os agentes públicos em: agentes políticos;
servidores estatais (abrangendo servidores públicos e servidores das pessoas governamentais
de Direito Privado); e particulares em atuação colaboradora com o poder público.9
7
8
9
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 71.
di Pietro. Direito administrativo, p. 431.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 229.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
José dos santos Carvalho Filho apresenta diferentes categorias de agentes públicos.
segundo o autor, os servidores podem ser civis e militares; comuns e especiais (na categoria de servidores especiais, o autor inclui os magistrados e os membros do ministério
Público); estatutários, trabalhistas e temporários.10
Critério mais detalhado é mencionado por marçal Justen Filho. o gênero, de
acordo com o autor, é agente estatal. estes podem manter vínculo de direito Público
ou de direito Privado. os que mantêm vínculo de direito Público podem ser políticos
ou não políticos, podendo estes últimos ainda se dividir em civis e militares.11
diversos outros importantes autores adotam diferentes critérios ou terminologias
para indicar as diversas categorias de agentes públicos.
em razão da vasta terminologia desenvolvida, não entendemos necessário criar
novas categorias. utilizaremos — por empréstimo — a terminologia básica adotada por
Hely Lopes meirelles com algumas inovações apresentadas por maria sylvia Zanella
di Pietro.
são espécies de agente público:
- os agentes políticos;
- os servidores públicos;
- os empregados públicos;
- os servidores temporários;
- Agentes delegados;
- Agentes honoríficos;
- militares.
examinaremos, em seguida, cada uma dessas categorias.
15.3.1 Agentes políticos
os agentes políticos se caracterizam pelo exercício das atividades estatais básicas
(de administrar, legislar ou julgar) e pela sujeição a regime jurídico diferenciado que
lhes assegure independência funcional.
Grandes dúvidas existem em relação ao alcance da expressão agente político.
Para Hely Lopes meirelles, são agentes políticos os chefes do executivo e seus auxiliares
imediatos (Presidente da república e ministros de estado, governadores e secretários
estaduais etc.), os titulares de cargos no Poder Legislativo (senadores, deputados federais
e estaduais e vereadores), magistrados, membros do ministério Público, membros dos
tribunais de Contas, diplomatas e “demais autoridades que atuem com independência
funcional no desempenho das atribuições governamentais, judiciais ou quase judiciais,
estranhas ao quadro do funcionalismo estatutário”.12 Celso Antônio Bandeira de mello
utiliza a expressão em sentido mais restrito,13 sendo acompanhado por marçal Justen
Filho. de acordo com este último autor, “os agentes políticos são os indivíduos investidos
em mandado eletivo, no âmbito do Poder Legislativo ou do Poder executivo, e aqueles
que, por determinação constitucional, exercitam função de auxílio imediato do Chefe
10
11
12
13
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 479.
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 570.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 72.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 229.
723
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
724
do Poder executivo, que são os ministros de estado no âmbito federal, os secretários
estaduais e municipais”.14 vê-se que esses dois últimos autores expressamente excluem
do âmbito do conceito de agente público os magistrados e membros do ministério
Público. Acerca dessa exclusão, ou da adoção do critério restrito de agente político,
Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que “esta última conceituação é preferível. A idéia
de agente político liga-se, indissociavelmente, à de governo e à de função política”.15
Concordamos — com a devida vênia — com noção desenvolvida por Hely Lopes
Meirelles acerca da conceituação de agente político. A ideia básica que justifica a existência
dessa categoria especial de agente público está relacionada ao exercício das atribuições
básicas do estado e à não sujeição a regras de hierarquia. vale dizer, o agente político
atua por convicção própria e não em cumprimento de ordens ou determinações emanadas de autoridades superiores. nesse sentido, além dos titulares de cargos eletivos,
são também agentes políticos os magistrados e os membros do ministério Público e dos
tribunais de Contas.
vê-se que não há consenso acerca do enquadramento dessas últimas categorias
como agentes políticos ou como servidores públicos. o seu enquadramento em uma
situação ou na outra, isto é, como agente político ou como servidor público, em nada
afeta o regime jurídico a eles aplicável. o regime dos magistrados ou do ministério Público,
por exemplo, não sofre qualquer alteração em razão de eles serem enquadrados como agentes
políticos ou como servidores públicos.
É simplesmente de se lamentar que a qualificação de determinados agentes como
políticos importe em legitimar a arrogância que, infelizmente, é tão frequentemente
encontrada em algumas categorias públicas, dentre elas a magistratura e o ministério
Público. o enquadramento dessas categorias como agentes políticos, e não como servidores públicos — como preferiria a maioria da doutrina pátria —, talvez seja a razão
pela qual boa parte desses importantes agentes públicos se consideram dispensados
de servir ao público com a cortesia e, em casos não tão raros, de utilizarem seus cargos
para, em situações absurdamente triviais, e em evidente abuso de poder, obterem privilégios como, por exemplo, prioridade em embarques de companhias aéreas. nesse
sentido, não obstante parcela dessas categorias não faça por merecer a qualificação de
agentes políticos, eles o são, não por distinção ou merecimento pessoal, mas em razão
da atividade que exercem e do regime jurídico a eles aplicável, conforme buscaremos
demonstrar em seguida.
15.3.2 servidores públicos
Algumas observações iniciais nos parecem necessárias sobre o alcance da expressão servidor público.
em primeiro lugar, devemos observar que os militares não mais podem ser considerados servidores públicos. desde a edição da eC nº 18, de 1998, que a Constituição
Federal estabelece nítida distinção entre essas duas categorias, sendo os servidores
públicos — que atualmente compreendem tão somente os servidores civis — e os
militares tratados em seções distintas da Constituição. os primeiros são regulados
14
15
Justen FiLHo. Curso de direito administrativo, p. 574.
di Pietro. Direito administrativo, p. 432.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
pela seção ii do Capítulo vii do título iii (artigos 39 a 41). os militares dos estados,
do distrito Federal e dos territórios são disciplinados pela seção iii do Capítulo vii do
título iii (art. 42), e, aos militares das Forças Armadas, são aplicáveis as regras previstas
no art. 142 e 143. Portanto, os militares são agentes públicos, mas não pertencem à categoria
dos servidores públicos.
outra questão relevante consiste em saber se empregados públicos seriam igualmente servidores públicos. não obstante haja autores que expressamente adotem esse
entendimento, preferimos a solução contrária.
Há, efetivamente, inúmeras regras aplicáveis aos servidores públicos e aos
empregados públicos constantes do art. 37, que apresenta disposições gerais sobre a
Administração Pública. A Constituição Federal, entretanto, no supramencionado título
III, Capítulo VII, apresenta seção em que são definidas regras específicas para os servidores públicos. trata-se da seção ii. nela são estabelecidas inúmeras regras aplicáveis
tão somente aos servidores ocupantes de cargos públicos, o que importa em excluir a
possibilidade de enquadramento dos empregados como servidores públicos.
nessa seção do texto constitucional, aos empregados públicos são feitas apenas
duas referências: uma no art. 38, §6º, quando determina que os valores do subsídio e da
remuneração dos cargos e empregados públicos deverão ser publicados anualmente, e
outra no art. 40, §13, que dispõe que aos empregados públicos não se aplicam as regras
pertinentes à aposentadoria dos servidores públicos. ou seja, não é estabelecida, na
seção do texto constitucional dedicada aos servidores públicos, uma única referência
para definir o regime jurídico dos empregos públicos, razão que nos leva à conclusão
de que a categoria servidor público não compreende os empregados públicos.16
Servidor público é aquele que ocupa cargo público de provimento em caráter efetivo, que
pressupõe prévia aprovação em concurso público, ou de provimento em comissão. essa regra,
aliás, consta de modo expresso no art. 2º da Lei nº 8.112/90, que em seu art. 2º, dispõe que
“para os efeitos desta Lei, servidor é a pessoa legalmente investida em cargo público”.
outro traço característico dos servidores públicos é a observância do princípio
da hierarquia, o que importa em reconhecer àquele a quem o servidor público está
subordinado — que pode ser outro servidor público ou agente político — a faculdade
de dar ordens, de delegar ou de avocar atribuições, de fiscalizar e rever os atos por eles
praticados no exercício da função pública. A inexistência de hierarquia é, conforme já
observado, a razão que nos leva a excluir os magistrados e os membros do ministério
Público e tribunais de Contas do âmbito da conceituação dos servidores públicos.
os servidores públicos são também denominados de agentes administrativos ou
de servidores estatutários.
essa terminologia pode ser atribuída, em primeiro lugar, ao fato de desempenharem atividades de natureza administrativa na união, estados, municípios, distrito
Federal e respectivas entidades autárquicas e fundacionais; e, em segundo lugar, porque
mantêm com a Administração Pública relação jurídica legal, disciplinada diretamente
pelo direito Administrativo.
No âmbito de cada entidade política deve ser aprovada lei que defina o regime
jurídico dos seus respectivos servidores públicos. Não se verifica, nesse aspecto, qualquer
obrigatoriedade de que as leis estaduais, do distrito Federal ou dos municípios devam
16
no voto proferido pelo min. relator Cezar Peluso por ocasião do julgamento da Adi nº 3.395-mC/dF (DJ, 10 nov. 2006),
resta evidente que os empregados públicos não constituem categoria de servidor público.
725
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
726
seguir os parâmetros da legislação aprovada pela união para regular o regime dos
servidores públicos federais (Lei nº 8.112/90).17 vinculam-se, além da união, os estados,
o distrito Federal e os municípios às normas relativas aos servidores públicos, previstas
na Constituição Federal. Assim, por exemplo, o fato de a lei federal (Lei nº 8.112/90) prever
a licença capacitação para os servidores federais não vincula ou obriga as demais esferas de
governo a adotarem igual licença. todavia, as regras previstas no texto constitucional sobre
servidores públicos — relativas ao concurso público, ao teto remuneratório, à acumulação,
aos cargos em comissão, à aposentadoria etc. — obrigam e vinculam as leis estaduais,
municipais e do distrito Federal, além, evidentemente, de vincular a própria união.
A redação original da Constituição Federal de 1988 determinava que o regime
jurídico dos servidores, em cada esfera de governo, deveria ser único. A adoção desse
regime jurídico único, posteriormente revogado pela eC nº 19/98, importava em que,
em cada nível de governo, o regime adotado para o pessoal da Administração Pública
direta deveria ser obrigatoriamente observado pelas respectivas entidades autárquicas
e fundacionais daquela mesma esfera. Assim, como no plano federal, por exemplo,
havia sido aprovada a Lei nº 8.112/90, além de ela alcançar todo o pessoal da própria
união — ressalvados os agentes políticos, que jamais se submeteram ao regime jurídico
único e sempre observaram regime próprio —, ela obrigatoriamente alcançava todos
servidores de todas as autarquias e fundações públicas federais.
Com a revogação do dispositivo constitucional que obrigava a adoção do mencionado regime jurídico único, ao lado do regime instituído pela Lei nº 8.112/90, a
união — e o mesmo vale para qualquer estado, município e para o distrito Federal
— passou a poder adotar, se assim o desejasse, outros regimes para o pessoal de sua
própria Administração Pública direta, bem como para suas respectivas autarquias e
fundações. no entanto, atualmente, com o mencionado julgamento da Adi nº 2.135-dF,
em sede cautelar, o regime jurídico único voltou a ser obrigatório para os servidores da
Administração direta, autárquica e fundacional. na esfera federal, esse regime único é
regulamentado pela Lei nº 8.112/90.
O regime jurídico administrativo é um traço essencial dos servidores públicos. este aspecto
tem sido a razão pela qual o supremo tribunal Federal, em reiteradas decisões, inclusive
após a edição da emenda Constitucional nº 45/2004, tem-se manifestado pela incompetência
da Justiça do Trabalho para examinar as ações propostas pelos servidores públicos contra
as respectivas entidades políticas ou administrativas onde atuam. de acordo com a jurisprudência do stF, o juízo trabalhista é competente, em matéria de agentes públicos, para
processar e julgar tão somente as reclamações trabalhistas dos empregados públicos.18
17
18
em razão dessa particularidade, de a legislação aprovada pela união para os seus servidores públicos não ser
aplicável às demais esferas de governo, se diz que a Lei nº 8.112/90 se trata de legislação federal. distinta é a situação da legislação relativa às normas gerais sobre licitação (Lei nº 8.666/93), por exemplo, que em razão de previsão
constitucional expressa (art. 22, XXvii), é de aplicação obrigatória a todas as esferas de governo, e não apenas ao
âmbito federal. Assim, as leis aprovadas pela união sobre servidores públicos somente se aplicam no âmbito federal; as normas gerais aprovadas pela união sobre licitação e contratação aplicam-se a todas as esferas de governo.
nesse sentido, é oportuno transcrever parte do voto proferido pelo min. Cezar Peluzo por ocasião do julgamento
da Adi nº 3.395-mC/dF: “não há que se entender que justiça trabalhista, a partir do texto promulgado, possa
analisar questões relativas aos servidores públicos. essas demandas vinculadas a questões funcionais a eles pertinentes, regidos que são pela Lei 8.112/90 e pelo direito administrativo, são diversas dos contratos de trabalho
regidos pela CLt. Leio Gilmar mendes, há ‘oportunidade para interpretação conforme à Constituição (...) sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas
incompatíveis com a própria Constituição. (...) um importante argumento que confere validade à interpretação
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
A natureza estatutária dos servidores públicos resulta em que, aqueles lotados na
união, autarquias e fundações públicas federais, demandem contra essas entidades na
Justiça Federal, ao passo que os servidores públicos estaduais, municipais e do distrito
Federal quando o fazem, devem peticionar nas respectivas justiças comuns estaduais.
no regime administrativo anterior à Constituição Federal de 1988, era utilizada a
expressão funcionário público para designar os servidores estatutários da Administração
Pública direta. Com a vigência da Constituição Federal de 1988, e com a implantação do
denominado regime jurídico único promovida, no âmbito federal, pela Lei nº 8.112/90,
todos os empregos existentes na união, autarquias e fundações públicas federais foram
extintos, seus ocupantes passaram a ocupar cargos públicos e a serem designados pela
expressão servidores públicos. Assim, a expressão funcionário público se encontra em
total desuso no âmbito administrativo e foi substituída pela expressão servidor público.
no âmbito do Direito Penal, a expressão funcionário público é utilizada em sentido bem mais amplo, compreendendo os ocupantes de cargo, de emprego e de função
pública.19
Chamamos a atenção do leitor para o fato de que os servidores públicos constituem o objeto de estudo do presente capítulo. Antes de tratarmos de outros importantes
aspectos do regime jurídico dos servidores públicos, examinaremos as demais categorias
de agentes públicos.
15.3.3 empregados públicos
Os empregados públicos constituem categoria específica de agentes públicos,
e não uma espécie de servidor público. em outras palavras, o empregado público é
agente público, mas não é servidor público.
os empregados públicos são pessoas físicas contratadas pelas entidades administrativas para a prestação de serviços sob o regime da Consolidação das Leis do
trabalho (CLt).
em razão do que dispõe o texto constitucional vigente, o regime jurídico do emprego público é de adoção obrigatória pelas empresas estatais exploradoras de atividades
19
conforme à Constituição é o princípio da unidade da ordem jurídica (...)’ (Jurisdição Constitucional, são Paulo,
Saraiva, 1998, págs. 222/223). É o caso. A alegação é fortemente plausível. Há risco. Poderá, como afirma a inicial,
estabelecerem-se conflitos entre a Justiça Federal e a Justiça Trabalhista, quanto à competência desta ou daquela.
em face dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e ausência de prejuízo, concedo a liminar, com
efeito ex tunc. dou interpretação conforme ao inciso i do art. 114 da CF, na redação da eC nº 45/2004. suspendo,
ad referendum, toda e qualquer interpretação dada ao inciso i do art. 114 da CF, na redação dada pela eC 45/2004,
que inclua, na competência da Justiça do trabalho, a ‘(...) apreciação (...) de causas que (...) sejam instauradas entre
o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídicoadministrativo’” (Adi nº 3.395-mC/dF, Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg. 5.4.2006. DJ, 10 nov. 2006).
Acerca do tema, cumpre-nos ainda mencionar o enunciado nº 97 da súmula do stJ: “Compete a Justiça do trabalho processar e julgar reclamação de servidor público relativamente a vantagens trabalhistas anteriores à instituição do regime jurídico único”; e a orientação jurisprudencial do tribunal superior do trabalho nº 249 da sBdi-1
(DJU, 20 abr. 2005): “Compete à Justiça do trabalho julgar pedidos de direitos e vantagens previstos na legislação
trabalhista referente a período anterior à Lei nº 8.112/90, mesmo que a ação tenha sido ajuizada após a edição da
referida lei. A superveniência de regime estatutário em substituição ao celetista, mesmo após a sentença, limita a
execução ao período celetista”.
Para julgar ações dos servidores estatutários dos estados, distrito Federal e municípios, vale a regra contida no
enunciado da súmula stJ nº 137: “Compete à justiça comum estadual processar e julgar ação de servidor público
municipal, pleiteando direitos relativos ao vínculo estatutário”.
dispõe o Código Penal, art. 327, que se considera “funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”.
727
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
728
empresariais (art. 173, §1º, ii). Ainda quando em vigor a dualidade de regimes prevista
pela eC 19/98, não se admitia, conforme entendimento do stF, a utilização do regime
jurídico do emprego público para o exercício de atividades típicas de estado (CF,
art. 247), que obviamente devem ser exercidas por agentes investidos em regime estatutário que lhes assegure direito à estabilidade. A regra constitucional, contudo, nunca
representou impedimento para que entidade ou órgão incumbido do desempenho de
atividade típica de estado utilizasse, ao menos para alguns de seus agentes, o regime do
emprego público. ou seja, em uma entidade autárquica como a AneeL, por exemplo,
as atividades consideradas típicas de Estado, como a fiscalização das concessionárias
de energia elétrica, devem ser necessariamente realizadas por servidores em regime
estatutário, disciplinado pelo direito Administrativo. era possível e legítimo, todavia,
desde que lei assim dispusesse que nessa mesma agência fosse adotado o regime celetista
para o pessoal de apoio não vinculado ao exercício das atividades típicas de estado, a
exemplo de telefonistas, motoristas, auxiliares etc. de toda maneira, após a conclusão
a que chegou o supremo tribunal Federal no julgamento da Adi nº 2.135-dF, atualmente,
aplica-se o regime jurídico único para os servidores da administração direta, autárquica
e fundacional, exerçam eles atividades típicas ou não.
A utilização do regime do emprego público seria, a rigor, solução mais vantajosa
para a Administração Pública que a simples terceirização de mão de obra que tem ocorrido
de forma ampla e disseminada no serviço público brasileiro.20
sob o pretexto de redução de custos, a terceirização da mão de obra pública
tem resultado em violação ao princípio da impessoalidade, na medida em que não é
utilizado qualquer critério objetivo para a escolha do pessoal a ser contratado pelas
empresas contratadas, sendo, ademais, comum a escolha desses empregados ser feita
mediante indicação política. esse sistema resulta em enriquecimento de alguns poucos
empresários em detrimento da grande massa de trabalhadores remunerados, quase
sempre, pelo piso das respectivas categorias profissionais.
melhor do que manter a atual sistemática de terceirização — que segundo dados
do TCU já é responsável pelo consumo de mais de 40% dos recursos destinados ao
pagamento de pessoal na Administração Pública federal direta —, seria adotar, para o
desempenho dessas atividades, a execução direta por meio de agentes públicos concursados e contratados em regime de emprego público. esta opção daria mais liberdade ao
estado do que o regime estatutário dos servidores públicos e, certamente, sairia bem
mais em conta para o poder público que a manutenção do sistema de terceirização.
o regime jurídico dos empregados públicos é híbrido, devendo ser observada a legislação trabalhista prevista na CLT, com eventuais derrogações definidas pela Constituição Federal ou por outras leis extravagantes. não obstante observem o regime jurídico
trabalhista aplicável ao setor privado, os empregados públicos devem-se submeter
20
A terceirização irregular na administração pública é especialmente preocupante no âmbito das empresas estatais
que, em vez de promover concurso público ou convocar candidatos aprovados em certames já realizados, optam
por contratar indevidamente terceirizados para atividades finalísticas e/ou funções contempladas nos seus
planos de cargos. em inúmeras ocasiões o tribunal de Contas da união se deparou com esse problema, por
conta de suas fiscalizações, o que resultou na prolação do Acórdão nº 2.132/2010, Plenário, por meio do qual
se buscou resolver a questão de forma definitiva e abrangente com a fixação de prazo para que as empresas
estatais encaminhassem ao departamento de Coordenação e Governança das empresas estatais (dest) plano
detalhado para substituição, num prazo de cinco anos, de todos os trabalhadores terceirizados que se enquadrem
em situação irregular por empregados concursados, em atenção ao art. 37, inciso ii, da Constituição Federal. A
data limite ali fixada foi estendida para 30.11.2012, conforme autorizou o Acórdão nº 2.303/2012, Plenário.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
ao concurso público; não possuem estabilidade no emprego — direito reservado aos
servidores ocupantes dos cargos públicos efetivos —, mas não podem ser demitidos
sem que haja processo administrativo em que sejam indicadas as razões da demissão
e assegurado contraditório e ampla defesa.21
no plano federal, o regime do emprego público se encontra regulado pela Lei
nº 9.962, de 2000.
15.3.4 servidores temporários
A contratação de servidores temporários22 constitui — ou deveria constituir —
hipótese de utilização bastante restrita no serviço público.
no texto constitucional, o tema é disciplinado pelo art. 37, iX, que reserva essa
contratação para “atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”.
Para regular essas contratações temporárias, foi aprovada a Lei nº 8.745/93, que autoriza
“órgãos da Administração Federal direta, as autarquias e as fundações públicas”23 a
21
22
23
Afirmar que a demissão dos empregados pressupõe processo administrativo e a indicação das razões da demissão
não importa em que ela somente possa ocorrer com justa causa. Poderão ser demitidos sem justa causa, desde que
haja a devida motivação. suponhamos que determinado banco estatal decida reduzir o quadro de pessoal por
razões deficitárias, ou porque decida fechar determinado número de agências, não obstante não tenham praticado
esses empregados infração que justifique a demissão com justa causa, eles serão demitidos, nos termos da legislação trabalhista, sem justa causa e com o pagamento de todos os direitos trabalhistas.
A possibilidade de rescisão unilateral dos contratos celebrados pela Administração Pública federal com empregados públicos, nos termos do art. 3º da Lei nº 9.962/2000, somente é admitida nas seguintes hipóteses:
i - prática de falta grave, dentre as enumeradas no art. 482 da Consolidação das Leis do trabalho – CLt;
ii - acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;
iii - necessidade de redução de quadro de pessoal, por excesso de despesa, nos termos da lei complementar a
que se refere o art. 169 da Constituição Federal;
iv - insuficiência de desempenho, apurada em procedimento no qual se assegurem pelo menos um recurso hierárquico dotado de efeito suspensivo, que será apreciado em trinta dias, e o prévio conhecimento dos padrões
mínimos exigidos para continuidade da relação de emprego, obrigatoriamente estabelecidos de acordo com as
peculiaridades das atividades exercidas.
no sentido de que a demissão de servidores não estáveis deve ser antecedida de contraditório e ampla defesa,
assim decidiu o stF: “Constitucional. Administrativo. recurso extraordinário. servidor público estadual não
estável. demissão por conveniência administrativa. Contraditório e ampla defesa. necessidade. 1. É necessário
o devido processo administrativo, em que se garantam o contraditório e a ampla defesa, para a demissão de
servidores públicos, mesmo que não estáveis. Precedentes: re 223.927-Agr, dJ de 23.03.2001, e re 244.543, dJ
de 26.09.2003. 2. embargos de declaração conhecidos como agravo regimental ao qual se nega provimento” (re
nº 424.655-ed/mG, 2ª turma. rel. min. ellen Gracie. DJ, 18 nov. 2005).
muita dúvida cerca a terminologia utilizada para designar os agentes contratados temporariamente, se seriam
“servidores” temporários ou “empregados’ temporários. Ao julgar a Adi nº 2.687-PA (Pleno. rel. min. nelson
Jobim. Julg. 20.3.2003. DJ, 6 jun. 2003), o stF a eles se referiu como servidores temporários. no julgamento da
Adi nº 3.068-dF (Pleno. rel. min. marco Aurélio. rel. p/ acórdão min. eros Grau. Julg. 25.8.2004. DJ, 23 set.
2005), ao contrário, a eles são feitas referências como empregados temporários. Parece-nos mais adequada a
expressão servidor temporário em razão de que a eles não se aplica a CLt. no âmbito da Justiça do trabalho,
este parece ser entendimento dominante. nesse sentido, vide a súmula tst nº 123. esta súmula, cancelada pela
resolução nº 121/03, expressamente a eles se referia como servidores temporários e declarava a incompetência
da Justiça do trabalho em razão de a relação entre mencionados servidores e a Administração Pública ser estatutária. nessa mesma linha, ou seja, no sentido de que a contratação temporária “não revela qualquer vínculo
trabalhista disciplinado pela CLt”, manifestou-se o stJ no julgamento do Agrg no CC nº 38.459-Ce (3ª seção.
rel. min. José Arnaldo da Fonseca. Julg. 22.10.2003. DJ, 17 nov. 2003).
Acerca da impossibilidade de adoção do regime de contratação temporária em empresas estatais, stF: “Por
entender caracterizada a ofensa ao inciso ii do art. 37 da CF/88 — que determina que a investidura em cargo
ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público —, o tribunal, por maioria, julgou
procedente o pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Partido dos trabalhadores – Pt, para declarar
a inconstitucionalidade da Lei 418/93, do distrito Federal, que permitia, para o atendimento de necessidades
729
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
730
efetuar contratação de “pessoal por tempo determinado, nas condições e prazos previstos
nesta Lei”. deve ser observado que a legitimidade da contratação temporária prevista
na Constituição pressupõe que a necessidade da contratação seja temporária, e não apenas que o contrato firmado com o servidor tenha prazo limitado. Exemplo de evidente
equívoco ocorre com a contratação de professores substitutos pelas universidades federais. não obstante a contratação desses professores seja feita por prazo determinado,
a necessidade da Administração é permanente, o que não autorizaria a utilização do
regime previsto no mencionado art. 37, iX. essa realidade, infelizmente, não foi coibida
pelo stF. no julgamento da Adi nº 3.068-dF, o stF reputou constitucional a contratação de servidores temporários, selecionados mediante procedimento simplificado que
compreenderia o exame de currículos, para atividades de caráter permanente para o
Conselho Administrativo de defesa econômica (CAde).24
Exemplo de correta utilização do regime de contratação temporária verificou-se no
iBGe para a contratação de servidores que trabalharam no censo populacional brasileiro.
nesse caso, são temporárias a contratação e a necessidade do serviço.
A contratação temporária deve (ou deveria) ser utilizada em caráter excepcional,
e exatamente por isso o texto constitucional a reserva para situações transitórias de
excepcional interesse público. o motivo para o regime ser utilizado como excepcionalidade decorre do fato de que os servidores temporários não precisam se submeter ao
concurso público em razão de não ocuparem cargo ou emprego público. eles exercem
função pública de caráter temporário e constituem a única situação em nosso regime
administrativo em que o servidor pode exercer função pública sem que necessite ocupar
cargo ou emprego público.
nos termos do art. 37, ii, da Constituição Federal, o concurso público de provas ou
de provas e títulos deve ser realizado como requisito à investidura em cargos (excetuados
os em comissão) e empregos públicos. dado que os servidores temporários exercem
função pública sem ocupar cargo ou emprego, não se lhes aplica a determinação constitucional do concurso, sendo, quando muito, utilizado processo de seleção simplificada,
em que os critérios, absolutamente subjetivos, permitem a escolha de quem obtiver a
melhor “indicação”.
A não aplicação da regra do concurso público para a seleção dos servidores
temporários talvez explique por que esse regime, que deveria ser excepcional, tem-se
transformado em realidade cada vez mais frequente no serviço público brasileiro.
os servidores temporários precisam ser brasileiros, ou estrangeiros, na forma
da lei, conforme dispõe o art. 37, i, da Constituição Federal, sendo-lhes igualmente
aplicável a regra que veda a acumulação de cargos, empregos e funções (art. 35, Xvii).
o servidor temporário é um prestador de serviço. sua relação com o poder
público é disciplinada por um contrato de prestação de serviço, sendo, no âmbito da
24
de excepcional interesse público ali especificadas, contratações de pessoal, por prazo determinado, mediante
contrato de locação de serviços no âmbito das empresas públicas e de sociedades de economia mista do distrito
Federal. Considerou-se que o modelo de contratação previsto na norma impugnada autorizava a contratação de
pessoal de forma irregular, não enquadrada nas hipóteses excepcionais contidas no inciso iX do art. 37 da Constituição. vencido o min. marco Aurélio, que julgava improcedente o pedido formulado, por entender que a Lei
impugnada seria compatível com o disposto no inciso iX do art. 37 da CF/88 (‘iX - a lei estabelecerá os casos de
contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público’)”
(Adi nº 890-mC/dF, Pleno. rel. min. Paulo Brossard. Julg. 1º.2.1994. DJ, 08 abr. 1994).
stF. Adi nº 3.068-dF, Pleno. rel. min. marco Aurélio. rel. p/ acórdão min. eros Grau. Julg. 25.8.2004. DJ, 23 set. 2005.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
Administração Pública federal, assegurados alguns direitos previstos na Lei nº 8.112/90,
conforme dispõe o art. 11 da Lei nº 8.745/93.25 Assim, não obstante seja celebrado contrato de prestação de serviço, em razão da aplicação ao servidor temporário de regras
pertinentes aos servidores públicos, na prática, sua condição jurídica muito se aproxima
da destes últimos, ou, ao menos, é mais próxima aos servidores públicos do que dos
empregados públicos.
15.3.5 Agentes delegados
Agentes delegados são pessoas físicas que desempenham atividades estatais
remuneradas pelos particulares usuários dos seus serviços.
Notários e registradores, tradutores oficiais e leiloeiros, em razão de delegação
do poder público, desempenham atividades estatais em seus próprios nomes e sob
fiscalização do Estado. A remuneração dos agentes delegados não é paga pelos cofres
públicos, mas pelos usuários dos serviços. este aspecto é essencial para caracterização
do agente público delegado.
discordamos da inclusão dos concessionários e permissionários de serviços públicos
como agentes delegados. A qualificação de agente somente é aplicável a pessoas físicas,
e as empresas concessionárias e permissionárias não atendem a esse requisito,26 embora
sejam delegatárias de serviços públicos.
Como os agentes delegados atuam em nome próprio, não se deveria cogitar de
responsabilizar o poder público delegante pelos atos por eles praticados. essa regra,
todavia, não tem sido observada na jurisprudência do supremo tribunal Federal.
especialmente em relação aos notários e registradores, o stF tem construído tese
que lhes é extremamente favorável. Para fins de responsabilidade civil, por exemplo, eles
são considerados agentes — e não pessoas de direito Privado prestadoras de serviços
públicos —, somente sendo obrigados a pagar indenização se for demonstrada culpa
ou dolo em sua atuação.27
evidentemente esse não é o espírito do texto constitucional. nos termos do art. 37,
§6º, da CF, as pessoas de direito Público e as de direito Privado prestadoras de serviços
públicos assumem, perante os usuários de seus serviços, responsabilidade civil objetiva com
25
26
27
A contratação de servidores temporários pode ser apresentada como exemplo das contradições que rodam a
Administração Pública brasileira. nos termos da mencionada Lei nº 8.745/93, a remuneração do contratado
temporariamente tem como parâmetro “o valor da remuneração fixada para os servidores de final de carreira
das mesmas categorias” (art. 7º, i). ou seja, se o servidor é contratado temporariamente, ele ganhará parcela
equivalente àquela que os servidores concursados somente alcançam no final de suas carreiras!
A Lei nº 8.987/95, que cuida das concessões e permissões de serviço público, em seu art. 2º, ii e iii, expressamente
menciona que o concessionário de serviço público deve ser pessoa jurídica. no caso do permissionário, o art. 2º,
iv, admite a possibilidade de ser pessoa física. Assim, ainda que na realidade não sejam comuns contratos de
permissão firmados com pessoas físicas em razão de práticas verificadas no mercado, é de admitir, ao menos em
tese, a possibilidade de permissionário de serviço público ser um agente delegado. no caso do concessionário,
essa hipótese deve ser totalmente afastada.
nesse sentido: “Constitucional e Administrativo. Agravo regimental em recurso extraordinário. responsabilidade extracontratual do estado. tabelião. Agente público. Art. 37, §6º, dA CF/88. 1. A função eminentemente
pública dos serviços notariais configura a natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares
de cartórios e registros extrajudiciais. re nº 209.354-Pr. 2. Responsabilidade extracontratual do Estado caracterizada.
3. reexame de fatos e provas para eventual desconstituição do acórdão recorrido. incidência da súmula stF
279. 4. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. 5. Agravo
regimental improvido” (stF. re nº 551.156-Agr/sC, grifos nossos).
731
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
732
base na teoria do risco administrativo. As únicas pessoas de direito Privado prestadoras
de serviço público que não se enquadram na disposição constitucional, de acordo com a
jurisprudência do eg. stF, são os notários e registradores. o casuísmo e o favorecimento
com que a jurisprudência do STF trata essa categoria específica de agente público é de
causar profunda estranheza. todos os agentes delegados, todos os que prestam serviço
público em nome próprio, assumem responsabilidade civil objetiva pelos atos que pratica,
exceto os notários e registradores. no caso destes últimos, o stF transfere essa responsabilidade objetiva ao poder público delegante, definindo que a responsabilidade do notário
é subjetiva.
Poder-se-ia argumentar que o texto constitucional é expresso ao definir, na parte
final do mencionado art. 37, §6º, que a responsabilidade civil dos agentes públicos é
regressiva e somente aplicável “nos casos de dolo ou culpa”. A referência desta parte do
dispositivo constitucional pressupõe — e isto nos parece evidente — que o agente público
não pode ser responsabilizado diretamente, mas somente em ação regressiva proposta
pelo poder público, em razão de ele ter agido em nome do poder público. exemplo:
quando o motorista de veículo oficial, agindo nessa qualidade, causa prejuízo a terceiro,
ele imputa responsabilidade à entidade onde atua em razão da aplicação da teoria do
órgão. essa é a razão por que a jurisprudência do stF não admite que o particular que
sofreu o prejuízo proponha ação contra o agente, porque ele não agiu em nome próprio.28
totalmente distinta é situação do notário e do registrador, que ao receber delegação do poder público atua em nome próprio. nesse ponto, percebe-se a contradição
do stF que admite ação em litisconsórcio passivo facultativo contra referidos agentes
(notários e registradores), que respondem subjetivamente, e contra o poder público
delegante, que assume responsabilidade objetiva. em razão de o poder público ter delegado o serviço, a sua responsabilidade não deveria ser sequer suscitada, ressalvadas,
à semelhança do que ocorre com todas as demais hipóteses de delegação de serviço
público, as situações em que o poder público tenha sido omisso no dever de fiscalizar
a correta prestação do serviço.
se empresa de transporte coletivo causa prejuízo a usuário, jamais se cogitou de
responsabilizar o poder público pelo dano (salvo se o poder público foi omisso e permitiu que empresa sem condições de prestar serviço continuasse a atuar). Por que então
o poder delegante, no caso dos notários e registradores, deve responder diretamente,
independentemente de qualquer omissão do seu dever de fiscalizar, ao passo que “a
pessoa de direito privado prestadora de serviços públicos” (notários e registradores)
responde somente se demonstrada sua culpa ou dolo?
Quando se cogita, todavia, de aplicar aos notários e registradores regras restritivas de direito, de que seria exemplo a aposentadoria compulsória, o stF entende que
a eles não se aplicam as normas gerais pertinentes aos agentes públicos. em resumo,
a jurisprudência do stF determina que são aplicáveis aos notários e registradores as
regras pertinentes aos agentes públicos no que lhes convier, sendo igualmente tratados
28
Nas palavras do Ministro Carlos Ayres Britto, conforme o Voto que fundamentou a decisão proferida no RE
nº 327.904-sP, a regra prevista no art. 37, §6º, da Constituição Federal, “(...) consagra uma dupla garantia: uma,
em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de
direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente
responde administrativamente e civilmente, perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular”.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
como pessoas de direito Privado prestadoras de serviço público somente no que for do
seu interesse ou conveniência.
O regime jurídico dos notários e registradores é definido pelo art. 236 da Constituição Federal, e se encontra regulado pela Lei nº 8.935, de 1994.
15.3.6 Agentes honoríficos
Acerca desta categoria de agente público, são merecedores de transcrição os
ensinamentos do mestre Hely Lopes meirelles:
são cidadãos convocados, designados ou nomeados para prestar, transitoriamente, determinados serviços ao estado, em razão de sua condição cívica, de sua honorabilidade ou
de sua notória capacidade profissional, mas sem qualquer vínculo empregatício ou estatutário e, normalmente, sem remuneração. tais serviços públicos constituem o chamado
múnus público, ou serviços públicos relevantes, de que são exemplos a função de jurado,
de mesário eleitoral, de comissário de menores, de presidente ou membro de comissão
de estudo ou de julgamento e outros dessa natureza.29
Para essas situações, em que o particular presta serviço mediante requisição,
convocação ou designação, maria sylvia Zanella di Pietro prefere designar de “particulares em colaboração com o Poder Público”,30 e Celso Antônio Bandeira de mello
de “particulares em atuação colaboradora com o Poder Público”. em homenagem ao
ilustre mestre Hely Lopes meirelles, mantemos sua terminologia.31
O traço característico dos agentes honoríficos é o exercício de função pública sem
contraprestação específica.
Equiparam-se aos servidores públicos para fins de aplicação dos tipos previstos
na legislação penal (Código Penal, art. 327) e se sujeitam à lei de improbidade administrativa.
não sendo remunerados, a eles não se aplica a regra que impede a acumulação de
cargos, empregos ou funções, que nos expressos termos do art. 37, Xvi e Xvii, somente
é válida se houver remuneração. Assim, servidor público pode ser designado para o
Conselho da república (art. 89, vii), por exemplo, sem que isso importe em acumulação
ilegal de cargos públicos.
15.3.7 militares
os militares são as pessoas físicas que exercem funções nas Polícias militares e
nos Corpos de Bombeiros militares dos estados, do distrito Federal e dos territórios,
e nas Forças Armadas.
A Constituição Federal admite duas categorias de militares. A primeira composta pelos militares dos estados, do distrito Federal e dos territórios; a segunda,
pelos militares das Forças Armadas. os primeiros são regulados pelo art. 42 do texto
constitucional; os segundos, pelo art. 142 da Constituição Federal.
29
30
31
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 75.
di Pietro. Direito administrativo, p. 431.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 229.
733
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
734
A remissão feita pelo art. 42, §1º, faz com que o regime jurídico dos militares
das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros muito se aproxime daquele definido
pelo art. 142, §§2º e 3º, relativo aos militares do exército, da marinha e da Aeronáutica.
Distinção maior se verifica em relação ao regime dos militares em relação àquele
aplicável aos servidores civis. A aprovação da eC nº 18/98, que suprimiu dos militares
a qualificação de servidores públicos, não teve caráter exclusivamente terminológico.
Ao fazer essa separação, ou seja, ao dispor que os militares não são servidores públicos, as regras pertinentes ao regime jurídico destes últimos (dos servidores públicos)
somente passam a ser aplicáveis aos militares se houver expressa referência no texto
constitucional. Assim, por exemplo, a regra do teto remuneratório prevista no art. 37,
Xi, é aplicável aos militares em razão do disposto nos artigos 42, §1º, e 142, §3º, viii.
este último dispositivo, o art. 142, §3º, viii, determina as regras pertinentes aos trabalhadores (art. 7º, viii, Xii, Xvii, Xviii, XiX e XXv) e aos servidores públicos (art. 37,
Xi, Xiii, Xiv e Xv) aplicáveis aos militares.
não são aplicáveis aos militares, por exemplo, as regras constitucionais pertinentes ao concurso público ou à acumulação de cargos, empregos ou funções.
Para o ingresso nas Forças Armadas e nas corporações militares estaduais, o art. 142,
§3º, X, dispõe que serão observados os critérios definidos em lei (que não necessariamente
são os previstos no art. 37, ii e iii do texto constitucional).32
em relação à acumulação do cargo de militar com cargos, empregos ou funções
públicas, o art. 142, ii e iii, dispõe que se o militar tomar posse em cargo ou emprego
público permanente, ele será transferido para a reserva, e se a acumulação do militar se
verificar com cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ele ficará
agregado ao respectivo quadro (em sua corporação militar), “sendo depois de dois
anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei”.
15.4 regras constitucionais pertinentes aos servidores públicos
Algumas regras pertinentes aos servidores públicos encontram-se disciplinadas
em seção específica da Constituição Federal (Título III, Capítulo VII, Seção II), que compreende os artigos 39 a 41. outras importantes regras acerca dos servidores públicos
estão previstas nos artigos 37 e 38, que a pretexto de estabelecerem normas gerais sobre
a Administração Pública igualmente cuidam dos servidores públicos.
examinaremos, em seguida, as mais importantes regras constitucionais sobre
o tema.
15.5 Concurso público
15.5.1 obrigatoriedade
As principais regras relativas ao concurso público para provimento dos cargos
e dos empregos públicos estão previstas no art. 37, ii, iii e iv.
32
no engajamento do recruta às Forças Armadas, por exemplo, não são observadas regras pertinentes ao concurso
público.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
nos termos do art. 37, ii, do texto constitucional, “a investidura em cargo ou
emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de
provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em
lei de livre nomeação e exoneração”.
são admitidos, portanto, dois critérios para o provimento de cargos públicos:
o concurso público e a livre nomeação. o primeiro critério é indicado para os cargos
efetivos; o segundo, para os cargos em comissão.
em razão de a criação dos cargos públicos ser feita por lei, poder-se-ia imaginar,
à primeira vista, que a adoção do sistema de cargo efetivo, cujo provimento requer a
prévia aprovação em concurso público, ou de cargo em comissão, de livre nomeação,
seria feita pelo legislador a partir de critério livre, vale dizer, que o legislador poderia
utilizar o cargo efetivo ou em comissão sem qualquer restrição. Felizmente, não é assim
que se verifica. A parte final do inciso V do art. 37 da Constituição Federal determina
que os cargos em comissão somente poderão ser criados para exercer “atribuições de
direção, de chefia e assessoramento”. Ao fixar esse parâmetro, a Constituição Federal
em muito boa hora estabelece que a adoção do cargo efetivo é a regra, e a do cargo em
comissão, a exceção. se o legislador criar cargo em comissão para hipóteses outras que
não aquelas relacionadas às “atribuições de direção, chefia e assessoramento”, sem
a necessidade de prévia aprovação em concurso público, a lei que assim disponha é
inconstitucional.
Ao adotar o concurso público como o critério básico para o ingresso no serviço
público, a Constituição Federal busca observar, em termos materiais, o sistema do
mérito, em que será escolhido para ocupar o cargo público aquele que obtiver a melhor
qualificação em seleção objetiva aberta a todos os que preencham os requisitos legais.
em termos formais ou jurídicos, a adoção do sistema do concurso público para
prover os cargos públicos realiza, em primeiro lugar, o princípio constitucional da
impessoalidade, ou isonomia. Ademais, ao impedir a utilização dos cargos públicos para
a nomeação a partir de critérios de indicação política, ou de parentes, a regra constitucional do concurso público igualmente dá efetividade à moralidade administrativa.33
Ao decidir a AdC nº 12-mC/dF, proposta em face da resolução nº 7/05 do Conselho
nacional de Justiça, o stF considerou constitucional a resolução em razão do seu conteúdo moralizador.
A rigor, a importância dada ao concurso público pelo texto constitucional pode ser
examinada em razão do disposto no art. 37, §2º, em que é identificada a única hipótese
em que, de modo expresso, a Constituição Federal determina a anulação do ato administrativo e a obrigatoriedade de punição de quem lhe deu causa, o que deve ocorrer na
eventualidade de não serem observadas as regras relativas ao concurso público para o
provimento dos cargos públicos.
33
infelizmente, no âmbito do Poder Judiciário — ou ao menos em alguns tribunais de justiça estaduais e do trabalho
—, prevalecia a visão patrimonialista de que os titulares dos cargos de direção poderiam nomear abertamente seus
parentes para os cargos de livre nomeação. A resolução do CnJ e a decisão do stF constituem respostas legítimas
para dar fim a essa visão equivocada do serviço público. Acerca da aplicação do princípio da moralidade, é recomendável a leitura da mencionada ADC nº 12-MC/DF (Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 16.2.2006. DJ, 1º set.
2006), em que se examinou, e se declarou, a constitucionalidade da resolução nº 7/2005 do Conselho nacional de
Justiça, que vedou a nomeação de parentes para cargos em comissão no âmbito do Poder Judiciário.
735
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
736
À exceção dos cargos em comissão e dos agentes temporários, o ingresso no
serviço público deve ser necessariamente precedido de concurso público.34
são admitidas — por serem compatíveis com o critério constitucional — hipóteses
de provimento derivado de cargos públicos. É o que se verifica com a promoção. Aqui, o
agente é investido no cargo inicial da carreira após aprovação em concurso público, e
para alcançar os cargos mais elevados será promovido. vê-se, de qualquer forma, que
o servidor é obrigado a prestar o concurso público.
distintas são as hipóteses de ascensão e de transferência — infelizmente ainda
utilizadas com alguma frequência em importantes empresas estatais. o stF, ao julgar a
Adi nº 231-rJ, declarou a inconstitucionalidade desses institutos porque são “formas de
ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor ingressou por concurso”.35
essa orientação encontra-se prevista, ademais, na súmula nº 685 do próprio stF, que
dispõe nos termos seguintes: “É inconstitucional toda modalidade de provimento que
propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao
seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual foi anteriormente investido”.
são inconstitucionais os tão famosos concursos internos e as denominadas ascensões funcionais, em que pessoas admitidas para cargos básicos dos órgãos ou entidades
públicas, algumas vezes sem concurso público, em razão da realização de seleções
internas ou da mera apresentação de diploma de nível superior, eram investidas em
cargos mais elevados. seria exemplo dessa prática ilegal situação em que o Banco do
Brasil realizasse concurso interno entre seus escriturários para a escolha de advogados
da estatal.36
vale sempre lembrar que a regra do concurso público e a consequente vedação da
ascensão são aplicáveis a todas as entidades da Administração Pública direta e indireta
e ao provimento de cargos e empregos públicos.
no que se refere à ascensão funcional, vale mencionar a existência de precedentes controvertidos do stF que permitiram, a título de reestruturação de carreiras,
a junção de cargos de auditor de finanças públicas e fiscal de tributos estaduais que
foram unificados no cargo agente fiscal da carreira de fiscal do Tesouro (Santa Catarina
e rio Grande do sul). o stF considerou que não houve, no caso, ofensa ao art. 37, ii,
da CF/88, pois o objetivo foi a racionalização e a eficiência da Administração Pública:
Unificação, pela Lei Complementar nº 10.933-97, do Rio Grande do Sul, em nova carreira
de Agente Fiscal do tesouro, das duas, preexistentes, de Auditor de Finanças Públicas e
de Fiscal de tributos estaduais. Assertiva de preterição da exigência de concurso público
rejeitada em face da afinidade de atribuições das categorias em questão, consolidada por
legislação anterior à Constituição de 1988. Ação direta julgada, por maioria, improcedente.37
34
35
36
37
exceção de natureza transitória prevista no art. 53, i, do Ato das disposições transitórias da Constituição Federal,
assegura aos “ex-combatentes que tenham efetivamente participado de operações bélicas durante a segunda
Guerra mundial, nos termos da Lei 5.315/67, o direito de aproveitamento no serviço público, sem a exigência de
concurso público, com estabilidade”.
stF. Adi nº 231-rJ, Pleno. rel. min. moreira Alves. Julg. 5.8.1992. DJ, 13 nov. 1992.
trata-se, é evidente, de situação hipotética. inconcebível que entidade como o Banco do Brasil se utilize de tão
grosseira e absurda ilegalidade.
STF. ADI nº 1.591-RS, Pleno. Rel. Min. Octavio Gallotti. Julg. 19.8.1998. DJ, 30 jun. 2000.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
Caso semelhante ocorreu, no âmbito federal, na Advocacia Geral da união, tendo
os antigos assistentes jurídicos sido incluídos nos cargos de advogados da união, procuradores federais e procuradores da Fazenda nacional.38
15.5.2 edital e isonomia
outra questão frequentemente suscitada acerca do tema diz respeito à possibilidade de o edital do concurso público estabelecer critérios e requisitos para a inscrição
dos candidatos. Pode o edital, por exemplo, estabelecer requisitos relacionados ao grau
de escolaridade,39 à altura mínima ou à idade máxima dos candidatos?
A jurisprudência do stF tem admitido a imposição de requisitos no edital de convocação do concurso público para a inscrição dos candidatos, desde que sejam observados,
cumulativamente, os seguintes parâmetros:
- Que os requisitos previstos no edital tenham sido fixados em lei;
- Que haja pertinência entre o critério fixado e a atividade a ser desempenhada
pelo agente; e
- Que o critério de discriminação observe parâmetros de razoabilidade.
Assim, se lei estabelece a altura mínima ou idade máxima40 como critério para o
provimento de cargo de agente da polícia civil de determinado estado, por exemplo,
desde que o critério seja razoável, a exigência editalícia é constitucional.41 não se admite,
todavia, que o edital fixe critérios razoáveis para a inscrição no certame se esses critérios
não estão previstos em lei.42
38
39
40
41
42
stF: “em seguida, o tribunal, julgando o mérito do pedido formulado na ação direta acima mencionada (nos
termos do art. 12 da Lei 9.868/99), por maioria, declarou a constitucionalidade do art. 11 e parágrafos 1º a 5º da
Lei 10.549/2002 (lei de conversão da medida Provisória 43/2002), que transforma os cargos de assistente jurídico
da Advocacia-Geral da união em cargos de advogado da união. Afastou-se a alegada inconstitucionalidade
formal por ofensa à exigência de lei complementar para dispor sobre a organização da Advocacia-Geral da
união, uma vez que a criação, extinção e transformação de cargos públicos é matéria reservada à lei ordinária
(CF, art. 48, X), rejeitando-se, ainda, a arguição de inconstitucionalidade material por violação ao princípio
do concurso público (CF, art. 37, ii, e art.131, §2º), porquanto ambos os cargos têm as mesmas atribuições e
vencimentos, bem como requerem o preenchimento dos mesmos requisitos para a investidura. Considerou-se,
portanto, que a unificação da carreira de assistente jurídico (advogado com atividade consultiva) com a de
advogado da união (advogado com atividade litigiosa) visou a racionalização dos trabalhos da AGu. vencidos
o min. maurício Corrêa, que julgava procedente em parte o pedido para declarar a inconstitucionalidade das
expressões que permitiam a transformação dos cargos que estivessem ocupados, e o min. marco Aurélio, que
julgava integralmente procedente o pedido formulado na ação pelo vício formal. Precedente citado: Adi 1.591-rs
(dJu de 30.6.2000)” (Adi nº 2.713-dF, Pleno. rel. min. ellen Gracie. Julg. 18.12.2002. DJ, 07 mar. 2003).
stF: “Com base no entendimento do stF de que a exigência de habilitação para o exercício de cargo objeto de certame dar-se-á no ato da posse, e não no da inscrição para o concurso, a turma deu provimento a recurso extraordinário
para restabelecer sentença proferida em primeiro grau, que concedera segurança impetrada por candidata que,
aprovada em concurso público para o cargo de auxiliar de enfermagem, fora impedida de tomar posse e entrar em
exercício em virtude de não possuir a escolaridade exigida pelo edital no último dia da inscrição para o certame.
Afastou-se, ainda, a alegação de ofensa ao princípio da isonomia em relação às pessoas que deixaram de realizar
a inscrição, uma vez que o acolhimento da pretensão da recorrente não resultaria em desigualdade entre os candidatos” (re nº 392.976-mG, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 17.8.2004. DJ, 08 out. 2004).
Em relação especificamente à fixação de limite de idade, o STF sumulou a matéria nos seguintes termos (Súmula
nº 683): “o limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da
Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo”.
Cf. stF: re nº 148.095, 2ª turma. rel. min. marco Aurélio. Julg. 3.2.1998. DJ, 03 abr. 1998; e re nº 197.479-dF, 1ª turma.
Rel. Min. Octavio Gallotti. Julg. 4.4.2000. DJ, 18 ago. 2000.
Cf. stF: Ai nº 460.131-Agr/dF, 1ª turma. rel. min. Joaquim Barbosa. Julg. 8.6.2004. DJ, 25 jun. 2004.
737
738
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
15.5.3 Prazo de validade do concurso
nos termos do art. 37, iii, da Constituição Federal, “o prazo de validade do concurso será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período”.
Algumas explicações preliminares se fazem necessárias antes de examinarmos o
dispositivo constitucional. em primeiro lugar, que o mencionado prazo de validade do
concurso corresponde ao período dentro do qual deve ser publicado o ato de nomeação
do candidato aprovado no concurso. Pouco importa se a posse ou o exercício ocorrerão
dentro deste prazo; importa apenas que a nomeação o seja. em segundo lugar, que se
inicia a contagem do prazo de validade do certame a partir da data em que é publicado o
ato por meio do qual a autoridade competente homologa o resultado final do certame. Ou
seja, se entre a data da publicação da homologação do resultado final e a da nomeação
houver decorrido prazo superior ao da validade do concurso, a nomeação é nula, nos
termos do art. 37, §2º, da Constituição Federal — que prevê a invalidação da nomeação
não apenas se ela não for precedida do necessário concurso público, mas igualmente
se a nomeação ocorrer fora do prazo de validade do certame.
Algumas explicações ainda se fazem necessárias acerca da validade do concurso.
A Constituição Federal estabelece tão somente o prazo máximo de validade do
concurso, que será de até dois anos. Cabe à Administração a fixação discricionária dessa
validade, que poderá ser de 30 dias, de seis meses, de um ano etc. ou seja, o texto constitucional fixa o parâmetro, cabendo ao edital do concurso a fixação precisa desse prazo.
em relação à possibilidade de prorrogação do prazo de validade, tem sido lugarcomum o entendimento de que esta prorrogação somente poderá ocorrer se o edital
expressamente a tiver previsto. ou seja, se o edital não tiver previsto a possibilidade
de prorrogação, ela não poderá ocorrer.
não obstante esta seja a interpretação dominante — e prática corrente —, ela
não nos parece a mais adequada à regra constitucional. nos termos da Constituição
Federal, cabe ao edital a fixação do prazo de validade do concurso, e é o próprio texto
constitucional que estabelece que ele é prorrogável uma vez. Parece-nos, portanto, que
todo prazo de validade de edital de concurso é prorrogável, independentemente de
previsão editalícia. o edital do concurso, a rigor, não poderia, a priori, conter regra que
definisse o prazo do concurso como improrrogável.
isto não importa em suprimir do administrador a discricionariedade da decisão
de prorrogar a validade do concurso, mas apenas que o edital não pode, de antemão,
estabelecer a impossibilidade de prorrogação.
Desse modo, fixado o prazo de validade do concurso no edital, a critério da Administração, e antes de expirado o prazo inicial, ele poderá ser prorrogado uma única vez
pelo idêntico período indicado no edital. Se for fixada a validade do concurso em um
ano, por exemplo, antes de expirado esse prazo, ele poderá ser prorrogado uma vez e
pelo igual período de um ano, independentemente de previsão no edital.
15.5.4 Ordem de classificação
Poucos temas têm suscitado tantas manifestações do Poder Judiciário quanto os
critérios utilizados pela Administração Pública para classificar candidatos em concurso
público.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
Os requisitos fixados no edital para inscrição e os critérios de julgamento (relacionados
à elaboração do conteúdo programático, à utilização de determinadas experiências para a
pontuação na prova de títulos, bem como a própria elaboração das provas) devem manter
pertinência com as atribuições do cargo. Além de manter pertinência com as atribuições do
cargo, os critérios utilizados para a definição da ordem de classificação dos candidatos devem
ser fixados de modo a possibilitar a sua impugnação, o que viabiliza a aplicação dos princípios da recorribilidade das decisões, da motivação e do controle dos atos administrativos.
em relação à possibilidade de controle judicial do conteúdo das questões, a jurisprudência majoritária restringe o exame da legalidade ao exame da previsão do objeto
do questionamento no programa do concurso. Assim, independentemente do resultado
do gabarito do concurso, se a questão da prova consta do programa, o próprio Poder
Judiciário tem-se imposto restrições à apreciação da legalidade e definido que a resposta
apontada não se insere no controle de legalidade a ser empreendido pela via judicial. A
fixação de limite à intervenção judicial no exame do gabarito dos concursos públicos se
faz necessária porque, do contrário, estar-se-ia apenas substituindo o critério subjetivo
da banca examinadora, que elabora as questões e corrige as respostas produzidas sem
conhecer a identidade do candidato, por outro critério igualmente subjetivo, o do juiz,
que sabe quem será beneficiado ou prejudicado com a decisão que venha a produzir.43
A impugnação das respostas do concurso deve ser feita perante a própria banca
examinadora, nos termos fixados no edital. A organização do concurso deve proporcionar aos candidatos a real possibilidade de impugnar os resultados e gabaritos
divulgados — inclusive das provas orais —, aspecto fundamental para a validade dos
concursos públicos.
É ilegal a postura adotada por inúmeros órgãos que não permitem, por exemplo,
o pleno acesso do candidato às provas ou aos gabaritos, assim como são igualmente
ilegais a correção de provas e a divulgação dos resultados sem a necessária fundamentação. É comum, infelizmente, sobretudo nas correções das provas discursivas, a
atribuição de nota ou menção ao candidato sem que a ele seja dito o quê ou onde errou.
igualmente comum que recursos contra os resultados sejam indeferidos sem a necessária indicação das razões do indeferimento. A ausência de motivação e a criação de
obstáculos materiais ou jurídicos para impedir o candidato de impugnar os critérios de
correção devem estar sujeitos ao controle judicial, e a sua inobservância deve importar
em anulação do certame.
43
destoando, de certo modo, da jurisprudência consolidada de que o Poder Judiciário não deve agir como órgão
revisor de concurso público, o supremo tribunal Federal, em sede de mandado de segurança impetrado por
candidato inconformado com o gabarito oficial de questão de concurso público, reconheceu que a existência de
erro grosseiro no gabarito divulgado pela banca examinadora autorizaria o Poder Judiciário a anular a questão
impugnada, em virtude da flagrante ilegalidade daí decorrente. A seguir, o Informativo do STF n. 677 em que se
noticiou referido julgamento.
“em conclusão de julgamento, a 1ª Turma, por maioria, concedeu, em parte, mandado de segurança a fim de
anular questões objetivas de concurso público para provimento de cargo de Procurador da república, em virtude
de equívoco na elaboração destas — v. Informativos 658 e 660. Afirmou-se que, observada erronia no gabarito da
prova objetiva, deveria ser reapreciada a situação jurídica do impetrante pela comissão do concurso. destacou-se
precedente da 2ª turma segundo o qual, em que pese a máxima de que o Judiciário não poderia substituir a banca
examinadora, a verificação de erro grosseiro levaria ao reconhecimento de ilegalidade. Por fim, mantiveram-se os
efeitos da liminar concedida, que assegurava a participação do candidato nas demais fases do certame e reservava
vaga em caso de aprovação final. Vencidas as Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia. Esta destacava a impossibilidade de o Poder Judiciário fazer o controle jurisdicional de mérito do ato administrativo, que, no caso, seria da
alçada das bancas examinadoras” (ms nº 30.859/dF, rel. min. Luiz Fux. Julg. 28.08.2012).
739
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
740
em relação aos critérios para a atribuição de pontuação diferenciada aos candidatos
que já tenham exercido alguma função específica (exemplo: pontuação diferenciada para o
exercício de atividade em cartórios em concurso para notário ou registrador,44 ou de
pontuação diferenciada em concurso para provimento de cargo de nível superior em
determinado órgão àqueles que tenham exercido atividade de nível médio neste órgão45),
a jurisprudência tem considerado prática ilegítima, porque viola o princípio da isonomia.
Acerca da aplicação de exames psicotécnicos, desde que os critérios de avaliação
tenham sido indicados no edital e as decisões se pautem por critérios passíveis de
impugnação, a jurisprudência tem-se manifestado pela sua legalidade.46
deve-se esperar que a decisão de deferir ou de indeferir os recursos interpostos
seja motivada e que seja permitido ao candidato conhecer as razões ou o conteúdo da
sua avaliação. Esses aspectos, aliados à verificação de que os temas cobrados nas provas
estão previstos nos programas publicados, correspondem a importantes aspectos para
o exercício do controle judicial.
15.5.5 Aprovação em concurso público e direito à nomeação
esse tema tem sido enfrentado pelo stF em diversas oportunidades. Como regra,
institui-se a sistemática de que a aprovação em concurso público gera mera expectativa
de direito à nomeação. o entendimento que sempre prevaleceu na suprema Corte era
no sentido de que candidato aprovado em concurso público não possui direito subjetivo
à nomeação, exceto quando houvesse preterição da ordem de classificação do concurso.
Apenas nesta hipótese, considerada nula a nomeação feita em desrespeito à ordem de
classificação do certame, era que se reconhecia ao candidato preterido direito subjetivo
à nomeação. Exemplo dessa situação verificou-se no STF por ocasião do julgamento
do re nº 273.605-sP.47 48
44
45
46
47
48
nesse sentido, stF: “Concluído julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador
do estado do rio Grande do sul contra os incisos i, ii, iii e X do art. 16 e do inciso i do art. 22, ambos da Lei
11.183/98, daquele estado, que, dispondo sobre concurso de ingresso e remoção nos serviços notarial e de registro, estabelecem, respectivamente, como títulos de concurso público, atividades relacionadas a esses serviços,
e, como critério de desempate entre candidatos, a preferência para o mais antigo na titularidade dos mesmos”
(Adi nº 3.522-rs, Pleno. rel. min. marco Aurélio. Julg. 24.11.2005. DJ, 12 maio 2006).
o tribunal atribuiu efeitos ex tunc à decisão de procedência do pedido formulado, proferida na sessão de
26.10.2005, rejeitando a proposta do min. Gilmar mendes, que, acompanhado pelos ministros eros Grau, ellen
Gracie, Celso de Mello, Nelson Jobim, presidente, Cezar Peluso e Carlos Velloso, conferia-lhe eficácia ex nunc,
aplicável ao concurso em andamento, preservando-se os concursos anteriores.
essa situação foi enfrentada pelo stF no julgamento da Adi nº 3.443-mA: “Por vislumbrar ofensa ao princípio
da isonomia (CF, art. 5º), o tribunal julgou procedente, em parte, pedido formulado em ação direta ajuizada pelo
Procurador-Geral da república para declarar a inconstitucionalidade dos incisos i e ii do art. 31 do regulamento
do concurso público para provimento de cargos efetivos do Poder Judiciário do estado do maranhão, aprovado
pela resolução 7/2004, do tribunal de Justiça local, que consideram título o exercício de função, efetiva ou
provisoriamente, para a qual está concorrendo o candidato, e o exercício efetivo de outro cargo. declarou-se,
também, a inconstitucionalidade das normas do edital 1/2004, item 5.13.3, que se reportam àqueles incisos”
(Adi nº 3.443-mA, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 8.9.2005. DJ, 23 set. 2005).
Cf. stF. re nº 275.159-sC, 1ª turma. rel. min. ellen Gracie. Julg. 11.10.2001. DJ, 11 out. 2001.
em igual sentido, vide súmula stF nº 686, que dispõe, in verbis: “só por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico
a habilitação de candidato a cargo público”.
stF. re nº 273.605-sP, 2ª turma. rel. min. néri da silveira. Julg. 23.4.2002. DJ, 28 jun. 2002.
“Por ofensa ao art. 37, iv, da CF (‘durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele
aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos
concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira;’), a turma deu provimento a recurso extraordinário
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
A tese da expectativa de direito levou o eg. stF a declarar inconstitucional
dispositivo “da Constituição do estado do rio de Janeiro, que assegura aos aprovados em concurso público, dentro do número de vagas fixado no respectivo edital, o
direito ao provimento no cargo no prazo máximo de cento e oitenta dias, contado da
homologação do resultado. Com base no entendimento fixado no RE 229.450-RJ (DJU,
31 ago. 2001) no sentido de que a CF apenas assegura ao candidato aprovado o direito
subjetivo à nomeação de acordo com a respectiva ordem de classificação e no prazo
da validade do concurso, ficando o ato de provimento adstrito ao poder discricionário
da Administração Pública, entendeu-se que a norma impugnada violava os arts. 2º e
37, iv, da CF. reconheceu-se, ademais, a afronta à reserva de iniciativa do Chefe do
Poder executivo prevista no art. 61, §1º, ii, c, da CF”.49
no texto da Constituição Federal, esse aspecto é disciplinado pelo art. 37, iv,
que dispõe no sentido de que “durante o prazo improrrogável previsto no edital de
convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será
convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego”.
vê-se que a jurisprudência do stF de há muito reconhece direito à nomeação
em hipóteses de preterição do candidato aprovado no concurso, nos termos da súmula
nº 15 da jurisprudência daquele tribunal (aprovada na sessão Plenária de 13.12.1963).50
ocorre que, mais recentemente, o eg. stF evoluiu no seu entendimento acerca
da discussão de haver ou não direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em
concurso público, firmando convicção no sentido de que se aprovação ocorrer dentro do
número de vagas estipuladas no edital, o candidato terá direito subjetivo à nomeação.
sob essa nova perspectiva, passa a prevalecer orientação segundo a qual a aprovação de
candidato dentro das vagas anunciadas no edital não gera mera expectativa de direito,
mas verdadeiro direito subjetivo à nomeação, durante o prazo de validade do concurso.
Esse entendimento foi confirmado pelo STF no RE nº 598.099, com repercussão
geral reconhecida, tribunal Pleno, rel. min. Gilmar mendes, julgado em 10.08.2011.
Convém reproduzir trecho da ementa desse importante precedente que evidencia a
tese que se consolidou na suprema Corte:
recurso extraordinário. repercussão Geral. Concurso público. Previsão de vagas em
edital. direito à nomeação dos candidatos aprovados. i. direito à nomeação. Candidato
aprovado dentro do número de vagas previstas no edital. dentro do prazo de validade do
concurso, a Administração poderá escolher o momento no qual se realizará a nomeação,
mas não poderá dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa
a constituir um direito do concursando aprovado e, dessa forma, um dever imposto ao
poder público. Uma vez publicado o edital do concurso com número específico de vagas,
o ato da Administração que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de
49
50
para assegurar a nomeação de candidatos aprovados em concurso público para o cargo de professor assistente
da Universidade de São Paulo – USP. Considerou-se que, no caso concreto, ficara comprovada a necessidade da
Administração no preenchimento das vagas, haja vista que a universidade de são Paulo contratara, no prazo de
validade do concurso, dois professores para exercerem o mesmo cargo, sob o regime trabalhista — sendo um
deles candidato aprovado do mesmo concurso. Afastou-se, ainda, a fundamentação constante do acórdão recorrido no sentido de que seria necessária a abertura de novo concurso pela Administração para a comprovação da
existência das vagas”. (ADI nº 2.931-RJ, Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 24.2.2005. DJ, 29 set. 2006)
STF. ADI nº 2.931-RJ, Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 24.2.2005. DJ, 29 set. 2006.
dispõe a súmula stF nº 15: “dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem o direito à
nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação”.
741
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
742
nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado
pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas (...).
na referida assentada, o supremo tribunal Federal não afastou a possibilidade
de a administração deixar de nomear candidatos aprovados em concurso público, ainda
que dentro do número de vagas, desde que o faça motivadamente, ante a circunstâncias
excepcionalíssimas de inegável interesse público, sendo tal motivação sindicável pelo
Poder Judiciário.51
nesse quadro de evolução de posicionamento, o stF parece ter avançado ainda
mais sobre o tema, na medida em que há julgados reconhecendo ao candidato aprovado
em concurso direito à nomeação ao cargo público, ainda que a aprovação ocorra fora
do número de vagas originalmente previstas no edital, mas desde que fique comprovada a necessidade de serviço e existam cargos disponíveis. É o que se verifica quando
o poder público contrata precariamente servidores temporários ou terceirizados para
executar funções próprias de servidores ocupantes de cargo efetivo, com preterição de
candidatos aprovados em concurso público para cargo com as mesmas atribuições.52
situação diversa, menos comum e de mais difícil comprovação, em que o candidato igualmente passa a ter direito subjetivo à nomeação, ocorre quando fica demonstrado que a não nomeação está relacionada a algum tipo de discriminação em razão,
por exemplo, de opção religiosa ou sexual. esse tipo de discriminação levou o stF a
conhecer e dar provimento ao re nº 192.568-Pi:
Por maioria de votos, a turma entendeu que, não tendo sido preenchidas todas as vagas
previstas no edital, os candidatos aprovados teriam direito de ser nomeados no prazo de
validade do concurso. Com base nesse entendimento, o re interposto pelos candidatos foi
conhecido e provido “para assegurar aos recorrentes a imediata nomeação pelo tribunal
de Justiça do estado do Piauí, para os cargos de Juiz de direito Adjunto”.53
51
52
53
Conforme o entendimento consubstanciado no acórdão que julgou o RE nº 598.099, verifica-se que a possibilidade de recusa, pela administração pública, da nomeação de candidatos que foram aprovados dentro do
número de vagas somente encontrará respaldo quando a situação de excepcionalidade estiver devidamente
caracterizada, segundo se depreende do seguinte excerto da ementa do referido precedente: “(...) Para justificar
o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de nomeação por parte da Administração Pública, é necessário
que a situação justificadora seja dotada das seguintes características: a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma situação excepcional devem ser necessariamente posteriores à publicação do edital do certame
público; b) imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis
à época da publicação do edital; c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis devem ser
extremamente graves, implicando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras do edital; d) necessidade: a solução drástica e excepcional de não cumprimento do
dever de nomeação deve ser extremamente necessária, de forma que a Administração somente pode adotar tal
medida quando absolutamente não existirem outros meios menos gravosos para lidar com a situação excepcional e imprevisível. de toda forma, a recusa de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas deve
ser devidamente motivada e, dessa forma, passível de controle pelo Poder Judiciário”. nesse sentido, stF. re
nº 466.543-AgR/RS, 1ª Turma. Rel. Min. Dias Toffoli. Julg. 03.04.2012. DJ, 07 maio 2012.
“direito Administrativo. Concurso público. existência de vagas e necessidade do serviço. Preterição de candidatos
aprovados. Direito à nomeação. Comprovada a necessidade de pessoal e a existência de vaga, configura preterição de candidato aprovado em concurso público o preenchimento da vaga, ainda que de forma temporária.
Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido” (stF. Ai nº 820.065-Agr/Go, 1ª turma. rel. min. rosa
Weber. Julg. 21.08.2012. DJ, 05 set. 2012). na mesma linha foi o que o stF decidiu no Are nº 649.046-Agr/mA,
1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 28.08.2012. DJ, 13 set. 2012. nesta hipótese, não é demais ressaltar que, para o
stF, “o direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em concurso vigente somente surge quando, além de
constatada a contratação em comissão ou a terceirização das respectivas atribuições, restar comprovada a existência
de cargo efetivo vago” (RMS nº 29.915-AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli. Julg. 04.09.2012. DJ, 26 set. 2012).
stF. re nº 192.568-Pi, 2ª turma. rel. min. marco Aurélio. Julg. 23.4.1996. DJ, 13 set. 1996.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
no presente caso, não teria ocorrido a nomeação para o cargo de juiz de direito
adjunto — segundo informações extra-autos — em razão de determinado candidato
aprovado ser homossexual, o mencionado tribunal de Justiça teria promovido nomeações até o candidato imediatamente anterior àquele objeto da discriminação. não obstante houvesse cargos vagos e interesse do tribunal em nomear novos candidatos — a
ponto de já estar sendo preparado novo edital de concurso a ser publicado tão logo
o prazo do concurso anterior expirasse —, nenhum novo candidato foi convocado.
diante desse contexto, em que restou evidente a discriminação, a questão foi levada
ao stF em recurso extraordinário ao qual foi dado provimento para obrigar o tribunal
a nomear todos os candidatos dentro das vagas existentes. Quer se trate de situação
real, ou meramente hipotética, o caso acima serve para ilustrar omissão abusiva por
parte da Administração Pública. Diante desse desvio de finalidade por omissão, não
obstante não tenha ocorrido preterição dos candidatos aprovados, a nomeação passa a
ser a solução para a correção da ilegalidade, conforme aponta este precedente do stF.
em relação ao direito de candidato aprovado em concurso público de ser nomeado,
é possível apresentar o seguinte quadro:
- A simples aprovação no concurso não gera direito adquirido à nomeação,54 sendo
fonte de mera expectativa de direito;55
54
55
nesse sentido, stF: “Concurso público: direito à nomeação: súmula 15-stF. Firmou-se o entendimento do stF
no sentido de que o candidato aprovado em concurso público, ainda que dentro do número de vagas, torna-se
detentor de mera expectativa de direito, não de direito à nomeação: precedentes. o termo dos períodos de
suspensão das nomeações na esfera da Administração Federal, ainda quando determinado por decretos editados
no prazo de validade do concurso, não implica, por si só na prorrogação desse mesmo prazo de validade pelo
tempo correspondente à suspensão” (re nº 421.938-Agr/dF, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg.
9.5.2006. DJ, 02 jun. 2006, grifos nossos).
em sentido aparentemente contrário, stJ: “Administrativo. Concurso público. nomeação. direito subjetivo. Candidato classificado dentro das vagas previstas no edital. Ato vinculado. Não obstante seja cediço, como regra
geral, que a aprovação em concurso público gera mera expectativa de direito, tem-se entendido que, no caso do
candidato classificado dentro das vagas previstas no Edital, há direito subjetivo à nomeação durante o período
de validade do concurso. isso porque, nessa hipótese, estaria a Administração adstrita ao que fora estabelecido
no edital do certame, razão pela qual a nomeação fugiria ao campo da discricionariedade, passando a ser ato
vinculado. Precedentes do stJ e stF. recurso provido” (rms nº 15.034-rs, 5ª turma. rel. min. Felix Fischer. Julg.
19.2.2004. DJ, 29 mar. 2004).
vide decisão do stF por ocasião do julgamento do re nº 227.480-rJ: “Por vislumbrar direito subjetivo à nomeação dentro do número de vagas, a turma, em votação majoritária, desproveu recurso extraordinário em que se
discutia a existência ou não de direito adquirido à nomeação de candidatos habilitados em concurso público – v.
informativo 510. entendeu-se que, se o estado anuncia em edital de concurso público a existência de vagas,
ele se obriga ao seu provimento, se houver candidato aprovado. Em voto de desempate, o Min. Carlos Britto
observou que, no caso, o Presidente do trF da 2ª região deixara escoar o prazo de validade do certame, embora
patente a necessidade de nomeação de aprovados, haja vista que, passados 15 dias de tal prazo, fora aberto
concurso interno destinado à ocupação dessas vagas, por ascensão funcional. vencidos os ministros menezes
direito, relator, e ricardo Lewandowski que, ressaltando que a suprema Corte possui orientação no sentido de
não haver direito adquirido à nomeação, mas mera expectativa de direito, davam provimento ao recurso” (re
nº 227.480-rJ, 1ª turma. rel. min. Cármen Lúcia. Julg. 16.9.2008. DJe, 21 ago. 2009).
Acerca da expectativa de direito, vide stJ: “decadência – mandado de segurança – Ato omissivo. tratando-se
de ato omissivo — no caso, a ausência de convocação de candidato para a segunda fase de certo concurso —,
descabe potencializar o decurso dos cento e vinte dias relativos à decadência do direito de impetrar mandado
de segurança, prazo estranho à garantia constitucional. Concurso público – edital – Parâmetros – observância
bilateral. A ordem natural das coisas, a postura sempre aguardada do cidadão e da Administração Pública
e a preocupação insuplantável com a dignidade do homem impõem o respeito aos parâmetros do edital do
concurso. Concurso público – edital – vagas – Preenchimento. O anúncio de vagas no edital de concurso gera o direito
subjetivo dos candidatos classificados à passagem para a fase subseqüente e, alfim, dos aprovados, à nomeação. Precedente:
Recurso Extraordinário nº 192.568-0/PI, Segunda Turma, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 13 de setembro de
1996” (rms nº 23.657-mA, 1ª turma. rel. min. denise Arruda. Julg. 16.6.2009. DJe, 05 ago. 2009, grifos nossos).
743
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
744
- A expectativa de direito se transforma em direito adquirido caso ocorra preterição
na ordem de classificação, sendo, nesta hipótese, assegurado ao candidato direito
à nomeação;56
- A expectativa de direito se convola em direito subjetivo no caso de aprovação
de candidato dentro do número de vagas ou quando a administração efetua
a contratação precária de terceirizados ou de temporários para desempenhar
atribuições próprias de cargos efetivos, com preterição de aprovados em concurso vigente, desde comprovada a existência de cargo vago;
- situações em que a omissão do poder público — que não nomeia o candidato
— importe em desvio de finalidade em razão de discriminações ou de perseguições, desde que devidamente demonstradas, geram o direito do candidato
à nomeação.
- enquanto o concurso público estiver em vigência, não se opera a decadência do
direito de interpor mandado de segurança contra a omissão do poder público
que não nomeia o candidato aprovado.57
15.5.6 Concurso público e cadastro de reserva
nos editais de concurso público, tem sido comum a previsão de cláusula em que
é indicado o número de vagas existentes, sendo determinado, ademais, que o concurso
se destina ao preenchimento dessas vagas e de outras que venham a surgir durante o
prazo de validade do certame. Como reação à jurisprudência que se formou no sentido
de que candidato aprovado dentro do número de vagas possui direito à nomeação, alguns
órgãos passaram a publicar editais de concursos públicos sem indicar o número de
vagas a serem preenchidas, sendo estabelecido que o concurso teria o simples objetivo
de formar cadastro de reserva. Tem-se igualmente verificado situações em que é feita
a indicação do número de vagas, sendo afirmado que os candidatos aprovados fora
desse número irão igualmente integrar mencionado quadro de reserva.
A formação do quadro de reserva seria, segundo os órgãos que assim procedem,
a solução para evitar que o Poder Judiciário assegurasse aos candidatos direito à nomeação, haja vista o concurso não se destinar ao preenchimento de vagas, mas à simples
56
57
STJ: “Recurso Ordinário – Mandado de Segurança – Concurso público para cargo de professor – Classificação
dentro do número de vagas previstas em edital – outros servidores contratados de forma precária – Prazo de
validade do certame – nomeação e posse – direito líquido e certo – recurso provido. 1. Restando comprovada a
classificação da Recorrente, dentro do número de vagas oferecidas pelo edital, a mera expectativa de direito à nomeação e
à posse no cargo, para o qual se habilitou, converte-se em direito subjetivo. Precedentes. 2. A conveniência e a oportunidade de a Administração Pública em prover servidores públicos no cargo ao qual concorria a recorrente
é demonstrada pela prova da contratação de outros servidores, a título precário, durante o prazo de validade
do concurso. Precedentes. 3. recurso provido para conceder à segurança à recorrente e garantir seu direito à
nomeação e posse no cargo para o qual foi aprovada e classificada, dentro do número de vagas previstas em
edital” (rms nº 19.975-ms, 6ª turma. rel. min. Paulo medina. Julg. 6.10.2005. DJ, 21 nov. 2005, grifos nossos).
nesse sentido, vide stJ: “recurso ordinário – mandado de segurança – Concurso público – omissão quanto
à nomeação do servidor classificado dentro do número de vagas previstas em edital – Decadência do writ não
operada enquanto vigente o prazo de validade do concurso – recurso provido. 1. Enquanto vigente o prazo de
validade do concurso público, não se opera a decadência para impetrar mandado de segurança, contra ato omissivo
de autoridade pública que não nomeia servidor classificado dentro das vagas previstas em edital. 2. desde que aprovado
dentro do número de vagas veiculadas em edital, o candidato em concurso público possui direito subjetivo à
investidura no cargo. Precedentes desta Corte. 3. recurso provido” (rms nº 15.945-mG, 6ª turma. rel. min.
Paulo medina. Julg. 2.2.2006. DJ, 20 fev. 2006, grifos nossos).
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
formação do cadastro. desse modo, eles poderiam realizar o concurso e, conforme seu
juízo de conveniência, nomear somente o número de candidatos que lhes aprouver.
todavia, considerando a nova orientação jurisprudencial construída no âmbito
do supremo tribunal Federal, garante-se ao candidato aprovado em concurso público o
direito de ser nomeado para o cargo que concorreu, mesmo no certame destinado apenas
à formação de cadastro reserva, desde fique comprovada a existência de cargos vagos e
o propósito inequívoco da administração no sentido de suprir sua carência de pessoal,
estando ainda válido o concurso, a exemplo do que se daria caso o órgão ou entidade
responsável pelo certame decidisse executar as atribuições do cargo para o qual abriu
concurso público por meio de terceirização, contratação temporária ou ocupação por
comissão,58 ao arrepio do disposto no artigo 37, ii, da Lei maior. Com efeito, se todas
essas circunstâncias estiverem presentes, na espécie, a decisão sobre o provimento dos
cargos disponíveis deixa de depender da avaliação de conveniência e oportunidade da
administração, devendo a nomeação ser encarada como ato vinculado.
15.6 direito de livre associação sindical e de greve no serviço público
estes dois aspectos relacionados aos servidores públicos encontram-se disciplinados pelo art. 37, vi e vii, da Constituição Federal.
A livre associação sindical dos servidores públicos não se sujeita a qualquer regime
jurídico diferenciado, sendo a eles aplicáveis os mesmos critérios legais pertinentes à
constituição dos sindicatos e à livre adesão dos trabalhadores da iniciativa privada.
se não existem restrições ou limitações constitucionais à atuação dos sindicatos
dos servidores públicos, o mesmo não pode ser dito em relação ao exercício do direito
de greve por parte desses mesmos servidores, restrições que alcançam a fixação dos seus
vencimentos, que depende de lei e não de dissídio.59 A existência de restrições como esta,
todavia, em nada impede ou embaraça a atuação dos sindicatos dos servidores públicos.
em relação a este segundo aspecto, relacionado ao direito de greve, após intermináveis discussões o stF decidiu que o mencionado art. 37, vii, que reconheceu o
direito de greve ao servidor público, constitui norma de eficácia limitada. Em razão da
edição da eC nº 19/98, foi alterada a remissão inicialmente feita no texto constitucional
à lei complementar para lei ordinária. Ademais, sem a edição da mencionada lei, era
praticamente unânime na jurisprudência e na doutrina a tese de que seria ilícito ao
servidor exercer o direito de greve.
ocorre que o stF, em decisão inédita proferida no julgamento dos mandados de
injunção nº 670, 708 e 712, decidiu aplicar aos servidores públicos civis, no que couber, a
58
59
Quanto a esse aspecto, ocupação de cargos por comissão, conforme bem esclareceu o Ministro Dias Toffoli no
julgamento do Are nº 646.080-Agr/Go, “(...) é certo que à Administração não é vedada a nomeação de servidores
em comissão, contudo, esse modo de provimento somente deve se dar para ocupação daqueles cargos previstos
em lei como de livre nomeação e exoneração e desde que obedecidos os princípios que regem a atuação da Administração
Pública” (grifos nossos). Em situações como a que ora se analisa, o eg. STF vem afirmando que a contratação de
comissionados para o exercício de atribuições próprias de servidores efetivos configura desvio de finalidade,
quando existe concurso aberto e vigente para preenchimento de cargos efetivos, ainda que o edital disponha
que o concurso se destina apenas à formação de cadastro reserva. Haveria, neste caso, direito líquido e certo à
nomeação para aqueles candidatos que obtiveram aprovação no concurso e foram preteridos pela contratação
precária. Vide STF. ARE nº 646.080-AgR/GO, 1ª Turma. Rel. Min. Dias Toffoli. Julg. 06.12.2011. DJe, 06 fev. 2012.
A Súmula STF nº 679 determina que “a fixação de vencimentos dos servidores públicos não pode ser objeto de convenção coletiva”.
745
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
746
lei de greve vigente para os trabalhadores do setor privado (Lei nº 7.783/89). Como não
poderia ser diferente, em atenção ao princípio da continuidade dos serviços públicos, a
suprema Corte ressaltou a possibilidade de o Poder Judiciário, conforme as exigências
do caso concreto, estabelecer “regime de greve mais severo” do que o previsto na Lei
nº 7.783/1989, especialmente no que se refere aos “serviços ou atividades essenciais”,
considerando a enumeração desses serviços pelos artigos 9º a 11 da referida norma
apenas exemplificativa para o setor público.
A orientação que prevaleceu no aludido julgamento revela mudança de postura
do supremo tribunal Federal no que diz respeito à efetividade do direito fundamental
paredista. isso porque, o stF não se limitou à declaração da mora legislativa, na medida
em que resolveu suprir provisoriamente a omissão do legislador, enquanto o art. 37, vii,
da CF não for devidamente regulamentado por lei específica. Com isso, permite-se ao
servidor público desfrutar da máxima eficácia possível do direito de greve assegurado
constitucionalmente, ainda que não editada a norma faltante.
O STF também definiu regras temporárias de competência para a apreciação de
dissídios de greve instaurados entre o Poder Público e os servidores públicos civis, no
contexto nacional, regional, estadual e municipal, estabelecendo o seguinte:
a) se a paralisação for de âmbito nacional, ou abranger mais de uma região da
justiça federal, ou ainda, compreender mais de uma unidade da federação, a
competência para o dissídio de greve será do superior tribunal de Justiça (por
aplicação analógica do art. 2º, i, “a”, da Lei nº 7.701/1988);
b) ainda no âmbito federal, se a controvérsia estiver adstrita a uma única região
da justiça federal, a competência será dos tribunais regionais Federais (aplicação analógica do art. 6º da Lei nº 7.701/1988);
c) para o caso da jurisdição no contexto estadual ou municipal, se a controvérsia
estiver adstrita a uma unidade da federação, a competência será do respectivo tribunal de Justiça (também por aplicação analógica do art. 6º da Lei
nº 7.701/1988);
d) as greves de âmbito local ou municipal serão dirimidas pelo tribunal de Justiça ou tribunal regional Federal com jurisdição sobre o local da paralisação,
conforme se trate de greve de servidores municipais, estaduais ou federais.
sobre a existência de greve no serviço público, José dos santos Carvalho Filho
afirma que “várias greves de servidores, algumas com duração de semanas e até de
meses, não acarretam qualquer efeito pecuniário ou funcional para os grevistas, parecendo mesmo que, em algumas oportunidades, o Governo teve que se curvar à força e
às exigências do movimento”.60
não nos parece ser esta — máxima vênia — a visão mais adequada para a questão.
Como qualquer trabalhador, o servidor público deve dispor de instrumentos
para a reivindicação dos seus direitos. o exercício do direito de greve — utilizado não
apenas para reivindicações salariais, mas também para a defesa de melhorias no serviço público — constitui mecanismo social legítimo para a solução das tensões sociais.
negar ao servidor o direito de greve sob o pretexto de que este carece de regulamentação importa em limitar o exercício de direito expressamente reconhecido pela
Constituição Federal. Eventuais abusos verificados em greves que paralisam serviços
60
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 592.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
essenciais (independentemente de serem eles prestados por servidores públicos) devem
ser coibidos e, para tanto, já existe legislação pertinente (leis nº 7.783/89 e nº 10.277/01).
15.7 sistema de remuneração
15.7.1 Conceitos básicos
o sistema remuneratório dos servidores públicos — e demais agentes públicos
— é disciplinado pelo texto constitucional no art. 37, X a Xv.
Antes de avançarmos no exame das questões constitucionais relacionadas ao
sistema remuneratório dos servidores públicos, alguns aspectos terminológicos do tema
devem ser examinados. Qual a diferença, por exemplo, entre vencimento, vencimentos
e remuneração?
de acordo com Hely Lopes meirelles, “vencimento, em sentido estrito, é a retribuição pecuniária devida ao servidor pelo efetivo exercício do cargo, correspondente
ao padrão fixado em lei; vencimento, em sentido amplo, é o padrão com as vantagens
pecuniárias auferidas pelo servidor a título de adicional ou gratificação”.61 Prossegue
o autor: “quando o legislador pretende restringir o conceito ao padrão do servidor
emprega o vocábulo no singular — vencimento; quando quer abranger as vantagens
conferidas ao servidor usa o termo no plural — vencimentos”.
nos termos da Lei nº 8.112/90 (art. 40), vencimento é a retribuição pecuniária que
o servidor público recebe pelo exercício de seu cargo. e, ainda de acordo com mencionada lei (art. 41), remuneração é a soma do vencimento e das vantagens permanentes
percebidas pelo servidor.62
no âmbito do stJ, a soma do vencimento e das vantagens permanentes corresponde ao conceito de vencimentos (no plural).63
Vantagens pecuniárias são as parcelas acrescidas ao vencimento do servidor em
razão de situações previstas em lei, de que seriam exemplos as incorporações de funções comissionadas, os acréscimos decorrentes do exercício de tarefas insalubres ou
desempenhadas em situações especiais, da obtenção de titulação acadêmica, do tempo
61
62
63
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 403.
Conforme bem observa José dos santos Carvalho Filho (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 578), o fato de
a vantagem ser percebida pelo servidor em caráter permanente ou transitório é irrelevante para a definição da
remuneração. ou seja, segundo o autor, o termo remuneração utilizado pela Lei nº 8.112/90 deveria corresponder
ao de vencimentos.
stJ: “recurso ordinário em mandado de segurança. Constitucional. Administrativo. Ausência de direito adquirido a regime jurídico. irredutibilidade de vencimentos. incorporação de vantagens. 1. Pode a lei nova regular
as relações jurídicas havidas entre os servidores públicos e a Administração, extinguindo, reduzindo ou criando
vantagens, desde que observada, sempre, a garantia constitucional da irredutibilidade de vencimentos, não havendo falar em direito adquirido a regime jurídico. 2. A Constituição Federal distingue vencimentos de remuneração,
sendo que, somente o vencimento e as vantagens de caráter permanente compõem os vencimentos e são resguardados pela
garantia de irredutibilidade. As demais vantagens pecuniárias que remuneram o servidor público, concedidas a
título temporário, não se incorporam aos vencimentos, podendo ser reduzidas ou mesmo suprimidas a qualquer tempo, pela própria natureza transitória que incorporam, em nada violando o princípio constitucional
que garante tão-somente a irredutibilidade de vencimentos. 3. As gratificações de serviço ativo e de habilitação
policial militar, bem como das indenizações de representação, moradia e compensação orgânica não integram os
vencimentos, tendo sido incorporadas ao soldo por força da Lei nº 4.940/89, não havendo falar em redução vencimental à vista do comprovado acréscimo vencimental. 4. Precedentes (rms 5.216/mA, relator ministro José
dantas, in dJ 28/8/95 e rms 3.995/mA, relator ministro Jesus Costa Lima, in dJ 5/12/94). 5. recurso improvido”
(rms nº 4.227-mA, 6ª turma. rel. min. Hamilton Carvalhido. Julg. 16.12.2003. DJ, 09 fev. 2004, grifos nossos).
747
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
748
de serviço etc. Compreendem o âmbito das vantagens pecuniárias aquelas pagas pelo
poder público a título de adicional (por tempo de serviço, por exemplo) ou de gratificação
(de produtividade ou pelo exercício de função de confiança, por exemplo). As vantagens
pecuniárias que, em razão do que disponha a lei, passem a integrar a remuneração do
servidor em caráter permanente são denominadas vantagens pessoais. são exemplos de
vantagens pessoais os anuênios ou quinquênios pagos pelo tempo de serviço público
do servidor e aquelas decorrentes do exercício de funções comissionadas (os malditos
quintos, que tantas distorções geraram e geram para o serviço público). no caso dos
quintos, a legislação — que normalmente utiliza linguagem criptografada — previa
que para cada ano de exercício de função de confiança, o servidor incorporaria aos seus
vencimentos um quinto do valor da função. Assim, após ter deixado de exercer a função,
o servidor teria incorporado, a título de vantagem pessoal, percentual do valor daquela.
Se o servidor se encontra no exercício da função de confiança, a critério dele, sua
remuneração pode ser paga com base no vencimento do seu cargo efetivo acrescido de
um percentual do valor da função, que varia em razão da legislação aplicável (ou da
interpretação dada a essa legislação). nesse exemplo, o valor pago pelo exercício da
função seria uma gratificação (de confiança), uma das duas modalidades de vantagem
pecuniária. se o servidor já incorporou, no período em que ainda era lícito e possível
fazê-lo, aos seus vencimentos, 20% do valor da função e pode manter essa vantagem
mesmo após deixar de exercer a função, essa vantagem pecuniária será denominada
de vantagem pessoal.64
em relação ao pagamento de vantagens, o texto constitucional (art. 37, Xiv) determina que os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores. Assim, se
é estabelecido Adicional por Tempo de Serviço (ATS) de 10% do valor do vencimento
do servidor, não poderia sobre esse montante (vencimento + 10% de ATS) incidir nova
gratificação ou adicional. Todos os adicionais devem incidir sobre a mesma base de
cálculo, evitando-se a aplicação de uma gratificação (ou adicional) sobre outros.
o sistema de remuneração dos servidores públicos feito por meio de vencimento
acrescido de eventuais vantagens (adicionais e gratificações) constitui a regra no serviço
público. A eC nº 19 criou, todavia, nova modalidade de remuneração para os agentes
políticos e para algumas categorias específicas de servidores, extensível, conforme venha
a ser definido em lei, a quaisquer outros servidores organizados em carreira. Esse sistema
de remuneração se denomina subsídio.
o sistema de remuneração por meio de subsídio se caracteriza, conforme indica
o art. 39, §4º, do texto constitucional, por ser fixado “em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou
64
A legislação relativa ao exercício e à incorporação de funções de confiança — ao menos no plano federal — tem
sido objeto de interpretações deveras questionáveis. Já se admitiu, por exemplo, a incorporação de função de confiança relativa a período em que o servidor não ocupava cargo efetivo (se a legislação dispõe sobre incorporação
de função de confiança, e esta somente pode ser exercida, em razão de expressa disposição constitucional, por
quem ocupa cargo efetivo, como poderia se admitir a incorporação ao cargo efetivo se o servidor não ocupava
este?) ou a hipótese absurda de o servidor, no exercício da função, ter sua remuneração paga com base no vencimento do cargo efetivo, acrescido do valor da função e dos denominados quintos incorporados. trata-se do
que se convencionou a chamar de função cheia (ou cheíssima). Ora, se a figura dos quintos foi criada para evitar
grandes decréscimos quando o servidor deixava de exercer a função, mais do que ilegal, é ilógico admitir que as
duas gratificações sejam pagas concomitantemente.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
outra espécie remuneratória”. A distinção entre o subsídio e o sistema de remuneração
com base no vencimento reside na impossibilidade de que ao primeiro seja acrescida
qualquer vantagem pecuniária.
são obrigatoriamente remunerados com base no sistema de subsídios os membros
de poder, os detentores de mandato eletivo, os ministros de estado e os secretários estaduais e municipais (CF, art. 39, §4º). dentro do conceito de membros de poder, devem
ser incluídos os magistrados (CF, artigos 93, v, e 95, iii) e os membros do ministério
Público (CF, art. 128, §5º, i, “c”). Além destes, também devem ser necessariamente
remunerados com base em subsídio os ministros do tribunal de Contas da união (em
razão da equiparação feita pelo art. 73, §3º, da Constituição com os ministros do superior
tribunal de Justiça), os integrantes das carreiras da defensoria Pública e da Advocacia
Pública (CF, art. 135), e os policiais das polícias federal, rodoviária federal, ferroviária
federal, civil, militar e dos corpos de bombeiros (CF, art. 144, §9º).
Além dessas categorias, que devem obrigatoriamente ser remuneradas com base
em subsídios, qualquer outra categoria de servidor organizada em carreira pode —
conforme venha a ser definido em lei — ser igualmente remunerada com base nesse
sistema, nos termos do art. 39, §8º, do texto constitucional.
em resumo, podemos apresentar os seguintes tópicos acerca da terminologia
utilizada pelo sistema remuneratório do serviço público:
- Remuneração – Compreende todos os valores pecuniários pagos aos servidores a título de contraprestação pelos serviços prestados. estão incluídos na
remuneração os vencimentos bem como as vantagens de caráter permanente
ou transitório pagos ao servidor;
- Vencimento – É a retribuição pecuniária que o servidor público recebe pelo
exercício de seu cargo;
- Vencimentos – Correspondem ao vencimento acrescido das vantagens de caráter
permanente pagas ao servidor;
- Vantagens pecuniárias – são as parcelas acrescidas ao vencimento do servidor em
razão de situações previstas em lei. As vantagens pecuniárias compreendem
os adicionais e as gratificações;65
- Vantagens pessoais – Correspondem às vantagens pecuniárias que integram a
remuneração do servidor em caráter permanente;
- Subsídio – Corresponde ao sistema de remuneração em que o agente é remunerado por meio de parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação,
adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória.
15.7.2 Fixação e revisão de remuneração
A fixação e a revisão da remuneração dos servidores públicos se encontram
disciplinadas no art. 37, X, do texto constitucional.
65
Nos termos da Lei nº 8.112/90, as vantagens pecuniárias compreendem adicionais, gratificações e indenizações.
A doutrina é uníssona em afirmar que as indenizações — em razão de sua natureza — não fazem parte das vantagens a serem pagas ao servidor. Cumpre igualmente à lei (art. 61) indicar as vantagens a serem pagas a título
de adicionais e de gratificações.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
em relação a ambas, sobressai um aspecto comum: a necessidade de lei. somente
por meio de lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, poderá ser fixada e
revista a remuneração de qualquer agente público.
Acerca do trecho do dispositivo que se refere à necessidade de ser observada a
iniciativa privativa, não seria legítimo ao chefe do executivo, por exemplo, propor projeto
de lei para definir a revisão da remuneração em outro poder; assim como parlamentar
não pode propor idêntica solução para os servidores do executivo.
É a necessidade de previsão em lei que levou o stF ao elaborar a súmula nº 679,
por meio da qual se reafirmou o entendimento de que a “fixação de vencimentos dos
servidores públicos não pode ser objeto de convenção coletiva”.
Ainda em relação à necessidade de lei específica, o eg. STF, igualmente por meio
de súmula (de número 681), firmou o entendimento de que “é inconstitucional a vinculação do reajuste de vencimentos de servidores estaduais ou municipais a índices
federais de correção monetária”. A edição desta súmula deveu-se ao fato de que se havia
tornado comum a aprovação de leis estaduais e municipais fixando que os salários dos
seus respectivos servidores seriam anualmente reajustados com base em determinado
índice. essas leis teriam tido o propósito de dar efetividade à regra contida na parte
final do mencionado inciso X do art. 37 da Constituição Federal, que assegura “revisão
anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”. se a revisão, nos termos da
Constituição Federal, deve ser feita anualmente, qual seria o impedimento à adoção
de determinado índice para servir de parâmetro para correção dos vencimentos dos
servidores? A resposta é simples: a necessidade de que tanto a fixação quanto a revisão
sejam fixadas em lei específica, e não por meio de lei genérica que utilize certo índice
para as futuras revisões. não há, a rigor, qualquer impedimento de que certo índice
seja utilizado para definir a revisão dos vencimentos dos servidores. Porém, para cada
revisão, deverá, em cada ano, ser aprovada lei específica. A partir dessa interpretação
da Constituição, foi elaborada a mencionada súmula nº 681.
no plano federal, para regulamentar o mencionado art. 37, X, da Constituição
Federal e servir de parâmetro para as revisões anuais gerais dos vencimentos dos servidores públicos, foi editada a Lei nº 10.331, de 2001. trata-se, no entanto, de lei inócua,
sem qualquer resultado prático. ela determina, por exemplo, que no mês de janeiro de
cada ano será promovida a revisão geral de que trata o dispositivo constitucional. A
pergunta a ser feita é a seguinte: e se não for editada, em cada ano, lei específica para
promover referida revisão geral no mês de janeiro, o que ocorrerá? resposta: nada,
absolutamente nada. Poderia, eventualmente, ser proposta ação judicial para obrigar
o chefe do Executivo a enviar projeto de lei com o objetivo de fixar critério para essa
revisão geral e para obrigar o respectivo Legislativo a aprovar a lei. em hipóteses
como essas, o máximo que é permitido ao Poder Judiciário é comunicar aos órgãos do
executivo e do Legislativo que estão em mora em razão do não cumprimento de determinação constitucional. o resultado efetivo dessa providência é, todavia, nenhum. não
se alcança qualquer objetivo com a declaração da omissão constitucional decorrente da
não aprovação, a cada ano, de lei que fixe a revisão geral.
Ainda em relação à mencionada Lei nº 10.331/01, cumpre observar que ela estabelece, por exemplo, que eventuais reajustes concedidos a categorias específicas — a
título de reorganização ou reestruturação — sejam deduzidos da revisão geral do ano
subsequente. em primeiro lugar, poder-se-ia cogitar da razão dessa disposição. se determinada categoria foi objeto de reestruturação, é por que esta se fazia necessária, e isto
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
não tem nada a ver com a revisão geral do ano seguinte. Ademais, como a revisão geral
do ano subsequente àquele em que tenha ocorrido mencionada reestruturação será
feita por meio de lei específica, com a mesma estatura hierárquica da mencionada Lei
nº 10.331/01, ela poderá dispor no sentido inverso àquele previsto nesta lei.
A conclusão a que se pode chegar em relação ao contido no art. 37, X, da Constituição Federal é no sentido de que a única regra efetiva decorrente deste dispositivo
constitucional é a de que a fixação, e eventuais revisões, da remuneração dos agentes
públicos depende de lei específica, observada, em cada caso, a iniciativa privativa. As
demais proposições contidas no texto constitucional — de que a revisão deve ser anual,
não discriminatória, na mesma data, sem distinção de índices etc. —, bem como as regras
contidas na Lei nº 10.331/01 são inócuas, haja vista a efetividade dessas medidas depender, em cada caso, de lei específica a ser editada em cada ano.
15.7.3 teto remuneratório
o inciso Xi do art. 37 da Constituição Federal — que cuida do teto de remuneração — tem sofrido ao longo dos últimos anos diversas modificações. O texto atualmente
em vigência teve sua redação definida pela EC nº 41/03.
em razão das inúmeras pressões sofridas pelos legisladores, a redação do dispositivo é longa, casuística e procura dar tratamento privilegiado a determinadas categorias
que dispõem de maior poder político de pressão.
A regra básica contida no mencionado art. 37, Xi, é a de que “a remuneração e
o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da Administração
direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos poderes da união, dos
estados, do distrito Federal e dos municípios, dos detentores de mandato eletivo e
dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória,
percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer
outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos ministros do
supremo tribunal Federal”.
Antes de tratarmos das regras especiais relativas à aplicação do teto no âmbito
dos estados, distrito Federal, municípios e empresas estatais, examinaremos as regras
básicas do teto decorrentes do texto acima mencionado.
desse texto, as principais conclusões a que se pode chegar são no sentido de que:
- o teto remuneratório corresponde ao subsídio mensal dos ministros do STF;
- Todas as categorias, ocupantes de cargos, empregos ou funções públicas, da
Administração direta, autárquica ou fundacional, de todos os poderes e esferas
de governo, estão sujeitas ao teto;66
- Nenhuma vantagem, qualquer que seja sua natureza, poderá exceder ou ser excluída
da incidência do teto;
- O teto aplica-se às acumulações de vencimentos, destes com proventos ou pensões,
ou destes últimos entre si;67
66
67
Verifica-se, desse modo, modificação do sistema do teto adotado pela EC nº 41/03 em relação àquele instituído
pelo texto original da Constituição de 1988, em que seria adotado, em cada Poder, um teto diferenciado: a remuneração do ministro de estado para os servidores do executivo, dos parlamentares federais, para os servidores
do Legislativo, e dos ministros do stF, para os servidores do Judiciário.
As resoluções nº 13 e nº 14, de 2006, do Conselho nacional de Justiça (CnJ), que regulamentaram a aplicação do
teto aos magistrados, expressamente excluíram da incidência deste as acumulações dos subsídios dos magistrados
751
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
752
- Excluem-se do teto somente as parcelas de natureza indenizatória, assim definidas
pela legislação em vigor na data da publicação da eC nº 41/03 ou por legislação posterior que venha a regulamentar a aplicação do art. 37, Xi — conforme
definido pela EC nº 47/05.68
Grande controvérsia se criou em torno da aplicação do teto instituído pela eC
nº 41/03 às remunerações licitamente percebidas e cujos valores ultrapassavam aquele
fixado como subsídio dos ministros do STF. A discussão girava em torno de saber se
haveria direito adquirido em face de disposição constitucional.
No julgamento do MS nº 24.875-DF, o STF reafirmou a tese de que não haveria
direito adquirido contra disposição instituída por emenda à Constituição, o que resultou (ou deveria resultar) na redução de todos os vencimentos, subsídios, proventos,
pensões etc., percebidos, cumulativamente ou não, ao valor fixado como subsídio dos
ministros do stF.69
68
69
com eventuais vencimentos pelo exercício do magistério em universidades públicas. em interpretação casuística,
em causa própria e excessivamente criativa, para dizer o mínimo, o CNJ, em tese confirmada (ou articulada) com o
STF, firmou o entendimento de que em razão das acumulações dos magistrados não se submeterem ao disposto no
art. 37, XVI, mas à regra específica de acumulação prevista no art. 95, parágrafo único, I, não seria feito o somatório
do subsídio do magistrado com o vencimento percebido em razão do exercício do magistério em universidade
pública. O leitor poderia indicar qual a relevância da acumulação do magistrado se submeter a regra específica
para a não aplicação do teto ao somatório. A resposta é que não há qualquer relevância. trata-se de argumento de
força. Assim, se um advogado público, por exemplo, acumula seus vencimentos (ou subsídio) com os do cargo de
professor de uma universidade Pública, devem ser somados os valores e aplicado o teto. se em vez de advogado
público se trata de juiz, sob tão frágil e casuístico argumento, não se aplica o teto ao somatório dos valores percebidos pelo magistrado, mas este será aplicado a cada uma das fontes, sem que se faça o somatório. Poder-se-ia
argumentar que o critério adotado para os magistrados é mais justo, de que sendo a acumulação lícita, não seria
justo exigir trabalho não remunerado e de que o correto seria aplicar o teto a cada fonte. não há dúvida de que
esse critério seria mais justo. ora, se a Constituição da república admitiu o desempenho cumulativo de cargos,
empregos e funções o fez por razões que não devem entrar em choque com o instituto do limite constitucional
remuneratório.
diante desse conjunto de injustiças, a mais grave é a quebra de isonomia em causa própria promovida por aqueles
que deveriam ser os guardiões da Constituição Federal e da lei. Cumpre informar que esta mesma regra excepcional
tem sido utilizada pelo ministério Público para determinar a não aplicação do teto às acumulações dos seus subsídios
aos vencimentos do magistério público. Isto resulta em que este autor seja beneficiário da exceção aqui criticada.
o §11 do art. 37 da Constituição Federal, com a redação dada pela eC nº 47/05, determina que “não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios de que trata o inciso Xi do caput deste artigo, as parcelas de
caráter indenizatório previstas em lei”.
o mencionado ms nº 24.875-dF (Pleno. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 11.5.2006. DJ, 06 out. 2006), objeto de
publicação no Informativo STF, n. 418, tratou da questão nos termos seguintes:
“em divergência, o Min. Joaquim Barbosa, seguido pelos Ministros Cezar Peluso, Carlos Britto, Eros Grau e
nelson Jobim, presidente, indeferiu o mandado de segurança. salientando o caráter político-institucional da
eC 41/2003, bem como o disposto no art. 17 do AdCt — que determinou a imediata redução de vencimentos
em desacordo com a Constituição —, afirmou que a fixação de um efetivo teto remuneratório configura antigo
anseio geral no sentido da concretização definitiva da transparência na remuneração dos servidores públicos,
sendo incabível, por isso, a tese de direito adquirido a uma remuneração que extrapola o limite do que o país
considera como remuneração justa para a função pública. ressaltou, ademais, não haver violação ao princípio
da isonomia, visto que a EC 41/2003 fixou teto uniforme e intransponível, restando respeitados, abaixo dele, a
manutenção de situações individuais. Concluiu, destarte, não ser possível deixar de se aplicar o teto aos ministros aposentados, em razão de estarem submetidos agora ao regime do subsídio.”
no que concerne a outros aspectos do tema, a questão voltou a ser enfrentada no julgamento do mesmo ms
nº 24.875-dF, e foi objeto de publicação no Informativo STF, n. 426:
“no que se refere ao adicional por tempo de serviço – Ats, entendeu-se que, no tocante à magistratura, a extinção da referida vantagem, decorrente da instituição do subsídio em ‘parcela única’, não acarretou indevido
prejuízo financeiro a nenhum magistrado, eis que, por força do art. 65, VIII, da LOMAN, desde sua edição, o
ATS estava limitado a 35% calculados sobre o vencimento e a representação mensal (LOMAN, art. 65, §1º). Além
disso, em razão do teto constitucional primitivo estabelecido para todos os membros do Judiciário, nenhum
deles poderia receber, a título de Ats, montante superior ao que percebido por ministro do stF, com o mesmo
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
Além desses aspectos, outros decorrem da redação do mencionado art. 37, Xi.
em relação aos municípios, estados e distrito Federal, são criadas regras especiais de subteto.
no âmbito dos Municípios, nenhuma remuneração, subsídio, pensão etc. — à
exceção do subsídio dos procuradores municipais — poderão ultrapassar o subsídio
dos prefeitos.
no âmbito do Distrito Federal e dos Estados, são instituídos três subtetos diferenciados. Para o Poder Legislativo, o subteto corresponde ao subsídio dos deputados
estaduais; para o executivo, o subteto corresponde ao subsídio do governador; e para
o Judiciário, o subteto será o subsídio do desembargador do tribunal de Justiça.
no âmbito dos estados e do distrito Federal, esses três diferentes subtetos estaduais podem ser substituídos, “mediante emenda às respectivas Constituições e Lei
orgânica, como limite único, [pelo] subsídio mensal dos desembargadores do respectivo
tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento
do subsídio mensal dos ministros do supremo tribunal Federal” (CF, art. 37, §12, com
redação dada pela EC nº 47/05). Caso seja adotado esse sistema para definir o subteto
dos estados ou do distrito Federal, ele não se aplica “aos subsídios dos deputados
estaduais e distritais e dos vereadores”.70
em relação ao subsídio dos desembargadores estaduais, é estabelecido expressamente que ele será “limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do
subsídio mensal, em espécie, dos ministros do supremo tribunal Federal”. esta regra
resulta em que, teoricamente, lei estadual poderia fixar o subsídio do governador em
valor correspondente àquele pago aos ministros do stF, ao passo que o subsídio dos
desembargadores estaduais estaria limitado ao esdrúxulo percentual mencionado.
ocorre que, o supremo tribunal Federal, no julgamento da Adi nº 3.854-1, em
sede liminar, decidiu excluir os membros da magistratura estadual da submissão ao
subteto remuneratório de 90,25% do subsídio dos ministros do STF, aplicando-lhes o
teto geral, ao entendimento de que o Poder Judiciário possui caráter nacional e unitário,
de sorte que não poderia haver tratamento discriminatório entre magistrados federais e
estaduais que desempenham iguais funções e se submetem a um só estatuto de âmbito
nacional (LC nº 35/79).71
70
71
tempo de serviço. no ponto, ressaltou-se a jurisprudência da Corte no sentido da impossibilidade de o agente
público opor, sob alegação de direito adquirido, a pretensão de manter determinada fórmula de composição
de sua remuneração total, se, da alteração, não decorre a redução dela. Ainda quanto ao Ats, afastou-se, da
mesma forma, a apontada ofensa ao princípio da isonomia, já que, para seu acolhimento, a arguição pressuporia
que a própria Constituição tivesse erigido o maior ou menor tempo de serviço público em fator compulsório
do tratamento remuneratório dos servidores, o que não se dá, por ser Ats vantagem remuneratória de origem
infraconstitucional.”
O subsídio dos deputados estaduais está limitado a 75% do subsídio dos deputados federais (CF, art. 27, §2º). As
regras para a fixação dos subsídios dos vereadores estão disciplinadas na Constituição, art. 29, VI, podendo variar
de no máximo 20% a 75% do subsídio dos deputados estaduais, caso se trate de Município com menos de dez mil
ou com mais de quinhentos mil habitantes, respectivamente. essas regras relacionadas ao teto para parlamentares
federais, estaduais ou municipais constituem mera ilusão. A maior parte de seus rendimentos “licitamente” obtidos
em decorrência do exercício do mandato decorre das denominadas verbas de gabinete, ou de representação, as
quais não se submetem a qualquer critério ou limite, exceto àqueles fixados pelos próprios parlamentares.
A Adi foi ajuizada pela Associação dos magistrados Brasileiros (AmB), mediante a qual se impugnou a redação
dada pelo art. 1º da emenda Constitucional nº 41/2003 ao art. 37, inciso Xi, da Constituição Federal, bem como
o art. 2º da resolução nº 13/2006 e o art. 1º, parágrafo único, da resolução nº 14, ambas editadas pelo Conselho
nacional de Justiça, com o propósito de regulamentar o referido dispositivo constitucional.
753
754
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Aos membros do ministério Público e aos defensores públicos estaduais, bem
como aos procuradores estaduais e municipais, o teto aplicável corresponde ao valor
fixado como subsídio para os desembargadores estaduais.
A rigor, em relação aos procuradores municipais, poder-se-ia indagar se o teto
aplicável seria o subsídio dos prefeitos ou o dos desembargadores. em razão de o texto
constitucional não ter feito qualquer menção ou distinção entre procuradores estaduais
e municipais (“aplicável este limite [correspondente ao subsídio dos desembargadores]
aos membros do ministério Público, aos Procuradores e aos defensores Públicos”),
parece-nos mais correto interpretar este trecho do citado inciso Xi no sentido de que
os procuradores municipais não se sujeitam ao subsídio dos prefeitos, mas ao dos
desembargadores.
em relação às empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia
mista), a questão do teto é disciplinada pelo art. 37, §9º, da Constituição Federal.
Importa frisar que, para fins de aplicação da regra do teto, é irrelevante saber se
se trata de entidade prestadora de serviço público ou exploradora de atividade empresarial (aspecto relevante para definir, por exemplo, se a responsabilidade da entidade é
objetiva ou subjetiva, conforme dispõe o art. 37, §6º, da Constituição). Para a aplicação do
teto correspondente ao subsídio dos ministros do stF às empresas estatais, é relevante
verificar se ela recebe repasse de recursos públicos (federais, estaduais ou municipais)
para pagamento de pessoal ou para custeio em geral. se houver esse repasse (o que
ocorre, por exemplo, com o serviço Federal de Processamento de dados – serpro, que
é empresa pública federal), os salários dos seus empregados não poderão exceder ao
subsídio do stF; se não houver esse repasse (situação em que se encontram o Banco
do Brasil e a Caixa econômica Federal, que se tratam de sociedade de economia mista
e empresa pública, respectivamente), não haverá a aplicação do teto. eis a razão por
que os salários dos dirigentes dessas entidades têm sido fixados em patamares bem
superiores ao do subsídio dos ministros do stF.
15.7.4 isonomia e paridade
A redação original da Constituição Federal (art. 39, §1º) expressamente assegurava
isonomia de vencimentos aos servidores dos diferentes poderes que exercessem atribuições idênticas ou assemelhadas. Além dessa isonomia, o texto original da Constituição
de 1988 previa paridade nos reajustes dos servidores civis em face dos militares, determinando que a revisão geral de soldos não poderia ser feita em parâmetros superiores
aos dos vencimentos dos servidores públicos. essas duas regras — de isonomia entre
os servidores dos diferentes poderes e de paridade de reajuste entre civis e militares
— foram suprimidas do texto constitucional pela eC nº 19/98. do texto constitucional,
em matéria de isonomia de vencimentos entre os servidores dos diferentes poderes,
restou o disposto no art. 37, Xii, que determina que “os vencimentos dos cargos do
Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos pelo
Poder executivo”.
se antes da supressão do mencionado art. 39, §1º, do texto constitucional, a regra
da isonomia jamais foi cumprida, após a edição da eC nº 19/98, mais certo ainda que a
regra contida no mencionado art. 37, Xii, jamais terá qualquer efetividade.
A total falta de efetividade desse dispositivo decorre, em primeiro lugar, do fato
de que os cargos dos Poderes Legislativo e Judiciário são distintos daqueles existentes
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
no âmbito do executivo. Ademais, a solução para a correção de eventuais distorções
salariais existentes não se resolve com a redução — ou o congelamento — das remunerações dos dois primeiros poderes, mas com o aumento dos vencimentos do executivo,
o que historicamente jamais ocorreu.
É fato histórico que os servidores do Judiciário e do Legislativo recebem remuneração superior àquelas em média pagas aos servidores comuns do executivo. Para
constatar essa diferença basta que se levantem as médias salariais praticadas nos diferentes poderes. no âmbito do executivo, a realidade demonstra que somente carreiras
específicas (como a dos fiscais da Receita Federal ou dos delegados da Polícia Federal,
para citar apenas dois exemplos) logram obter remuneração adequada.
A rigor, a regra contida no art. 37, Xii, da Constituição Federal, não trata de isonomia, mas de limite de remuneração, no sentido de que os vencimentos dos Poderes
Legislativo e Judiciário não poderiam ser superiores àqueles pagos no Poder executivo.
Como viabilizar essa regra? A única solução possível seria a elevação dos vencimentos
pagos no âmbito do executivo. essa pretensão importaria em triplicar o total dos gastos
públicos com pessoal, o que torna a medida impraticável e o texto constitucional letra
morta.
15.7.5 vedação de vinculação e equiparação
ocorreria vinculação remuneratória se, por exemplo, lei determinasse que o
vencimento de delegado de polícia correspondesse a 90% daquele fixado em lei para
promotor de justiça.72 Haveria equiparação, ao contrário, se lei determinasse que a
remuneração dos delegados fosse a mesma aplicável aos promotores de justiça.
A regra contida no art. 37, Xiii, da Constituição Federal, de que “é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público”, é dirigida ao legislador. não pode lei estabelecer
qualquer equiparação ou vinculação salarial.
o próprio texto constitucional prevê, no entanto, situações de equiparações e de
vinculações. Exemplos de equiparação constitucional podem ser identificados entre os
ministros do tribunal de Contas da união e os ministros do superior tribunal de Justiça
(CF, art. 73, §3º) e entre os membros dos ministérios Públicos especiais que atuam junto
aos tribunais de Contas e os membros do ministério Público Comum (Federal ou dos
estados, nos termos do art. 130 da Constituição Federal).73
72
73
no âmbito do Legislativo federal, durante muito tempo — que talvez alcance os dias atuais — vigoraram resoluções que estabeleciam que o valor de algumas funções de confiança seria remunerado com base em percentual
do subsídio dos parlamentares. Como os parlamentares recebem subsídios adicionais a título de ajuda de custo
(três vezes por ano) e durante as convocações extraordinárias do Congresso, referidos servidores tinham suas
remunerações alteradas a cada vez que isso ocorresse. tratava-se do denominado “teto móvel” e de evidente
inconstitucionalidade, que somente a falta de transparência — e de vergonha — justificaria a manutenção.
no caso da equiparação entre os ministros do tCu e do stJ, o texto constitucional restringe a equiparação a garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens. no caso do ministério Público de Contas e os equivalentes
ministérios Públicos comuns (o federal como parâmetro para ministério Público junto ao tCu, e os estaduais para
os ministérios Públicos que atuam junto aos tCes), a equiparação decorre do art. 130 da Constituição Federal,
que confere aos primeiros todos os direitos dos segundos. Ao se proceder ao exame do que está compreendido no
âmbito dos direitos dos membros do ministério Público da união, a Lei Complementar nº 75/1993 indica, em primeiro lugar, a remuneração. ou seja, a equiparação entre os denominados promotores de contas e seus respectivos
congêneres federais e estaduais é mais ampla do que aquela fixada pela Constituição para os Ministros do TCU em
relação aos ministros do stJ.
755
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756
Hipótese de vinculação está prevista no art. 93, v, da Constituição Federal, que
estabelece que “o subsídio dos ministros dos tribunais superiores corresponderá a
noventa e cinco por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo
tribunal Federal”.
A conclusão, em matéria de vinculação e de equiparação de remuneração de
agentes públicos, é no sentido de que somente são válidas aquelas expressamente previstas na Constituição Federal. Qualquer outra vinculação ou equiparação instituída
por lei é inconstitucional.
em função do seu caráter didático, merece ser transcrita a manifestação do relator
da Adi nº 955-PB, proposta contra lei do estado da Paraíba, in verbis:
Por vislumbrar ofensa ao art. 37, Xiii, da CF, que proíbe a vinculação ou equiparação de
quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço
público, o tribunal julgou procedente, em parte, pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Governador do estado da Paraíba para declarar a inconstitucionalidade da
expressão “atribuindo-se à classe de grau mais elevado remuneração não inferior à do
Procurador-Geral do estado”, contida no inciso vi do art. 136 da Constituição estadual,
que trata dos vencimentos dos Procuradores de estado. Precedentes citados: Adi 305/
rn (dJu de 13.12.2002); Adi 1714/Am (dJu de 23.4.99); Adi 301/AC (dJu de 30.8.2002);
Adi 2895/AL (dJu de 20.5.2005) e Adi 396/rs (dJu de 5.8.2005).74
15.7.6 irredutibilidade
Antes de 1988, a irredutibilidade de vencimentos constituía uma das garantias
específicas dos magistrados e membros do Ministério Público. A Constituição de 1988
estendeu essa garantia a todos os servidores públicos ao dispor, em seu art. 37, Xv,
que “o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são
irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos Xi e Xiv deste artigo e nos arts. 39, §4º,
150, ii, 153, iii, e 153, §2º, i”.
Algumas observações se fazem necessárias acerca do tema.
em primeiro lugar, a redução a que se refere o texto constitucional — conforme
jurisprudência pacífica — corresponde ao valor nominal dos vencimentos ou do subsídio. Isto importa em que a redução do poder de compra acarretado pela inflação não
caracteriza violação à regra constitucional, ou seja, o poder público não está, por força
da regra da irredutibilidade de vencimentos, obrigado a corrigir ou atualizar os valores
percebidos pelos servidores.
Ademais, o valor tomado como parâmetro para definir a ocorrência de redução
é o valor bruto percebido pelo servidor, e não o valor líquido. Por força da remissão
expressamente feita pelo art. 37, Xv, aos artigos 150, ii, e 153, iii, e 153, §2º, i, se, por
exemplo, for aumentada a alíquota do imposto de renda, e isso importar em redução
da remuneração líquida do servidor, não ocorrerá violação da regra da irredutibilidade.
Existem ainda gratificações — de que seria exemplo maior a gratificação de
produtividade a que fazem direito algumas carreiras — que têm como uma de suas
74
stF. Adi nº 955-PB, Pleno. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 26.4.2006. DJ, 25 ago. 2006.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
características a possibilidade de sofrerem variações periódicas. desse modo, sendo
da própria natureza da gratificação a possibilidade de ela sofrer reduções, não haveria
que se falar em violação da regra constitucional da irredutibilidade de vencimentos se
em determinado momento o valor total dos vencimentos do servidor sofrer diminuição
em razão da redução do valor pago por meio dessa vantagem.
Conforme observado, o inciso Xi, do art. 37, com a redação dada pela eC nº 41/05,
impede que os vencimentos ou subsídios possam, a qualquer título, inclusive a título
de se tratar de vantagem pessoal, ultrapassar o valor do subsídio dos ministros do stF.
Antes do advento da mencionada EC nº 41/05, o STF havia firmado o entendimento de que as vantagens de caráter pessoal poderiam ultrapassar o teto.75 Após o
advento da mencionada emenda constitucional, o entendimento do stF (expresso por
ocasião do julgamento do ms nº 24.875-dF, aqui já mencionado, proposto por ministros
aposentados do próprio tribunal contra decisão da presidência do stF, que reduzira
seus subsídios para adequá-los aos limites fixados pela Lei nº 11.143/2005) firmou-se
no sentido de que não se poderia buscar na regra constitucional da irredutibilidade dos
vencimentos, ou na invocação do direito adquirido, a pretensão de serem mantidos os
valores até então pagos.76
vê-se, portanto, que a regra da irredutibilidade de vencimentos não é absoluta,
havendo no próprio dispositivo constitucional (art. 37, Xv) a previsão de situações em
que poderá haver redução de vencimento ou de subsídio dos agentes públicos.
75
76
essa questão foi enfrentada pelo stF no julgamento do re nº 174.742/Pr: “Anteriormente ao advento das
emendas Constitucionais 19/98 e 41/2003, não se computam as vantagens de caráter pessoal para o cálculo do
teto de remuneração previsto no art. 37, XI, da CF, na redação original (‘A lei fixará o limite máximo e a relação
de valores entre o maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos
e no âmbito dos respectivos Poderes, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título,
por membros do Congresso nacional, ministros de estado e ministros do supremo tribunal Federal e seus
correspondentes nos estados, no distrito Federal e nos territórios, e, nos municípios, os valores percebidos
como remuneração, em espécie, pelo Prefeito.’). Com base nesse entendimento, a turma, por maioria, deu parcial
provimento a recurso extraordinário interposto pelo estado do Paraná contra acórdão que, em mandado de
segurança, determinara que os proventos do ora recorrido, procurador aposentado do estado, equivalessem ao
vencimento recebido por secretário do Estado, excluídas do teto as gratificações de gabinete, de produtividade e
de serviço extraordinário, adicional por tempo de serviço e verba de representação. Asseverou-se que à exceção
do adicional por tempo de serviço, as demais parcelas seriam relativas à natureza do cargo. vencido o min.
marco Aurélio, relator, que dava provimento em maior extensão ao recurso, para determinar a observância do
teto previsto no citado dispositivo constitucional, levando-se em conta valores percebidos como remuneração,
em espécie e a qualquer título, pelo recorrido e o secretário de estado, tomada a remuneração deste como
limite. RE parcialmente provido para cassar a segurança quanto às gratificações de serviço extraordinário e
produtividade, de representação de gabinete e verba de representação. Precedente citado: re 218465/Pr (dJu
de 13.11.98)” (re nº 174.742-Pr, 2ª turma. rel. min. nelson Jobim. Julg. 14.3.2006. DJ, 23 jun. 2006).
A jurisprudência do superior tribunal de Justiça está orientada no sentido de que não há direito adquirido
a recebimento de remuneração, proventos ou pensão acima do teto constitucional, sendo que a garantia da
irredutibilidade dos vencimentos deve ser observada, desde que os valores percebidos se limitem ao teto remuneratório constitucional. nesse sentido:
“Agravo regimental. Administrativo. Constitucional. servidor público. teto remuneratório. emenda nº 41/2003.
direito adquirido. irredutibilidade de vencimentos. inexistência. vantagens pessoais. inclusão. Coisa julgada.
Violação. Não ocorrência. 1. O Superior Tribunal de Justiça, na esteira do entendimento firmado pelo Supremo
tribunal Federal, assentou compreensão de que não existe direito adquirido ao recebimento da remuneração
além do teto estabelecido pela emenda nº 41/2003, não prevalecendo a garantia da irredutibilidade de vencimentos em face da nova ordem constitucional. 2. da mesma forma, também restou estabelecido que, após a aludida
emenda constitucional, as vantagens pessoais também devem ser incluídas no cálculo do teto remuneratório. (...)
4. Agravo regimental a que se nega provimento” (stJ. Agrg nos edcl no rms nº 25.959-rJ, 6ª turma. rel. min.
Paulo Gallotti. DJe, 23 mar. 2009).
757
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
758
15.8 Acumulação de cargos, empregos e funções públicas
15.8.1 Acumulação de cargos na atividade
A Constituição de 1988 estabelece, como regra, a vedação de acumulação remunerada de cargos, empregos ou funções públicas (art. 37, Xvi e Xvii), proibição que
abrange “autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia
mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder
público”.
A regra da vedação de acumulação se estende a todas as esferas de governo, a
todos os poderes e a toda a Administração Pública direta e indireta. se determinada
pessoa ocupa cargo, emprego ou função pública em município, por exemplo, não
poderá ocupar em qualquer esfera de governo (federal, estadual ou municipal) ou em
outro poder outro cargo, emprego ou função pública, quer se trate de Administração
Pública direta ou indireta.77
A regra que impõe a vedação de acumulação não é, todavia, absoluta.
o texto constitucional admite hipóteses de acumulação, sendo, para tanto, estabelecidos dois requisitos. o primeiro deles é que se trate de:
- dois cargos de professor;
- Um cargo de professor com outro técnico ou científico;
- Ou dois cargos ou empregos privativos de profissional de saúde, de profissão
regulamentada (de que seriam exemplos médicos, dentistas, nutricionistas,
enfermeiros etc.).
o segundo requisito para a acumulação está relacionado à existência de compatibilidade de horários.
em relação a este segundo requisito, algumas questões já se tornaram sedimentadas pela jurisprudência. não é considerada compatível, por exemplo, a acumulação
de cargos se em ambos o regime adotado requer 40 horas de trabalhos semanais. ou
seja, se médico ocupa dois cargos e em ambos a carga de trabalho exigida é de 40 horas
semanais, a acumulação é ilegal. outra situação em que a acumulação não é admitida
se verifica se o servidor ocupa, por exemplo, cargo de professor em regime de dedicação
exclusiva. o cargo de professor poderia ser acumulado com outro cargo público no
magistério ou com cargo técnico ou científico. Se o regime de determinado professor em
77
Nos termos da Lei nº 8.112/1990, art. 132, verificada a acumulação ilegal, deve o servidor ser demitido do cargo
que ocupa. esta regra — aparentemente severa — sofreu mitigação em razão do que dispõe o art. 133 da própria
Lei nº 8.112/1990, que dispõe que “detectada a qualquer tempo a acumulação ilegal de cargos, empregos ou
funções públicas, a autoridade a que se refere o art. 143 notificará o servidor, por intermédio de sua chefia
imediata, para apresentar opção no prazo improrrogável de dez dias, contados da data da ciência e, na hipótese de omissão, adotará procedimento sumário para a sua apuração e regularização imediata, cujo processo
administrativo disciplinar se desenvolverá nas seguintes fases (...)”. nos termos deste dispositivo, se o servidor
notificado, conforme dispõe a lei, fizer opção por um dos cargos que ocupa ilegalmente, presume-se que agiu
de boa-fé e nenhum processo disciplinar será aberto. trata-se de verdadeiro incentivo à acumulação ilegal de
cargos. em relação ao ressarcimento do que foi pago — providência que independe da instauração de processo
disciplinar —, demonstrado que não houve a prestação do serviço, deve a autoridade competente tomar as
providências para a devolução ao erário do que foi pago indevidamente. se tiver havido a prestação do serviço,
ao contrário, não obstante a acumulação venha a ser considerada ilegal em processo disciplinar, não deve ser
adotada providência para a restituição dos vencimentos pagos para que não se caracterize enriquecimento do
poder público.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
uma universidade pública for de dedicação exclusiva, ele não poderá acumulá-lo com
qualquer outra atividade, pública ou privada. ou seja, no caso do regime de dedicação
exclusiva, a incompatibilidade ocorre não apenas em relação a outros cargos ou empregos públicos, mas em relação ao exercício de qualquer outra atividade profissional
remunerada.
Alguma dúvida cerca o conceito de cargo técnico ou científico, hipótese de acumulação admitida pelo art. 37, Xvi, “b”, com o magistério. em relação a esses dois termos,
há o entendimento de que se lei requer qualificação de nível superior, ele será necessariamente técnico ou científico.
A rigor, a verificação de que se trata de cargo técnico ou científico requer o exame
das atribuições do cargo. É necessário que se proceda ao exame das atribuições previstas
em lei para o cargo, emprego ou função para que se possa concluir se suas atribuições
possuem essa natureza. Atribuições que exijam conhecimentos técnicos específicos, como
o de técnico em informática ou em contabilidade, por exemplo, não obstante não se faça
necessário diploma de nível superior, são reputadas técnicas e passíveis de acumulação com o magistério público. Ainda a título ilustrativo, o cargo de técnico judiciário
integrante da carreira do Poder Judiciário federal, não obstante sua denominação, não
compreende atribuições técnicas ou científicas. Desse modo, ocupante deste cargo não
pode acumular suas atribuições com cargo ou emprego público de professor, ainda que
haja compatibilidade de horários.78
Além das hipóteses de acumulação expressamente mencionadas pelo inciso Xvi
do art. 37, outras são igualmente indicadas pela Constituição Federal.
no caso de o servidor da Administração Pública direta, autárquica e fundacional
exercer mandato eletivo, o art. 38 determina, como regra, a impossibilidade de acumulação dos vencimentos do cargo com o subsídio do mandato eletivo. se o servidor for
investido no mandato de vereador, havendo compatibilidade de horários (há Câmaras
de vereadores de pequenos municípios do interior que somente se reúnem uma vez
por semana), o inciso iii do mencionado art. 38 da Constituição Federal permite que ele
perceba “as vantagens de seu cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração
do cargo eletivo, e, não havendo compatibilidade”, será facultado ao servidor optar
pela remuneração do seu cargo de origem ou pelo subsídio correspondente ao cargo de
vereador. em relação à possibilidade de acumulação do exercício da magistratura com
o magistério, o texto constitucional confere tratamento específico no art. 95, parágrafo
único, i, não sendo aplicável aos magistrados a regra genérica da acumulação do art. 37,
XVI. No mencionado art. 95, parágrafo único, I, da Constituição de 1988, é fixada a
78
sobre o assunto, colhe-se elucidativo julgado do stJ, in verbis:
“Administrativo. servidora pública. impedimento para a posse em cargo público sem que, previamente, houvesse
a exoneração em outro considerado inacumulável. Ausência de prova pré-constituída. dilação probatória. inviabilidade na via estreita do writ of mandamus. Cumulação de cargos: agente de polícia civil e professora estadual.
Impossibilidade. Ausência de natureza técnica ou científica do cargo de agente de polícia. (...) 3. Conforme a jurisprudência desta Corte: ‘Cargo científico é o conjunto de atribuições cuja execução tem por finalidade investigação coordenada e sistematizada de fatos, predominantemente de especulação, visando a ampliar o conhecimento
humano. Cargo técnico é o conjunto de atribuições cuja execução reclama conhecimento específico de uma área
do saber’ (RMS 7.550/PB, 6ª Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ de 02.03.1998). 4. O cargo de Oficial
da Polícia Civil do Estado do Amapá não tem natureza técnica ou científica, de modo que se mostra inviável sua
cumulação com o de Professora daquela unidade Federativa, na forma prescrita no art. 37, inciso Xvi, alínea b, da
Constituição Federal. 5. recurso ordinário em mandado de segurança conhecido e desprovido” (rms nº 28.644-AP,
5ª turma. rel. min. Laurita vaz. Julg. 06.12.2011. DJe, 19 dez. 2011).
759
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
760
vedação para o juiz “exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função,
salvo uma de magistério”.
esta disposição constitucional sempre esteve envolta em controvérsias. maria
Sylvia Zanella Di Pietro afirma que a referência específica não distingue entre o magistério público ou privado, razão pela qual se um juiz é professor em universidade privada, por exemplo, não poderia exercer outro cargo ou emprego, público ou privado,
em qualquer outra instituição de ensino.79 essa interpretação residiria no fato de que o
texto constitucional somente admite a acumulação com um cargo ou função de professor,
sem especificar se ela seria pública ou privada.
essa linha interpretativa foi observada pelo Conselho da Justiça Federal, que
editou a resolução nº 336, de 16.10.2003. dispõe o art. 1º da resolução que ao magistrado da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, ainda que em disponibilidade, “é
defeso o exercício de outro cargo ou função, ressalvado(a) um(a) único(a) de magistério,
público ou particular”. A Associação dos Juízes Federais (AJuFe) propôs ação direta
de inconstitucionalidade (Adi nº 3.126-mC/dF, Pleno. rel. min. Gilmar mendes. Julg.
17.2.2005. DJ, 06 maio 2005) por meio da qual solicitou a suspensão cautelar, dentre
outras disposições, da vedação imposta pela resolução, que restringira a acumulação
da magistratura com um único cargo de magistério, público ou privado. na conclusão
do despacho que proferiu, o ministro nelson Jobim — no exercício da Presidência do
stF — manifestou-se nos termos seguintes:
Pelos motivos expostos, não vejo, nesta fase de liminar, ilegitimidade nos artigos 2º, 3º, 4º
e 5º da resoLução. o mesmo não se dá com a expressão “único(a)” do art. 1º. neste
ponto, é plausível a ilegitimidade. Há o risco pela mora: o ano letivo, em vários cursos,
inicia-se em fevereiro. Defiro a liminar, “ad referendum” do Plenário. Suspendo a eficácia
da expressão “úniCo(A)” do art. 1º da resoLução nº 336/2003, do ConseLHo dA
JUSTIÇA FEDERAL. Cientifique-se. Remetam-se os autos ao RELATOR. Brasília, 30 de
janeiro de 2004. ministro neLson JoBim vice-Presidente, no exercício da Presidência.
(DJ, 09 fev. 2004)
em sede de cautelar, a tese que restringe o exercício da magistratura cumulativamente com um único cargo de professor, público ou privado, foi rechaçada pelo stF. o
mérito da mencionada Adi ainda não foi enfrentado pelo tribunal — e talvez jamais o
seja. nesse sentido, não obstante a existência de divergência doutrinária sobre o tema,
enquanto o stF não reconsiderar seu entendimento expresso na cautelar concedida, o
tratamento para as acumulações dos magistrados é no sentido de que podem ocupar
vários cargos ou funções de professor, desde que isto não importe em incompatibilidade
de horário. No despacho, em que concedeu a cautelar, o Ministro Nelson Jobim afirma
que “a CF, ao que parece, não impõe o exercício de uma única atividade de magistério. o que impõe é o exercício de atividade do magistério compatível com a atividade
de magistrado. A fixação ou a imposição de que haja apenas uma ‘única’ função de
magistério — preconizada na resolução —, ao que tudo indica, não atende o objetivo
constitucional. A questão está no tempo que o magistrado utiliza para o exercício do
magistério vis a vis ao tempo que restaria para as funções judicantes. Poderá o magistrado ter mais de uma atividade de magistério — considerando diferentes períodos
79
di Pietro. Direito administrativo, p. 462.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
letivos, etc. — sem ofensa ao texto constitucional. impor uma única e só função ou cargo
de magistério não atende, necessariamente, ao objetivo constitucional. Poderá ocorrer
que o exercício de um único cargo ou função no magistério público demande 40 horas
semanais. Quarenta horas semanais importam em oito horas diárias para uma semana
de cinco dias. ou, ainda, que um magistrado-docente, titular de um único cargo em
universidade federal — professor adjunto — ministre aulas na graduação, no mestrado
e no doutorado! nestas hipóteses, mesmo sendo um único cargo, ter-se-ia a burla da
regra constitucional. Poderá ocorrer e, certamente, ocorre que o exercício de mais de
uma função no magistério não importe em lesão ao bem privilegiado pela CF — o
exercício da magistratura. A questão é a compatibilização de horários, que se resolve
caso a caso. A CF, evidentemente, privilegia o tempo da magistratura que não pode ser
submetido ao tempo da função secundária”.
A leitura desses fundamentos do despacho poderia levar à conclusão absurda
— máxima vênia — de que o juiz poderia acumular seu cargo com dois ou mais cargos
públicos de professor, e que a regra para os magistrados, em matéria de acumulação
com o magistério, se restringiria à compatibilidade de horários.
Ainda que haja compatibilidade de horários, a regra específica do art. 95, I, da
Constituição Federal, relativa aos magistrados, não pode levar a conclusão mais ampla
do que aquela autorizada para os servidores públicos pelo art. 37, Xvi. ou seja, se estes
somente podem acumular seu cargo técnico ou científico com um único outro cargo
público de professor, o magistrado não poderá receber tratamento diferenciado e mais
favorecido. Assim, enquanto vigorar mencionada cautelar, o juiz pode acumular a
magistratura com outro cargo público de professor e com vários cargos privados de
professor, desde que haja compatibilidade de horário.
em razão de o texto constitucional (art. 128, §5º, “d”) utilizar para os membros
do Ministério Público redação idêntica àquela relativa às acumulações dos magistrados,
por questão de coerência, aos promotores de justiça e demais membros do ministério
Público deve ser aplicada a mesma interpretação válida para os magistrados.
Hipótese de acumulação prevista na Lei nº 8.112/90 e que não encontra amparo na
Constituição Federal corresponde à possibilidade de servidores públicos acumularem
seus cargos com função em conselhos de administração e fiscal de empresas controladas pela
União. nos termos do art. 117, X, da Lei nº 8.112/90, ao servidor é vedado “participar
de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário”.
o parágrafo único, inciso i, do mesmo dispositivo também ressalva a “participação nos
conselhos de administração e fiscal de empresas ou entidades em que a União detenha, direta ou
indiretamente, participação no capital social ou em sociedade cooperativa constituída para
prestar serviços a seus membros” (grifos nossos).
Constitui tarefa extremamente árdua definir a natureza da participação de agente
público em conselho de administração e fiscal de empresa. Não se sabe, ao certo, se
essa atividade se trata de cargo, de emprego ou de função pública. independentemente
dessa definição, o desempenho de referida atividade tem que necessariamente ser
compreendido em uma dessas três categorias — ainda que não seja possível precisar
em qual delas. sendo a participação do membro em conselho de administração ou
em conselho fiscal de empresa controlada pela União remunerada, aplica-se a regra
prevista no art. 37, Xvii, do texto constitucional que estende a vedação de acumulação
a cargos, empregos e funções em “autarquias, fundações públicas, empresas públicas
761
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
762
sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou
indiretamente, pelo poder público”.
A simples comparação entre a redação do mencionado art. 117, X, parágrafo
único, inciso i, da Lei nº 8.112/90, com a regra constitucional prevista no art. 37, Xvii,
leva à inequívoca conclusão de que a primeira viola a segunda. nos termos desta
disposição constitucional, não é lícito ao agente acumular cargo, emprego ou função
pública remunerada com o desempenho de qualquer outra atividade remunerada em
“autarquias, fundações públicas, empresas públicas sociedades de economia mista, suas
subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público”.
A questão se resume, portanto, em saber como poderia lei permitir uma acumulação
expressamente vedada pela Constituição? A resposta é simples: a lei é inconstitucional.
15.8.2 Acumulação de proventos e vencimentos
este aspecto relacionado à acumulação de cargos (da atividade com proventos
da inatividade) merece tratamento específico em razão das nuanças sofridas ao longo
dos últimos anos.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que não previa de modo expresso a vedação de acumulação de proventos com vencimentos, houve o entendimento
generalizado no serviço público de que essa acumulação seria legítima. multiplicaram-se
os casos de servidores públicos que se aposentavam, retornavam, por concurso público,
para novos cargos públicos e acumulavam os proventos da aposentadoria com os vencimentos do novo cargo. essa tese — que tornava possível a ampla acumulação de proventos
e vencimentos — foi rejeitada pelo stF, o que gerou imensa confusão no serviço público.
Foi tamanha a perplexidade causada pela jurisprudência do stF que a eC nº 20/98 — que
tratou de reformas no sistema previdenciário — firmou a regra de que a acumulação de proventos com vencimentos seria vedada, ressalvadas exceções expressamente mencionadas.
o art. 11 da mencionada eC nº 20/98 observou, todavia, que aqueles que antes do advento
da emenda haviam ingressado no serviço público por concurso público ou por outro meio
previsto na Constituição, estariam autorizados a manter a acumulação dos proventos com
os vencimentos, ainda que não se tratasse de cargos acumuláveis na atividade.80
A Constituição Federal vigente, em seu art. 37, §10, expressamente proíbe a “percepção simultânea de proventos de aposentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42
ou 142 com a remuneração de cargo emprego ou função pública, ressalvados (...)”.
80
deve ser observado que a eC nº 20/98 somente admitiu a acumulação dos proventos com vencimentos, e não de
dois ou mais proventos. desse modo, quando o servidor vier a se aposentar no novo cargo, não poderá haver
a acumulação dos proventos desse novo cargo com aqueles a que o servidor já percebia — salvo se estiverem
relacionados a cargos acumuláveis na atividade —, devendo o servidor fazer opção pelos proventos de uma das
aposentadorias. nesse sentido, vide stF:
“na linha da fundamentação acima exposta, a turma manteve acórdão do tribunal de Justiça do estado do rio
Grande do sul que indeferira o pedido da recorrente em continuar a receber os proventos de dois cargos de
jornalista. sustentava-se, na espécie, ofensa ao art. 11 da eC 20/98, sob a alegação de que a situação da recorrente
estaria resguardada por tal dispositivo, uma vez que a aposentação do segundo cargo ocorrera antes do advento
da citada emenda. ressaltando que a acumulação pleiteada sempre fora proibida pela CF, entendeu-se que a
pretensão da recorrente encontra vedação expressa na eC 20/98.” (re nº 463.028-rs, 2ª turma. rel. min. ellen
Gracie. Julg. 14.2.2006. DJ, 10 mar. 2006)
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
Cumpre esclarecer que a aposentadoria do art. 40 é a do servidor ocupante de
cargo efetivo, e as mencionadas nos artigos 42 e 142 são relativas aos militares dos
estados e das Forças Armadas. desse modo, servidor que se tenha aposentado pelo
regime do art. 40, por exemplo, pode evidentemente retornar ao serviço público, mas
deverá, ressalvadas as hipóteses expressamente mencionadas pela Constituição Federal
(art. 37, §10), fazer opção pela percepção dos proventos do cargo em que se aposentou
ou dos vencimentos do novo cargo.
são admitidas hipóteses em que o servidor aposentado poderá acumular seus
proventos com vencimentos. são elas:
- Cargos acumuláveis na atividade;
- Cargos eletivos; e
- Cargos em comissão.
nestas três hipóteses, o servidor poderá acumular os proventos com os vencimentos, ou subsídios, do novo cargo. servidor aposentado no cargo de advogado da
união, por exemplo, que preste concurso público para o cargo de professor universitário,
ou que seja nomeado para cargo em comissão,81 ou ainda que venha a ser eleito para
exercer mandato municipal, estadual ou federal, no Legislativo ou executivo, poderá
manter os proventos e receber os vencimentos (ou subsídio, no caso do mandato eletivo).
A redação do art. 37, §10, leva a outras situações inusitadas. Caso o mencionado
advogado da união aposentado queira prestar concurso para o emprego de escriturário
do Banco do Brasil, aplica-se a vedação de acumulação de proventos do art. 40 com
emprego público, e ele será obrigado a optar entre os proventos e os vencimentos. se
a situação for inversa, ou seja, se escriturário aposentado do Banco do Brasil decide
prestar concurso para o cargo de advogado da união, a acumulação dos proventos
com os vencimentos será lícita. A razão para essa esdrúxula distinção reside no fato de
que o escriturário do Banco do Brasil é aposentado pelo regime geral da previdência
social, e não com base no art. 40 da Constituição Federal. Assim, não se lhe aplica a regra
prevista no mencionado art. 37, §10, que veda as acumulações de proventos percebidos
com base no mencionado art. 40.
15.9 estabilidade
15.9.1 requisitos
o art. 41 da Constituição de 1988 estabelece a regra da estabilidade dos servidores
públicos. dispõe o texto constitucional em vigor que “são estáveis após três anos de
efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude
de concurso público”. o §4º do art. 41 dispõe ainda que é condição obrigatória para a
81
A possibilidade de proventos de aposentadoria serem acumulados com vencimentos de cargos em comissão
demonstra como o Brasil é movido por corporativismos e privilégios. se o servidor aposentado, no nosso exemplo, desejasse retornar a ocupar o cargo de analista legislativo da Câmara dos deputados, que por se tratar de
cargo efetivo necessitaria da prévia aprovação em concurso público, ele seria obrigado a optar pelos proventos do cargo de advogado da união ou pelos vencimentos do cargo de analista legislativo. se, ao contrário, o
advogado da união aposentado é convidado a ocupar cargo em comissão — na Câmara dos deputados ou
em qualquer outro órgão público —, ele poderá acumular seus proventos com os novos vencimentos. esta é a
lamentável realidade brasileira...
763
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
764
aquisição da estabilidade “avaliação especial de desempenho por comissão instituída
para essa finalidade”.
são requisitos, portanto, para a aquisição da estabilidade:
- tratar-se de cargo efetivo (conceito que pressupõe, necessariamente, a prévia
aprovação em concurso público);
- efetivo exercício de três anos no cargo;
- Aprovação em estágio probatório;
- Aprovação em avaliação especial de desempenho.
Ao longo dos próximos itens serão examinadas particularidades relacionadas a
cada um desses requisitos.
15.9.2 efetividade e estabilidade
em relação ao primeiro requisito, em que se requer a investidura em cargo de
provimento efetivo, afasta-se a possibilidade de empregados públicos e de servidores
temporários ou comissionados sem vínculo efetivo adquirirem estabilidade.
o primeiro requisito para a estabilidade é, portanto, a efetividade do cargo. estabilidade e efetividade não se confundem: a estabilidade corresponde ao direito do servidor
público de somente perder o cargo nas hipóteses expressamente previstas na Constituição Federal;
a efetividade equivale à exigência de que o cargo somente pode ser provido se o agente tiver sido
previamente aprovado em concurso público. A jurisprudência pátria tem-se posicionado,
ademais, no sentido de que leis estaduais ou municipais não podem reconhecer a seus
empregados públicos o direito de adquirirem estabilidade em seus empregos, prerrogativa exclusiva dos cargos efetivos.
deve ser mencionado que o concurso público não é exigência exclusiva para o
provimento dos cargos efetivos. o art. 37, ii, da Constituição Federal, igualmente requer
a realização de concurso público de provas ou de provas e títulos para a investidura em
empregos públicos. Assim, não basta que o agente público tenha se submetido a concurso
público para poder adquirir estabilidade. É necessário que ele tenha sido aprovado em
concurso público para provimento de cargo — e não de emprego. Assim, se se trata de
cargo efetivo, faz-se imprescindível a prévia aprovação em referido concurso público.82
15.9.3 estágio probatório
o segundo requisito para a aquisição da estabilidade diz respeito à necessidade
de que o servidor tenha efetivamente exercido as atribuições do cargo pelo período de
três anos.
Ao utilizar a expressão efetivo exercício, o texto constitucional deixa evidente que
não serão admitidos tempos fictícios e que eventuais licenças ou afastamentos do serviço
não podem ser contados para fins de aquisição de estabilidade.
82
Reitera-se, aqui, a afirmação anteriormente feita no sentido de que em oposição ao cargo efetivo, existem os
denominados cargos em comissão. distinguem-se as duas modalidades pela exigência de prévia aprovação em
concurso público como condição para a investidura no cargo efetivo, ao passo que os cargos em comissão são
de livre nomeação e exoneração. A fim de evitar que os cargos em comissão fossem criados de forma indiscriminada, para o exercício de qualquer atividade, a CF, art. 37, v, somente admite a criação de cargos em comissão
para o exercício de atividades de chefia, de direção e de assessoramento.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
imensa dúvida se formou em relação ao prazo do estágio probatório.
Antes do advento da eC nº 19/98, o prazo exigido do servidor para a aquisição
da estabilidade era de dois anos, prazo que correspondia àquele fixado em lei para o
estágio probatório (Lei nº 8.112/90). ou seja, essa coincidência de prazos importava em
que, aprovado no estágio probatório, de dois anos, o servidor adquiria automaticamente
a estabilidade.
Com a promulgação da mencionada eC nº 19/98, alterou-se o caput do art. 41
da Constituição de 1988 para exigir do servidor, como condição para a aquisição da
estabilidade, o prazo de três anos, e não mais apenas de dois anos. A pergunta que
surge é a seguinte: ao ser modificado o texto constitucional, que de dois anos passou
a exigir três anos de efetivo exercício, o estágio probatório, fixado em lei em 24 meses
(Lei nº 8.112/90, art. 20), teria sido alterado e passado para 36 meses? ou, ao contrário,
o estágio probatório seria mantido em 24 meses, mas para a aquisição da estabilidade
seria necessário, além da aprovação no estágio probatório (de vinte e quatro meses), o
efetivo exercício de três anos no cargo?
Logo após a entrada em vigor da eC nº 19/98, o entendimento que se generalizou no serviço público foi no sentido de que o estágio probatório teria sido alterado;
de que teria passado, portanto, para três anos. o próprio sítio eletrônico do Palácio do
Planalto apresentava a Lei nº 8.112/90 com a informação de que seu art. 20 teria sido
revogado pela eC nº 19/98.
no âmbito da Advocacia-Geral da união, todavia, foi aprovado parecer em
sentido contrário, de que o prazo do estágio probatório não teria sido alterado pela
emenda constitucional. desse modo, durante os 24 primeiros meses de exercício no
cargo, o servidor estaria em estágio probatório. se for reprovado, será exonerado ou
reconduzido ao cargo anteriormente ocupado, caso seja estável. se for aprovado no
estágio probatório, ao contrário, permanecerá no cargo, porém sem estabilidade, a qual
somente será adquirida após o exercício de três anos e a aprovação na avaliação especial
de desempenho mencionada no art. 41, §4º, do texto constitucional.
Após muita discussão sobre a questão, mudanças legislativas, e idas e vindas de
posicionamento do Poder Judiciário e da Administração, ora aplicando o prazo de 24
meses, ora o de três anos, acabou prevalecendo o entendimento segundo o qual o prazo
do estágio probatório deve acompanhar o mesmo que é previsto para a estabilidade.
Foi a orientação sufragada pelo superior tribunal de Justiça, no sentido de que, após a
emenda Constitucional nº 19/98, o prazo do estágio probatório passou a ser de três anos,
atendendo à alteração constitucional para a aquisição da estabilidade. disso resulta o
reconhecimento da incompatibilidade do art. 20 da Lei nº 8.112/90 com a nova ordem
constitucional reformadora.83
83
A mudança de entendimento do stJ veio com o julgamento do mandado de segurança nº 12.523/dF, assim
ementado:
“mandado de segurança. servidor público civil. estabilidade. art. 41 da CF. eC nº 19/98. Prazo. Alteração. estágio probatório. observância. i - estágio probatório é o período compreendido entre a nomeação e a aquisição
de estabilidade no serviço público, no qual são avaliadas a aptidão, a eficiência e a capacidade do servidor para
o efetivo exercício do cargo respectivo. ii - Com efeito, o prazo do estágio probatório dos servidores públicos
deve observar a alteração promovida pela emenda Constitucional nº 19/98 no art. 41 da Constituição Federal,
no tocante ao aumento do lapso temporal para a aquisição da estabilidade no serviço público para 3 (três) anos,
visto que, apesar de institutos jurídicos distintos, encontram-se pragmaticamente ligados. iii - destaque para
a redação do artigo 28 da Emenda Constitucional nº 19/98, que vem a confirmar o raciocínio de que a alteração
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766
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Durante o estágio probatório, a Lei nº 8.112/90 define que serão avaliados os
seguintes aspectos da conduta do servidor:
i - Assiduidade;
ii - disciplina;
iii - Capacidade de iniciativa;
iv - Produtividade;
v - responsabilidade.
A avaliação do estágio probatório não possui natureza disciplinar, nem a reprovação
do servidor deve ser entendida como sanção. o servidor que durante o estágio probatório comete alguma infração deve ser submetido a processo disciplinar, podendo, se
for caso, ser demitido, nos termos do art. 132 da Lei nº 8.112/90.
15.9.4 reprovação de servidor não estável no estágio probatório:
exoneração
nesse ponto, convém distinguir demissão de exoneração.
A demissão é sanção disciplinar, a mais grave de todas e, portanto, somente
aplicável nas hipóteses expressamente previstas em lei (Lei nº 8.112/90, art. 132) e após
o devido processo administrativo disciplinar. o termo exoneração — que também está
sempre ligado à perda do cargo — possui em direito Administrativo diferentes significados, nenhum, porém, relacionado à aplicação de sanção.
o termo exoneração indica situações em que o servidor:
- Pede para ser exonerado (exoneração a pedido);
- É livremente exonerado pela autoridade competente, hipótese aplicável apenas
aos cargos em comissão e a que se costuma denominar de exoneração ad nutum
(CF, art. 37, ii);
- toma posse e não entra em exercício no prazo legal — prazo que no plano
federal é de 15 dias (Lei nº 8.112/90, art. 15, §2º);
- não estável no serviço público é reprovado em estágio probatório (Lei nº 8.112/90,
art. 20);
- independentemente de ser estável, é afastado do serviço público com vista
à observância dos limites de gasto com pessoal para cumprimento da Lei de
responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101/00 (CF, art. 169).
do prazo para a aquisição da estabilidade repercutiu no prazo do estágio probatório, senão seria de todo desnecessária a menção aos atuais servidores em estágio probatório; bastaria, então, que se determinasse a aplicação
do prazo de 3 (três) anos aos novos servidores, sem qualquer explicitação, caso não houvesse conexão entre os
institutos da estabilidade e do estágio probatório. (...)” (stJ. ms nº 12.523-dF, 3ª seção. rel. min. Felix Fischer.
Julg. 22.04.2009. DJe, 18 ago. 2009).
no voto que fundamentou a decisão acima, o ministro Felix Fischer alude a duas suspensões de tutela antecipada,
deferidas pelo ministro do stF Gilmar mendes (stAs nº 310 e nº 311), no ano de 2009, em que sua excelência
afirma que “não há como dissociar o prazo do estágio probatório do prazo de estabilidade”, reforçando, assim,
a tese dos três anos (ou 36 meses) para o estágio probatório, após o advento da emenda Constitucional nº 19/98.
no âmbito do tribunal de Contas da união foi aprovada a Portaria tCu nº 80, de 21 de março de 2011, estatuindo
que o estágio probatório tem a duração de 36 meses. o Conselho nacional de Justiça, em resposta à consulta
formulada pelo Conselho superior da Justiça do trabalho, sustentou que o estágio probatório a ser observado
para os servidores do Judiciário foi ampliado de dois para três anos, conforme o art. 41 da Constituição, com
redação dada pela eC nº 19/98 (Pedido de Providências nº 822/2006, Conselheiro douglas Alencar rodrigues.
DJ, 12 set. 2006).
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
no caso da reprovação no estágio, não obstante a exoneração não seja reputada
uma sanção disciplinar, e exatamente por isso o servidor não é demitido, ela afeta a
situação jurídica do servidor e importa na perda do cargo que ocupa. desse modo,
tem-se como pacífico o entendimento de que se a conclusão da comissão responsável
pela avaliação do estágio probatório for pela reprovação, ao servidor deve ser dada
oportunidade para o exercício da ampla defesa e do contraditório.84
15.9.5 reprovação de servidor estável no estágio probatório:
recondução
Caso seja reprovado no estágio probatório, abrem-se duas possibilidades para o
servidor: ele poderá ser exonerado ou reconduzido ao cargo anteriormente ocupado.
A adoção de uma ou de outra solução depende da verificação da situação funcional do
servidor, e não da sua vontade. se o servidor reprovado no estágio probatório não era
estável no serviço público, ele será exonerado.
se o servidor já era estável, presta concurso para novo cargo efetivo, ao entrar
em exercício terá que se submeter a novo estágio probatório e, caso seja reprovado, será
reconduzido ao cargo anteriormente ocupado.
A recondução somente se mostra viável, todavia, se ocorrer no mesmo regime
jurídico, e desde que o servidor já tenha adquirido a estabilidade. não é possível, por
exemplo, que servidor público estável no plano federal preste concurso público, seja
nomeado para cargo na Administração Pública estadual e, caso venha a ser reprovado
no estágio probatório relativo a este último cargo, seja reconduzido ao antigo cargo
federal.85
A estabilidade, nos termos da Constituição Federal, é direito conferido ao servidor
de que ele somente perderá o cargo nas hipóteses expressamente previstas em lei e na
própria Constituição Federal. se o servidor, por sua vontade, muda de cargo e assume
outro em distinta esfera de governo, sujeito a regime jurídico distinto, não há como se
socorrer no texto constitucional para assegurar-lhe o direito de retornar ao cargo anterior.
isto se deve ao fato de que a recondução é direito criado por lei, e não pelo texto constitucional. tomemos o exemplo de servidor público que tenha adquirido estabilidade
no serviço público federal. Caso esse servidor tome posse em cargo efetivo em certo
município cujo regime jurídico não prevê o instituto da recondução, mas simplesmente
84
85
nesse sentido, vide stJ: “recurso ordinário em mandado de segurança. Avaliação em estágio probatório. devida
motivação. inocorrência. Avaliação quadrimestral não observada. i - Acarreta a nulidade do ato de exoneração a não
observância do comando legal que impõe avaliações quadrimestrais mediante relatório circunstanciado. ii - não
atende a exigência de devida motivação imposta aos atos administrativos a indicação de conceitos jurídicos indeterminados, em relação aos quais a Administração limitou-se a conceituar o desempenho de servidor em estágio
probatório como bom, regular ou ruim, sem, todavia, apresentar os elementos que conduziram a esse conceito.
recurso ordinário provido” (rms nº 19.210-rs, 5ª turma. rel. min. Felix Fischer. Julg. 14.3.2005. DJ, 10 abr. 2006).
em sentido contrário, admitindo a possibilidade de recondução entre esferas de governo distintas, veja-se o
Acórdão tCu nº 569/2006, Plenário. segundo as palavras do ministro ubiratan Aguiar, relator do processo julgado
pelo referido acórdão, “a principal finalidade do art. 33, inciso VIII, da Lei nº 8.112/90, ao estabelecer a vacância em
face da posse em outro cargo inacumulável, é coibir a acumulação ilícita de cargo público federal com outro cargo
de qualquer ente da federação. Assim, como o estatuto dos servidores Públicos Federais, em seu art. 29, não restringiu a possibilidade de recondução em razão da natureza do ente federado, não há razão para que se não estenda o
entendimento firmado no MS/STF nº 22.933-0-DF, de forma a contemplar tal possibilidade nos casos de desistência
do estágio probatório pertinente a cargo vinculado a outro ente da federação”.
767
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
768
que, reprovado em estágio probatório, o servidor será exonerado, poder-se-ia aplicar
ao município a lei federal que prevê a recondução? se decorre de lei, e em cada esfera
de governo vigora regime jurídico distinto, não há como fazer aplicar, no exemplo, o
regime federal (Lei nº 8.112/90) para assegurar ao servidor sua recondução ao cargo
na esfera federal. no momento em que o servidor federal se desliga do serviço público
federal e assume o novo cargo municipal, a ele não mais se aplica o regime federal, mas
o regime municipal, que determina que em caso de reprovação em estágio probatório
o servidor será exonerado.
A questão se restringe a definir o alcance da Lei nº 8.112/90, haja vista a recondução em razão da reprovação em estágio probatório tratar-se de direito reconhecido
por esta legislação, e não pelo texto constitucional.86 se a lei federal regula o regime
jurídico dos servidores federais, como poderia ser aplicada a situações verificadas em
outras esferas de governo? Para que a recondução prevista na Lei nº 8.112/90 seja factível, é necessário que servidor tenha adquirido a estabilidade sob este regime, e que
venha a ocupar novo cargo e a se submeter a novo estágio probatório sob este mesmo
regime. Caso contrário, não se mostra possível a aplicação de uma legislação de âmbito
exclusivamente federal para regular situações que afetem outras esferas de governo.
em relação às outras esferas (estaduais e municipais), valem as regras constantes
em seus respectivos regimes jurídicos, os quais podem, inclusive, deixar de prever essa
modalidade de recondução — que, como visto, não se trata de direito Constitucional,
mas de estatura legal.
15.9.6 recondução a pedido
em razão da reprovação em estágio probatório importar em recondução ao
cargo que anteriormente ocupava (desde que estável), muitos servidores estáveis
desejosos de retornar ao antigo cargo pediam para ser reprovados em seus estágios,
o que criava situação esdrúxula no serviço público. Como opção a este “pedido
de reprovação” em estágio probatório, tanto a jurisprudência do stF87 quanto do
86
87
A Constituição Federal prevê a recondução de servidor em situação distinta da que ora se examina. nos termos do
art. 41, §2º, se sentença judicial invalidar demissão de servidor público, ele será reintegrado no cargo, “e o eventual
ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo
ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço”. nesta hipótese, a recondução
do servidor ao cargo anteriormente ocupado independe de se tratar de mesma esfera ou de esferas distintas de
governo. Acerca dessa hipótese de recondução, que não mantém qualquer pertinência com a reprovação no estágio
probatório, algumas considerações adicionais se fazem necessárias. ela somente alcança os servidores estáveis. e se o
servidor que ocupa o cargo efetivo não for estável — ele que foi aprovado em concurso público, que não praticou
qualquer ilícito ou cometeu qualquer infração funcional —, em razão da invalidação da demissão do antigo ocupante do cargo, deverá ser simplesmente exonerado? A Constituição Federal assegura expressamente ao servidor
estável o direito de ser reconduzido ao cargo anteriormente ocupado, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade. A proteção conferida pela Constituição ao servidor estável não pode ser interpretada, todavia, como
excludente do servidor ocupante de cargo efetivo não estável. não é razoável que este seja simplesmente expulso
do serviço público sem que tenha praticado qualquer infração. em nome do princípio da segurança jurídica, alguma
solução deve ser encontrada pela Administração Pública para que este servidor não fique desamparado.
stF: “indeferido mandado de segurança em que se pretendia a recondução do impetrante ao cargo público que
exercera anteriormente no ministério Público Federal, e no qual adquirira estabilidade, sob a alegação de que a
estabilidade no novo cargo público, exercido na Prefeitura municipal do estado de são Paulo, somente seria implementada após a avaliação de desempenho no referido cargo, o que ainda não ocorrera. o tribunal, ressaltando
que o direito de retorno ao cargo anterior ocorre enquanto o servidor estiver submetido a estágio probatório no
novo cargo, cujo prazo é de 2 anos, na forma prevista no art. 20 da Lei 8.112/90, negou o direito do impetrante, já
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
stJ88 se uniformizaram no sentido de permitir que o servidor, enquanto estiver cumprindo estágio probatório, possa pedir, em vez de sua reprovação no estágio, a pura
e simples recondução ao cargo que anteriormente ocupava. Criou-se, desse modo,
sem qualquer previsão legal, porém como medida acertada, a figura da recondução
a pedido.89 os seus requisitos são a estabilidade adquirida no cargo anteriormente
ocupado e que o servidor ainda esteja em cumprimento do estágio probatório.
Cumpre ainda informar que para hipóteses em que servidor público é aprovado
em concurso para novo cargo, não é possível conceder-lhe licença não remunerada para
poder tomar posse em novo cargo. A súmula tCu nº 246 trata da questão e veda expressamente essa possibilidade: “o fato de o servidor licenciar-se, sem vencimentos, do
cargo público ou emprego que exerça em órgão ou entidade da administração direta
ou indireta não o habilita a tomar posse em outro cargo ou emprego público, sem
incidir no exercício cumulativo vedado pelo artigo 37 da Constituição Federal, pois
que o instituto da acumulação de cargos se dirige à titularidade de cargos, empregos
e funções públicas, e não apenas à percepção de vantagens pecuniárias”. Assim, para
fins de caracterização da acumulação ilegal de cargos, pouco importa se o servidor está
percebendo sua remuneração. Para a aplicação da vedação constitucional, interessa
verificar se o cargo é remunerado. Se o for, aplica-se a vedação constitucional.
A possibilidade de o servidor retornar ao cargo anterior, todavia, continua a
existir em razão de a jurisprudência ter admitido a recondução a pedido (desde que o
servidor ainda esteja no cumprimento do estágio probatório no novo cargo).
15.9.7 necessidade de servidor estável aprovado em novo concurso
submeter-se a novo estágio probatório
A discussão acerca da recondução do servidor reprovado em estágio probatório
ao cargo anteriormente ocupado, desde que estável, leva à conclusão inequívoca de
que o servidor investido em novo cargo efetivo terá que se submeter a novo estágio
88
89
que o pedido de recondução fora feito após o transcurso de mais de 3 anos no novo cargo. salientou-se, ainda,
que a ausência de avaliação de desempenho do servidor não afasta a presunção da estabilidade no novo cargo,
pelo decurso do prazo de mais de 3 anos. (CF/88, art. 41: ‘são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. (...) §4º Como condição para
a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa
finalidade.’)” (MS nº 24.543-DF, Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. Julg. 21.8.2003. DJ, 12 set. 2003).
stJ: “mandado de segurança. servidor público estável. estágio probatório em outro cargo público. recondução
ao cargo anteriormente ocupado. Possibilidade. ordem parcialmente concedida. 1. o servidor público estável
que desiste do estágio probatório a que foi submetido em razão de ingresso em novo cargo público tem direito
a ser reconduzido ao cargo anteriormente ocupado” (ms nº 8.339-dF, 3ª seção. rel. min. Hamilton Carvalhido.
Julg. 11.9.2002. DJ, 16 dez. 2002).
nesse sentido, stF: “estágio Probatório e recondução se o servidor federal estável, submetido a estágio probatório em novo cargo público, desiste de exercer a nova função, tem ele o direito a ser reconduzido ao cargo
ocupado anteriormente no serviço público. Com esse entendimento, o tribunal deferiu mandado de segurança
para assegurar ao impetrante, servidor sujeito a estágio probatório no cargo de escrivão da polícia federal, o
retorno ao cargo de policial rodoviário federal, observado, se for o caso, o disposto no art. 29, parágrafo único
da Lei 8.112/90 (‘encontrando-se provido o cargo de origem, o servidor será aproveitado em outro, observado o
disposto no art. 30.’). Considerou-se que o art. 20, §2º, da Lei 8.112/90 (‘o servidor não aprovado no estágio probatório será exonerado ou, se estável, reconduzido ao cargo anteriormente ocupado...’) autoriza a recondução
do servidor estável na hipótese de desistência voluntária deste em continuar o estágio probatório, reconhecendo
ele próprio a sua inadaptação no novo cargo. Precedente citado: ms 22.933-dF (dJu de 13.11.98)” (ms nº 23.577-dF,
Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 15.5.2002. DJ, 14 jun. 2002).
769
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
770
probatório. e isso ocorrerá sempre que ele for investido em novo cargo em razão da
aprovação em concurso público.
ou seja, ainda que já tenha adquirido a estabilidade, se o servidor se submete a
novo concurso público, é aprovado, nomeado e toma posse no novo cargo, ao entrar
em exercício terá que se submeter a novo estágio probatório. A aprovação em estágio
probatório em determinado cargo não o aproveita para outros cargos, ainda que se trate
de mudança de cargos ocorrida na mesma unidade administrativa.
de igual modo, se a mudança de cargos ocorre no momento em que o servidor
está cumprindo o estágio probatório, o prazo já cumprido no cargo anterior também
não é aproveitado para o novo estágio.
toda a discussão acerca da recondução e da necessidade de o servidor já estável ter
que se submeter a novo estágio sempre que assume novo cargo poderia pôr em dúvida
a tese de que a estabilidade é no serviço público, e não no cargo — tese amplamente
aceita e repetida por todos os tribunais. um dos precursores dessa tese foi Hely Lopes
meirelles, que conceituava estabilidade como “a garantia constitucional de permanência
no serviço público outorgada ao servidor que, nomeado por concurso em cargo efetivo,
tenha transposto o estágio probatório de dois anos”.90 o principal argumento utilizado
pelo autor para sustentar a defesa de que a estabilidade ocorre no serviço público, e
não no cargo, é feita em razão da possibilidade de o servidor estável ser mantido no
serviço público, não obstante seja “extinto o cargo ou declarada sua desnecessidade”.
estas hipóteses estão previstas na própria Constituição Federal, que determina (art. 41,
§3º) que “o servidor estável ficará em disponibilidade remunerada, com remuneração
proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo”.
Caso a extinção do cargo ocorra durante o estágio probatório, aplica-se a súmula stF
nº 22, que dispõe no sentido de que “o estágio probatório não protege o funcionário
contra a extinção do cargo”.
situação de difícil elucidação ocorre na seguinte hipótese: caso o servidor tenha
adquirido estabilidade em determinado cargo (que podemos denominar de cargo A),
tome posse no cargo B e, antes de concluir o estágio neste segundo cargo, seja novamente
investido em novo cargo (cargo C) no qual vem a ser reprovado no estágio probatório,
ele deverá ser reconduzido ao cargo A ou ao cargo B?
Parece-nos que a solução mais correta seja a sua recondução ao cargo B, e como
não havia sido concluída sua avaliação no estágio probatório neste cargo, o servidor terá
que completá-la e, se vier a ser reprovado, será uma vez mais reconduzido ao cargo A.
15.9.8 estágio experimental
Ainda em relação ao estágio probatório, deve ser feita a sua distinção com o
denominado estágio experimental. este constitui etapa de alguns concursos públicos
e é realizado antes de o servidor tomar posse; aquele é realizado após o servidor entrar
em exercício no cargo.
Há editais que preveem a divisão do concurso em duas etapas. A primeira corresponde à aplicação das provas; e a segunda, à aprovação do candidato em curso de
90
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 386.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
formação. Este curso de formação, desde que o edital o defina como etapa do concurso,
não se confunde com o estágio probatório. A eventual reprovação do candidato no curso
de formação (muitas vezes denominado estágio experimental), não deve importar em
exoneração, até por que o candidato não foi sequer empossado. na verdade, a reprovação do candidato no estágio experimental implica reprovação no próprio concurso.
A decisão de reprovar o candidato no curso de formação deve ser motivada e
permitir a interposição de recurso — exigências aplicáveis a qualquer fase do concurso
público —, mas não depende de contraditório.91
15.9.9 Avaliação especial de desempenho
em razão do que foi até o momento exposto, são apresentados quatro requisitos
constitucionais para a aquisição da estabilidade (tratar-se de cargo efetivo; o efetivo
exercício de três anos no cargo; aprovação em estágio probatório; e aprovação em avaliação especial de desempenho). em relação a este último requisito, previsto no art. 41,
§1º, iii, e §4º, que está relacionado à necessidade de o servidor ser aprovado em avaliação
especial de desempenho, dispõe o texto constitucional que se trata de condição obrigatória
para a aquisição da estabilidade.
A redação do mencionado dispositivo constitucional (art. 41, §4º) foi inserida pela
EC nº 19/98 para impedir que o decurso do tempo fosse suficiente para conferir ao servidor a estabilidade. na prática, muitos órgãos públicos não realizavam (nem realizam)
qualquer avaliação dos servidores, nem a do estágio probatório, nem esta avaliação
especial de desempenho necessária à aquisição da estabilidade. o entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência — antes do advento da emenda — era no sentido
de que se o prazo para a realização da avaliação decorresse em brancas nuvens, sem
que a Administração Pública tomasse qualquer providência para reprovar ou aprovar
o servidor, não seria justo penalizá-lo, negando-lhe o direito de adquirir a estabilidade.
Vê-se que a questão — posta nestes termos — é simplificada em demasia, sendo
contrapostos o interesse do servidor (de adquirir estabilidade) ao da Administração
Pública (de avaliar e, eventualmente, reprovar o servidor).
Essa simplificação — verificada com tanta frequência no serviço público — desconsidera o mais importante dos interesses em jogo, o da coletividade, o interesse do
cidadão que paga pela existência do estado e que é o destinatário dos serviços estatais.
manter no serviço público servidor em razão da incapacidade, do lapso, da falha ou
da omissão da Administração Pública de submetê-lo a uma efetiva avaliação, em que
além da sua capacidade técnica sejam também verificados os necessários predicativos
éticos, parece-nos solução totalmente equivocada.
91
nesse sentido, vide stJ: “recurso ordinário em mandado de segurança. Administrativo. Concurso público. estágio experimental. estágio probatório. Afastamento sem vencimento. impossibilidade. i. o estágio experimental
é etapa do concurso público para provimento do cargo e precede a investidura no cargo público, não se confundindo, por isso, com o estágio probatório, período em que o servidor público em exercício é avaliado pela
Administração, observando-se requisitos estabelecidos em lei. ii. impossibilidade de ser deferido afastamento
sem vencimentos, pleiteado com base no art. 10, §1º, do decreto estadual nº 2.479/79, estando o servidor em estágio probatório, tendo em vista que o autor tomou posse em cargo federal, e está cumprindo o estágio probatório,
situação que não se confunde com a prevista na legislação supra. recurso desprovido” (rms nº 16.183-rJ,
5ª turma. rel. min. Felix Fischer. Julg. 2.6.2005. DJ, 1º jul. 2005).
771
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
772
Para corrigir essa anomalia — que supervaloriza os interesses individuais dos
servidores e desconsiderava por completo o interesse da sociedade — foi inserida
pela eC nº 19/98 a regra contida no mencionado art. 41, §4º, do texto da Constituição
Federal, exatamente para impedir que a omissão da Administração Pública legitime a
manutenção no serviço público de pessoas desqualificadas ou não avaliadas.
não obstante a clareza da redação do texto constitucional — e da intenção da
eC nº 19/98 —, ainda há autores defensores da tese de que se a Administração Pública
deixar expirar in albis o prazo para avaliação, o servidor adquire estabilidade.92 não nos
parece ser esta, máxima vênia, a solução mais adequada ao texto constitucional vigente.
É direito do servidor exigir que a Administração Pública realize a avaliação prevista na Constituição Federal, sem a qual ele não é estável. não é direito do servidor,
todavia, obter estabilidade por decurso de prazo. enquanto esta avaliação especial não
for realizada, e o servidor não for formalmente aprovado, ele não é estável. A mora
da Administração Pública não deve resultar na outorga da estabilidade ao servidor,
penalizando a população com a estabilização de servidores públicos sem qualquer
avaliação. É de se reconhecer ao servidor não avaliado a possibilidade de se socorrer
das vias judiciais para exigir da Administração Pública a realização da avaliação, e não
aquisição da estabilidade.93
15.9.10 estabilidade decorrente do Ato das disposições Constitucionais
transitórias
o art. 19 do AdCt prevê hipótese única em nosso ordenamento, em que a estabilidade independe da efetividade do cargo. vale dizer, a Constituição Federal, para regular
situações transitórias, conferiu aos “servidores públicos civis da união, dos estados,
do distrito Federal e dos municípios, da administração pública direta, autárquica e das
fundações públicas, em exercício na data da promulgação desta Constituição, há pelo
menos cinco anos continuados”, estabilidade, ainda que não tenham sido submetidos
a concurso público.
trata-se de estabilidade decorrente de expressa disposição constitucional, e que
alcança tão somente situações pretéritas, o que nos dispensa de tecer maiores considerações sobre o tema.
15.9.11 efeitos da estabilidade
Nos itens anteriores, verificamos os requisitos necessários à aquisição da estabilidade pelo servidor público. Cumpre-nos, agora, examinar o resultado prático do
reconhecimento desse direito. em que importa para o servidor adquirir a estabilidade?
92
93
nesse sentido, vide CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 532.
stJ: “ms. servidor público. estágio probatório. A obrigatoriedade da avaliação periódica no estágio probatório
verifica-se não apenas para fins de aquisição da estabilidade, na medida em que constitui direito subjetivo
do servidor exigir que a Administração proceda às avaliações de conformidade com a lei. Conquanto a
periodicidade da avaliação seja definida discricionariamente pela Administração, uma vez determinada, deve
ser fielmente cumprida sob pena de nulidade do ato de exoneração resultante. A avaliação, mais do que um dever
da Administração, é um direito do servidor. A periodicidade, in casu, resulta da necessidade de conferir-se maior
lisura e legitimidade às avaliações. Com essas considerações, a turma conheceu e proveu o recurso para anular o
ato de exoneração e determinar seja o recorrente reintegrado ao cargo anteriormente ocupado, restabelecendo-se
o statu quo ante” (rms nº 14.064-sP, 5ª turma. rel. min. Laurita vaz. Julg. 17.8.2006. DJ, 25 set. 2006).
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
Buscaremos, em seguida, responder a essa questão.
A Constituição Federal, em seu art. 41, §1º, indica três situações em que o servidor
estável perderá o cargo. A essas situações deve ser acrescentada outra, prevista no art. 169,
§4º, do texto constitucional.
Afirmar que o servidor é estável importa, portanto, em reconhecer-lhe o direito
de somente perder o cargo nas seguintes hipóteses:
- em virtude de sentença judicial transitada em julgado (CF, art. 41, §1º, i);
- mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa
(CF, art. 41, §1º, ii);
- mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de
lei complementar, assegurada ampla defesa (CF, art. 41, §1º, iii); e
- Para assegurar que as despesas com pessoal ativo e inativo da união, dos estados, do distrito Federal e dos municípios não excedam os limites estabelecidos
em lei complementar (CF, art. 169, caput, e §4º).
A primeira situação em que servidor estável pode perder o cargo está relacionada
ao trânsito em julgado de sentença judicial.
são duas as sentenças judiciais suscetíveis de provocar a perda do cargo por parte
do servidor estável. A primeira delas é a sentença penal. nos termos do art. 92, i, do Código Penal, é efeito da condenação a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) Quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a
um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para
com a Administração Pública;
b) Quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro)
anos nos demais casos.
A perda do cargo não é decorrência direta da condenação que resulte na aplicação
das penas acima indicadas. ou seja, não basta que o juiz sentencie o servidor público
às penas restritivas de liberdade indicadas no mencionado art. 92, i, do Código Penal.
É necessário que a sentença condenatória expressamente determine a aplicação dessa
pena específica correspondente à perda do cargo. Esta, todavia, somente pode ser
aplicada pelo juiz se verificadas as condições indicadas no art. 92, I, do Código Penal.
A outra sentença cujo trânsito em julgado igualmente pode importar em perda
do cargo do servidor estável é a sentença decorrente da prática de ato de improbidade administrativa. nos termos do art. 12 da Lei nº 8.429, de 1992, em razão da gravidade do ato
e de outras circunstâncias a serem consideradas, o juiz ao condenar o agente público
pela prática de ato de improbidade administrativa, poderá decretar-lhe a perda do
cargo, ainda que se trate de servidor estável.94
94
nesse sentido, vide stJ: “Processual Civil. recurso especial. Admissibilidade. súmula nº 13/stJ. Administrativo.
Lei de improbidade Administrativa. Princípio da proporcionalidade. discricionariedade do julgador na aplicação
das penalidades. 1. “A divergência entre julgados do mesmo tribunal não enseja recurso especial” (súmula nº 13/
stJ). 2. In casu, a controvérsia a ser dirimida cinge-se em definir se as penas acessórias do art. 12, da Lei nº 8.429/92,
infligidas aos ex-vereadores, foram aplicadas de forma razoável e proporcional ao ato ímprobo praticado. 3.
As sanções do art. 12, da Lei nº 8.429/92, não são necessariamente cumulativas, cabendo ao magistrado a sua
dosimetria; aliás, como resta claro do parágrafo único do mesmo dispositivo. 4. no campo sancionatório, a
interpretação deve conduzir à dosimetria relacionada à exemplaridade e à correlação da sanção, critérios que
compõem a razoabilidade da punição, sempre prestigiada pela jurisprudência do e. stJ. (Precedentes: resp
291.747, rel. min. Humberto Gomes de Barros, dJ de 18/03/2002 e resp 213.994/mG, rel. min. Garcia vieira, dJ
de 27.09.1999)” (resp nº 664.856-Pr, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 6.4.2006. DJ, 02 maio 2006).
773
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
774
A segunda hipótese em que o servidor estável poderá perder o cargo está relacionada
à prática de infração funcional grave e que, em decorrência da instauração de processo administrativo disciplinar em que seja assegurada ampla defesa, poderá ser aplicada a pena de
demissão. na esfera federal, as infrações puníveis com pena de demissão estão previstas
no art. 132 da Lei nº 8.112/90.
A terceira situação em que o estável poderá perder o cargo — prevista no art. 41,
§3º, da Constituição Federal — está relacionada à realização de procedimento de avaliação
periódica de desempenho e constitui mais uma inovação da eC nº 19/98. Não se trata de
dispositivo autoaplicável. em razão de a Constituição Federal determinar que a avaliação
deve ser feita na forma de lei complementar, a qual não foi, até a presente data, aprovada, e
muito provavelmente jamais o será, não podem os órgãos públicos demitir, ou exonerar,
servidores estáveis em razão de falhas em seu desempenho. se a falha no desempenho
do servidor estiver descrita em lei como infração funcional grave, o servidor estável
poderá perder o cargo em razão do cometimento da infração e em decorrência de processo administrativo disciplinar, e não do seu baixo desempenho.
no capítulo seguinte será examinado o regime jurídico disciplinar dos servidores
públicos.
A quarta hipótese em que o servidor estável pode perder o cargo está relacionada
à necessária observância dos limites de gasto com pessoal definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/00),95 conforme dispõe o art. 169, caput
e §4º, da Constituição Federal.
nos termos da Constituição Federal, se os limites previstos na mencionada lei
complementar não forem observados, devem ser adotadas, sucessivamente, as seguintes
providências (art. 169, §§3º e 4º):
- Redução em pelo menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções
de confiança (art. 169, §3º, I);
- exoneração dos servidores não estáveis (art. 169, §3º, ii); e
- exoneração dos servidores estáveis (art. 169, §4º).
dispõe o §4º do mencionado art. 169 da Constituição Federal que se as medidas
indicadas no §3º do mesmo artigo não forem suficientes para “assegurar o cumprimento
da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá
perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos poderes especifique
a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal”.
Como a perda do cargo — tanto em relação aos servidores estáveis quanto aos
não estáveis — não está relacionada à prática de qualquer infração funcional, mas
simplesmente à necessidade de cumprimento dos limites da responsabilidade fiscal,
os servidores serão exonerados, e não demitidos.
não obstante ambos (estáveis e não estáveis) poderem ser exonerados, a Constituição Federal estabelece tratamento diferenciado entre eles. A discriminação ocorre,
em primeiro lugar, porque os estáveis somente serão alcançados por essa medida de
contenção de despesas se a redução em pelo menos 20% das despesas com cargos em
comissão e funções de confiança e a exoneração dos não estáveis não for suficiente
para o cumprimento dos limites previstos na Lei de responsabilidade Fiscal. ou seja,
95
Nos termos do art. 19 da LRF, a União não poderá gastar mais de 50% da sua receita corrente com pessoal, limite
que no caso dos Estados, Municípios e Distrito Federal não pode ser superior a 60%.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
enquanto houver um único servidor não estável na entidade política que descumpre os
limites de gasto com pessoal, os servidores estáveis não podem ser exonerados.
Ademais, caso a exoneração decorrente da aplicação do art. 169, §4º, alcance os
estáveis, eles terão direito à indenização prevista no §5º do mesmo artigo, “correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço”, direito que não foi estendido aos
servidores não estáveis exonerados pelo mesmo fundamento.
A Constituição Federal determina ainda que os cargos ocupados pelos servidores
estáveis e não estáveis, bem como os cargos em comissão e as funções de confiança,
objeto da redução de que trata o art. 169, serão considerados extintos, sendo “vedada a
criação de cargo, emprego ou função com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo
de quatro anos” (CF, art. 169, §5º).
Para disciplinar a exoneração dos servidores estáveis, independentemente de se
tratar de servidor federal, estadual ou municipal, a Constituição Federal (art. 169, §6º)
prevê a aprovação de lei federal. Para dar cumprimento a essa disposição, foi aprovada
a Lei nº 9.801, de 1999, que prevê os critérios impessoais para a definição dos servidores
a serem afetados pela medida.
15.9.12 servidor não estável ocupante de cargo efetivo
A conclusão de que a estabilidade protege o servidor contra a perda imotivada
do cargo não deve levar, a contrário senso, à conclusão de que o não estável possa ser
livremente exonerado ou demitido do cargo. Ser estável significa — como visto — que
o servidor somente pode perder o cargo nas hipóteses previstas na Constituição; não
ser estável não significa, todavia, que o servidor possa perder imotivadamente o cargo
que ocupa.
A possibilidade de livre exoneração é característica exclusiva dos cargos em
comissão. É da natureza destes cargos que seus ocupantes possam ser livremente nomeados e livremente afastados (exonerados). se se trata de cargo efetivo, não obstante
o servidor não tenha adquirido a estabilidade, ele não poderá ser livremente afastado
como se tratasse de cargo em comissão. esse, aliás, é o conteúdo da súmula nº 21 do
stF, que dispõe que “funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem
demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade”.
Na prática, quando a jurisprudência afirma a tese de que os servidores não estáveis que ocupam cargos efetivos, que ainda estejam em estágio probatório, não podem
ser demitidos ou exonerados sem a instauração de processo em que se lhes assegure
ampla defesa e contraditório, e com a necessária motivação, poder-se-ia indagar que os
efeitos decorrentes da efetividade do cargo bastariam para proteger o servidor contra
afastamentos imotivados, e que isto tornaria a estabilidade desnecessária.
de fato, poucos efeitos práticos irão distinguir o servidor estável daquele que,
ocupando cargo efetivo, ainda não tenha adquirido a estabilidade, haja vista nenhum
dos dois poder ser demitido ou exonerado sem o devido processo legal. o servidor em
estágio probatório, todavia, ainda se encontra em situação precária e somente poderá
manter-se no cargo se for aprovado no estágio, devendo ainda ter que superar a avaliação
especial de desempenho de que trata o art. 41, §4º, da Constituição Federal, prevista
como condição obrigatória para a aquisição da estabilidade. ou seja, a permanência do
servidor estável no serviço público independe de qualquer outra formalidade ou da
775
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
776
superação de qualquer outro procedimento, enquanto o servidor em estágio probatório
se encontra em situação precária, dependendo a sua permanência no serviço público
da aprovação no próprio estágio probatório e na avaliação de desempenho referida no
art. 41, §4º, da Constituição.96
Ademais, o servidor estável e o que se encontra em estágio probatório são tratados de forma distinta pela Constituição Federal no que toca à aplicação das medidas
necessárias ao cumprimento da Lei de responsabilidade Fiscal, conforme previsto na
Constituição Federal, art. 169, §3º e §4º. ou seja, para a observância dos limites com
gasto de pessoal, antes de serem exonerados os servidores estáveis deverão ser exonerados os não estáveis.
Outra distinção se verifica em relação à extinção do cargo: se estável o servidor
ocupante do cargo extinto por lei (CF, art. 41, §3º), ele ficará em disponibilidade remunerada, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo; se não for estável, aplica-se a súmula stF nº 22, que dispõe
no sentido de que o estágio probatório não protege o funcionário contra a extinção do
cargo. ou seja, se lei declarar extintos cargos públicos, o servidor não estável perde o
cargo e é afastado do serviço público, enquanto o estável é posto em disponibilidade
remunerada — proporcional ao tempo de serviço — até o seu aproveitamento em
outro cargo.
A Lei nº 8.112/90 prevê outras particularidades que igualmente diferenciam os
servidores estáveis dos não estáveis, como a possibilidade de obterem determinadas
licenças ou afastamentos. esses aspectos serão examinados no capítulo seguinte.
15.9.13 estabilidade e vitaliciedade
são dois os aspectos que diferenciam os cargos estáveis dos cargos vitalícios: a
forma de investidura e, especialmente, as hipóteses em que o titular poderá perder o
cargo.
em relação à forma de investidura — à exceção da hipótese prevista no art. 19
do AdCt, que conferiu estabilidade aos servidores não ocupantes de cargos efetivos
—, somente pode ser reconhecida a estabilidade aos servidores aprovados em concurso
público. A efetividade, conforme visto, é requisito necessário à aquisição da estabilidade,
e o traço característico dos cargos efetivos é sua investidura decorrer necessariamente
de aprovação em concurso público.
no caso dos cargos vitalícios, relacionados aos magistrados e aos membros do
ministério Público e dos tribunais de Contas, há hipóteses previstas na Constituição
Federal (de ministros do stF ou do tCu, e de advogados admitidos no quinto constitucional para os tribunais judiciários) em que a investidura no cargo independe de
prévia aprovação em concurso público.
A necessidade de prévia aprovação em concurso público no caso dos cargos
vitalícios é relevante porque define o momento em que o titular do cargo irá adquirir
96
Quando afirmamos que a situação do servidor estável não é precária, não se pode entender que ela seja imutável
ou que esteja definitivamente consolidada. Caso pratique infração disciplinar grave (Lei nº 8.112/90), o servidor
responderá a processo disciplinar e poderá ser demitido. A permanência do servidor estável no serviço público,
e nesse ponto ela se diferencia do que ainda está em estágio probatório, independe da superação de etapas ou
procedimentos futuros.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
a vitaliciedade. Isto se verifica porque o estágio probatório é exigido pela Constituição
somente se a investidura do agente vitalício requerer aprovação em concurso público.
desse modo, se para ocupar o cargo vitalício for exigida a prévia aprovação em concurso
público, a vitaliciedade dar-se-á após a aprovação no estágio probatório de dois anos
(CF, artigos 95, i, e 128, §5º, i). exemplo: o juiz substituto somente adquire vitaliciedade
após a aprovação no estágio probatório. Ao contrário, se a investidura no cargo vitalício
não requerer aprovação em concurso público, a vitaliciedade ocorrerá com a posse no
cargo.97 exemplo: ministro do stF, que é vitalício no momento em que é empossado.
os requisitos para a aquisição da vitaliciedade igualmente a distinguem da estabilidade. esta última, a estabilidade, é adquirida se o servidor, além de ser aprovado
no estágio probatório, exercer o cargo por três anos (CF, art. 41, caput) e for aprovado
na avaliação especial de desempenho (CF, art. 41, §4º). ou seja, a estabilidade somente
será concedida após o terceiro ano de exercício do cargo.
no caso dos cargos vitalícios em que a investidura pressupõe aprovação em
concurso público, basta a aprovação no estágio probatório — de dois anos — para a
aquisição da vitaliciedade.
em conclusão, a estabilidade somente pode ser adquirida após três anos de exercício do cargo; a vitaliciedade pode ser adquirida com a posse (nas situações em que
não é exigido concurso público) ou após a simples aprovação no estágio probatório de
dois anos (nos demais casos, em que o concurso público é obrigatório).
A principal distinção entre a vitaliciedade e a estabilidade reside, todavia, não
na forma de investidura no cargo, mas na indicação das situações que podem ensejar
a perda do cargo.
no caso do servidor estável, são quatro as hipóteses que podem provocar a perda
do cargo (em virtude de sentença judicial transitada em julgado; mediante processo
administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; mediante procedimento de
avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla
defesa; e para assegurar que as despesas com pessoal ativo e inativo da união, dos
estados, do distrito Federal e dos municípios não excedam os limites estabelecidos
em lei complementar).
o agente público vitalício, ao contrário, somente pode perder o cargo em uma
única situação: em decorrência de sentença judicial transitada em julgado (CF, artigos
95, i, e 128, §5º, i, “a”). ou seja, em nosso modelo constitucional, a utilização do termo
vitalício não indica que o titular ocupe o cargo pelo resto de sua vida, mesmo por que
a todos os cargos vitalícios é aplicável a aposentadoria compulsória (CF, art. 40, §1º,
II). Afirmar que se trata de cargo vitalício importa apenas em que as situações que
podem importar em perda do cargo são mais restritas do que aquelas aplicáveis aos
servidores estáveis.
15.10 Aposentadoria
A aposentadoria corresponde ao direito do trabalhador, que preencha os requisitos legais, de perceber proventos na inatividade.
97
o cargo de auditor do tribunal de Contas da união (que tem como principal atribuição substituir os ministros
da Corte – CF, art. 73, §4º) constitui exceção única à sistemática de aquisição da vitaliciedade. A investidura no
cargo pressupõe prévia aprovação em concurso público, mas a vitaliciedade dá-se com a posse.
777
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
778
A Constituição Federal prevê dois regimes previdenciários, um geral e outro
especial.
o primeiro compreende o regime geral da previdência social, disciplinado pelos
arts. 201 e 202 do texto constitucional e que alcança todos os trabalhadores do setor
privado, além dos agentes públicos que não ocupem cargos efetivos.98
Ao regime previdenciário especial, de que trata o art. 40 da Constituição Federal,
somente têm direito os “servidores titulares de cargos efetivos da união, dos estados,
do distrito Federal e dos municípios, incluídas suas autarquias e fundações”. trata-se
de regime de previdência de caráter contributivo e solidário, custeado mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas,
conforme redação definida pela EC nº 41/03.
diz-se especial este regime previdenciário, em primeiro lugar, porque somente
alcança uma categoria profissional: os servidores públicos ocupantes de cargos efetivos.
É especial porque se sujeita a requisitos e condições distintos daqueles previstos para os
trabalhadores privados, não obstante a emenda Constitucional nº 20/98 tenha buscado
maior aproximação com o regime geral de previdência.99
os limites aplicáveis aos proventos de aposentadoria pagos pelo regime previdenciário dos servidores públicos são outros. de acordo com o que dispõe o art. 40,
§2º, da Constituição, “os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua
concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo
em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão”, devendo, em qualquer caso, ser também observado o teto de remuneração dos
servidores públicos previsto no art. 37, Xi, da Constituição, correspondente ao subsídio
dos ministros do stF.
ou seja, enquanto o regime geral da previdência social não permite pagamento de
aposentadoria em valor superior a r$3.916,20 (teto da previdência social para o ano de
2012), o regime previdenciário especial não permite que os proventos de aposentadoria
dos servidores públicos sejam superiores:
1. Aos vencimentos percebidos pelo servidor na atividade (CF, art. 40, §2º); ou
2. Ao teto remuneratório previsto do serviço público (CF, art. 37, Xi).
98
99
nos termos do §13 do art. 41 da Constituição Federal, “ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em
comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego
público, aplica-se o regime geral de previdência social”.
nos termos do §14 do art. 40 da Constituição Federal, incluído pela eC nº 20/98, “a união, os estados, o distrito
Federal e os municípios, desde que instituam regime de previdência complementar para os seus respectivos
servidores titulares de cargo efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de
previdência social de que trata o art. 201”. A instituição desse regime de previdência complementar será feita,
segundo a emenda Constitucional n.º 41/03, “por lei de iniciativa do respectivo Poder executivo, observado o
disposto no art. 202 e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência
complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente
na modalidade de contribuição definida”. Esse regime não alcança os servidores que tiverem ingressado no
serviço público antes do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar, salvo mediante “sua prévia e expressa opção”.
o regime de previdência complementar de que trata o §14 do art. 40 da CF foi instituído pela Lei nº 12.618, de 30 de
abril de 2012. A norma regulamenta o limite máximo para a concessão limite máximo para a concessão de aposentadorias e pensões pelo regime de previdência de que trata o art. 40 da Constituição Federal e autoriza a criação de
três entidades fechadas de previdência complementar, denominadas: Fundação de Previdência Complementar do
servidor Público Federal do Poder executivo (Funpresp-exe); Fundação de Previdência Complementar do servidor Público Federal do Poder Legislativo (Funpresp-Leg); e Fundação de Previdência Complementar do servidor
Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud).
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
A especialidade do regime previdenciário dos servidores públicos reside igualmente
nos requisitos necessários à aposentação (CF, art. 40, §1º), que se diferenciam daqueles previstos para a aquisição do direito pelo regime geral da previdência social (CF, art. 201, §7º).
são previstas, dentro do regime previdenciário dos servidores públicos, três
diferentes modalidades de aposentadoria:
- Por invalidez permanente;
- Compulsória, aos 70 anos de idade;
- voluntária.
na aposentadoria por invalidez permanente, os proventos serão proporcionais ao
tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, na forma da lei. no âmbito federal, a
Lei nº 8.112/90, em seu art. 186, §1º, indica as moléstias que legitimam a aposentadoria
por invalidez com proventos integrais.100
A aposentadoria compulsória, aos 70 anos de idade, é igualmente proporcional. deve
ser considerado, todavia, que se ao tempo da “expulsória” o servidor possui tempo
de contribuição necessário para a obtenção da aposentadoria voluntária (35 anos, se
homem, e 30 anos, se mulher), a aplicação da regra da proporcionalidade resulta em
que os proventos serão integrais. se, todavia, ao completar 70 anos, o servidor (homem)
possuir 30 anos de contribuição, seus proventos serão calculados proporcionalmente. no
exemplo, tomam-se seus vencimentos, e sobre esta base de cálculo incide a proporção
de 30/35, obtendo-se o valor dos proventos de aposentadoria a serem pagos.
o servidor tem ainda direito à aposentadoria voluntária por tempo de contribuição
ou por idade.101
em qualquer uma das duas hipóteses de aposentadoria voluntária, o servidor
ou servidora deve ter “cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no
serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria”. deve
ser observado que na aposentadoria voluntária por tempo de contribuição, os proventos são
pagos integralmente, ao passo que na aposentadoria voluntária por idade, proporcionalmente.
o servidor (homem) para ter direito à aposentadoria voluntária por tempo de contribuição necessita comprovar o cumprimento cumulativo das seguintes exigências:
- tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público;
- Cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria;
- 60 anos de idade; e
- 35 anos de contribuição.
no caso de se tratar de servidora (mulher), são requisitos para a aposentadoria
voluntária por tempo de contribuição:
- tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público;
- Cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria;
100
101
A Lei nº 8.112/90, em seu art. 186, §1º, considera doenças graves, contagiosas ou incuráveis, para fins de aposentadoria por invalidez: “tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira posterior
ao ingresso no serviço público, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, paralisia irreversível e incapacitante, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estados avançados do mal de Paget (osteíte deformante),
Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – AIDS, e outras que a lei indicar, com base na medicina especializada”.
No julgamento do RE nº 400.344-CE (1ª Turma. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 15.2.2005. DJ, 09 set. 2005), o stF decidiu
que “a proporcionalidade da aposentadoria prevista na alínea ‘c’ do inciso iii do art. 40 da carta de outubro, com a
redação anterior à eC 20/98, deve incidir sobre o total da remuneração do servidor, e não apenas sobre o vencimento
básico do cargo. este é o sentido da expressão ‘proventos proporcionais’ (no plural) lançada no dispositivo”.
779
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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- 55 anos de idade; e
- 30 anos de contribuição.
Para a aposentadoria voluntária por idade, o servidor (homem) necessita preencher
os seguintes requisitos:
- tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público;
- Cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria; e
- 65 anos de idade.
tratando-se de aposentadoria voluntária por idade, a servidora (mulher) necessita
preencher os seguintes requisitos:
- tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público;
- Cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria; e
- 60 anos de idade.
dentro do regime especial dos servidores públicos existem categorias que observam requisitos e critérios diferenciados para a obtenção de aposentadoria. estas correspondem às denominadas aposentadorias especiais. ou seja, o regime previdenciário dos
servidores públicos é especial em relação aos trabalhadores do setor privado, e dentro
desse regime previdenciário especial, existem aposentadorias especiais. estas aposentadorias são especiais porque seguem requisitos ou critérios diferenciados daqueles
acima indicados e aplicáveis aos servidores públicos em geral.
o próprio texto da Constituição (art. 40, §5º) assegura ao “professor que comprove
exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil
e no ensino fundamental e médio” aposentadoria especial em razão de que os requisitos
de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação àqueles
exigidos para a aposentadoria voluntária por tempo de contribuição.102
um professor (homem) do ensino infantil ou fundamental para ter direito à aposentadoria especial voluntária por tempo de contribuição necessita comprovar o cumprimento
cumulativo das seguintes exigências: tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício
no serviço público; cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria; 55
anos de idade; e 30 anos de contribuição. Caso se trate de professora do ensino infantil
ou fundamental, além do tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço
público e de cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, ela deverá ter
50 anos de idade e 25 anos de contribuição.
Além da aposentadoria especial dos professores do ensino infantil, fundamental e médio, a Constituição Federal, em seu art. 40, §4º, com a redação dada pela eC
nº 47/05, prevê a possibilidade de que leis complementares possam assegurar aos servidores: 1. portadores de deficiência; 2. que exerçam atividades de risco; e 3. cujas atividades
sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade
física aposentadorias especiais.
nesses termos, a Constituição admite a aposentadoria especial:
1. dos professores do ensino infantil, fundamental e médio, cabendo ao próprio
texto constitucional a indicação dos aspectos ou requisitos que a tornam especial;
2. Dos servidores portadores de deficiência, dos que exerçam atividades de risco
e daqueles cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, conforme requisitos previstos em lei
complementar.
102
enunciado da súmula stF nº 726: “Para efeito de aposentadoria especial de professores, não se computa o tempo
de serviço prestado fora de sala de aula”.
CAPítuLo 15
AGentes PúBLiCos
nesta segunda hipótese, cabe à lei complementar não apenas indicar as categorias
de servidores públicos que se enquadram nas situações descritas pela Constituição Federal (tipos de deficiência física, de atividades de risco etc.), mas igualmente os requisitos
ou condições especiais para a aquisição do direito à aposentadoria. Por exemplo, cabe
a referida lei complementar indicar em que condições o servidor público operador de
raios X pode obter aposentadoria.103
Antes do advento da eC nº 20/98, diversas outras categorias, como os magistrados
e os membros do ministério Público, tinham direito a aposentadorias especiais. diante
do novo modelo jurídico implantado pela referida emenda constitucional, desapareceram essas aposentadorias privilegiadas e é expressamente vedada a possibilidade
de criação de outras aposentadorias especiais para servidores públicos, ressalvadas
aquelas acima indicadas.
A Constituição Federal estabelece, ainda, uma série de regras especiais acerca da
aposentadoria dos servidores públicos.
É vedada, por exemplo, a percepção de mais de uma aposentadoria à conta do regime
de previdência dos servidores públicos, ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos
acumuláveis na forma da Constituição (art. 37, Xvi).104
Ademais, é expressamente vedada a denominada contagem fictícia de tempo de
contribuição (art. 40, §10). Antes do advento dessa vedação instituída pela eC nº 20/98,
eram comuns situações em que lei permitia, por exemplo, que determinadas licenças
não gozadas ou que o tempo de advocacia, ainda que sem qualquer comprovação de
contribuição previdenciária, pudessem ser utilizados para completar o tempo necessário
à aposentadoria pelo regime previdenciário dos servidores públicos. Atualmente, essas
hipóteses não mais são admitidas.
Feitos esses esclarecimentos acerca do regime constitucional dos servidores públicos, informamos ao leitor que no capítulo seguinte examinaremos o regime jurídico
dos servidores públicos federais, definido pela Lei nº 8.112/90.
103
104
não obstante a inércia do legislador na regulamentação do disposto no art. 40, §4º, da Constituição da república,
o supremo tribunal Federal vem reconhecendo aos servidores públicos que se enquadrem nas hipóteses previstas no referido permissivo constitucional o direito à aposentadoria especial, a exemplo do que ocorreu no
julgamento do mandado de injunção nº 1.967/dF. neste julgado, em que pese ainda não ter sido editada a lei
complementar requerida pela CF, a suprema Corte, por meio da aplicação analógica do art. 57 da Lei nº 8.213/91
(enquanto perdurar a prolongada omissão legislativa), assegurou a servidor público portador de deficiência o direito
à aposentadoria especial, conforme se verifica da ementa abaixo transcrita. Louvável a postura do Supremo Tribunal Federal, em mais uma oportunidade, de reafirmar o mandado de injunção como “instrumento de concretização das cláusulas constitucionais frustradas, em sua eficácia, pela inaceitável omissão do Poder Público”:
“mandado de Injunção. Servidor público portador de deficiência. Direito público subjetivo à aposentadoria especial (CF, art. 40, §4º, i). injusta frustração desse direito em decorrência de inconstitucional, prolongada e lesiva
omissão imputável a órgãos estatais da união Federal. Correlação entre a imposição constitucional de legislar
e o reconhecimento do direito subjetivo à legislação. descumprimento de imposição constitucional legiferante
e desvalorização funcional da Constituição escrita. A inércia do Poder Público como elemento revelador do
desrespeito estatal ao dever de legislar imposto pela Constituição. omissões normativas inconstitucionais: uma
prática governamental que só faz revelar o desprezo das instituições oficiais pela autoridade suprema da Lei
Fundamental do Estado. A colmatação jurisdicional de omissões inconstitucionais: um gesto de fidelidade à
supremacia hierárquico-normativa da Constituição da república. A vocação protetiva do mandado de injunção.
Legitimidade dos processos de integração normativa (dentre eles, o recurso à analogia) como forma de suplementação da ‘inertia agendi vel deliberandi’. Precedentes do supremo tribunal Federal. mandado de injunção
conhecido e deferido” (Pleno. rel. min. Celso de mello. Julg. 20.10.2011. DJ, 05 dez. 2012).
disposição transitória da eC nº 20/98 expressamente admitiu a acumulação de aposentadoria para regime do
art. 40 com vencimentos de atividade de cargo, emprego ou função pública, não obstante não se trate de cargos
acumuláveis. Quando o servidor tiver que se aposentar no novo cargo, todavia, deverá optar por uma das aposentadorias — salvo se se tratar de cargos acumuláveis na atividade.
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CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis:
reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
16.1 Considerações iniciais
no capítulo anterior, foram examinadas questões conceituais e constitucionais
relacionadas aos servidores públicos. em razão da sua estatura constitucional, essas
regras examinadas no capítulo anterior são de adoção obrigatória para todas as esferas
de governo. Assim, quando a Constituição Federal dispõe, por exemplo, acerca dos
requisitos necessários à aquisição da estabilidade, ou sobre o regime previdenciário
dos servidores públicos, a elas se vinculam todas as entidades políticas: união, estados,
distrito Federal e municípios.
No plano federal, a legislação definidora das normas básicas relativas ao regime
jurídico dos servidores públicos é a Lei nº 8.112, de 1990.
essa legislação federal em nenhum aspecto vincula as demais esferas de governo,
que somente estão obrigadas a observar as normas constitucionais sobre o tema.
nesse sentido, se fôssemos comparar a legislação federal sobre servidores públicos
(Lei nº 8.112/90) com a lei de licitação, que também é aprovada pela união (CF, art. 22,
XXvii), teríamos duas situações distintas: a lei federal sobre servidores (Lei nº 8.112/90) é
aplicável tão somente no âmbito federal; a legislação pertinente às licitações e contratos
(Lei nº 8.666/93), também aprovada pela união, é de adoção obrigatória em toda a Administração Pública federal, estadual e municipal.
essa distinção se deve ao fato de que, além da união, cada estado, cada município
e o próprio Distrito Federal têm competência legislativa plena para definir por meio de
legislação própria o regime dos seus servidores públicos, devendo serem observados
tão somente os parâmetros previstos na Constituição Federal.
Por razões políticas, ou por mera conveniência legislativa, a legislação federal
sobre servidores públicos tem sido adotada como parâmetro para a elaboração de
diversas leis estaduais e municipais. no caso do distrito Federal, apenas para citar um
exemplo, lei local determinou a pura e simples aplicação da legislação federal aos seus
servidores públicos.1
1
no caso do distrito Federal, a Lei distrital nº 197/92 determinou que a Lei nº 8.112/90 (federal) fosse observada
pelos servidores daquele ente governamental. deve-se atentar, no entanto, que o texto federal aplicável aos
784
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Ao longo deste capítulo, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, serão examinadas
as principais regras contidas na Lei nº 8.112/90. Para considerações acerca das questões
de estatura constitucional sobre os servidores públicos, remetemos o leitor ao capítulo
anterior.
16.2 Provimento
16.2.1 requisitos para a investidura
Ao disciplinar o provimento, a lei cuida dos requisitos e procedimentos a serem
observados para o preenchimento dos cargos públicos. o ato de provimento corresponde
àquele por meio do qual a autoridade competente preenche o cargo vago. As regras
relativas ao provimento dos cargos públicos federais encontram-se disciplinadas nos
artigos 5º a 32 da Lei nº 8.112/90.
A lei (art. 7º) dispõe que “a investidura em cargo público ocorrerá com a posse”.
A investidura indica o momento em que o cargo é considerado ocupado. Ao cuidar do
provimento, a lei indica, por exemplo, os prazos dentro dos quais o candidato nomeado
deve tomar posse (30 dias), bem como aqueles em que, empossado, deve entrar em
exercício (15 dias).
Quando a lei afirma que a investidura ocorrerá com a posse, quer tão somente
dizer que é neste momento em que o cargo considera-se ocupado, preenchido. É com
a posse, por exemplo, que poderá restar caracterizada eventual acumulação de cargos
públicos, ainda que o servidor não tenha entrado em exercício.
A Lei nº 8.112/90, em seu art. 5º, indica os requisitos básicos para investidura em
cargo público. são eles:
i - A nacionalidade brasileira;
ii - o gozo dos direitos políticos;
iii - A quitação com as obrigações militares e eleitorais;
iv - o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;
v - A idade mínima de dezoito anos;
vi - Aptidão física e mental.
Além desses, outros requisitos poderão ser exigidos para que o servidor possa
ser investido em cargo público. A legitimidade da exigência de outros requisitos (relacionados, por exemplo, ao nível de escolaridade) depende da observância das seguintes
condições:
1. devem estar previstos em lei;
2. devem manter pertinência com as atribuições do cargo; e
3. devem observar o princípio da razoabilidade.
vê-se que a exigência dos requisitos deve ser feita por ocasião da investidura no cargo,
e não para a inscrição no concurso público. Ainda que neste momento — da inscrição — o
servidores do distrito Federal é aquele vigente em 1992. As alterações introduzidas na legislação federal não
são de aplicação automática aos servidores do distrito Federal. Para esses servidores, valem as regras da Lei
nº 8.112/90 vigentes em 1992 e demais leis aprovadas pelo próprio Distrito Federal. Para definir o regime legal
dos servidores do distrito Federal é necessário montar um “quebra-cabeças”, em que o texto federal serve de
moldura, e as leis locais funcionam como peças.
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
candidato não atenda às exigências do edital, ele deve ter direito à inscrição e de comprovar
o seu atendimento por ocasião da posse.2
16.2.2 Formas de provimento
A Lei nº 8.112/90, em seu art. 8º, indica as formas de provimento dos cargos públicos. são elas:
i - nomeação;
ii - Promoção;
iii - readaptação;
iv - reversão;
v - Aproveitamento;
vi - reintegração;
vii - recondução.
16.2.2.1 nomeação
A nomeação é considerada forma originária de provimento nos cargos públicos; as
demais são formas derivadas. isto importa em que todos os servidores públicos somente
podem ingressar no serviço público por meio de nomeação.
A nomeação, conforme definido pelo art. 9º da Lei nº 8.112/90, far-se-á:
i - Em caráter efetivo, quando se tratar de cargo isolado de provimento efetivo ou
de carreira;
ii - Em comissão, inclusive na condição de interino, para cargos de confiança vagos.
somente por meio de lei podem ser criados cargos, empregos ou funções públicas.
no caso dos cargos, eles se dividem em cargos efetivos, que pressupõem prévia aprovação do servidor em concurso público de provas ou de provas e títulos, e em cargos em
comissão, de livre nomeação e exoneração. A Constituição Federal restringe a criação
destes últimos para o exercício de atividades de chefia, de direção e de assessoramento.
em razão do caráter excepcional de nomeação em comissão, o provimento originário do servidor nos quadros dos órgãos e entidades públicas pressupõe, portanto,
a prévia aprovação em concurso público.
16.2.2.2 Promoção
A promoção constitui a primeira hipótese de provimento derivado, hipótese diretamente vinculada à existência de cargos organizados em carreira.
Caracterizam-se as carreiras pela existência de um cargo inicial, provido por meio
de nomeação, e de cargos mais elevados, preenchidos por meio de promoção. ou seja,
após ser aprovado em concurso público, o servidor é nomeado para o cargo inicial da
carreira. Observados os critérios definidos em lei, o servidor poderá ser promovido
para os demais cargos da carreira.3
2
3
nesse sentido, stF. re nº 392.976-mG, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 17.8.2004. DJ, 08 out. 2004.
uma das maiores mazelas do Poder Judiciário nacional corresponde à falta de critérios objetivos para as promoções dos magistrados, que não raramente ascendem aos tribunais tendo que carregar alguma “fatura política”. A
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
tomemos o exemplo do ministério Público. nesta carreira, o provimento originário
dá-se mediante nomeação para o cargo de promotor de justiça adjunto. investido neste
cargo, o titular poderá ser promovido ao cargo de promotor de justiça e, posteriormente,
ao de procurador de justiça.
diferencia-se a carreira do ministério Público das carreiras existentes na Polícia
Civil. no âmbito das Polícias Civis estaduais, o cargo de agente de polícia e de delegado
não são cargos da mesma carreira, mas de carreiras distintas. não há como reservar,
desse modo, número de vagas da carreira de delegado para ser preenchido exclusivamente por agentes. Isto importaria em flagrante violação da regra de que os cargos
devem ser preenchidos por meio de concurso público específico.
o acesso a cada uma dessas diferentes carreiras da Polícia Civil deve ser feito
por meio de nomeação para os respectivos cargos iniciais, o que pressupõe a necessária
aprovação em concurso público específico.
As carreiras se caracterizam pela existência de uma “única entrada”, o cargo
inicial. este deverá ser preenchido por meio de nomeação (provimento originário).
investido o servidor no cargo inicial da carreira, ele poderá ser promovido (provimento
derivado) para ocupar os cargos mais elevados da carreira. soluções contrárias a essa
sistemática importam em violação à regra constitucional do concurso público e ao
princípio da impessoalidade.
16.2.2.3 readaptação
A readaptação constitui a segunda hipótese de provimento derivado.
Ela é disciplinada pela Lei nº 8.112/90, que em seu art. 24 a qualifica como a
“investidura do servidor em cargo de atribuições e responsabilidades compatíveis com
a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental verificada em inspeção
médica”. ou seja, se o servidor público durante o tempo em que estiver no exercício do
cargo sofrer limitações em sua capacidade física ou mental, a Administração Pública
deve considerar duas possibilidades: 1. aposentadoria por invalidez ou 2. readaptação.
o art. 24, §1º, dispõe que se junta médica julgar o servidor incapaz para o serviço
público, “o readaptando será aposentado”. A redação desse dispositivo pode levar à
conclusão de que a readaptação seria etapa preliminar necessária para a concessão da
aposentadoria por invalidez. não nos parece ser esta interpretação a mais adequada.
nos termos do art. 186, §3º, da Lei nº 8.112/90, a junta médica pode concluir pela necessidade de ser concedida diretamente a aposentadoria por invalidez, independentemente
de prévia readaptação.
Caso a junta médica conclua pela viabilidade da readaptação, ela será efetivada
em cargo de atribuições afins, respeitada a habilitação exigida, nível de escolaridade e
equivalência de vencimentos e, na hipótese de inexistência de cargo vago, o servidor
exercerá suas atribuições como excedente, até a ocorrência de vaga.
grande maioria dos magistrados não é corrupta. trata-se de pessoas extremamente competentes, comprometidas
com o interesse público, assoberbadas de trabalho e que, na grande maioria dos casos, exercem suas atribuições
sem que lhes sejam dadas condições adequadas de trabalho. A falta de critérios objetivos para a realização das
promoções constitui, todavia, aspecto que compromete a atuação do Poder Judiciário e merece urgente revisão.
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
A readaptação é instituto que se destina apenas aos servidores efetivos, não se
estendendo aos ocupantes de função comissionada, sem vínculo com a Administração
Pública.4
16.2.2.4 reversão
A reversão, terceira hipótese de provimento derivado, é o retorno à atividade de
servidor aposentado, que pode ocorrer em duas situações.
A primeira se verifica quando, por junta médica oficial, forem declarados insubsistentes os motivos da aposentadoria por invalidez. nesse caso, se o cargo para o qual
ocorrerá a reversão se encontrar provido, “o servidor exercerá suas atribuições como
excedente, até a ocorrência de vaga”, nos termos do §3º do art. 25 da Lei nº 8.112/90.
A segunda hipótese de reversão ocorre por interesse da Administração e pressupõe o preenchimento cumulativo das seguintes condições:
a) o servidor deve ter solicitado a reversão;
b) A aposentadoria deve ter sido voluntária;
c) o servidor deveria ser estável quando na atividade;
d) A aposentadoria deve ter ocorrido nos cinco anos anteriores à solicitação; e
e) Haja cargo vago.
nesse caso, o servidor perceberá, em substituição aos proventos da aposentadoria,
a remuneração do cargo que voltar a exercer, inclusive com as vantagens de natureza
pessoal que percebia anteriormente à aposentadoria.
A reversão far-se-á no mesmo cargo ou no cargo resultante de sua transformação.
16.2.2.5 reintegração
A reintegração é a reinvestidura do servidor estável no cargo anteriormente ocupado, ou no cargo resultante da sua transformação, quando invalidada a demissão por
decisão administrativa ou judicial. A reintegração se faz com ressarcimento de todas
as vantagens pretéritas.
Caso o cargo em que o servidor deva ser reintegrado tenha sido extinto, o servidor
ficará em disponibilidade. Se, ao contrário, o cargo para o qual o servidor venha a ser
reintegrado encontre-se provido, “o seu eventual ocupante será reconduzido ao cargo
de origem, sem direito à indenização ou aproveitado em outro cargo, ou, ainda, posto
em disponibilidade” (art. 28, §2º, Lei nº 8.112/90).
A lei somente assegura direito a reintegração ao servidor estável.
A teoria das nulidades dos atos administrativos resulta em que, anulada a demissão do servidor não estável que ocupe cargo de servidor efetivo, seus efeitos jurídicos
sejam idênticos ao da reintegração.
Conforme examinamos no Capítulo 5, relativo aos atos administrativos, a invalidação do ato administrativo produz eficácia ex tunc. vale dizer, todos os efeitos decorrentes do ato nulo devem ser desconstituídos. desse modo, se a demissão do servidor
em estágio probatório vier a ser anulada, independentemente de a lei não lhe assegurar
4
Vide STJ. AgRg no REsp nº 749.852-DF, 6ª Turma. Rel. Min. Paulo Gallotti. Julg. 9.2.2006. DJ, 27 mar. 2006.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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direito à reintegração, ele retorna ao seu cargo em razão da própria anulação. A eficácia
retroativa da invalidação do ato de demissão importa no retorno do servidor ao seu
antigo cargo, ainda que a esta hipótese não se possa denominar de reintegração, devendo
ser assegurado ao servidor o direito ao pagamento dos valores atrasados. Além de ter
fundamento na teoria da invalidação dos atos administrativos, o retorno do servidor
não estável ao cargo efetivo do qual tenha sido ilegalmente demitido constitui regra
de justiça.5
16.2.2.6 recondução
A recondução, assim como as demais formas de provimento derivado até o
momento examinadas, constitui hipótese em que o servidor estável retorna ao cargo
anteriormente ocupado.
nos termos do art. 29 da Lei nº 8.112/90, a recondução decorrerá de:
i - inabilitação em estágio probatório relativo a outro cargo;
ii - reintegração do anterior ocupante.
A jurisprudência tem admitido, além dessas duas, terceira hipótese de recondução, denominada de recondução a pedido do servidor. nesse sentido, tanto o stF quanto
o stJ têm admitido que o servidor em estágio probatório possa pedir a sua recondução
ao cargo que anteriormente ocupava, na eventualidade de se tratar de servidor estável.6
16.2.2.7 Aproveitamento
o aproveitamento verificar-se-á quando o servidor que se encontrava em disponibilidade retorna ao serviço público. nos termos do art. 30 da Lei nº 8.112/90, o aproveitamento ocorrerá obrigatoriamente em cargo de atribuições e vencimentos compatíveis
com o anteriormente ocupado.
16.3 Posse, exercício e estágio probatório
16.3.1 Posse
nomeado, a lei determina que o servidor dispõe de 30 dias para tomar posse. Com
a posse, conforme já observado, considera-se investido o servidor no respectivo cargo.
5
6
Foi o que decidiu stJ no julgamento do Agrg no resp nº 1.153.346-rs, cuja ementa se segue:
“Administrativo. Agravo regimental em recurso especial. reintegração de servidor público municipal. efeitos
financeiros. Restabelecimento do statu quo ante. Agravo regimental desprovido. 1. A análise de matéria de cunho
constitucional é, por força do art. 102, iii da Carta maior, exclusiva da suprema Corte, sendo, portanto, vedado
a este Superior Tribunal de Justiça conhecer da suposta infringência, ainda que para fins de prequestionamento.
2. Ao servidor Público reintegrado é assegurado, como efeito lógico, todos os direitos de que fora privado em
razão da ilegal demissão, inclusive os vencimentos retroativos. Precedente. 3. A decisão que declara a nulidade
do ato de demissão e determina a reintegração de servidor Público ao cargo de origem, ainda que em estágio
probatório, opera efeitos ex tunc, ou seja, restabelece o statu quo ante, de modo a garantir o pagamento integral
das vantagens pecuniárias que seriam pagas no período do indevido desligamento do serviço público. 4. Agravo
regimental desprovido” (5ª turma. rel. min.napoleão nunes maia Fiho. Julg. 03.05.2011. DJe, 09 jun. 2011).
Vide stF. ms nº 24.543-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 21.8.2003. DJ, 12 set. 2003; e stJ. ms nº 8.339-dF,
3ª seção. rel. min. Hamilton Carvalhido. Julg. 11.9.2002. DJ, 16 dez. 2002.
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
somente haverá posse nos casos de provimento originário do cargo, vale dizer,
em razão de nomeação. nas hipóteses de provimento derivado, uma vez publicado o
ato por meio do qual o servidor é promovido, reintegrado, reconduzido etc., o cargo
será considerado automaticamente preenchido, não sendo necessário que ao servidor
seja dada posse ou que se pratique qualquer outro ato.
Alguma controvérsia tem cercado a afirmação constante da Lei nº 8.112/90 de
que a investidura ocorrerá com a posse no cargo.
A primeira observação a ser feita é a de que a investidura não é ato administrativo.7 A nomeação é um ato administrativo, e a posse é outro ato administrativo. esses
dois atos não se conjugam para formar terceiro ato, que seria a investidura. Quando a
lei dispõe que a investidura ocorrerá com a posse, busca apenas indicar o momento em
que o cargo será considerado preenchido, e não que a nomeação e a posse se conjuguem
para formar novo ato administrativo.8
da data em que tenha sido publicado o ato de nomeação, o servidor público
federal disporá, como observado, do prazo de 30 dias para tomar posse. Caso o servidor, ao ser nomeado, se encontre afastado do cargo ou em cumprimento de licença
em algumas das hipóteses previstas no art. 13, §2º, da Lei nº 8.112/90, o prazo de 30
dias somente será contado do término do cumprimento da licença ou do afastamento.
A posse, que poderá ser feita mediante procuração específica, será formalizada
pela assinatura do servidor e da autoridade competente em termo no qual deverão
constar as atribuições, os deveres, as responsabilidades e os direitos inerentes ao cargo.
Como requisitos para a posse, a lei exige que o servidor:
- Apresente declaração de bens e valores que constituem seu patrimônio e declaração quanto ao exercício ou não de outro cargo, emprego ou função pública;
- Tenha-se submetido a prévia inspeção médica oficial e seja considerado apto
física e mentalmente para o exercício do cargo.
16.3.2 exercício
Ao tomar posse, o servidor assume o cargo. não está obrigado, todavia, a iniciar
o exercício das atribuições a ele inerentes de forma imediata.
7
8
Hely Lopes meirelles (Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 154) ao tratar do ato complexo menciona a investidura em cargo público como exemplo. Afirma o ilustre autor que “a investidura de um funcionário é um ato
complexo consubstanciado na nomeação feita pelo Chefe do executivo e completada pela posse e exercício dados
pelo chefe da repartição em que vai servir o nomeado”. Máxima vênia, esta afirmação não nos parece ser correta.
A nomeação e a posse em cargos públicos são atos distintos, motivo suficiente para que não possam ser considerados um só ato complexo. Quando a lei afirma que a investidura ocorrerá com posse, busca afastar qualquer dúvida em relação ao momento em que o cargo será considerado ocupado pelo agente. Poder-se-ia eventualmente
cogitar de que o cargo seria considerado preenchido desde a nomeação, ou somente com o exercício. Para afastar
essas possíveis indagações, a lei define que o cargo será reputado preenchido (investido) com a posse do servidor.
sobre nomeação, posse e exercício, o stF assim se manifestou: “A nomeação é ato de provimento de cargo, que
se completa com a posse e o exercício. A investidura do servidor no cargo ocorre com a posse, que é conditio juris
para o exercício da função pública, tanto mais que por ela se conferem ao funcionário ou ao agente político as
prerrogativas, direitos e deveres do cargo ou do mandato. sem a posse o provimento não se completa, nem pode
haver exercício da função pública. É a posse que marca o início dos direitos e deveres funcionais, como, também,
gera as restrições, impedimentos e incompatibilidades para o desempenho de outros cargos, funções ou mandatos. Com a posse, o cargo fica provido e não poderá ser ocupado por outrem, mas o provimento só se completa
com a entrada em exercício do nomeado, momento em que o servidor passa a desempenhar legalmente suas
funções e adquire as vantagens do cargo e a contraprestação pecuniária pelo Poder Público” (re nº 120.133-mG,
2ª turma. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 27.9.1996. DJ, 29 nov. 1996).
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Curso de direito AdministrAtivo
o exercício, nos termos do art. 15 da Lei nº 8.112/90, é o efetivo desempenho
das atribuições do cargo público ou da função de confiança. Da mesma forma que a lei
assegura ao candidato nomeado prazo para tomar posse (30 dias), ela permite que o
servidor empossado possa entrar em exercício no prazo de até 15 dias.
estes dois prazos — para posse e para exercício — são postos à disposição do
servidor. ou seja, não pode a Administração exigir que o servidor tome posse em data
certa ou que entre em exercício concomitantemente com a posse. dentro dos prazos
legais postos à sua disposição, o servidor público federal pode tomar posse e entrar em
exercício, conforme defina sua conveniência.
No caso de designação para exercício de função de confiança, a situação é distinta.
determina a lei que o início do exercício coincidirá com a data da publicação do ato de
designação, “salvo quando o servidor estiver em licença ou afastado por qualquer outro
motivo legal, hipótese em que recairá no primeiro dia útil após o término do impedimento, que não poderá exceder a trinta dias da publicação” (art. 15, §4º, Lei nº 8.112/90).
vê-se, portanto, que empossado, o servidor dispõe de 15 dias para entrar em
exercício; designado para exercer função de confiança, ele deverá iniciar o exercício
das atribuições da função no mesmo dia em que ocorrer a publicação do ato de designação, ressalvada a hipótese acima mencionada em que o servidor esteja licenciado ou
afastado do cargo.
se o servidor nomeado não toma posse, o ato de provimento simplesmente se
esgota e não se faz necessária a revogação ou a anulação do ato de nomeação. Caso o
servidor tome posse fora do prazo legal, o ato de posse é nulo e a Administração deve
tomar as providências necessárias à invalidação da posse.
distinta é a situação do servidor que toma posse e não entra em exercício.
em razão da posse, o servidor ocupa o cargo, e, se não entra em exercício, faz-se
necessária a adoção de providências com vista a tornar o cargo vago. desse modo, se
o servidor não entrar em exercício nos prazos fixados na lei, ele deverá ser exonerado
do cargo ou, tratando-se de designação para o exercício de função de confiança, o ato
de sua designação deverá ser tornado sem efeito (art. 15, §2º, Lei nº 8.112/90).
16.3.3 estágio probatório
Ao entrar em exercício, o servidor nomeado para cargo de provimento efetivo
ficará sujeito a estágio probatório por período de 24 meses, durante o qual a sua aptidão
e capacidade serão objeto de avaliação para o desempenho do cargo.
durante o estágio, serão examinados os seguintes fatores:
1. Assiduidade;
2. disciplina;
3. Capacidade de iniciativa;
4. Produtividade; e
5. responsabilidade.
durante o estágio probatório, o servidor “poderá exercer quaisquer cargos de
provimento em comissão ou funções de direção, chefia ou assessoramento no órgão ou
entidade de lotação”. o servidor em estágio também poderá ser cedido a outro órgão
ou entidade, mas somente se for para ocupar “cargos de natureza especial, cargos
de provimento em comissão do Grupo-direção e Assessoramento superiores – dAs,
de níveis 6, 5 e 4, ou equivalentes”, conforme dispõe o art. 20, §3º, da Lei nº 8.112/90.
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
A lei assegura ao servidor em estágio probatório o direito de obter licença por
motivo de doença em pessoa da família, por motivo de afastamento do cônjuge ou
companheiro, para o serviço militar e para atividade política. ele poderá também obter
afastamento para exercício de mandato eletivo, para estudo ou missão no exterior, para
servir em organismo internacional de que o Brasil participe ou com o qual coopere,
bem como ser afastado para participar de curso de formação decorrente de aprovação
em concurso para outro cargo na Administração Pública federal.
Para maiores considerações acerca do estágio probatório e da estabilidade, inclusive em relação ao prazo do estágio, remetemos o leitor ao capítulo anterior. Ali, examinamos, além do prazo do estágio probatório, que foi objeto de inúmeras controvérsias,
as consequências que podem resultar da sua reprovação (exoneração ou recondução),
bem como a necessidade de que sejam assegurados ao servidor contraditório e ampla
defesa, caso a comissão encarregada de avaliar o servidor conclua pela sua reprovação
no estágio.
16.4 vacância
Ao examinarmos o provimento dos cargos, verificamos as formas pelas quais
os cargos públicos são preenchidos. no presente item, examinaremos as situações que
resultam em vacância dos cargos.
em algumas das hipóteses, o provimento do cargo irá resultar necessariamente na
vacância de outro. isto ocorre com a promoção, com a readaptação, com a recondução e
com a posse em outro cargo inacumulável. Ao ser promovido, por exemplo, o servidor
ocupa novo cargo e torna o antigo vago. nas demais hipóteses de vacância, não haverá
provimento de novo cargo.
nos termos do art. 33 da Lei nº 8.112/90, a vacância do cargo público decorrerá de:
i - exoneração;
ii - demissão;
iii - Promoção;
iv - readaptação;
v - Aposentadoria;
vi - Posse em outro cargo inacumulável;
vii - Falecimento.
nos itens anteriores, examinamos aspectos relacionados às hipóteses de vacância
que importam em provimento de novo cargo (promoção e readaptação). Para considerações acerca do regime de aposentadoria dos servidores públicos, remetemos o leitor
ao capítulo anterior. trataremos, em seguida, portanto, tão somente da exoneração, da
demissão e da posse em novo cargo inacumulável.
16.4.1 exoneração
em relação à exoneração, a Lei nº 8.112/90 indica que ela dar-se-á a pedido do
servidor, ou de ofício.
A lei aponta duas situações em que poderá ocorrer a exoneração de ofício: quando
o servidor não estável não satisfizer as condições do estágio probatório e quando, tendo
tomado posse, não entre em exercício no prazo estabelecido.
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Além dessas hipóteses de exoneração, a pedido e de ofício, existem duas outras.
uma é denominada exoneração ad nutum, aplicável tão somente aos cargos em comissão, e que constitui a única hipótese de exoneração enquadrada no âmbito da atuação
discricionária da Administração Pública.
A outra hipótese de exoneração — que pode alcançar inclusive servidores estáveis — foi examinada detalhadamente no capítulo anterior. ela decorre da aplicação
do art. 169 da Constituição Federal e está relacionada ao não cumprimento pela união,
estados, distrito Federal e municípios dos limites com gastos de pessoal. se não forem
observados os limites previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar
nº 101/00), é o próprio texto da Constituição que prevê a possibilidade de servidores
públicos não estáveis (art. 169, §3º, ii) e estáveis (art. 169, §4º) serem exonerados.
Podemos apresentar, em resumo, as seguintes hipóteses de exoneração admitidas
em nosso regime jurídico:
- A pedido do servidor;
- decorrente da reprovação do servidor não estável em estágio probatório;
- Quando o servidor, tendo tomado posse, não entra em exercício no prazo legal;
- Ad nutum, que se aplica apenas aos cargos em comissão; e
- em razão da não observância dos limites de gasto com pessoal previstos na Lei
de responsabilidade Fiscal (CF, art. 169, §§3º e 4º).
16.4.2 demissão
no regime instituído pela Lei nº 8.112/90, a demissão é a sanção disciplinar
aplicável aos servidores ocupantes de cargos de provimento efetivo na eventualidade
de terem sido cometidas as infrações previstas no art. 132 da lei.
o art. 33 da Lei nº 8.112/90 que indica as hipóteses de vacância do cargo deveria ter
indicado, além da demissão, a destituição. Conforme disciplinado pela Lei nº 8.112/90, a
pena de demissão é aplicável aos servidores efetivos que cometam as infrações descritas
no mencionado art. 132. se se trata de servidor comissionado sem vínculo efetivo e ele
cometa infração punível com pena de demissão ou de suspensão, nos termos do art. 135,
ele será destituído do cargo em comissão.
Assim, se dois servidores, um ocupante de cargo efetivo e outro de cargo em
comissão, em conluio, praticam ato de improbidade, após o devido processo disciplinar,
o servidor efetivo deverá ser demitido (art. 132, i), e o servidor comissionado deverá
ser destituído.
16.4.3 Posse em outro cargo inacumulável
A posse em outro cargo inacumulável importa em vacância do cargo anterior.
A partir dessa hipótese, criou-se no serviço público instituto denominado “pedido de
vacância”.
Ao tomar posse em novo cargo, há órgãos que somente admitem a contagem
dos prazos de algumas licenças ou das férias, ou permitem a recondução do servidor
ao cargo anterior, se ele tiver “pedido de vacância”.
A rigor, a única hipótese prevista na Lei nº 8.112/90 em que o cargo se torna
vago em decorrência de pedido do servidor é a exoneração. na prática, o que se tem
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
denominado de “pedido de vacância” é a simples comunicação feita pelo servidor ao
órgão no qual ele ocupava o antigo cargo de que ele estará tomando posse em novo
cargo inacumulável. esta comunicação importa na vacância do antigo cargo.
se a comunicação de posse em cargo inacumulável vai-se denominar de “pedido
de vacância”, ainda que a terminologia não seja muito apropriada, não é relevante. não
é razoável, todavia, que somente se admita a recondução do servidor ao antigo cargo
se ele tiver se utilizado desse procedimento, sendo-lhe negado o direito se ele tiver
pedido exoneração do antigo cargo.
Ao disciplinar a recondução, a lei considera irrelevante se o servidor pediu
exoneração ou se comunicou ao órgão de origem a sua posse em cargo inacumulável.
em qualquer hipótese, desde que o servidor seja estável e a mudança ocorra na mesma
esfera de governo,9 caso venha a ser reprovado no estágio probatório referente ao novo
cargo, ele tem direito de ser reconduzido ao cargo anterior.
em relação à possibilidade de aproveitamento do tempo de exercício no cargo
anterior para o novo cargo, em relação à contagem de férias, por exemplo, parece-nos
igualmente irrelevante se o servidor pediu exoneração ou se “pediu vacância”. importa
apenas verificar se ao se desligar do antigo cargo o servidor foi indenizado pelo órgão de
origem em razão de não ter gozado direito passíveis de serem convertidos em pecúnia.
desse modo, se o servidor pede exoneração do antigo cargo e é indenizado
pelas férias não gozadas, ele não poderá aproveitar esse tempo para fins de férias no
novo cargo, porque estas não mais existem. Para outros fins, de que seria exemplo a
contagem de tempo para obtenção de licença capacitação, que nos termos do art. 87
da Lei nº 8.112/90 requer cinco anos de exercício, é irrelevante se a vacância do antigo
cargo deveu-se a pedido de exoneração ou se a comunicação de posse em outro cargo
inacumulável. importa apenas que o servidor averbe no novo órgão o tempo relativo ao
exercício do antigo cargo, e que este não tenha sido objeto de indenização em dinheiro
no órgão de origem.
16.5 remoção e redistribuição
essas duas situações descritas na Lei nº 8.112/90 ocorrem sem que o servidor precise mudar de cargos. em nenhuma delas ocorrerá, portanto, provimento ou vacância
de cargos.
A remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do
mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
A remoção poderá ocorrer:
1. de ofício, no interesse da Administração;
2. A pedido do servidor, a critério da Administração; e
3. A pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração.
9
em sentido contrário, admitindo a possibilidade de recondução entre esferas de governo distintas, veja-se o Acórdão tCu nº 569/2006, Plenário. segundo as palavras do ministro ubiratan Aguiar, relator do processo julgado
pelo referido acórdão, “a principal finalidade do art. 33, inciso VIII, da Lei nº 8.112/90, ao estabelecer a vacância
em face da posse em outro cargo inacumulável, é coibir a acumulação ilícita de cargo público federal com outro
cargo de qualquer ente da federação. Assim, como o estatuto dos servidores Públicos Federais, em seu art. 29,
não restringiu a possibilidade de recondução em razão da natureza do ente federado, não há razão para que se
não estenda o entendimento firmado no MS/STF nº 22.933-0-DF, de forma a contemplar tal possibilidade nos
casos de desistência do estágio probatório pertinente a cargo vinculado a outro ente da federação”.
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Esta última hipótese de remoção do servidor verificar-se-á:
a) Para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou
militar, de qualquer dos Poderes da união, dos estados, do distrito Federal e
dos municípios, que foi deslocado no interesse da Administração;
b) Por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente que
viva às suas expensas e conste do seu assentamento funcional, condicionada
à comprovação por junta médica oficial;
c) em virtude de processo seletivo promovido, na hipótese em que o número de
interessados for superior ao número de vagas, de acordo com normas preestabelecidas pelo órgão ou entidade em que aqueles estejam lotados.
A redistribuição distingue-se da remoção em razão de dois aspectos básicos. em
primeiro lugar, a remoção é o deslocamento do servidor; a redistribuição, o deslocamento do cargo, ocupado ou vago. Em segundo lugar, a remoção se verifica dentro de
um mesmo quadro de pessoal; a redistribuição pode ocorrer no âmbito do quadro geral
de pessoal para outro órgão ou entidade do mesmo poder, desde que observados os
requisitos indicados em lei (art. 37, Lei nº 8.112/90).
16.6 direitos e vantagens
16.6.1 remuneração
dentre os direitos e vantagens previstos na Lei nº 8.112/90, merece destaque, em
primeiro lugar, a remuneração. nos termos do art. 41 da lei, a remuneração corresponde
ao “vencimento do cargo efetivo, acrescido das vantagens pecuniárias permanentes
estabelecidas em lei”. O vencimento, a seu turno, é definido pelo art. 40 da lei como
“a retribuição pecuniária pelo exercício de cargo público, com valor fixado em lei”.10
Questão interessante é saber quais são as regras que devem ser respeitadas para
se realizar desconto na folha de pagamento do servidor. A matéria é tratada nos artigos
45 a 48 da Lei nº 8.112/90.
de plano, cumpre informar que nenhum desconto pode incidir sobre a remuneração ou provento do servidor, salvo por imposição legal ou mandado judicial. Partindo
dessa premissa, tem-se que, mesmo em caso de prejuízo ao erário causado por servidor
10
Conforme examinado no capítulo anterior, parcela significativa da doutrina entende ser inadequada a terminologia legal. Afirma, por exemplo, que o conceito de remuneração constante do art. 41 melhor se aplicaria ao de
vencimentos. Para melhor compreensão dessa terminologia, repetimos as definições apresentadas no Capítulo 15:
- Remuneração – Compreende todos os valores pecuniários pagos aos servidores a título de contraprestação pelos
serviços prestados. estão incluídos na remuneração os vencimentos bem como as vantagens de caráter permanente ou transitório pagos ao servidor;
- Vencimento – É a retribuição pecuniária que o servidor público recebe pelo exercício de seu cargo;
- Vencimentos – Correspondem ao vencimento acrescido das vantagens de caráter permanente pagas ao servidor;
- Vantagens pecuniárias – são as parcelas acrescidas ao vencimento do servidor em razão de situações previstas
em lei. As vantagens pecuniárias compreendem os adicionais e as gratificações;
- Vantagens pessoais – Correspondem às vantagens pecuniárias que integram a remuneração do servidor em
caráter permanente;
- Subsídio – Corresponde ao sistema de remuneração em que o agente é remunerado por meio de parcela única,
vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie
remuneratória.
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
público, a administração somente pode proceder ao desconto em folha de pagamento
com a anuência do interessado. Esse entendimento ficou consagrado quando da apreciação pelo stF do ms nº 24.182-dF, cuja ementa foi vazada nos seguintes termos:
mandado de segurança. 2. desaparecimento de talonários de tíquetes-alimentação.
Condenação do impetrante, em processo administrativo disciplinar, de ressarcimento
ao erário do valor do prejuízo apurado. 3. decisão da mesa diretora da Câmara dos deputados de desconto mensais, em folha de pagamento, sem a autorização do servidor. 4.
responsabilidade civil de servidor. Hipótese em que não se aplica a auto-executoriedade
do procedimento administrativo. 5. A Administração acha-se restrita às sanções de natureza administrativa, não podendo alcançar, compulsoriamente, as conseqüências civis e
penais. 6. À falta de prévia aquiescência do servidor, cabe à Administração propor ação
de indenização para a confirmação, ou não, do ressarcimento apurado na esfera administrativa. 7. o art. 46 da Lei nº 8.112, de 1990, dispõe que o desconto em folha de pagamento
é a forma como poderá ocorrer o pagamento pelo servidor, após sua concordância com
a conclusão administrativa ou a condenação judicial transitada em julgado. 8. mandado
de segurança deferido.11
no caso de pagamento a maior efetuado pela administração, em decorrência
de errônea interpretação ou má aplicação da lei pela Administração, tanto o superior
tribunal de Justiça12 como o tribunal de Contas da união entendem que, quando o
recebimento ocorreu com boa-fé, não há necessidade de restituição. nessa linha é a
súmula nº 249 da Corte de Contas Federal, a qual possui o seguinte teor:
É dispensada a reposição de importâncias indevidamente percebidas, de boa-fé, por servidores ativos e inativos, e pensionistas, em virtude de erro escusável de interpretação de lei
por parte do órgão/entidade, ou por parte de autoridade legalmente investida em função
de orientação e supervisão, à vista da presunção de legalidade do ato administrativo e do
caráter alimentar das parcelas salariais.
As vantagens previstas na Lei nº 8.112/90 que poderão ser acrescidas ao vencimento do servidor se dividem em:
1. indenizações;13
2. Gratificações;
3. Adicionais.
Constituem indenizações ao servidor:
1. Ajuda de custo – Que se “destina a compensar as despesas de instalação do
servidor que, no interesse do serviço, passar a ter exercício em nova sede, com
11
12
13
ms nº 24.182-dF, Pleno. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 12.2.2004. DJ, 03 set. 2004.
sobre o assunto, os seguintes precedentes do stJ: Agrg no Ag nº 756.226-rs, 5ª turma. rel. min. Laurita vaz.
Julg. 29.6.2006. DJ, 14 ago. 2006; resp nº 751.408-dF, 5ª turma. rel. min. Felix Fischer. Julg. 6.9.2005. DJ, 07 nov.
2005; rms nº 19.980-rs, 5ª turma. rel. min. Laurita vaz. Julg. 28.9.2005. DJ, 07 nov. 2005; e rms nº 33.034-rs, 1ª
turma. rel. min. Arnaldo esteves Lima. Julg. 15.2.2011. DJe, 23 fev. 2011.
As indenizações, conforme afirma parte significativa da doutrina, não são consideradas vantagens que possam
compor os vencimentos do servidor. A rigor, a própria Lei nº 8.112/90, em seu art. 49, §1º, dispõe que “as indenizações não se incorporam ao vencimento ou provento para qualquer efeito, acrescentando no §2º do mesmo
artigo que as gratificações e os adicionais incorporam-se ao vencimento ou provento, nos casos e condições indicados em lei”. Para maiores considerações sobre aspectos conceituais relacionados ao sistema remuneratório
dos servidores públicos, remetemos o leitor ao capítulo anterior.
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mudança de domicílio em caráter permanente, vedado o duplo pagamento
de indenização, a qualquer tempo, no caso de o cônjuge ou companheiro que
detenha também a condição de servidor, vier a ter exercício na mesma sede”
(art. 57, Lei nº 8.112/90);
2. diárias – Que se destinam “a indenizar as parcelas de despesas extraordinárias com pousada, alimentação e locomoção urbana, conforme dispuser em
regulamento” (Lei nº 8.112/90, art. 58);
3. transporte – Cujo propósito, como o próprio nome indica, objetiva indenizar o
servidor pelas despesas que realizar “com a utilização de meio próprio de locomoção para a execução de serviços externos, por força das atribuições próprias
do cargo, conforme se dispuser em regulamento” (Lei nº 8.112/90, art. 60).
4. Auxílio-moradia – Que objetiva o ressarcimento das despesas comprovadamente realizadas pelo servidor com aluguel de moradia ou com meio de
hospedagem administrado por empresa hoteleira; essa indenização é concedida àqueles que atendam aos requisitos estabelecidos na lei (art. 60-B da Lei
nº 8.112/90, incluído pela Lei nº 11.355/2006) e não será concedido no prazo
superior a 8 anos dentro de cada 12 anos (art. 60-C da Lei nº 8.112/90, incluído
pela Lei nº 11.784/2008).
Para fins de aplicação do teto remuneratório de que trata a Constituição Federal, art. 37, Xi, é relevante o enquadramento de determinado pagamento a título de
indenização, haja vista o §11 do mesmo art. 37 do texto constitucional, com a redação
dada pela eC nº 47/05, determinar que “não serão computadas, para efeito dos limites
remuneratórios de que trata o inciso Xi do caput deste artigo, as parcelas de caráter
indenizatório previstas em lei”.
Além das indenizações, a Lei nº 8.112/90, em seu art. 61, prevê as seguintes gratificações e adicionais:
- Retribuição pelo exercício de função de direção, chefia e assessoramento;
- Gratificação natalina;
- Adicional pelo exercício de atividades insalubres, perigosas ou penosas;
- Adicional pela prestação de serviço extraordinário;
- Adicional noturno;
- Adicional de férias;
- outros, relativos ao local ou à natureza do trabalho; e
- Gratificação por encargo de curso ou concurso.
16.6.2 Férias
o segundo direito assegurado pela Lei nº 8.112/90 aos servidores públicos federais
são as férias remuneradas.
As férias serão de 30 dias, podendo ser parceladas em até três etapas, desde que
assim requeridas pelo servidor, observado o interesse da Administração Pública. elas
podem ser acumuladas, até o máximo de dois períodos, no caso de necessidade do
serviço, ressalvadas as hipóteses em que haja legislação específica.
Para o primeiro período aquisitivo de férias serão exigidos 12 meses de exercício. o segundo período aquisitivo será contado a partir de 1º de janeiro do ano subsequente. Assim, se o servidor toma posse no dia 10 de dezembro, no mesmo dia do
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servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
ano subsequente ele terá adquirido direito de gozar a primeira parcela de 30 dias de
férias. decorridos apenas 21 dias, ou seja, no dia 1º de janeiro do outro ano, ele já terá
adquirido direito a nova parcela de férias, correspondente a mais 30 dias. A partir do
segundo período, independentemente do dia em que tenha tomado posse, para cada
ano civil o servidor adquirirá direito de gozar novo período de férias.
o direito de gozar férias compreende não apenas o descanso remunerado, mas
igualmente o pagamento de um terço a mais da sua remuneração, conforme dispõe a
Constituição Federal, art. 7º, Xvii, c/c o art. 39, §3º.
Convém anotar que o stJ considera possível o acúmulo de mais de dois períodos
de férias não gozadas. Aquela Corte superior entende, contudo, que o gozo das férias
está condicionado à conveniência e ao interesse da Administração Pública, mesmo que
haja mais de dois períodos acumulados.14
16.6.3 Licenças, afastamentos e concessões
A Lei nº 8.112/90 prevê o direito do servidor de obter as seguintes licenças e
afastamentos:
- Licença por motivo de doença em pessoa da família – Que será concedida
por motivo de doença do cônjuge ou companheiro, dos pais, dos filhos, do
padrasto ou madrasta e enteado, ou dependente que viva às suas expensas
e conste do seu assentamento funcional, mediante comprovação por perícia
médica oficial. Esta licença somente será deferida se a assistência direta do
servidor for indispensável e não puder ser prestada simultaneamente com
o exercício do cargo ou mediante compensação de horário, e será concedida
sem prejuízo da remuneração do cargo efetivo, por até 30 dias, podendo ser
prorrogada por até 30 dias e, excedendo estes prazos, sem remuneração, por
até 90 dias. não será concedida nova licença em período inferior a 12 meses
do término da última licença concedida. A Lei nº 11.907, de 2.2.2009, estabelece
que tanto a concessão como cada uma das prorrogações da licença devem ser
precedidas de exame por perícia médica oficial;
- Licença por motivo de afastamento do cônjuge ou companheiro – Que poderá
ser concedida ao servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro que foi
deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o
exercício de mandato eletivo dos Poderes executivo e Legislativo. esta licença
será por prazo indeterminado e sem remuneração;
- Licença para o serviço militar – Ao servidor convocado para o serviço militar
será concedida licença, na forma e condições previstas na legislação específica.
Concluído o serviço militar, o servidor terá até 30 dias sem remuneração para
reassumir o exercício do cargo;
- Licença para atividade política – o servidor terá direito a licença, sem remuneração, durante o período que mediar entre a sua escolha em convenção
partidária, como candidato a cargo eletivo, e a véspera do registro de sua candidatura perante a Justiça eleitoral. A partir do registro da candidatura e até
14
ms nº 13.391-dF, 3ª seção. rel. min. maria thereza de Assis moura. Julg. 27.4.2011. DJe, 30 maio 2011.
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o décimo dia seguinte ao da eleição, o servidor fará jus à licença, assegurados
os vencimentos do cargo efetivo, somente pelo período de três meses;
Licença para capacitação – Após cada quinquênio de efetivo exercício, o servidor poderá, no interesse da Administração, afastar-se do exercício do cargo
efetivo, com a respectiva remuneração, por até três meses, para participar de
curso de capacitação profissional;
Licença para tratar de interesses particulares – A critério da Administração,
poderá ser concedida ao servidor ocupante de cargo efetivo, desde que não
esteja em estágio probatório, licença para o trato de assuntos particulares pelo
prazo de até três anos consecutivos, sem remuneração, prorrogável uma única
vez por período não superior a esse limite. esta licença poderá ser interrompida,
a qualquer tempo, a pedido do servidor ou no interesse do serviço, e não se
concederá nova licença capacitação antes de decorridos dois anos do término
da anterior ou de sua prorrogação;
Licença para o desempenho de mandato classista – É assegurado ao servidor
o direito à licença sem remuneração para o desempenho de mandato em confederação, federação, associação de classe de âmbito nacional, sindicato representativo da categoria ou entidade fiscalizadora da profissão ou, ainda, para
participar de gerência ou administração em sociedade cooperativa constituída
por servidores públicos para prestar serviços a seus membros, observado o
disposto na alínea “c” do inciso viii do art. 102 da Lei nº 8.112/90, conforme
disposto em regulamento e observados os seguintes limites estabelecidos no
art. 92 da referida lei;
Licença para tratamento de saúde – nos termos do art. 202 da Lei nº 8.112/90,
relativo à seguridade social do servidor, é prevista a concessão desta licença, a
pedido ou de ofício, com base em perícia médica, sem prejuízo da remuneração.
A licença será concedida com base em perícia oficial, que pode ser dispensada
para licença para tratamento de saúde inferior a 15 dias, dentro de um ano.
Caso a licença exceda o prazo de 120 dias no período de 12 meses, a contar do
primeiro dia de afastamento, ela será concedida mediante avaliação por junta
médica oficial (artigos 203 e 204 da Lei nº 8.112/90, com redação dada pela Lei
nº 11.907/2009);
Licença à gestante, à adotante e licença-paternidade – igualmente como direito
relacionado à seguridade social do servidor, são previstas estas três licenças.
A licença gestante será concedida à servidora por 120 dias consecutivos. A
licença-paternidade tem por fundamento o nascimento ou a adoção de filhos,
e será de cinco dias consecutivos. A licença adoção será concedida à servidora
que adotar ou obtiver guarda judicial de criança com até um ano de idade, e
será de 90 dias. em qualquer desses três casos, a licença será remunerada. o
decreto nº 6.690/2008 institui o Programa de Prorrogação da Licença à Gestante
e à Adotante para as servidoras públicas federais, prorrogando as respectivas
licenças por 60 dias. Portanto, no caso da gestante, o afastamento ocorrerá por
180 dias, e na hipótese de adoção ou guarda judicial de criança com até um
ano de idade, por 150 dias;
Licença por acidente em serviço – nos termos do art. 211 da Lei nº 8.112/90,
o servidor acidentado em serviço será licenciado, com remuneração integral.
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servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
Configura acidente em serviço o dano físico ou mental sofrido pelo servidor que
se relacione, mediata ou imediatamente, com as atribuições do cargo exercido.
A lei equipara ao acidente em serviço o dano decorrente de agressão sofrida
e não provocada pelo servidor no exercício do cargo ou sofrido no percurso
da residência para o trabalho e vice-versa;
- Afastamento para servir a outro órgão ou entidade – o servidor poderá ser cedido
para ter exercício em outro órgão ou entidade dos poderes da união, dos estados,
ou do distrito Federal e dos municípios, para exercício de cargo em comissão ou
função de confiança ou em outros casos previstos em leis específicas;
- Afastamento para exercício de mandato eletivo – Caso o servidor seja investido
em mandato eletivo federal, estadual ou distrital, ele ficará afastado do cargo.
se for investido no mandato de prefeito, será afastado do cargo, sendo-lhe
facultado optar pela sua remuneração. se for investido no mandato de vereador,
havendo compatibilidade de horário, perceberá as vantagens de seu cargo, sem
prejuízo da remuneração do cargo eletivo; não havendo compatibilidade de
horário, será afastado do cargo, sendo-lhe facultado optar pela sua remuneração;
- Afastamento para estudo ou missão no exterior – este afastamento pressupõe
autorização do Presidente da república, presidente dos órgãos do Poder Legislativo e presidente do supremo tribunal Federal, e não excederá a quatro anos;
- Afastamento para participação em programa de pós-graduação stricto sensu
no País – o servidor poderá, no interesse da Administração, afastar-se do
exercício do cargo efetivo, com a respectiva remuneração, para participar em
programa de pós-graduação stricto sensu em instituição de ensino superior no
País, desde que a sua participação não possa ocorrer simultaneamente com o
exercício do cargo ou mediante compensação de horário.
Além das licenças e dos afastamentos acima indicados, a Lei nº 8.112/90 assegura
ao servidor o direito (concessão) de se ausentar do serviço caso se verifiquem determinadas situações especificadas em lei. Se o servidor doar sangue, se alistar como eleitor,
casar, ou ainda em razão do falecimento do cônjuge, companheiro, pais, madrasta ou
padrasto, filhos, enteados, menor sob guarda ou tutela e irmãos, ele poderá ausentar-se
do serviço pelos prazos especificados em lei, que variam de um dia, no caso de doação
de sangue, a oito dias consecutivos, nas hipóteses de casamento ou de falecimento das
pessoas indicadas em lei.
16.7 responsabilidade do servidor
16.7.1 responsabilidade civil
A Lei nº 8.112/90, em seu art. 121, dispõe que o servidor responde civil, penal e
administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.
A responsabilidade civil do servidor está vinculada ao dever de ressarcir prejuízos
causados à Administração Pública ou a terceiros em decorrência de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, provocados em decorrência do exercício das suas atribuições.15
15
no próximo capítulo, relativo à responsabilidade civil do estado, serão examinadas situações especiais em que
se discute, por exemplo, se o servidor estaria no exercício da função e se, em consequência, caberia falar em
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A lei prevê duas situações básicas em que o servidor poderá ser chamado a
ressarcir prejuízos. A primeira diz respeito aos danos causados diretamente à Administração Pública; a outra hipótese diz respeito a danos causados a terceiros no exercício
da função pública. Para cada uma dessas situações a lei apresenta solução específica.
na hipótese de se tratar de dano causado à Administração Pública, prevê o art. 46
da Lei nº 8.112/90 que o ressarcimento será efetuado mediante desconto no contracheque
do servidor, observadas as condições definidas em lei. Segundo o referido dispositivo,
as reposições e indenizações ao erário serão previamente comunicadas ao servidor,
podendo ser parceladas.16
no caso de se tratar de dano que o servidor tenha causado a terceiro, o art. 122,
§2º, da Lei nº 8.112/90, dispõe o servidor responderá “perante a Fazenda Pública, em ação
regressiva”. nesta hipótese, o terceiro prejudicado deverá propor ação contra a “pessoa de direito público ou de direito privado prestadora de serviço público”, conforme
determina a Constituição Federal, art. 37, §6º, e não contra o servidor. A Administração
Pública responderá objetivamente e deverá buscar o ressarcimento do dano contra o
servidor, que responde subjetivamente e por meio de ação regressiva.
A lei admite, portanto, a possibilidade de desconto em folha na eventualidade
de o dano ser causado diretamente à Administração Pública, devendo, assim dispõe a
lei, o servidor ser tão somente notificado previamente de que será realizado o desconto.
No Capítulo 5 deste trabalho, relativo aos atos administrativos, verificamos que
um dos atributos dos atos administrativos corresponde à prerrogativa da Administração
Pública de executar seus atos independentemente de qualquer intervenção ou autorização judicial, atributo que se denomina de auto-executoriedade. existem, conforme
examinamos naquela ocasião, limites a esse atributo, e um desses limites está relacionado
à preservação do patrimônio dos particulares ou dos próprios servidores públicos.
Ao julgar o mandado de segurança nº 24.182/dF, o stF decidiu que, não obstante
demonstrada a responsabilidade do servidor que deu causa a prejuízo à Câmara dos
deputados, não poderia este órgão, sem o consentimento do servidor, promover a indenização do prejuízo por meio de processo administrativo que resultaria em desconto
em contracheque, sendo necessária a propositura de ação judicial.17 Admitiu o julgado
do stF que somente as reposições possam ser objeto de desconto em folha. no caso
das indenizações, o desconto somente poderia ocorrer se houvesse o consentimento
do servidor.
em razão da jurisprudência do stF, o desconto em folha, quer se trate de prejuízo
causado a terceiro ou à Administração Pública, somente pode ser efetivado se for obtido
o consentimento do servidor. do contrário, o caminho adequado é a ação judicial.18
16
17
18
responsabilidade civil do estado. se policial militar, que não está a serviço e sem utilizar o fardamento, utiliza
arma da corporação e causa dano a terceiro, poder-se-ia falar em responsabilidade civil do estado? situações
como esta serão melhor examinadas no próximo capítulo.
As reposições dizem respeito aos pagamentos efetuados a maior pela Administração Pública em favor do servidor e que devem ser repostas ao erário. As indenizações, o próprio nome indica, dizem respeito aos danos que
o servidor tenha causado ao erário.
stF. ms nº 24.182-dF, Pleno. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 12.2.2004. DJ, 03 set. 2004
Cabe anotar, entretanto, que pode haver desconto em folha, mesmo sem a manifestação de vontade do servidor,
na hipótese de o tCu imputar, em regular processo de tomada de contas especial, débito ao servidor, eis que
o art. 28, i, da Lei nº 8.443/92 confere ao tCu o poder de determinar o desconto da dívida nos vencimentos ou
proventos do responsável (conforme decisão do stF no ms nº 24.544-dF).
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
Quer se trate de dano causado à Administração Pública ou a terceiro, a responsabilidade
civil do servidor será sempre subjetiva, fato que pressupõe a demonstração de sua culpa ou dolo.
Particularidade da responsabilidade civil do servidor está ligada à imprescritibilidade das respectivas ações de ressarcimento. nos termos do art. 37, §5º, da Constituição
Federal, “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para a prática de atos ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”
(grifos nossos).19
16.7.2 responsabilidade penal
o estudo acerca da responsabilidade penal dos servidores públicos não é matéria afeta ao direito Administrativo. este aspecto da responsabilidade dos servidores é
objeto de estudo pelo direito Penal e, eventualmente, pelo direito Processual Penal, e
abrange “os crimes e contravenções imputadas ao servidor, nessa qualidade”, conforme
dispõe o art. 123 da Lei nº 8.112/90.
A própria terminologia utilizada pelo direito Penal, que ainda se refere a funcionário público, encontra-se em total desuso no âmbito do direito administrativo. Conforme observa maria sylvia Zanella di Pietro, quando o Código Penal, em seu art. 327,
considera funcionário público “para efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou
sem remuneração, exerce cargo emprego ou função, inclusive em entidade paraestatal,
e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a
execução de atividade típica da Administração Pública, adota conceito mais amplo que
o de servidor público, mais se aproximando do conceito de agente público”.20
Não obstante a responsabilidade penal do servidor público não seja definida pelo
direito Administrativo, em alguns aspectos ela afeta o regime jurídico administrativo e
a atividade funcional do servidor. A Lei nº 8.112/90, por exemplo, prevê auxílio reclusão
a ser pago à família do servidor que cumpre pena restritiva de liberdade.21
deve ser ainda considerada a possibilidade de que a condenação do servidor
possa importar na aplicação da pena de perda do cargo, conforme dispõe o art. 92, i,
do Código Penal.22 na eventualidade de ser aplicada essa pena, pouco importa se o
crime cometido pelo servidor se enquadra em alguma categoria de infração funcional.
o servidor perderá o cargo por força do trânsito em julgado da sentença criminal, independentemente da instauração de processo administrativo. Há outras hipóteses, todavia,
19
20
21
22
trecho de ementa de decisão do stJ: “1. o ministério Público é parte legítima para propor Ação Civil Pública visando resguardar a integridade do patrimônio público (sociedade de economia mista) atingido por contratos de
efeitos financeiros firmados sem licitação. Precedentes. (...) 5. Adequação de Ação Civil Pública para resguardar
o patrimônio público, sem afastamento da ação popular. objetivos diferentes. 6. É imprescritível a Ação Civil
Pública visando a recomposição do patrimônio público (art. 37, §5º, CF/88)” (resp nº 403.153-sP, 1ª turma. rel.
min. José delgado. Julg. 9.9.2003. DJ, 20 out. 2003).
di Pietro. Direito administrativo, p. 497.
A Lei nº 8.112/90, em seu art. 222, dispõe nos seguintes termos:
“Art. 229. À família do servidor ativo é devido o auxílio-reclusão, nos seguintes valores:
i - dois terços da remuneração, quando afastado por motivo de prisão, em flagrante ou preventiva, determinada
pela autoridade competente, enquanto perdurar a prisão;
ii - metade da remuneração, durante o afastamento, em virtude de condenação, por sentença definitiva, a pena
que não determine a perda de cargo”.
nos termos do mencionado art. 92, i, do Código Penal, poderá ser aplicada a pena de perda de cargo quando:
“a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados
com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.”
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
em que havendo coincidência entre o tipo penal e a infração administrativa, poderá
haver a comunicação de instâncias, no sentido de que a absolvição ou a condenação
no processo criminal poderá resultar na vinculação da instância administrativa. este
aspecto do estudo da responsabilidade do servidor, em que se examina a vinculação
de instâncias, será realizado adiante.
16.7.3 responsabilidade administrativa
A responsabilidade administrativa do servidor público está delimitada por alguns
aspectos definidos pelo Direito Administrativo. Afirmar que o servidor responde administrativamente pressupõe, em primeiro lugar, que ele tenha cometido infração funcional.
Cabe ao regime legal a que o servidor se submete definir os deveres e as obrigações
do servidor cuja violação importa em cometimento de infração funcional. A responsabilidade administrativa do servidor está, desse modo, necessariamente relacionada à
violação de norma de direito Administrativo.
em segundo lugar, a responsabilização administrativa do servidor pressupõe que
sua apuração seja realizada em processo administrativo e que a sanção seja aplicada
por autoridade administrativa.
A prática de ato de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) e sua apuração,
por exemplo, não obstante a terminologia adotada possa levar à conclusão de que se
trata de modalidade de responsabilidade administrativa, inserem-se no âmbito da
responsabilidade civil do servidor. ela será apurada por meio de processo civil, e a
aplicação das sanções decorrentes da prática dos atos definidos pela lei como atos de
improbidade será feita por autoridade judicial. As sanções decorrentes da prática de ato
de improbidade são de ordem variada e alcançam inclusive os direitos políticos dos
agentes públicos, que poderão ser suspensos. não obstante a variedade das sanções, a
ação de improbidade é uma ação civil.
A responsabilidade administrativa dos servidores públicos federais decorre da violação dos deveres funcionais ou do cometimento das infrações previstas na Lei nº 8.112/90.
A apuração dessas infrações será feita pela própria Administração Pública por meio
de processo administrativo disciplinar do qual poderá resultar a aplicação das sanções
previstas no art. 127 da Lei nº 8.112/90, a saber: advertência, suspensão, demissão,
destituição e cassação.
examinaremos, mais adiante, o processo disciplinar, ocasião em que trataremos,
com mais detalhes, da responsabilidade administrativa do servidor.
16.7.4 Comunicação de instâncias
o art. 125 da Lei nº 8.112/90 dispõe que “as sanções civis, penais e administrativas
poderão cumular-se, sendo independentes entre si”.
É possível que ato praticado pelo servidor público dê ensejo à aplicação de sanções civis, penais e administrativas. tomemos como exemplo situação em que servidor
público dolosamente fere colega de trabalho utilizando o teclado do seu computador.
o prejuízo causado pela destruição do equipamento enseja, em primeiro lugar,
a responsabilidade civil do servidor, que será obrigado a ressarcir o dano causado. A
ofensa física em serviço, nos termos do art. 132, vii, da Lei nº 8.112/90, enseja a sua
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
responsabilidade administrativa e deve importar na aplicação da pena de demissão. e se
o golpe tiver causado lesões corporais ao colega, o servidor poderá responder criminalmente. É possível que haja condenação em alguma instância e absolvição em outras. É
possível que a responsabilidade penal do servidor seja afastada e, não obstante, seja-lhe
administrativamente aplicada a pena de demissão, além de ele ser responsabilizado
civilmente. examina-se, aqui, a denominada comunicação de instâncias.
Quando se discute a comunicação de instâncias, o parâmetro é sempre a instância penal. ou seja, se determinado fato é descrito, em legislação administrativa, como
infração funcional e, em legislação penal, como tipo criminal, busca-se saber quais os
reflexos que a decisão proferida no processo penal irá produzir em relação às instâncias
administrativa e civil. este é o ponto central da discussão da comunicação de instâncias.
dispõe o art. 125, in fine, que as sanções penal, civil e administrativa são independentes entre si. Fixa a lei, portanto, a regra de que a condenação ou a absolvição em uma
instância não deve importar em absolvição ou em condenação nas outras instâncias.
Fixa-se, ademais, a regra de que as sanções decorrentes das diferentes instâncias, ainda
que relacionadas à prática de um só ato, podem ser acumuladas sem que isto caracterize
dupla ou tripla punição. A regra, portanto, é a da independência de instâncias.
o art. 126 da Lei nº 8.112/90 dispõe, todavia, que “a responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência
do fato ou sua autoria”.
nestas duas hipóteses (de absolvição criminal que negue a existência do fato ou
de absolvição criminal que negue a autoria do crime), as instâncias administrativa e
civil ficarão vinculadas. A vinculação ocorre no sentido de que o servidor, absolvido no
processo penal por esses fundamentos, não mais poderá, pelo mesmo fato, ser responsabilizado administrativa ou civilmente. se, no exemplo indicado, o servidor acusado
de lesões corporais contra o colega demonstra que no dia da agressão se encontrava
enfermo, internado em hospital, ou seja, se o servidor demonstra no processo penal
que, não obstante a agressão tenha sido praticada, não foi ele quem a praticou, ele
será absolvido no processo criminal por negativa de autoria. esta decisão proferida
na instância criminal vincula todas as outras. Assim, se existe processo disciplinar em
curso para responsabilizar administrativamente o servidor, este processo deverá ser
necessariamente arquivado, e se o servidor já tiver sido punido administrativamente,
deverá ser anulada a sanção aplicada.
se a decisão proferida na instância criminal for pela absolvição do servidor por
falta de provas, ou por aspectos relacionados à culpabilidade do agente, por exemplo, a
Administração Pública poderá ainda assim vir a responsabilizá-lo administrativamente
e civilmente.
em relação à absolvição criminal, deve ser observado o que dispõe a súmula
stF nº 18: “Pela falta residual não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é
admissível a punição administrativa do servidor” (grifos nossos).
em razão do exposto, mesmo que a absolvição criminal decorra de uma das
duas hipóteses indicadas pelo art. 126 da Lei nº 8.112/90 — hipóteses repetidas pelo
art. 935 do Código Civil —, se houver a figura do resíduo, ou seja, se houver outros
fatos não compreendidos na apreciação realizada pela instância criminal, o servidor
poderá ser responsabilizado administrativamente caso a prática desse “resíduo” constitua infração funcional. exemplo: em razão de acirrada discussão entre servidor e seu
chefe, instaurou-se processo criminal em que se acusava o servidor de ter cometido
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o crime de lesão corporal contra o chefe. no processo penal, o servidor foi absolvido
sob o fundamento de negativa de fato. ou seja, demonstrou-se na instância penal que
não houve lesão corporal. esta decisão proferida no processo penal vincula a instância
administrativa e impede que por esse fundamento o servidor seja responsabilizado
administrativamente. A decisão proferida na instância criminal não impede, todavia,
que em decorrência da mesma situação — relativa à acirrada discussão entre o servidor
e seu chefe — o servidor seja acusado em processo administrativo disciplinar de ter
cometido insubordinação grave em serviço (Lei nº 8.112/90, art. 132, v), e que venha
a ser demitido. A insubordinação caracterizaria a falta residual de que trata a súmula
stF nº 18, porque não foi objeto de apreciação no processo penal.
A redação do art. 935 do Código Civil — que também trata da comunicação de
instâncias — é mais ampla que aquela utilizada pelo art. 126 da Lei nº 8.112/90. nesta,
é afirmado que a absolvição na instância penal “que negue a existência do fato ou sua
autoria” deve importar em absolvição na instância administrativa. o Código Civil,
ao contrário, dispõe que “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se
podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor,
quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal” (grifos nossos). ou seja, nos
termos deste dispositivo do Código Civil, não apenas a decisão que absolva, mas igualmente a que condene criminalmente o servidor — hipóteses em que não mais se pode
discutir sobre “a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor” — vinculam as
demais instâncias. Assim, a condenação criminal — desde que os mesmos fatos estejam
descritos em lei como infrações administrativas ou que tenham causado prejuízo à
Administração Pública — deve importar em condenação nas instâncias administrativa
e civil, respectivamente.
o Código de Processo Penal, art. 65, dispõe que “faz coisa julgada no cível a
sentença que reconhece ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima
defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. de
acordo com essa regra, se determinado servidor é absolvido em processo criminal sob
um desses fundamentos, não cabe mais discuti-lo nas demais instâncias. diversamente
da decisão criminal absolutória fundamentada em negativa de fato ou de autoria, que
impede que nas demais instâncias ocorra condenação do servidor, a decisão proferida
no processo criminal em que se decide que o servidor agiu em estado de necessidade,
por exemplo, não impede que na instância civil, por exemplo, o servidor tenha que
ressarcir os prejuízos causados à Administração Pública ou a terceiros. isso, aliás, é
expressamente dito pelo art. 66 do mesmo Código de Processo Penal quando dispõe que,
“não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta
quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”.
em resumo, tendo sempre a instância criminal como parâmetro, e a premissa de
que o fato examinado no processo criminal encontra-se descrito como infração funcional
ou que tenha causado prejuízo ao erário ou a terceiro, podemos apresentar o seguinte
quadro comparativo:
- se tiver havido condenação na instância criminal, o servidor será condenado
nas instâncias administrativa e civil (CC, art. 935);
- se tiver havido absolvição na instância criminal sob o fundamento de negativa
de fato ou de autoria, o servidor não poderá, pelos mesmos fatos, ser responsabilizado nas instâncias administrativa e civil;
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servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
- se tiver havido absolvição criminal sob qualquer outro fundamento — excetuados
os dois acima indicados (negativa de fato ou de autoria) —, as instâncias administrativa e civil não sofrerão qualquer vinculação e poderão decidir de forma
autônoma.
Cabe, finalmente, reiterar que a perda do cargo público pode decorrer diretamente da condenação penal sem que esta mantenha qualquer vinculação com a instância
administrativa. se servidor público é condenado a dez anos de reclusão pela prática do
crime de homicídio, por exemplo, o juiz pode aplicar-lhe, nos termos do art. 92, i, “b”,
do Código Penal, a pena de perda do cargo. se o homicídio cometido pelo servidor —
que constitui atentado contra o mais importante bem jurídico, a vida — não mantiver
qualquer vínculo com o exercício da atividade funcional do servidor, não há que se
falar em comunicação de instâncias. A perda do cargo, no caso, pode ser determinada
pelo próprio juiz na sentença penal condenatória.23
16.8 regime disciplinar e processo administrativo disciplinar
16.8.1 regime disciplinar
A Constituição Federal, em seu art. 5º, LV, fixa o princípio do devido processo
legal. nos termos deste direito fundamental, “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
em cumprimento à disposição constitucional, a Lei nº 8.112/90 cuida da responsabilidade administrativa e trata do regime disciplinar e respectivo processo administrativo disciplinar dos servidores públicos federais.
A legislação brasileira, ao disciplinar a responsabilidade administrativa do
servidor público, define os deveres e as proibições a ele aplicáveis, além de indicar a
sistemática para a apuração e consequente sancionamento.
Caracteriza-se o regime disciplinar dos servidores brasileiros, em primeiro lugar,
pela adoção de sistemática em que os deveres e as proibições dos servidores, ou seja,
em que as denominadas infrações funcionais são definidas em lei administrativa e, em
segundo lugar, pela circunstância de que a apuração e o sancionamento são efetuados
pela própria Administração Pública.
Ao regular o processo administrativo disciplinar, são apontados os mecanismos
por meio dos quais as autoridades administrativas apuram (inquérito) o cometimento
das infrações e aplicam (julgamento) as respectivas sanções.
A expressão processo administrativo disciplinar, normalmente identificada pela
sigla PAd, encontra-se envolta em certa dúvida.
em algumas situações, a lei a ela se refere como gênero, do qual a sindicância e o
processo disciplinar são espécies. em outras hipóteses, de que seria exemplo o art. 143, a lei
usa a expressão em sentido restrito, compreendendo categoria específica do processo.
de qualquer modo, a falta de técnica de redação da lei é evidente.
23
Convém ressaltar que a perda do cargo não é um efeito automático da condenação. mesmo quando preenchidos
os pressupostos definidos em lei para a perda do cargo, é imprescindível que a sentença, de forma motivada,
declare expressamente esse efeito.
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Curso de direito AdministrAtivo
No art. 148 da Lei nº 8.112/90, por exemplo, é definido o processo disciplinar
como “o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração
praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do
cargo em que se encontre investido”. Uma vez mais, a lei se equivoca. Essa definição
não se aplica apenas ao processo disciplinar (espécie), mas ao gênero, processo administrativo disciplinar, e alcança a sindicância.
temos, em resumo, que a expressão processo administrativo disciplinar é gênero
e compreende duas modalidades básicas: a sindicância e o processo disciplinar. essas
modalidades serão examinadas adiante.
16.8.2 Penalidades disciplinares: atividade vinculada
o exame das penalidades disciplinares é o ponto de partida para a compreensão
do regime disciplinar dos servidores públicos. essas penalidades são indicadas pelo
art. 127 da Lei nº 8.112/90, a saber:
i - Advertência;
ii - suspensão;
iii - demissão;
iv - Cassação de aposentadoria ou disponibilidade;
v - destituição de cargo em comissão;
vi - destituição de função comissionada.
de acordo com a sistemática adotada pela lei, a advertência e a suspensão de até
30 dias são consideradas sanções leves; a suspensão de mais de 30 dias, a demissão,
a cassação e a destituição são reputadas sanções graves. essa divisão, conforme será
visto em seguida, será de importância fundamental para a indicação do procedimento
disciplinar a ser adotado.
Para a escolha ou aplicação da penalidade, o art. 128 da Lei nº 8.112/90 dispõe
que “serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que
dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e
os antecedentes funcionais”.
essa referência genérica contida na lei levou a grande maioria da doutrina pátria
a afirmar que haveria discricionariedade na aplicação das sanções disciplinares, e que
essa discricionariedade residiria na gradação da aplicação das penalidades disciplinares. Essa afirmação é corrente na doutrina e na jurisprudência. Ela, no entanto, máxima
vênia, não corresponde à verdade.
A Lei nº 8.112/90 indica, de forma precisa, a sanção a ser aplicada em razão da
infração cometida.
A pena de advertência, nos termos do art. 129, “será aplicada por escrito, nos casos
de violação de proibição constante do art. 117, incisos i a viii e XiX, e de inobservância
de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique
imposição de penalidade mais grave”.
A suspensão, conforme dispõe o art. 130, “será aplicada em caso de reincidência das
faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifiquem
infração sujeita a penalidade de demissão, não podendo exceder de 90 (noventa) dias”.
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A pena de demissão somente é aplicada para o cometimento das infrações mais
graves, hipóteses previstas no art. 132 da Lei nº 8.112/90.24 A pena de cassação, por sua
vez, está diretamente ligada à de demissão. nos termos do art. 134, “será cassada a
aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade,
falta punível com a demissão”. A destituição de cargo em comissão igualmente mantém
vínculo com a demissão. nos termos do art. 135 da Lei nº 8.112/90, a destituição de cargo
“em comissão exercido por não ocupante de cargo efetivo será aplicada nos casos de
infração sujeita às penalidades de suspensão e de demissão”.25
do exame destas três últimas sanções, pode-se concluir que a demissão é pena que
somente pode ser aplicada aos servidores ocupantes de cargos efetivos que cometam
qualquer das infrações previstas no art. 132. se a infração punível com demissão tiver
sido cometida, na atividade, por servidor que se encontre na inatividade (aposentado ou
em disponibilidade), ele terá sua aposentadoria ou disponibilidade cassada. A destituição é
pena aplicável ao comissionado sem vínculo efetivo que tenha praticado infração punível
com demissão ou com suspensão. em resumo, o servidor efetivo pode ser demitido; o
inativo pode ter sua aposentadoria ou disponibilidade cassadas; e o comissionado sem
vínculo efetivo ser destituído.26
A margem de discricionariedade na aplicação das sanções disciplinares é mínima
e somente se verifica em duas situações, ambas relacionadas à pena de suspensão.
A primeira hipótese de discricionariedade na aplicação de sanções disciplinares
diz respeito à gradação da pena de suspensão, que nos termos da lei pode ser de um a
90 dias. A partir do juízo de ponderação, e tendo como parâmetro os elementos indicados
pelo art. 128 (“natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem
para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes
funcionais”), poderá ser aplicada suspensão de um dia, de dez dias, de trinta dias etc.
24
25
26
o art. 132 da Lei nº 8.112/90 prevê as hipóteses em que deve ser aplicada a pena de demissão. são elas:
“i - crime contra a administração pública;
ii - abandono de cargo;
iii - inassiduidade habitual;
iv - improbidade administrativa;
v - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;
vi - insubordinação grave em serviço;
vii - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;
viii - aplicação irregular de dinheiros públicos;
iX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;
X - lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;
Xi - corrupção;
Xii - acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;
Xiii - transgressão dos incisos iX a Xvi do art. 117.”
nos termos do art. 137 da Lei nº 8.112/90, “a demissão ou a destituição de cargo em comissão, por infringência
do art. 117, incisos iX e Xi, incompatibiliza o ex-servidor para nova investidura em cargo público federal, pelo
prazo de 5 (cinco) anos”. o parágrafo único deste mesmo art. 137 acrescenta que “não poderá retornar ao serviço
público federal o servidor que for demitido ou destituído do cargo em comissão por infringência do art. 132,
incisos i, iv, viii, X e Xi”.
A destituição do comissionado não se confunde, portanto, com a exoneração. esta última decorre do exercício
do poder discricionário da autoridade competente que pode a qualquer tempo afastar o ocupante do cargo em
comissão. A exoneração independe, portanto, de qualquer processo disciplinar. A destituição é pena aplicável
ao comissionado que tenha cometido infração punível com demissão ou com suspensão. o comissionado não
pode ser demitido ou suspenso. se cometer qualquer das infrações puníveis com qualquer dessas penas, deverá
ser instaurado do devido processo disciplinar com vista à aplicação da pena de destituição. nos termos do
parágrafo único do art. 135, se o servidor comissionado que tiver cometido infração punível com suspensão ou
com demissão tiver sido exonerado, ao final do processo disciplinar a exoneração será convertida em destituição
de cargo em comissão.
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A outra situação em que o juízo de discricionariedade interfere na aplicação das
sanções está relacionada à possibilidade de a pena de suspensão ser convertida em multa.
nos termos do art. 130, §2º, “quando houver conveniência para o serviço, a penalidade
de suspensão poderá ser convertida em multa, na base de 50% (cinqüenta por cento)
por dia de vencimento ou remuneração, ficando o servidor obrigado a permanecer em
serviço”. ou seja, a decisão de converter a suspensão em multa cabe discricionariamente
à Administração Pública, e não ao servidor punido.
recusamos, portanto, a tese — amplamente aceita — de que a aplicação de sanções
disciplinares aos servidores públicos constitui atividade discricionária.27 ressalvadas
as duas situações acima indicadas (relacionadas à gradação da pena de suspensão e
à conversão da suspensão em multa), a lei indica, em cada caso, a pena disciplinar
cabível. não é possível, por exemplo, diante do cometimento de qualquer das infrações
previstas no art. 132 (abandono de cargo, improbidade administrativa, crime contra
a Administração Pública etc.), a Administração Pública deixar de aplicar ao servidor
efetivo a pena de demissão para aplicar suspensão ou advertência. nas hipóteses em
que a lei indica a aplicação da pena de advertência (art. 129), não pode ser aplicada
suspensão ou demissão; e não podem igualmente ser aplicadas as penas de advertência
ou de demissão se para a infração a lei indica a pena de suspensão (art. 130).
A técnica utilizada pela legislação administrativa para regular o regime disciplinar
dos servidores públicos não se confunde com aquela utilizada pelo direito Penal. neste,
para cada conduta tipificada, a lei indica a pena aplicável. No Direito Administrativo, ao
contrário, a lei descreve de forma genérica as infrações funcionais — admitindo, inclusive, que regulamento possa indicar deveres cuja violação deve importar na aplicação
da pena de advertência — e, em dispositivos diversos, indica as sanções aplicáveis. A
técnica do direito Administrativo se diferencia daquela utilizada pelo direito Penal,
mas nem por isso se pode afirmar que haja discricionariedade ampla para aplicar as
sanções disciplinares.
Ao contrário, trata-se de atividade regrada ou vinculada: se a autoridade competente tiver conhecimento do cometimento de infração, deve ser instaurado processo
administrativo disciplinar; comprovado o cometimento da infração, deve ser aplicada
a sanção; e em relação à sanção a ser aplicada, se advertência, suspensão, demissão,
destituição ou cassação, a lei indica aquela a ser aplicada. se em cada etapa desse
processo a Administração Pública atua de forma vinculada, como se pode falar em
discricionariedade na aplicação de sanção disciplinar?
em conclusão, e sem sombra de dúvida, a aplicação das sanções disciplinares
previstas na Lei nº 8.112/90 constitui atividade administrativa vinculada.
Como efeito acessório da aplicação das penas de demissão ou de destituição de
cargo em comissão, “nos casos dos incisos iv, viii, X e Xi do art. 132”, o art. 136 impõe
27
Há decisão do STJ nesse sentido, conforme se verifica no RMS nº 11.285-TO, cuja ementa transcrevemos em
parte:
“Administrativo. Policial militar. demissão. Processo administrativo disciplinar. discricionariedade da administração. Falta grave. – Havendo previsão legal para a aplicação da sanção disciplinar pelo Comandante-Geral
da Polícia militar, nos termos dispostos no decreto estadual nº 524/97, não há que se falar em agressão a direito
líquido e certo do impetrante a permanecer no cargo, após o cometimento de falta grave punida com demissão.
– sendo a demissão ato discricionário do Comandante-Geral da Policia militar do estado do tocantins, não se
vincula à manifestação do Conselho de disciplina daquele órgão.” (rms nº 11.285-to, 6ª turma. rel. min. Paulo
medina. Julg. 6.4.2004. DJ, 17 maio 2004)
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
a “indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação penal
cabível”. A indisponibilidade de bens é automática e independe de qualquer outra
providência. A sua efetividade, todavia, pode requerer a adoção de outras medidas, de
que seriam exemplos as comunicações a serem expedidas a cartórios de registro imobiliário, ao departamento de trânsito, ao Banco Central etc. o ressarcimento ao erário,
todavia, depende da instauração de outras providências de natureza administrativa,
de que seria exemplo a instauração de processo de tomada de contas especial, ou de
processo judicial.
16.8.3 Autoridade competente para a aplicação das sanções disciplinares
nos termos do art. 141 da Lei nº 8.112/90:
- As penas de demissão e de cassação de aposentadoria ou disponibilidade
serão aplicadas pelo Presidente da república, pelos presidentes das Casas do
Poder Legislativo e dos tribunais federais e pelo Procurador-Geral da república, quando se tratar de servidor vinculado ao respectivo poder, órgão, ou
entidade. impende destacar que, no âmbito do Poder executivo, o decreto
nº 3.035, de 27.4.1999, delega aos ministros de estado competência para as
sanções previstas neste tópico;
- A pena de suspensão superior a 30 dias será aplicada pelas autoridades administrativas de hierarquia imediatamente inferior àquelas acima indicadas;
- As penas de advertência ou de suspensão de até 30 dias serão aplicadas pelo
chefe da repartição e outras autoridades na forma dos respectivos regimentos
ou regulamentos; e
- A pena de destituição de cargo em comissão será aplicada pela autoridade que
houver feito a nomeação para o respectivo cargo.
16.8.4 Prescrição das sanções disciplinares
A indicação da sanção disciplinar é relevante, conforme já verificado, porque
indica a modalidade de procedimento disciplinar a ser adotada, bem como a autoridade
competente para sua aplicação. A escolha da sanção disciplinar afeta igualmente o
prazo prescricional da infração. nos termos do art. 142, a ação disciplinar prescreverá:
i - em cinco anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de
aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
ii - em dois anos, quanto à suspensão;
iii - em 180 dias, quanto à advertência.
Acrescenta a lei que o prazo de prescrição das sanções disciplinares começa a
correr da data em que o fato se tornou conhecido, e que a abertura de sindicância ou a
instauração de processo disciplinar interrompe a prescrição, até a decisão final proferida
por autoridade competente.28
Caso o fato definido como infração disciplinar constitua crime, os prazos prescricionais aplicáveis são os previstos na legislação penal, e não aqueles acima indicados.
28
“Até a decisão final proferida por autoridade competente” ou após o prazo de 140 dias — prazo máximo para
conclusão e julgamento do PAD a partir de sua instauração (art. 152 c/c art. 167) —, findo o qual o prazo prescricional recomeça a correr por inteiro, segundo a regra estabelecida no art. 142, §4º, da legislação. Cf. stJ. ms
nº 17.456-dF, rel. min. mauro Campbell marques. Julg. 14.11.2012. DJe, 20 nov. 2012.
809
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
810
Convém, contudo, esclarecer que a jurisprudência dominante nas cortes superiores é
no sentido de que somente se aplica o prazo prescricional previsto na legislação penal
quando os fatos forem apurados na esfera criminal.29
16.8.5 Processo administrativo disciplinar (PAd)
16.8.5.1 modalidades
o processo administrativo disciplinar (PAd), conforme já mencionado, é gênero
e compreende duas modalidades básicas:
- sindicância; e
- Processo disciplinar.
A sindicância é considerada modalidade de procedimento sumário em razão do
prazo previsto para sua conclusão, de 30 dias, prorrogável uma vez por igual período.
em relação a esta modalidade de PAd, a lei (art. 145) se resume a indicar, além do
prazo, que dela poderá resultar:
i - Arquivamento do processo;
ii - Aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias;
iii - instauração de processo disciplinar.
vê-se nítida distinção entre a sindicância e o processo disciplinar (espécie). A sindicância é indicada para a apuração de infrações leves, das quais pode resultar sanção
de advertência ou de suspensão de até 30 dias. Para a aplicação de sanção mais grave
(suspensão superior a 30 dias, demissão, cassação ou destituição), deve ser instaurado o
processo disciplinar. Caso tenha sido instaurada sindicância e seja constatado o possível
cometimento de infração punível com sanção mais grave, a conclusão da sindicância
deve ser pela instauração do processo disciplinar.
são admitidas duas espécies de sindicância. A primeira é descrita pelo art. 145 da Lei
nº 8.112/90 e pode resultar na aplicação das sanções mencionadas. trata-se da sindicânciadisciplinar. A outra, não mencionada expressamente pela lei, tem natureza inquisitorial.
esta segunda modalidade de sindicância — denominada de sindicância-inquisitorial — pode
ser instaurada simplesmente para apurar a ocorrência de fatos específicos, sem que dela
possa resultar a aplicação de qualquer sanção. A distinção entre uma e outra reside na
necessidade de serem assegurados contraditório e ampla defesa.30 Para a aplicação das
sanções previstas no art. 145, ii (advertência e suspensão de até 30 dias), a sindicância
deve necessariamente assegurar ao servidor o contraditório e a ampla defesa.
29
30
nesse sentido, os seguintes julgados do stJ: rms nº 19.887-sP, 5ª turma. rel. min. Arnaldo esteves de Lima.
Julg. 20.11.2006. DJ, 11 dez. 2006; rms nº 18.551-sP, 5ª turma. rel. min. Felix Fischer. Julg. 4.10.2005. DJ, 14 nov.
2005; rms nº 13.134-BA, 6ª turma. rel. min. Paulo medina. Julg. 1º.6.2004. DJ, 1º jul. 2004; ms nº 12.533-dF, 3ª
seção. rel. min. Arnaldo esteves Lima. Julg. 14.11.2007. DJ, 1º fev. 2008; e ms nº 12.666-dF, 3ª seção. rel. min.
maria thereza de Assis moura. Julg. 23.2.2011. DJe, 10 mar. 2011. no stF: rms nº 23.436-dF, 2ª turma. rel.
min. marco Aurélio. Julg. 24.8.1999. DJ, 15 out. 1999.
stJ: “2. A sindicância, que visa apurar a ocorrência de infrações administrativas, sem estar dirigida, desde logo,
à aplicação de sanção, prescinde da observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, por se tratar
de procedimento inquisitorial, prévio à acusação e anterior ao processo administrativo disciplinar, ainda sem a
presença obrigatória de acusados” (ms nº 10.827-dF, 3ª seção. rel. min. Hélio Quaglia Barbosa. Julg. 14.12.2005.
DJ, 06 fev. 2006).
CAPítuLo 16
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Para a apuração de qualquer infração funcional, é comum ser instaurada sindicância
sem que seja especificado, a priori, se se trata da inquisitorial ou da disciplinar. instaura-se
esse procedimento tão somente para verificar a ocorrência de ilícitos. Se na fase de levantamento dos fatos, é apurada a ocorrência de infração punível com as sanções indicadas
no mencionado art. 145, ii (advertência ou suspensão de até 30 dias), abre-se ao indiciado,
no mesmo processo, a oportunidade para o exercício da ampla defesa e do contraditório, de modo a permitir a aplicação das sanções especificadas. Tem-se, nessa hipótese, a
sindicância-disciplinar.
Se na fase de levantamento dos fatos for verificada, ao contrário, a ocorrência de
infração mais grave, punível com sanção de suspensão superior a 30 dias, demissão,
destituição ou cassação, a conclusão da sindicância deve ser pela instauração do processo
disciplinar (art. 145, iii). nesta última hipótese, a sindicância terá natureza inquisitorial e
não haverá necessidade de ser assegurado contraditório ou ampla defesa aos servidores
porque dela não resultará a aplicação de qualquer sanção. o contraditório e a ampla
defesa serão assegurados ao longo do processo disciplinar.
Já decidiu o stJ que a sindicância, como procedimento preparatório e prévio à
abertura do PAD, é dispensável quando houver elementos suficientes para a instauração do referido processo. Assim, não incorre em nulidade a instauração de PAd com
o fim de apurar novas infrações além daquelas objeto de exame inicial na sindicância
prévia. Aquela colenda Corte considera, também, que para a instauração de PAd, não
é obrigatória a indicação de todos os ilícitos imputados ao servidor, pois, somente após
a instrução, momento no qual a Administração coligirá todos os elementos probatórios
aptos a comprovar possível conduta delitiva do investigado, a comissão processante
será capaz de produzir um relato circunstanciado dos ilícitos supostamente praticados.31
na terceira situação possível, a sindicância pode concluir pela não ocorrência
de qualquer ilícito, hipótese em que será determinado seu arquivamento (art. 145, i).
A rigor, nenhuma sanção, por mais leve que seja, pode ser aplicada sem que
tenha sido assegurado o devido processo legal. desse modo, não se coadunam com o
texto constitucional vigente procedimentos como o denominado de “verdade sabida”,
previsto no estatuto dos Funcionários Públicos do estado de são Paulo. Por meio deste
procedimento poderiam ser aplicadas penas leves caso as infrações tivessem sido cometidas na presença da autoridade competente para o julgamento. Ainda que sumário e
que as sanções a serem aplicadas sejam leves, qualquer procedimento disciplinar requer
contraditório e ampla defesa.
na sistemática da Lei nº 8.112/90, a sindicância (procedimento sumário) é indicada
para a apuração das infrações leves, puníveis com advertência ou suspensão de até 30
dias, e o processo disciplinar para a apuração das sanções graves puníveis com sanções
mais rigorosas, como suspensão de mais de 30 dias, demissão, destituição ou cassação.
existe, todavia, exceção à regra acima indicada, de que a aplicação de pena mais
grave pressupõe a instauração de processo disciplinar. nos termos do art. 133 da Lei
nº 8.112/90, “detectada a qualquer tempo a acumulação ilegal de cargos, empregos
ou funções públicas, a autoridade a que se refere o art. 143 notificará o servidor, por
intermédio de sua chefia imediata, para apresentar opção no prazo improrrogável de
dez dias, contados da data da ciência e, na hipótese de omissão, adotará procedimento
31
ms nº 12.935-dF, 3ª seção. rel. min. maria thereza de Assis moura. Julg. 24.11.2010. DJe, 10 dez. 2010.
811
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
812
sumário para a sua apuração e regularização imediata, cujo processo administrativo
disciplinar se desenvolverá nas seguintes fases (...)” (grifos nossos).32
o procedimento sumário previsto no art. 133 para a apuração das acumulações ilícitas
é igualmente indicado, nos termos do art. 140, para as hipóteses de abandono de cargo e
inassiduidade habitual.33 Cuida-se de situação especial porque se utiliza de procedimento
sumário para a apuração de infrações que podem resultar, nas três hipóteses, na aplicação da pena de demissão. trata-se de procedimento próprio, previsto nos parágrafos
do mencionado art. 133 da Lei nº 8.112/90, e que não se confunde com a sindicância ou
com o processo disciplinar (espécie).
A razão para a adoção desse procedimento sumário para a apuração dessas três
infrações está relacionada à facilidade com que os fatos a serem investigados podem
ser comprovados ou afastados. na hipótese de acumulação de cargos, por exemplo,
se o órgão que toma conhecimento da ilegalidade instaura o procedimento sumário,
para confirmar ou afastar a suspeita de acumulação, basta que envie ofício ao outro
órgão — em que ocorreria a acumulação — solicitando a confirmação de que o servidor
ocupa cargo não acumulável. em outras palavras, a prova da materialidade quanto à
ilegalidade, nessas três situações, é simples, e não justificaria a instauração do processo
disciplinar, não obstante a pena a ser aplicada seja grave.
excetuadas as três situações previstas nos mencionados artigos 133 e 140, a
aplicação de qualquer penalidade grave somente poderá ser feita por meio do devido
processo disciplinar, cujas etapas são a seguir examinadas.
16.8.5.2 Processo disciplinar
nos termos do art. 143 da Lei nº 8.112/90, a autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público “é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar”,34 assegurada ao acusado
ampla defesa.
tem sido prática comum no serviço público federal a instauração de sindicância
preliminar ao processo disciplinar, ainda que as infrações a serem apuradas justifiquem
a instauração direta deste último. nesta hipótese, instaura-se a sindicância-inquisitorial
para melhor esclarecer os fatos, identificar os servidores a serem investigados e, em suas
conclusões, ser apontada a eventual necessidade de instauração do processo disciplinar.35
32
33
34
35
A possibilidade de opção admitida pelo mencionado art. 133 da Lei nº 8.112/90 constitui verdadeiro incentivo
à acumulação ilegal de cargos. Se for verificada essa acumulação, basta que o servidor em situação ilegal faça a
opção no prazo legal para que seja arquivado o procedimento para apuração e aplicação de sanção.
A Lei nº 8.112/90, acerca do abandono de cargo e da inassiduidade habitual, dispõe nos seguintes termos:
“Art. 138. Configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias
consecutivos.
Art. 139. Entende-se por inassiduidade habitual a falta ao serviço, sem causa justificada, por sessenta dias, interpoladamente, durante o período de doze meses.”
nesta hipótese, a lei usa a expressão genérica — processo administrativo disciplinar — quando deveria ter utilizado a expressão específica — processo disciplinar.
nos termos do art. 154, parágrafo único, da Lei nº 8.112/90, “na hipótese de o relatório da sindicância concluir
que a infração está capitulada como ilícito penal, a autoridade competente encaminhará cópia dos autos ao
ministério Público, independentemente da imediata instauração do processo disciplinar”.
CAPítuLo 16
servidores PúBLiCos FederAis: reGime JurídiCo-LeGAL (Lei nº 8.112/90)
não há, todavia, obrigação legal de que seja observada essa sistemática. É perfeitamente
legítimo, desde que haja elementos suficientemente claros em relação à infração e aos
servidores a serem investigados, que seja diretamente instaurado o processo disciplinar.
instaurado o processo disciplinar, o art. 147 prevê, como medida cautelar, o
afastamento preventivo do servidor. Nos termos da lei, “a fim de que o servidor não
venha a influir na apuração da irregularidade, a autoridade instauradora do processo
disciplinar poderá determinar o seu afastamento do exercício do cargo, pelo prazo
de até 60 (sessenta) dias, sem prejuízo da remuneração”, prazo prorrogável uma vez
igualmente por até 60 dias.
Prevê ainda a lei (art. 172) que “o servidor que responder a processo disciplinar
só poderá ser exonerado a pedido, ou aposentado voluntariamente, após a conclusão
do processo e o cumprimento da penalidade, acaso aplicada”.
o processo disciplinar será conduzido por comissão composta de três servidores
estáveis designados pela autoridade competente. em relação tão somente ao presidente
da comissão, a lei requer que seja “ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo
nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado”. não obstante
essas exigências relativas à escolaridade e ao nível hierárquico sejam apresentadas
apenas para o presidente da comissão, convém que todos os servidores a atendam. o
propósito dessa medida é evitar as tão inconvenientes situações a que se submetem
servidores obrigados a investigar seus superiores hierárquicos.
A lei (art. 151) divide o processo disciplinar nas seguintes fases:
i - instauração;
ii - inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório; e
iii - Julgamento.
Instaura-se o processo disciplinar com a publicação do ato (portaria), por meio da
qual são indicados os membros da comissão que conduzirá o inquérito.
É fixado o prazo para a conclusão do processo disciplinar em 60 dias, contados
da data de publicação do ato que constituir a comissão, “admitida a sua prorrogação
por igual prazo, quando as circunstâncias o exigirem”.
Não obstante a lei fixe prazo para a conclusão do processo disciplinar, a jurisprudência é pacífica no sentido de que não é causa de nulidade da sanção caso ela seja
aplicada após a expiração do prazo.36 essa regra consta, aliás, expressamente no art. 169,
§1º, que dispõe que “o julgamento fora do prazo legal não implica nulidade do processo”.
À comissão designada pela autoridade competente compete a condução de uma
das fases do processo disciplinar, o inquérito administrativo.
na fase do inquérito, a comissão promoverá a tomada de depoimentos, acareações,
investigações e diligências cabíveis, objetivando a coleta de prova, recorrendo, quando
necessário, a técnicos e peritos, de modo a permitir a completa elucidação dos fatos.
Se durante o inquérito ocorrer a tipificação da infração disciplinar, será formulada
a indiciação do servidor, com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas
36
STJ: “2. A compreensão pacificada na Terceira Seção desta Corte é no sentido de que a ‘extrapolação do prazo
para a conclusão do processo administrativo disciplinar não consubstancia nulidade susceptível de invalidar o
procedimento’” (MS nº 8.852-DF, 3ª Seção. Rel. Min. Paulo Gallotti. Julg. 24.11.2004. DJ, 10 abr. 2006). em idêntico
sentido, vide ms nº 7.962-dF, 3ª seção. rel. min. vicente Leal. Julg. 12.6.2002. DJ, 1º jul. 2002; e ms nº 7.051-dF,
3ª seção. rel. min. Hamilton Carvalhido. Julg. 11.12.2002. DJ, 05 maio 2003.
813
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814
provas. nesta hipótese, o indiciado será citado por mandado expedido pelo presidente
da comissão para apresentar defesa escrita.
Apreciada a defesa, a comissão elaborará relatório minucioso, onde resumirá as
peças principais dos autos e mencionará as provas em que se baseou para formar a sua
convicção. o relatório será sempre conclusivo quanto à inocência ou à responsabilidade
do servidor. reconhecida a responsabilidade do servidor, a comissão indicará o dispositivo legal ou regulamentar transgredido, bem como as circunstâncias agravantes ou
atenuantes. elaborado o relatório, o processo disciplinar será remetido à autoridade
que determinou a sua instauração, para julgamento.
A autoridade competente para o julgamento, nos termos do art. 141 da Lei nº 8.112/90,
acatará as conclusões do relatório da comissão, salvo quando contrárias às provas dos
autos. nos termos do art. 168, parágrafo único, “quando o relatório da comissão contrariar
as provas dos autos, a autoridade julgadora poderá, motivadamente, agravar a penalidade
proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de responsabilidade”. tem-se, portanto, como
regra, que a autoridade competente está obrigada a acatar as conclusões indicadas no
relatório da comissão e a aplicar as sanções indicadas pela comissão. trata-se de atividade
vinculada, ressalvada a situação descrita no art. 168, parágrafo único, que requer a necessária
motivação.37
importa mencionar que o supremo tribunal Federal, por meio da súmula vinculante nº 5, estabeleceu que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a constituição, desde que seja concedida a oportunidade
de ser efetivado o contraditório e a ampla defesa.
Admite a lei a revisão do processo disciplinar, “a qualquer tempo, a pedido ou
de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a
inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada” (art. 174). A simples
alegação de injustiça da penalidade não constitui fundamento para a revisão, “que requer
elementos novos, ainda não apreciados no processo originário” (art. 176). dispõe ainda
a lei (art. 182, parágrafo único) que “da revisão do processo não poderá resultar agravamento de penalidade”.
37
stJ: “2. o art. 168, caput e seu parágrafo único, da Lei nº 8.112/90, possibilita, tão somente, à autoridade pública
discordar, de maneira motivada, da pena sugerida pela comissão mas, nunca, alterar a indiciação do servidor.
3. embora a autoridade administrativa não tenha que acatar a capitulação da infração realizada pelos órgãos e
agentes auxiliares, no processo disciplinar, encontra-se vinculada aos fatos apurados e indiciados pela comissão processante, durante a fase de julgamento” (resp nº 617.103-Pr, 6ª turma. rel. min. Paulo medina. Julg.
7.2.2006. DJ, 22 maio 2006).
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL
eXtrAContrAtuAL do estAdo
17.1 Âmbito de aplicação da responsabilidade civil do estado
diversas expressões têm sido utilizadas para designar o dever do poder público
de ressarcir prejuízos que seus agentes causem aos particulares. Alguns autores se
referem ao tema como responsabilidade civil da Administração Pública. outros preferem designá-lo pela expressão responsabilidade civil do estado. As duas expressões
costumam ser apresentadas juntamente com o termo extracontratual: responsabilidade
civil extracontratual da Administração Pública ou responsabilidade civil extracontratual
do estado.
A razão para a utilização da expressão responsabilidade civil da Administração
Pública decorre do fato de que o poder público é normalmente chamado a responder
pelos danos causados a particulares em decorrência do exercício das atividades ou dos
atos relacionados à função administrativa do estado. este aspecto explica, ademais, as
dificuldades existentes para a aplicação das regras do Direito Administrativo, que cuida
da atividade administrativa do estado, para disciplinar o dever do ressarcimento de
danos decorrentes do exercício das funções estatais de legislar ou de julgar.
de qualquer modo, a adoção de uma expressão — responsabilidade civil do
estado — ou da outra — responsabilidade civil da Administração Pública — incorre
em erro, no primeiro caso, por excesso; no segundo, por omissão.
As dificuldades para aplicação do Direito Administrativo a essas outras funções
estatais tornam-se evidentes quando se busca definir, por exemplo, a responsabilidade
civil do estado pela prática do ato judicial ou para regular a responsabilidade regressiva do estado contra o juiz, questões que serão detalhadamente examinadas adiante.
A constatação de que as normas administrativas relativas à responsabilidade civil
do estado extrapolam os limites da atividade administrativa e alcançam todas as funções estatais nos leva a preferir a expressão responsabilidade civil do Estado, que, de forma
mais adequada, define o objeto do tema aqui tratado e indica que serão examinadas as
normas que regulam o ressarcimento dos danos sofridos pelos particulares em razão
do desempenho de qualquer atividade estatal, e não apenas da função administrativa.
outro aspecto do tema que merece análise diz respeito à inclusão do termo extracontratual à expressão responsabilidade civil do Estado.
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
816
no direito Privado, são apontadas diversas fontes para o dever de indenizar: a
lei, o enriquecimento sem causa, o ato ilícito, o contrato e as manifestações unilaterais
de vontade. se fôssemos buscar, no direito Privado, equivalência para a aplicação das
normas relacionadas à responsabilidade civil extracontratual do estado, teríamos de
examinar os denominados ilícitos civis (CC, art. 186).1
As normas relacionadas à responsabilidade civil do estado não são aplicáveis,
portanto, aos contratos firmados pelo poder público. Desse modo, se o Estado não cumpre contrato firmado com particular e lhe causa danos, não é correto a este particular
buscar o ressarcimento do prejuízo com base nas normas da responsabilidade civil
objetiva (art. 37, §6º). Para regular essas situações são aplicáveis as normas previstas
na Lei nº 8.666/93.
As regras da responsabilidade civil extracontratual não são igualmente aplicáveis
às hipóteses em que o dever do estado de indenizar decorre diretamente da lei. nesse
sentido, as leis nº 10.309/2001 e 10.744/2003, por exemplo, preveem o dever da união
de ressarcir prejuízos sofridos por particulares decorrentes de atentados terroristas.
trata-se, aqui, de responsabilidade civil cuja fonte do dever de indenizar é a lei, e não
fato ou ato imputável ao desempenho das funções do estado.
Aspecto mais controvertido do tema diz respeito a saber se o estado é obrigado a
ressarcir danos causados aos particulares em razão do exercício regular da atividade estatal,
especialmente em situações que não importem em violação de direitos subjetivos dos
particulares.
Caso o poder público construa autoestrada e, em consequência, ocorra redução
do tráfego em antiga rodovia, poder-se-ia responsabilizar civilmente o estado pelos
prejuízos sofridos pelos comerciantes estabelecidos na antiga rodovia?
A resposta deve ser negativa, haja vista a atividade desenvolvida pelo estado
não violar qualquer direito do particular.
distinta é a situação em que o estado, igualmente no exercício de atividade legítima, constrói usina hidrelétrica cuja represa inunda propriedades privadas. Aqui, não
obstante a atividade estatal seja igualmente legítima, ocorre evidente violação do direito
de propriedade dos particulares, cujos bens serão destruídos em razão da inundação.
A responsabilidade civil do estado alcança todas as situações em que o exercício
de atividades lícitas ou ilícitas desenvolvidas pelas pessoas jurídicas de direito Público
ou pelas pessoas de direito Privado prestadoras de serviços públicos viole direitos dos
particulares causando-lhes prejuízo material ou moral.
1
dispõe o art. 186 do Código Civil nos seguintes termos: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Maria Helena Diniz afirma que “para que se configure o ato ilícito, será imprescindível que haja: a) fato lesivo voluntário, causado pelo agente, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência (rt, 443:143, 450:65...);
b) ocorrência de um dano patrimonial ou moral, sendo que pela súmula 37 do superior tribunal de Justiça serão
cumuláveis as indenizações por dano material e moral decorrentes do mesmo fato (rt, 436:97. 433:88...). Pelo
art. 944 do Código Civil a indenização se mede pela extensão do dano. todavia, já se decidiu que: ‘A indenização
não surge somente nos casos de prejuízos, mas também pela violação de um direito’ (rstJ, 23:157); e c) nexo de
causalidade entre o dano e comportamento do agente (rt, 477:247, 463:244...). Acrescenta a ilustre autora que a
obrigação de indenizar é a conseqüência jurídica do ilícito (CC, arts. 927 a 954), sendo que a atualização monetária
incidirá sobre essa dívida a partir da data do ilícito (súmula 43 do stJ)” (Código Civil anotado).
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
17.2 evolução da responsabilidade civil
Quando se cogita de responsabilizar penalmente determinado indivíduo, estar-se-á
necessariamente examinando a violação dos preceitos do direito Penal, cuja apuração
será realizada por meio do necessário processo criminal conduzido pela via judicial.
idêntico raciocínio vale para a responsabilidade administrativa. esta decorre
da violação dos preceitos definidos pelo Direito Administrativo, sendo a apuração da
responsabilidade e a aplicação da respectiva sanção realizadas por meio de processo
administrativo conduzido por autoridade administrativa.
esse raciocínio não se aplica, todavia, à responsabilidade civil. ou seja, não é
possível identificar a expressão responsabilidade civil como decorrência necessária do
direito Civil.
A expressão responsabilidade civil indica tão somente o dever de ressarcir
prejuízos causados a terceiros, e a natureza das normas que definem esse dever pode
variar em razão da pessoa que causa o prejuízo ou da natureza da atividade explorada.
se o causador do dano for pessoa de direito Público ou de direito Privado prestador de serviço público, as regras de responsabilidade civil não se submetem, desde o
advento da Constituição Federal de 1946, ao direito Civil, mas ao direito Administrativo.
A responsabilidade civil do estado constitui um dos temas mais relevantes do
direito Administrativo, e o reconhecimento do dever do estado de ressarcir danos causados aos particulares decorre do princípio da legalidade e constitui um dos pilares do
Estado de Direito. Não seria, a rigor, de todo absurdo afirmar que somente é possível
conceber a existência do direito Administrativo — e, portanto, do estado de direito —
no momento em que se reconhece a responsabilidade civil do estado.
no estudo da evolução histórica do tema são normalmente apontadas três grandes fases:
1. irresponsabilidade civil do estado;
2. responsabilidade civil do estado a partir da aplicação das normas do direito
Privado;
3. responsabilidade civil do estado a partir da aplicação das normas do direito
Público.
A primeira fase, correspondente à irresponsabilidade civil do Estado, é facilmente
identificada nas monarquias absolutistas.
A concepção de que o estado não deveria ser chamado a ressarcir prejuízos que
seus agentes causassem a terceiros sobreviveu, todavia, em diversos países até meados
do século XiX.2
nos estados absolutistas, onde prevaleciam preceitos como the King can do no
wrong, vigente nas monarquias inglesas, ou l’État c’est moi, afirmado no regime monárquico
francês, seria fácil concluir pela irresponsabilidade civil do estado. ora, se o estado e
o monarca são a mesma pessoa, e se o monarca não erra, como seria possível construir
uma teoria que condene o estado a ressarcir prejuízos sofridos pelos súditos?
A superação da fase da irresponsabilidade civil do estado e a adoção das teorias
civilistas têm início com a aprovação do Código Civil francês e a previsão de que todo
2
Particularidades nos sistemas jurídicos norte-americano e britânico resultaram em que somente em 1946, por meio
do Federal Tort Claim Act, e em 1947, por meio do Crown Proceeding Act, estados unidos e inglaterra, respectivamente,
abandonaram totalmente a teoria da irresponsabilidade civil do estado.
817
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
818
aquele que por ação ou omissão, por negligência, imperícia, imprudência ou dolo, cause
prejuízo a terceiro é obrigado a ressarcir o dano causado.3
na fase civilista, foi relevante a distinção dos atos administrativos em atos de
império e atos de gestão. A partir dessa divisão, foi possível responsabilizar o estado
pelos prejuízos sofridos pelos particulares em razão de atividades estatais desenvolvidas
por meio dos atos que não importassem em atribuir ao poder público a condição de
superioridade em face dos particulares. ou seja, nessa fase, inicialmente apenas os denominados atos de gestão poderiam ensejar a responsabilidade civil do estado, não sendo
admitido que os danos sofridos pelos particulares em função da prática dos atos que se
enquadrassem no conceito de atos de império pudessem ser objeto de ressarcimento.
A sujeição do estado à legislação civil não se deu, todavia, de forma pronta. não
obstante o Código Civil de napoleão estivesse em vigência desde 1803, somente em
1873 o Tribunal de Conflitos francês, ao enfrentar o famoso arresto Blanco, reconheceu
a responsabilidade civil do estado e atribuiu competência ao sistema de contencioso
administrativo (tribunal administrativo), e não às vias judiciais comuns, para examinar
petições formuladas por particulares que reclamassem indenização contra o estado. no
caso Blanco, o pai da menina Agnès Blanco, atropelada por carruagem pertencente a
uma empresa estatal, a Companhia nacional de manufatura do Fumo, pleiteou indenização contra o estado sob o fundamento de que todos devem ser responsabilizados
pelos prejuízos que seus agentes causem a terceiros. O Tribunal de Conflitos francês
enfrentou não apenas a questão da competência para apreciar a matéria, mas igualmente
adentrou ao mérito da discussão e estabeleceu que, não obstante não seja absoluta, a
responsabilidade civil do estado deveria ser admitida.
A partir desse momento, a responsabilidade civil do estado somente se expandiu.
Ainda sob a égide das teorias civilistas, foi desenvolvida a denominada teoria da
culpa do serviço (expressão que melhor traduziria a terminologia francesa faute du service)
ou da falta do serviço. nas hipóteses em que ocorressem: 1. falta ou ausência do serviço;
2. atraso na prestação do serviço; ou 3. prestação defeituosa do serviço que resultassem
em prejuízo para os particulares, seria legítimo pleitear indenização.
A formulação da teoria da falta do serviço foi extremamente relevante para a
construção da moderna teoria da responsabilidade civil do estado.
essa teoria indicaria a mudança da concepção até então vigente, de que seria
necessário atribuir a determinado agente público conduta culposa para poder responsabilizar o estado. Com a adoção dessa teoria, é fortalecida a denominada culpa anônima
do serviço em razão de que o estado passaria a ser chamado a responder pelos danos
sofridos pelos particulares independentemente da necessidade de ser demonstrada
culpa de qualquer agente público específico.
A teoria da falta do serviço constituiu o ponto de partida para a superação das
teorias civilistas e para a adoção das teorias publicistas que, partir de então, passaram a
cuidar do dever do estado de ressarcir os danos causados aos particulares.
3
dispõe o Código Civil francês, de 1803, em seu art. 1.382: “tout fait quelconque de l’homme, qui cause à autrui
un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer”. Acrescenta o art. 1.383: “Chacun est
responsable du dommage qu’il a causé non seulement par son fait, mais encore par sa négligence ou par son
imprudence”.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
no Brasil, com a Constituição Federal de 1946, o dever do estado de ressarcir
prejuízos passou a ser objeto de tratamento pelo próprio texto constitucional que,
em seu art. 194, caput, dispôs que “as pessoas jurídicas de direito público interno são
civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem
a terceiros”, acrescentando em seu parágrafo único que “caber-lhes-á ação regressiva
contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes”.
A publicização das regras relativas à responsabilidade civil do estado importou
na superação da responsabilidade civil subjetiva e na adoção da responsabilidade civil objetiva
do Estado.4
Ao disciplinar a responsabilidade civil do estado, o direito Público abandona a
regra de que o ressarcimento dos prejuízos pelo poder público requer a demonstração
de culpa. supera-se a regra da responsabilidade civil subjetiva, em que a culpa é o
elemento essencial para ensejar o dever de indenizar, e se adota a teoria objetiva, em
que o risco assume posição decisiva para obrigar o estado a responder civilmente pelos
danos causados pelo desempenho das atividades públicas.
os dois últimos séculos são testemunhas da evolução da postura adotada pelo
ordenamento jurídico de inúmeros países — inclusive o Brasil — em matéria de responsabilidade civil do estado. da teoria da irresponsabilidade, adotada como regra geral
até metade do século XIX, verificou-se efetiva inversão e se avançou rapidamente para a
construção da atual teoria objetiva do risco administrativo, a ser examinada em seguida.
17.3 teoria subjetiva e teoria objetiva
de acordo com a teoria da responsabilidade civil subjetiva, o fundamento básico
para definir o dever de indenizar é a culpa. Se ocorrer acidente entre dois veículos pertencentes a particulares, por exemplo, de acordo com as regras adotadas pelo direito
Privado, o dever de indenizar é atribuído ao culpado. ou seja, demonstrada a culpa de
um dos motoristas, cabe a este ressarcir os danos sofridos pelo outro particular.
no direito Privado, aquele que requer indenização deve demonstrar: 1. conduta
(omissiva ou comissiva) culposa daquele contra quem se pleiteia a indenização; 2. dano
ou prejuízo; e 3. nexo de causalidade entre a conduta culposa e o dano sofrido. É ônus
do que requer indenização demonstrar a presença desses três requisitos a fim de obter
o ressarcimento do prejuízo causado pelo terceiro.5
A adoção da responsabilidade civil objetiva importa em superar a necessidade
de comprovação da culpa como requisito à imputação da responsabilidade civil, isto
é, a adoção da teoria objetiva da responsabilidade civil prescinde da demonstração de
culpa por parte daquele contra quem se requer a indenização.
no exemplo anterior, se o referido acidente automobilístico envolve veículo
pertencente a particular e outro pertencente a pessoa de direito Público (ou de direito
4
5
Não deve ser buscada identificação ou correlação direta entre responsabilidade objetiva e Direito Público, no
sentido de que a adoção da primeira somente é possível com a apropriação do tema pela Constituição Federal.
no âmbito do direito Civil não é estranha a adoção da responsabilidade objetiva. o Código Civil, de 2002, por
exemplo, adota a responsabilidade civil objetiva em seu art. 938, que estabelece que “aquele que habitar prédio,
ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido”.
em alguns casos, ocorre a inversão do ônus da prova, presumindo-se a culpa. nessa hipótese caberá ao autor do dano
demonstrar a ausência de culpa, a exemplo das relações de consumo.
819
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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Privado prestadora de serviço público, conforme dispõe a Constituição Federal, art. 37,
§6º), para o particular pleitear indenização não precisará demonstrar a culpa do condutor do veículo oficial, sendo necessário que demonstre tão somente: 1. o dano sofrido,
e 2. o nexo de causalidade entre a conduta do agente público e mencionado dano. isto
decorre do fato de que o dever de indenizar com base na teoria da responsabilidade
objetiva independe de a vítima provar a culpa daquele contra quem demanda.
no exame do re nº 217.389-sP,6 a questão da desnecessidade da demonstração
da culpa é apresentada de modo evidente, in verbis:
A prova pericial é conclusiva de que a cirurgia foi realizada segundo as regras técnicas
existentes para esse tipo de procedimento cirúrgico, não sendo possível concluir-se
que as seqüelas de que é portadora tenham sido causadas por imperícia médica, ou o
exercício de prática não adotada para esse tipo de tratamento, devendo antes ser debitada
a seqüela a um infortúnio imprevisível, para o qual ainda se buscou outra cirurgia, sem
se conseguir o resultado esperado pelos médicos. em toda intervenção cirúrgica há uma
parcela grande envolvendo o risco profissional de todo paciente que se submete a uma
cirurgia, em decorrência não somente dos efeitos diversificados para cada paciente da
aplicação. (Informativo STF, nº 266)
A leitura deste trecho do artigo publicado no Informativo STF deixa evidente
que não houve culpa por parte do poder público, tendo a sequela resultado, antes, de
infortúnio imprevisível, conforme indica o texto. A conclusão do julgamento do recurso
extraordinário foi, todavia, no sentido de responsabilizar o poder público, haja vista
terem sido demonstrados: 1. o dano; e 2. o nexo de causalidade entre este e a cirurgia
realizada em hospital pertencente ao Estado, requisitos suficientes para a responsabilização civil do estado com base na teoria objetiva do risco.
17.4 risco administrativo e risco integral: excludentes de responsabilidade
civil
A teoria objetiva da responsabilidade civil deixa de se fundamentar na culpa e o
fundamento principal para impor o dever de indenizar passa a ser o risco. este passa
a ser o pressuposto definidor do dever de indenizar. Ou seja, de acordo com a teoria
objetiva, o dever de ressarcir prejuízos é atribuído àquele que explore determinada
atividade ou pratique determinados atos suscetíveis de causar danos a terceiros.
no campo do direito Privado, o Código de defesa do Consumidor – CdC (Lei
nº 8.078/90) pode ser mencionado como exemplo de responsabilidade civil assentada no
risco. Caso o produto ou o serviço apresente vício, o Código atribui a responsabilidade
civil ao fornecedor em razão de este assumir o risco de explorar determinadas atividades empresariais. ou seja, o fornecedor, nos termos do CdC, é civilmente responsável
não em razão de ser ou de deixar de ser culpado pelo vício do produto ou do serviço,
mas em razão de assumir o risco de que se os produtos ou serviços por ele fornecidos
apresentarem vícios, cabe a ele, fornecedor, o dever de indenizar os consumidores.
No âmbito do Direito Público, verifica-se fenômeno equivalente. O dever de
ressarcir prejuízos sofridos pelos particulares é atribuído às “pessoas de direito público
6
stF. re nº 217.389-sP, 2ª turma. rel. min. néri da silveira. Julg. 2.4.2002. DJ, 24 maio 2002.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
ou de direito Privado prestadoras de serviços públicos” em razão das atividades que
desempenham serem potencialmente lesivas, sujeitando os particulares a riscos. Assim,
se no desempenho das suas atividades for verificada a ocorrência de dano a particular,
cumpre à pessoa de direito Público ou de direito Privado prestadora do serviço público
o dever de ressarci-lo independentemente da existência de culpa de quem quer que
seja, mas em razão do risco inerente à atuação daquelas pessoas.
A teoria objetiva se fundamenta, portanto, no risco, o qual admite duas modalidades básicas no âmbito do direito Administrativo: o risco administrativo e o risco
integral.7
A distinção básica entre uma e outra teoria reside, conforme acertadamente
aponta Hely Lopes meirelles, no fato de que a teoria do risco administrativo admite a
existência de excludentes da responsabilidade civil do estado, as quais não são admitidas na teoria do risco integral.8
na hipótese de ocorrer dano a particular em decorrência da exploração, pela
união, da energia nuclear (CF, art. 21, XXiii, “c”), situação em que é adotada a teoria
do risco integral, o poder público será obrigado a ressarcir os danos ainda que o culpado
seja o próprio particular. suponha que visitante da usina de Angra i, por absurda
imprudência, sofra dano. não obstante o particular seja o culpado pelo dano por ele
próprio sofrido, não será afastada a responsabilidade civil da união.
de acordo com a teoria do risco administrativo, são admitidas, como regra, as
seguintes excludentes de responsabilidade civil:
- Culpa exclusiva do particular ou de terceiro; e
- Caso fortuito e força maior.
A existência da primeira excludente de responsabilidade, a culpa exclusiva da vítima
ou de terceiro, leva-nos à conclusão de que a culpa não é totalmente irrelevante na teoria
objetiva do risco administrativo. ela não precisa ser demonstrada por aquele que pede
indenização. todavia, se aquele contra quem se demanda demonstra que houve culpa
(em sentido amplo) por parte do particular que pleiteia indenização ou por parte de
terceiro, ele se exime de responsabilidade. Verifica-se, na teoria do risco administrativo,
efetiva inversão do ônus da prova da culpa: o particular que pede indenização contra
o poder público não precisa demonstrá-la, mas se o poder público provar a culpa do
particular, se exime de responsabilidade.
Conforme examinado no exemplo envolvendo o acidente dos automóveis, anteriormente mencionado, para o particular obrigar a pessoa de direito Público a ressarcir-lhe os
danos sofridos basta que demonstre a existência destes e o nexo de causalidade entre
eles e o acidente. Não é necessário que demonstre que o veículo oficial trafegava em
alta velocidade, que avançou sinal vermelho, que mudou de faixa abruptamente ou
sem sinalizar etc. Enfim, a vítima não precisa provar que houve culpa por parte do
motorista do veículo oficial para poder obter indenização. Se o poder público, todavia,
logra demonstrar que houve culpa por parte do particular (tendo sido este que avançou
o sinal vermelho, que mudou de faixa sem sinalizar etc.), não apenas se exime do dever
7
8
maria sylvia Zanella di Pietro indica que “as divergências (entre as duas teorias) são mais terminológicas, quanto
à maneira de designar as teorias, do que de fundo” (Direito administrativo, p. 528). Penso ser equivocado o pensamento da autora, eis que, como registrado, no risco integral não se admite a existência de excludentes de responsabilidade, o que, por certo, importa em consequências jurídicas relevantes.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 562.
821
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
822
de indenizar como igualmente pode pleitear indenização dos seus danos. Caso não seja
possível, em razão dos elementos probatórios, identificar o culpado pelo acidente, o
poder público, que responde objetivamente, será obrigado a ressarcir os danos sofridos
pelo particular.
daí resulta o interesse do poder público de requisitar a realização de perícia em
qualquer acidente envolvendo veículos oficiais. A razão é evidente: se for demonstrada
a culpa do condutor do veículo particular, o poder público se exime de qualquer responsabilidade; se for demonstrada a culpa do agente público que conduzia o veículo
oficial, o poder público será responsabilizado, mas poderá agir regressivamente contra
o agente — cuja responsabilidade, conforme será examinado adiante, é subjetiva e
pressupõe a demonstração da culpa.
Percebe-se, uma vez mais, que, em situações como a que se apresenta neste exemplo, o pior cenário possível para o poder público se verifica quando não é identificado
o culpado. nesta hipótese, o poder público é obrigado a ressarcir os danos sofridos
pelo particular e não poderá agir regressivamente contra o agente público, posto que
a responsabilidade civil deste último é subjetiva.
outro cenário possível ocorre quando se conclui pela existência de culpa concorrente. Ou seja, se do exame do conjunto de provas ficar demonstrado que tanto o particular quanto o agente público agiram com culpa, haverá atenuação da responsabilidade
do Estado, devendo os danos serem divididos entre as partes em razão da culpabilidade
de cada um deles, nos termos definidos pelo juiz.
ou seja, se for demonstrada a culpa exclusiva do particular vitimado pela
atividade do estado, ocorrerá excludente de responsabilidade civil do estado; se for
demonstrada a existência de culpa concorrente, ocorrerá tão somente atenuação da
responsabilidade civil do estado, devendo os prejuízos serem divididos entre este
último e o particular.
A outra excludente de responsabilidade civil se verifica na hipótese de caso fortuito
ou de força maior.
normalmente, não há qualquer interesse prático em distinguir o caso fortuito da
força maior, haja vista tanto um quanto o outro importarem em excludente de responsabilidade civil. no estudo da responsabilidade civil do estado, todavia, resulta relevante
examinar essa distinção, porque somente um deles é admitido como excludente diante
da omissão do estado.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro adota a terminologia francesa e afirma que “força
maior é acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como
uma tempestade, um terremoto, um raio”. em relação ao caso fortuito, a ilustre autora
afirma que se trata de dano “decorrente de ato humano, falha da Administração”.9
não se trata, é evidente, de apontar a terminologia mais ou menos adequada. no
direito brasileiro, todavia, a doutrina civilista adota com mais frequência terminologia que
aponta em sentido inverso àquele utilizado pela ilustre autora, sendo utilizada a expressão
força maior para evento relacionado à conduta humana, e o caso fortuito se referindo a
evento estranho à vontade humana, normalmente relacionado a evento da natureza.10
9
10
di Pietro. Direito administrativo, p. 530-531.
nesse sentido, anota rui stoco: “em pura doutrina, distinguem-se estes eventos, dizendo que o caso fortuito é o
acontecimento natural, derivado da força da natureza, ou o fato das coisas, como o raio, a inundação, o terremoto
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
Adotamos, por mera opção, esta última terminologia. Desse modo, identificamos a força
maior como evento humano, e o caso fortuito como o evento da natureza, imprevisível ou,
ainda que previsível, insuperável.11
A distinção apontada entre o caso fortuito e força maior é relevante porque, conforme
já observamos, diante da omissão do estado, o evento da natureza imprevisível, ou, ainda
que previsível, insuperável, não exime a responsabilidade civil do poder público.
exemplo: as pessoas de direito Privado prestadoras de serviço público assumem,
no regime jurídico brasileiro, responsabilidade objetiva com base na teoria do risco
administrativo. Podemos supor, desse modo, que ocorra suspensão no fornecimento de
energia elétrica por parte de certa empresa concessionária em razão de raio que atinge
a rede de transmissão. diante da ocorrência desse caso fortuito, poder-se-ia alegar
que a concessionária estaria isenta de ressarcir os prejuízos sofridos pelos particulares
afetados pela suspensão do serviço?
A resposta a essa questão requer o exame de eventual omissão da empresa
prestadora do serviço público. A pergunta deve, portanto, ser formulada nos seguintes termos: afinal, houve omissão por parte da empresa concessionária na adoção das
medidas técnicas tendentes a neutralizar os efeitos dos raios que tão frequentemente
atingem as redes de transmissão?
se tiver havido omissão por parte da mencionada empresa na adoção das mencionadas medidas técnicas, não obstante os danos sofridos pelos particulares decorram
do evento da natureza (o raio), a empresa terá que ressarcir os prejuízos causados.
diversa seria a situação, no exemplo apresentado, se ocorresse solução de
continuidade na prestação do serviço em razão de evento humano imprevisível ou
insuperável (podemos supor situação em que indivíduo maluco explode uma bomba
na rede de transmissão). nesta hipótese, a força maior constituirá excludente da responsabilidade civil e a empresa concessionária não terá que ressarcir os danos sofridos
pelos particulares.
A conclusão deve ser no sentido de que o caso fortuito (evento da natureza) não é
aceito como excludente da responsabilidade civil das pessoas de direito Público ou de
direito Privado prestadoras de serviço público caso tenha ocorrido omissão por parte
destas pessoas. Afinal, se no exemplo apresentado tivessem sido adotadas as medidas
técnicas necessárias, se não tivesse havido, portanto, falha na prestação do serviço, não
obstante o evento da natureza, não teria havido solução de continuidade no fornecimento da energia elétrica e não teriam, destarte, ocorrido os danos dos particulares.
Em resumo, é possível afirmar que se os danos sofridos pelos particulares decorrerem de ação (atuação comissiva), são admitidos como excludentes da responsabilidade
civil do estado:
11
ou o temporal. na força maior há um elemento humano, a ação das autoridades (factum principis), como ainda a
revolução, o furto ou roubo ou, noutro gênero, a desapropriação” (Tratado de responsabilidade civil: com comentários ao Código Civil de 2002, p. 173).
É interessante o pensamento de Caio mário da silva Pereira acerca da imprevisibilidade, que para ele não é requisito
ou pressuposto da força maior e do caso fortuito, eis que o evento pode ser previsível, mas inevitável: “A imprevisibilidade não é requisito necessário porque muitas vezes o evento, ainda que previsível, dispara como força indomável e
irresistível. A imprevisibilidade é de se considerar quando determina a inevitabilidade. Para alguns autores, para que
se considere como escusativa de responsabilidade somente se consideraria o fato ‘absolutamente imprevisível’, que
se distinguiria do que é ‘normalmente imprevisível’. o que, então importaria numa apuração em cada caso, é saber
quando é ‘absoluta’ e quando é ‘normal’, recaindo-se então no requisito da inevitabilidade. Aliás, imprevisibilidade é
em geral combinada com a inevitabilidade” (Instituições de direito civil, v. 3).
823
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Curso de direito AdministrAtivo
- A culpa exclusiva do particular ou de terceiro;
- A força maior e o caso fortuito.
se, ao contrário, os particulares sofrerem danos em razão da omissão (atuação
omissiva) das pessoas de direito Público ou de direito Privado prestadoras de serviço
público, somente são admitidos como excludentes da responsabilidade civil:
- A culpa exclusiva do particular;
- A força maior.
17.5 responsabilidade civil do estado no direito brasileiro:
regras básicas
17.5.1 Pessoas de direito Público ou de direito Privado prestadoras de
serviços públicos
A Constituição Federal, em seu art. 37, §6º, estabelece a regra geral acerca da responsabilidade civil do estado. dispõe mencionado parágrafo que “as pessoas jurídicas
de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
da redação do dispositivo constitucional é possível extrair a regra de que a responsabilidade civil do Estado brasileiro (aqui entendido o termo Estado como identificador
das pessoas de direito Público ou de direito Privado prestadoras de serviço público)
segue a teoria do risco administrativo. A adoção da responsabilidade civil objetiva não
importa, todavia, conforme será examinado adiante, em responsabilizar o estado por
atos de terceiros, da própria vítima ou por fenômenos naturais que, em verdade, retiram
o liame entre a conduta e o resultado.
A teoria do risco integral é mencionada apenas de forma excepcional pelo texto
constitucional no art. 21, XXiii, “c”, quando se refere ao denominado dano nuclear.
em situações igualmente excepcionais, e sem previsão constitucional — o que
não deve ser entendido como equívoco dos tribunais —, a jurisprudência pátria tem
adotado a teoria do risco integral. veja-se o exemplo dos acidentes ferroviários envolvendo atropelamento de pessoas que transitam nas linhas férreas em que é aplicada a
teoria do risco integral sem que a culpa da vítima seja utilizada para eximir ou atenuar
a responsabilidade do poder público.
A regra contida no mencionado dispositivo constitucional é reproduzida de
forma bastante semelhante pelo art. 43 do Código Civil, que dispõe que “as pessoas
jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos de seus agentes
que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os
causadores de dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”.
17.5.2 Ação de responsabilidade civil e direito de regresso
São facilmente identificáveis três personagens nas ações de responsabilidade
civil aqui examinadas: 1. o particular que sofre o dano; 2. o estado (entendido como tal,
para fins de responsabilidade civil, a pessoa de Direito Público ou de Direito Privado
prestadora de serviço público); e 3. o agente público causador do dano.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
o estudo do direito de regresso se inicia com o exame da forma como atuam as
pessoas jurídicas.
ressalvadas as hipóteses de omissão, em que nem sempre resulta simples identificar o agente público a quem se deve atribuir a responsabilidade pela inação da pessoa
jurídica, sempre que uma pessoa jurídica atua, ela o faz por meio dos seus agentes.
essa, aliás, é a regra contida no mencionado art. 37, §6º, do texto constitucional
que dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,
causarem a terceiros” (grifos nossos).
o exame deste trecho do dispositivo constitucional deixa assente que o particular
que busque reparação pelo dano sofrido em razão da atuação de agente público não
pode demandar diretamente contra este. Pelos atos, ou omissões, imputáveis aos agentes públicos respondem as pessoas jurídicas de direito Público ou de direito Privado
prestadoras de serviços públicos.
No julgamento do RE nº 228.977-SP, o STF firmou, de forma cristalina, a tese de
que “a legitimidade passiva, em tais hipóteses, é reservada ao estado”.12 no caso enfrentado
pelo stF, determinado agente público, um juiz, ao proferir sentença, utilizou linguagem ofensiva contra determinado indivíduo. este, ao invés de propor a ação contra o
poder público (estado), o fez contra o juiz. Ao examinar a questão, o relator do recurso
extraordinário fixa a tese de que tendo o juiz atuado no exercício das suas atribuições
estatais, pelos seus atos responde o poder público, sendo a responsabilidade do juiz
regressiva e subjetiva.
Tese diversa é defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello. Afirma o renomado autor, in verbis: “parece-nos incensurável o ensinamento de oswaldo Aranha de
mello, manifestado antes mesmo do novo Código de Processo Civil, segundo quem a
vítima pode propor ação de indenização contra o agente, contra o estado, ou contra
ambos, como responsáveis solidários, no caso de dolo ou culpa”.13
A tese defendida pelo autor não encontra respaldo no stF, e não parece ser a
mais adequada ao texto constitucional — máxima vênia. no julgamento do mencionado re nº 228.977-sP, este tema foi exaustivamente enfrentado pelo stF. Concluiu-se
que o texto constitucional não legitima a vítima do dano a propor ação de indenização
diretamente contra o agente público, cuja responsabilidade, nos termos da Constituição
Federal, é regressiva.
Questão distinta consiste em saber de que instrumento processual o poder público
irá se utilizar para exercer o direito de regresso contra o agente.
A Constituição Federal, na parte final do §6º do art. 37, afirma tão somente que
será “assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Para o exercício do direito de regresso, abrem-se para o poder público duas opções:
1. A denunciação da lide; e
2. A ação regressiva.
A Lei nº 8.112/90, em seu art. 122, §2º, dispõe que se tratando “de dano causado
a terceiros, responderá o servidor perante a Fazenda Pública, em ação regressiva” (grifos
12
13
stF. re nº 228.977-sP, 2ª turma. rel. min. néri da silveira. Julg. 5.3.2002. DJ, 12 abr. 2002. no mesmo sentido, re
nº 344.133-Pe, 1ª turma. rel. min. marco Aurélio. Julg. 9.9.2008. DJe, 14 ago. 2008; re nº 470.996-ro, 2ª turma.
rel. min. eros Grau. Julg. 18.8.2009. DJe, 11 set. 2009.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 917.
825
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Curso de direito AdministrAtivo
826
nossos). nestes termos, haveria a necessidade de que a ação fosse proposta pela vítima
contra o poder público, este fosse condenado, e por meio de ação regressiva buscasse
o ressarcimento do dano junto ao agente público.
o Código de Processo Civil, em seu art. 70, iii, no entanto, dispõe que a “denunciação da lide é obrigatória àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar,
em razão de ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”.
o exame desses dois dispositivos pode levar à conclusão de que, ao admitir a
ação regressiva, a Lei nº 8.112/90 remeteria ao Código de Processo Civil, o que resultaria
na obrigatoriedade da denunciação.
A tese da obrigatoriedade da denunciação nas ações de indenização contra o
poder público foi de muito afastada pelo superior tribunal de Justiça, sustentando que
haveria mera faculdade do poder público nessa denunciação.14
da discussão acerca da obrigatoriedade da denunciação, a jurisprudência veio
avançando para não mais admitir a denunciação da lide. o argumento é: a responsabilidade do agente é subjetiva; a do poder público, objetiva. Admitir a denunciação pelo
poder público ao agente importa em trazer para o processo a discussão da culpa, o que
resulta em percalços desnecessários à solução da lide em razão de a responsabilidade
do poder público ser objetiva.
Caso afastada a possibilidade de ser denunciada a lide ao agente, a única opção
que restaria ao poder público seria aguardar o desenrolar da ação proposta pelo particular e, acaso seja condenado, o poder público por meio de nova ação exerceria seu
direito de regresso.15
Atualmente, a jurisprudência do superior tribunal de Justiça tem-se consolidado
no sentido de que o pedido de denunciação da lide pode ser indeferido se o ingresso
de terceiros prejudicar a celeridade e a economia processual, o que deve ser avaliado
pelo magistrado em cada caso.16
14
15
16
nesse sentido, vide stJ. resp nº 43.367-sP, 4ª turma. rel. min. sálvio de Figueiredo teixeira. Julg. 13.5.1996. DJ,
24 jun. 1996.
A adoção da solução que impede o estado de se utilizar da denunciação da lide importa em tornar cada vez mais
remota a real possibilidade de reparação do estado. esperar o trânsito em julgado para somente então legitimar
o Estado a ajuizar ação regressiva de reparação e aí discutir culpa significa, na prática, o mesmo que não reparar.
Mais uma vez a coletividade assume o prejuízo e o causador do dano fica imune. Cada vez me convenço mais da
necessidade de que o sistema de responsabilidade civil objetiva utilizado no direito brasileiro esteja merecendo
profundas reflexões e imediatas modificações.
“Processual Civil e Administrativo. recurso especial. responsabilidade civil do estado. denunciação da lide. 1. A
‘obrigatoriedade’ de que trata o artigo 70 do Código de Processo Civil, não se confunde com o cabimento da denunciação. Aquela refere-se à perda do direito de regresso, já o cabimento liga-se à admissibilidade do instituto. 2. o
cabimento da denunciação depende da ausência de violação dos princípios da celeridade e da economia processual, o que implica na valoração a ser realizada pelo magistrado em cada caso concreto. 3. no caso, o tribunal de
Justiça entendeu cabível a denunciação. A revisão de tal entendimento depende do revolvimento fático-probatório
inviável no recurso especial. incidência do verbete sumular nº 07/stJ. Precedente: resp 770.590/BA, rel. min. teori
Albino Zavascki, dJ 03.04.2006. 4. Ainda que superado tal óbice, as instâncias ordinárias deixaram transparecer
que não haveria violação dos princípios aludidos, pois o servidor já teria sido condenado pelo tribunal do Júri, o
que limitaria as discussões a respeito do elemento subjetivo. 5. recurso especial não conhecido.” (resp nº 975.799-dF,
2ª turma. rel. min. Castro meira. Julg. 14.10.2008. DJe, 28 nov. 2008. no mesmo sentido, Agrg no resp nº 1.258.789Pi, 1ª turma. rel. min. teori Zavascki. Julg. 28.2.2012. DJe, 07 mar. 2012).
“direito Administrativo. Processual Civil. recurso especial. servidor público municipal. Ação de cobrança. exprefeito. denunciação da lide. indeferimento. nulidade. Ausência. Precedentes do stJ. Prescrição qüinqüenal.
Conhecimento de ofício. Possibilidade. efeito translativo. Art. 257 do ristJ e súmula 456/stF. Precedentes do
stJ. recurso especial conhecido e parcialmente provido. 1. o indeferimento da denunciação da lide ao preposto
estatal não é causa de nulidade do processo já iniciado. tal entendimento visa privilegiar os princípios da economia e da celeridade processuais. Precedentes do stJ.” (resp nº 906.839-rn, 5ª turma. rel. min. Arnaldo esteves
de Lima. Julg. 21.8.2008. DJe, 29 set. 2008)
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
no âmbito do supremo tribunal Federal, a tendência é atribuir ao tema estatura
infraconstitucional em razão de que se discute interpretação da legislação processual
civil. isto importaria em transferir ao stJ a última palavra sobre o tema.17
17.6 Prescrição e a Fazenda Pública
17.6.1 Ações contra o poder público
o prazo prescricional previsto no Código Civil, art. 206, §3º, para as ações de
reparação é de três anos. essa regra genérica contida no Código não se aplica, todavia,
às ações de indenização propostas contra o poder público em razão da vigência de
regras especiais sobre o tema.18
nos termos do art. 1º-C, da Lei nº 9.494/1997, com a redação dada pela mP
nº 2.180/2001, o prazo prescricional para a propositura das ações de indenização por
danos causados “por agentes de pessoas jurídicas de direito público e de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos” é de cinco anos.
A redação do dispositivo acima reitera a regra da prescrição quinquenal fixada
pelo decreto nº 20.910/1932. nos termos deste decreto, as ações judiciais propostas contra
o poder público prescrevem em cinco anos.19 Por força do decreto nº 4.597/1942, esse
prazo de cinco anos é aplicável a todas as ações propostas contra as pessoas jurídicas
de direito Público.
A redação do citado art. 1º-C da Lei nº 9.494/1997, inova em relação à sistemática
fixada pelo decreto de 1932 em razão da extensão dada, fazendo compreender no âmbito
da aplicação do prazo prescricional de cinco não apenas a Fazenda Pública (pessoas
jurídicas de direito Público), as quais se submetiam a esse prazo por força dos decretos nº 20.910/1932 e nº 4.597/1942, mas igualmente as pessoas jurídicas de Direito Privado
prestadoras de serviço público.
o termo inicial para a propositura da ação de indenização contra o estado, conforme dispõe o art. 1º do decreto nº 20.910/1932, é a data do ato ou fato que deu origem
à ação de indenização. “o direito de pedir indenização, pelo clássico princípio da actio
nata, surge quando constatada a lesão e suas conseqüências, fato que desencadeia a
relação de causalidade”.20
Caso o evento, fato ou ato danoso resulte em invalidez ou em incapacidade para
o particular, o termo a quo para ajuizamento “de ação de indenização contra o estado
não é a data do acidente, mas aquela em que a vítima teve ciência inequívoca de sua
invalidez e da extensão da incapacidade de que restou acometida. Considerando-se que
a administração emitiu laudo definitivo caracterizando a extensão do dano em data
17
18
19
20
nesse sentido, vide stF. re nº 283.989-Pr, 1ª turma. rel. min. ilmar Galvão. Julg. 28.5.2002. DJ, 13 set. 2002.
no âmbito do stJ, havia controvérsia entre as turmas que tratam de direito público sobre a aplicação do prazo
trienal previsto no art. 206, §3º, do Código Civil, ou do prazo quinquenal do decreto nº 20.910/1932. Ao apreciar
embargos de divergência, a 1ª Seção da referida Corte Superior pacificou a questão, decidindo pela incidência do
prazo quinquenal (eresp nº 1.081.885-rr, 1ª seção. rel. min. Hamilton Carvalho. Julg. 13.12.2010. DJe, 1º fev. 2011).
o art. 1º do decreto nº 20.910/1932 dispõe que “as dívidas passivas da união, dos estados e dos municípios,
bem assim todo e qualquer direito ou ação, contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua
natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originam”.
stJ. resp nº 735.377-rJ, 2ª turma. rel. min. eliana Calmon. Julg. 2.6.2005. DJ, 27 jun. 2005.
827
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
828
de 09/07/96 e que a ação foi proposta em 10/02/99, não se encontra consumado o lapso
prescricional previsto no art. 1º do decreto 20.910/32”.21
na eventualidade de o fato danoso se caracterizar como ilícito penal, o termo a
quo da prescrição quinquenal para a propositura da ação de indenização é o trânsito em
julgado da sentença criminal.22
em relação às ações reais propostas contra o poder público, o vigente Código
Civil de 2002 não dá tratamento específico — diferentemente do que se verificava com
o Código de 1916. o art. 205 do vigente Código estabelece, tão somente, que será de
dez anos a prescrição das ações pessoais e reais para as quais não tenha sido fixado
prazo específico.
surge, então, dúvida ainda não enfrentada pelo supremo tribunal Federal: qual
o prazo prescricional das ações reais a serem propostas contra o poder público?
O Código Civil, em seu art. 1.238, fixa em 15 anos o prazo para a usucapião. A
questão que se apresenta é a de saber se seria possível adotar esse prazo para as ações
reais contra o poder público. salvo melhor juízo, essa não é a solução que melhor se
adapta ao sistema jurídico.
O prazo de 15 anos da usucapião é perfeitamente aplicável às ações de indenização
propostas contra o poder público em razão da caracterização da denominada desapropriação indireta em razão das similitudes entre a desapropriação indireta e a usucapião
(conforme examinado no Capítulo 13). não nos parece razoável utilizar esse mesmo
prazo de 15 anos, específico da usucapião, para balizar todas as ações reais contra o
poder público, mas, conforme apontado, tão somente para aquelas relacionadas ao
pedido de indenização em razão de desapropriação indireta.
21
22
stJ: “Administrativo. recurso especial. indenização. danos morais. responsabilidade do estado. Prescrição.
termo a quo. data da efetiva constatação da lesividade e não do evento danoso. decreto n. 20.910/32. interpretação
do art. 37, §6º, da CF/88. matéria constitucional. 1. tratam os autos de ação de indenização ajuizada por rita
Gama de Almeida em face da união objetivando a reparação de danos morais no valor correspondente a
duzentas vezes a sua remuneração mensal, acrescido de juros compensatórios e moratórios, além de correção
monetária, em decorrência de acidente que sofreu nas dependências de seu trabalho (serviço de seleção
do Pessoal da marinha). o juízo de primeiro grau julgou parcialmente procedente o pedido, excluindo a
condenação em juros compensatórios. Apelaram ambas as partes, tendo o TRF/2ª Região confirmado a sentença.
embargos de declaração foram opostos e rejeitados. via recurso especial, defende a união que transcorreu
o prazo prescricional qüinqüenal previsto no decreto 20.910/32, além de pretender declaração de exegese a
ser conferida ao teor do art. 37, §6º, da CF/88. Contra-razões defendendo a prescrição vintenária prevista no
art. 177 do CC. 2. esta Corte não emite pronunciamento sobre preceitos consagrados na Constituição Federal,
como almeja o recorrente ao declarar que o presente recurso pretende ‘seja resgatada a correta interpretação e
aplicação do comando constitucional inserido no art. 37, da nossa atual Carta Política’. 3. o termo a quo para
auferir o lapso prescricional para ajuizamento de ação de indenização contra o estado não é a data do acidente,
mas aquela em que a vítima teve ciência inequívoca de sua invalidez e da extensão da incapacidade de que
restou acometida. 4. Considerando-se que a administração emitiu laudo definitivo caracterizando a extensão do
dano em data de 09/07/96 e que a ação foi proposta em 10/02/99, não se encontra consumado o lapso prescricional
previsto no art. 1º do decreto 20.910/32” (resp nº 673.576-rJ, 1ª turma. rel. min. José delgado. Julg. 2.12.2004.
DJ, 21 mar. 2005).
nesse sentido, stJ: “Processo Civil e Civil – Ato ilícito – responsabilidade civil do estado – indenização – Homicídio culposo causado por policial militar em período de folga – Condenação criminal transitada em julgado
– violação ao art. 535 do CPC – inexistência – dano material – Prescrição – Quantitativo – Juros moratórios
– súmula 54/stJ – dissídio jurisprudencial não caracterizado. 1. tendo sido examinadas as teses, ainda que
implicitamente, inexiste violação ao art. 535 do CPC. 2. dissídio jurisprudencial não caracterizado, ante a falta
de demonstração da similitude fática entre os casos comprovados. 3. o termo inicial da prescrição, em ação de
indenização decorrente de ilícito penal praticado por agente do estado, somente tem início a partir do trânsito
em julgado da ação penal condenatória. Precedentes desta Corte” (resp nº 435.266-sP, 2ª turma. rel. min. eliana
Calmon. Julg. 17.6.2004. DJ, 13 set. 2004).
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
A regra geral contida no art. 1º do mencionado decreto nº 20.910/1932 é bastante
enfática no sentido de que o prazo prescricional de cinco anos deve ser utilizado para
todas as ações contra a Fazenda Pública (“todo e qualquer direito ou ação, contra a
Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em
cinco anos”). Na vigência do Código de 1916, em que havia previsão específica de prazo
prescricional para as ações reais, não se aplicou a regra geral do mencionado decreto de
1932 em razão da vigência de regra especial. de se observar, ademais, que a vigência da
norma especial contida no Código Civil de 1916 acerca das ações reais jamais importou
em revogação da norma geral contida no decreto nº 20.910/1932. A revogação, todavia,
do Código Civil de 1916 pelo Código Civil de 2002, que não contém norma específica
sobre o prazo prescricional das ações reais, faz com que a regra contida no decreto
nº 20.910/1932 volte a ter vigência plena e alcance — conforme está mencionado no
próprio decreto — todas as ações contra a Fazenda Pública, ressalvadas aquelas relacionadas à desapropriação indireta, que se sujeitam ao prazo prescricional de 15 anos
pertinente à usucapião.
merece igualmente atenção especial a aplicação dos prazos prescricionais às ações
propostas contra a Fazenda Pública relacionadas às relações jurídicas de trato sucessivo.
essas ações são normalmente propostas por servidores públicos que pleiteiam vantagens não pagas pelo estado. Para melhor entender essa questão, podemos considerar a
seguinte situação: no ano de 2000, determinado servidor público teria direito de incorporar
aos seus vencimentos determinada vantagem de caráter permanente, incorporação que
somente veio a ser por ele requerida no ano de 2007. tendo decorrido, no caso, prazo
superior a cinco anos entre a data em que poderia ter sido requerida a incorporação e
a data em que esta veio a ser efetivamente requerida, ter-se-ia verificado a prescrição?
Essa questão é definida pela Súmula nº 85 da jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça, a qual dispõe, in verbis:
Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda pública figura como devedora,
quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as
prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação.
no exemplo, não tendo o servidor jamais requerido a incorporação, ele poderia a
qualquer tempo solicitá-la sem que se pudesse arguir a aplicação da prescrição quinquenal, a qual somente alcançará a prestações vencidas antes do quinquênio à propositura
da ação, conforme expressamente dispõe a mencionada súmula do stJ.
Finalmente, sobre a interrupção da prescrição das ações contra a Fazenda Pública,
merece ainda atenção a regra contida na súmula stF nº 383, in verbis:
A prescrição em favor da Fazenda pública recomeça a correr por dois anos e meio, a
partir do ato interruptivo, mas não fica reduzida aquém de cinco anos, embora o titular
do direito a interrompa durante a primeira metade do prazo.
17.6.2 imprescritibilidade da ação regressiva
A Constituição Federal, em seu art. 37, §5º, dispõe que “a lei estabelecerá os prazos
de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem
prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
830
A leitura do dispositivo acima, especialmente da sua parte final, deixa assente que
lei deve fixar prazos de prescrição para responsabilizar os agentes públicos pela prática
de qualquer ilícito. A Constituição Federal fixa, todavia, a regra de que lei não pode fixar
prazo prescricional para as ações de ressarcimento propostas pelo estado contra seus
agentes. esta regra deve ser aplicada tanto às situações em que o agente tenha causado
dano diretamente ao estado quanto àquelas outras em que o agente tenha causado dano
a terceiro e o estado seja compelido a propor ação regressiva contra o agente.23
É de se reconhecer que, com efeito, o exame isolado do §5º do art. 37 da Constituição Federal leva a que se conclua que as duas interpretações acima expostas revelam-se
logicamente possíveis. todavia, a óbvia necessidade de se extrair do referido dispositivo
constitucional um único comando normativo, que chegue claro, isonômico e isento de
incertezas a todos os seus destinatários, leva a que se decida por uma daquelas interpretações a partir da consideração do conflito dos princípios constitucionais envolvidos
na questão.
de se ressaltar que o exercício dessa técnica de interpretação constitucional deve
ser pautado por critérios razoáveis, capazes de serem justificados dentro de uma racionalidade lógica. É a partir daí que se conclui que, para que se exerça racionalmente o
juízo de ponderação dos princípios constitucionais em colisão, faz-se imprescindível a
invocação de um outro princípio constitucional: o da proporcionalidade. Nos conflitos
de princípios constitucionais, o princípio da proporcionalidade funciona como metaprincípio, ou princípio dos princípios. dele se lança mão para se aferir, racionalmente,
com base num juízo de necessidade e de adequação entre meios e fins, a decisão de se
privilegiar certos princípios constitucionais em detrimento de outros.
A discussão em torno da imprescritibilidade, ou não, das ações de ressarcimento
ao erário fora muito debatida pelo tribunal de Contas da união, não obstante, fora
pacificada ante a apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, do Mandado de Segurança nº 26.210-DF, quando o STF deu, à parte final do §5º do art. 37 da Carta Magna,
a interpretação de que as ações de ressarcimento são imprescritíveis.24
17.7 requisitos à responsabilização do estado
Do exame do tema, é possível identificar os elementos necessários à responsabilização civil do estado no direito brasileiro. são eles:
23
24
stJ: “Agravo regimental em Agravo de instrumento – Ação Civil Pública – Legitimidade do ministério Público
para propor ação – tribunal a quo decidiu a lide com fundamento constitucional – reexame de matéria fáticoprobatória – Ausência de prequestionamento. (...) Quanto à violação dos artigos 1º do decreto n. 20910/32 e 267,
iv, do CPC, o v. acórdão resolveu a questão com base em fundamentação eminentemente constitucional, quando
concluiu que o artigo 37, §5º, da Constituição Federal, prescreve a imprescritibilidade da ação de ressarcimento
ao erário” (Agrg no Ag nº 581.848-sP, 2ª turma. rel. min. Humberto martins. Julg. 15.8.2006. DJ, 28 ago. 2006).
stJ: “Processual Civil e Administrativo. Ação Civil Pública. dano ao erário público. violação ao art. 535 do CPC.
omissão afastada. ministério Público. Legitimidade ativa. imprescritibilidade da ação. Cerceamento de defesa.
reexame de provas. súmula nº 07/stJ. Caracterização de culpa por parte dos agentes políticos. (...) iii - A ação
civil pública é imprescritível, porquanto inexiste disposição legal prevendo o seu prazo prescricional, não se
aplicando a ela os ditames previstos na Lei nº 4.717/65, específica para a ação popular” (REsp nº 586.248-MG, 1ª
turma. rel. min. Francisco Falcão. Julg. 6.4.2006. DJ, 04 maio 2006).
stF: “mandado de segurança. tribunal de Contas da união. Bolsista do CnPq. descumprimento da obrigação
de retornar ao país após término da concessão de bolsa para estudo no exterior. ressarcimento ao erário. inocorrência de prescrição. Denegação da segurança. I - O beneficiário de bolsa de estudos no exterior patrocinada
pelo Poder Público não pode alegar desconhecimento de obrigação constante no contrato por ele subscrito e
nas normas do órgão provedor. ii - Precedente: ms 24.519, rel. min. eros Grau. iii - incidência, na espécie, do
disposto no art. 37, §5º, da Constituição Federal, no tocante à alegada prescrição. iv - segurança denegada” (ms
nº 26.210-dF, Pleno. rel. min. ricardo Lewandowski. Julg. 4.9.2008. DJe, 10 out. 2008).
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
1. dano;
2. nexo de causalidade entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação)
ou negativo (omissão) do agente público;
3. “Oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público,
que, nessa condição funcional, tenha incidido em conduta comissiva ou omissiva,
independentemente da licitude, ou não, do seu comportamento funcional”.25
examinaremos, em seguida, cada um desses requisitos. reitera-se ao leitor, todavia,
que a responsabilidade civil do estado pressupõe, além da presença dos três requisitos
acima, que não se verifique qualquer das excludentes de responsabilidade civil (culpa
exclusiva do particular ou de terceiro, caso fortuito ou força maior).
17.7.1 dano
O primeiro requisito necessário à configuração da responsabilidade civil do
estado é a existência de dano sofrido por particular. A existência do dano, todavia, é
condição necessária, mas não suficiente para legitimar o particular a requerer indenização do poder público.
A conduta — comissiva ou omissiva — do poder público pode ser lícita ou ilícita.
Este ponto é irrelevante, conforme já foi observado anteriormente, para a configuração
do direito do particular de obter indenização. É necessário, ademais, que a conduta
imputável ao estado viole direito juridicamente tutelado.
nesse ponto, os exemplos apresentados pelo ilustre Celso Antônio Bandeira de
mello são bastante ilustrativos:
Por isso, a mudança de uma escola, de um museu, de um teatro, de uma biblioteca, de uma
repartição, pode representar para os comerciantes e profissionais instalados em suas imediações evidentes prejuízos, na medida em que lhes subtrai toda a clientela natural derivada
dos usuários daqueles estabelecimentos transferidos. não há dúvida de que os comerciantes
e profissionais vizinhos terão sofrido um dano patrimonial, inclusive o “ponto” comercial
ter-se-á desvalorizado. mas não haverá dano jurídico.26
Os exemplos apresentados pelo autor — que bem justificam por que o professor
Celso Antônio é tão celebrado — indicam que a caracterização do dano indenizável
pressupõe a violação de direito do particular. se não há violação de direito juridicamente
tutelado, não há que se falar em direito de obter indenização.
deve ser observado que se a conduta do estado é lícita, poderão surgir situações
de conflito de interesses ou de direitos. O exemplo inicialmente apresentado — de construção de represa que inundará propriedades privadas — não legitima a propositura
de ação para impedir a execução dessa obra, haja vista ser lícito ao estado construir
represas. A inundação das propriedades privadas, no entanto, importa em inequívoca
violação do direito de propriedade privada, o que, aliado ao dano sofrido pelo particular
com a destruição dos bens, justifica o direito de pedir indenização.
25
26
stF. re nº 291.035-sP. Informativo STF, nº 421.
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 904.
831
832
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
A possibilidade de propositura de ação de indenização contra o poder público
não se restringe, todavia, ao dano patrimonial. É pacífico o entendimento de que o
dano moral decorrente de conduta atribuível ao poder público, que importe em violação da privacidade, da intimidade, da honra, da imagem etc., igualmente legitimam a
responsabilização civil do estado.
no julgamento do re nº 215.984-rJ, o stF tratou da questão do dano moral. Pela
pertinência com que o tema foi abordado, apresentamos trecho do artigo publicado
em referido informativo:
8. Na hipótese sub judice a recorrente, artista consagrada, teve sua fotografia publicada
sem o seu expresso consentimento ou contratação, em violação à norma constitucional,
que protege e garante o direito à própria imagem (CF/88, art. 5º, X). (...). 9. o dano moral
envolve conceito inerente ao sentimento, sendo desnecessário que ofenda a reputação,
como equivocadamente entendeu o v. acórdão recorrido. existe, sim, uma agressão moral,
se considerada a imagem como um dos direitos da personalidade, a ser compensada satisfatoriamente. 10. A propósito do tema, vale destacar o lúcido voto proferido no resp
nº 270.730, pela eminente ministra nAnCY AndriGHi do superior tribunal de Justiça,
ao asseverar, in verbis: “A amplitude de que se utilizou o legislador no art. 5º, inc. X da
CF/88 deixou claro que a expressão ‘moral’, que qualifica o substantivo dano, não se
restringe àquilo que é digno ou virtuoso de acordo com as regras da consciência social.
É possível a concretização do dano moral, posto que a honra subjetiva tem termômetro
próprio inerente a cada indivíduo. É o decoro, é o sentimento de auto-estima, de avaliação
própria que possuem valoração individual, não se podendo negar esta dor de acordo
com sentimentos alheios. A alma de cada um tem suas fragilidades próprias. Por isso, a
sábia doutrina concebeu uma divisão no conceito de honorabilidade: honra objetiva, a
opinião social, moral, profissional, religiosa que os outros têm sobre aquele indivíduo,
e, honra subjetiva, a opinião que o indivíduo tem de si próprio. uma vez vulnerado, por
ato ilícito alheio, o limite valoração que exigimos de nós mesmos, surge o dever de compensar o sofrimento psíquico que o fato nos causar. É a norma jurídica incidindo sobre o
acontecimento íntimo que se concretiza no mais recôndito da alma humana, mas o que o
direito moderno sente orgulho de abarcar, pois somente uma compreensão madura pode
ter direito reparável, com tamanha abstratividade.” 11. Por oportuno, registre-se que o
mencionado acórdão restou assim ementado: “recurso especial. direito Processual Civil e
Direito Civil. Publicação não autorizada de foto integrante de ensaio fotográfico contratado
com revista especializada. Dano moral. Configuração. – É possível a concretização do dano
moral independentemente da conotação média de moral, posto que a honra subjetiva tem
termômetro próprio inerente a cada indivíduo. É o decoro, é o sentimento de auto-estima,
de avaliação própria que possuem valoração individual, não se podendo negar esta dor
de acordo com sentimentos alheios. (resp nº 270.730-rJ, rel. emin. ministra nAnCY
AndriGHi, in dJ de 07.5.01) (...). na verdade, o tribunal a quo emprestou ao dano moral
caráter restritivo, o que não se coaduna com a forma como a Constituição o trata, no inc. X
do art. 5º. O que precisa ser dito é que, de regra, a publicação da fotografia de alguém,
com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constrangimento ao
fotografado, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse
constrangimento. desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a
Constituição (art. 5º, X). (stF. re nº 215.984-rJ, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg.
4.6.2002. DJ, 28 jun. 2002)
A quantificação do dano moral suscita particularidades que levaram o stJ a admitir, em sede de recurso especial, a possibilidade de ser revisto o valor da indenização
fixado pelas instâncias inferiores. No julgamento do REsp nº 819.876-PI, essa questão
foi apresentada pela ementa do acórdão, nos termos seguintes:
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
Processual Civil e Administrativo. recurso especial. exame de dispositivos constitucionais.
inadmissibilidade. responsabilidade civil do estado. trânsito. irregular aplicação de multa.
Alegada ofensa aos arts. 282, da Lei 9.503/97, 186 e 188, do CC/2002. reexame de fatos
e provas. súmula 7/stJ. indenização. dano moral. valor exorbitante e desproporcional.
revisão. Possibilidade. Precedentes do stJ. recurso parcialmente conhecido e, nessa parte,
provido. (...) 4. o stJ consolidou entendimento no sentido de que é possível revisar o valor
da indenização por danos morais quando exorbitante ou insignificante a importância
arbitrada, em flagrante violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade,
sem que isso implique reexame dos aspectos fáticos da lide. (stJ. resp nº 819.876-Pi, 1ª
turma. rel. min. denise Arruda. Julg. 16.5.2006. DJ, 22 jun. 2006)
na apuração do valor do dano, deve ainda ser considerada incidência de correção monetária27 e de juros, conforme determinam três importantes súmulas do superior
tribunal de Justiça:
- incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo
prejuízo (súmula nº 43);
- Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, no caso de responsabilidade extracontratual (súmula nº 54); e
- nas indenizações por ato ilícito, os juros compostos somente são devidos por
aquele que praticou o crime (súmula nº 186).
17.7.2 nexo de causalidade
de acordo com a teoria da responsabilidade civil objetiva, o elemento que mais
reclama atenção para a configuração do dever de indenizar imposto ao poder público é o
nexo de causalidade entre a conduta comissiva ou omissiva e o dano sofrido pela vítima.
servindo-nos, uma vez mais, do exemplo do acidente dos veículos: se a vítima
alega que o dano sofrido decorreu de acidente com veículo oficial, não se espera que o
poder público prove que o acidente não ocorreu, ou que este não envolveu veículo da
sua frota. Cumpre à vítima que pede a indenização o ônus de provar que o dano sofrido
decorreu daquele acidente e que dele participou o veículo oficial pertencente à pessoa
jurídica de direito Público ou de direito Privado contra quem a indenização é pedida.
Afirmar que a responsabilidade civil do poder público é objetiva exonera a vítima do
ônus de provar que houve, por parte daquele contra quem se demanda, culpa, mas não
a libera do dever de provar que sofreu o dano e o nexo de causalidade.
em resumo, se particular pede indenização contra outro particular em decorrência
de acidente de trânsito, deve demonstrar: 1. o dano sofrido; 2. o nexo de causalidade
entre o dano e o acidente, vale dizer, que o dano decorreu daquele acidente; e 3. que
houve culpa (imperícia, imprudência, negligência ou dolo) por parte daquele contra
quem é pedida a indenização.
Caso a vítima pleiteie indenização contra pessoa de direito Público ou de direito
Privado prestadora de serviços públicos, deverá demonstrar: 1. o dano sofrido; e 2. o
nexo de causalidade entre o dano e o acidente. nesta hipótese, libera-se a vítima do
ônus de provar culpa por parte do agente público.
27
no caso de se tratar de dano moral, “a correção monetária incide desde a data do arbitramento” (súmula stJ 362).
833
834
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
A importância do nexo de causalidade surge de forma evidente na discussão de
importantes processos enfrentados pela jurisprudência pátria. tomemos o exemplo,
infelizmente muito comum no Brasil, de danos causados a particulares por presos
evadidos das prisões. o fato de o estado não cumprir seu dever de manter o preso em
cárcere é causa determinante dos danos que ele vier a causar aos particulares (roubos,
furtos, estupros etc.) quando se evade?
Nas hipóteses em que a jurisprudência condena o Estado, entende configurado
o nexo de causalidade entre a evasão do preso e dano causado ao particular; e nas
situações em que exonera o estado, utiliza o fundamento de que a fuga do preso não
teria sido a causa determinante para a prática dos ilícitos que teriam causado prejuízo
ao particular. vejamos as duas situações distintas:
1. no julgamento do re nº 409.203-rs, o estado foi condenado em razão de ter-se
entendido configurado nexo de causalidade:
em conclusão de julgamento, a turma, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do tribunal de Justiça do estado do rio Grande do sul que,
aplicando o princípio da responsabilidade objetiva do estado, julgara procedente pedido
formulado em ação indenizatória movida por vítimas de ameaça e de estupro praticados
por foragido do sistema penitenciário estadual, sob o fundamento de falha do estado na
fiscalização do cumprimento da pena pelo autor do fato, que, apesar de ter fugido sete
vezes, não fora sujeito à regressão de regime — v. informativos 391 e 399. Afastou-se, na
espécie, semelhanças do caso concreto com precedentes do supremo em que rejeitada a
responsabilidade do estado em razão de ato omissivo. Considerou-se caracterizada a falha
do serviço, a ensejar a responsabilidade civil do estado recorrente, bem como entendeu-se
presente o nexo causal entre a fuga do apenado e o dano sofrido pelas recorrentes, haja vista que,
se a Lei de execução Penal houvesse sido aplicada com um mínimo de rigor, o condenado
dificilmente teria continuado a cumprir pena nas mesmas condições que originariamente
lhe foram impostas e, por conseguinte, não teria a oportunidade de evadir-se pela oitava
vez e cometer o delito em horário no qual deveria estar recolhido ao presídio. vencido o
min. Carlos velloso que dava provimento ao recurso. Precedentes citados: re 130764/Pr
(dJu de 7.8.92); re 172025/rJ (dJu de 19.12.96); re 136247/rJ (dJu de 18.8.2000). (stF. re
nº 409.203-rs, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. rel. p/ acórdão min. Joaquim Barbosa.
Julg. 7.3.2006. DJ, 20 abr. 2007, grifos nossos)
2. no julgamento do re nº 172.025-rJ, o supremo tribunal Federal decidiu, ao
contrário, que o decurso de meses entre a fuga do preso e o latrocínio por ele cometido
importaria em rompimento do nexo de causalidade de modo que não se poderia falar
em responsabilidade civil do estado dado que a evasão do preso não teria sido a causa
determinante do dano:
responsabilidade Civil do estado. Art. 37, §6º, da Constituição Federal. Latrocínio
praticado por preso foragido, meses depois da fuga. Fora dos parâmetros da causalidade
não é possível impor ao Poder Público uma responsabilidade ressarcitória sob o argumento de
falha no sistema de segurança dos presos. Precedente da Primeira turma: re 130.764, relator
ministro moreira Alves. recurso extraordinário não conhecido. (“d.J.” de 19.12.96). nesse
re 172.025/rJ, cuidou-se de ação de reparação de dano proposta contra o estado do rio
de Janeiro, com base no art. 107 da CF/67, por ter sido o marido da autora vítima de
latrocínio praticado por presidiário foragido. Caso igual, portanto, ao que examinamos
aqui. (stF. re nº 172.025-rJ, 1ª turma. rel. min. ilmar Galvão. Julg. 8.10.1996. DJ, 19 dez.
1996, grifos nossos)
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
A discussão sobre a necessidade de ser demonstrado o nexo causal entre a conduta
comissiva ou omissiva do estado voltou a ser enfrentada pelo supremo tribunal Federal
no julgamento do re nº 291.035-sP. transcrevemos parte do artigo publicado:
É por isso que a ausência de qualquer dos pressupostos legitimadores da incidência da
regra inscrita no art. 37, §6º, da Carta Política basta para descaracterizar a responsabilidade
civil objetiva do estado, especialmente quando ocorre circunstância que rompe o nexo
de causalidade material entre o comportamento do agente público e a consumação do
dano pessoal ou patrimonial infligido ao ofendido. As circunstâncias do presente caso,
no entanto, apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente reconhecidos pelo tribunal
a quo, evidenciam que o nexo de causalidade material restou plenamente configurado
em face do comportamento comissivo em que incidiu o agente do Poder Público, que, ao
disparar arma de fogo da corporação à qual pertencia — e cuja posse somente detinha
em virtude de sua condição funcional de policial militar —, atingiu a vítima, que veio a
falecer. (Informativo STF, nº 421)
17.7.3 Oficialidade da conduta causal
Quando policial militar, utilizando arma da corporação, causa dano a particular,
deve ser admitida a responsabilidade civil do estado, ainda que ele não esteja em serviço
ou usando farda da corporação?
sobre essa questão, o texto constitucional, em seu art. 37, §6º, dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (...)”
(grifos nossos).
A expressão nessa qualidade indica — e não poderia ser diferente — que o agente
público deve estar no exercício da função pública para que se possa imputar às “pessoas
jurídicas de direito público ou de direito privado prestadoras de serviços públicos” a
responsabilidade pelas suas ações ou omissões. do exame de circunstâncias concretas,
nem sempre resulta simples concluir se a conduta do agente público deve ensejar a
responsabilidade civil do poder público.
A 2ª turma do supremo tribunal Federal, ao apreciar o tema, proferiu decisão
consubstanciada em acórdão assim ementado:
Constitucional. Administrativo. responsabilidade Civil do estado. C.F., art. 37, §6º. i - Agressão praticada por soldado, com a utilização de arma da corporação militar: incidência da
responsabilidade objetiva do estado, mesmo porque, não obstante fora do serviço, foi na
condição de policial militar que o soldado foi corrigir as pessoas. O que deve ficar assentado
é que o preceito inscrito no art. 37, §6º, da C.F., não exige que o agente público tenha agido no
exercício de suas funções, mas na qualidade de agente público. ii - r.e. não conhecido. (stF.
re nº 160.401-sP, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg. 20.4.1999. DJ, 04 jun. 1999)
no julgamento do re nº 363.423-sP, a 1ª turma do stF, ao tratar de questão muito
semelhante à anterior, decidiu em sentido aparentemente inverso, conforme indica parte
do artigo publicado:
A turma concluiu julgamento de recurso extraordinário interposto pelo estado de são Paulo
contra acórdão do tribunal de justiça daquele estado que, reconhecendo a existência de
835
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
836
responsabilidade objetiva, condenara o ente federativo a indenizar vítima de disparo de
arma de fogo, pertencente à corporação, utilizada por policial durante período de folga.
Alegava-se, na espécie, ofensa ao art. 37, §6º, da CF, uma vez que o dano fora praticado por
policial que se encontrava fora de suas funções públicas — v. informativo 362. Considerouse inexistente o nexo de causalidade entre o dano sofrido pela recorrida e a conduta de
policial militar, já que o evento danoso não decorrera de ato administrativo, mas de
interesse privado movido por sentimento pessoal do agente que mantinha relacionamento
amoroso com a vítima. Asseverou-se que o art. 37, §6º, da CF exige, para a configuração da
responsabilidade objetiva do estado, que a ação causadora do dano a terceiro tenha sido
praticada por agente público, nessa qualidade, não podendo o estado ser responsabilizado
senão quando o agente estatal estiver a exercer seu ofício ou função, ou a proceder como se
estivesse a exercê-la. entendeu-se, ainda, inadmissível a argüição de culpa, in vigilando ou
in eligendo, como pressuposto para a fixação da responsabilidade objetiva estatal, que tem
como requisito a prática de ato administrativo pelo agente público no exercício da função
e o dano sofrido por terceiro. O relator retificou o voto anterior. (STF. RE nº 363.423-SP, 1ª
Turma. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 16.11.2004. DJe, 14 mar. 2008)
o exame desses dois julgados demonstra a controvérsia suscitada pelo tema
nos tribunais.28 A partir desses acórdãos é possível concluir que restará caracterizada a
oficialidade da conduta do agente quando este:
- estiver no exercício das funções públicas;
- Ainda que não esteja no exercício da função pública, proceda como se estivesse
a exercê-la; ou
- Quando o agente tenha-se valido da qualidade de agente público para agir.
O requisito da oficialidade é igualmente discutido em razão da atuação do denominado agente de fato. A situação enfrentada no re nº 341.776-Ce é bastante ilustrativa
dessa discussão, razão pela qual transcrevemos o artigo publicado:
A turma, em conclusão de julgamento, deu provimento a recurso extraordinário interposto
contra acórdão do tribunal de justiça local que, reconhecendo a responsabilidade civil
objetiva do estado do Ceará, condenara-o a indenizar família de policial de fato, morto
em horário em que prestava serviço, ao fundamento de que o Poder Público, ao permitir
tal situação, assumira os riscos conseqüentes, não importando os motivos do crime – v.
informativo 431. Considerou-se inexistente o nexo de causalidade entre a atividade de
policial exercida pela vítima e sua morte, independentemente do fato daquela exercer
a função de modo irregular. Asseverou-se que o agente causador do óbito era estranho
aos quadros da Administração Pública e que cometera o delito motivado por interesse
privado, decorrente de ciúme de sua ex-companheira. (stF. re nº 341.776-Ce, 2ª turma.
rel. min. Gilmar mendes. Julg. 17.4.2007. DJe, 03 ago. 2007)
28
A jurisprudência do stF parece consolidar-se no sentido de que o estado deve ser responsabilizado em decorrência
de disparos realizados por policial militar, desde que utilize a arma da corporação, independentemente de estar
fardado ou em serviço. nesse sentido, vide re nº 291.035-sP: “responsabilidade civil objetiva do estado (CF,
art. 37, §6º). Policial militar, que, em seu período de folga e em trajes civis, efetua disparo com arma de fogo
pertencente à sua corporação, causando a morte de pessoa inocente. reconhecimento, na espécie, de que o uso e
o porte de arma de fogo pertencente à Polícia militar eram vedados aos seus integrantes nos períodos de folga.
Configuração, mesmo assim, da responsabilidade civil objetiva do Poder Público. Precedente (RTJ 170/631).
Pretensão do estado de que se acha ausente, na espécie, o nexo de causalidade material, não obstante reconhecido
pelo tribunal a quo, com apoio na apreciação soberana do conjunto probatório. inadmissibilidade de reexame
de provas e fatos em sede recursal extraordinária. Precedentes específicos em tema de responsabilidade civil
objetiva do estado. Acórdão recorrido que se ajusta à jurisprudência do supremo tribunal Federal. reconhecido
e improvido” (Informativo STF, n. 421).
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
no caso, resta evidente que além do nexo de causalidade, é necessário para que
se demonstre que o referido agente, de fato ou de direito, encontrava-se no exercício
da sua atividade, ou que havia uma aparência de que agia nessa qualidade. A simples
circunstância de ser servidor ou agente de fato ou de direito não basta para justificar
a responsabilidade civil do estado, sendo necessário que o evento causador do dano
mantenha relação com a função pública exercida pelo agente.
Em relação especificamente ao agente de fato, para que se estabeleça o nexo de
causalidade entre sua atuação e o poder público, ou seja, para que reste caracterizada
a responsabilidade civil do estado, é necessário, ademais, que o poder público consinta
ou que de qualquer modo permita a atuação do agente de fato.
em situações em que não seja possível ao poder público impedir que determinado
indivíduo se faça passar por servidor público, não há como responsabilizar o estado
por absoluta falta do nexo de causalidade.
17.8 omissão e responsabilidade civil do estado
17.8.1 teoria objetiva e teoria subjetiva
este talvez constitua o aspecto mais controvertido no estudo da responsabilidade civil do estado. A grande dúvida, persistente até os dias atuais na doutrina e na
jurisprudência, consiste em saber se, na omissão, a responsabilidade civil do estado é
objetiva ou subjetiva.
A leitura dos julgados do stF e stJ a seguir indicados bem ilustra a controvérsia
sobre o tema:
Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo
que exige dolo ou culpa, esta numa de suas três vertentes, a negligência, a imperícia ou
a imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser
atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. ii. - A falha do serviço
— faute du service dos franceses — não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do
nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a
terceiro. iii. - Crime de estupro praticado por apenado fugitivo do sistema penitenciário
do estado: nesse caso, não há falar em nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o
crime de estupro, observada a teoria, quanto ao nexo de causalidade, do dano direto e
imediato. (stF. re nº 409.203-rs, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. rel. p/ acórdão min.
Joaquim Barbosa. Julg. 7.2.2006. DJ, 20 abr. 2007, grifos nossos)
não ofende o §6º, do art. 37 da CF (“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito
privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa
qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos
casos de dolo ou culpa.”) acórdão que reconhece o direito de indenização à mãe de preso
assassinado dentro da própria cela por outro detento. Com base nesse entendimento e
afirmando a responsabilidade objetiva do Estado ante a omissão no serviço de vigilância
dos presos, a turma não conheceu de recurso extraordinário interposto pelo estado de
são Paulo, afastando a alegação de que o dano não teria sido causado por agente estatal.
(stF. re nº 170.014-sP, 1ª turma. rel. min. ilmar Galvão. Julg. 31.10.1997. DJ, 13 fev. 1998)
A responsabilidade extracontratual objetiva do estado é consequência da ação ou omissão
dos agentes do estado ou de pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviço
837
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
838
público em função delegada e causam danos a terceiros. (...) Para ter direito à indenização,
aquele que sofreu o dano produzido por ato ilícito atribuído ao estado deve provar o
nexo causal e a inexistência de qualquer das excludentes da responsabilidade estatal. (stJ.
resp nº 734.234-rJ, 2ª turma. rel. min. eliana Calmon. Julg. 16.2.2006. DJ, 13 mar. 2006)
no campo da responsabilidade civil do estado, se o prejuízo adveio de uma omissão do Estado,
invoca-se a teoria da responsabilidade subjetiva. (stJ. resp nº 549.812-Ce, 2ª turma. rel. min.
Franciulli Netto. Julg. 6.5.2004. DJ, 31 maio 2004, grifos nossos)
A divergência acerca do tema se inicia com a teoria da falta do serviço (faute
du service), segundo a qual a falta (omissão), o atraso ou a deficiência na prestação
do serviço público que causem dano a particulares ensejam a responsabilidade civil
subjetiva do estado.
entre nós, Celso Antônio Bandeira de mello pode ser apontado como o grande
defensor da tese de que, na omissão, a responsabilidade do Estado é subjetiva. Afirma
o autor:
Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do estado (o serviço não
funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor
do dano. e, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o
dano. isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha
obstar ao evento lesivo.29
em sentido contrário, Hely Lopes meirelles sustenta a natureza objetiva da responsabilidade civil do estado:
nessa substituição da responsabilidade individual do servidor pela responsabilidade
genérica do Poder Público, cobrindo o risco da sua ação ou omissão, é que se assenta a
teoria da responsabilidade objetiva da Administração, vale dizer, da responsabilidade sem
culpa, pela só ocorrência da falta anônima do serviço, porque esta falta está, precisamente,
na área dos riscos assumidos pela Administração para a consecução de seus fins.30
A tese de que, na omissão, a responsabilidade do estado é subjetiva se assenta
em dois fundamentos básicos:
- o texto constitucional (art. 37, §6º – responsabilidade objetiva) somente é aplicável às condutas comissivas (às ações) dos agentes estatais, sendo à omissão
estatal aplicável o Código Civil (artigos 186 e 927), que disciplina a responsabilidade subjetiva;
- Para que o estado possa ser responsabilizado é necessário que a vítima do dano
demonstre que o estado se omitiu, que descumpriu dever de agir decorrente
de lei.
Analisaremos, em seguida, cada um desses argumentos.
o primeiro deles, segundo o qual a Constituição Federal somente cuida da atuação
comissiva estatal, não nos parece, máxima vênia, correto.
29
30
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 895.
meireLLes. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 566.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
em seu art. 37, §6º, ao dispor que “as pessoas jurídicas de direito público e as de
direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes,
nessa qualidade, causarem a terceiros (...)” o texto constitucional não apresenta qualquer
distinção que justifique atribuir à omissão do Estado tratamento jurídico distinto daquele
conferido à ação. não nos parece razoável que a expressão “pelos danos que seus agentes,
nessa qualidade, causarem a terceiros” somente se refira às ações dos agentes públicos.
As pessoas jurídicas públicas ou privadas atuam necessariamente por meio dos
seus agentes — não tendo sido concebido, até o momento, qualquer outra forma para
as entidades jurídicas se expressarem, atuarem ou deixarem de atuar. no caso da ação,
é efetivamente mais simples identificar o agente causador do dano e atribuir à pessoa
jurídica em cujo nome o agente atua o dever de ressarci-lo. A pergunta a ser feita é a
seguinte: por que na omissão a solução haveria de ser diferente?
se a lei atribui a determinada pessoa jurídica (de direito Público ou de direito
Privado prestadora de serviço público) o dever de agir, e esta pessoa não pratica o ato
ou desenvolve a atividade que o ordenamento reclama, é evidente que a omissão da
pessoa jurídica se deve necessariamente à omissão dos seus agentes, independentemente
da razão para a omissão: falta de planejamento, falta de disponibilidade financeira,
desorganização, negligência, imperícia, dolo etc.
não nos parece razoável, desse modo, imputar às mencionadas pessoas jurídicas
de direito Público ou de direito Privado prestadoras de serviços públicos responsabilidade objetiva pela ação dos seus agentes, negando-lhes essa responsabilidade quando
o agente deixar de atuar, quando se omitir. A existência de dificuldades — ou mesmo
a impossibilidade — de se identificar o agente omisso é absolutamente irrelevante para
caracterizar a omissão estatal. Exatamente em razão das dificuldades para a identificação do agente se desenvolveu a teoria da falta anônima. Assim, o estado pode ser
responsabilizado pela omissão, ainda que não seja possível identificar o agente que
deixou de praticar o ato ou de desenvolver a atividade que lhe competia.
o segundo argumento em favor da tese de que na omissão a responsabilidade
civil do estado é subjetiva se assenta na necessidade de ser provado que o dano decorreu
da omissão estatal, ônus que se atribui à vítima.
nesse ponto, a tese da responsabilidade civil subjetiva do estado nos parece
ainda mais vulnerável.
Ao se exigir da vítima, para obter indenização do estado, a prova de que: 1. o
estado teria que agir; 2. não o fez; e 3. que daí resultou o prejuízo sofrido, não se está a
reclamar que a prova da omissão decorreu da culpa de quem quer que seja. A prova de
que o dano sofrido decorre da omissão ou da ação do estado está relacionada ao nexo
de causalidade, um dos requisitos necessários à responsabilidade objetiva do estado.
no julgamento do resp nº 819.789-rs, o stJ adota a tese da responsabilidade civil
subjetiva em razão da omissão do estado.31 o simples exame do caso revela, todavia,
31
“Administrativo e direito público. escola. saída de aluno. estupro de menor em regular horário escolar. Liberação. responsabilidade civil subjetiva do estado. omissão. dever de vigilância. negligência. Caracterização.
Artigos 186 e 927 do novo Código Civil. dano moral. i - mesmo diante das novas disposições do novo Código
Civil, persiste o entendimento no sentido de que, “no campo da responsabilidade civil do estado, se o prejuízo
adveio de uma omissão do estado, invoca-se a teoria da responsabilidade subjetiva” (resp nº 549.812/Ce, rel.
min. FrAnCiuLLi netto, dJ de 31/05/2004). ii - ‘...o Poder Público, ao receber o menor estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação
de sua integridade física...’. iii - A escola não pode se eximir dessa responsabilidade ao liberar os alunos, pelo
839
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
840
que o poder público foi responsabilizado pelo simples fato de ter-se omitido na adoção
de providências que lhe competiam: “o dever de velar pela preservação da integridade
física do menor estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino”.32
se houve dano, e se este decorreu da omissão do estado — conforme se examina
no caso anterior —, irrelevante indagar de culpa. demonstrados pela vítima os dois
requisitos (dano e nexo de causalidade), o estado deve ser responsabilizado quer o
eventus damni decorra da ação ou da omissão estatal. Cuida-se, portanto, em ambos os
casos — diversamente do que foi afirmado no mencionado arresto — de aplicação da
teoria da responsabilidade civil objetiva do estado (CF, art. 37, §6º).
este constitui um dos aspectos mais controvertidos da discussão: para demonstrar
o nexo causal, há necessidade de demonstrar a omissão, e para demonstrar a omissão,
não acaba sendo tangenciada a questão de culpa? ou seja, a necessidade de demonstrar
a omissão não importaria necessariamente na discussão da prova da culpa do poder
público?
de acordo com a teoria subjetiva, a necessidade de demonstrar a omissão do
estado importa em examinar a culpa anônima do estado. eis o ponto em que as duas
teorias se distanciam: na teoria objetiva, a necessidade da vítima de demonstrar a omissão do estado diz respeito ao nexo de causalidade e, na teoria subjetiva, este mesmo
elemento diz respeito à culpa anônima.
Para melhor entendermos a questão, tomemos como exemplo situação comum
em centros urbanos: a queda de árvores em veículos estacionados em vias públicas.
o poder público é chamado a ressarcir esse tipo de dano, porque lhe compete
conservar as vias públicas, adotando as medidas necessárias à segurança e à preservação
da integridade das pessoas e dos bens que por elas trafegam. na hipótese de árvores
ou galhos que danificam veículos, o Estado é chamado a ressarcir o prejuízo, independentemente de culpa, em razão do nexo de causalidade decorrente da sua omissão,
que deve providenciar a poda das árvores, e o dano dela decorrente. se, todavia, o
poder público é demandado e demonstra que adotou todas as providências que lhe
cabia, ou seja, que realizou a poda com a observância de todos os parâmetros técnicos e
ambientais exigidos, e que, em razão de forte vendaval — de intensidade poucas vezes
vista naquela região — houve o dano, não há que se falar em responsabilidade civil do
estado. no caso, se o estado logra demonstrar que não houve omissão, ele é isento de
responsabilidade porque descaracteriza o nexo de causalidade, e não por que houve
ou deixou de haver culpa.
em conclusão, a discussão sobre a responsabilidade civil do estado na omissão,
especificamente acerca do seu enquadramento na teoria objetiva ou na teoria subjetiva,
vem de muito tempo, e não há sinais de que venha a ser adotada uma teoria em detrimento
32
simples fato de ter havido bilhete na agenda dos menores no sentido da inexistência de aulas nos dois últimos
períodos de determinado dia. Liberada a recorrente naquele horário, que seria de aula regular, e dirigindo-se
para casa, sem os responsáveis, culminou por ser molestada sexualmente em terreno vizinho à escola, que se
sabia ser extremamente perigoso. Presentes os pressupostos da responsabilidade civil (conduta culposa, nexo
causal e dano). iv - violação aos artigos 186 e 927 do Código Civil caracterizada, bem como a responsabilidade
subjetiva do estado na hipótese, devendo os autos retornarem ao tribunal a quo, por ser a Corte competente
para, diante do exame do quadro fático-probatório, fixar a indenização respectiva. V - Recurso provido.” (STJ.
resp nº 819.789-rs, 1ª turma. rel. min. Francisco Falcão. Julg. 25.4.2006. DJ, 25 maio 2006)
stF. re nº 109.615-rJ, 1ª turma. rel. min. Celso de mello. Julg. 28.5.1996. DJ, 02 ago. 1996.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
da outra. É certo, todavia, que na jurisprudência é mais fácil identificar a menção à teoria
subjetiva quando se trata de situações de omissão do estado.33
o certo, todavia, é que uma teoria não se diferencia tanto assim da outra. os que
defendem a aplicação da teoria da responsabilidade subjetiva às omissões do estado
afirmam que a culpa do poder público reside exatamente em sua inação. Ou seja, basta
que o estado não tenha cumprido o dever de agir que a lei lhe impõe para que se caracterize a culpa. nesse sentido, as duas teorias muito se aproximam e, na prática, utilizar
uma pela outra não resulta em grande distinção. A divergência reside tão somente na
circunstância de que, na teoria subjetiva, a omissão do Estado é identificada como uma
conduta necessariamente culposa; ao passo que os defensores da responsabilidade
objetiva identificam a omissão como o eventus damni, sendo a partir dele estabelecido
o nexo de causalidade com o dano, independentemente da razão que tenha levado à
inação do estado.34
17.8.2 omissão do estado e teoria da reserva do possível
o estado responde pela ação e pela omissão. este ponto é incontroverso. A controvérsia reside na seguinte questão: sempre que houver omissão por parte do estado
no cumprimento de dever imposto pelo ordenamento jurídico, e daí resultar em prejuízo
para particular, é possível arguir-se a responsabilidade civil do estado?
O Estado — especificamente os Estados Federados —, nos termos da Constituição
Federal, tem o dever de prestar serviços de segurança pública. se alguém é assaltado,
poder-se-ia, independentemente de qualquer outra circunstância, questionar a responsabilidade do poder público que deixou de cumprir sua obrigação de prestar serviços
de segurança pública?
33
34
stJ: “Aplicação da teoria da responsabilidade Civil subjetiva. omissão do Poder Público. Pleito de danos materiais e morais. morte de funcionário em hospital público. Fato presumível. Onus probandi. (...) 3. em se tratando
de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes dos adeptos da responsabilidade objetiva e
aqueles que adotam a responsabilidade subjetiva, prevalece na jurisprudência a teoria subjetiva do ato omissivo,
de modo a só ser possível indenização quando houver culpa do preposto. 4. Falta no dever de vigilância em
hospital psiquiátrico, com fuga e suicídio posterior do paciente. 5. incidência de indenização por danos morais. 6.
recurso especial provido (...)” (resp nº 738.833-rJ, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 8.8.2006. DJ, 28 ago. 2006).
stF: “Constitucional e Administrativo. Agravo regimental em recurso extraordinário. responsabilidade extracontratual do estado. Ato omissivo. responsabilidade subjetiva. Agente público fora de serviço. Crime praticado
com arma da corporação. Art. 37, §6º, da CF/88. 1. ocorrência de relação causal entre a omissão, consubstanciada
no dever de vigilância do patrimônio público ao se permitir a saída de policial em dia de folga, portando o revólver
da corporação, e o ato ilícito praticado por este servidor. 2. responsabilidade extracontratual do estado caracterizada. 3. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. 4. Agravo
regimental improvido” (re nº 213.525-Agr/sP, 2ª turma. Julg. 9.12.2008. DJe, 06 fev. 2009).
stF: “Constitucional e Administrativo. Agravo regimental em recurso extraordinário. responsabilidade extracontratual do estado. omissão. danos morais e materiais. Crime praticado por foragido. Art. 37, §6º, CF/88. Ausência de nexo causal. 1. inexistência de nexo causal entre a fuga de apenado e o crime praticado pelo fugitivo.
Precedentes. 2. A alegação de falta do serviço — faute du service, dos franceses — não dispensa o requisito da
aferição do nexo de causalidade da omissão atribuída ao poder público e o dano causado. 3. É pressuposto da
responsabilidade subjetiva a existência de dolo ou culpa, em sentido estrito, em qualquer de suas modalidades
— imprudência, negligência ou imperícia. 4. Agravo regimental improvido” (re nº 395.942-rs, 2ª turma. rel.
min. ellen Gracie. Julg. 16.12.2008. DJe, 27 fev. 2009).
A título de curiosidade: a Lei nº 12.663/2012, que dispõe sobre medidas relativas à Copa do mundo de 2014 e
outros eventos esportivos, prevê que “a união responderá pelos danos que causar, por ação ou omissão, à FiFA, seus
representantes legais, empregados ou consultores, na forma do §6º do art. 37 da Constituição Federal” (art. 22, grifos
nossos). Percebe-se que, para evitar a controvérsia tratada neste tópico, o legislador cuidou de deixar expressa
a possibilidade de responsabilização objetiva do estado, mesmo por omissão, no que diz respeitos a danos que
venham a ser causados à FiFA e seus prepostos.
841
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
842
A efetivação dos deveres impostos pela ordem constitucional ao estado —
especialmente no que concerne aos denominados direitos de segunda geração, que se
relacionam aos direitos sociais, econômicos e culturais — requer imenso esforço material, sobretudo de natureza financeira. Se limitações de ordem orçamentária impedem
o estado de cumprir adequadamente suas tarefas, poder-se-ia arguir a inexistência do
nexo de causalidade (dever do estado de agir e dano dele decorrente) para afastar a
responsabilidade civil do estado?
trata-se de questão deveras tormentosa, que entre nós tem sido denominada de
teoria da reserva do possível.35
nesta inovadora obra, são apresentadas as premissas da discussão do tema.
A questão básica se restringe à alegação da incapacidade financeira do Estado como
fundamento para desonerá-lo do dever de dar cumprimento a deveres constitucionais.
este tema foi magistralmente examinado pelo stF no julgamento do re nº 410.715-sP.
o relator do recurso, o sempre brilhante min. Celso de mello, tratou o tema de forma
precisa. no caso, se examinava a alegação de que limitações orçamentárias liberariam o
estado do dever de prestar serviços de educação infantil e de atendimento em creche.
transcrevemos trecho do artigo publicado:
não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais — além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização — depende, em grande
medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade
econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então,
considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no
texto da Carta Política. não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese,
criar obstáculo artificial que revele — a partir de indevida manipulação de sua atividade
financeira e/ou político-administrativa — o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de
fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e
dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (AdPF 45/dF, rel. min. CeLso
de meLLo, informativo/stF nº 345/2004). Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da
“reserva do possível” — ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível
— não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente,
do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta
governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos
constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. daí a correta
observação de reGinA mAriA FonseCA muniZ (“o direito à educação”, p. 92, item
n. 3, 2002, Renovar), cuja abordagem do tema — após qualificar a educação como um dos
direitos fundamentais da pessoa humana — põe em destaque a imprescindibilidade de
sua implementação, em ordem a promover o bem-estar social e a melhoria da qualidade
de vida de todos, notadamente das classes menos favorecidas, assinalando, com particular
ênfase, a propósito de obstáculos governamentais que possam ser eventualmente opostos
ao adimplemento dessa obrigação constitucional, que “o estado não pode se furtar de tal
dever sob alegação de inviabilidade econômica ou de falta de normas de regulamentação”.
(stF. re nº 410.715-sP, decisão monocrática. rel. min. Celso de mello. Julg. 26.10.2005. DJ,
07 nov. 2005)
35
sobre o tema, merece destaque a obra de HoLmes; sunstein. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on
taxes.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
Ao acolher o voto do relator, o STF firma em nossa jurisprudência a tese de que
limitações orçamentárias não podem ser utilizadas como fundamento para eximir o
estado do dever de cumprir seus deveres constitucionais básicos, especialmente no que
diz respeito àqueles relacionados à realização dos direitos fundamentais.36
A regra não é fixada, todavia, de forma absoluta. Em seu voto, o relator ressalva
que “comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira
da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a
limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da
Carta Política”.
Em resumo, é possível afirmar que se for demonstrado que a impossibilidade
de agir do estado é real, que se deve à efetiva inexistência de recursos orçamentários,
deve ser afastada a responsabilidade do poder público pela não prestação de serviços
ou pela não realização de obras públicas. ou seja, a teoria da reserva do possível não é
totalmente afastada do nosso ordenamento e não deve ser, portanto, desconsiderada por
completo nas situações em que a impossibilidade de agir do estado se deva à absoluta
incapacidade de atuação por força de limitações orçamentárias ou financeiras.
Se a inexistência dos recursos financeiros voltados à satisfação dos direitos
fundamentais da população decorre, todavia, de opções “discricionárias” do poder
público, em razão de os parlamentares responsáveis pela aprovação dos orçamentos e
de os chefes do executivo incumbidos da sua execução, que por motivações políticas ou
administrativas podem preferir destinar os recursos públicos para outros fins, muitas
vezes eleitoreiros, ou que possam ser mais facilmente desviados, não se mostra razoável
afastar ou atenuar o dever do estado de agir.
temos, portanto, regra e exceção. A regra é a de que limitações orçamentárias não
podem legitimar a não atuação do estado no cumprimento das tarefas relacionadas ao
cumprimento dos deveres fundamentais. A exceção, em que se aplica a teoria da reserva
do possível, é admitida em situações em que seja demonstrada a impossibilidade real de
atuação do estado em razão das limitações orçamentárias. Assim, se existem recursos
públicos, mas se optou pela sua utilização em outros fins, não voltados à realização
dos direitos fundamentais, não é legítima a arguição da teoria da reserva do possível.
17.9 responsabilidade civil do estado e concessionárias de serviços
públicos
17.9.1 responsabilidade pelos danos causados aos usuários
A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito Privado prestadoras de
serviços públicos, nos termos da Constituição Federal, art. 37, §6º, é objetiva. trata-se
de questão incontroversa.
36
no mesmo sentido, as seguintes deliberações do stF: Ai nº 677.274-sP, decisão monocrática. rel. min. Celso de
mello. Julg. 18.9.2008. DJe, 1º out. 2008; e Adi nº 3.768-dF, Pleno. rel. min. Cármen Lúcia. Julg. 19.9.2007. DJe, 26
out. 2007.
843
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
844
Controvertida, todavia, é a discussão acerca da responsabilidade do poder
concedente (estado), nas hipóteses de delegação de serviço público.37 Predomina, na
doutrina e na jurisprudência,38 a tese da responsabilidade subsidiária, da qual divergimos.
Celso Antônio Bandeira de mello defende que o poder público deve ser responsabilizado nas hipóteses em que o delegatário não seja capaz de ressarcir os danos que tenha
causado: “é razoável, então, concluir que os danos resultantes de atividade diretamente
constitutiva do desempenho do serviço, ainda que realizado de modo faltoso, acarretam,
no caso de insolvência do concessionário no exercício de atividade e poderes incumbentes ao concedente”.39 idêntica solução é apresentada por José dos santos Carvalho Filho.
Afirma o ilustre autor que se “o concessionário não tiver meios efetivos para reparar os
prejuízos causados, pode o lesado dirigir-se ao concedente, que sempre terá responsabilidade subsidiária pelo fato de ser o concessionário um agente seu”.40
discordamos, com a devida vênia, da conclusão dos ilustres autores.
os danos causados pelas concessionárias de serviço público podem ensejar
responsabilidade da própria concessionária ou do poder público concedente. A razão
para que um ou que o outro sejam responsabilizados é distinta. não há que se falar,
em qualquer caso, em responsabilidade subsidiária do poder público.
A subsidiariedade do poder público importaria em que poder público somente
poderia ser chamado a ressarcir os danos causados pelas concessionárias na eventualidade
de estas últimas não terem condições de fazê-lo. Admitida a tese da subsidiariedade,
a vítima deveria propor a ação contra a concessionária e esgotar as possibilidades de
obter o ressarcimento dos danos sofridos junto a essa entidade para poder propor ação
contra o poder público. não é dessa forma, todavia, que se desenvolve a responsabilidade civil do estado pelos danos causados pelos delegatários de serviços públicos.
A responsabilidade do estado, no caso, é direta. deve-se, todavia, ter cuidado
para não confundir a causa da responsabilidade civil da concessionária com a do poder
concedente.
37
38
39
40
stF: “os titulares das serventias de notas e registros são servidores públicos em sentido amplo, pois são ocupantes de cargo público criado por lei, submetido à fiscalização do Estado e diretamente remunerado à conta da
receita pública, bem como provido por concurso público. Com esse entendimento, a Turma confirmou acórdão
do tribunal de Justiça do estado do Paraná que condenou o estado, ora recorrente, baseado na sua responsabilidade civil por dano causado por serventuário de cartório de registro a adquirente de imóvel. Afastou-se a
alegação do recorrente no sentido de que os oficiais de registro não detêm a condição de servidores públicos
para efeito da responsabilidade objetiva do estado por serem os serviços notariais exercidos em caráter privado
por delegação do Poder Público (CF, art. 236). Precedente citado: re 178.236-rJ (dJu de 11.4.97)” (re nº 87.753Pr. Informativo STF, n. 143).
“recurso especial. responsabilidade subsidiária. Poder concedente. Cabimento. Prescrição. não ocorrência. 1. Há
responsabilidade subsidiária do Poder Concedente, em situações em que o concessionário não possuir meios de
arcar com a indenização pelos prejuízos a que deu causa. Precedentes. 2. no que tange à alegada ofensa ao art. 1º,
do decreto 20.910/32, mostra-se improcedente a tese de contagem da prescrição desde o evento danoso, vez que os
autos revelam que a demanda foi originalmente intentada em face da empresa concessionária do serviço público,
no tempo e no modo devidos, sendo que a pretensão de responsabilidade subsidiária do estado somente surgira
no momento em que a referida empresa tornou-se insolvente para a recomposição do dano. 3. em apreço ao princípio da actio nata que informa o regime jurídico da prescrição (art. 189, do CC), há de se reconhecer que o termo
a quo do lapso prescricional somente teve início no momento em que se configurou o fato gerador da responsabilidade subsidiária do Poder Concedente, in casu, a falência da empresa concessionária, sob pena de esvaziamento
da garantia de responsabilidade civil do estado nos casos de incapacidade econômica das empresas delegatárias
de serviço público. 4. recurso especial não provido” (stJ. resp nº 1.135.927-mG, 2ª turma. rel min. Castro meira.
Julg. 10.8.2010. DJe, 19 ago. 2010).
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 700.
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
Pelos atos praticados pela concessionária que causem prejuízos aos particulares
responde ela (concessionária ou permissionária do serviço), não assumindo o estado,
como regra, responsabilidade alguma. os delegatários de serviço público atuam em
nome próprio e seus atos e omissões ensejam responsabilidade exclusivamente para
suas pessoas.
se, por exemplo, empresa privada permissionária de serviço de transporte coletivo urbano se envolve em acidente e causa dano a usuário do serviço, ela responde de
forma objetiva, e por esse ato não assume o poder público (poder concedente) qualquer
responsabilidade.
A responsabilidade do estado (concedente) deve ser questionada nas hipóteses
em que ele tenha falhado no desempenho do dever básico que a lei lhe impõe: o dever
de fiscalizar a prestação do serviço. Se o delegatário do serviço público presta serviços
sem atender às condições técnicas ou materiais minimamente necessárias à prestação do
serviço adequado (Lei nº 8.987/95, art. 6º),41 resta evidente a falha ou falta de fiscalização.
nestas situações o poder público concedente deve ser responsabilizado.
não se trata, portanto, de responsabilidade subsidiária, mas de responsabilidade
direta decorrente da falta do cumprimento do dever legal de fiscalizar.
se ocorre acidente aéreo, cumpre à empresa concessionária o dever de indenizar
os danos sofridos pelas vítimas. se o acidente ocorreu em decorrência de a empresa
utilizar aeronaves sem a observância das normas de segurança fixadas pela legislação,
fato imputável à falta de fiscalização do Estado, este também responde. A concessionária é obrigada a ressarcir os danos em razão do próprio acidente; o poder público, em
razão da sua omissão no dever de fiscalizar. São, portanto, independentes as responsabilidades do poder concedente e da concessionária em razão de que os eventos que
ensejam o dever de indenizar de um não se confundem com o do outro. Caso o poder
público demonstre que não foi omisso no dever de fiscalizar as empresas aéreas e que,
não obstante, ocorreu o acidente aéreo, não é possível atribuir ao estado o dever de
indenizar o dano sofrido pelas vítimas em razão da falta de nexo de causalidade entre
a conduta do estado e mencionados prejuízos.42
41
42
A Lei nº 8.987/95, em seu art. 6º, §1º, dispõe que “serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade,
continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
A responsabilização do estado no contexto em exame envolve igualmente a discussão acerca das teorias do nexo
causal.
sobre o tema são mencionadas duas teorias do nexo causal: 1. equivalências das condições ou conditio sine qua non;
2. causalidade adequada. Há ainda referências à teoria dos danos diretos e imediatos ou causalidade imediata.
na teoria das equivalências das condições, todo o antecedente que contribui para o resultado é causa. na causalidade adequada, a causa seria o fato antecedente, não só necessário, mas, ainda, adequado à produção do resultado. segundo essa teoria, é considerada causa apenas aquela condição mais apropriada a produzir o resultado,
ou seja, aquela que, de acordo com a experiência comum, for a mais idônea à realização do evento danoso.
no julgamento do re nº 130.764-Pr, o relator defendeu a aplicação da teoria do dano direto e imediato: “em
nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil [art. 403 do novo CC. ‘Ainda
que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela [da inexecução] direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual’, dispositivo
inserido no título ‘do inadimplemento das obrigações], a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria
do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito à impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se
ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das
condições e a da causalidade adequada’” (stF. re nº 130.764-Pr, 1ª turma. rel. min. moreira Alves. Julg. 12.5.1992.
DJ, 07 ago. 1992, grifos nossos).
845
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
846
essa linha de raciocínio foi utilizada no julgamento do re nº 258.726-AL:
Por entender não caracterizada a alegada ofensa ao art. 37, §6º, da CF, a turma manteve
acórdão do trF da 5ª região que condenara a união ao pagamento de indenização por
danos morais e materiais aos recorridos, em face da morte dos seus pais em decorrência
de acidente aéreo. o acórdão recorrido, na espécie, entendera manifesto o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a omissão do agente estatal responsável pela fiscalização das
atividades de aviação civil, no caso o departamento de Aviação Civil – dAC, comprovada
pela situação irregular em que se encontrava a aeronave, sem o cumprimento de requisitos
mínimos de segurança, bem como pela confirmação, segundo laudo do próprio Ministério
da Aeronáutica, de que o checador, oficial da aeronáutica, que operava a aeronave — em
situação também irregular. (stF. re nº 258.726-AL, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence.
Julg. 14.5.2002. DJ, 14 jun. 2002)
A responsabilidade civil do estado, no caso, não se deveu à insolvência da empresa
concessionária, requisito exigido pelos dois ilustres autores mencionados para a responsabilização do poder concedente. o poder público foi condenado a ressarcir os danos
sofridos pelas vítimas do acidente aéreo simplesmente em razão de não ter desenvolvido
adequadamente a tarefa que lhe cabia, permitindo que empresa aérea prestasse serviço
de forma inadequada. Assim, é evidente que nem todo acidente causado por empresa
concessionária pode ser atribuído à falta ou a deficiências na fiscalização do Estado. Caso
seja demonstrada a deficiência ou falta de fiscalização, todavia, a falta ou falha é imputável
ao poder público, e ele deve ser responsabilizado de forma direta e objetiva. As deficiências da fiscalização, de outro modo, em nada atenuam ou afastam a responsabilidade
civil das concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
Em razão de deficiências na fiscalização, José dos Santos Carvalho Filho examina
a possibilidade de a empresa concessionária pedir ressarcimento ao poder concedente.
Afirma o autor:
desse modo, a melhor interpretação é a de que, embora a responsabilidade primária
integral seja atribuída ao concessionário, pode este exercer seu direito de regresso contra
o concedente, quando tiver havido ausência ou falha na fiscalização, porque nesse caso
terá o concedente contribuído, juntamente com o concessionário para a ocorrência do
resultado danoso. o direito de regresso deverá ser exercido pelo concessionário para
postular a reparação de seu prejuízo na justa medida da contribuição do concedente para o
resultado danoso cujo prejuízo lhe provocou o dever o indenizar. Assim, se, por exemplo,
o concedente contribuiu pela metade para o resultado danoso, tem o concessionário, após
ter reparado integralmente os prejuízos do lesado, o direito de postular o reembolso de
metade do que foi obrigado a indenizar.43
discordamos, com a devida vênia, do autor.
em primeiro lugar, deve-se atentar para a Lei nº 8.987/1995, que em seu art. 25,
caput, dispõe nos seguintes termos:
Art. 25. incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder
por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem
que a fiscalização exercida pelo órgão concedente exclua ou atenue sua responsabilidade.
43
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 548.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
da redação do dispositivo supramencionado é possível extrair duas conclusões
básicas:
- A concessionária responde integralmente por todos os danos que cause na
prestação do serviço;
- Falhas na fiscalização do poder concedente não excluem ou atenuam a responsabilidade da concessionária.
estas conclusões, extraídas diretamente da lei, deveriam bastar para refutar a tese
do ilustre autor, de que a concessionária pode pedir ressarcimento dos danos que ela
tenha causado aos usuários do serviço, caso tenha havido falhas na fiscalização pelo poder
concedente. outros argumentos podem ser ainda apresentados contrários a essa tese.
Antes, porém, reiteramos o nosso entendimento de que o poder concedente
pode ser chamado a responder diretamente perante os usuários do serviço, ou perante
terceiros, se não cumpriu o dever básico que a lei lhe impõe, o de fiscalizar a concessão,
e se daí resultou prejuízo para o usuário ou para terceiro.
totalmente distinta é a situação apresentada pelo ilustre autor precitado, em que
a concessionária presta serviços de má qualidade, causa dano aos usuários ou a terceiros
e se lhe admite a possibilidade de obter ressarcimento dos danos que ela própria causou
em ação regressiva junto ao poder concedente.
se a concessionária segue as orientações do poder concedente e causa danos aos
usuários ou a terceiros, evidentemente que a tese do autor deve ser adotada de modo
pleno. se, ao contrário, a concessionária descumpre as cláusulas do contrato, presta
serviço de má qualidade e causa dano aos usuários ou a terceiros, não há qualquer
fundamento legal ou contratual que a legitime ou justifique a obtenção do ressarcimento
dos danos que ela causou a terceiros junto ao poder concedente.
A falta ou falha na fiscalização do poder concedente pode justificar a propositura
de ações de indenização por parte do usuário ou do terceiro que sofreu o dano contra o
concedente. se, todavia, a ação de indenização é proposta contra a concessionária, ela não
possui legitimidade para se ressarcir dos danos por ela própria causados. Admitir essa
tese, máxima vênia, importaria em incentivar a torpeza das empresas concessionárias.
17.9.2 responsabilidade dos prestadores de serviços públicos e
terceiros não usuários dos serviços
Consideremos a seguinte situação: ônibus pertencente a empresa permissionária
de serviço público de transporte coletivo de passageiros sofre acidente que resulta em
danos para passageiro (usuário) e para pedestre (não-usuário do serviço). A responsabilidade da mencionada empresa é objetiva apenas perante o usuário? Caso o pedestre,
que igualmente sofreu prejuízo, pretenda obter indenização, terá que provar a culpa
do condutor do ônibus?
tratava-se de questão pouco usual na doutrina e na jurisprudência dos tribunais
superiores. o stF inicialmente se manifestou acerca do tema, no julgamento do re
nº 262.651-sP. neste julgado, o stF acolheu o voto do relator, ministro Carlos velloso,
firmando o entendimento de que as pessoas jurídicas de Direito Privado prestadoras de
serviços públicos respondem objetivamente tão somente perante os usuários do serviço.
em relação aos terceiros não usuários, a responsabilidade dessas entidades é subjetiva.44
44
stF. re nº 262.651-sP, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso. Julg. 16.11.2005. DJ, 06 maio 2005.
847
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Curso de direito AdministrAtivo
o fundamento básico utilizado pelo ilustre relator — e renomado administrativista
— foi o de que a Constituição Federal confere às pessoas jurídicas de direito Privado prestadoras de serviços públicos responsabilidade civil objetiva com o exclusivo propósito de
proteger os usuários do serviço.
A aplicação das conclusões do julgado do stF ao exemplo inicialmente apresentado, resulta em que: 1. o passageiro do ônibus (usuário) pode pedir indenização
contra a empresa com base na teoria da responsabilidade civil objetiva; 2. o pedestre
(não-usuário do serviço) somente terá direito de obter indenização se demonstrar a
culpa do prestador do serviço (responsabilidade subjetiva).
sempre nos posicionamos contrariamente a esse entendimento do stF, por
acreditarmos que não caberia ao intérprete criar uma distinção que claramente não foi
contemplada pelo texto constitucional.
ocorre, no entanto, que o supremo tribunal Federal, posteriormente, no julgamento do re nº 591.874-ms, da relatoria do min. ricardo Lewandowski, alterou seu
entendimento sobre o tema, tendo concluído pela responsabilidade objetiva de empresa
privada prestadora de serviço público em relação a terceiro não-usuário do serviço. na
espécie, discutia-se a responsabilidade de empresa de transporte coletivo por danos
decorrentes de acidente envolvendo ônibus de sua propriedade e ciclista, o qual falecera.
os fundamentos que nortearam a mudança de posicionamento do stF podem
ser identificados no trecho abaixo transcrito:
Asseverou-se que não se poderia interpretar restritivamente o alcance do art. 37, §6º, da CF,
sobretudo porque a Constituição, interpretada à luz do princípio da isonomia, não permite
que se faça qualquer distinção entre os chamados “terceiros”, ou seja, entre usuários e
não-usuários do serviço público, haja vista que todos eles, de igual modo, podem sofrer
dano em razão da ação administrativa do estado, seja ela realizada diretamente, seja por
meio de pessoa jurídica de direito privado. observou-se, ainda, que o entendimento de que
apenas os terceiros usuários do serviço gozariam de proteção constitucional decorrente da
responsabilidade objetiva do estado, por terem o direito subjetivo de receber um serviço
adequado, contrapor-se-ia à própria natureza do serviço público, que, por definição, tem
caráter geral, estendendo-se, indistintamente, a todos os cidadãos, beneficiários diretos ou
indiretos da ação estatal. vencido o min. marco Aurélio que dava provimento ao recurso
por não vislumbrar o nexo de causalidade entre a atividade administrativa e o dano em
questão. Precedentes citados: re 262651/sP (dJu de 6.5.2005); re 459749/Pe (julgamento
não concluído em virtude da superveniência de acordo entre as partes). (stF. re nº 591.874ms, Pleno. rel. min. ricardo Lewandowski. Julg. 26.8.2009. DJe, 18 dez. 2009)
Pondero que não se deva perder de vista, contudo, que a responsabilidade objetiva
das pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos não pode ser usada
de forma indiscriminada, impondo-se perante qualquer destinatário ou em qualquer
circunstância.
nesse sentido, não comungo com a tese de que mencionadas pessoas — pelo só
fato de prestarem serviços públicos — assumam responsabilidade objetiva em qualquer
circunstância. seria o caso, por exemplo, de uma empreiteira que integra consórcio
de empresas que obteve contrato de concessão de serviço público para a exploração
de certa rodovia, em razão desse fato, passar a assumir responsabilidade objetiva em
qualquer ato praticado ou na exploração de qualquer outra atividade desenvolvida,
independentemente de manter relação com a exploração da concessão. isto importaria
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
em alargar a responsabilidade objetiva de mencionadas pessoas privadas para muito
além da prestação do serviço público.
Considero necessário, portanto, restringir o âmbito ou as circunstâncias que ensejam a responsabilização objetiva das pessoas privadas prestadoras de serviço público,
e o critério definidor da responsabilidade objetiva de mencionadas entidades privadas
deve ser buscado no texto constitucional.
Parece-nos que pode ser utilizado como referencial para delimitar a responsabilidade civil objetiva dessas entidades a prestação do serviço público. ou seja, se o texto
constitucional confere a pessoas jurídicas de direito privado responsabilidade objetiva
em razão da prestação dos serviços públicos, sempre que o desempenho dessa atividade
causar prejuízo aos usuários ou a terceiros não-usuários, ela responde de forma objetiva.
o primeiro aspecto a ser considerado no enfrentamento da questão diz respeito
a saber se as pessoas de direito Privado assumem responsabilidade objetiva perante
qualquer destinatário ou em qualquer circunstância, ainda que estranha à prestação
do serviço público.
Parece-nos acertada a conclusão do stF de que não se pode defender a tese de
que mencionadas pessoas — pelo só fato de prestarem serviços públicos — assumem
responsabilidade objetiva em qualquer circunstância.É necessário, portanto, restringir
o âmbito ou as circunstâncias que ensejam a responsabilidade objetiva das pessoas
privadas prestadoras de serviço público, e o critério definidor da responsabilidade
objetiva de mencionadas entidades privadas deve ser buscado no texto constitucional.
Assim sendo, parece-nos que o único critério apontado pela Constituição Federal
como referencial para delimitar a responsabilidade civil objetiva dessas entidades está
relacionado à prestação do serviço público. ou seja, se o texto constitucional confere às
pessoas jurídicas de direito Privado responsabilidade objetiva em razão da prestação
dos serviços públicos, sempre que o desempenho dessa atividade causar prejuízo aos
usuários ou a terceiros não-usuários, ela responde de forma objetiva.
deve ser relembrado que o fundamento teórico da responsabilidade civil objetiva
é o denominado risco administrativo, que está diretamente relacionado à prestação dos
serviços públicos. Quem quer que preste serviço público — é essa a regra constitucional — assume responsabilidade objetiva. neste aspecto, ademais, o texto constitucional
distingue a responsabilidade extracontratual das pessoas de direito Público, que respondem objetiva-mente em qualquer situação, das pessoas de direito Privado, que somente
assumem responsabilidade objetiva quando prestarem serviços públicos.
não nos parece, todavia, que o texto constitucional apresente elementos que
permitam restringir ainda mais o âmbito da responsabilidade civil objetiva das pessoas
de direito Privado que prestam serviços públicos íazendo-a alcançar tão-somente os
usuários do serviço. o risco assumido pela empresa privada está relacionado à prestação
do serviço público. se se assume esse risco, deve responder de forma objetiva perante
qualquer um que sofra prejuízo em decorrência da prestação do serviço.
17.10 responsabilidade civil do estado por atos legislativos
A tese dominante é a de que o estado deve ser chamado a responder, sem restrições, em razão da prática dos atos administrativos. se o dano causado pelo estado
decorre da prática de atos relacionados ao exercício das outras funções estatais, a
possibilidade de reparação do dano é admitida, porém, de forma bastante mitigada.
849
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
850
no que concerne aos atos legislativos, a jurisprudência e a doutrina pátrias têm
admitido a possibilidade de o estado ser responsabilizado em duas únicas circunstâncias:
- Lei de efeito concreto;
- Lei inconstitucional.
em ambas as hipóteses, e desde que o particular demonstre a ocorrência do dano
e do nexo de causalidade, o estado pode ser responsabilizado civilmente.
Lei de efeito concreto é aquela cujos destinatários são certos, em que o simples exame
do texto normativo torna possível identificar, de forma precisa, o grupo de pessoas por
ela alcançado. o motivo para que o estado seja responsabilizado em razão da edição
de lei de efeito concreto, conforme observa maria sylvia Zanella di Pietro, se encontra
no fato de que “embora promulgada pelo Legislativo, com obediência ao processo de
elaboração das leis, constitui, quanto ao conteúdo, verdadeiro ato administrativo,
gerando, portanto, os mesmos efeitos que este quando cause prejuízo ao administrado,
independentemente de considerações sobre a sua constitucionalidade ou não”.45
em relação às leis inconstitucionais — tenham ou não efeito concreto —, é igualmente ponto pacífico que se causam dano, o poder público deve ser responsabilizado.46
A declaração de inconstitucionalidade pode decorrer de controle concentrado. nesta
hipótese, de já ter havido manifestação de inconstitucionalidade da lei em controle concentrado, basta à vítima a propositura da ação de indenização em que terá que demonstrar
o dano e o nexo de causalidade. A declaração de inconstitucionalidade pode igualmente
decorrer de controle difuso, em que, incidentalmente, na própria ação de indenização, a
vítima do dano suscita a declaração de inconstitucionalidade.
em qualquer hipótese de responsabilidade do estado por ato legislativo, não
tem sido admitida ação regressiva contra os agentes públicos responsáveis pela edição
da lei inconstitucional ou de efeito concreto.
Questão diversa consiste em saber se a omissão legislativa pode ensejar a responsabilidade civil do Estado. A resposta parece-nos ser afirmativa.
se a Constituição Federal atribui ao legislador o dever de legislar, e se determinados direitos reconhecidos pelo texto constitucional não podem ser adequadamente
exercidos em razão da omissão legislativa, não nos parece razoável negar à vítima do
dano o direito de obter indenização.
Cumpre distinguir, todavia, duas situações. na primeira hipótese, o direito do
particular é reconhecido diretamente pela Constituição Federal, cabendo à lei tão somente definir a forma como o direito será exercido. Hipótese distinta se verifica quando
ainda não existe direito, em que a existência do direito depende da aprovação da lei.
45
46
di Pietro. Direito administrativo, p. 532.
STF: “Concluído, assim, o processo de restituição dos valores pecuniários retidos, verificou-se a perda de objeto
da presente impugnação recursal. essa circunstância, contudo, não impede que se discuta, em sede processual
adequada — e perante o juízo competente —, o tema concernente à reparabilidade civil dos danos eventualmente causados pelo estado por ato inconstitucional. A elaboração teórica em torno da responsabilidade civil
do estado por atos inconstitucionais tem reconhecido o direito de o indivíduo, prejudicado pela ação normativa
danosa do Poder Público, pleitear, em processo próprio, a devida indenização patrimonial. A orientação da doutrina, desse modo, tem-se fixado, na análise desse particular aspecto do tema, no sentido de proclamar a plena
submissão do Poder Público ao dever jurídico de reconstituir o patrimônio dos indivíduos cuja situação pessoal
tenha sofrido agravos motivados pelo desempenho inconstitucional da função de legislar. (...) de outro lado,
é de referir que a jurisprudência dos tribunais (RDA 8/133) — desta suprema Corte, inclusive — não se tem
revelado insensível à orientação fixada pela doutrina, notadamente porque a responsabilidade civil do Estado
por ato do Poder Público declarado incompatível com a Carta Política traduz, em nosso sistema jurídico, um
princípio de extração constitucional” (re nº 163.039, rel. min. Celso de mello. DJ, 07 jun. 1993).
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
na primeira hipótese, em que já existe direito, a ausência de lei pode legitimar
a ação de indenização contra o estado; na segunda hipótese, se não há direito subjetivo violado, não há como se falar em dano para que se configure o direito de pedir
indenização.
no re nº 424.584-mG, o tema foi levado à apreciação do stF. tratava-se da pretensão de “servidores públicos federais, que sob a alegação de ofensa ao art. 37, X, da CF,
com a redação dada pela eC 19/98, pretendem obter indenização do estado, em razão
de não haverem sido contemplados com a revisão geral anual, instituída por aquela
emenda, no período compreendido entre o seu advento e o termo inicial da vigência
da Lei 10.331/01, que estabeleceu a mencionada revisão ao funcionalismo público”. o
relator, ministro Carlos velloso, “considerou inequívoco o dever de indenizar do estado,
porquanto configurados os seguintes requisitos: a) conduta estatal, haja vista que
houvera omissão de agente público, no caso, do Presidente da república, incumbido
de enviar projeto de lei de sua iniciativa privativa, sendo esta qualidade determinante
para a conduta lesiva; b) ação do próprio estado causadora de danos, já que este, ao
se abster de elaborar a norma jurídica, estaria agindo, hipótese de omissão sui generis,
a caracterizar a sua responsabilidade objetiva; c) dano indenizável, porque direto, real
e certo, representado pela ausência da norma implementadora do direito assegurado,
tendo em conta o fato de os recorrentes não pleitearem que o Poder Judiciário substitua
o legislador, estabelecendo índice de reajuste e revisão por determinado período, mas
sim aduzem apenas a existência de um dano e o conseqüente dever de indenizar; d)
inexistência de hipótese de exclusão da responsabilidade estatal”.
em sentido contrário, o ministro Joaquim Barbosa negou provimento ao recurso
sob o argumento de que a “responsabilidade civil do estado fora concebida, desde
sua origem, com o objetivo de reparar atos lesivos praticados pelo Poder executivo,
asseverou que a sua aplicação em atos legislativos é excepcional e que, na hipótese, o
dano seria genérico”.47
A adoção da tese que defendemos — de que a omissão legislativa somente justifica a responsabilização do Estado se o direito já se encontra completo, cabendo a ela
tão somente definir as condições ou a forma de exercício — resultaria na rejeição do
direito de indenização aos servidores. no caso, a aprovação da lei interfere, inclusive,
na definição do quantum a ser ressarcido, haja vista ser atribuição da lei a indicação do
reajuste a ser conferido aos servidores. ou seja, ainda não existe direito à indenização.
Em resumo, é possível afirmar que somente em situações excepcionalíssimas
deve ser admitida a responsabilização do estado em razão da omissão do legislador.
47
desprovido o recurso, e vencido o ministro Carlos velloso, o acórdão do referido re foi assim ementado: “servidor público. revisão geral de vencimento. Comportamento omissivo do chefe do executivo. direito à indenização por perdas e danos. Impossibilidade. Esta Corte firmou o entendimento de que, embora reconhecida a mora
legislativa, não pode o Judiciário deflagrar o processo legislativo, nem fixar prazo para que o chefe do Poder
executivo o faça. Além disso, esta turma entendeu que o comportamento omissivo do chefe do Poder executivo
não gera direito à indenização por perdas e danos. recurso extraordinário desprovido” (stF. re nº 424.584-mG,
2ª turma. rel. min. Carlos velloso. rel. p/ acórdão min. Joaquim Barbosa. Julg. 17.11.2009. DJe, 07 maio 2010).
entretanto, o assunto ainda será objeto de apreciação com repercussão geral, no re nº 565.089-sP. esse outro
recurso foi levado a julgamento em 9 de junho de 2011, ocasião em que o relator, min. marco Aurélio, votou
no sentido de dar provimento, impondo ao estado de são Paulo a obrigação de indenizar os recorrentes pelo
descumprimento do art. 37, inciso X, da CF. em seguida, pediu vistas a min. Cármen Lúcia.
851
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
852
17.11 responsabilidade civil do estado por atos judiciais
“A responsabilidade do estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário em sua
função jurisdicional, a não ser nos casos expressamente declarados em lei”. esta a tese
vigente em todos os tribunais pátrios e repetidamente afirmada ao longo dos últimos
anos.48
As razões utilizadas pelos juízes para restringir a responsabilidade do estado
foram muito bem sintetizadas por maria sylvia Zanella di Pietro:
1. o Poder Judiciário é soberano;
2. os juízes têm que agir com independência no exercício das funções sem o temor de que
suas decisões possam ensejar a responsabilidade do estado;
3. o magistrado não é funcionário público;
4. A indenização por dano decorrente de decisão judicial infringiria a regra da imutabilidade
da coisa julgada, porque implicaria o reconhecimento de que a decisão foi proferida com
violação da lei.49
os dois primeiros argumentos apresentados no texto acima transcrito, de que
o Poder Judiciário é soberano e de que os juízes não podem temer que suas decisões
possam ensejar responsabilidade do estado, são absolutamente improcedentes, haja
vista a atuação do Judiciário em nada se diferenciar em relação à dos demais Poderes
do estado. Acaso os agentes administrativos não devem igualmente considerar suas
decisões e seus atos em face da possível responsabilidade do estado? ou acaso o Poder
Judiciário é mais soberano que os demais poderes para que seus atos justifiquem a não
responsabilização do estado pelos atos dos seus agentes?
o terceiro argumento, de que os juízes não são funcionários ou servidores
públicos é refutado pelo próprio texto constitucional. se dúvida existe em relação ao
enquadramento dos juízes como servidores públicos, não há qualquer divergência em
relação ao seu enquadramento na categoria genérica de agentes públicos.
ocorre que a Constituição Federal ao dispor sobre a responsabilidade civil do
estado (art. 37, §6º), determina que “as pessoas jurídicas de direito público (...) responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros” (grifos
nossos). ora, se não resta dúvida de que os juízes são agentes públicos, o argumento
de que não são servidores públicos é absolutamente irrelevante para isentar o estado
do dever de responder pelos seus atos.
o exame dos três primeiros fundamentos utilizados para eximir o estado do
dever de ressarcir os danos decorrentes do desempenho da atividade judicial conduz,
de forma inequívoca, à conclusão de que, para fins de apuração da responsabilidade
civil do estado, a atividade judicial em nada se diferencia da atividade executiva. desse modo, não há justificativa plausível para a adoção de tratamento diferenciado em
matéria de responsabilidade civil do estado.
o quarto argumento utilizado para afastar a responsabilidade civil do estado em
razão do ato judicial se mostra mais difícil de refutar. efetivamente, uma vez transitada
48
49
stF: “o princípio da responsabilidade objetiva do estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário, salvo os
casos expressamente declarados em lei. orientação assentada na jurisprudência do stF” (re nº 219.117-Pr, 1ª
turma. rel. min. ilmar Galvão. Julg. 3.8.1999. DJ, 29 out. 1999).
di Pietro. Direito administrativo, p. 533-534.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
em julgado uma sentença, admitir a responsabilidade do estado importaria em reconhecer
que aquela decisão estava errada. isto, de modo indireto, resultaria em violação à coisa
julgada e ao princípio da segurança jurídica.
Quando se cogita de responsabilizar o estado pela prática de atos judiciais, todavia,
não se examina apenas a possibilidade de que decisões judiciais transitadas em julgado
possam ter causado prejuízos. examina-se a possibilidade de que qualquer ato judicial
ilegal tenha causado prejuízo aos particulares e que, em consequência, o estado possa
ser por ele responsabilizado.
Contrário à linha que sustentamos, José dos Santos Carvalho Filho afirma que
“se um ato do juiz prejudica a parte no processo, tem ela os mecanismos recursais e
até mesmo outras ações para postular a sua revisão. Assegura-se ao interessado, nessa
hipótese, o sistema do duplo grau e jurisdição. (...) Se, ao contrário, o ato foi confirmado
em outras instâncias, é porque tinha ele legitimidade, sendo, então, inviável a produção
de danos à parte”.50
somos forçados a nos render aos argumentos que afastam a responsabilidade
civil do estado em decorrência das decisões judiciais transitadas em julgado, cujo efeito
é tornar verdadeira a tese firmada na decisão — ainda que de fato ela não o seja.
diversa é a situação resultante de medidas cautelares ou preventivas adotadas
ao longo do processo, sendo indiferente, para fins de responsabilidade civil do Estado,
se ocorreu error in procedendo ou error in judicando.
Consideremos a seguinte situação: certo indivíduo é confundido com criminoso
e tem sua prisão preventiva decretada. Confirmado o erro, o cidadão deixa a prisão
e verifica que o barraco onde morava deixou de existir. Além disso, em razão da sua
ausência, descobre que foi demitido do emprego. em outras palavras, a intervenção do
estado destruiu totalmente a vida do pobre cidadão.51 A pergunta a ser feita é a seguinte:
os argumentos, relacionados à soberania da atuação judicial ou à recorribilidade das decisões judiciais, são legítimos ou justificam que o particular, cuja vida foi destruída, reste
totalmente desamparado pelo estado, que antes deveria protegê-lo? esta situação de
irresponsabilidade judicial é compatível com a noção de estado democrático de direito?
Em relação especificamente à prisão cautelar, o STJ há muito tempo vem afirmando que, se presentes os pressupostos legais quando de sua decretação, a posterior
absolvição não enseja indenização.52 o stF também consolidou jurisprudência nesse
sentido, conforme se verifica na decisão proferida no RE nº 429.518-AgR/SC.53
50
51
52
53
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 459.
trata-se de caso concreto, de indivíduo que buscou a defensoria Pública do distrito Federal e que, em razão do
entendimento jurisprudencial, não obteve qualquer reparação dos danos patrimoniais e morais sofridos.
“A jurisprudência desta Corte entende que a prisão cautelar, devidamente fundamentada e nos limites legais,
não gera o direito à indenização em caso de posterior absolvição” (Agrg no resp nº 1.295.573-rJ, 2ª turma. rel.
min. Cesar Asfor rocha. Julg. 27.3.2012. DJe, 16 abr. 2012).
“Constitucional. Administrativo. Civil. responsabilidade civil do estado: atos dos juízes. C.F., art. 37, §6º. i. - A
responsabilidade objetiva do estado não se aplica aos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do supremo tribunal Federal. ii. - decreto judicial de prisão preventiva não se confunde
com o erro judiciário, C.F., art. 5º, LXXV, mesmo que o réu, ao final da ação penal, venha a ser absolvido. III.
- negativa de trânsito ao re. Agravo não provido” (re nº 429.518-Agr/sC, 2ª turma. rel. min. Carlos velloso.
Julg. 5.10.2004. DJ, 28 out. 2004).
853
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
854
em algumas situações, vale mencionar, tanto o stJ54 quanto o stF55 admitiram
a responsabilidade do estado em decorrência de prisão cautelar amparada em ordem
judicial que veio, posteriormente, a se revelar claramente equivocada. esses raros precedentes não permitem conclusões peremptórias sobre tendências jurisprudenciais,
mas apontam para a possibilidade de responsabilização estatal quando inequívoca a
faute du service do aparelho do estado.56
deixando de lado a delicada questão das prisões, a tese da irresponsabilidade
civil do estado por atos judiciais — ressalvadas as hipóteses expressamente previstas
em lei — é amplamente aceita pela jurisprudência. de todo modo, no julgamento do re
nº 228.977-sP, aqui já mencionado, o supremo tribunal Federal admitiu a responsabilidade do estado pelo ato praticado pelo juiz e a possibilidade de este ser demandado
regressivamente. A ementa do mencionado julgado foi redigida nos seguintes termos:
recurso extraordinário. responsabilidade objetiva. Ação reparatória de dano por ato
ilícito. ilegitimidade de parte passiva. 2. responsabilidade exclusiva do estado. A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. os
magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de
atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho
de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. 3. Ação que deveria ter
sido ajuizada contra a Fazenda Estadual — responsável eventual pelos alegados danos causados
pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições —, a qual, posteriormente, terá assegurado o
direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. 4. Legitimidade passiva reservada ao estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos
eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas
funções, a teor do art. 37, §6º, da CF/88. 5. recurso extraordinário conhecido e provido.
(stF. re nº 228.977-sP, 2ª turma. rel. min. néri da silveira. Julg. 5.3.2002. DJ, 12 abr.
2002, grifos nossos)
este julgado do stF não pode ser considerado, infelizmente, indicativo de mudança jurisprudencial. ele foi proferido com o propósito de negar ao juiz a legitimidade
passiva em ação de indenização por dano moral proposto por cidadão que se sentiu
ofendido com os termos utilizados pelo juiz que se encontrava no exercício da função
pública. o acórdão não objetivou reconhecer a responsabilidade do estado pelo ato
judicial ou a responsabilidade regressiva do juiz. objetivou-se apenas afastar o juiz da
ação de indenização contra ele proposta sob o argumento de que as ofensas proferidas
pelo juiz no exercício da função devem resultar em responsabilidade do estado.
o fato é que, não obstante os esforços da grande maioria da doutrina pátria, que
defende a ampliação da responsabilidade civil do estado em razão do ato judicial, a
54
55
56
resp nº 872.630-rJ, 1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 13.11.2007. DJe 26 mar. 2008; resp nº 427.560-to,
1ª turma. rel. min. Luiz Fux. Julg. 5.9.2007. DJ, 30 set. 2002.
re nº 385.943 Agr-sP, 2ª turma. rel. min. Celso de mello. Julg. 15.12.2009. DJe 18 fev. 2010. esse julgado tratou
do caso que ficou conhecido como “crime do bar Bodega”, frequentemente lembrado com exemplo de prisão
precipitada e execração pública de pessoas inocentes.
se a falha do ato judicial que determinou a prisão for mera repercussão de falha oriunda de instâncias administrativas, a exemplo dos órgãos policiais, pode-se argumentar que o dano não decorre propriamente do ato
judicial, mas das instâncias administrativas que o precederam ou responsáveis pela sua execução. Assim, nem
mesmo seria necessário invocar a teoria da faute du service, sendo suficiente a regra geral da responsabilidade
objetiva do estado.
CAPítuLo 17
resPonsABiLidAde CiviL eXtrAContrAtuAL do estAdo
jurisprudência tem avançado muito pouco no tema. À exceção do supramencionado re
nº 228.977-sP, não há qualquer indicativo de que os tribunais arredem de suas posições
corporativas e admitam de forma mais ampla a responsabilidade do estado.
esse o ponto que parece não ser compreendido pelos dignos magistrados brasileiros: não se defende a ampliação da responsabilidade dos magistrados. defende-se tão
somente a responsabilidade civil do estado pela prática dos atos judiciais que tenham
causado prejuízo à população. em nada essa evolução da jurisprudência afetaria a
dignidade ou a imparcialidade dos magistrados.
em conclusão, não obstante os clamores em sentido contrário, entre nós a tese
dominante é a de que o estado somente pode ser responsabilizado pelo ato judicial nas
hipóteses expressamente previstas em lei. É exemplo dessa responsabilidade a hipótese
contida no art. 5º, LXXv, da Constituição Federal: “o estado indenizará o condenado
por erros judiciários, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.
no que se refere à ação regressiva, o Código de Processo Civil (art. 133) admite
que o estado possa ressarcir-se dos danos que sofreu em decorrência do ato judicial
somente quando o juiz “no exercício de suas funções proceder com dolo ou fraude ou
quando recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar
de ofício, ou a requerimento da parte”. ou seja, enquanto todos os agentes públicos
respondem regressivamente perante o estado nas hipóteses de dolo ou culpa, o juiz
somente pode ser responsabilizado regressivamente por dolo ou fraude.
em matéria de responsabilidade civil do estado por atos judiciais, em razão do
posicionamento adotado pelos tribunais, podem ser apresentadas as seguintes conclusões:
- A regra é a irresponsabilidade civil do estado;
- o estado somente responde pelo ato judicial nas hipóteses expressamente
previstas em lei;
- o juiz somente responde regressivamente nas hipóteses de dolo ou fraude.
855
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
18.1 Controle como fundamento do estado democrático de direito
o estudo realizado ao longo dos capítulos anteriores, especialmente naqueles em
que são examinadas as atividades do estado, indica o incrível fortalecimento das funções
administrativas estatais. A evolução das tarefas executivas do estado, decorrente das
novas e crescentes demandas da sociedade, resultou, de modo paralelo, na necessidade
de serem desenvolvidas novas e diferentes formas para o controle dessas atividades.
Controle político, controle judicial, controle administrativo, controle de mérito,
de legalidade, de resultados etc., enfim, diversos modelos e sistemas têm sido utilizados pelas democracias modernas para o acompanhamento e fiscalização da atividade
administrativa do estado.
diante desse contexto, o estudo do controle da Administração Pública ganha
relevo e passa a ser considerado um dos principais aspectos do direito Administrativo.
Bernard schwartz, citado por García de enterría, expressa adequadamente a importância
do estudo do tema por meio da seguinte indagação: “verdadeiramente, de que trata o
direito Administrativo senão do controle administrativo?”1
A rigor, a necessidade de controle é inerente ao próprio processo de administrar.
Essa concepção acerca do controle resulta do fato de que a fiscalização e a revisão de
quaisquer atividades — desenvolvidas pelo estado ou pelas entidades privadas — não
são tarefas estranhas à de administrar. esta, a administração, deve ser entendida como
um processo desenvolvido em diferentes etapas, que compreendem, além do planejamento e da execução, o controle e a avaliação.
A necessidade de que toda e qualquer atividade desenvolvida pelo estado esteja
sujeita a diferentes níveis ou mecanismos de controle se faz presente desde que se concebeu o estado de direito. nos estudos de montesquieu sobre a separação (ou distribuição)
dos poderes ou funções do estado, a importância e a necessidade de controle resultam
evidentes. De fato, é perfeitamente correto afirmar que a essência da teoria da separação
dos poderes se sustenta na ideia de que nenhum poder do estado deve assumir atribuições
que não possam ser, de algum modo, controladas por outro poder.
1
SCHWARTZ. Administrative Law apud GArCíA de enterríA. Democracia, jueces y control de la administración.
858
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
entre nós, essa regra é expressamente indicada no art. 2º da Constituição Federal
de 1988, que ao dispor sobre a atuação dos diferentes poderes da União afirma que eles
serão independentes e harmônicos entre si.
dentre os diferentes mecanismos de controle previstos em nosso texto constitucional, o controle judicial ganha importância especial. A Constituição Federal de 1988
(art. 5º, XXXv), ao dispor em seu capítulo sobre os direitos e garantias fundamentais,
afirma que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos”, elevando o controle ou tutela judicial à categoria de princípio básico do estado
moderno. A preocupação do constituinte com a necessidade de que toda atividade
administrativa esteja sujeita a controle judicial foi tamanha que admitiu o controle
prévio dos atos da Administração, haja vista não apenas a lesão, mas a própria ameaça
a direito estar sujeita à tutela judicial.
no Brasil, o controle judicial previsto na Constituição Federal deve ser exercido de
modo pleno. nele devem ser inseridos todos os aspectos relacionados à conformidade
de toda e qualquer atuação, comissiva ou omissiva, da Administração Pública. Além
da observância da legalidade, em seu sentido estrito, o controle judicial da atuação
administrativa, conforme será examinado, avança a passos largos em relação à observância dos demais princípios constitucionais expressos e implícitos vinculadores da
atividade administrativa. Publicidade, moralidade, impessoalidade, segurança jurídica,
razoabilidade, eficiência etc. não podem ser consideradas meros programas a serem
observados conforme juízo discricionário do administrador público. devem ter caráter
vinculante para o administrador público, e sua inobservância, além da nulidade do ato,
deve importar em apenação daquele que lhe deu causa.
nesse sentido, cumpre-nos, desde já, informar que a expressão controle de legalidade não se refere ao mero cumprimento das leis, mas à possibilidade de se verificar a
adequação da atividade administrativa aos princípios e preceitos constitucionais, além,
é evidente, do cumprimento da lei.
outro aspecto do tema merecedor de destaque na Constituição Federal de 1988 é o
controle a ser exercido pelo tribunal de Contas da união (tCu) sobre os gastos públicos.
A intensidade e a perspectiva com que o controle se realiza admitem diversas
abordagens. ele pode ser examinado sob a ótica de: 1. quem o exerce (judicial, interno
ou administrativo, parlamentar ou exercido pelos tribunais de Contas); 2. do momento
em que é efetivado (prévio, concomitante, corretivo); 3. do parâmetro utilizado (mérito,
legitimidade). de se observar que algumas das modalidades indicadas vão permitir
ainda outras divisões, como a que ocorre com o controle de legitimidade — que pode
examinar aspectos de legalidade e de eficiência.
A possibilidade de que todos os atos praticados pelo estado possam ser controlados, seja por meio de mecanismos internos, de responsabilidade da própria unidade
administrativa executora do ato, seja por meio de órgãos ou de instrumentos externos,
além de ser inerente ao próprio poder de administrar, constitui pressuposto do princípio
democrático. É descabido, portanto, sobretudo aos administradores públicos, considerarem ameaça ou invasão ao seu âmbito de atuação a possibilidade de seus atos serem
questionados na esfera administrativa ou fora dela sob a ótica da sua conformação ao
direito. É dever de todos os que administram recursos públicos sujeitarem-se aos mecanismos de fiscalização previstos na Constituição Federal. O exercício de potestades
públicas sem o correspondente controle somente é possível em regimes ditatoriais e é
incompatível com o princípio do estado democrático de direito.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A sujeição de todos os atos praticados ou de todas as atividades desenvolvidas
pela Administração Pública a controle constitui garantia básica dos cidadãos, além de
ser consequência direta e necessária da adoção da teoria da separação dos poderes. Além
dessas duas vertentes, o controle da atividade administrativa deve ser igualmente considerado instrumento para a melhoria dos serviços prestados pelo Estado. A sujeição de todos
os agentes públicos a diferentes mecanismos de controle contribui para a melhoria das
tarefas por eles desenvolvidas.
Assegurar proteção aos cidadãos, permitir o equilíbrio entre os poderes do estado
e contribuir para a melhoria dos serviços estatais constituem as mais importantes razões
pelas quais o controle da atividade administrativa do estado assume tamanha importância
para o direito Administrativo.
18.2 Conceito e classificação
Por controle se deve entender a possibilidade de verificação e correção de atos ou de
atividades.
Para o desempenho dessa tarefa no âmbito da Administração Pública, são desenvolvidos pelo ordenamento jurídico diferentes mecanismos. Alguns deles requerem a
provocação dos particulares (ação popular, por exemplo); outros são exercidos de ofício
pelo poder público, de que são exemplos as auditorias realizadas pelo tCu.
As diferentes perspectivas com que o controle se realiza justificam a apresentação
de diferentes critérios de classificação.
Quanto à natureza, o controle pode ser de mérito ou de legitimidade. em relação
ao momento em que se realiza, o controle pode ser prévio, concomitante ou corretivo.
do ponto de vista de quem o exerce, haverá o controle interno e o externo. o controle
externo se desdobrará em diferentes categorias: judicial, parlamentar direto e exercido
pelos tribunais de contas.
Essas classificações não devem ser consideradas isoladas. O controle judicial,
por exemplo, pode compreender diferentes categorias (externo, de legalidade e, como
regra, corretivo).
examinaremos ao longo deste capítulo as diferentes modalidades do controle.
ênfase especial será dada ao estudo do controle judicial e do controle exercido pelo
tribunal de Contas da união (tCu).
18.2.1 Controle prévio, controle sucessivo e controle corretivo
nos termos da Lei nº 4.320/64, antes da liquidação da despesa pública é exigida a
emissão da nota de empenho. requer a lei a adoção desse mecanismo prévio de controle
de modo a evitar pagamentos ilegais ou sem que tenha ocorrido a efetiva comprovação
do fato que lhe deu causa.2 A Constituição Federal confere ao senado Federal (art. 30)
2
dispõem os artigos 62 e 63 da Lei nº 4.320/64 nos seguintes termos:
“Art. 62. o pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação.
Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.
1º Essa verificação tem por fim apurar:
i - a origem e o objeto do que se deve pagar;
859
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
860
diversas competências que se traduzem em mecanismos de controle prévio. É exigida,
por exemplo, a necessidade de prévia aprovação, pelo senado Federal, de operações
financeiras de interesse da União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios,
bem como da escolha de ocupantes de certos cargos públicos (ministros de tribunais
superiores, dirigentes de agências reguladoras, dirigentes do Banco Central, chefes
de missões diplomáticas), situações que podem ser apresentadas como exemplos de
mecanismos de controle prévio. este — como o próprio nome indica — caracteriza-se
por ser efetivado antes do ato ou atividade objeto do controle a ser praticado e objetiva
verificar se estão presentes os requisitos necessários à prática do ato.
As auditorias realizadas pelo tCu em obras públicas podem ser apresentadas como exemplo de controle sucessivo ou concomitante.3 se o controle é exercido
à medida que os atos ou atividades são executados, ter-se-á hipótese de controle
sucessivo.
o controle judicial é, salvo exceções, mecanismo do controle corretivo. A hipótese
em que o Poder Judiciário é legitimado a atuar de forma preventiva está relacionada
à ameaça de direito (CF, art. 5º, XXXv), de que é exemplo o mandado de segurança
preventivo.
não se pode prescindir do controle corretivo, especialmente daquele exercido
pelo Poder Judiciário. o estado deve, todavia, primar pela valorização dos demais
mecanismos voltados à prevenção da prática dos atos ou atividades ilícitas. A falta
ou ineficiência dos mecanismos de controle prévio e sucessivo talvez justifiquem, ao
menos em parte, o absurdo volume de processos em tramitação no Poder Judiciário,
especialmente naqueles em que o poder público é parte. se os mecanismos de controle
prévio ou sucessivo fossem mais efetivos, certamente as ações de nulidade, os mandados de segurança, as ações populares e de improbidade teriam seu número reduzido
drasticamente.
3
ii - a importância exata a pagar;
iii - a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.
§2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base:
i - o contrato, ajuste ou acôrdo respectivo;
ii - a nota de empenho;
iii - os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço.”
o escândalo envolvendo a construção do edifício sede do trt de são Paulo demonstrou a inexistência de efetivos mecanismos de controle dos gastos públicos, e a necessidade de que esses gastos estejam submetidos a
mecanismos de controle prévio ou, quando muito, concomitante. Até o ano de 2000, a visão que imperava no
sistema de controle era a de que as importantes obras do País deveriam ser executadas e, após sua conclusão,
eventuais irregularidades poderiam ser apuradas nos processos de prestação de contas (exemplo clássico de
mecanismo de controle corretivo). Na fiscalização da obra do TRT/SP, desde o ano de 1994, trabalhos de fiscalização realizados pelo tCu apontavam fortes indícios de irregularidades. não havia, todavia, mecanismos que
permitissem a paralisação da obra. o escândalo tomou tamanha proporção que, desde o ano de 2000, as sucessivas leis de diretrizes orçamentárias anuais têm previsto a obrigatoriedade de serem realizadas pelo tCu auditorias nas grandes obras federais. o tCu, a partir de critérios de materialidade, realiza a auditoria e se forem
identificados indícios de irregularidades graves, deve ser emitido aviso ao Congresso Nacional que, por meio
da Comissão de orçamento, suspende a liberação de recursos públicos federais. A suspensão é mantida até que
se demonstre que não havia irregularidade ou até a sua sanação. desde então, anualmente, aproximadamente
um terço das grandes obras com recursos federais tem sido paralisado. este mecanismo constitui importante
instrumento para o combate à ilegalidade e ao desperdício.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
18.2.2 Controle interno e controle externo
A divisão dos mecanismos de controle em interno e externo é feita a partir da
perspectiva de quem exerce o controle. se o controle sobre determinado ato é feito pela
mesma unidade administrativa ou pelo mesmo poder que praticou o ato, ter-se-á o controle interno. o controle externo, por sua vez, é feito por poder ou unidade administrativa
(órgão ou entidade) distintos daquele de onde o ato ou atividade foram emanados. se o
Poder Legislativo ou o Poder Judiciário são chamados a atuar em relação a determinada
atividade ou a certo ato praticado no âmbito do Poder executivo, ter-se-á hipótese de
controle externo.
nesse tocante, o controle hierárquico é exemplo de controle interno e, nesse
sentido, o superior hierárquico está autorizado a exercer controle de mérito sobre os
atos e atividades desenvolvidos pelos subordinados.
deve-se ter cuidado com a expressão controle interno mencionada pela Constituição Federal (CF, art. 74).
o texto constitucional faz referência expressa ao sistema de controle interno
de gastos públicos, e os parâmetros para o exercício dessa modalidade de controle
estão indicados na própria Constituição (art. 74): “avaliar o cumprimento das metas
previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia
e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades
da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades
de direito privado; exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem
como dos direitos e haveres da união; apoiar o controle externo no exercício de sua
missão institucional”.
o controle judicial e o controle desenvolvido pelo tCu,4 a serem adiante examinados, constituem exemplos de controle externo.
18.2.3 Controle de mérito e controle de legalidade
A súmula nº 473 do stF constitui o parâmetro para o estudo dessas duas modalidades básicas de controle. dispõe mencionada súmula, in verbis:
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou pode revogá-los, por motivo de
conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos
os casos, a apreciação judicial.
Quando se examina o controle de mérito, o primeiro aspecto a ser considerado é
a necessidade de distinguir os conceitos de mérito e de discricionariedade.
4
É recomendável a leitura de AGuiAr. Controle externo: anotações à jurisprudência do tribunal de Contas da
união: temas polêmicos. na obra são apresentadas importantes decisões proferidas pelo tCu, sendo conferido
destaque especial a auditorias operacionais realizadas pelo tribunal.
861
862
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
esses dois conceitos muito se aproximam. um, inclusive, faz parte do outro.
não é correto, todavia, confundi-los. A discricionariedade é a liberdade conferida pela lei ao
administrador público para a adoção da solução mais adequada ao caso concreto. O mérito é o
juízo de conveniência e oportunidade de que se vale o administrador público para a escolha da
solução mais adequada ao caso concreto. somente é cabível falar em mérito, portanto, nas
situações em que a lei houver conferido discricionariedade ao administrador público. se
em face de determinada circunstância concreta a lei permite ao administrador a escolha
entre a opção A ou B, essa liberdade de escolha corresponde à discricionariedade. o
mérito deve ser entendido como o juízo de que se vale o administrador para escolher
uma ou a outra opção.
A distinção entre os dois conceitos é relevante, haja vista o controle de legalidade
tornar possível o exame da discricionariedade administrativa, mas não do mérito do
ato. Vale dizer, os órgãos legitimados a exercer controle de legalidade podem verificar
se o administrador adotou solução estranha aos limites previstos em lei ou incompatível
com as finalidades que justificaram a outorga daquela competência. Se a lei permite
que o administrador possa optar entre a opção A e B, e ele, sob o pretexto de exercer
atividade discricionária, adota a solução C, é possível impugnar o ato sob o ponto de
vista da legalidade. Ainda no exercício do controle de legalidade é possível atacar o ato
caso se verifique desvio de finalidade, vício de forma, falhas no processo necessário à
formação do ato etc.
o controle de mérito, nas hipóteses de atuação discricionária, possibilita a revisão
do ato praticado em razão de motivos de conveniência ou oportunidade.
o termo legalidade é aqui entendido em sentido amplo, compreendendo não apenas
a simples observância do ato aos requisitos previstos em lei. examina-se, ao contrário,
a conformidade do ato com todos os preceitos e princípios do ordenamento jurídico.
em resumo, é possível concluir que por meio do controle de mérito se busca
identificar as razões de conveniência e de oportunidade que levaram a Administração
Pública a praticar determinado ato discricionário, e se esses requisitos ainda se mantêm. na eventualidade de o ato se mostrar inconveniente ou inoportuno, por meio do
controle de mérito o ato pode ser revogado. o controle de legalidade (de legitimidade
ou de juridicidade) verifica a adequação ou conformidade do ato ao ordenamento
jurídico. se a conclusão dessa avaliação for a de que o ato viola a ordem jurídica, o ato
deve ser anulado.
desse modo, o controle de mérito pode resultar na revogação do ato; o controle
de legalidade, na anulação.
Dado que o controle de mérito verifica aspectos afetos exclusivamente à atuação
da Administração Pública, somente a esta é reconhecida a competência para o seu exercício. em outras palavras, somente a Administração Pública pode revogar seus atos.
Distinta é a situação do controle de legalidade. A verificação da conformidade do ato
com o ordenamento jurídico compete tanto à unidade administrativa responsável pela
prática do ato quanto ao Poder Judiciário.
As distinções entre a anulação e a revogação foram exaustivamente analisadas
no capítulo relativo aos atos administrativos. Para maiores considerações sobre controle
de mérito e de legalidade, remetemos o leitor ao Capítulo 5.
importantes indagações sobre os limites do controle de legalidade restam ainda
por ser enfrentados.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Ao se adotar a concepção ampla de legalidade, compreendendo não apenas o
mero exame formal de adequação do ato à lei, mas a todos os princípios da Administração Pública, o controle de eficiência da atuação administrativa representa modalidade
de controle de mérito ou de legalidade?
outro importante aspecto do controle da legalidade diz respeito à possibilidade
de se examinar a discricionariedade, ou, de modo mais específico, até que ponto o controle
de legalidade pode adentrar aos aspectos relacionados à discricionariedade, especialmente em
relação à denominada discricionariedade técnica.
estes, e outros importantes aspectos relacionados ao controle de legalidade serão
examinados em seguida.
18.3 Controle de legalidade
18.3.1 discricionariedade, interpretação e conceitos jurídicos
indeterminados
deve-se, desde já, advertir que a utilização, pela lei, de termos ou preceitos vagos,
que a necessidade de respeito à discricionariedade do administrador, que a utilização de
legislação ou regulamentação excessivamente técnica, como a que costuma ser utilizada
pelas agências reguladoras, por exemplo, não devem constituir empecilho à verificação
da estrita observância das normas jurídicas, inclusive por parte do Poder Judiciário.
É certo que o exercício do controle de legalidade se torna mais difícil quando a
lei, por exemplo, utiliza-se de conceitos jurídicos vagos, ou indeterminados, ou ainda
quando utiliza terminologia excessivamente técnica.
Não obstante essas evidentes dificuldades, o princípio da inafastabilidade do
controle judicial impõe a sujeição de todos os atos praticados pela Administração
Pública ao controle de legalidade, inclusive daqueles praticados no exercício da discricionariedade técnica ou em razão da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados.
em primeiro lugar, cumpre-nos examinar os denominados conceitos jurídicos
indeterminados, de que seriam exemplos expressões como interesse público, interesse
coletivo, notório saber jurídico, notória especialização, inquestionável reputação éticoprofissional ou justa indenização.
o primeiro requisito para a correta aplicação, no âmbito da Administração
Pública, dos denominados conceitos jurídicos indeterminados ou vagos está ligado ao
fato de que o processo de interpretação e de aplicação de qualquer norma jurídica pelo
administrador público pressupõe a necessária motivação. Por meio da motivação —
obrigatória para todos os atos administrativos — o administrador deve indicar por que
a aplicação da norma abstrata que contém mencionado conceito indeterminado resulta
na elaboração daquela solução normativa específica. Sempre que o administrador adota
determinada solução concreta, deve ser encontrada na motivação a indicação das razões
de fato e de direito que o levaram à construção da norma do caso. em outras palavras,
diante dos conceitos indeterminados, o administrador deve indicar, na motivação do
ato, as etapas do processo de interpretação, inclusive como que se partiu da norma
abstrata e se chegou à norma do caso.
no processo de controle dos atos praticados em função da aplicação dos conceitos
jurídicos indeterminados ganha especial relevo o princípio da motivação que se torna
863
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
instrumento de fundamental importância para o exercício do controle da Administração
Pública: se determinado preceito legal é vago, se permite ao intérprete-aplicador concluir
pela existência de várias soluções possíveis para o caso concreto, deve ser justificado
por que foi adotada determinada solução normativa em detrimento das demais.
Por mais vago ou indeterminado que seja o preceito legal, existem limites lógicos
a serem observados no processo interpretativo, e estes limites estão sujeitos ao controle
de legalidade. Ademais, não se pode confundir interpretação com discricionariedade.
o processo interpretativo antecede o juízo de discricionariedade. tomemos o
exemplo de norma que assegure aos soldados do Corpo de Bombeiros direito a promoção por “ato de bravura”. ou seja, o ato de bravura é motivo para promoção. É certo
que a definição do que seja referido ato não é precisa. As dúvidas acerca da definição
dos fatos ou das circunstâncias e da sua subsunção às normas, todavia, não importam
em outorgar discricionariedade ao aplicador dessa norma. se em determinada situação
concreta for verificada a ocorrência de circunstâncias que caracterizam o ato como tal,
o bombeiro terá direito à sua promoção e não haveria qualquer discricionariedade da
Administração Pública para negar ao bombeiro sua promoção. ora, a atuação discricionária do administrador reside no fato de que, identificado o motivo, a lei lhe confere
liberdade para a adoção de mais de uma solução possível. se diante de determinada
situação concreta se chegar à conclusão de que se trata de ato de bravura, não tem o
administrador a liberdade para não promover mencionado soldado. Portanto, por
mais vago que seja o enquadramento de circunstância como ato de bravura, feito este
enquadramento, a atuação do administrador é vinculada.
distinta é a situação em que o administrador se depara com normas que lhe
outorgam competências discricionárias. Nestas, a identificação das circunstâncias que
ensejarão a aplicação da norma pode constituir tarefa simples ou complicada. isto é
irrelevante para a configuração do ato como vinculado ou discricionário. Todavia, identificadas essas circunstâncias, as quais irão constituir o motivo para os atos administrativos
a serem praticados, se à luz da norma do caso a atuação do gestor for discricionária,
sempre restará mais de uma opção para agir, liberdade conferida ao administrador pela
norma do caso, resultante do processo de interpretação e aplicação da lei.
idêntico raciocínio vale para a hipótese de norma que imponha aos servidores
responsáveis pela segurança de repartição pública o dever de coibir “comportamento
indecoroso” de servidor ou de terceiro. Ato indecoroso constitui conceito indeterminado. se, todavia, em face de circunstância concreta, for constatado que determinado
indivíduo pratica ato que se enquadra nesse conceito, não se pode falar em discricionariedade a fim de afastar o dever da Administração de adotar as providências cabíveis,
e o servidor responsável pela segurança da repartição pública encontrar-se-á diante do
dever — atuação vinculada — de coibir tal comportamento.
A discricionariedade administrativa, historicamente apresentada como barreira
intransponível ou inexpugnável ao controle da atividade administrativa do estado,
hoje não mais pode ser utilizada para esse fim.
não obstante seja discricionário, o ato pode ser amplamente controlado do ponto
de vista da sua adequação ao direito quando, por exemplo, tiver sido praticado por
autoridade incompetente, quando ocorrer desvio de finalidade ou nele for verificado
vício de forma.
são várias as fórmulas utilizadas pela legislação para conferir discricionariedade
ao administrador. no exame do alcance a ser empreendido pelo controle de legalidade
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
em face da discricionariedade administrativa, o ponto de partida é, portanto, a lei.
surge a discricionariedade quando: 1. a legislação atribui competências genéricas ao
administrador — o que ocorre, por exemplo, quando a Constituição Federal confere
competência à união, estados e municípios para prestarem serviços na área de saúde,
ou para cuidarem da proteção das pessoas deficientes. Nestas hipóteses, ainda que o
administrador tenha o dever de agir, de prestar o serviço de forma adequada, a escolha
da forma de prestação do serviço é discricionária. em outras situações previamente
definidas, verificada a ocorrência de determinadas circunstâncias; 2. a lei apresenta
algumas opções a serem adotadas e confere ao administrador a liberdade para a eleição
daquela que lhe pareça mais adequada. esta situação ocorre, por exemplo, na hipótese
de comissão disciplinar ter comprovado o cometimento de infração punível com pena
de suspensão. A critério do poder público, a suspensão pode ser convertida em multa
com base em 50% da remuneração do servidor, nos termos da Lei nº 8.112/90, art. 130,
§2º. Há ainda hipóteses em que 3. lei permite que a escolha do melhor momento para
a prática do ato seja definida pelo administrador. Exemplo: na concessão de férias a
servidores públicos, a definição do momento mais oportuno para o exercício do direito
fica a critério do poder público. Surge ainda a discricionariedade quando 4. a legislação
é clara ao determinar que o conteúdo do ato seja definido em função do juízo de conveniência do administrador — por exemplo, será concedida licença ao servidor para tratar
de interesse particular “a critério da Administração” (Lei nº 8.112/90, art. 91), ou ainda
o que ocorre na livre nomeação e exoneração de ocupantes de cargos em comissão (CF,
art. 37, ii). em todas essas situações, a lei confere discricionariedade ao administrador.
É a lei, portanto, que, ao conferir competência (ou poder) ao administrador
público, define se sua atuação é discricionária ou se, ao contrário, vinculada — no
sentido de que o conteúdo do ato ou a solução a ser adotada, inclusive em relação ao
momento da sua prática, já se encontram previamente definidos pela lei. Verifica-se
atuação vinculada, por exemplo, quando o servidor público efetivo completa 70 anos,
hipótese em que a legislação impõe ao administrador o dever de conceder aposentadoria
compulsória ao servidor (CF, art. 40, §1º, ii) independentemente de qualquer juízo de
conveniência ou de oportunidade.
É no exame da lei — ou do texto constitucional — que devem ser buscados os
limites para a atuação discricionária da Administração Pública e, portanto, para o
exercício do controle de legalidade do ato. A liberdade do administrador para adotar
a melhor solução para situações concretas com base em juízo de conveniência e de
oportunidade, isto é, a discricionariedade administrativa decorre da lei e deve ser
exercida nos limites desta. Além de evitar eventuais desvios de finalidade, por meio do
controle de legalidade deve-se buscar definir os limites desta discricionariedade. Essa
tarefa permite identificar a zona da atuação administrativa em que o administrador se
encontra livre para a escolha do conteúdo do ato, conteúdo a ser preenchido em razão
do juízo de conveniência e oportunidade do administrador.
o reconhecimento da existência de liberdade conferida pela lei à Administração
Pública não significa reconhecer que a atuação administrativa esteja isenta de controle
de legalidade, ou que haja zonas em que o controle de legalidade não possa ser exercido.
Em razão do princípio da legalidade administrativa, toda atividade administrativa se sujeita à
lei e, em consequência, ao controle de legalidade.
se, todavia, a lei confere ao administrador público a competência para a indicação
da melhor solução com base em seu juízo de mérito, o Poder Judiciário não pode interferir na definição dessa solução, haja vista aos juízes somente ser autorizado o controle
865
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
866
de legalidade da atividade administrativa. A interferência judicial no mérito, além de
violar o princípio da legalidade, fere o princípio da separação dos poderes do estado.
Toda atividade administrativa deve observar a legalidade — afirmação que
importa em que toda atividade administrativa se sujeita ao controle de legalidade. A
intensidade com que esse controle se realiza sobre a atividade administrativa irá variar,
todavia, em razão de se tratar de atuação vinculada ou discricionária.
É a lei que confere discricionariedade ao administrador. É ela que fixa os objetivos
ou fins da atuação administrativa. Nela devem ser buscados, portanto, os parâmetros
para o controle de legalidade. Esses fins legais devem funcionar como diretrizes ou
parâmetros para a atuação do administrador e devem balizar o exercício da discricionariedade administrativa. Além desses parâmetros legais, a não observância dos
preceitos e princípios constitucionais e dos direitos fundamentais igualmente ensejam
o controle de legalidade.
em outras palavras, o fato de a lei ter conferido em determinadas circunstâncias
liberdade de atuação ao administrador não o autoriza a violar a lei ou qualquer outro
preceito ou princípio constitucional, e o dever de observar a lei significa respeitar os
limites da liberdade e os fins por ela estabelecidos.
se a observância dos princípios da legalidade e da separação dos poderes legitima
o exercício do controle da legalidade pelo Poder Judiciário, esses mesmos princípios
impõem limites ao exercício desse controle. A partir da noção de reserva da administração,
deve ser reconhecido que o juiz — ou quem exerça controle de legalidade — não pode
substituir o administrador na definição das soluções de conveniência e de oportunidade
administrativa.
o controle de legalidade e a teoria da reserva da administração têm sido temas
recorrentes quando se discute a possibilidade de o Poder Judiciário examinar eventuais
erros cometidos em questões de concurso público, por exemplo.
A tese dominante na jurisprudência pátria aponta no sentido de que o controle
de legalidade, no caso, deve-se ater à verificação do conteúdo programático, ou seja,
deve-se verificar se o assunto da questão se encontra previsto no edital, e não à correção
técnica do conteúdo da questão.5
5
nesse sentido, stF: “A adequação das questões da prova ao programa do edital de concurso público constitui
tema de legalidade suscetível de exame pelo Poder Judiciário. Com base nesse entendimento, a turma negou
provimento a recurso extraordinário interposto pelo estado do rio Grande do sul contra acórdão do tribunal
de Justiça deste estado que, ao conceder parcialmente mandado de segurança, anulara questões relativas a
concurso público para o cargo de juiz de direito substituto. no caso concreto, o tribunal a quo, aplicando a
jurisprudência do stF — no sentido da inviabilidade da revisão de provas de concursos públicos pelo Poder
Judiciário ou para a correção de eventuais falhas na elaboração das suas questões, recusara-se a rever a correção
técnica da formulação de alguns quesitos da prova, mas, de outro lado, entendera que duas questões diziam respeito a assunto não incluído no edital, referindo-se, portanto, à matéria de legalidade consistente na pertinência
das questões ao programa do edital. Asseverou-se que o edital, nele incluído o programa, é a lei do concurso e,
por isso, suas cláusulas obrigam os candidatos e a Administração Pública. Por conseguinte, havendo controvérsia acerca da legalidade do ato e pretensão de direito subjetivo lesado a apurar, é cabível o acesso à jurisdição
(CF, art 5º, XXXv). Precedentes citados: re 192568/Pi (dJu de 7.2.97) e re 268244/Ce (dJu de 30.6.2000)” (re
nº 434.708-rs, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 21.6.2005. DJ, 09 set. 2005).
outras decisões no stF: Ai nº 608.639-Agr/rJ, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 2.3.2007. DJ, 13
abr. 2007; re nº 526.600-Agr/sP, 1ª turma. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 12.6.2007. DJe, 03 ago. 2007; re
nº 440.335-Agr/rs, 2ª turma. rel. min. eros Grau. Julg. 17.6.2008. DJe, 1º ago. 2008; e re nº 560.551-Agr/rs, 2ª
turma. rel. min. eros Grau. Julg. 17.6.2008. DJe, 1º ago. 2008.
no tCu, no mesmo sentido: “Como é cediço, não compete a esta Corte de Contas ou ao Poder Judiciário o reexame
dos critérios empregados pela banca examinadora na elaboração e na correção de provas de concursos públicos,
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
essa concepção acerca do controle de legalidade não se deve restringir à atividade
administrativa. ela deve alcançar toda e qualquer atividade estatal. no caso da atividade
legislativa, especificamente no que toca ao processo de aprovação e de execução orçamentária, o juiz não pode, como regra, a pretexto de exercer controle de legalidade, determinar
que os recursos públicos devam ser empregados em determinados fins e não em outros.
Assim como a interferência judicial sofre limitações no exercício do controle de
legalidade da atividade administrativa, o mesmo se verifica em relação à atividade
legislativa.
o controle judicial deve, no entanto, ser exercido de modo pleno sempre que o
exercício das atividades legislativa ou administrativa violarem a ordem jurídica. se na
aprovação da lei orçamentária não forem contemplados os limites mínimos de gasto com
educação ou saúde, o Poder Judiciário deve promover todas as medidas necessárias ao
cumprimento dos preceitos constitucionais, especialmente em relação àqueles voltados
à satisfação dos direitos fundamentais. idêntico raciocínio vale para as situações em
que a adoção de medidas pelo administrador público ou pelo legislador importarem
em violação dos direito fundamentais.6 ou seja, no exercício do controle de legalidade,
deve-se respeitar o âmbito de atuação do administrador público ou do legislador. essa
liberdade não importa, todavia, em admitir como válidas soluções que violem os direitos
fundamentais de modo que não é legítimo ao poder público deixar de alocar recursos
necessários à prestação de serviços diretamente ligados à realização desses direitos.
sempre que isto ocorrer, haverá violação da ordem jurídica, e o controle de legalidade
deve-se fazer presente de modo pleno.
nada indica que a vontade do juiz seja mais legítima que a do legislador ou do
administrador público. se estes últimos, no entanto, ferem a Constituição ou adotam
soluções contrárias à realização dos direitos fundamentais, impõe-se o necessário controle judicial não por voluntarismo, mas por imperativo constitucional.
18.3.2 razoabilidade e discricionariedade
A razoabilidade constitui importante mecanismo de controle da discricionariedade administrativa.
se a regra jurídica abstratamente considerada pode eventualmente conferir ampla
liberdade ao administrador, diante de situações concretas, o processo de interpretação
irá interferir na definição dos limites dessa liberdade, e a fixação dos limites da liberdade de agir do administrador será definida em função das situações do caso concreto.
A norma do caso, construída por meio do processo de interpretação-aplicação do
direito às situações concretas, é de alcance mais limitado do que o da norma abstrata.
Em outras palavras, pode-se afirmar que a limitação do alcance da norma do caso em
relação à norma abstrata importa em restrição da margem de discricionariedade conferida pela lei. tomemos exemplo concreto. A Lei nº 8.112/90 estabelece que o servidor
6
sendo possível tão somente o exame da legalidade do procedimento administrativo e dos princípios que regem a
Administração Pública, em especial o da vinculação às regras contidas no edital” (Acórdão nº 2.197/2008, Plenário).
nesse sentido, o voto do min. Celso de mello proferido por ocasião do julgamento no stF do re nº nº 436.996-sP
(Informativo STF, n. 407) é um verdadeiro primor. no caso, particular litigava contra o estado de são Paulo para
exigir a prestação de serviços de educação e de creche. o estado foi condenado a prestar o serviço e a indenizar
o particular por danos sofridos. Vide também stF. re nº 410.715-Agr/sP, 2ª turma. rel. min. Celso de mello.
Julg. 22.11.2005. DJ, 03 fev. 2006.
867
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Curso de direito AdministrAtivo
reincidente no cometimento de infração punível com advertência deve ser sancionado
com a pena de suspensão de um a 90 dias (Lei nº 8.112/90, art. 130). desse modo, se se
pergunta se é legítima a aplicação de suspensão de noventa dias a servidor público, a
resposta certamente é afirmativa. Todavia, considere que determinado servidor tendo-se
ausentado injustificadamente do serviço — ausência que não causou qualquer outra
perturbação ao serviço — tenha sido punido com advertência (Lei nº 8.112/90, art. 129).
esta infração volta a ser cometida pelo servidor poucos dias depois sem que, uma vez
mais, volte a causar qualquer outra consequência prática relevante. em razão do cometimento da nova infração, não resta dúvida, o servidor deve ser suspenso em razão do
disposto na Lei nº 8.112/90. seria legítimo, no caso, admitir a aplicação de suspensão de
90 dias a esse servidor? ou, ao contrário, será que as circunstâncias concretas, o juízo
de ponderação, o cotejamento desse caso concreto com outros, a constatação de que a
suspensão de 90 dias é pena disciplinar aplicável a situações gravíssimas não levariam
à conclusão de ser absurda a solução apresentada?
se a pena de suspensão de 90 dias é admitida pela legislação quando esta é examinada em abstrato, não necessariamente será a sua aplicação legítima em situações
concretas, haja vista a construção da norma do caso recomendar, a partir do juízo de
razoabilidade ou de proporcionalidade, a aplicação de suspensão de um, dois, talvez
três dias.
o princípio da razoabilidade constitui o principal instrumento para o exercício
do controle da legitimidade da atuação administrativa discricionária. É certo que nem
sempre será fácil separar o juízo de conveniência ou de oportunidade do administrador
da noção de conduta razoável. todavia, se diante do caso concreto o juiz chamado a
exercer o devido controle da Administração concluir ter sido adotada solução contrária
à razoabilidade, não será o ato reputado inconveniente ou inoportuno, ele será ilegítimo.
discordamos de conclusões que exigem, em nome do princípio da razoabilidade,
adoção da melhor solução pelo administrador público. não se deve cogitar de construir
a tese do administrador-Hércules, à semelhança do que fez ronald dworkin em relação
ao seu juiz ideal. É certo que em raras situações será possível identificar, com alguma
segurança, a melhor dentre as soluções possíveis. não parece, todavia, que a função a
ser desempenhada por esse importante princípio seja essa. A definição da solução ideal,
e daquelas que lhes são próximas, depende de elevado grau de discricionariedade. A
verdadeira função do princípio da razoabilidade no controle da discricionariedade
administrativa é evitar soluções absurdas. se, a partir do exame do caso concreto, a
aplicação da norma resultar absurda, por mais subjetivo que se possa considerar esse
processo, o princípio da razoabilidade deve entrar em ação e afastar referida solução
por ser contrária ao direito. no caso concreto acima mencionado, é absurdo punir de
forma tão drástica o cometimento de infração de tão baixa gravidade — suspensão de
90 dias para servidor que se tenha ausentado da repartição sem autorização da chefia.
no caso concreto, a aplicação da sanção fere o direito posto não ser razoável.
Quando se estuda o controle judicial de legitimidade da discricionariedade administrativa, a maior dificuldade reside ainda na definição do alcance ou dos limites para
esse controle. Essa dificuldade, verificada na jurisprudência e na doutrina, decorre, em
grande medida, de certa confusão envolvendo os conceitos de razoabilidade, de desvio
de finalidade e de mérito do ato.
O juízo de razoabilidade interfere na discricionariedade do administrador, mas não no
mérito do ato. este aspecto deve ser clareado.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Conforme visto, a aplicação da norma ao caso concreto e o processo de interpretação-aplicação que resulta da elaboração da norma do caso importam, em regra, em
restrição à liberdade de agir da Administração Pública. o juízo de razoabilidade ou de
ponderação de que se vale o intérprete para definir — limitar — a discricionariedade
administrativa não afeta o juízo de oportunidade ou de conveniência para a definição
do resultado da atuação do administrador. se for adotada pelo administrador solução
fora do âmbito que a norma do caso permite, esta solução administrativa — ato ou
contrato — não será inoportuna ou inconveniente, ela será ilegítima. desse modo, ainda
que possa haver zona nebulosa entre o juízo de mérito e o de razoabilidade, o controle
de legitimidade compreende o exame da razoabilidade e justifica a tutela a ser exercida
pelo Poder Judiciário.
É igualmente descabido confundir a atuação administrativa eivada de vício de
finalidade daquela inconveniente ou inoportuna. O juízo de mérito permite ao administrador definir o conteúdo ou objeto resultante da sua atividade em função das
circunstâncias de fato ou de direito que o tenham levado a praticar tal ato. o mérito se
localiza na relação entre o motivo e o objeto do ato: se diante de determinado motivo
— entendido este como a circunstância de fato ou de direito que tenha levado o administrador a agir — a lei confere a este administrador a liberdade para a adoção de mais
de uma solução possível, isto é, se a lei confere discricionariedade ao administrador, será
o juízo de conveniência ou de oportunidade que irá conduzi-lo a adotar uma dentre as
hipóteses permitidas. A finalidade, outro requisito de validade do ato, corresponde à
busca pelo interesse público. Compreende a finalidade do ato a necessidade de que toda
e qualquer solução a ser adotada pela Administração Pública seja justificada, em primeiro lugar, em razão da realização direta ou indireta, imediata ou mediata dos direitos
fundamentais. As concepções modernas do estado veem neste um instrumento para a
realização dos direitos humanos, em especial no que concerne à realização da dignidade
da pessoa humana. Exige-se, assim, que toda atividade administrativa seja justificada,
ainda que em sentido amplo, como meio para a realização dos direitos humanos. em
segundo lugar, a observância do requisito da finalidade requer a observância da lei.
O terceiro aspecto para a realização da finalidade do ato administrativo requer, desde
que sejam observados os dois primeiros, a busca de obtenção de vantagens materiais
para a Administração Pública. desse modo, solução que atenda a interesse imediato ou
material da Administração, como, por exemplo, o de obter proposta mais vantajosa em
uma contratação, mas que frustra direito fundamental ou viola lei, não realiza, mas, ao
contrário, fere interesse público.7
18.3.3 discricionariedade técnica
o tecnicismo que envolve a conduta de algumas unidades administrativas —
licitações na área de informática, construção de usina nuclear, concessões rodoviárias
ou na área de energia elétrica ou de telecomunicações, por exemplo — pode criar dificuldades para o controle de legalidade. Não podem, todavia, justificar o afastamento
da apreciação judicial.
7
Para maiores considerações sobre o interesse público remetemos o leitor ao Capítulo 3.
869
870
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Trata-se de importante aspecto do controle da legalidade saber identificar situações
em que as soluções são adotadas pela Administração Pública com base em discricionariedade técnica.
A principal dúvida consiste em saber se o controle de legalidade dos atos praticados com base na discricionariedade técnica deve ser equiparado, para fim de controle
de legalidade, à discricionariedade comum, ou seja, ao mero juízo de conveniência e
oportunidade, o que resultaria em evidente limitação da interferência judicial, ou, ao
contrário, se a questão mais se aproximaria da solução utilizada para os conceitos jurídicos indeterminados, o que ampliaria a possibilidade de interferência judicial.
Quando se fala em discricionariedade, ou seja, se a lei faculta ao administrador
escolher entre duas ou mais opções lícitas, ele pode optar por uma delas simplesmente
por que a considera mais adequada. esse juízo de oportunidade e conveniência não
se encontra sujeito a valoração pelo controle de legalidade pela simples razão de que
todas as opções são, em princípio, legais. se todas elas são legais, não é permitido ao
juiz interferir na escolha da opção adotada pelo administrador, porque ele estaria tão
somente substituindo a vontade do administrador. nessas situações, a substituição
da vontade do juiz pela vontade do administrador importaria em violação da lei, haja
vista esta ter conferido ao administrador, e não ao juiz, a liberdade para a escolha de
uma dentre as opções possíveis.
em outras situações, a escolha de uma dentre as diversas opções conferidas
pela lei não se baseia em mera vontade do administrador, mas em questões técnicas
extremamente complicadas. exemplo: a escolha, pelo Governo Federal, do padrão de
televisão digital.
tem-se, aqui, nítida situação em que a adoção de uma das opções possíveis não
se dá por razões de mera oportunidade ou conveniência administrativa, mas em razão
de decisão de índole eminentemente técnica.
nessas hipóteses, estaríamos diante de situação puramente discricionária?
Caso os elementos técnicos sejam equiparados, para fim de controle, aos conceitos jurídicos indeterminados, torna-se possível, por exemplo, a realização de perícia e,
caso esta indique que determinada solução é mais vantajosa, não haveria que falar em
discricionariedade, mas no dever do administrador de adotar a solução apontada pela
perícia. Caso seja adotada esta postura para a solução dos casos relacionados ao exercício da discricionariedade técnica, ela em nada se diferenciaria do modo de proceder
ou da postura utilizada no controle dos atos praticados a partir dos conceitos jurídicos
indeterminados.
A dúvida consiste, portanto, em determinar a natureza da discricionariedade
técnica de modo a identificar a postura a ser adotada no controle da legalidade das
atuações ou soluções baseadas no exercício dessa competência.
desde já deixamos assente que não nos parece correta a equiparação da discricionariedade técnica aos conceitos jurídicos indeterminados. neste último caso, os pressupostos de fato que ensejam a aplicação da norma jurídica são certos e determinados.
Para testar essa distinção, podemos utilizar o conceito de justa indenização relativo às
desapropriações (CF, art. 5º, XXiv), e que constitui exemplo de conceito jurídico indeterminado. Aqui, por meio de perícia, é perfeitamente possível identificar os fatos que
ensejam a aplicação da norma e chegar à conclusão de que se trata de atuação vinculada.
ou seja, se a perícia aponta certo valor a ser indenizado, o administrador não pode
simplesmente preferir não adotá-lo por razões de conveniência ou oportunidade. isto
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
não impede que a perícia possa ser cotejada pelo administrador ou por quem exerça o
controle de legalidade com outras opiniões técnicas. não obstante essa possibilidade,
identificada a avaliação mais adequada, o administrador encontrar-se-á vinculado, ou
seja, terá que adotá-la.
nas situações de aplicação da discricionariedade técnica, não resulta simples
identificar os pressupostos fáticos sobre os quais a norma deve ser aplicada. No exemplo mencionado, relativo à adoção do padrão de televisão digital, quais os fatos que
justificam a adoção do padrão A, B ou C? As variáveis envolvidas são inúmeras, além de
não serem controláveis. nas decisões adotadas com base na discricionariedade técnica,
dificilmente seriam apresentadas duas perícias ou opiniões técnicas idênticas. Assim,
dentre as possíveis soluções lícitas e razoáveis que se apresentem, a Administração
Pública deverá escolher uma com base em critérios técnicos e discricionários. esta a
particularidade que caracteriza a discricionariedade técnica.
A conclusão acima não importa em afastar o controle de legalidade. este não deve
examinar, no entanto, se a opção técnica A é melhor ou mais vantajosa que as opções B,
C ou D. No controle da legalidade, deve-se tão somente verificar se a opção A adotada
pela Administração Pública a partir do seu juízo de discricionariedade técnica é legal,
se é razoável, se foi justificada, do ponto de vista técnico e jurídico, a sua escolha, se
os procedimentos para a tomada de decisão foram observados, se não houve desvios
ou favorecimentos etc. na eventualidade de esses parâmetros não serem observados,
cumpre àquele que exerce o controle de legalidade o dever de anular a decisão administrativa e de restituir o processo à Administração Pública para a adoção de nova solução
sem vícios. no exemplo que mencionamos, da escolha do padrão de televisão digital, se
juiz ou o tribunal de Contas da união entender que os requisitos de legalidade acima
apontados não foram observados, não deve indicar o novo padrão. ou seja, se o tCu,
por exemplo, verificar favorecimento não justificado na escolha do padrão japonês, não
pode substituir o administrador e indicar a adoção do padrão europeu. deve apenas
determinar que a Administração Pública corrija o ato ilegal (CF, art. 71, IX).
em conclusão, a discricionariedade técnica constitui modalidade especial de discricionariedade administrativa. Fixada essa tese, não se mostra legítimo admitir que o
controle de legalidade possa interferir nos critérios utilizados pelo administrador para
a escolha de uma dentre as várias soluções técnicas e lícitas apresentadas.
importa observar, todavia, que o respeito à discricionariedade não afasta o controle de legalidade, que examinará importantes aspectos da atuação administrativa
(motivação, razoabilidade, realização do interesse público, não ocorrência de desvios
etc.). Cabe à Administração Pública tornar referidos processos técnicos compreensíveis
de modo a que seja exercido o controle de legalidade, inclusive pelo Poder Judiciário,
o que possibilita decisões judiciais adequadas, tanto do ponto de vista técnico, quanto
do ponto de vista jurídico.
18.3.4 Eficiência e discricionariedade
dos princípios constitucionais a serem utilizados como parâmetro para o controle
do poder discricionário, especial atenção deve ser reconhecida ao princípio da eficiência
(CF, art. 37, caput), que seria melhor traduzido pelo princípio da economicidade (CF,
art. 70).
871
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
872
Tem sido corrente a tese de que o controle da eficiência se encontra afeto ao
mérito da atuação administrativa e, portanto, insusceptível, ou ao menos inadequado
de ser aferido pela via judicial.8
discordamos, pelas razões a seguir indicadas, desse entendimento. das opções
apresentadas pela lei ao administrador, ele deve adotar aquela que melhor realize a
relação custo benefício de sua atuação. esse dever é constitucional e não se apresenta
como opção que possa deixar de ser adotada pela Administração Pública por motivos
de conveniência e de oportunidade. em outras palavras, o administrador não pode
optar por ser ineficiente.
o processo de escolha de uma dentre as diversas opções de atuar que se apresentam à Administração Pública deve-se sujeitar à relação custo-benefício, a partir do
juízo de ponderação e de razoabilidade.
Conforme já se observou, as potestades outorgadas pelo ordenamento jurídico à
Administração Pública se caracterizam por serem competências funcionais. vale dizer,
é reconhecida ao administrador a legitimidade para praticar certos atos ou desenvolver
determinadas atividades, tendo sempre em vista a realização dos interesses da coletividade.
o processo de escolha de uma opção de agir é racional e, como tal, requer a devida
motivação de por que se adotou aquela solução em detrimento de outras que igualmente
poderiam se apresentar lícitas.
Neste cenário, se determinada solução se apresenta como ineficiente, ou seja, se a
relação custo-benefício daquela decisão for desvantajosa quando comparada às demais,
não possui o administrador qualquer liberdade ou poder para adotá-la.
este raciocínio leva à conclusão inequívoca de que se for demonstrado que a adoção de determinada solução fere o princípio da eficiência, ela não deve ser considerada
inoportuna ou inconveniente; mas de que ela é ilegítima.
É certo que o Poder Judiciário tem longo caminho a percorrer para a definição de
parâmetros de eficiência — e os Tribunais de Contas muito a contribuir neste processo.9
desde o advento da Constituição Federal de 1988, o tribunal de Contas da união
já desenvolve controle de economicidade da atividade administrativa e possui amplo
conhecimento de técnicas e métodos para aferir a economicidade da atividade pública.
Em Estados modernos, dos quais se esperam resultados que justifiquem e legitimem a sua própria existência, é imprescindível que se proceda ao controle da economicidade como aspecto do controle de legitimidade, a ser desempenhado pelo Poder
Judiciário em parceria com os tribunais de Contas.
não se trata — ao menos no estágio em que nos encontramos — de buscar
mecanismos de punição para o gestor público que não tenha adotado a solução mais
eficiente. Não é este o propósito da tese que aqui defendemos. Temos plena consciência
de que nem sempre é possível indicar esta solução mais eficiente. Trata-se de defender
a tese de que o princípio da economicidade impõe ao administrador público o dever
constitucional de evitar soluções absurdamente ineficientes e que a não observância
desse princípio importa em nulidade do ato por meio do qual mencionada solução
tiver sido implementada.
8
9
maria sylvia Zanella di Pietro (Direito administrativo, p. 614) defende que o controle de economicidade cuida do
mérito da atividade administrativa.
Para maiores considerações sobre o papel desempenhado pelo TCU no controle da eficiência, ver BUGARIN. O
princípio constitucional da economicidade na jurisprudência do Tribunal de Contas da União.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Conforme examinamos no Capítulo 3, o princípio da economicidade compreende
três diferentes aspectos: a eficiência, a eficácia e a efetividade.
O exame da eficiência obriga-os a considerar a relação custo benefício da atuação administrativa: deve o agente público considerar o volume de insumo necessário
à produção do resultado que se busca. O controle de eficácia dá relevo aos resultados:
busca-se verificar se a atividade administrativa produz os resultados esperados. O exame
da eficácia restringe-se tão somente aos resultados da atuação administrativa. Em relação à efetividade, busca-se verificar se os resultados programados ou planejados para
determinada atividade administrativa foram alcançados.
Atuação vantajosa é aquela que considera os diversos aspectos da economicidade, o que somente se mostra viável se houver o necessário e prévio planejamento.
A rigor, o planejamento, a definição de estratégias, a fixação de metas, a avaliação das
metas alcançadas, o controle dos custos, o controle dos resultados são aspectos que
afetam diretamente o interesse público, especialmente em relação ao seu terceiro nível
de realização.10
Quando se examina o interesse público sob a ótica da economicidade, não se
exige do administrador a adoção da solução mais eficiente, eficaz e efetiva. Ainda que
este seja o cenário ideal, não se mostra factível querer impor ao administrador público
o dever de adotar a solução ideal. A partir dos parâmetros e metas de eficiência, eficácia
e efetividade, e tendo presente o princípio da razoabilidade, devem ser identificadas, ao
contrário, as situações em que os administradores públicos tenham adotado soluções
absurdamente antieconômicas. Caso seja possível identificar, a partir da razoabilidade,
essas soluções, a conclusão é a de que elas são ilegítimas.
este o principal aspecto da tese aqui defendida: a partir dos parâmetros fornecidos pelos princípios da razoabilidade e da economicidade, se for possível identificar
determinada solução como absurdamente antieconômica, ela não pode ser adotada
pelo gestor público. não é lícito ou legítimo ao gestor adotá-la.
em termos bastante simples e claros, defendemos que não é lícito ao administrador público adotar soluções sabidamente ineficientes ou ineficazes. Nestas hipóteses,
por meio do controle de legalidade, deve-se proceder à anulação dos atos ou contratos
que viabilizam a adoção dessas soluções.
Consideremos a seguinte situação: para a prestação de serviço de saúde em
determinado município são apresentadas diversas soluções. em razão dos estudos técnicos realizados, determinada opção considera a possibilidade de serem repassados os
recursos públicos, por meio de convênio a determinada organização não governamental
(onG). das opções consideradas nos estudos técnicos realizados, esta solução é a mais
onerosa e a que alcança o menor número de beneficiários. Diante desse cenário, seria
lícita a assinatura desse convênio? Possui a Administração Pública discricionariedade
para adotar esta solução? A resposta parece-nos evidente: a adoção da solução antieconômica é ilegítima e caso seja escolhida pelo administrador, os mecanismos do controle
de legalidade devem ser articulados com vista à anulação do mencionado convênio por
desvio de finalidade, desvio caracterizado pela violação do interesse público.
10
Conforme examinado no Capítulo 3, o interesse público compreende três diferentes planos ou níveis de realização: o Constitucional, relacionado especialmente à realização dos direitos fundamentais, o legal e o da economicidade. este tema foi igualmente mencionado no presente capítulo no subitem relativo à razoabilidade e
discricionariedade.
873
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Curso de direito AdministrAtivo
874
18.4 Controle administrativo
18.4.1 Fundamento e alcance
no ano de 1957, no julgamento do mandado de segurança nº 4.609-dF,11 o stF
discutiu a possibilidade de o Presidente da república anular nomeação de candidato
aprovado em concurso para professor da universidade do Brasil. nas discussões
travadas no âmbito do stF se sagrou vencedora a tese que posteriormente resultou
na elaboração da súmula nº 346, por meio da qual foi reconhecida a prerrogativa da
Administração Pública de rever seus próprios atos por razões de ilegalidade.12 dispõe a
súmula que “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”.
o exame dos julgados mencionados como precedentes da mencionada súmula
indica que até então somente era reconhecido à Administração Pública o poder de desfazer atos por motivo de ilegalidade. ou seja, não se admitia a possibilidade, até o início
da década de 1960, de que a Administração Pública pudesse revogar atos inconvenientes.
A ampliação do poder da Administração Pública para avaliar não apenas a legalidade, mas igualmente a conveniência e a oportunidade dos seus atos, somente veio a
ocorrer com a elaboração da súmula nº 473, in verbis:
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência
ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a
apreciação judicial.
A redação da súmula nº 473 foi repetida de forma praticamente literal pela Lei
nº 9.784/99, que em seu art. 5313 dispõe nos seguintes termos:
A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade,
e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos
adquiridos.
Aspecto curioso da questão reside no fato de que a prerrogativa da Administração
Pública de anular e de revogar seus atos foi reconhecida pelo stF independentemente
11
12
13
stF. ms nº 4.609-dF, Pleno. rel. min. Ari Franco. Julg. 11.11.1957. DJ, 24 dez. 1957.
A prerrogativa da Administração Pública de anular seus atos foi inicialmente reconhecida pelo stF por meio da
súmula nº 6: “A revogação ou anulação, pelo Poder executivo, de aposentadoria, ou qualquer outro ato aprovado
pelo tribunal de Contas, não produz efeitos antes de aprovada por aquele tribunal, ressalvada a competência
revisora do Judiciário”. Este reconhecimento ocorreu de forma muito específica, relacionada tão somente à anulação de atos de aposentadoria.
A distinção que mais chama atenção entre a súmula nº 473 e o art. 53 da Lei nº 9.784/99 corresponde ao fato de que
a súmula utiliza o verbo poder (“A Administração pode anular seus próprios atos”), ao passo que a lei usa o verbo
dever (“A Administração deve anular seus próprios atos”). Conforme examinamos no Capítulo 5, a Administração
Pública deve anular o ato na hipótese de ser verificada ilegalidade. Esta é a regra a ser observada. A Súmula
nº 473 utilizou o verbo poder no sentido de que é reconhecida à Administração Pública esta faculdade, e não
para indicar que se trata de faculdade a ser adotada com base em critério discricionário pelo administrador.
deve-se recordar que, até o advento da súmula stF nº 346, a tese dominante no meio jurídico era a de que a
Administração Pública não podia anular seus atos, sendo esta uma prerrogativa exclusiva do controle judicial.
ou seja, o verbo poder utilizado pela súmula nº 473 representa o reconhecimento de competência para a anulação,
e não de discricionariedade. A possibilidade de a Administração Pública convalidar determinados atos que
apresentem vícios sanáveis constitui exceção em relação à anulação, que é a regra. Para que o administrador
público possa convalidar determinado ato, ele deve, nos termos do art. 50 da Lei nº 9.784/99 justificar que se trata
de opção mais vantajosa que a anulação, devendo, ademais, indicar que se trata de vício sanável.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
de qualquer previsão expressa em lei. A rigor, somente no ano de 1999, com o advento
da Lei nº 9.784, esta prerrogativa passou a ter previsão legal. de qualquer modo, a
semelhança entre a redação da súmula nº 473 e do art. 53 da Lei nº 9.784/99 leva à
conclusão de que a lei em nada inovou no ordenamento jurídico. ou seja, o poder da
Administração Pública de revogar e anular seus próprios atos não decorre da lei; ele
decorre da supremacia que o regime jurídico constitucional reconhece à Administração
Pública no relacionamento com os particulares.
A esta prerrogativa, de estatura constitucional, tem-se denominado poder de autotutela. diversos autores a ela se referem como princípio da autotutela.
deste poder surge a forma mais ampla de controle admitido em nosso regime
jurídico: o controle administrativo.
esta modalidade de controle, legitimado por meio do poder de autotutela, permite
que a Administração Pública possa fiscalizar e corrigir, de ofício ou mediante provocação, o mérito e a legitimidade de todos os atos praticados no âmbito de determinada
entidade administrativa, anulando os atos contrários à ordem jurídica e revogando os
atos inconvenientes e inoportunos.
trata-se de modalidade de controle interno.
Ao se inserir neste contexto, o controle administrativo não alcança os mecanismos que as entidades políticas utilizam para controlar as entidades administrativas.
em outras palavras, o controle administrativo, decorrente do poder de autotutela, não
legitima que a união (entidade política) possa, por exemplo, anular ou revogar os atos
praticados pelas entidades que compõem a Administração Pública indireta federal.
isto não importa em que o controle administrativo não se faça sentir no âmbito das
pessoas administrativas de direito Público. o exercício do controle administrativo no
âmbito dessas entidades é realizado por elas próprias. Assim, autarquia federal possui
legitimidade para anular ou revogar seus próprios atos; a união, no entanto, não possui legitimidade para revogar ou anular os atos praticados por mencionada autarquia.
o poder de autotutela, conforme reconhecido pela súmula stF nº 473, decorre
da posição de supremacia que o direito Administrativo reconhece às pessoas de direito
Público. Por este motivo negamos às empresas públicas e às sociedades de economia
mista exploradoras de atividades empresariais — que nos termos do art. 173, §1º, da
Constituição Federal se sujeitam ao regime jurídico privado — legitimidade para anular
ou revogar seus atos. se o Banco do Brasil ou a Petrobras, por exemplo, por expressa
disposição constitucional, estão sujeitas ao mesmo regime jurídico aplicável às empresas
privadas, não se lhes pode estender prerrogativa inerente ao regime público. somente as
entidades de direito Público têm assegurados os mecanismos do controle administrativo.
Caso empresa pública ou sociedade de economia mista sujeita ao regime do art. 173
da Constituição Federal pratique ato nulo, deve promover a necessária ação judicial.
A possibilidade de determinada entidade ou órgão poder fiscalizar ou anular atos
administrativos praticados por outras entidades ou órgãos não constitui igualmente
manifestação do controle administrativo. o controle administrativo é reconhecido
pela súmula stF nº 473 e decorre do poder de autotutela. A possibilidade de entidades ou
poder controlarem ato praticado por outra entidade ou por outro poder deve sempre decorrer de
expressa disposição legal ou constitucional. esta regra vale, por exemplo, para o controle
exercido pelo Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXv) e pelo tCu (CF, art. 71) sobre a atividade administrativa.
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Curso de direito AdministrAtivo
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o exercício do controle por parte de órgãos, poderes ou entidades externos
depende de expressa previsão legal ou constitucional, e se exerce nos termos definidos
por essas normas, diferentemente do que se verifica em relação ao controle administrativo, que se exerce diretamente por força do poder de autotutela, reconhecido
pela súmula stF nº 473.
18.4.2 supervisão ministerial: poder de tutela e de autotutela
no âmbito do Poder executivo federal, o decreto-Lei nº 200, de 1967, prevê o
controle da Administração Pública direta e indireta por meio da denominada supervisão
ministerial. esta modalidade especial de controle, em alguns aspectos, se confunde com
o controle administrativo; em outros aspectos dela se afasta.
A particularidade da supervisão ministerial, e que impede que ela possa ser pura
e simplesmente equiparada ao controle administrativo, reside no fato de que ele alcança
as entidades da Administração Pública indireta.
Quando a supervisão ministerial é exercida pelos ministros de estado em relação aos órgãos da Administração Pública direta a ele subordinados, ela se equipara ao
controle administrativo.14
Quando a supervisão ministerial é exercida em relação às entidades da Administração Pública indireta, não é cabível essa equiparação. maria sylvia Zanella di Pietro,
com a propriedade que lhe é particular, refere-se à faculdade de que dispõe a entidade
política para controlar as entidades administrativas que integram sua Administração
Pública indireta como poder de tutela.15
Por meio do poder de autotutela, as entidades e órgãos da Administração Pública
controlam e corrigem a conveniência, a oportunidade e a legalidade dos seus próprios
atos. Por meio do poder de tutela, a Administração Pública direta exerce controle político
sobre as entidades administrativas que compõem a Administração Pública indireta.
o controle administrativo, conforme examinado, está diretamente ligado ao poder
da Administração de anular e de revogar seus atos. A supervisão ministerial exercida
pelos ministros de estado em relação às entidades da Administração Pública indireta,
que não permite nem a revogação nem a anulação dos atos administrativos emanados
14
15
nos termos do decreto-Lei nº 200/67, art. 25, a supervisão ministerial exercida em relação aos órgãos da Administração Pública direta tem por principal objetivo, na área de competência do ministro de estado:
“Art. 25. (...)
i - Assegurar a observância da legislação federal.
ii - Promover a execução dos programas do Govêrno.
iii - Fazer observar os princípios fundamentais enunciados no título ii.
iv - Coordenar as atividades dos órgãos supervisionados e harmonizar sua atuação com a dos demais ministérios.
v - Avaliar o comportamento administrativo dos órgãos supervisionados e diligenciar no sentido de que estejam
confiados a dirigentes capacitados.
vi - Proteger a administração dos órgãos supervisionados contra interferências e pressões ilegítimas.
vii - Fortalecer o sistema do mérito.
viii - Fiscalizar a aplicação e utilização de dinheiros, valôres e bens públicos.
iX - Acompanhar os custos globais dos programas setoriais do Govêrno, a fim de alcançar uma prestação econômica
de serviços.
X - Fornecer ao órgão próprio do ministério da Fazenda os elementos necessários à prestação de contas do exercício financeiro.
Xi - Transmitir ao Tribunal de Contas, sem prejuízo da fiscalização deste, informes relativos à administração
financeira e patrimonial dos órgãos do Ministério.”
di Pietro. Direito administrativo, p. 601.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
destas entidades, corresponde ao poder de tutela.16 neste caso, a supervisão ministerial
mais se aproxima de modalidade especial de controle político, exercido principalmente
por meio da possibilidade de designação e afastamento dos dirigentes da entidade.
18.4.3 instrumentos do controle administrativo
o controle da atividade administrativa do estado é desenvolvido, como já se pôde
perceber, por meio de diferentes mecanismos (interno e externo, de mérito e de legalidade, prévio, concomitante e corretivo etc.). A existência de diferentes níveis de controle
cria, em inúmeras situações, a possibilidade de um só ato ser fiscalizado por meio de
diferentes mecanismos. suspeita de fraude em licitação, por exemplo, pode ser objeto
de denúncia ao próprio órgão responsável pela realização do certame, aos órgãos de
controle interno, ao tribunal de Contas, além de poder ser questionada pela via judicial.
diante deste cenário, o controle administrativo se insere como o primeiro nível de
controle. deveria ser, portanto, o mais efetivo, de modo a que a intervenção dos demais
mecanismos somente se fizesse necessária em situações excepcionais.
Hipótese em que é expressamente determinado o exercício do controle administrativo pode ser identificada na Lei nº 8.666/93, que cuida das licitações e contratos, e que
em seu art. 67 dispõe que a “execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada
por representante da Administração”. de modo expresso, a lei menciona a necessidade
de ser indicado servidor diretamente responsável pelo controle administrativo.
O exemplo da lei de licitações nos permite constatar que as unidades especificamente incumbidas de exercer esse controle — que deveria constituir a primeira e mais
efetiva barreira contra a fraude, a ilegalidade, o desperdício, os abusos, os desvios etc.
— são totalmente desaparelhadas. Aliás, de todos os mecanismos previstos em nosso
sistema jurídico, o controle administrativo é o menos valorizado e o pior estruturado.
os servidores responsáveis por esta importantíssima tarefa são, salvo raríssimas exceções, mal remunerados, mal treinados e a eles são conferidas tarefas muito além da
16
A supervisão ministerial exercida em relação às entidades da Administração Pública indireta é disciplinada pelo
art. 26 do mencionado decreto-Lei nº 200/67, que dispõe nos seguintes termos:
“Art. 26. no que se refere à Administração indireta, a supervisão ministerial visará a assegurar, essencialmente:
I - A realização dos objetivos fixados nos atos de constituição da entidade.
ii - A harmonia com a política e a programação do Govêrno no setor de atuação da entidade.
III - A eficiência administrativa.
IV - A autonomia administrativa, operacional e financeira da entidade.
Parágrafo único. A supervisão exercer-se-á mediante adoção das seguintes medidas, além de outras estabelecidas em regulamento:
a) indicação ou nomeação pelo ministro ou, se fôr o caso, eleição dos dirigentes da entidade, conforme sua natureza
jurídica;
b) designação, pelo ministro dos representantes do Govêrno Federal nas Assembléias Gerais e órgãos de administração ou contrôle da entidade;
c) recebimento sistemático de relatórios, boletins, balancetes, balanços e informações que permitam ao ministro acompanhar as atividades da entidade e a execução do orçamento-programa e da programação financeira
aprovados pelo Govêrno;
d) aprovação anual da proposta de orçamento-programa e da programação financeira da entidade, no caso de
autarquia;
e) aprovação de contas, relatórios e balanços, diretamente ou através dos representantes ministeriais nas Assembléias e órgãos de administração ou contrôle;
f) fixação, em níveis compatíveis com os critérios de operação econômica, das despesas de pessoal e de administração;
g) fixação de critérios para gastos de publicidade, divulgação e relações públicas;
h) realização de auditoria e avaliação periódica de rendimento e produtividade;
i) intervenção, por motivo de interêsse público”.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
sua capacidade de controle. As falhas nos mecanismos do controle administrativo da
execução dos contratos talvez expliquem por que estes constituem um dos maiores
focos de fraude na Administração Pública brasileira. o leitor poderia indagar por que
são tão frequentes, principalmente nos últimos anos, notícias de escândalos na execução
de contratos de serviço (tomemos aqui o exemplo dos contratos de serviço de publicidade institucional). Ocorre que os que buscam fraudar o erário procuram identificar os
pontos mais vulneráveis no sistema de fiscalização e controle. No caso dos contratos de
serviço, se não houver o adequado controle administrativo, os demais não têm como
atuar, e se atuam o fazem de modo extremamente precário. se for juntada ao processo
nota fiscal que “atesta” a execução do serviço, por exemplo, nem sempre é possível
aos demais órgãos de controle contestar a sua execução. o único mecanismo que em
situações como esta poderia ser efetivo, negando a prestação do serviço ou contestando
sua qualidade, é o controle administrativo. Contando com a ineficiência ou o conluio
dos agentes encarregados de exercer esse controle, os interessados em fraudar os contratos, que não são poucos, encontram campo propício para a prática de todo tipo de
desmando com o dinheiro público.
o poder hierárquico, inerente ao Direito Administrativo, e especificamente disciplinado pelo direito da organização administrativa, permite o pleno exercício do
controle administrativo.
Conforme examinado no Capítulo 10, o poder hierárquico legitima ao superior
a faculdade de dar ordens, fiscalizar, corrigir, avocar e delegar atos praticados pelos
subordinados.
o poder de anular e de revogar atos administrativos pode ser exercido pela autoridade, órgão ou entidade que praticou o ato, em razão do enunciado da súmula nº 473
do stF, bem como pelo órgão ou autoridade responsável pelo exercício do controle
hierárquico. ressalvadas hipóteses em que lei expressamente vede ou limite o exercício
do poder hierárquico, sempre que órgão ou agente se encontre subordinado a outro,
ou seja, sempre que houver hierarquia, a revogação ou anulação do ato poderão ser
produzidas por quem praticou o ato ou por quem exerce a hierarquia.
uma vez mais esclarecemos que o controle exercido pela entidade política (Administração Pública direta) sobre as entidades administrativas (Administração Pública
indireta) não possui natureza hierárquica. trata-se de mera vinculação administrativa,
e o controle decorrente dessa relação é de natureza eminentemente política, exercido
por meio da designação e do afastamento, pela entidade política, dos dirigentes das
entidades administrativas.
o controle interno disciplinado pelo art. 74 da Constituição Federal representa
modalidade de controle administrativo. este dispositivo constitucional assegura aos
órgãos de controle interno competência para o exercício do controle de legalidade, bem
como para o controle de resultados, quanto à eficácia e eficiência, e para a avaliação do
cumprimento das metas do governo.
não resta dúvida de que o exercício do controle interno constitui modalidade
de controle administrativo. o texto constitucional, no entanto, limitou o exercício desse
controle em dois importantes aspectos.
em primeiro lugar, os órgãos encarregados do controle interno — que podem
examinar a legalidade e os resultados da atividade administrativa — não possuem
competência para examinar o mérito da atuação administrativa. ou seja, não é conferida
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
competência aos órgãos responsáveis por esse controle a prerrogativa de revogar ato
que reputem inconveniente.
em segundo lugar, o controle da legalidade, expressamente conferido pela Constituição Federal aos órgãos de controle interno, não é pleno. este controle é pleno quando
quem o exerce dispõe da competência para verificar a ilegalidade e promover a sua
anulação. os órgãos encarregados de exercer o controle interno somente têm o poder
de verificar a ocorrência da ilegalidade. Caso seja constatada a ocorrência de ato a ser
anulado, o controle interno deve-se reportar às próprias unidades administrativas que
praticaram o ato, se estas não adotarem as providências cabíveis, os órgãos de controle
interno devem, sob pena de responsabilidade solidária (CF, art. 74, §1º), dar ciência ao
tribunal de Contas da união, órgão competente para a anulação (CF, art. 71, iX e X).
o controle administrativo, conforme mencionado, pode ser exercido de ofício
ou por meio de provocação.
o direito de petição, previsto na Constituição Federal, constitui hipótese em que
o controle administrativo é acionado por provocação dos particulares. dispõe o texto
constitucional:
Art. 5º (...)
XXXiv - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade
ou abuso de poder;
vê-se que o direito de petição é instrumento hábil não apenas para o exercício de
direitos subjetivos, mas igualmente para provocar a atuação do controle administrativo
do estado com vista à correção de ilegalidade ou abuso de poder.
o direito de petição pode ser formalizado por meio de denúncias ou representações. não se deve, portanto, considerar o direito de denunciar ou de representar aos
órgãos e entidades públicas como institutos estranhos ou distintos do direito de petição.
A representação ou a denúncia são meros instrumentos ou formas jurídicas por meio
das quais será exercido o direito de petição.
o direito de representação é igualmente mencionado pelo art. 9º da Lei nº 9.784/99.
este dispositivo legal assegura ao representante a qualidade de parte interessada no
processo iniciado por sua provocação. Esta qualificação é relevante inclusive para fins
de legitimidade recursal.
A Constituição Federal prevê a possibilidade de o controle administrativo ser
provocado pela população, por meio do direito de petição, bem como pelo ministério
Público ou pelo tCu. no caso do ministério Público, lhe é conferida competência para
“expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência” (CF, art. 127,
vi), e em relação ao tCu a competência é dada para “assinar prazo para que o órgão
ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei” (CF, art. 71,
iX), bem como para “representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos
apurados” (CF, art. 71, Xi).
os recursos administrativos (revisão, reconsideração, recursos hierárquicos etc.)
são igualmente mencionados como mecanismos de controle administrativos. trataremos desses recursos no próximo capítulo, juntamente com o processo administrativo.
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Curso de direito AdministrAtivo
18.5 Controle parlamentar direto
em razão do que dispõe a Constituição Federal, o controle exercido pelo Poder
Legislativo sobre a atividade administrativa do estado se divide em duas categorias
básicas: o controle político e o controle financeiro.
examinaremos, em seguida, os principais aspectos relacionados a cada uma
dessas modalidades de controle.
18.5.1 Controle político
A divisão da atividade de fiscalização exercida pelo Congresso Nacional em duas
categorias resulta em conferir ao denominado controle político sentido mais amplo do
que a expressão indica.
Algumas das atividades inseridas no âmbito do controle político do Congresso
efetivamente justificam a adoção dessa terminologia. Quando o Senado Federal aprova
ou rejeita a escolha de chefe de missão diplomática (CF, art. 52, iv), ou quando o Congresso nacional aprova iniciativas do Poder executivo referentes a atividades nucleares
(CF, art. 49, Xiv), por exemplo, trata-se de decisões de cunho exclusivamente político.
será em razão da vontade política dos parlamentares que poderá será aprovada ou
rejeitada a proposta levada à deliberação.
outras atribuições de controle pelo Poder Legislativo, igualmente mencionadas
como de natureza política, de que seria exemplo o poder do Congresso nacional de
“sustar os atos normativos do Poder executivo que exorbitem do poder regulamentar
ou dos limites e delegação legislativa” (CF, art. 49, v), além de se sujeitarem à vontade
política dos parlamentares, como a rigor são todas as decisões adotadas pelas Casas
Legislativas, possuem elementos jurídicos. estes elementos tornariam algumas das
decisões de controle adotadas pelo Legislativo passíveis de contestação por meio de
ação judicial.
se o senado rejeita a escolha de chefe de missão diplomática, por exemplo, seria
descabido questionar esta decisão por meio de ação judicial, haja vista tratar-se de decisão de cunho exclusivamente político, em que os elementos jurídicos não desempenham
qualquer função e que, portanto, não importam em violação de qualquer direito subjetivo
a ser levado à apreciação judicial. se, todavia, o Congresso, por razões exclusivamente
políticas, susta ato normativo do Poder executivo sob o argumento de que teria exorbitado do poder regulamentar, seria cabível a propositura de ação por meio da qual se
demonstraria o contrário, ou seja, de que se trata de ato legítimo, e que resultaria na
invalidação da decisão do Congresso.
isto leva à conclusão de que, ao menos em relação a algumas das hipóteses de
controle político que serão a seguir indicadas, elementos jurídicos devem ser levados
em consideração.
nos termos da Constituição Federal, são hipóteses em que se evidencia o controle
político do Congresso Nacional:
- Resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, i);
- Autorizar o Presidente da república a declarar guerra, a celebrar a paz, a
permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele
permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar (art. 49, ii);
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
- Autorizar o Presidente e o vice-Presidente da república a se ausentarem do
País, quando a ausência exceder a 15 dias (art. 49, iii);
- Aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio,
ou suspender qualquer uma dessas medidas (art. 49, iv);
- sustar os atos normativos do Poder executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, v);
- Julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da república e apreciar
os relatórios sobre a execução dos planos de governo (art. 49, iX);
- Fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do
Poder executivo, incluídos os da Administração indireta (art. 49, X);
- Apreciar os atos de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádio
e televisão (art. 49, Xii);
- escolher dois terços dos membros do tribunal de Contas da união (art. 49, Xiii);
- Aprovar iniciativas do Poder executivo referentes a atividades nucleares (art. 49,
Xiv);
- Autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos
hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais (art. 49, Xvi);
- Aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com área
superior a dois mil e quinhentos hectares (art. 49, Xvii).
Além das competências do art. 49 da Constituição Federal acima mencionadas,
são também mecanismos de controle político do Congresso Nacional:
- A convocação, por qualquer das Casas do Congresso ou das suas comissões, de
ministro de estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados
à Presidência da república para prestarem, pessoalmente, informações sobre
assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a
ausência sem justificação adequada (art. 50, caput);
- A solicitação de pedidos de informações, encaminhadas pelas mesas da Câmara dos deputados e do senado Federal, a ministros de estado ou a qualquer
das pessoas referidas no item anterior, importando igualmente em crime de
responsabilidade a recusa, ou o não atendimento, no prazo de 30 dias, bem
como a prestação de informações falsas;
- e a instauração, nos termos do art. 58, §3º, da Constituição Federal, de comissões
parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das
autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas
Casas, que serão criadas pela Câmara dos deputados e pelo senado Federal,
em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus
membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas
conclusões, se for o caso, encaminhadas ao ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.17
17
sobre a utilização das CPis como instrumento de que dispõem as minorias dos parlamentos para investigar a
atuação do governo, são relevantes os ensinamentos constantes do voto proferido pelo min. Celso de mello no
julgamento do ms nº 24.831-dF, ementado nos termos seguintes:
“Comissão Parlamentar de inquérito – direito de oposição – Prerrogativa das minorias parlamentares – expressão do postulado democrático – direito impregnado de estatura constitucional – instauração de inquérito parlamentar e composição da respectiva CPi – tema que extravasa os limites interna corporis das casas legislativas
– viabilidade do controle jurisdicional – impossibilidade de a maioria parlamentar frustrar, no âmbito do Congresso nacional, o exercício, pelas minorias legislativas, do direito constitucional à investigação parlamentar
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Curso de direito AdministrAtivo
Além das atribuições conferidas ao Congresso nacional, a Constituição Federal
outorga alguns instrumentos de controle político privativamente ao Senado Federal.
dentre eles destacamos:
- Aprovar previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha de
magistrados, nos casos estabelecidos na Constituição; de ministros do tribunal
de Contas da união indicados pelo Presidente da república; de Governador
de território; de Presidente e diretores do banco central; do Procurador-Geral
da república; e de titulares de outros cargos que a lei determinar (art. 52, iii);
- Aprovar previamente, por voto secreto, após arguição em sessão secreta, a
escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente (art. 52, iv);
- Autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União,
dos estados, do distrito Federal, dos territórios e dos municípios (art. 52, v);
- Fixar, por proposta do Presidente da república, limites globais para o montante da dívida consolidada da união, dos estados, do distrito Federal e dos
municípios (art. 52, vi);
- dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito externo e
interno da união, dos estados, do distrito Federal e dos municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo poder público federal (art. 52, vii);
- dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da união em
operações de crédito externo e interno (art. 52, viii);
- estabelecer limites globais e condições para o montante da dívida mobiliária
dos estados, do distrito Federal e dos municípios (art. 52, iX);
- Aprovar, por maioria absoluta e por voto secreto, a exoneração, de ofício, do
Procurador-Geral da república antes do término de seu mandato (art. 52, Xi).
Cumpre-nos observar que nem todas as atribuições do senado Federal previstas no art. 52 da Constituição Federal são mecanismos de controle. Quando o senado
(CF, art. 58, §3º) – mandado de segurança concedido. Criação de Comissão Parlamentar de inquérito: requisitos
constitucionais. - o Parlamento recebeu dos cidadãos, não só o poder de representação política e a competência
para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes do Estado, respeitados, nesse processo
de fiscalização, os limites materiais e as exigências formais estabelecidas pela Constituição Federal. - O direito
de investigar — que a Constituição da república atribuiu ao Congresso nacional e às Casas que o compõem
(art. 58, §3º) — tem, no inquérito parlamentar, o instrumento mais expressivo de concretização desse relevantíssimo encargo constitucional, que traduz atribuição inerente à própria essência da instituição parlamentar. - A
instauração do inquérito parlamentar, para viabilizar-se no âmbito das Casas legislativas, está vinculada, unicamente, à satisfação de três (03) exigências definidas, de modo taxativo, no texto da Carta Política: (1) subscrição
do requerimento de constituição da CPi por, no mínimo, 1/3 dos membros da Casa legislativa, (2) indicação de
fato determinado a ser objeto de apuração e (3) temporariedade da comissão parlamentar de inquérito. - Preenchidos os requisitos constitucionais (CF, art. 58, §3º), impõe-se a criação da Comissão Parlamentar de inquérito,
que não depende, por isso mesmo, da vontade aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF,
art. 58, §3º), cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subseqüentes e necessários à
efetiva instalação da CPi, não lhe cabendo qualquer apreciação de mérito sobre o objeto da investigação parlamentar, que se revela possível, dado o seu caráter autônomo (RTJ 177/229 - RTJ 180/191-193), ainda que já instaurados, em torno dos mesmos fatos, inquéritos policiais ou processos judiciais. o estatuto constitucional das
minorias parlamentares: a participação ativa, no congresso nacional, dos grupos minoritários, a quem assiste
o direito de fiscalizar o exercício do poder. - A prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento
(especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso nacional e que, por efeito de sua intencional recusa em
indicar membros para determinada comissão de inquérito parlamentar (ainda que fundada em razões de estrita
conveniência político-partidária), culmine por frustrar e nulificar, de modo inaceitável e arbitrário, o exercício,
pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram), do poder constitucional de fiscalização e de investigação do
comportamento dos órgãos, agentes e instituições do estado, notadamente daqueles que se estruturam na esfera
orgânica do Poder executivo.” (ms nº 24.831-dF, Pleno. rel. min. Celso de mello. Julg. 22.6.2005. DJ, 04 ago. 2006)
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
aprova seu regimento interno (art. 52, Xii), por exemplo, não exerce qualquer atividade
de controle da atividade administrativa do estado.
18.5.2 Controle financeiro
A competência do Congresso Nacional para o exercício do controle financeiro
da Administração Pública está prevista no art. 70 da Constituição Federal. dispõe
mencionado artigo que “a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional
e patrimonial da união e das entidades da administração direta e indireta, quanto à
legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso nacional, mediante controle externo, e pelo sistema
de controle interno de cada Poder”.
O titular do controle externo da atividade financeira do Estado é o Congresso
nacional. este ponto é incontroverso. Além da referência expressa nesse sentido, feita
pelo art. 70 do texto constitucional, o art. 49, X, igualmente lhe outorga a competência
genérica para “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os
atos do Poder executivo, incluídos os da administração indireta”.
A dúvida surge, todavia, quando se examina o disposto no art. 71 da Constituição.
no caput deste artigo, é afirmado, uma vez mais, que o controle externo fica a “cargo
do Congresso nacional”. É dito, todavia, que este controle “será exercido com o auxílio
do tribunal de Contas da união, ao qual compete (...)”. são, em seguida, indicados nos
incisos do art. 71 os mecanismos por meio dos quais o controle externo será exercido
(julgamento de contas, registro de aposentadorias, pensões e admissões, realização de
auditorias etc.).
A redação do texto é inequívoca ao afirmar que os mecanismos necessários ao
exercício do controle externo são de exclusiva competência do tCu, e não do Congresso
nacional. ou seja, o Congresso nacional não possui competência para realizar auditorias, para registrar ou negar registro a aposentadorias, para julgar contas dos gestores
públicos (exceto do Presidente da república) ou para realizar qualquer das atividades
mencionadas no art. 71. no caso de auditorias, por exemplo, a competência conferida
pela Constituição Federal ao Congresso a qualquer de suas Casas ou às suas comissões
é para solicitar ao TCU a instauração deste processo de fiscalização.
desse modo, não obstante seja conferida ao Congresso a titularidade do exercício
do controle externo, os instrumentos necessários ao seu exercício são conferidos ao tCu.
Poder-se-ia, nesse ponto, indagar da existência de subordinação do TCU em relação
ao Congresso, haja vista o texto constitucional dispor que o controle externo, a cargo do
Congresso, deve ser exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União.
o termo auxílio tem sido objeto de inúmeras controvérsias e incompreensões.
Desde já afirmamos que não há qualquer subordinação por parte do TCU em relação
ao Congresso. não há qualquer decisão do tCu sujeita a revisão ou a controle pelo
Congresso. das decisões do tCu, não cabe qualquer recurso dirigido ao Congresso
nacional. esta questão foi enfrentada pelo stF no julgamento de pedido de cautelar
formulado na Adi nº 3.715-mC/to. no caso, foi questionada a constitucionalidade de
emenda à Constituição do estado do tocantins, que assegurava à Assembleia Legislativa a prerrogativa de desconstituir, por meio de recursos, com efeito suspensivo, as
decisões do tribunal de Contas estadual. o artigo publicado teve a seguinte redação:
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o tribunal deferiu pedido de medida cautelar formulado em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos membros dos tribunais de Contas do Brasil
– ATRICON para suspender, com eficácia ex tunc, a vigência da expressão “licitação em
curso, dispensa ou inexigibilidade”, contida no inciso XXviii do art. 19 e no §1º do
art. 33; da expressão “excetuados os casos previstos no §1º deste artigo”, constante do
inciso iX do art. 33, e do inteiro teor do §5º do art. 33, todos da Constituição do estado
do tocantins, com a redação dada pela emenda Constitucional 16/2006. os preceitos
atribuem, à Assembléia Legislativa, a competência para sustar as licitações em curso, e os
casos de dispensa e inexigibilidade de licitação, bem como criam recurso, dotado de efeito
suspensivo, para o Plenário da Assembléia Legislativa, das decisões do tribunal de Contas
do estado acerca do julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por
dinheiros, bens e valores públicos. entendeu-se que os preceitos impugnados, a princípio,
não observam o modelo instituído pela Constituição Federal, de observância compulsória
pelos estados-membros (CF, art. 75), que limita a competência do Congresso nacional a
sustar apenas os contratos (CF, art. 71, §1º), e não prevê controle, pelo Poder Legislativo,
das decisões, proferidas pelo tribunal de Contas, quando do julgamento das referidas
contas (CF, art. 71, ii). (stF. Adi nº 3.715-mC/to, Pleno. rel. min. Gilmar mendes. Julg.
24.5.2006. DJ, 25 ago. 2006)
Com esta decisão do STF, afasta-se em definitivo a controvérsia acerca da subordinação do tCu ao Congresso nacional.
Ao dispor que o controle externo será realizado com o auxílio do tCu, a Constituição Federal não indica a existência de subordinação, mas de que este é caminho
para o exercício do controle externo. ou seja, somente por intermédio do tCu pode o
Congresso nacional exercer as atribuições indicadas na Constituição Federal (art. 71)
relacionadas ao exercício do controle financeiro da atividade administrativa do Estado.
Controle externo é atividade eminentemente jurídica, e não política. esta é a razão
pela qual os mecanismos para o exercício do controle financeiro são conferidos ao TCU,
órgão dotado de autonomia administrativa, financeira e funcional, e não ao Congresso
nacional.
A titularidade do controle financeiro é conferida ao Congresso por razões históricas: dado que a aprovação do orçamento é atribuição do Poder Legislativo, que
representa (ou deveria representar) o povo, a ele igualmente cabe a titularidade do
controle da execução orçamentária.
nos termos da Constituição Federal, todavia, a legitimidade para o exercício dos
mecanismos desse controle cabe ao tCu. Para tentar harmonizar esta aparente incongruência, o texto constitucional comete outro equívoco: insere o tCu no Poder Legislativo. essa
tentativa feita pelo art. 71 da Constituição Federal é contraditada pelo próprio texto constitucional, que em seu art. 44 expressamente dispõe que “o Poder Legislativo é exercido
pelo Congresso nacional, que se compõe da Câmara dos deputados e do senado Federal”.
A vinculação entre o tCu e o Poder Legislativo se estabelece tão somente em
razão de ser conferida ao Congresso nacional competência para indicar seis dos nove
membros do tCu (CF, art. 49, Xiii).18
18
em termos formais, ou organizacionais, melhor teria andado o texto constitucional se tivesse expressamente conferido ao tCu e ao ministério Público estatura de órgãos independentes, o que tornaria dispensável toda a discussão acerca do seu enquadramento na organização do Estado brasileiro. No caso específico do TCU, o fato de ter
sido disciplinado dentro da seção iX do capítulo que cuida do Poder Legislativo, resulta em que a grande maioria
da doutrina pátria considere o tCu órgão do Poder Legislativo.
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ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A relação entre o tCu e o Congresso nacional pode ser comparada à existente
entre o ministério Público e o Poder executivo. A rigor, dado que os dirigentes do ministério Público se sujeitam a mandato cuja indicação é feita pelos chefes do executivo,
e os ministros do TCU ocupam cargos vitalícios, poder-se-ia inclusive afirmar que a
autonomia do tCu é ainda mais ampla do que a reconhecida ao ministério Público.
no exercício do controle externo, as atribuições do Congresso Nacional e do TCU se
encontram, ou cruzam, em três situações. em nenhuma delas, todavia, o tCu pode ser
compelido a decidir conforme a vontade do Congresso, ou ter suas decisões revistas
por este último.
As situações em que a Constituição Federal requer a atuação conjunta do TCU e
do Congresso Nacional são as seguintes:
- Julgamento das contas do Presidente da República – nos termos do art. 71, i,
compete ao tCu a aprovação de parecer prévio às contas do Presidente da
república, sendo conferida ao Congresso nacional (art. 49, iX) a atribuição
pelo seu julgamento.19
- Realização de auditorias e inspeções – nos termos do art. 71, iv, da Constituição
Federal, compete ao tCu a realização de auditorias e de inspeções. A decisão
acerca da realização desses procedimentos de fiscalização cabe ao próprio TCU
e ao Congresso nacional.
- Sustação de contratos celebrados pela Administração Pública – A sustação de
contratos firmados pela Administração Pública, nos termos do art. 71, §§1º e
2º, do texto constitucional, requer atuação conjunta do tCu e do Congresso
nacional.
em relação a este último aspecto, a sustação de atos e contratos, algumas considerações se fazem necessárias, inclusive em relação à definição dos limites da atuação do
Congresso nacional e do tCu.
A primeira observação diz respeito ao fato de que esse poder é inicialmente
reconhecido ao tCu (CF, art. 71, iX) como mecanismo de controle de legalidade. A
redação do dispositivo constitucional é expressa nesse sentido: compete ao tCu para
“assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato
cumprimento da lei, se verificada ilegalidade” (grifos nossos). o Congresso, ou o tCu,
não podem, portanto, assinar prazo ou sustar ato ou contrato em razão de conveniência
administrativa ou política. Somente se for verificada ilegalidade (desvios, superfaturamentos, favorecimentos, fraude em licitações etc.) poderá ser adotada a providência
relacionada à mencionada sustação.
no âmbito do tCu, a sustação do ato ou do contrato pode ser feita por meio de
medida cautelar,20 ou em julgamento definitivo, que importarão na expedição de determinação dirigida à entidade ou órgão para que estes promovam a sustação do ato ou do
19
20
de acordo com a Lei de responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000), o parecer do tCu e o
julgamento a ser realizado pelo Congresso deve compreender não apenas as contas do Presidente da república,
mas de todos os poderes. desse modo, no exercício dessa atribuição, são também apreciadas as contas dos
chefes das duas Casas do Congresso nacional, dos Presidentes dos tribunais Judiciários e do Procurador-Geral
da república.
A competência do tCu para a adoção de medidas cautelares não se encontra prevista na Constituição Federal ou
em qualquer outra lei, mas tão somente em resoluções do próprio tribunal. no julgamento do ms nº 24.510-ed/dF
(Pleno. rel. min. ellen Gracie. Julg. 4.8.2004. DJ, 27 ago. 2004), o stF reconheceu que a competência do tCu para
anular contratos importaria em reconhecimento implícito da adoção de medidas cautelares.
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Curso de direito AdministrAtivo
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contrato. Por sustação se deve entender, no caso de medida cautelar, a suspensão da
execução; se se tratar de decisão definitiva, a sustação importará no dever de anulação
do ato ou contrato.21 dado que o poder do tCu para determinar mencionada sustação
está relacionado à legalidade do ato ou contrato, não seria possível entendê-lo em
qualquer outro sentido (de revogação, de rescisão etc.)
A Constituição Federal, portanto, não reconhece ao tCu a competência para
anular diretamente ato ou contrato. o texto constitucional (art. 71, iX) reconhece ao
Tribunal a prerrogativa para fixar prazo para que o órgão ou a entidade anule os atos
ou contratos impugnados pelo tribunal. Caso o destinatário da determinação não a
cumpra, faz-se ainda necessário distinguir se esta tinha por objeto a anulação de ato
ou de contrato. na primeira hipótese, se se tratar de ato, o tCu poderá promover a
anulação (CF, art. 71, X). se, ao contrário, se tratar de contrato, caso o destinatário da
determinação do tCu não providencie sua anulação, o tCu deverá comunicar o fato
ao Congresso nacional “que solicitará, de imediato, ao Poder executivo as medidas
cabíveis” (CF, art. 71, §1º).
A redação desse dispositivo da Constituição Federal (art. 71, §1º) é extremamente
confusa. na parte inicial é dito que “o ato de sustação será adotado diretamente pelo
Congresso Nacional”; na parte final do mesmo dispositivo, e de forma contraditória, é
dito que o Congresso nacional “solicitará” ao Poder executivo22 as medidas cabíveis.
A dúvida consiste em saber se a competência do Congresso é para sustar diretamente
o contrato ou tão somente para solicitar ao Poder executivo que adote as providências
com vista à sustação.
A interpretação desse dispositivo — assim como de qualquer outra norma — deve
ser feita de forma racional e sistemática.
Percebe-se, em primeiro lugar, de forma bastante nítida a preocupação do texto
constitucional com a preservação dos contratos. ou seja, o tCu possui competência
para determinar que o órgão ou entidade anule ato ou contrato, e se não for atendido
em relação ao primeiro, ou seja, se o ato não for sustado, é reconhecida ao próprio tCu
a legitimidade para a sua sustação (CF, art. 71, X).
em se tratando de contrato, se a determinação do tCu não for cumprida, o Congresso nacional, titular do controle externo (CF, art. 70), é chamado a intervir para que
adote a mesma providência que o tCu adotaria se se tratasse de ato, ou seja, a sustação
imediata do contrato. não nos parece razoável admitir outra interpretação. ocorre que,
não obstante a Constituição Federal outorgue ao Congresso nacional a competência
para sustar (anular) contratos, não lhe confere instrumentos para dar efetividade à
sua decisão. não possui o Congresso, por exemplo, o poder de aplicar multa ou de
fixar sanção caso o contrato não seja anulado. Daí a necessidade de serem solicitadas
21
22
no julgamento do ms nº 23.550-dF (Pleno. rel. min. marco Aurélio. rel. p/ acórdão min. sepúlveda Pertence.
Julg. 4.4.2001. DJ, 31 out. 2001), o STF firmou entendimento de que o TCU, no exercício da competência que
lhe é outorgada pelo art. 71, iX, pode determinar que os órgãos e entidades da Administração Pública anulem
contratos. estabeleceu, todavia, o stF que o exercício dessa potestade pressupõe que o tCu assegure àqueles
afetados por sua determinação o exercício do contraditório.
A expressão Poder Executivo, para fins de interpretação do art. 71 da Constituição Federal, deve ser como
sinônimo de Administração Pública. ou seja, se a situação descrita pelo art. 71, iX e parágrafos 1º e 2º, ocorrer
em contrato firmado pela Administração de órgão integrante do Poder Judiciário, a solução deve ser idêntica à
que se verificaria se se tratasse de órgão do Poder Executivo. Cuida o dispositivo do controle e da fiscalização da
Administração Pública, e não apenas do Poder executivo.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
medidas cabíveis ao Poder executivo, medidas relacionadas à simples efetividade do
ato de sustação já adotado pelo Congresso.
A interpretação acima é confirmada pela redação do §2º do art. 71, que dispõe que
se o Congresso nacional ou se o Poder executivo, no prazo de 90 dias, “não efetivar as
medidas previstas (...), o tribunal decidirá a respeito”. dado que o órgão ou a entidade
não cumpriu a determinação que o tCu originariamente lhes dirigiu, que o fato foi
comunicado ao Congresso nacional e que nenhuma providência foi efetivada, o poder
de adotar medidas com vista a dar cumprimento à lei é restituído ao tCu. Assim, uma
vez mais o tCu é chamado a intervir para dar efetividade à sua determinação, independentemente de o Congresso nacional ter-se manifestado, ou, caso o tenha feito, a
medida por ele sugerida não tenha sido cumprida pelo Poder executivo.23
18.6 Controle exercido pelo tribunal de Contas da união
18.6.1 modelos de controle externo
diversos modelos de controle externo têm sido utilizados pelo diferentes países
ao longo dos anos, sendo praticamente impossível identificar dois países que sigam
modelos idênticos. em alguns casos, a incumbência de exercer o controle externo dos
gastos públicos é atribuída a órgão colegiado (normalmente a um tribunal de Contas), e
em outros a um órgão singular (controladoria-geral). no caso dos tribunais de Contas,
alguns exercem função tipicamente jurisdicional, não sendo suas decisões suscetíveis
de revisão pelas instâncias judiciais ordinárias; em outros sistemas, no qual o Brasil se
insere, as decisões dos tribunais de Contas se sujeitam a revisão judicial. Há sistemas em
que as atribuições dos órgãos responsáveis pelo controle externo se resumem à fiscalização da atividade administrativa, sendo sua principal função a elaboração de informes
dirigidos ao Parlamento, ao Ministério Público ou aos próprios órgãos fiscalizados para
a adoção das medidas cabíveis (suspensão da liberação de recursos, propositura de ações
criminais, instauração de procedimentos disciplinares etc.). noutros sistemas, além do
poder de fiscalizar, dispõem os órgãos do controle externo de atribuições de revisão,
sendo-lhes assegurada a competência para a correção das irregularidades detectadas
e, eventualmente, a aplicação de sanções. O único padrão identificado nos diversos
modelos é a existência de órgão técnico vinculado ao Parlamento.
Benjamin Zymler, citando eduardo Lobo Botelho Gualazzi, indica a existência
de cinco diferentes modelos de controle externo: o anglo-saxão, o latino, o germânico,
o escandinavo e o latino-americano.24
o Brasil segue, como era de se esperar, o modelo difundido na América Latina,
em que se atribui a um tribunal de Contas vinculado ao Poder Legislativo o exercício
23
24
A possibilidade de sustação de contratos pelo Congresso nacional e a forma de proceder do tCu nesta eventualidade têm sido questão de muito pouca aplicação. na prática, sempre que o tCu determina a sustação de
ato ou de contrato, os inúmeros destinatários têm adotado três posturas: 1. cumprir a determinação do tCu;
2. interpor recurso contra a decisão perante o próprio tCu; ou 3. interpor mandado de segurança junto ao stF
contra a determinação do tCu. não há registro de hipótese em que o destinatário tenha simplesmente descumprido a determinação emanada do tribunal de Contas da união. esse cenário tem tornado desnecessário ao
TCU remeter ao Congresso Nacional pedido de sustação de contratos firmados pela Administração Pública.
GuALAZZi. Regime jurídico dos tribunais de contas apud ZYmLer. Direito administrativo e controle.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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do controle externo dos gastos públicos. A existência da Controladoria-Geral da união
– CGu não deve suscitar dúvidas acerca do enquadramento do modelo pátrio. de fato,
a adoção de órgão singular (a Controladoria-Geral) é típica do modelo anglo-saxão,
sendo adotado nos estados unidos e no reino unido. no caso brasileiro, a CGu, além de
atribuições de natureza tipicamente disciplinar, relacionadas à correição dos servidores
públicos, exerce função de controle interno dos gastos públicos.25 descabida, portanto,
qualquer tentativa de aproximar o modelo brasileiro de controle externo do modelo
anglo-saxão, haja vista a CGu exercer função de controle interno dos gastos públicos.
o modelo de controle externo brasileiro apresenta algumas particularidades.
A primeira consiste no fato de os tribunais de Contas serem considerados órgãos
integrantes do Poder Legislativo. não obstante integrarem o Legislativo, seguem normas
pertinentes ao processo administrativo e suas decisões, em alguns casos, importam em
julgamento de contas dos gestores públicos e dos demais responsáveis pelos gastos públicos. Apesar da competência constitucional para julgar contas, não se tem reconhecido
às decisões proferidas pelos tribunais de Contas autoridade da coisa julgada, o que as
torna suscetíveis de controle pela via judicial.
essas aparentes contradições na forma de proceder dos tribunais de Contas
brasileiros têm sido fonte de infindáveis divergências e críticas ao sistema, algumas
delas pertinentes.
importa considerar, todavia, que o modelo de controle externo adotado no Brasil
confere atribuições ao TCU não identificadas em qualquer outro modelo. Além do poder
de fiscalizar e de produzir relatórios encaminhados aos órgãos do Ministério Público, do
Poder executivo e ao Legislativo, o tribunal pode suspender atos ou contratos e punir
gestores. de acordo com o modelo constitucional adotado no Brasil, diferentemente
dos órgãos congêneres de outros países, que somente dispõem de prerrogativas de fiscalização, são reconhecidas ao TCU, além dessa prerrogativa de fiscalizar, atribuições
de natureza corretiva e sancionadora.
25
o stF prolatou decisão que bem ilustra a dimensão do controle interno: “A Controladoria-Geral da união –
CGU tem atribuição para fiscalizar a aplicação dos recursos públicos federais repassados, nos termos dos convênios, aos municípios. Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, desproveu recurso ordinário em
mandado de segurança, afetado pela 1ª turma, interposto contra ato de ministro de estado do Controle e da
Transparência que, mediante sorteio público, escolhera determinado Município para que se submetesse à fiscalização e à auditoria, realizadas pela CGu, dos recursos públicos federais àquele repassados – v. informativo 600.
Asseverou-se, de início, que o art. 70 da CF estabelece que a fiscalização dos recursos públicos federais se opera
em duas esferas: a do controle externo, pelo Congresso nacional, com o auxílio do tribunal de Contas da união
– tCu, e a do controle interno, pelo sistema de controle interno de cada Poder. explicou-se que, com o objetivo
de disciplinar o sistema de controle interno do Poder executivo federal, e dar cumprimento ao art. 70 da CF, fora
promulgada a Lei 10.180/2001. essa legislação teria alterado a denominação de Corregedoria-Geral da união
para Controladoria-Geral da união, órgão este que auxiliaria o Presidente da república na sua missão constitucional de controle interno do patrimônio da União. Ressaltou-se que a CGU poderia fiscalizar a aplicação de
dinheiro da União onde quer que ele fosse aplicado, possuindo tal fiscalização caráter interno, porque exercida
exclusivamente sobre verbas oriundas do orçamento do executivo destinadas a repasse de entes federados.
Afastou-se, por conseguinte, a alegada invasão da esfera de atribuições do tCu, órgão auxiliar do Congresso
nacional no exercício do controle externo, o qual se faria sem prejuízo do interno de cada Poder. enfatizou-se
que essa fiscalização teria o escopo de verificar a correta aplicação dos recursos federais, depois de seu repasse
a outros entes da federação, sob pena, inclusive, de eventual responsabilidade solidária, no caso de omissão,
tendo em conta o disposto no art. 74, §1º e no art. 18, §3º, da Lei 10.683/2003, razão pela qual deveria a CGu ter
acesso aos documentos do Município. Acrescentou-se que a fiscalização da CGU seria feita de forma aleatória,
em face da impossibilidade fática de controle das verbas repassadas a todos os municípios, mediante sorteios
públicos, realizados pela Caixa econômica Federal – CeF, procedimento em consonância com o princípio da
impessoalidade, inscrito no art. 37, caput, da CF. Ressalvou-se, por fim, que a fiscalização apenas recairá sobre
as verbas federais repassadas nos termos do convênio, excluídas as verbas estaduais ou municipais. vencidos
os ministros marco Aurélio e Cezar Peluso que proviam o recurso” (rms nº 25.943-dF, Pleno. rel. min. ricardo
Lewandowski. Julg. 24.11.2010. DJe, 02 mar. 2011).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A união dessa imensa gama de atribuições confere ao tCu posição ímpar no
sistema de controle externo, sobretudo quando confrontado com outros sistemas.
uma das fragilidades do sistema de controle brasileiro exercido pelos tribunais de
Contas consiste no fato de que as decisões do tCu têm natureza administrativa, o que
importa em reconhecer a possibilidade de controle jurisdicional. Assim, uma auditoria
realizada pelo tCu em que tenha sido constatado superfaturamento em obra pública,
e que, após longo procedimento, que em alguns casos leva anos para ser concluído,
em que se assegurou ampla defesa, contraditório, recorribilidade da decisão, pode ser
simplesmente anulada por meio de decisão judicial.26
Aspecto a ser considerado em possíveis futuras revisões do modelo constitucional de controle externo deveria considerar a possibilidade de inserir o tCu no Poder
Judiciário — à semelhança do que se verifica no modelo português —, o que certamente
conferiria às decisões do tribunal maior efetividade, além de reduzir o nível de interferência política decorrente da proximidade entre os tribunais de Contas e as Casas
Legislativas.
18.6.2 Composição dos tribunais de Contas
A composição do TCU se encontra definida no art. 73 da Constituição Federal. Na
definição do modelo, a ideia básica do texto constitucional foi buscar uma composição
mista, da qual farão parte ministros indicados por critérios políticos, o que é feito em
caráter majoritário, e outros de origem técnica.
integram o tCu nove ministros, dos quais seis são indicados pelo Congresso
nacional e três pelo Presidente da república. dos seis ministros indicados pelo Congresso, a escolha de três deles cabe à Câmara dos deputados e dos outros três ao senado
Federal. em relação aos ministros indicados pelo Presidente da república, um é de livre
escolha, o segundo é escolhido dentre os auditores do tribunal e o terceiro dentro da
carreira do ministério Público especial que atua junto ao tCu.
nos termos do §1º do art. 73 da Constituição Federal, os ministros do tCu serão
nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes requisitos:
- mais de 35 e menos de 65 anos de idade;
- idoneidade moral e reputação ilibada;
- Notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de
administração pública;
26
A possibilidade de revisão judicial não significa, contudo, dependência entre as instâncias administrativa e
judicial. Diversos julgados há nos quais se tem afirmado autonomia dos respectivos processos. Pode-se mencionar, como exemplo, a decisão adotada pelo stF no HC 103725/dF: “A 2ª turma indeferiu habeas corpus
em que pleiteado o trancamento de inquérito policial instaurado para apurar suposta existência de desvios de
verba pública na empresa Brasileira de infra-estrutura Aeroportuária – inFrAero, e a prática dos delitos de
formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, estelionato e peculato, bem como de crimes contra a ordem
econômica (Lei 8.137/90, art. 4º), de improbidade administrativa e dos tipificados nos artigos 89, 90, 93 e 96
da Lei 8.666/93. sustentava a impetração, com base em analogia com os crimes contra a ordem tributária, a
necessidade de encerramento da via administrativa da constituição do débito tributário como condição de procedibilidade. entendeu-se que não mereceria reparo a conclusão do stJ, segundo a qual o fato do tribunal de
Contas da união, eventualmente, aprovar as contas a ele submetidas, não obstaria, em princípio, a persecução
penal promovida pelo ministério Público. explicitou-se que a jurisprudência do stF seria no sentido da independência entre as esferas de contas e a judicial penal, de sorte a ser desnecessário que o inquérito policial ou
a denúncia aguardem a conclusão do processo de contas em qualquer das instâncias dos tribunais de Contas”
(HC nº 103.725-DF. Rel. Min. Ayres Britto. Julg. 14.12.2010. Informativo STF, n. 613).
889
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890
- Mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional
que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior.
do ponto de vista orgânico, o fato de o tCu não integrar o Poder Judiciário leva
à conclusão de que os ministros do tCu não são magistrados. em termos práticos,
todavia, a equiparação feita pela Constituição Federal (art. 73, §3º) entre os ministros
do tCu e os ministros do superior tribunal de Justiça — “os ministros do tribunal de
Contas da união terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos
e vantagens dos ministros do superior tribunal de Justiça, aplicando-se-lhes, quanto à
aposentadoria e pensão, as normas constantes do art. 40” —, assim como em razão da
natureza da atividade que desenvolvem, que compreende o julgamento de contas dos
gestores públicos, resulta em que os ministros do tCu sejam considerados magistrados,
sendo a eles aplicável a Lei orgânica da magistratura nacional (Lei Complementar nº 35,
de 1979). ou seja, ainda que não sejam magistrados, posto que o tCu não faz parte do
Judiciário, seus ministros se sujeitam ao mesmo regime jurídico aplicável aos magistrados, o que torna totalmente desnecessária e sem sentido a discussão em torno do tema.
integram o tCu, além dos ministros, os auditores,27 cujo número foi fixado pela
Lei nº 8.443/92 em apenas três.28
As normas básicas acerca dos auditores estão definidas pela Constituição Federal
que, nos termos do art. 73, §4º, dispõe que o “auditor, quando em substituição a ministro,
terá as mesmas garantias e impedimentos do titular e, quando no exercício das demais
atribuições da judicatura, as de juiz de tribunal regional Federal”.
uma das principais atribuições dos auditores do tCu é, portanto, a substituição
dos ministros, razão pela qual são normalmente chamados de ministros-substitutos.
Quando estão em substituição dos ministros, exercem as mesmas atribuições
daqueles e votam nas sessões deliberativas do tribunal. Quando não estão convocados
para substituir ministro, os auditores relatam processos nas sessões deliberativas e apresentam suas declarações de voto. estas declarações, todavia, não são consideradas na
contagem dos votos. ou seja, quando o auditor não estiver convocado, a sua declaração
de voto nos processos da sua relatoria não entra na contagem dos votos proferidos.
se convocado, o auditor vota não apenas nos processos sob sua relatoria, como nos
processos levados à deliberação pelos ministros.
A existência dos auditores dos tribunais de Contas se revela medida extremamente salutar, haja vista sua seleção ser feita por meio de concurso público. o sistema de
provimento do cargo de auditor cria situação peculiar em nosso sistema constitucional.
trata-se do único cargo provido por concurso público em que seus ocupantes se tornam
vitalícios com a posse.
Além dos ministros e dos auditores, integram o tCu os representantes do Ministério Público especial.
A Constituição Federal cuida do ministério Público que atua junto ao tCu no
art. 130, que dispõe, in verbis:
27
28
não se deve confundir auditores do tCu com auditores federais de controle externo (Lei nº 11.950/2009). os
primeiros têm como uma de suas principais atribuições substituir os ministros em suas ausências. os auditores
federais de controle externo compõem a carreira técnica de servidores do tribunal e são responsáveis pela realização dos trabalhos de fiscalização e instrução de todos os processos no Tribunal. A alteração do Regimento
interno do tCu, realizada por meio da resolução nº 246/2011, refere-se ao cargo de que trata o art. 73, §4º, da
Constituição Federal como ministro-substituto.
A Lei nº 11.854/2008 aumentou um cargo no número de auditores.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Aos membros do ministério Público junto aos tribunais de Contas aplicam-se as
disposições desta seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura.
A forma lacônica com que a Constituição Federal se referiu ao tema resultou em
inúmeras controvérsias acerca da correta formatação deste Ministério Público. Afinal,
os procuradores que irão atuar junto ao tCu são do ministério Público federal, designados pelo Procurador-Geral da República, ou constituem carreira específica, integrante
a estrutura administrativa do tribunal?
A Lei orgânica do tCu, Lei nº 8.443/92, adotou a segunda solução. em termos
orgânicos, o ministério Público especial de Contas integra a estrutura administrativa
do tCu. os procuradores do ministério Público junto ao tCu se sujeitam, todavia, ao
regime jurídico aplicável aos membros do ministério Público comum.29 Aplicam-se aos
procuradores do tCu, por expressa disposição legal (Lei nº 8.443/92, art. 80, caput), os
princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade e, seguramente o mais importante de todos, o da independência funcional. desse modo, ainda que submetidos à
estrutura administrativa do tCu, os membros do mP/tCu não se sujeitam, em sua
atividade funcional, hierarquicamente a qualquer autoridade, seja ele ministro, Presidente do tCu ou mesmo ao Procurador-Geral do tCu.
o mP/tCu é organizado em carreira. dispõe o caput o art. 80 da Lei nº 8.443/92
que ele “compõe-se de um procurador-geral, três subprocuradores-gerais e quatro
procuradores, nomeados pelo Presidente da república, dentre brasileiros, bacharéis
em direito”. o ingresso na carreira é feito por concurso público para o cargo de procurador e, por meio de promoção, os procuradores podem ser promovidos ao cargo
de subprocurador-geral. dentre os membros da carreira, o Presidente da república
nomeia o Procurador-Geral.
A solução adotada pela mencionada Lei nº 8.443/92 foi contestada pela Procuradoria da república por meio da Adi nº 789-dF. Por unanimidade, o pleno do stF
considerou mencionada lei constitucional.30
29
30
A Lei orgânica do tCu, em seu art. 84, dispõe que “aos membros do ministério Público junto ao tribunal de
Contas da união aplicam-se, subsidiariamente, no que couber, as disposições da lei orgânica do ministério
Público da união, pertinentes a direitos, garantias, prerrogativas, vedações, regime disciplinar e forma de investidura no cargo inicial da carreira”.
o acórdão da mencionada Adi nº 789-dF foi ementado nos seguintes termos: “Adin – Lei n. 8.443/92 – ministério Público junto ao tCu – instituição que não integra o ministério Público da união – taxatividade do rol
inscrito no art. 128, i, da Constituição – vinculação administrativa à Corte de Contas – Competência do tCu
para fazer instaurar o processo legislativo concernente a estruturação orgânica do ministério Público que
perante ele atua (CF, art. 73, caput, in fine) – matéria sujeita ao domínio normativo da legislação ordinária – enumeração exaustiva das hipóteses constitucionais de regramento mediante lei complementar – inteligência da
norma inscrita no art. 130 da Constituição – Ação direta improcedente. – o ministério Público que atua perante
o TCU qualifica-se como órgão de extração constitucional, eis que a sua existência jurídica resulta de expressa
previsão normativa constante da Carta Política (art. 73, par. 2., i, e art. 130), sendo indiferente, para efeito de
sua configuração jurídico-institucional, a circunstância de não constar do rol taxativo inscrito no art. 128, I, da
Constituição, que define a estrutura orgânica do Ministério Público da União. – O Ministério Público junto ao
TCU não dispõe de fisionomia institucional própria e, não obstante as expressivas garantias de ordem subjetiva
concedidas aos seus Procuradores pela própria Constituição (art. 130), encontra-se consolidado na ‘intimidade
estrutural’ dessa Corte de Contas, que se acha investida — até mesmo em função do poder de autogoverno que
lhe confere a Carta Política (art. 73, caput, in fine) — da prerrogativa de fazer instaurar o processo legislativo
concernente a sua organização, a sua estruturação interna, a definição do seu quadro de pessoal e a criação dos
cargos respectivos. – só cabe lei complementar, no sistema de direito positivo brasileiro, quando formalmente
reclamada a sua edição por norma constitucional explicita. A especificidade do Ministério Público que atua
perante o tCu, e cuja existência se projeta num domínio institucional absolutamente diverso daquele em que
891
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Curso de direito AdministrAtivo
892
O modelo do Ministério Público junto ao TCU, definido pela Constituição Federal
e disciplinado pela Lei nº 8.443/92, é de adoção obrigatória pelos tribunais de Contas dos
estados e municípios.31 em afronta à Constituição Federal, ainda restam situações em
que essa atuação é feita por procuradores do estado, por representantes do ministério
Público estadual ou em que simplesmente não há representação alguma.
Além dos ministros, auditores e representantes do ministério Público, igualmente
integram o tCu o corpo técnico de servidores.
o tCu conta com aproximadamente dois mil servidores concursados atuando
em sua atividade fim em todo o território nacional.32 A eles cumpre a instrução de todos
os processos que tramitam pelo tribunal. Gozam de independência para a realização
de todos os trabalhos de investigação sob a responsabilidade do tribunal.
no tCu, como regra, os processos são instruídos pelos auditores federais de
controle externo, recebem parecer do ministério Público e são encaminhados aos ministros relatores para a elaboração dos votos a serem proferidos nas sessões deliberativas.
A Constituição Federal (art. 73, caput) incorre em evidente equívoco quando afirma
que o tCu é integrado por nove ministros. o tCu é integrado por ministros, auditores,
representantes do ministério Público e auditores federais de controle externo. somente
por meio da atuação conjunta dessas diferentes categorias o tCu se habilita ao exercício
das suas atribuições constitucionais. são as auditorias e demais instruções realizadas e
assinadas pelos auditores federais de controle externo que, após receberem, quando for
o caso, parecer do ministério Público, são submetidas à apreciação do tribunal. sem esse
trabalho que antecede à intervenção dos ministros, o tCu simplesmente não existiria.
18.6.3 natureza do controle exercido pelo tCu
A Constituição Federal (art. 70) determina que a fiscalização contábil, financeira e
orçamentária da união e das demais entidades da Administração Pública federal indireta será exercida pelo Congresso nacional, mediante controle externo, e pelo sistema
de controle interno de cada poder.
É dito, ademais, que a fiscalização contábil, financeira e orçamentária compreende
três aspectos:
- Legalidade;
- Legitimidade; e
- economicidade.
31
32
se insere o ministério Público da união, faz com que a regulação de sua organização, a discriminação de suas
atribuições e a definição de seu estatuto sejam passiveis de veiculação mediante simples lei ordinária, eis que
a edição de lei complementar e reclamada, no que concerne ao Parquet, tão-somente para a disciplinação normativa do ministério Público comum (CF, art. 128, par. 5.). – A cláusula de garantia inscrita no art. 130 da Constituição não se reveste de conteúdo orgânico-institucional. Acha-se vocacionada, no âmbito de sua destinação
tutelar, a proteger os membros do ministério Público especial no relevante desempenho de suas funções perante
os tribunais de Contas. esse preceito da Lei Fundamental da republica submete os integrantes do mP junto
aos tribunais de Contas ao mesmo estatuto jurídico que rege, no que concerne a direitos, vedações e forma de
investidura no cargo, os membros do ministério Público comum” (stF. Adi nº 789-dF, Pleno. rel. min. Celso de
mello. Julg. 26.5.1994. DJ, 19 dez. 1994).
nesse sentido, vide stF: Adi nº 789-dF, Pleno. rel. min. Celso de mello. Julg. 26.5.1994. DJ, 19 dez. 1994; Adi
nº 832-mC/PA, Pleno. rel. min. ilmar Galvão. Julg. 8.9.1993. DJ, 12 nov. 1993; e Adi nº 846-mC/ms, Pleno. rel.
min. moreira Alves. Julg. 8.9.1993. DJ, 17 dez. 1993.
A Lei nº 8.443/92 somente admite, em seu quadro de pessoal, 28 servidores em comissão. trata-se do órgão com
menor número de servidores comissionados da Administração Pública federal. este fato certamente contribui
para a qualidade dos trabalhos produzidos.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
maria sylvia Zanella di Pietro defende a tese de que o exame da legitimidade e
da economicidade compreende aspectos relacionados ao mérito da atividade administrativa. Em relação à legitimidade, a ilustre autora afirma que a Constituição Federal o
“tem como diverso da legalidade, de sorte que parece assim admitir exame de mérito”.
idêntico raciocínio é desenvolvido pela professora di Pietro em relação à economicidade, que “envolve também questão de mérito, para verificar se o órgão procedeu, na
aplicação da despesa pública de modo mais econômico, atendendo, por exemplo, uma
adequada relação custo-benefício”.33
discordamos, permissa venia, da opinião da ilustre autora.
o mérito envolve o exame da conveniência e da oportunidade das soluções
adotadas pelo gestor público. o resultado do controle de mérito é a revogação dos atos
praticados ou, no caso de contratos, a sua rescisão (Lei nº 8.666/93, art. 78, Xii). não
se cogita, no âmbito do controle de mérito, de punir ou sancionar o gestor em razão
da adoção de solução que, no futuro, se mostre inconveniente. Cogita-se, no caso, tão
somente de revogar os atos ou, eventualmente, de rescindir os contratos. no controle
de legitimidade, que compreende o controle de legalidade, verifica-se a adequação do
ato ao ordenamento jurídico. No exercício desse controle, verificada a desconformidade
entre o ato e a ordem jurídica, o resultado deve ser a anulação do ato e a punição daquele
que lhe deu causa.
o controle de legitimidade exercido pelo tCu não compreende a avaliação do mérito
da atividade administrativa. Ao mencionar as duas expressões — controle de legalidade
e controle de legitimidade — o texto constitucional busca tão somente deixar evidente
que a fiscalização a ser empreendida pelos órgãos de controle interno e externo não se
resume ao mero exame formal da adequação dos atos e atividades administrativas do
estado à lei. esse controle (de legitimidade) deve alcançar todos os demais preceitos
e princípios constitucionais (moralidade, impessoalidade, razoabilidade, segurança
jurídica, continuidade do serviço etc.).
Em resumo, é correto afirmar que, nos termos da Constituição Federal, o controle
de legalidade compreende a verificação do cumprimento da lei; o controle de legitimidade,
a plena observância do ordenamento jurídico.
o poder conferido ao tCu para controlar não apenas o cumprimento da lei
(legalidade), mas a observância da Constituição (legitimidade) resulta, inclusive, na
prerrogativa reconhecida pelo supremo tribunal Federal aos tribunais de Contas para
o exame de constitucionalidade das leis e dos atos sujeitos à sua fiscalização, potestade
declarada pelo stF por meio da súmula nº 347:34
33
34
di Pietro. Direito administrativo, p. 614.
Há que se observar, não obstante, que a súmula stF nº 347 foi objeto de crítica pelo ministro Gilmar mendes
no MS nº 27.796-MC/DF (Decisão da Presidência. Rel. Min. Carlos Britto. Presidente Min. Gilmar Mendes. Julg.
27.1.2009. DJe, 09 fev. 2009, mediante o qual deferiu pedido de medida liminar, para suspender os efeitos da
decisão proferida pelo tribunal de Contas da união no processo tC nº 008.815/2000-3 (relatório de Auditoria):
“Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo tribunal de Contas da união, do art. 67 da Lei nº 9.478/97,
e do decreto nº 2.745/98, obrigando a Petrobras, consequentemente, a cumprir as exigências da Lei nº 8.666/93,
parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade,
as que delimitam as competências do tCu (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177). não me impressiona o teor da súmula nº 347 desta Corte,
segundo o qual ‘o tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das
leis e dos atos do Poder Público’. A referida regra sumular foi aprovada na sessão Plenária de 13.12.1963, num
contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da emenda Constitucional nº 16, de 1965,
893
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
894
o tribunal de Contas, no exercício das suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade
das leis e dos atos do poder público.
No momento em que se reconhece aos órgãos de controle externo o dever de verificar
não apenas a legalidade, mas a plena conformidade do ato ou da atividade administrativa
ao ordenamento jurídico, implicitamente é conferida ao tribunal de Contas a competência
para impugnar ato que, não obstante se conforme à lei, viole a Constituição Federal. este
poder denomina-se controle de constitucionalidade e está inserido no âmbito do controle de
legitimidade dos tribunais de Contas expressamente mencionado pelo texto constitucional.
No que toca ao exame da natureza do controle, a maior dúvida reside na definição
do alcance da expressão controle de economicidade: trata-se, afinal, de controle de mérito?
na busca do alcance da expressão controle de economicidade, deve-se proceder ao
exame sistemático do texto constitucional, exame que nos remete ao disposto no art. 74.
Este, ao tratar do sistema de controle interno, menciona a verificação do “cumprimento
de metas” (art. 74, I) e a avaliação dos resultados quanto “à eficácia e a eficiência da gestão
orçamentária, financeira e patrimonial (...)” (art. 74, II).
em razão do que dispõe a Constituição Federal, é possível concluir que o controle
de economicidade compreende o exame de três diferentes aspectos:
- o cumprimento de metas (ou efetividade);
- A eficácia; e
- A eficiência.
esses três aspectos foram disciplinados pelo Manual de auditoria operacional do
35
tCu. de acordo com o manual, a efetividade corresponde à relação entre os resultados
(impactos observados) e os objetivos (impactos previstos ou esperados); a eficácia indica
as metas alcançadas, independentemente de qualquer relação com custos ou com os
impactos esperados; e a eficiência apresenta a relação entre os resultados ou produtos
gerados por determinada atividade ou programa e os custos necessários à execução
do programa ou da atividade.
o controle de legalidade e o controle de legitimidade, conforme examinado, não
interferem no mérito da atividade administrativa. dizem respeito à conformidade dos
atos à lei e aos demais princípios e preceitos jurídicos.
35
que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de
órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. no entanto, é preciso levar em conta
que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato,
com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao supremo tribunal Federal,
operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil.
Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar
o supremo tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir,
de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao supremo tribunal Federal
mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre
nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento
de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no
Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em
face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988” (Acórdão nº 1.763/2008, Plenário. rel. min.
Aroldo Cedraz. DOU, 22 ago. 2008).
tCu. Manual de auditoria operacional. 3. ed. Disponível em: <http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/ 2058980.
PDF>. Acesso em: 20 out. 2011.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
o controle da economicidade, ao contrário, alcança aspectos relacionados ao
mérito — o que ocorre de forma bastante mitigada — e à adequação da atividade administrativa ao ordenamento jurídico. explicamos melhor.
na execução do gasto público, cumpre ao administrador indicar as soluções mais
convenientes ao desenvolvimento das suas tarefas. tomemos um exemplo: o combate
à mortalidade infantil. existem programas de Governo e dotações orçamentárias vinculadas ao combate e à redução da mortalidade infantil. Poder-se-ia, em tese, supor a
existência de dezenas ou centenas de soluções possíveis para o enfrentamento dessa
questão. Diante dessa imensa variedade de opções, o Governo adota solução específica.
Para dar cumprimento a esta solução, são praticados inúmeros atos e são desenvolvidas
diversas atividades, as quais se sujeitarão ao controle de legalidade, de legitimidade e
de economicidade.
no âmbito do controle de legalidade e de legitimidade, são examinados aspectos
relacionados ao cumprimento da lei e da Constituição. Verificada a desconformidade,
conforme mencionado, os atos devem ser anulados e os gestores punidos.
no controle da economicidade, serão examinados aspectos relacionados: 1. à
efetividade, em que se examina em que medida as metas definidas foram alcançadas;
2. à eficiência, que busca ponderar os custos do programa em face dos benefícios; e
3. à eficácia dos programas, cujo foco corresponde à análise dos resultados efetivamente obtidos.
desse modo, não há dúvida acerca dos aspectos analisados no controle da
economicidade. A questão — até o momento não respondida — busca identificar as
consequências desse controle. o controle de legalidade e de legitimidade pode resultar
na anulação dos atos e na punição dos gestores. e o controle de economicidade, quais
seus propósitos? Quais consequências podem advir para o gestor caso sua atuação seja
considerada ineficaz, ineficiente ou pouco efetiva?
o instrumento de que o tCu tradicionalmente tem-se valido para exercer o
controle de economicidade da atividade administrativa do estado são as auditorias de
natureza operacional.
o enfoque nos resultados não se restringe, todavia, às auditorias de natureza
operacional. Por meio da instrução normativa nº 47, de 2004,36 o tCu determinou aos
órgãos de controle interno que avaliem o resultado das metas nas prestações e tomadas
de contas anuais dos diversos gestores públicos.
Por meio dos processos de prestação e de tomadas de contas e das auditorias de
natureza operacional, torna-se possível o exame da economicidade da gestão pública.
nas situações em que os resultados dessa gestão se mostrarem, a partir de parâmetros
objetivos, passíveis de crítica e, após o exercício do contraditório, absurdamente contrários à eficiência, à eficácia ou à efetividade, o gestor deve ser responsabilizado e, caso
se trate de processo de contas, estas devem ser julgadas irregulares.
36
A in nº 47/2004 foi revogada, estando hoje vigente a in nº 63, de 1º.9.2010, que mantém exigências no mesmo
sentido da norma original: “exame do desempenho: análise da eficácia, eficiência, efetividade e economicidade
da gestão em relação a padrões administrativos e gerenciais expressos em metas e resultados negociados com a
administração superior ou definidos nas leis orçamentárias, e da capacidade dos controles internos de minimizar riscos e evitar falhas e irregularidades” (art. 1º, iX).
895
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
896
No caso específico das auditorias operacionais, caso não se constatem resultados
absurdos da gestão pública, o tCu pode emitir recomendações,37 cujo propósito é a
melhoria da qualidade dos serviços e atividades do estado e cuja adoção é deixada a
juízo discricionário do gestor.
se os resultados da gestão pública, examinados sob a ótica da razoabilidade,
forem absurdos, não há que se falar em mero juízo de conveniência administrativa ou
em discricionariedade administrativa, e o tCu, no caso, não deve restringir sua atuação
à expedição de meras recomendações. O administrador se sujeita ao dever de eficiência
imposto pelo art. 37 da Constituição Federal e caso ocorra violação grosseira desse dever,
os atos praticados devem ser anulados, e quem os praticou, caso não apresente razões
plausíveis que justifiquem a gestão calamitosa, deve ser punido.
não resta dúvida de que a fraude, a malversação, o desvio ou a prática de atos
ilegais e ilegítimos merecem a reprovação da sociedade e a severa punição por parte dos
órgãos de controle. Idêntica reprovação não tem sido verificada, até o momento, especialmente nos meios jurídicos, nas situações em que o gestor não é eficiente ou efetivo.
do ponto de vista prático, todavia, se a creche não foi construída, se o hospital não foi
reformado ou se seus equipamentos não funcionam, se a estrada está esburacada, se a
campanha de vacinação infantil não alcançou seus objetivos por que o gestor desviou os
recursos públicos ou por que adotou soluções absurdamente ineficientes ou ineficazes,
o resultado é o mesmo. A população sofre as mesmas consequências em qualquer das
duas situações, quer ocorra fraude, quer se verifique ineficiência.
o controle de economicidade realizado pelo tCu envolve, portanto, aspectos de
legitimidade e, em menor medida, de mérito.
Especialmente nos processos de auditoria de natureza operacional, verifica-se
exame de mérito no controle da economicidade na medida em que se permite ao tCu
a apresentação de recomendações ao gestor público. Ainda que as soluções apresentadas pela gestão pública sejam razoáveis, a faculdade conferida ao tCu para emitir
recomendações visando à melhoria dos serviços públicos importa em inequívoco exame
do mérito. este exame, ou controle, é exercido, todavia, de forma mitigada.
o controle compreende, conforme examinado no início deste capítulo, o poder de
fiscalização e de revisão dos atos. O controle de legalidade e de legitimidade exercido
pelo TCU é pleno porque, além da fiscalização, o Tribunal dispõe de instrumentos para
determinar a revisão dos atos ou atividades ilegítimos. no caso acima, de serem expedidas recomendações, o controle exercido pelo tCu é limitado, porque compreende
tão somente a potestade de fiscalizar, mas não de rever a atuação do gestor.
Em resumo, é possível afirmar que o controle realizado pelo TCU é de legalidade,
de legitimidade e de economicidade. o controle de economicidade, por meio do qual são
examinados aspectos relacionados à eficiência, efetividade e eficácia da gestão pública,
compreende aspectos de legitimidade e de mérito. este último, o controle de mérito, é
exercido pelo TCU de forma bastante mitigada, alcançando tão somente a fiscalização
da gestão e não o poder de revisão de atos ou de atividades.
37
de acordo com a Lei orgânica (Lei nº 8.443/92) e o regimento interno do tCu, as recomendações expedidas
pelo tribunal não se confundem com as determinações. estas, expedidas nas hipóteses de ilegalidade ou de
ilegitimidade, são de adoção obrigatória e seu não cumprimento sujeita o gestor a punição. As recomendações,
expedidas pelo tCu caso este considere que outras soluções poderiam ser mais vantajosas para a gestão pública,
são de adoção facultativa pelo gestor.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
18.6.4 Atribuições constitucionais e legais do tCu
A Constituição Federal, em seu art. 71, de modo detalhado, indica os instrumentos por meio dos quais o controle externo será exercido e confere, de forma expressa, o
desempenho desses instrumentos de controle ao tCu. Além das atribuições indicadas
no texto constitucional, outras têm sido conferidas ao tCu por meio de legislação
extravagante.
As principais atribuições do tCu podem ser sintetizadas nas categorias a seguir
indicadas.
18.6.4.1 opinativa ou consultiva
1. na elaboração do parecer prévio às contas anuais do Presidente da república
(CF, art. 71, i);
2. em resposta a “consulta que lhe seja formulada por autoridade competente,
a respeito de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, na forma estabelecida
no regimento interno” (Lei orgânica do tCu, art. 1º, Xvii).
18.6.4.2 Fiscalizadora
1. realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos deputados, do senado Federal, de comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza
contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades
administrativas dos Poderes Legislativo, executivo e Judiciário, e demais
entidades referidas no inciso ii (CF, art. 71, iv);
2. Fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital
social a união participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado
constitutivo (CF, art. 71, v);
3. Fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela união mediante
convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a estado, ao
distrito Federal ou a município (CF, art. 71, vi);
4. Acompanhar a arrecadação da receita a cargo da união e das entidades referidas no inciso i deste artigo, mediante inspeções e auditorias, ou por meio
de demonstrativos próprios, na forma estabelecida no regimento interno (Lei
orgânica do tCu, art. 1º, iv);
5. efetuar, observada a legislação pertinente, o cálculo das quotas referentes aos
fundos de participação a que alude o parágrafo único do art. 161 da Constituição Federal, fiscalizando a entrega dos respectivos recursos (Lei Orgânica
do tCu, art. 1º, vi);38
38
o cálculo das quotas, a entrega e o controle das liberações dos recursos do Fundo de Participação dos estados e
do distrito Federal (FPe) e do Fundo de Participação dos municípios (FPm) eram realizados nos termos da Lei
Complementar nº 62/1989. ocorre que, no julgamento das Adi nº 875, 1.987, 2.727 e 3.243, em 24.02.2010, o stF
declarou a inconstitucionalidade, sem a pronúncia da nulidade, do art. 2º, incisos i e ii, parágrafos 1º, 2º e 3º, e
do Anexo único, da referida lei, mantendo sua vigência até 31.12.2012. Até o momento, não há notícia de nova
lei editada pelo Congresso Nacional. Deste modo, o TCU manteve os coeficientes para o exercício de 2013 com
base Lei Complementar nº 62/1989, até que sobrevenha outro normativo.
897
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
898
6. decidir sobre denúncia que lhe seja encaminhada por qualquer cidadão,
partido político, associação ou sindicato, na forma prevista nos artigos 53 a
55 desta lei (Lei orgânica do tCu, art. 1º, Xvi);
7. decidir sobre as representações formuladas em matéria de licitação e contratos
administrativos (Lei nº 8.666/93, art. 113, §1º);
8. Fiscalizar os processos de privatização e de concessões de serviços públicos
federais (Lei nº 9.491/97)
9. Acompanhar a evolução patrimonial dos agentes públicos mencionados pela
Lei nº 8.730/93, por meio do recebimento das declarações de imposto de renda
de pessoas físicas;
10. Fiscalizar o cumprimento das aplicações das receitas de impostos na manutenção
de desenvolvimento dos estados e municípios (CF, art. 212 e Lei nº 9.424/96);
11. Fiscalizar o cumprimento das normas de responsabilidade fiscal previstas
na Lei de responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/00);
12. Regulamentar e fiscalizar a divisão dos recursos da Contribuição de Intervenção no domínio econômico (Cide) incidente sobre as operações com
petróleo e derivados (Lei nº 10.866/04).
18.6.4.3 de julgamento de contas
1. Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens
e valores públicos da Administração direta e indireta, incluídas as fundações
e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas
daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que
resulte prejuízo ao erário público (CF, art. 71, ii).
18.6.4.4 de registro
1. Apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal,
a qualquer título, na Administração direta e indireta, incluídas as fundações
instituídas e mantidas pelo poder público, excetuadas as nomeações para cargo
de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias,
reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o
fundamento legal do ato concessório (CF, art. 71, iii).
18.6.4.5 sancionadora
1. Aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade
de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário (CF, art. 71, viii);
2. Aplicar ao responsável julgado em débito, multa de até cem por cento do valor
atualizado do dano causado ao erário (Lei orgânica do tCu, art. 57);
3. Aplicar multa de até r$25.000,00 (vinte e cinco mil reais),39 ou valor equivalente em outra moeda que venha a ser adotada como moeda nacional, aos
39
o valor atualizado da multa para 2011 é de r$38.993,92, de acordo com a Portaria normativa tCu nº 41/2011.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
responsáveis por contas julgadas irregulares de que não resulte débito, pela
prática de ato com grave infração à norma legal ou regulamentar de natureza
contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial; e nas demais
hipóteses indicadas no art. 58 da Lei orgânica do tCu;
4. declarar a inabilitação, por período que variará de cinco a oito anos, para o
exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública, sempre que o tCu, por maioria absoluta de seus membros,
considerar grave a infração cometida (Lei orgânica do tCu, art. 60).
5. declarar, na ocorrência de fraude comprovada à licitação, a inidoneidade do
licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na Administração Pública Federal (Lei orgânica do tCu, art. 46).
18.6.4.6 Corretiva
1. Assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias
ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade (CF, art. 71, IX);
2. sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão
à Câmara dos deputados e ao senado Federal (CF, art. 71, X);
3. no caso de contrato, caso o Congresso nacional ou o Poder executivo não
adotem as providências indicadas no art. 71, §1º, da Constituição Federal,
o tribunal poderá adotar medidas tendentes à correção das irregularidades
detectadas, podendo, inclusive, proceder à anulação da avença.
18.6.5 natureza das sanções aplicadas pelo tCu e poder disciplinar
o tCu, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais, dispõe de instrumentos para a aplicação de sanções aos responsáveis pela prática de atos ilegais:
“omissão no dever de prestar contas; prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico, ou infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira,
orçamentária, operacional ou patrimonial; dano ao erário decorrente de ato de gestão
ilegítimo ao antieconômico; desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos”
(art. 16, iii, Lei nº 8.443/92).
Constatada a ocorrência de infração, o tCu pode aplicar qualquer das sanções
indicadas no item anterior (multa, declaração de inidoneidade para licitar, inabilitação
para exercício de cargo em comissão), bem como condenar o gestor em débito. A esse
respeito, a Constituição Federal, em seu art. 71, §3º, dispõe que as “decisões do tCu de
que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo”.
das decisões do tCu podem resultar, portanto, sanções de natureza civil e administrativa.
Alguma dúvida pode surgir caso o ato praticado por gestor, além de se enquadrar
em alguma das hipóteses de atuação do tCu, também se caracterize como infração
funcional, nos termos da Lei nº 8.112/90. nesta hipótese, cumpre estabelecer a distinção
entre a responsabilidade administrativo-disciplinar do servidor e a responsabilidade a
ser apurada pelo tCu, que não possui natureza disciplinar.
Para melhor compreensão do tema, podemos supor que servidor público tenha
praticado a infração descrita no art. 132, X, da Lei nº 8.112/90 (“lesão aos cofres públicos
899
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
900
e dilapidação do patrimônio nacional”). diante desse fato, devem ser instaurados dois
processos. o primeiro processo, de natureza disciplinar (processo administrativo disciplinar), é regido pela Lei nº 8.112/90, que em seu art. 143 dispõe que “a autoridade que
tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração
imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao
acusado ampla defesa”. Por meio do processo administrativo disciplinar instaurado pela
autoridade competente, será apurado o cometimento da infração funcional e aplicada
a correspondente sanção disciplinar (Lei nº 8.112/90, art. 127) — que no exemplo em
apreciação corresponderá à pena de demissão.
o segundo processo a ser instaurado é a tomada de contas especial em razão do
que dispõe a Lei nº 8.443/92, art. 8º:
diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos
repassados pela união, na forma prevista no inciso vii do art. 5º desta lei, da ocorrência
de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de
qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao erário, a autoridade
administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente
adotar providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para apuração dos
fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano. (grifos nossos)
o primeiro processo, de natureza disciplinar, cujo propósito é a aplicação das
sanções disciplinares, será instaurado pela autoridade competente — conforme definirem os regulamentos internos do órgão ou entidade — e julgado pelas autoridades
indicadas no art. 142 da Lei nº 8.112/90.
o segundo processo, a tomada de Contas especial (tCe), será instaurado “para
apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano” com vista ao
ressarcimento dos valores desviados, podendo ainda ser aplicadas as sanções previstas
na Lei nº 8.443/92 (multa, inabilitação para cargo em comissão etc.). A instauração da
tCe deve ser feita pela mesma autoridade competente para a instauração do processo
disciplinar. Conforme será examinado no próximo item deste capítulo, a instauração e
a instrução da tCe cabem ao órgão ou entidade onde ocorreu o desvio. o julgamento
dos processos de contas deve ser feito, todavia, pelo tCu ou pelo tribunal de Contas
estadual ou municipal competente.
o processo disciplinar não se presta, conforme visto, para recuperar recursos
públicos desviados. não é possível que de um processo disciplinar resulte determinação para desconto em folha do dano causado ao erário. Para a recuperação do dano
causado ao erário pela conduta do servidor, o instrumento adequado é a tomada de
contas especial. Conforme já mencionado, a decisão do tribunal que aplique débito
ou multa constitui título executivo a ser encaminhado ao órgão jurídico da entidade
com vista à propositura da respectiva execução, podendo o tCu, a seu critério, como
alternativa à execução judicial, “determinar o desconto integral ou parcelado da dívida
nos vencimentos, salários ou proventos do responsável, observados os limites previstos
na legislação pertinente” (Lei nº 8.443/92, art. 28, i).40
40
Conforme mencionado no Capítulo 5, o stF não admite o desconto em folha de danos causados por servidores
quando a determinação para o desconto parte da própria Administração Pública (ms nº 24.182-dF, Pleno.
rel. maurício Corrêa. Julg. 12.2.2004. DJ, 03 set. 2004), salvo se houver o consentimento do servidor. Quando
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
18.6.6 espécies de processo no tCu
As regras básicas acerca da tramitação dos processos no TCU estão definidas na
Lei orgânica (Lei nº 8.443/92) e no regimento interno do tribunal.
não obstante o enorme rol de atribuições conferidas pela Constituição Federal
e pela legislação extravagante ao Tribunal, é possível identificar três categorias básicas
de processo:
1. Julgamentos de contas;
2. Fiscalizações; e
3. registro dos atos de concessão (de aposentadoria, pensões e reformas) e dos
atos de admissão.
examinaremos, em seguida, os principais aspectos de cada um desses processos.
18.6.6.1 Processos de contas
As normas básicas acerca do dever de prestar contas se encontram previstas na
Constituição Federal, art. 70, parágrafo único, que dispõe que “prestará contas qualquer
pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou
administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a união responda, ou que,
em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.
18.6.6.1.1 modalidades de contas
A primeira divisão que se faz das contas resulta na criação de duas diferentes
modalidades:
- Contas anuais (ou ordinárias); e
- Contas especiais.
As contas anuais se subdividem em duas outras categorias:
- Contas de governo, cuja sistemática de prestação é definida pelos artigos 49, IX,
e 71, i, da Constituição Federal; e
- Contas de gestão, definidas pelo art. 71, II, do texto constitucional.
em relação à primeira categoria de contas anuais, as contas de governo, conforme
define a Constituição Federal, o TCU (art. 71, I) possui competência para elaborar parecer prévio, cabendo ao Congresso nacional a atribuição de proceder ao seu julgamento
(art. 49, v).
nos termos da Constituição Federal, as contas de governo compreenderiam tão
somente as do Presidente da república. A Lei de responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000) determina, no entanto, que na apreciação dessas contas sejam
igualmente examinadas, de forma individualizada, as contas dos presidentes do senado
Federal, da Câmara dos deputados, do supremo tribunal Federal e dos demais tribunais
superiores, do presidente do tribunal de Justiça do distrito Federal e territórios e do
chefe do ministério Público da união.
a Administração promove o desconto em folha em razão de determinação emanada do tCu, decorrente de
julgamento de contas, o stF admite a legitimidade do desconto, ainda que não haja consentimento do servidor
(ms nº 24.544-dF, Pleno. rel. min. marco Aurélio. Julg. 4.8.2004. DJ, 04 mar. 2005).
901
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
902
Como o próprio nome indica, o exame das contas de governo não envolve aspectos
específicos da gestão. Não se examina, por exemplo, se determinado ato ou contrato é
lícito, ou se dada licitação ou concurso público foram conduzidos conforme determina
a legislação. estes aspectos devem ser examinados nas contas de gestão.
o exame das contas de governo compreende aspectos gerais relacionados à execução dos orçamentos públicos federais, especialmente no que concerne aos aspectos
definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. É realizada a análise das receitas e das
despesas previstas no Plano Plurianual, e nos orçamentos Fiscal, da seguridade social
e de investimento das estatais. se estivéssemos no campo da economia, seria correto
afirmar que o exame das contas de governo verifica aspectos macroeconômicos; ao passo
que as contas de gestão devem expressar a legalidade, a legitimidade e a economicidade
dos atos administrativos que compreendem a gestão do administrador. nas contas de
governo é examinada a atuação da autoridade máxima de cada um dos poderes da
república (Presidente da república, Presidente do stF, do stJ, do Procurador-Geral
da República etc.); nas contas de gestão, verificam-se os atos dos ordenadores das despesas das diversas unidades administrativas. se tomarmos como exemplo o supremo
Tribunal Federal, verificar-se-á que o Presidente do STF presta contas de governo, a
serem examinadas pelo tCu por meio de parecer prévio e que serão julgadas pelo Congresso. o diretor-Geral do stF, ao contrário, presta contas de gestão, cujo julgamento
cabe diretamente ao tCu.
A segunda categoria de processo de prestação de contas está relacionada às contas
ordinárias (ou anuais) de gestão, que devem compreender todos os recursos orçamentários e extra-orçamentários. estas contas se encontram disciplinadas no art. 7º da Lei
nº 8.443/92, que dispõe nos seguintes termos:
As contas dos administradores e responsáveis a que se refere o artigo anterior serão anualmente submetidas a julgamento do tribunal, sob forma de tomada ou prestação de contas,
organizadas de acordo com normas estabelecidas em instrução normativa.
Além das regras básicas previstas na Lei orgânica e no regimento interno do
tCu, para regular os processos de tomada e de prestação de contas anuais,41 o tribunal
editou a instrução normativa nº 47, de 2004.42
nos termos dessa in, o exame das contas anuais compreende o exame de dois
aspectos básicos: a conformidade e o desempenho da gestão. Esses aspectos são definidos pela mencionada in nos seguintes termos:
- Exame da conformidade – Análise da legalidade, legitimidade e economicidade
da gestão em relação a padrões normativos e operacionais, expressos nas
41
42
A expressão tomada de contas anuais diz respeito às contas prestadas pelos gestores dos órgãos da Administração
Pública direta; a expressão prestação de contas anuais se refere às contas prestadas pelos gestores das entidades
da Administração Pública indireta.
A in nº 47/2004 foi revogada, estando hoje vigente a in nº 63, de 1º.9.2010, que mantém exigências no mesmo sentido
da norma original: “viii. exame da conformidade: análise da legalidade, legitimidade e economicidade da gestão,
em relação a padrões normativos e operacionais, expressos nas normas e regulamentos aplicáveis, e da capacidade
dos controles internos de identificar e corrigir falhas e irregularidades; IX. exame do desempenho: análise da eficácia,
eficiência, efetividade e economicidade da gestão em relação a padrões administrativos e gerenciais expressos em
metas e resultados negociados com a administração superior ou definidos nas leis orçamentárias, e da capacidade
dos controles internos de minimizar riscos e evitar falhas e irregularidades;” (art. 1º).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
normas e regulamentos aplicáveis, e da capacidade dos controles internos de
identificar e corrigir falhas e irregularidades;
- Exame do desempenho – Análise da eficácia, eficiência e efetividade da gestão em
relação a padrões administrativos e gerenciais, expressos em metas e resultados
negociados com a administração superior ou definidos nas leis orçamentárias,
e da capacidade dos controles internos de minimizar riscos e evitar falhas e
irregularidades.
A fim de possibilitar o exame dos dois aspectos, o art. 14 da referida IN43 requer
que os processos de contas anuais sejam encaminhados ao tribunal, acompanhados
das seguintes peças:
- rol de responsáveis;
- relatório de gestão, emitido pelos responsáveis;
- demonstrativos contábeis, exigidos pela legislação aplicável e necessários à
gestão orçamentária, financeira e patrimonial;
- declaração expressa da respectiva unidade de pessoal de que os responsáveis a
que se refere o inciso i estão em dia com a exigência de apresentação da declaração de bens e rendas de que trata a Lei nº 8.730, de 10 de novembro de 1993;
- relatórios e pareceres de órgãos e entidades que devam se pronunciar sobre
as contas ou sobre a gestão da unidade jurisdicionada, consoante previsto em
lei ou em seus atos constitutivos;
- relatório de auditoria de gestão, emitido pelo órgão de controle interno competente;
- Certificado de auditoria, emitido pelo órgão de controle interno competente;
- Parecer conclusivo do dirigente do órgão de controle interno competente; e
- Pronunciamento expresso do ministro de estado supervisor da unidade jurisdicionada ou da autoridade de nível hierárquico equivalente sobre as contas
e o parecer do dirigente do órgão de controle interno competente, atestando
haver tomado conhecimento das conclusões nele contidas.
Além das contas anuais, a Lei nº 8.443/92 dispõe sobre as contas especiais. no art. 8º da
mencionada Lei orgânica do tCu, é disciplinada a sistemática dos processos de tomada
de Contas especial (tCe), in verbis:
diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela união, na forma prevista no inciso vii do art. 5º desta lei, da ocorrência
de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de
43
A in nº 63/2010 que trata atualmente do assunto dispõe da seguinte forma: “Art. 13. os autos iniciais dos processos de contas serão constituídos das peças a seguir relacionadas: i. rol de responsáveis, observado o disposto
no capítulo iii do título ii desta instrução normativa e na decisão normativa de que trata o art. 4º; ii. relatório
de gestão dos responsáveis, conforme conteúdos e formatos estabelecidos pelo tribunal na decisão normativa
de que trata o art. 3º; iii. relatórios e pareceres de órgãos, entidades ou instâncias que devam se pronunciar
sobre as contas ou sobre a gestão dos responsáveis pela unidade jurisdicionada, consoante previsão em lei ou
em seus atos constitutivos, observados os formatos e os conteúdos definidos na decisão normativa de que trata
o art. 4º deste normativo; iv. relatório de auditoria de gestão, emitido pelo órgão de controle interno, conforme
formato e conteúdo definidos na decisão normativa de que trata o art. 4º deste normativo; V. certificado de
auditoria, emitido pelo órgão de controle interno competente; vi. parecer conclusivo do dirigente do órgão
de controle interno competente; e vii. pronunciamento expresso do ministro de estado supervisor da unidade
jurisdicionada, ou da autoridade de nível hierárquico equivalente, atestando haver tomado conhecimento das
conclusões contidas no parecer do dirigente do órgão de controle interno competente sobre o desempenho e a
conformidade da gestão da unidade supervisionada”.
903
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
904
qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao erário, a autoridade
administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente
adotar providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para apuração
dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano.
no âmbito do tCu, os processos de tCe se encontram disciplinados pela in
nº 13, de 1996.44
os processos de tCe devem observar a seguinte sistemática. diante das situações
indicadas em lei, deve ser providenciada a sua instauração pela autoridade competente,
no âmbito do próprio órgão ou entidade, sob pena de responsabilidade solidária. Caso
mencionada autoridade competente não instaure a tCe, o tCu dispõe de duas opções:
1. pode ele próprio instaurar o processo de tCe; ou 2. determinar que o responsável
pelo órgão ou entidade pública o faça. em qualquer caso, quer a tCe seja instaurada
pelo tCu, quer tenha sido instaurada no órgão ou entidade responsável pela gestão
dos recursos, de ofício ou por determinação do tCu, o julgamento das contas será
sempre feito pelo tribunal.
Em resumo, pode-se afirmar que a Constituição Federal impõe a “qualquer
pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie
ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a união responda, ou
que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária” o dever de prestar
contas ao tCu. Caso esse responsável não preste suas contas, deve ser instaurado o
processo de tomada de Contas especial (tCe) com vista ao exame da regularidade da
aplicação dos recursos.
no curso de qualquer processo de contas, ordinárias ou especiais, se for verificada a ocorrência de irregularidade (Lei nº 8.443/92, art. 12), o tCu, por meio de decisão
preliminar, deverá:
- Definir a responsabilidade individual ou solidária pelo ato de gestão inquinado;
- Se houver débito, ordenar a citação do responsável para, no prazo estabelecido
no regimento interno, apresentar defesa ou recolher a quantia devida;
- Se não houver débito, determinar a audiência do responsável para, no prazo estabelecido no regimento interno, apresentar razões de justificativa.
na oportunidade da resposta à citação, será examinada a ocorrência de boa-fé na
conduta do responsável e a inexistência de outra irregularidade nas contas. Comprovados esses requisitos, e subsistindo o débito, o tribunal proferirá, mediante acórdão,
deliberação de rejeição das alegações de defesa e dará ciência ao responsável para que,
em novo e improrrogável prazo de quinze dias, recolha a importância devida. não reconhecida a boa-fé do responsável ou havendo outras irregularidades, o tCu proferirá,
desde logo, o julgamento definitivo de mérito pela irregularidade das contas (art. 202
do regimento interno do tCu).
18.6.6.1.2 Julgamento das contas
encerrada a fase de apreciação da defesa apresentada, a Lei nº 8.443/92 admite
três modalidades de julgamento de contas:
44
A in nº 13/96 mencionada nessa linha foi revogada pela in nº 56, de 5.12.2007. não houve alteração relevante no
que diz respeito aos temas abordados nesse tópico.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
- Regulares, quando expressarem, de forma clara e objetiva, a exatidão dos demonstrativos contábeis, a legalidade, a legitimidade e a economicidade dos atos de
gestão do responsável;
- Regulares com ressalva, quando evidenciarem impropriedade ou qualquer outra
falta de natureza formal de que não resulte dano ao erário; ou
- Irregulares.
serão julgadas irregulares as contas quando for comprovada a ocorrência de
qualquer das seguintes ocorrências:
- omissão no dever de prestar contas;
- Prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico, ou infração à norma
legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial;
- dano ao erário decorrente de ato de gestão ilegítimo ao antieconômico;
- desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos;
- reincidência no descumprimento de determinação de que o responsável tenha
tido ciência, feita em processo de tomada ou prestação de contas.
Quando julgar as contas regulares, o tribunal dará quitação plena ao responsável.
Se as contas forem julgadas regulares com ressalva, o tribunal dará quitação ao responsável
e lhe determinará, ou a quem lhe haja sucedido, a adoção de medidas necessárias à
correção das impropriedades ou faltas identificadas, de modo a prevenir a ocorrência
de outras semelhantes. Quando julgar as contas irregulares, havendo débito, o tribunal
condenará o responsável ao pagamento da dívida, atualizada monetariamente, e acrescida dos juros de mora devidos, podendo, ainda, aplicar-lhe a multa prevista no art. 57
da Lei nº 8.443/92. o instrumento da decisão é considerado título executivo (CF, art. 71,
§3º) para fundamentar a respectiva ação de execução. Caso não haja débito, mas tenha
sido comprovada qualquer das ocorrências que justifiquem o julgamento das contas
irregulares, o tribunal aplicará ao responsável a multa prevista no inciso i do art. 58,
da Lei nº 8.443/92.
Caso a irregularidade das contas tenha por fundamento dano ao erário, desfalque ou desvio de recursos públicos, o Tribunal fixará a responsabilidade solidária do
agente público que praticou o ato irregular e do terceiro que, como contratante ou
parte interessada na prática do mesmo ato, de qualquer modo haja concorrido para o
cometimento do dano apurado.
os acórdãos do tCu que julguem as contas irregulares serão encaminhados ao
Ministério Público da União e às procuradorias das entidades onde se tenha verificado
o desvio ou desfalque, para ajuizamento das ações civis e penais cabíveis. no caso do
ministério Público, além das ações criminais, os acórdãos do tCu podem legitimar a
propositura de ações de improbidade administrativa ou de quaisquer outras ações civis.
Às advocacias ou procuradorias das entidades cabe a execução judicial do acórdão com
vista ao ressarcimento do erário e à cobrança das multas aplicadas.
se caso fortuito ou força maior, comprovadamente alheios à vontade do responsável, tornarem materialmente impossível o julgamento de mérito das contas, estas
serão consideradas iliquidáveis, e o tribunal ordenará seu trancamento e o consequente
arquivamento do processo.
905
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
906
18.6.6.1.3 natureza das decisões proferidas pelo tCu no julgamento
de contas
Conforme examinado no Capítulo 2, costuma-se distinguir administração de
jurisdição sob o argumento de que a primeira corresponde à execução do direito e a
segunda à aplicação do direito, distinção que nos parece — máxima vênia — totalmente
equivocada.
As diferenças entre a decisão administrativa e a judicial decorrem do tratamento
conferido pelo direito Positivo, e não da natureza ou do conteúdo da decisão. exame
mais detalhado, e desprovido de preconceitos, quanto ao exercício das atividades administrativas e judiciais nos leva à conclusão de que jurisdição e administração não são
atividades de natureza tão distintas quanto se costuma apresentar.
tradicionalmente, dizia-se que o administrador atua nos limites da lei para realizar
interesse público, ao passo que o papel precípuo do juiz seria o de aplicar o direito ao
caso concreto. não há necessidade de exame muito aprofundado para se perceber que
essas afirmações não se sustentam. Acaso ao juiz é dado — em seu processo de aplicação
do direito — agir fora deste, além dos limites da norma jurídica em exame? ou, ao contrário, no processo conduzido pelo juiz de aplicação do direito, pode ele ferir o interesse
público? em relação ao administrador, ao contrário, há como defender que ele adota
soluções para casos concretos sem aplicar o direito? tanto o juiz quanto o administrador
público atuam nos limites do direito e com vista à realização do interesse público.
A grande distinção entre o ato praticado no exercício da atividade jurisdicional
e aquela decorrente do exercício da atividade administrativa diz respeito à sujeição
destas últimas ao princípio da hierarquia. o administrador pode ser obrigado a decidir de certa forma simplesmente em razão da sua subordinação administrativa, o que
não se verifica com os órgãos judiciários. Daí a importância de que todos os atos da
Administração possam ser controlados pelo Poder Judiciário. Por meio desse controle
se assegura que a palavra final acerca da legalidade de certa conduta administrativa
seja proferida por autoridade isenta, independente.
outra particularidade das decisões produzidas pelo Poder Judiciário — requisito
necessário a que o ato tenha natureza judicial — é o fato de serem observadas normas
de direito Processual Civil, Penal ou trabalhista.
no caso do tCu, suas decisões muito mais se aproximam dos atos judiciais
do que dos tradicionais atos administrativos, sendo asseguradas aos seus ministros
as garantias e prerrogativas dos magistrados (CF, art. 73, §3º). Ademais, ao proferir
suas decisões, o tCu o faz no âmbito da sua jurisdição administrativa: “o tribunal de
Contas da união (...) tem sede no distrito Federal, quadro próprio e jurisdição em todo
o território nacional” (CF, art. 73, caput).
A esse respeito, Cretella Júnior afirma que “o emprego do vergo ‘julgar’ e dos
substantivos ‘julgamento’ e ‘jurisdição’, em dispositivos constitucionais, induziu,
primeiro, os membros dos tribunais de Contas — ministros e conselheiros — ao erro,
imaginando que os vocábulos tinham sido empregados com o mesmo sentido que têm
na nomenclatura técnica do direito processual”. Fala ainda o autor que “os constituintes
cometem erro e que o cientista do direito (...) vai buscar, nos cultores dos vários ramos
do direito, a acepção correta dos vocábulos”.45
45
CreteLLA Júnior. natureza das decisões do tribunal de Contas. Revista de Direito Administrativo – RDA, p. 9
apud ZYmLer. Direito administrativo e controle, p. 429.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Antes de qualquer consideração acerca da opinião do autor, cumpre-nos examinar
alguns conceitos de jurisdição.
Cândido Dinamarco afirma que “jurisdição é atividade pública e exclusiva com
a qual o Estado substitui a atividade das pessoas interessadas e propicia a pacificação
de pessoas ou grupos em conflito mediante a atuação da vontade do direito em casos
concretos”.46 Galeno Lacerda, citado por Athos Gusmão Carneiro, define o instituto
como “a atividade pela qual o Estado, com eficácia vinculativa plena, elimina a lide,
declarando e/ou realizando o direito concreto”.47 se formos buscar conceito comum
ou vulgar de jurisdição, podemos utilizar a fórmula apresentada no Dicionário Aurélio:
“Poder atribuído a uma autoridade para fazer cumprir determinada categoria de leis
e punir quem as infrinja em determinada área”.48
Em todos os conceitos de jurisdição é possível identificar alguns elementos comuns.
o primeiro reside no fato de que se trata de atividade estatal; o segundo, de que se trata
de atividade por meio da qual se aplica o direito ao caso concreto. o conceito apresentado por Galeno Lacerda acrescenta, além desses dois elementos, outra característica à
jurisdição, a coisa julgada.
se examinarmos os dois primeiros elementos (de que se trata de atividade estatal
com vista à aplicação do direito a situações concretas), não resta dúvida de que o conceito de jurisdição alcança a atividade desenvolvida pelo tCu. o único elemento do
conceito que não se mostra aplicável à atividade desenvolvida pelo tCu diz respeito
à imutabilidade das suas decisões. este elemento, relacionado à coisa julgada, é, no
entanto, acidental e somente parte da doutrina o adota.
vê-se, portanto, que o conceito de jurisdição não se mostra tão estranho à atividade dos tribunais de Contas quanto poderia supor quem, de forma desavisada, lesse
as palavras de Cretella Júnior acerca do tema.
As palavras do referido autor refletem a visão que imperava entre os “cientistas”
do direito Processual — e que ainda impera em alguns círculos jurídicos —, que negavam, a partir de premissas totalmente equivocadas, a existência do processo administrativo. Esta visão, mais do que qualquer outra coisa, reflete o desconhecimento acerca do
moderno direito Administrativo e das distinções entre o exercício das atividades judicial
e administrativa. de acordo com essa visão equivocada do direito Administrativo, a
atividade administrativa se desenvolvia por meio de atos administrativos isolados e
desordenados. Atualmente, a atividade administrativa é exercida como decorrência de
decisões produzidas em processos administrativos, sujeitos ao devido processo legal,
ao contraditório e à ampla defesa. o ato administrativo continua a ser meio básico para
o estado exercer sua função executiva. esta função se torna mais democrática, mais
transparente e legítima quando o ato administrativo passa a ser considerado o resultado
do processo administrativo, e não fenômeno isolado.
o tCu exerce jurisdição administrativa e, no desempenho dessa tarefa, julga as
contas dos gestores públicos.
não se reconhece às decisões do tCu — é evidente — natureza judicial em razão
de dois aspectos básicos: 1. não integram os tribunais de Contas o Poder Judiciário;
46
47
48
dinAmArCo. Fundamentos do processo civil moderno, v. 1, p. 115.
LACerdA apud CArneiro. Jurisdição e competência: exposição didática, área do direito processual civil.
FerreirA. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.
907
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
908
e 2. as decisões proferidas pelos tribunais de Contas se regem por normas de direito
Administrativo e Constitucional, não pelo direito Processual.
A possibilidade de o tCu agir de ofício — na instauração e na condução de processos — constitui particularidade estranha ao processo judicial, e impede qualquer tentativa de enquadramento das decisões dos tribunais de Contas como decisões judiciais.
razões decorrentes do ordenamento jurídico vigente, e não do voluntarismo jurídico de
alguns, impedem que se confira autoridade de coisa julgada judicial a decisões do TCU.
esta circunstância não impede que se reconheça 1. que o tCu exerce jurisdição; 2. que o
tCu julga contas; e 3. que as decisões do tCu se pautam pelo processo administrativo.
As similitudes entre as decisões do tCu — especialmente quando julga contas
— e as proferidas pelo Poder Judiciário levaram Benjamin Zymler, ilustre ministro do
tCu, a se referir a esta atividade do tCu como função parajudicial do tribunal.49
deve-se reconhecer, ademais, que a estatura constitucional das decisões proferidas
pelas Cortes de Contas — cuja natureza executiva decorre de dispositivo constitucional
expresso (CF, art. 71, §3º) — impossibilita a equiparação destas decisões, especialmente
daquelas que julgam contas, a meros atos administrativos.
Ainda que sujeitas ao controle judicial, as decisões dos tribunais de Contas
justificam a adoção de controle judicial menos invasivo, devendo o Poder Judiciário
promover a sua anulação somente em casos de aplicação absurda do direito ou por
falhas formais do processo, de que seria exemplo a não observância do contraditório ou
da ampla defesa. Admitir que matérias de fato ou de direito examinadas por tribunais
de Contas possam ser completamente reexaminadas, em todos os seus aspectos, pelo
Poder Judiciário, além de importar em absoluta quebra de racionalidade do sistema
— afinal, qual a utilidade desses tribunais se tudo o que eles decidissem pudesse ser
revisto pelo Poder Judiciário? —, transferiria para o Judiciário a competência para julgar
contas, competência exclusiva dos tribunais de Contas.
A constatação de que as decisões proferidas pelos tribunais de Contas, não obstante sua natureza administrativa,50 encontram-se em patamar jurídico mais elevado
que os demais atos administrativos foi feita pelo stF no julgamento do ms nº 24.544-dF.51
nesta ocasião, o stF reconheceu executoriedade52 à decisão do tCu, em razão das particularidades presentes no processo conduzido no âmbito do tribunal “de colorido quase
jurisdicional”, na expressão de sepúlveda Pertence,53 executoriedade não reconhecida à
Administração Pública.
se a Constituição institui órgão de controle externo, a quem incumbe a função de
fiscalizar a Administração Pública, atribuindo-lhe, inclusive, poderes sancionatórios, é
49
50
51
52
53
ZYmLer. Direito administrativo e controle, p. 268.
A natureza administrativa da atuação do tCu não lhe faculta a possibilidade de descumprir decisão proferida
em instância judicial e amparada pelo manto da coisa julgada. no julgamento do ms nº 23.758-rJ (Pleno. rel.
min. moreira Alves. Julg. 27.3.2003. DJ, 13 jun. 2003), o STF firmou o entendimento de que “se a decisão judicial
baseara-se em premissas errôneas, deve ser ela desconstituída por meio de ação rescisória, e não mediante
deliberação do tCu”.
stF. ms nº 24.544-dF, Pleno. rel. min. marco Aurélio. Julg. 4.8.2004. DJ, 04 mar. 2005. no julgamento deste mandado de segurança, o STF considerou legítima determinação feita pelo TCU a fim de que a Câmara dos Deputados promovesse desconto em contracheque de servidor, mesmo contra a vontade deste, prerrogativa que o stF
negou aos órgãos da Administração Pública.
A executoriedade, no caso, tratava de saber se poderia ser promovido o desconto em folha de débito apontado
pelo tCu e atribuído ao servidor público.
stF. ms nº 23.550-dF, Pleno. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 4.4.2001. DJ, 31 out. 2001.
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evidente que as decisões deste órgão não estão no mesmo nível dos atos administrativos
ordinários. O TCU deve ter a palavra final sobre a Administração Pública, com a ressalva
de que esta pode levar a questão ao Poder Judiciário. este deve, todavia, no exame da
legalidade das decisões do TCU verificar a ocorrência de ilegalidades na condução do
processo conduzido no tribunal ou de decisões absurdamente contrárias ao direito.54
nestas hipóteses, a decisão judicial deve tão somente anular aquela proferida
pelo tribunal de Contas, devendo o processo ser restituído a este último para a prática
de novo ato.
18.6.6.1.4 Fiscalização e julgamento de contas dos gestores das
empresas estatais
o stF, ao julgar o ms nº 23.627/dF, ao argumento de que os bens dessas entidades
são privados, por maioria, entendeu que o TCU não teria competência para “fiscalizar”
as empresas estatais.55
A tese da incompetência do TCU para fiscalizar empresas estatais foi — felizmente — revista pelo stF. no julgamento, ocorrido no ano de 2005, do ms nº 25.092/
DF, o Plenário do STF definiu que “o Tribunal de Contas da União, por força do disposto no art. 71, ii, da CF, tem competência para proceder à tomada de contas especial
de administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos das
entidades integrantes da administração indireta, não importando se prestadoras de
serviço público ou exploradoras de atividade econômica”.56
18.6.6.1.5 Competência do tCu para julgar contas e imunidade dos
advogados
os dois aspectos acima — a competência do tCu e a imunidade do advogado
— constituem, além de aparente conflito de normas, fonte de constantes preocupações
para os advogados públicos.
Acerca da competência do tCu, a Constituição Federal dispõe que ele deve “julgar
as contas administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos
(...) e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de
que resulte prejuízo ao erário público” (art. 71, ii). relativamente aos advogados, o texto
constitucional dispõe que ele é indispensável à administração da justiça, “sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (art. 133).
em razão do que dispõem mencionados artigos da Constituição Federal, como
deve proceder o TCU caso verifique que determinada manifestação produzida por
advogado público foi determinante para a prática de ato do qual resultou prejuízo ao
erário? deve o tCu julgar-lhe as contas, conforme dispõe o citado art. 71, ii, da Constituição Federal, e condená-lo solidariamente com o gestor? ou, ao contrário, deve
54
55
56
Acerca da possibilidade de revisão judicial das decisões das Cortes de Contas, Jorge ulisses Jacoby Fernandes
afirma que “embora existam controvérsias sobre os limites à revisibilidade judicial das decisões dos Tribunais
de Contas, inequivocamente cabe mandado de segurança quando o julgamento não garante contraditório ou
desobedece ao princípio do devido processo legal” (Tomada de contas especial: processo e procedimento nos tribunais de contas e na administração pública, p. 527).
stF. ms nº 23.627-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 7.3.2002. DJ, 16 jun. 2006.
stF. ms nº 25.092-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 10.11.2005. DJ, 17 mar. 2006.
909
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
910
considerá-lo imune ou inviolável por se tratar de ato ou manifestação produzida no
exercício da profissão (CF, art. 133) e, em consequência, afastar sua responsabilidade?
em outras palavras: possui o tCu competência para julgar a conduta dos advogados
públicos em decorrência das manifestações por eles produzidas?
essa questão foi levada à apreciação no stF por ocasião do julgamento do ms
nº 24.073-dF.57 no caso, o tCu havia condenado advogados da Petrobras em razão
da celebração de contrato sem licitação. Ao argumento de que somente existiria um
fornecedor, mencionada empresa celebrou contrato com inexigibilidade de licitação e,
posteriormente, demonstrou-se haver vários fornecedores no mercado.
no caso, de forma inquestionável, o tCu errou ao condenar os advogados da
Petrobras. O TCU errou porque não é atribuição do órgão jurídico identificar se existe
um ou se são vários os fornecedores no mercado em condições de serem contratados. É
função do órgão jurídico verificar a legalidade das medidas adotadas pela entidade, no
sentido de apontar incorreções no cumprimento dos procedimentos impostos pela Lei
nº 8.666/93.58 O Tribunal errou porque responsabilizou os advogados por falha verificada
em área estranha às suas atribuições. Ou seja, no caso, cabia aos advogados verificar
se as medidas ou exigências impostas pela Lei de Licitações para a contratação direta
eram adequadas. Ao julgar o mencionado ms nº 24.073-dF, o stF não se ateve, todavia,
somente a este aspecto. sob os argumentos de que: 1. “o parecer não é ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração consultiva”; e de que 2. “o advogado
somente será civilmente responsável pelos danos causados a seus clientes ou a terceiros,
se decorrentes de erro grave, inescusável, ou de ato ou omissão praticado com culpa,
em sentido largo: Cód. Civil, art. 159; Lei 8.906/94, art. 32” (conforme trechos do voto do
relator proferido no julgamento do referido ms), o eg. stF simplesmente considerou o
tCu incompetente para responsabilizar advogados em razão das suas manifestações.
o tCu, nos termos desta decisão do stF, teria competência para julgar contas
(responsabilizar) de todos os que derem causa a prejuízo ao erário, exceto dos advogados,
que somente poderiam ter suas manifestações apreciadas pela ordem dos Advogados
do Brasil (oAB).
A decisão do STF não pôs fim a esta contenda, e o próprio STF admite a possibilidade de rever seu posicionamento.59
Após mencionado julgado, o tCu, de forma bem mais cautelosa, tem mantido
a orientação de continuar a responsabilizar advogados. em hipóteses em que se constata a ocorrência de fraudes, em que a manifestação do órgão jurídico é determinante
para a prática dos atos ilegais, o tCu tem convocado os advogados que atuaram nos
autos para prestar esclarecimentos sobre a possível prática de ilícitos, e não mais para
responsabilizá-los em razão das suas manifestações.
57
58
59
stF. ms nº 24.073-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 6.11.2002. DJ, 31 out. 2003.
A Lei nº 8.666/93, em seu art. 38, parágrafo único, dispõe que “as minutas de editais de licitação, bem como as dos
contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica
da Administração”.
no ms nº 24.584-dF, o tribunal Pleno do stF passou a admitir que advogados possam ser chamados a prestar
esclarecimentos perante o tCu e, eventualmente, serem responsabilizados. recebeu a seguinte ementa: “Advogado Público – responsabilidade – Artigo 38 da Lei nº 8.666/93 – tribunal de Contas da união – esclarecimentos.
Prevendo o artigo 38 da Lei nº 8.666/93 que a manifestação da assessoria jurídica quanto a editais de licitação,
contratos, acordos, convênios e ajustes não se limita a simples opinião, alcançando a aprovação, ou não, descabe
a recusa à convocação do tribunal de Contas da união para serem prestados esclarecimentos” (ms nº 24.584-dF,
Pleno. rel. min. marco Aurélio. Julg. 9.8.2007. DJe, 20 jun. 2008).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A Constituição Federal é expressa ao afirmar a imunidade do advogado tão
somente quando ele atua nos limites da lei (art. 133). se essa manifestação se encontra
adequadamente fundamentada em jurisprudência ou em doutrina abalizada, se defende
tese jurídica razoável, ou que não tenha sido rejeitada pela jurisprudência, o advogado
não pode ser responsabilizado pelo tCu ou em qualquer outra instância. Admitir o
contrário importa em esvaziar a regra constitucional que lhe confere imunidade. se,
por exemplo, em razão de pedido absurdo de reequilíbrio econômico de contrato, o
órgão jurídico apresenta parecer favorável à pretensão da empresa sem que existam
argumentos jurídicos que fundamentem suas conclusões, não há razão para justificar
sua imunidade, haja vista se tratar de ato ilegal.60
não é igualmente correto conferir responsabilidade ao órgão jurídico em razão de
falhas técnicas ocorridas nos processos em que atua. se, por exemplo, em determinado
processo licitatório consta manifestação do órgão técnico que subsidiou a elaboração
do projeto básico para a contratação de serviços de informática, ou para a execução de
obra, e, posteriormente, constata-se que as especificações técnicas resultaram em evidente direcionamento do edital, não se pode atribuir responsabilidade ao advogado,
salvo se se tratar de falha ou irregularidade tão evidente, que qualquer pessoa seria
capaz de identificar.
É descabido, portanto, atribuir ao órgão jurídico responsabilidade por falhas técnicas nos projetos. este aspecto é fundamental em razão do princípio da segregação das
funções e para a definição de responsabilidades. É dever do advogado verificar se constam
nos autos os estudos ou as informações técnicas que justificam as especificações do objeto
do contrato e as exigências de qualificação técnica e econômico-financeiras constantes
do edital da licitação. não se deve esperar, especialmente em situações que requeiram
elevado nível de conhecimento técnico, que os advogados sejam capazes de identificar
eventuais falhas técnicas e que sejam capazes de refutá-las em suas manifestações jurídicas.
Em resumo, pode-se afirmar que os advogados podem ser responsabilizados em
razão de manifestações jurídicas produzidas em processos administrativos que causem
dano ao erário em razão de fraude, de conluios, ou quando for adotada tese jurídica
absurda ou já rejeitada pela jurisprudência. não é legítimo, todavia, responsabilizá-los,
judicial ou administrativamente, em razão do conteúdo das suas manifestações, se
defenderem tese razoável e bem fundamentada.
importa observar, todavia, que a tese adotada pelo stF acerca da imunidade
dos advogados não se estende aos gestores públicos. se determinado gestor segue
manifestação do órgão jurídico e pratica ato ilegal posteriormente impugnado pelo
tCu, o gestor deve ser responsabilizado, e não é possível arguir em sua defesa o fato
de ter agido amparado em pareceres jurídicos. ou seja, a existência de pareceres jurídicos favoráveis à solução adotada pelo gestor não é razão suficiente para eximir-lhe a
responsabilidade caso se demonstre que o ato praticado é ilegal.
60
Exemplo desse tipo de situação se verificou por ocasião do julgamento do Processo TC-022.319/1992-1 (TCU.
Acórdão nº 207/2004, Plenário), relativo à tomada de Contas especial da CHesF. neste processo, o tCu aplicou
multa ao chefe do jurídico da estatal em razão da não interposição de recurso em questão rumorosa. A questão,
uma vez mais, foi levada ao stF em mandado de segurança (ms nº 25.092-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso.
Julg. 10.11.2005. DJ, 17 mar. 2006) que lhe negou provimento, mantendo a decisão do tCu. em seu voto, o relator
deste mandado de segurança, fazendo referência a precedente (ms nº 24.073-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso.
Julg. 6.11.2002. DJ, 31 out. 2003), afirma, in verbis: “Ali, entretanto, cuidamos de parecer oferecido pelo advogado
da empresa sugerido determinada contratação, sem licitação, mediante interpretação da lei das licitações. Aqui,
estamos diante de um fato: a não-interposição de apelação, numa causa submetida à Justiça”.
911
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
912
18.6.6.1.6 inelegibilidade e contas irregulares
A Lei de inelegibilidades (Lei Complementar nº 64/90) regulamenta o art. 14, §9º,
da Constituição Federal. dispõe o texto constitucional que lei complementar deve estabelecer “outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger
a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato” (grifos nossos).
Um dos maiores desafios dos que se dedicam ao controle da Administração Pública
consiste na busca de maior efetividade para as decisões dos tribunais de Contas. medida
coerente com essa linha de atuação importaria em tornar inelegíveis os maus gestores
públicos, aqueles que tiveram suas contas julgadas irregulares.
A redação original da Lei Complementar nº 64, de 1990, em seu art. 1º, i, “g”,
dispunha que são inelegíveis “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos
ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do
órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do
Puder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados
a partir da data da decisão” (grifos nossos).
A primeira observação acerca do dispositivo supra diz respeito ao fato de que não
cabe ao tCu, ou a qualquer outro tribunal de Contas, declarar candidatos ou gestores
públicos inelegíveis. esta atribuição compete à Justiça eleitoral. Cumpre aos tribunais
de Contas julgar as contas dos gestores públicos.61
A peculiaridade da redação da citada lei complementar residia no fato de que
ela condicionava a inelegibilidade à inexistência de questão “submetida à apreciação
do Poder Judiciário”. observe que não seria necessário qualquer provimento judicial
para suspender os eleitos da decisão do tribunal de Contas. Bastaria que o candidato
protocolasse ação judicial contra a decisão que julgou suas contas irregulares para se
tornar elegível, situação que se manteria até o trânsito em julgado da ação.
em decisão extremamente moralizadora, na sessão de 23.8.2006, o tse interpretou
a legislação de inelegibilidades de modo a melhor realizar a probidade e a moralidade
requeridas pela Constituição Federal. Passou-se a entender que a simples existência de
ação judicial em curso não suspendia a inelegibilidade decorrente do julgamento das
contas dos gestores públicos. o candidato precisaria obter algum provimento judicial
(cautelar, liminar, tutela antecipada, decisão definitiva etc.) que suspendesse os efeitos
da decisão que julgou suas contas irregulares de modo a torná-lo elegível.
defendemos, em edições anteriores dessa obra, que a nova orientação do tse
acerca da Lei de inelegibilidade apontava para a maior valorização da moralidade administrativa e deveria provocar revisão em vários aspectos da jurisprudência da Justiça
eleitoral.
61
Importa verificar que a existência, no TCU, de recurso de revisão pendente de julgamento não afasta a inelegibilidade do gestor. nesse sentido, vide tse: “registro de candidato – rejeição de contas – Convênio federal –
Competência do tribunal de Contas da união. inelegibilidade – Art. 1º, i, g, da LC nº 64/90. recurso de revisão
– Ressalva da alínea g – Insuficiência. Irregularidades insanáveis – Exame pela Justiça Eleitoral – Possibilidade.
1. O recurso de revisão perante o TCU pressupõe a existência de decisão definitiva daquele órgão (art. 35 da Lei
nº 8.443/92). 2. o recurso de revisão, embora assim denominado, tem características que mais o aproximam da
ação rescisória que de um recurso, seja em virtude do longo prazo facultado para sua interposição, seja pelos
requisitos especialíssimos necessários a fazê-lo admissível. 3. o recurso de revisão não afasta a inelegibilidade,
salvo se a ele tiver sido concedido efeito suspensivo pela Corte, a quem incumbe seu julgamento. 4. A insanabilidade das irregularidades que causaram a rejeição das contas pode ser aferida pela Justiça eleitoral nos processos
de registro de candidatura. recurso a que se nega provimento” (ro nº 577-Goiânia/Go. Acórdão de 3.9.2002.
RJTSE, v. 14, t. 1, p. 203).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Houve, com efeito, efetiva evolução nesse sentido, especialmente por meio de
alterações legislativas, consoantes disposições contidas na Lei Complementar nº 135, de
4 de junho de 2010 — que foi apelidada de “lei da ficha limpa” e tornou-se conhecida em
face da dúvida sobre sua aplicabilidade ou não nas eleições seguintes à sua publicação,
em outubro de 2010, controvérsia resolvida pelo stF mediante o julgamento do re
nº 633.703-mG.62 o art. 1º, i, “g”, da Lei Complementar nº 64/90 recebeu nova redação,
que agora passa a dispor da seguinte maneira: “os que tiverem suas contas relativas
ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que
configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do
órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para
as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da
decisão, aplicando-se o disposto no inciso ii do art. 71 da Constituição Federal, a todos
os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa
condição” (grifos nossos).
Posteriormente, em 16.02.2012, ao julgar procedente duas ações declaratórias de
constitucionalidade (AdC nº 29 e nº 30) e improcedente uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 4.578), por maioria dos votos, o STF reafirmou o entendimento em
favor da constitucionalidade da Lei Complementar nº 135/2010, que poderá alcançar
atos e fatos ocorridos antes de sua vigência.
18.6.6.2 Processos de fiscalização
O estudo das fiscalizações realizadas pelo TCU indica três aspectos básicos a serem
examinados.
O primeiro aspecto corresponde ao objeto da fiscalização. Nesse ponto, busca-se
verificar os atos ou atividades sujeitos ao controle do TCU. Em segundo lugar devem ser
examinados os instrumentos de que se pode valer o tribunal para exercer sua atividade
fiscalizatória. Finalmente, cumpre-nos realizar o exame do procedimento utilizado na
tramitação dos processos no tCu.
18.6.6.2.1 Objeto da fiscalização
O primeiro aspecto, relacionado ao objeto da fiscalização, chama a atenção para
o largo espectro de atribuições do TCU. Além das matérias definidas pela Constituição
62
stF: “A Lei Complementar 135/2010 — que altera a Lei Complementar 64/90, que estabelece, de acordo com o
§9º do art. 14 da CF, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir
hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do
mandato — não se aplica às eleições gerais de 2010. essa a conclusão do Plenário ao prover, por maioria, recurso
extraordinário em que discutido o indeferimento do registro de candidatura do recorrente ao cargo de deputado
estadual nas eleições de 2010, ante sua condenação por improbidade administrativa, nos termos do art. 1º, i, l,
da LC 64/90, com redação dada pela LC 135/2010 [‘Art. 1º são inelegíveis: i – para qualquer cargo: (...) l) os que
forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão
judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após
o cumprimento da pena’]. Preliminarmente, reconheceu-se a repercussão geral da questão constitucional relativa à incidência da norma vergastada às eleições de 2010, em face do princípio da anterioridade eleitoral (CF,
art. 16). tendo em conta que já assentada por esta Corte a repercussão geral concernente à alínea k do mesmo
diploma, aduziu-se que igual tratamento deveria ser conferido à alínea l que, embora aborde o tema com nuança
diferenciada, ambas fariam parte da mesma lei, cuja aplicabilidade total fora contestada” (re nº 633.703-mG. rel.
min. Gilmar mendes. Julg. 23.3.2011. Informativo STF, n. 620).
913
LuCAs roCHA FurtAdo
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914
Federal, inúmeras outras têm sido acrescentadas por meio da Lei orgânica do tCu ou
de legislação extravagante.
Considerando o que dispõe a Constituição Federal, a Lei orgânica do tCu e
legislação extravagante, é possível apresentar a seguinte lista de atividades sujeitas à
fiscalização do TCU:
- todo e qualquer ato, contrato ou atividade que importem na geração de receita
ou na realização de despesa de recursos públicos federais;
- todo e qualquer ato, contrato ou atividade desenvolvidos pela união — incluídas as unidades administrativas dos Poderes Legislativo e Judiciário —, autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista
federais, bem como aqueles praticados por qualquer pessoa, física ou jurídica,
pública ou privada, que utilize, guarde, arrecade, gerencie ou administre bens,
dinheiro ou valores públicos federais ou pelos quais a união responda, ou que,
em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária;
- A aplicação de quaisquer recursos repassados pela união, autarquias, fundações instituídas e mantidas pelo poder público e demais órgãos e entidades
da Administração Pública federal mediante convênio, acordo, ajuste ou outros
instrumentos congêneres, a estado, ao distrito Federal, a município e a qualquer outra pessoa, física ou jurídica, pública ou privada;
- A entrega das parcelas devidas aos estados, ao distrito Federal e aos municípios
à conta dos recursos dos fundos de participação dos estados e municípios a
que alude o parágrafo único do art. 161 da Constituição Federal;63
- A aplicação dos recursos dos fundos constitucionais do norte, nordeste e
Centro-oeste, administrados por instituições federais;
- A aplicação dos recursos transferidos ao distrito Federal com base no inciso
Xiv do art. 21 da Constituição Federal — que prevê que compete à união
organizar e manter a Polícia Civil, a Polícia militar e o Corpo de Bombeiros
militar do distrito Federal;
- o cálculo, a entrega e a aplicação de quaisquer recursos repassados pela união
por determinação legal a estado, ao distrito Federal ou a município, consoante
dispuser a legislação específica;
- A aplicação de recursos transferidos sob as modalidades de subvenção, auxílio
e contribuição, fiscalização que compreenderá as fases de concessão, utilização
e prestação de contas;
- A arrecadação da receita a cargo dos órgãos e entidades da Administração
direta e indireta dos poderes da união, bem como dos fundos e demais instituições sob jurisdição do tribunal, a qual será efetuada em todas as etapas
da receita e processar-se-á mediante levantamentos, auditorias, inspeções,
acompanhamentos ou monitoramentos, incluindo a análise de demonstrativos
próprios, com a identificação dos respectivos responsáveis;
63
Em relação aos repasses dos mencionados fundos, o TCU fiscaliza tão somente o seu repasse aos Estados e
aos municípios. A aplicação ou o uso que os estados e municípios dão a mencionados recursos são objeto de
fiscalização pelos respectivos Tribunais de Contas Estaduais e Municipais. Assim, recursos dos fundos de participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM) são fiscalizados pelo TCU apenas até o momento em que
são repassados ou transferidos aos seus destinatários (estado ou município).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
- A renúncia de receitas da união, a qual será feita, preferentemente, mediante
auditorias, inspeções ou acompanhamentos nos órgãos supervisores, bancos
operadores e fundos que tenham atribuição administrativa de conceder, gerenciar ou utilizar os recursos decorrentes das aludidas renúncias, sem prejuízo do
julgamento das tomadas e prestações de contas apresentadas pelos referidos
órgãos, entidades e fundos;
- o cumprimento, por parte dos órgãos e entidades da união, das normas da Lei
Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de responsabilidade Fiscal);
- os processos de desestatização realizados pela Administração Pública federal,
compreendendo as privatizações de empresas, incluindo instituições financeiras, e as concessões, permissões e autorizações de serviço público, previstas no
art. 175 da Constituição Federal e nas normas legais pertinentes (Lei nº 9.491/97);
- As declarações de bens e rendas apresentadas pelas autoridades e servidores
públicos (Lei nº 8.730/93);
- A aplicação dos recursos repassados ao Comitê olímpico Brasileiro e ao Comitê
Paraolímpico Brasileiro, por força da legislação vigente;
- o cumprimento das aplicações das receitas de impostos na manutenção de
desenvolvimento dos estados e municípios (CF, art. 212 e Lei nº 9.424/96);
- A divisão dos recursos da Contribuição de intervenção no domínio econômico
(Cide) incidente sobre as operações com petróleo e derivados (Lei nº 10.866/04).
A Constituição Federal determina, em seu art. 71, V, que o TCU deverá “fiscalizar
as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a união participe,
de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo”. A itaipu Binacional
é exemplo de empresa supranacional da qual o Brasil é sócio. Ocorre que a fiscalização
dessas entidades deve ser feita nos termos do tratado constitutivo.
Por ocasião do julgamento da reclamação nº 2.937-Pr, de 15.12.2011, a suprema
Corte firmou sua competência judicante em ações do Ministério Público contra a Itaipu,
com fundamento no art. 102, inciso i, da Constituição Federal de 1988.
Asseverou-se que empresa possui posição peculiar no ordenamento pátrio, ainda
a ser assentada definitivamente pelo STF. A empresa estaria submetida exclusivamente
ao disposto no tratado constitutivo, sob a competência de mais de um estado em situação
de igualdade jurídica, a revelar que toda ingerência brasileira em seu regime jurídico
violaria a soberania do Paraguai e, assim, surgiria o interesse na intervenção processual.
ocorre que, provavelmente por dolo, o tratado constitutivo da mencionada
empresa binacional não prevê uma única linha sobre como o TCU irá exercer sua fiscalização. esta omissão dolosa resultou em que, até a presente data, não existe qualquer
mecanismo de fiscalização sobre mencionada empresa binacional.
Ainda em relação ao objeto da fiscalização, é importante consignar que ele não
alcança apenas atos e contratos. ele vai além e compreende o planejamento e a execução
dos programas de governo. desde que haja execução orçamentária, qualquer programa
de governo pode ser objeto de procedimento fiscalizatório por parte do TCU, tanto em
relação à sua conformidade, quanto em relação ao seu desempenho.
nesse tocante, aspecto que deveria ser objeto de maior rigor por parte do tribunal
diz respeito ao contingenciamento de recursos orçamentários que comprometem significativamente importantes projetos definidos como prioritários pelas Leis de Diretrizes
orçamentárias. se o mau uso, o desvio e a malversação são objeto de crítica, igualmente
915
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deve sê-lo o fato de a união ter liberado, por exemplo, no exercício de 2005, menos de
1% dos recursos previstos no orçamento para a área de segurança pública, ou de que as
agências reguladoras não podem desenvolver tarefas básicas em razão das limitações
orçamentárias que lhes são impostas.
Por meio de auditorias de desempenho, o tCu deve ser capaz de indicar as consequências decorrentes desses contingenciamentos e, se for o caso, determinar a adoção
de medidas corretivas e punitivas, caso seja demonstrado que o resultado desses contingenciamentos seja desastroso para o País.
no caso da aplicação dos recursos da Contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide) incidente sobre as operações com petróleo e derivados (Lei nº 10.866/04),
em que a arrecadação tem o propósito específico de permitir a recuperação das estradas,
o TCU deveria agir com muito mais rigor e considerar desvio de finalidade a sua utilização para compor os denominados superávits orçamentários. ora, se os recursos são
vinculados, eles têm que ser usados na finalidade que justifica sua cobrança. Se assim
não ocorrer, o tribunal deveria vedar novas arrecadações enquanto houver recursos já
arrecadados e não utilizados.
18.6.6.2.2 Instrumentos de fiscalização
em relação aos instrumentos de que o tCu pode-se valer para a realização da sua
tarefa de fiscalização, a Constituição Federal faz referência, no art. 71, IV, à realização
de “inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional
e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso ii”. Além das auditorias e inspeções, a
Constituição Federal (art. 74, §2º) alude ainda às denúncias (“qualquer cidadão, partido
político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou
ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”) como instrumento de fiscalização.
A esses três instrumentos, a Lei orgânica e o regimento interno do tCu acrescentam outros.
É possível apresentar os seguintes instrumentos de que se pode valer o tCu para
a realização da sua tarefa de fiscalização:
- Auditorias;
- inspeções;
- denúncias;
- representações;
- Levantamentos;
- Acompanhamentos; e
- monitoramentos.
Auditorias
Inicialmente, em relação a este instrumento de fiscalização do TCU, importa
consignar a existência de certa imprecisão terminológica. em algumas hipóteses, o
termo auditoria é utilizado em sentido amplo, fazendo referência a qualquer processo
instaurado pelo tCu. nesse sentido, denúncia encaminhada ao tCu importaria na
realização de auditoria. em outras situações, o termo é utilizado em sentido bem mais
restrito, indicando modalidade específica de processo de fiscalização.
CAPítuLo 18
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Parece-nos que a Constituição Federal e a Lei orgânica do tCu utilizam o termo
em sentido restrito, indicando o processo específico, e que constitui o mais completo
instrumento de fiscalização do Tribunal, em que se buscam as causas da ilegalidade ou
da deficiência de desempenho e são apontadas as possíveis soluções para a correção
dos problemas identificados.
o objetivo dos processos de auditorias não é apurar ilegalidade em ato ou contrato específicos. Para verificar se determinado ato ou contrato é ilegal, o TCU pode
realizar simples inspeção, e se forem identificados indícios de ilegalidade, a própria
equipe técnica do tCu pode encaminhar representação ao tribunal.
As auditorias se prestam para verificar, por exemplo, se setores responsáveis
pela realização das licitações, pelo acompanhamento dos contratos, pela contratação
de pessoal, pela administração de patrimônio, por exemplo, atuam de forma adequada,
tanto do ponto de vista da legalidade quanto do desempenho. É possível, por exemplo,
a instauração de auditoria para verificar a sistemática de terceirização de mão de obra
em determinada unidade administrativa. A auditoria é o processo de mais amplo escopo
no tCu, daí resulta a importância do tema.
As auditorias, como observado, podem ser de conformidade, que examinam a
adequação da gestão ao ordenamento jurídico, ou operacionais.64 estas, as auditorias
operacionais, dividem-se em duas subcategorias: 1. auditorias de desempenho operacional,
cujo foco é a eficiência e a eficácia de determinado programa de governo; e 2. as avaliações de programas, cujo propósito é verificar a efetividade das atividades ou programas
governamentais.65
nos termos do regimento interno do tCu (art. 239), auditoria é o instrumento
de fiscalização utilizado pelo Tribunal para: 1. examinar a legalidade e a legitimidade
dos atos de gestão dos responsáveis sujeitos a sua jurisdição, quanto ao aspecto contábil, financeiro, orçamentário e patrimonial; 2. avaliar o desempenho dos órgãos e
entidades jurisdicionados, assim como dos sistemas, programas, projetos e atividades
governamentais, quanto aos aspectos de economicidade, eficiência e eficácia dos atos
praticados; e 3. subsidiar a apreciação dos atos sujeitos a registro.
A realização de auditoria depende da iniciativa do próprio tCu ou da solicitação de qualquer das Casas do Congresso nacional ou de suas comissões técnicas ou
de inquérito.
desse modo, caso alguém tenha conhecimento de ilegalidade no serviço público
e queira provocar a fiscalização do TCU, deve encaminhar ao Tribunal denúncia ou
representação, e não pedido para a realização de auditoria. nenhum impedimento há,
64
65
A título de exemplo, podemos apresentar algumas auditorias de natureza operacional realizadas pelo tCu: 1. qualidade das rodovias públicas federais; 2. alfabetização solidária de jovens e adultos; 3. profissionalização do preso;
4. ações de atendimento à pessoa idosa; 5. ações de detecção e correção de problemas visuais; 6. ações de prevenção e
monitoramento da mortalidade materna; 7. cadastro único dos programas do governo federal; 8. programa Amazônia sustentável; 9. programa atenção à pessoa portadora de deficiência física; 10. programa erradicação do trabalho
infantil; 11. programa de saúde da família; 12. desenvolvimento do turismo no nordeste; 13. energia das pequenas
comunidades; 14. programa morar melhor; 15. programa nacional biblioteca da escola; 16. programa nacional de
controle da malária; 17. programa novo mundo rural; 18. programa de reinserção do adolescente em conflito com a
lei; 19. saneamento básico, projeto agente jovem; 20. programa bolsa família; 21. programa fome zero. maiores informações sobre cada uma dessas auditorias podem ser encontradas no endereço eletrônico: <http://www.tcu.gov.br>.
Conforme já examinado, a efetividade indica em que medida as metas definidas para determinado programa
foram alcançadas; eficiência estabelece a relação entre os custos do programa em face dos seus benefícios, e a
eficácia indica os resultados efetivamente obtidos em determinado programa de governo.
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todavia, caso o tCu receba de pessoa não legitimada pedido para realizar auditoria,
que ela seja instaurada de ofício pelo tribunal.
Inspeções
A inspeção — segundo instrumento de fiscalização —, nos termos do art. 240 do
regimento interno do tCu, “é utilizado pelo tribunal para suprir omissões e lacunas
de informações, esclarecer dúvidas ou apurar denúncias ou representações quanto à
legalidade, à legitimidade e à economicidade de fatos da administração e de atos administrativos praticados por qualquer responsável sujeito à sua jurisdição”.
Denúncias
A Constituição Federal, em seu art. 74, §2º, cuida das denúncias formuladas ao
tCu. o dispositivo constitucional é repetido pelo art. 53 da Lei orgânica do tCu que
dispõe nos seguintes termos:
Art. 53. Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para
denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o tribunal de Contas da união.
de acordo com a Lei orgânica do tCu (art. 55, caput), “no resguardo dos direitos
e garantias individuais, o tribunal dará tratamento sigiloso às denúncias formuladas,
até decisão definitiva sobre a matéria, ocasião em que, caberá ao Tribunal manter ou
não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia” (grifos nossos).66
Antes de adentrarmos ao mérito da discussão, importa consignar que a denúncia
constitui importante instrumento constitucional voltado ao controle social da Administração Pública. Por meio de denúncias, fatos ilegais que jamais seriam identificados pelos
meios convencionais de investigação podem ser apurados e os responsáveis punidos.
na grande maioria dos casos, as denúncias são encaminhadas ao tCu por servidores
públicos que, em razão de atuarem dentro dos órgãos e entidades públicas, têm acesso
a informações “privilegiadas” acerca do cometimento de ilícitos. não resta dúvida de
que o fator que mais inibe o encaminhamento de denúncias é a perspectiva de o servidor sofrer represálias caso seu nome seja divulgado. esta preocupação resta evidente
quando a Lei orgânica do tribunal assegura ao denunciante o sigilo quanto à autoria.
de outra parte, é igualmente indiscutível que a denúncia — especialmente em
razão do sigilo quanto à sua autoria — pode ser utilizada para ofender a honra de pessoas. esta preocupação é preservada pela legislação no momento em que é conferida
à tramitação da denúncia natureza sigilosa. ou seja, se alguém deseja denunciar fato
mentiroso ao tCu com o propósito de promover a sua divulgação junto aos órgãos da
imprensa, este propósito será frustrado em razão da tramitação sigilosa do processo.
Foi recebido com espanto o pedido formulado por denunciado condenado pelo
tCu para que o tribunal indicasse o nome do denunciante. em face da recusa do tCu,
foi interposto o ms nº 24.405-dF junto ao stF que, para espanto ainda maior, foi deferido.
A decisão do egrégio supremo tribunal Federal foi noticiada no Informativo STF nº 332:
66
dispõe o §1º do art. 236 do regimento interno do tribunal de Contas da união, nos seguintes termos: “salvo
expressa manifestação em contrário, o processo de denúncia tornar-se-á público após a decisão definitiva sobre
a matéria”.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
tendo em conta que a CF/88 assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo, e a
inviolabilidade à honra e à imagem das pessoas, possibilitando a indenização por dano
moral ou material daí decorrente (art. 5º, v e X), o tribunal, por maioria, deferiu mandado
de segurança impetrado contra ato do tribunal de Contas da união — que mantivera o
sigilo quanto à autoria de denúncia oferecida perante àquela Corte contra administrador
público — e declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da expressão “manter
ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia”, constante do §1º do art. 55 da
Lei orgânica daquele órgão, bem como do contido no disposto no regimento interno
do tCu, no ponto em que estabelece a permanência do sigilo relativamente à autoria da
denúncia. Considerou-se, na espécie, que, o sigilo por parte do Poder Público impediria
o denunciado de adotar as providências asseguradas pela Constituição na defesa de sua
imagem, inclusive a de buscar a tutela judicial, salientando-se, ainda, o fato de que apenas
em hipóteses excepcionais é vedado o direito das pessoas ao recebimento de informações
perante os órgãos públicos (art. 5º, XXXIII) Vencido o Min. Carlos Britto, que indeferia a
ordem – Lei 8.443/92, art. 55: “no resguardo dos direitos e garantias individuais, o tribunal
dará tratamento sigiloso às denúncias formuladas, até decisão definitiva sobre a matéria.
§1º Ao decidir, caberá ao tribunal manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da
denúncia”. (stF. ms nº 24.405-dF, Pleno. rel. min. Carlos velloso. Julg. 3.12.2003. DJ, 23
abr. 2004)
em nome do direito de o denunciado poder pedir indenização contra o denunciante e de equivocada aplicação do princípio da publicidade, o eg. stF — talvez em
uma de suas mais infelizes decisões — enfraqueceu um dos poucos instrumentos de
controle social existentes em nosso sistema jurídico.
É equivocado arguir — máxima vênia — o princípio da publicidade para dar
divulgação ao nome do denunciante. esse princípio constitucional vincula a atuação da
Administração Pública, e não o ato praticado pelo particular por meio do qual provoca
o estado com vista à apuração de atos ilícitos.
A possibilidade de qualquer indivíduo propor ação de indenização contra quem
lhe cause dano moral ou patrimonial constitui bem jurídico a ser protegido. deveria ter
sido considerado, todavia, que a realização desse direito poderia importar em enfraquecimento de outro bem, relacionado à correta aplicação dos recursos públicos e ao
dever do Estado de incentivar a participação da sociedade no processo de fiscalização
da atividade pública. no caso, ao possibilitar ao denunciado o direito de conhecer o
nome do denunciante, o stF permitiu a realização do bem jurídico voltado para a satisfação do interesse individual, opção que importou em aniquilar o outro bem jurídico,
relacionado ao interesse de toda a sociedade de fortalecer os mecanismos de controle
social dos recursos públicos.
em face da esperada inibição quanto ao ânimo para denunciar que a decisão
do stF deve exercer em quem tem conhecimento de alguma irregularidade havida na
Administração Pública,67 foi criada, no âmbito do tCu, ouvidoria para receber denúncias
de ilícitos, quer os interessados em denunciar desejem ou não se identificar.
nesse ponto, surge outra indagação: pode o tCu dar prosseguimento a denúncia
anônima? Poderia a ouvidoria do tCu protocolar denúncia apócrifa?
67
A decisão do stF deu origem à resolução do senado Federal nº 16, de 14.3.2006, que suspendeu a execução da
expressão “manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia”, constante do §1º do art. 55 da Lei
Federal nº 8.443, de 16.7.1992, e do contido no disposto no regimento interno do tribunal de Contas da união,
que, quanto à autoria da denúncia, estabelece a manutenção do sigilo.
919
920
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
Antes mesmo da criação da mencionada ouvidoria, este tema — relacionado à
possibilidade de denúncia anônima ser recebida pelo tCu — foi levado ao exame do stF.
Por meio do mandado de segurança nº 24.369-dF, foi questionado o fato de
o tCu ter instaurado procedimento com o objetivo de apurar a prática de “indícios
de irregularidades graves” realizando “inspeção para averiguação dos fatos citados”
(conforme informações prestadas pelo tCu ao stF).
o relator do feito no stF, uma vez mais o ilustre min. Celso de mello, em seu
voto quanto ao pedido de liminar formulado no mandado de segurança, manifestou-se
nos seguintes termos:
o veto constitucional ao anonimato, como se sabe, busca impedir a consumação de abusos
no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, pois, ao exigir-se a identificação
de quem se vale dessa extraordinária prerrogativa político-jurídica, essencial à própria
configuração do Estado democrático de direito, visa-se, em última análise, a possibilitar
que eventuais excessos, derivados da prática do direito à livre expressão, sejam tornados
passíveis de responsabilização, a posteriori, tanto na esfera civil, quanto no âmbito penal.
Essa cláusula de vedação — que jamais deverá ser interpretada como forma de nulificação
das liberdades do pensamento — surgiu, no sistema de direito constitucional positivo
brasileiro, com a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891 (art. 72, §12), que
objetivava, ao não permitir o anonimato, inibir os abusos cometidos no exercício concreto
da liberdade de manifestação do pensamento, viabilizando, desse modo, a adoção de
medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais
ou panfletos, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos
praticados, consoante assinalado por eminentes intérpretes daquele estatuto Fundamental
(João BArBALHo, “Constituição Federal Brasileira — Comentários”, p. 423, 2ª ed., 1924,
F. Briguiet; CArLos mAXimiLiAno, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 713,
item n. 440, 1918, Jacinto ribeiro dos santos editor). (...) na realidade, o tema pertinente
à vedação constitucional do anonimato (CF, art. 5º, iv, in fine) posiciona-se, de modo bastante claro, em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas funcionais
desviantes, considerada a obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos
postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37,
caput), torna imperioso apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público.
não é por outra razão que o magistério da doutrina admite, não obstante a existência de
delação anônima, que a Administração Pública possa, ao agir autonomamente, efetuar
averiguações destinadas a apurar a real concreção de possíveis ilicitudes administrativas,
consoante assinala JorGe uLisses JACoBY FernAndes, eminente Professor e Conselheiro do e. tribunal de Contas do distrito Federal (“tomada de Contas especial”, p. 51,
item n. 4.1.1.1.2, 2ª ed., 1998, Brasília Jurídica): “ocorrendo de a Administração vislumbrar
razoável possibilidade da existência efetiva dos fatos denunciados anonimamente, deverá
promover diligências e, a partir dos indícios coligidos nesse trabalho, instaurar a tCe”.
(Informativo STF, nº 286).
neste último caso (ms nº 24.369-dF), diante da ponderação dos valores jurídicos
envolvidos, o stF deu prevalência àqueles relacionados à “necessidade ético-jurídica
de investigação de condutas funcionais desviantes”.
no julgado anterior (ms nº 24.405-dF), em que deveriam ter sido cotejados o
direito do denunciado de conhecer o nome do denunciante e o dever de investigação
das mencionadas condutas funcionais desviantes, que, conforme observa o ilustre min.
Celso de mello, relator do ms nº 24.369-dF, “torna imperioso apurar comportamentos
eventualmente lesivos ao interesse público”, não se procedeu a essa ponderação e o
resultado, máxima vênia, não nos pareceu adequado.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Representações
o regimento interno do tCu faz referência às representações por meio das
quais as autoridades ali referidas (ministério Público, órgãos do controle interno, senadores, deputados federais, estaduais e distritais, juízes, servidores públicos e outras
autoridades mencionadas) solicitam ao tribunal a apuração de fato ou de ato ilegal.
desse modo, se cidadão deseja encaminhar ao tribunal notícia de ilegalidade, deverá
formalizar o encaminhamento por meio de denúncia; se o pedido para apuração do
mesmo fato é feito por qualquer das autoridades indicadas no regimento interno do
tCu, o instrumento a ser utilizado é a representação.
Além da representação a que se refere o regimento interno, a Lei de Licitações
(Lei nº 8.666/93), em seu art. 113, §1º, determina que “qualquer licitante, contratado
ou pessoa física ou jurídica poderá representar ao tribunal de Contas ou aos órgãos
integrantes do sistema de controle interno contra irregularidades na aplicação desta
Lei, para os fins do disposto neste artigo”.
são admitidas, portanto, duas modalidades distintas de representação. A primeira
é prevista no regimento interno do tCu, cuja legitimidade é conferida às autoridades
mencionadas e cujo propósito é a apuração de qualquer fato ou ato ilegal ou ilegítimo.
A segunda modalidade de representação é mencionada na Lei de Licitações. esta pode
ser encaminhada ao tribunal por qualquer pessoa, mas somente pode ter por objeto ato
ou fato relacionado à realização de licitações ou à execução de contratos ou convênios
celebrados pela Administração Pública.
diversamente das denúncias, que têm tramitação sigilosa, as representações, em
qualquer das duas modalidades, têm tramitação ostensiva.
Levantamentos
O levantamento constitui outro instrumento de fiscalização de que se pode
valer o tCu. nos termos do art. 238 do regimento interno do tCu, levantamento é o
instrumento de fiscalização utilizado pelo Tribunal para: 1. conhecer a organização e o
funcionamento dos órgãos e entidades da Administração direta e indireta dos poderes
da união, incluindo fundos e demais instituições que lhe sejam jurisdicionadas, assim
como dos sistemas, programas, projetos e atividades governamentais no que se refere
aos aspectos contábeis, financeiros, orçamentários, operacionais e patrimoniais; 2. identificar objetos e instrumentos de fiscalização; e 3. avaliar a viabilidade da realização de
outras fiscalizações mais aprofundadas.
Acompanhamentos
o acompanhamento, nos termos do art. 241 do regimento interno do tCu, é o
instrumento de fiscalização utilizado pelo Tribunal para: 1. examinar, ao longo de período
predeterminado, a legalidade e a legitimidade dos atos de gestão dos responsáveis sujeitos
a sua jurisdição, quanto aos aspectos contábil, financeiro, orçamentário e patrimonial; e
2. avaliar, ao longo de período predeterminado, o desempenho dos órgãos e entidades
jurisdicionadas, assim como dos sistemas, programas, projetos e atividades governamentais, quanto aos aspectos de economicidade, eficiência e eficácia dos atos praticados.
Monitoramentos
O monitoramento, conforme define o art. 243 do Regimento Interno do TCU, é
o instrumento de fiscalização utilizado pelo Tribunal para verificar o cumprimento de
921
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
922
suas deliberações e os resultados delas advindos. Conforme examinado anteriormente,
quando o TCU verifica a ocorrência de ilegalidade, ele poderá expedir determinações
aos responsáveis nas diversas unidades jurisdicionadas com vista à correção do ato
ilegal. A fim de verificar se suas determinações são cumpridas, o TCU poderá instaurar
processo de monitoramento.
18.6.6.2.3 tramitação dos processos
O terceiro aspecto relativo à fiscalização exercida pelo TCU diz respeito à condução ou tramitação dos processos no tribunal.
As auditorias, acompanhamentos e monitoramentos, que requerem a alocação de
significativo esforço por parte do Tribunal, obedecerão a plano de fiscalização elaborado
pela presidência do tCu e aprovado pelo plenário. os levantamentos e inspeções, que
são processos mais simples, e demandam, portanto, menos esforço por parte do tribunal, serão realizados independentemente de programação. em relação às denúncias e
representações, o tribunal tem o dever de dar-lhes tramitação tão logo sejam protocoladas, independentemente de qualquer programação.
Para desempenhar funções de fiscalização, a Lei Orgânica do Tribunal assegura
as seguintes prerrogativas aos servidores do tCu:68
- Livre ingresso em órgãos e entidades sujeitos à jurisdição do tribunal;
- Acesso a todos os processos, documentos e informações necessários à realização
de seu trabalho, inclusive a sistemas eletrônicos de processamento de dados,
que não poderão ser sonegados, sob qualquer pretexto;
- Competência para requerer, por escrito, aos responsáveis pelos órgãos e entidades, os documentos e informações desejados, fixando prazo razoável para
atendimento.
no caso de obstrução ao livre exercício de auditorias e inspeções, ou de sonegação
de processo, documento ou informação, o tribunal ou o ministro relator do processo no
tCu assinará prazo improrrogável de até 15 dias para sua apresentação, fazendo-se a
comunicação do fato ao ministro de estado supervisor da área ou à autoridade de nível
hierárquico equivalente, para as medidas cabíveis. vencido o prazo e não cumprida
a exigência, o tribunal aplicará multa ao responsável, podendo ainda decretar o seu
afastamento temporário se existirem indícios suficientes de que, prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção,
causar novos danos ao erário ou inviabilizar o ressarcimento da multa acaso aplicada.
Se no curso de qualquer processo de fiscalização restar configurada a ocorrência
de desfalque, desvio de bens ou outra irregularidade de que resulte dano ao erário, o
tribunal ordenará, desde logo, a conversão do processo em tomada de contas especial.69
68
69
A 2ª Turma do STF reafirmou a orientação de que o TCU não detém legitimidade para requisitar diretamente
informações que importem quebra de sigilo bancário. entendeu-se que, por mais relevantes que fossem suas
funções institucionais, o tCu não estaria incluído no rol dos que poderiam ordenar a quebra de sigilo bancário
(Lei nº 4.595/64, art. 38, e LC nº 105/2001, art. 13). Cf. ms nº 22.934/dF, rel. min. Joaquim Barbosa. Julg. 17.4.2012.
somente não será instaurada a tCe se o tribunal determinar o arquivamento do processo a título de racionalização administrativa e economia processual. será adotada esta providência caso constate que o custo da cobrança
seja superior ao valor do ressarcimento, nos termos de ato normativo editado pelo tribunal. nesta hipótese, não
haverá o cancelamento do débito, a cujo pagamento continuará obrigado o devedor, para que lhe possa ser dada
quitação.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
outro ponto a ser debatido se refere à quebra de sigilo bancário para obter
informações acerca das operações realizadas no âmbito das instituições financeiras, que
se mostrem necessárias e suficientes para que o Tribunal possa cumprir o que lhe prescreve a Constituição. A 2ª Turma do STF reafirmou a orientação de que o TCU não detém
legitimidade para requisitar diretamente informações que importem quebra de sigilo
bancário. entendeu-se que, por mais relevantes que fossem suas funções institucionais,
o tCu não estaria incluído no rol dos que poderiam ordenar a quebra de sigilo bancário
(Lei nº 4.595/64, art. 38, e LC nº 105/2001, art. 13).70
A meu ver, a questão jurídica reclama uma análise pormenorizada de suas bases
constitucionais. o sigilo bancário, ancorado no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal,
representa um instituto destinado à proteção das pessoas para coibir o uso não autorizado, indevido ou mal intencionado das informações de interesse exclusivamente
privado confiadas ao sistema bancário.
Por outro lado, tem-se o controle externo exercido pelo TCU, com a finalidade de
apurar a regularidade da gestão dos recursos sujeitos das operações bancárias realizadas
no âmbito dessas instituições financeiras.
Geralmente, a colisão de vontades consagradas em distintos preceitos da Constituição é questão enfrentada mediante a utilização de uma técnica de hermenêutica em
que se persegue, acima de tudo, a concordância prática ou a harmonização das vontades
constitucionais em conflito. Isso se faz por meio de um juízo de ponderação que tenha
por objetivo preservar e concretizar ao máximo possível os preceitos envolvidos.
somente se frustrada a tentativa de harmonização, por absoluta impossibilidade
lógica ou prática, busca-se pela prevalência de um sobre os demais ou da importância que
cada um dos preceitos envolvidos assume frente à situação que se encontra sob exame.
A meu ver, a harmonização, o sigilo bancário e o controle externo se dão nas
situações em que, no exercício de suas atribuições, o tCu tenha por imprescindível o
acesso às informações protegidas pelo sigilo bancário, devendo, então, ser franqueadas
ao tribunal somente o necessário para que o tribunal cumpra sua missão constitucional.
Para legitimar tal atuação da Corte de Contas, é preciso relembrar o já citado art. 71
da Constituição Federal, no qual o controle externo é titularidade o do Congresso nacional, que o exercerá com o auxílio do tCu. Além disso, a Lei Complementar nº 105/2001,
no seu art. 4º dispõe que “o Banco Central do Brasil e a Comissão de valores mobiliários,
nas áreas de suas atribuições, e as instituições financeiras fornecerão ao Poder Legislativo
Federal as informações e os documentos sigilosos que, fundamentadamente, se fizerem
necessários ao exercício de suas respectivas competências constitucionais e legais”.
o que claramente se pode deduzir da combinação dos normativos é que, sendo o
controle externo uma competência do Poder Legislativo, poderá este solicitar ao Banco
Central do Brasil, à Comissão de Valores Mobiliários e às instituições financeiras as
informações de que necessite para o exercício daquela competência.
Considerando, então, que o controle externo deve ser exercido com o auxílio do
tCu, nada obsta, portanto, a que o Poder Legislativo Federal solicite as informações
que se fizerem necessárias ao deslinde de matérias sob exame no âmbito do Tribunal.
Basta que essas solicitações sejam, nos termos do que dispõe o §2º do art. 4º daquela
lei complementar, previamente aprovadas pelo plenário da Câmara dos deputados,
70
stF. ms nº 22.934-dF, rel. min. Joaquim Barbosa. Julg. 17.4.2012.
923
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
924
pelo plenário do senado Federal ou pelo plenário de suas respectivas comissões
parlamentares de inquérito.
Assim, pois, quando o tCu entender necessário ter acesso às informações mantidas em instituições financeiras estatais ou privadas e protegidas pelo sigilo bancário,
haverá o tribunal de formular solicitação fundamentada nesse sentido à Câmara dos
deputados, ao senado Federal ou às comissões parlamentares de inquérito, para que
o assunto seja submetido aos plenários desses órgãos.
18.6.6.3 Processos sujeitos a registro
A Constituição Federal, em seu art. 71, iii, dispõe que compete ao tCu “apreciar,
para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título,
na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo
poder público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem
como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias
posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório”.71
A apreciação desses processos pelo tCu observa a seguinte sistemática:
1. o ato de admissão de pessoal ou de concessão de aposentadoria, reforma ou
pensão é praticado pela autoridade administrativa responsável;
2. A autoridade responsável submete o ato, acompanhado de todos os dados e
informações, ao respectivo órgão de controle interno, que deverá emitir parecer
sobre sua legalidade e torná-lo disponível à apreciação do tCu;
3. encaminhados os dados ao tCu, será determinado ou recusado o registro do
ato, conforme ele seja considerado legal ou ilegal.
no caso de ato de admissão, se o tCu o considerar ilegal, o órgão de origem
deverá fazer cessar todo e qualquer pagamento, ficando a autoridade responsável
sujeita a multa e ao ressarcimento das quantias pagas caso deixe de adotar as medidas
cabíveis. Ademais, se houver indício de procedimento culposo ou doloso na admissão
de pessoal, o tribunal determinará a instauração ou conversão do processo em tomada
de contas especial, para apurar responsabilidades e promover o ressarcimento das despesas irregularmente efetuadas.
Caso se trate de ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão considerado ilegal pelo tCu, o órgão de origem deverá igualmente cessar o pagamento
dos proventos ou benefícios, sob pena de responsabilidade solidária da autoridade
administrativa omissa.
Algumas questões têm sido suscitadas acerca das consequências da decisão do
tCu que negue registro aos mencionados atos. A primeira diz respeito a saber se a
recusa de registro por parte do tribunal — que importa em invalidação do ato —
deveria observar o prazo de cinco anos previsto na Lei nº 9.784/99.
71
Por intermédio do Acórdão nº 3.009/2012, em 08.11.2012, o plenário do Tribunal de Contas da União firmou o
entendimento de que as concessões de reparações econômicas concedidas com recursos do tesouro nacional a
anistiados políticos efetuadas mediante prestações mensais, contínuas e permanentes, com base no art. 1º, inciso
II, da Lei nº 10.559/2002, estão sujeitas à fiscalização do TCU, nos termos do art. 71, inciso IV, da Constituição
Federal.
no voto condutor do referido decisum, destacou-se que, por meio de fiscalizações, o TCU poderá também apreciar as reparações econômicas abrangidas pelo regime do anistiado político não só os casos em que os anistiados
recebam prestações mensais, mas também os pagamentos retroativos e as indenizações em parcela única.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A tese pacífica no STF reconhece à concessão de aposentadoria natureza de ato
complexo.72 desse modo, o ato praticado pelo órgão ou entidade de origem que concede
a aposentadoria (pensão ou reserva) e o registro pelo tCu constituiriam um único
ato. diante desse argumento, não haveria que se falar em aplicação do prazo de cinco
anos para o tribunal registrar o ato, posto que este somente tornar-se-ia perfeito com
a conjugação das manifestações dos dois órgãos (o que concede a aposentadoria e o
registro efetuado pelo tCu).
Conforme examinado no Capítulo 5, a definição da natureza do ato de concessão de
aposentadoria, reforma ou pensão trata-se de questão intrincada. A nosso ver, conforme
melhor examinado no mencionado Capítulo 5, o ato pelo qual o tribunal de Contas
aprecia o ato de concessão é ato de controle que não integra nem completa o ato de
concessão, mas que converte a executoriedade precária da concessão em executoriedade
definitiva.
de qualquer modo, a tese do ato complexo acolhida pelo stF resultou em construção jurisprudencial no sentido de que o tCu, quando nega registro a atos de concessão
de aposentadoria, pensão ou reforma: 1. não se sujeita ao prazo de cinco anos previsto
na Lei nº 9.784/99; e 2. não precisaria assegurar ao beneficiário direito ao contraditório
e à ampla defesa.73
em relação ao prazo dentro do qual o Tribunal deve-se manifestar, registrando ou
negando registro ao ato, concordamos com a tese firmada pelo STF de que o prazo de
cinco anos previsto na Lei nº 9.784/99 não seja aplicável ao tCu — ainda que o façamos por motivos distintos daqueles utilizados pelo eg. stF, conforme examinado no
Capítulo 5.
de se observar, todavia, que se os atos de admissão ou de concessão de aposentadoria, pensão ou registro forem considerados legais, o tribunal determinará seu
registro, e que a estes atos praticados pelo tCu se aplica o prazo de cinco anos previsto
na Lei nº 9.784/99.
esclarecemos melhor: o prazo de cinco anos previsto na mencionada Lei do Processo Administrativo (Lei nº 9.784/99) é aplicável ao tCu. ele deve ser contado, porém,
não da data em que o órgão concede a aposentadoria, pensão ou reforma, mas da data
em que o próprio tribunal tenha registrado o ato. se entre esta data — a do registro do
ato pelo tribunal — e a adoção de medidas tendentes à anulação desta decisão houver
decorrido prazo superior a cinco anos, o tribunal somente poderá rever sua decisão se
for demonstrada a má-fé do interessado.74
72
73
74
nesse sentido, vide stF. ms nº 24.927-ro, Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg. 28.9.2005. DJ, 25 ago. 2006.
nesse sentido, stF: “não ofende o art. 5º, Lv, da CF, o ato da autoridade que, sem procedimento administrativo
— e portanto sem dar ao interessado oportunidade de se manifestar —, retifica ato de sua aposentação para
excluir vantagens atribuídas em desconformidade com a lei” (re nº 185.255-AL, 1ª turma. rel. min. sydney
sanches. Julg. 1º.4.1997. DJ, 19 set. 1997).
na mesma linha, stF: “Considerar que o tribunal de Contas, quer no exercício da atividade administrativa de rever
os atos de seu Presidente, quer no desempenho da competência constitucional para julgamento da legalidade da
concessão de aposentadorias, (ou ainda na aferição da regularidade de outras despesas) esteja jungido a um processo contraditório ou contencioso, é submeter o controle externo, a cargo daquela Corte, a um enfraquecimento
absolutamente incompatível com o papel que vem sendo historicamente desempenhado pela instituição desde os
albores da República” (SS nº 514-AgR/AM, Pleno. Rel. Min. Octavio Gallotti. Julg. 6.10.1993. DJ, 03 dez. 1993).
nos termos da Lei nº 9.784/99, o prazo de cinco anos é previsto para a impugnação da validade do ato, e não para a
efetiva anulação, conforme dispõe expressamente o art. 54, §2º, da mencionada lei, in verbis: “Considera-se exercício
do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato”.
925
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
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outro importante aspecto relacionado ao registro de atos pelo tCu diz respeito
à necessidade de ser observado o contraditório e a ampla defesa. trata-se de tema igualmente
controvertido e para o qual, recentemente, o stF apresentou entendimento no mesmo
sentido do que já vinha sendo adotado pela Corte de Contas.
A jurisprudência do stF passou a exigir que se assegure a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade dos atos administrativos
concessivos de aposentadoria ou pensão ultrapassar o prazo de cinco anos, a contar da
data de chegada ao tCu do processo encaminhado pelo órgão de origem (ms nº 24.781).75
Assim, diante do lapso temporal superior a cinco anos da data de disponibilização
para o tCu do ato sujeito a registro, o interessado passa a ter o direito ao contraditório
e à ampla defesa antes da prolação da decisão pelo tribunal de Contas.76
A razão para a adoção, pelo stF, desse entendimento acerca do direito ao contraditório e à ampla defesa (CF, art. 5º, Lv), é conferir interpretação extensiva ao princípio
do devido processo legal no sentido de que qualquer decisão, judicial ou administrativa,
que importe em restrição ao exercício de direitos subjetivos, pressupõe o exercício do
devido processo legal.
no caso de aposentadoria, por exemplo, concedido o benefício pelo órgão de
origem, o interessado já se encontra no gozo do direito. em algumas situações, após
longo período — que não raramente supera o limite dos cinco anos —, o tCu nega registro ao ato e determina a imediata suspensão do pagamento dos benefícios. Como em
situação como esta não se poderia falar em ato complexo para legitimar o não exercício
do contraditório e da ampla defesa, visto que a decisão do tribunal de Contas importa
em restrição ao exercício de direito subjetivo.
todos os anos o tCu promove o exame de dezenas de milhares de atos de concessão de aposentadorias, pensões e reformas, sendo parte significativa dessas concessões
impugnadas por diversos argumentos, inclusive em razão da ocorrência de fraudes.77
75
76
77
“mandado de segurança. 2. Acórdão da 2ª Câmara do tribunal de Contas da união (tCu). Competência do
supremo tribunal Federal. 3. Controle externo de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, reformas e
pensões. inaplicabilidade ao caso da decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/99. 4. negativa de registro de aposentadoria julgada ilegal pelo tCu. decisão proferida após mais de 5 (cinco) anos da chegada do processo administrativo ao tCu e após mais de 10 (dez) anos da concessão da aposentadoria pelo órgão de origem. Princípio da
segurança jurídica (confiança legítima). Garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Exigência. 5.
Concessão parcial da segurança. I - Nos termos dos precedentes firmados pelo Plenário desta Corte, não se opera
a decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/99 no período compreendido entre o ato administrativo concessivo de
aposentadoria ou pensão e o posterior julgamento de sua legalidade e registro pelo tribunal de Contas da união
— que consubstancia o exercício da competência constitucional de controle externo (art. 71, iii, CF). ii - A recente
jurisprudência consolidada do stF passou a se manifestar no sentido de exigir que o tCu assegure a ampla defesa
e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro
de aposentadorias e pensões, ultrapassar o prazo de cinco anos, sob pena de ofensa ao princípio da confiança —
face subjetiva do princípio da segurança jurídica. Precedentes. III - Nesses casos, conforme o entendimento fixado
no presente julgado, o prazo de 5 (cinco) anos deve ser contado a partir da data de chegada ao tCu do processo
administrativo de aposentadoria ou pensão encaminhado pelo órgão de origem para julgamento da legalidade do
ato concessivo de aposentadoria ou pensão e posterior registro pela Corte de Contas.”
nesse sentido cita-se o Acórdão tCu nº 587/2011, Plenário: “representação formulada pela consultoria jurídica
do tCu. Garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. necessidade de a corte de contas assegurar a oportunidade do uso de tais direitos por parte dos interessados, dado o transcurso de lapso temporal
superior a cinco anos, quando da apreciação, para fins de registro, da legalidade de atos de pessoal. Alteração
da jurisprudência do STF acerca da matéria. Definição de providências visando à modificação de rotinas para o
exercício dessa competência pelo tribunal de Contas da união. Conhecimento. Procedência”.
os exemplos de fraude na concessão de pensões podem ser apresentados aos milhares e sob as mais variadas
formas. Exemplo de total desvirtuamento do instituto da adoção foi identificado em situação em que criança
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
igualmente inquestionável que se for exigido do tribunal, como requisito à negativa
do registro, o contraditório, independente do tempo em que ocorreu a apreciação da
legalidade, o trabalho e a burocracia no trâmite desses processos serão ampliados
significativamente.
Qualquer que seja o fundamento utilizado pelo tCu para negar registro de
aposentadoria, pensão ou reforma, quer se trate de argumento de fato, quer se trate
de argumento de direito, o tribunal deve assegurar ao interessado a oportunidade de
contraditar os fundamentos que poderiam resultar na recusa de registro. Argumentos
relacionados à existência de dificuldades operacionais para o exercício do contraditório
e da ampla defesa não legitimam a supressão do princípio constitucional do devido processo legal. desse modo, a necessidade de se assegurar contraditório em processos de
concessão de aposentadorias, pensões e reformas, após cinco anos de ingresso no tCu,
como requisito para a negativa do registro, indica uma evolução na jurisprudência do
eg. stF, adotando-se uma solução intermediária para o impasse.78 79
78
79
foi adotada pelo seu bisavô. A decisão do tCu, que negou registro à pensão, foi impugnada por meio de mandado de segurança (ms nº 24.268-mG, Pleno. rel. min. ellen Gracie. rel. p/ acórdão min. Gilmar mendes. Julg.
5.2.2004. DJ, 17 set. 2004). A relatora do mandado no stF, ministra ellen Gracie, manifestou-se nos seguintes
termos: “entre a data da escritura de adoção (fls. 166) 30.7.1984 e a data do óbito do adotante (fls. 162) 7.8.1984
decorreu apenas uma semana. oscar de moura, bisavô da impetrante, ao adotar e em seguida vir a falecer, aos
83 anos de idade, estava com câncer. As circunstâncias evidenciam simulação da adoção com o claro propósito
de manutenção da pensão previdenciária. e mais, a adoção foi feita sem a forma prescrita em lei e é nula, nos
termos dos artigos 82, 130, 145, iii e 146 do Código Civil, não podendo produzir efeitos”. o voto da relatora foi
vencido. Prevaleceu o voto proferido pelo min. Gilmar mendes: “divirjo da orientação adotada pela eminente
relatora. tenho enfatizado, relativamente ao direito de defesa, que a Constituição de 1988 (art. 5º, Lv) ampliou o
direito de defesa, assegurando aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o
contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (...) diante, porém, do pedido formulado
e da causa petendi limito-me aqui a reconhecer a forte plausibilidade jurídica desse fundamento. entendo, porém,
que se há de deferir a segurança postulada para determinar a observância do princípio do contraditório e da
ampla defesa na espécie (CF, art. 5º, Lv)”.
nesse sentido, stF: “o tribunal, por maioria, concedeu mandado de segurança impetrado contra ato do tCu,
que indeferira o registro de pensão vitalícia concedida à impetrante e determinara a devolução das quantias
recebidas, sob o fundamento de má-fé, ante a inexistência de provas da sua condição de companheira do instituidor do benefício. inicialmente, foram afastadas as preliminares de ilegitimidade passiva do tCu, por ser
este a autoridade que ordenara o cumprimento do ato, bem como o de decadência, haja vista que os efeitos da
publicação do ato administrativo não poderiam alcançar a pensionista, que não é parte regularmente integrada
no processo administrativo, devendo o prazo de 120 dias ser contado da data em que a impetrante efetivamente
tivera ciência do ato. Quanto ao mérito, tendo em conta o longo período em que a pensão vinha sendo concedida
(4 anos) e o resultado gravoso do ato impugnado, entendeu-se que a impetrante tinha o direito líquido e certo de
ser ouvida, no procedimento administrativo, por força dos princípios do contraditório e da ampla defesa, antes
de a autoridade decidir sobre a legalidade ou não da pensão percebida. o min. sepúlveda Pertence, embora
ressalvando seu entendimento quanto à possibilidade de contraditório antes da homologação do benefício,
acompanhou o voto do relator, em razão de dado peculiar do caso — a imputação de fraude — a exigir a manifestação da interessada, no que foi acompanhado pelos ministros Gilmar mendes, eros Grau e Joaquim Barbosa.
vencidos os ministros marco Aurélio e nelson Jobim, presidente, que indeferiam a ordem por considerar que,
tratando-se de ato complexo, o registro de pensão, ainda não aperfeiçoado, prescinde do contraditório. Writ
deferido para suspender a ordem de cancelamento do pagamento do benefício até que, com observância do
contraditório e da ampla defesa, seja ouvida a impetrante no processo administrativo, ficando cassada a decisão
impugnada. Precedentes citados: re 179351/sP (27.10.99); ms 24859/dF (dJu, 27 ago. 2004); ms 23816 mC/BA
(dJu, 07 fev. 2001); ms 24268/mG (dJu, 17 set. 2004); ms 22938/PA (dJu, 25 out. 2004); ms 24850/dF (dJu, 20
jun. 2005)” (ms nº 24.927-ro, Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg. 28.9.2005. DJ, 25 ago. 2006).
stF: “mandado de segurança. Ato do tribunal de Contas da união. Competência do supremo tribunal Federal. negativa de registro a aposentadoria. Princípio da segurança jurídica. Garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 1. o impetrante se volta contra o acórdão do tCu, publicado no Diário Oficial da
União. não exatamente contra o iBGe, para que este comprove o recolhimento das questionadas contribuições
previdenciárias. Preliminar de ilegitimidade passiva rejeitada. 2. infundada alegação de carência de ação, por
ausência de direito líquido e certo. Preliminar que se confunde com o mérito da impetração. 3. A inércia da Corte
927
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
928
A tese mais consentânea com o texto constitucional e com o princípio do devido
processo legal — com a devida vênia dos argumentos em sentido contrário — impõe
ao TCU o dever de assegurar aos beneficiários das mencionadas concessões direito ao
contraditório e à ampla defesa sempre que houver, por parte do tribunal, a perspectiva
de impugnação do ato independentemente do prazo decorrido entre a prática do ato
pelo órgão de origem e a decisão do tCu de negar-lhe registro.
nesse sentido, vale mencionar que em relação à determinação do tCu para a
anulação de contratos (CF, art. 71, iX), não há qualquer divergência na jurisprudência do
stF acerca da necessidade de ser assegurado ao contratado direito ao contraditório.80
Não se justifica, portanto, que no caso de negativa de registro de atos de admissão ou
de concessão de aposentadoria, pensão ou reserva, seja mantida orientação jurisprudencial diversa.
em resumo, o tCu pode negar registro aos atos sujeitos à sua apreciação a qualquer tempo, desde que assegure aos interessados direito ao contraditório e à ampla
defesa.
18.6.7 recursos contra as decisões do tCu
A Lei orgânica e o regimento interno do tCu preveem o cabimento de diversos
recursos contra as decisões proferidas pelo tribunal. nos termos do art. 277 do regimento interno, são cabíveis os seguintes recursos:
- Recurso de reconsideração – De decisão definitiva em processo de prestação
ou tomada de contas;
- Pedido de reexame – de decisão de mérito proferida em processo concernente
a ato sujeito a registro e a fiscalização de atos e contratos;
- embargos de declaração – Quando houver obscuridade, omissão ou contradição em acórdão do tribunal;
80
de Contas, por mais de cinco anos, a contar da aposentadoria, consolidou afirmativamente a expectativa do exservidor quanto ao recebimento de verba de caráter alimentar. esse aspecto temporal diz intimamente com: a)
o princípio da segurança jurídica, projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana e elemento
conceitual do estado de direito; b) a lealdade, um dos conteúdos do princípio constitucional da moralidade
administrativa (caput do art. 37). são de se reconhecer, portanto, certas situações jurídicas subjetivas ante o
Poder Público, mormente quando tais situações se formalizam por ato de qualquer das instâncias administrativas desse Poder, como se dá com o ato formal de aposentadoria. 4. A manifestação do órgão constitucional
de controle externo há de se formalizar em tempo que não desborde das pautas elementares da razoabilidade.
Todo o Direito Positivo é permeado por essa preocupação com o tempo enquanto figura jurídica, para que sua
prolongada passagem em aberto não opere como fator de séria instabilidade intersubjetiva ou mesmo intergrupal. A própria Constituição Federal de 1988 dá conta de institutos que têm no perfazimento de um certo lapso
temporal a sua própria razão de ser. Pelo que existe uma espécie de tempo constitucional médio que resume em
si, objetivamente, o desejado critério da razoabilidade. tempo que é de cinco anos (inciso XXiX do art. 7º e arts.
183 e 191 da CF; bem como art. 19 do AdCt). 5. o prazo de cinco anos é de ser aplicado aos processos de contas que tenham por objeto o exame de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, reformas e pensões.
transcorrido in albis o interregno quinquenal, a contar da aposentadoria, é de se convocar os particulares para
participarem do processo de seu interesse, a fim de desfrutar das garantias constitucionais do contraditório e
da ampla defesa (inciso LV do art. 5º). 6. Segurança concedida” (MS nº 25.116-DF, Pleno. Rel. Min. Ayres Britto.
Julg. 8.9.2010. DJe, 10 fev. 2011).
Vide stF. ms nº 23.550-dF, Pleno. rel. min. marco Aurélio. rel. p/ acórdão min. sepúlveda Pertence. Julg. 4.4.2001.
DJ, 31 out. 2001.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
- Recurso de revisão – De decisão definitiva em processo de prestação ou tomada
de contas quando se verificar erro no cálculo nas contas, falsidade ou insuficiência de documentos em que se tenha fundamentado o acórdão recorrido ou
superveniência de documentos novos com eficácia sobre a prova produzida;
- Agravo – de despacho decisório do presidente do tribunal, de presidente de
câmara ou do relator, desfavorável à parte, e da medida cautelar adotada pelo
tribunal.
À exceção do recurso de revisão, que mais se assemelha à ação rescisória, e do
agravo, a interposição de qualquer recurso no âmbito do tCu suspende os efeitos da
decisão recorrida.
em relação aos prazos para a interposição dos recursos, é possível apresentar o
seguinte quadro:
- recurso de reconsideração e pedido de reexame – quinze dias;
- embargos de declaração – dez dias;
- recurso de revisão – cinco anos;
- Agravo – cinco dias.
os prazos acima, à exceção da revisão, são contados da data em que o interessado
tenha sido notificado ou comunicado da decisão a ser impugnada, ou da publicação
do edital no Diário Oficial da União, quando a parte não for localizada. Para o recurso
de revisão, inicia-se a contagem sempre da data de publicação do acórdão no diário
Oficial da União.81
18.6.8 tribunais de Contas estaduais e municipais
A Constituição Federal, em seu art. 75, dispõe que as normas constitucionais
pertinentes ao tribunal de Contas da união “aplicam-se, no que couber, à organização,
composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal,
bem como dos tribunais e Conselhos de Contas dos municípios”. dispõe ainda o texto
constitucional que as “Constituições estaduais disporão sobre os tribunais de Contas
respectivos, que serão integrados por sete Conselheiros”.
Algumas dúvidas têm sido suscitadas acerca da composição e do funcionamento
dos tribunais de Contas estaduais (tCes).
A necessidade de ser mantida simetria com o tCu resulta, inicialmente, em que
os tCes devam ser compostos por sete conselheiros, dos quais três são indicados pelo
governador (um de livre escolha, um dentre os auditores e outro dentre os representantes do ministério Público que atuem junto ao tribunal) e quatro indicados pelas
respectivas assembleias legislativas.
Conforme disponha a Constituição estadual, haverá um único tribunal de Contas Estadual com competência para fiscalizar as contas do Estado e dos Municípios, ou
poderão ser criados dois tribunais de Contas, um para cuidar das contas estaduais e
outro para exercer o mesmo papel em relação às contas dos municípios.
É vedada, todavia, a criação, pelo município, de tribunal de Contas municipal
(CF, art. 31, §4º). Convém, portanto, esclarecer a distinção entre tribunal de Contas de
município (ou municipal) e tribunal de Contas dos municípios. no primeiro caso, em
81
regimento interno do tribunal de Contas da união, art. 288, caput.
929
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
930
que se verifica a vedação, o Município criaria Tribunal de Contas para fiscalizar a gestão
municipal; no segundo caso, hipótese autorizada pela Constituição Federal, o estado
cria Tribunal de Contas para fiscalizar a gestão de todos os Municípios82 daquele estado.
A fiscalização das contas dos Municípios pode ser feita, portanto, pelo Tribunal
de Contas estadual ou por eventual tribunal de Contas dos municípios, criados e
mantidos, em qualquer caso, pelos estados.
As atribuições dos TCEs e TCMs muito se aproximam daquelas definidas pela
Constituição Federal para o TCU, ressalvado especificamente o julgamento das contas de
governo dos prefeitos, cuja sistemática se diferencia daquela prevista pela Constituição
Federal para o julgamento das contas do Presidente da república.
Conforme examinado anteriormente, o tCu possui competência (CF, art. 71, i)
para elaborar parecer prévio às contas do Presidente da república, cabendo ao Congresso nacional a atribuição de promover seu julgamento (CF, art. 49, iX). em relação
ao julgamento das contas de governo dos governadores, os tCes seguem a mesma
sistemática das contas do Presidente da república observada pelo tCu.
no caso das contas de governo prestadas anualmente pelos prefeitos, todavia,
o parecer prévio aprovado pelo tribunal de Contas estadual ou dos municípios, conforme o caso, “só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da
Câmara municipal” (CF, art. 31, §2º). ou seja, os pareceres prévios emitidos pelo tCu
e pelos tCes, em relação às contas do Presidente da república e dos governadores,
somente têm efetividade se forem aprovados (julgados) pelo Congresso nacional ou
pelas assembleias legislativas, respectivamente. no caso das contas anuais de governo
prestadas pelos prefeitos, o parecer emitido pelo tribunal de Contas se torna efetivo,
independentemente de ser confirmado pela câmara de vereadores. Esta, ao contrário,
somente pode desconstituir o parecer aprovado pelo tribunal de Contas por decisão
de dois terços dos seus membros.
relativamente ao julgamento a ser realizado pela câmara de vereadores, o voto
proferido pelo Min. Celso de Mello por ocasião do julgamento do RE nº 235.593, firmou
a tese de que deve a câmara de vereadores assegurar ao prefeito direito ao contraditório.
transcrevemos parte do voto proferido pelo ilustre relator:
Cumpre salientar, ainda, que a Colenda Primeira turma do supremo tribunal Federal,
ao julgar o re 261.885/sP, rel. min. iLmAr GALvão, que versava matéria idêntica à
que ora se examina, decidiu nos mesmos termos ora expostos no presente ato decisório:
“PreFeito muniCiPAL. ContAs reJeitAdAs PeLA CÂmArA de vereAdores.
ALeGAdA oFensA Ao PrinCíPio do direito de deFesA (inC. Lv do Art. 5º dA
CF). sendo o julgamento das contas do recorrente, como ex-Chefe do executivo municipal,
realizado pela Câmara de vereadores mediante parecer prévio do tribunal de Contas,
que poderá deixar de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Casa Legislativa (arts. 31, §1º, e 71 c/c o 75 da CF), é fora de dúvida que, no presente caso, em que o
parecer foi pela rejeição das contas, não poderia ele, em face da norma constitucional sob
referência, ter sido aprovado, sem que se houvesse propiciado ao interessado a oportunidade de opor-se ao referido pronunciamento técnico, de maneira ampla, perante o órgão
legislativo, com vista à sua almejada reversão. recurso conhecido e provido”. A análise
82
nas disposições transitórias da Constituição Federal, foi admitida a manutenção dos dois únicos tribunais de Contas
vinculados a dois Municípios específicos, o de São Paulo e o do Rio de Janeiro.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
da presente causa evidencia que se negou, à parte ora recorrente, o exercício do direito
de defesa, não obstante se cuidasse de procedimento de índole político-administrativa,
em cujo âmbito foi proferida uma decisão impregnada de nítido caráter restritivo, apta
a afetar a situação jurídica titularizada pelo então Prefeito municipal. o fato irrecusável
é que a supressão da garantia do contraditório e o conseqüente desrespeito à cláusula
constitucional pertinente ao direito de defesa, quando ocorrentes (tal como sucedeu na
espécie), culminam por fazer instaurar uma típica situação de ilicitude constitucional,
apta a invalidar a deliberação estatal (a resolução da Câmara municipal, no caso) que
venha a ser proferida em desconformidade com tais parâmetros. sendo assim, e tendo
em consideração as razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para
dar-lhe provimento (CPC, art. 557, §1º-A), observados, para tanto, os limites materiais
indicados na petição recursal (fls. 457), em ordem a restabelecer a sentença proferida pelo
magistrado de primeira instância (fls. 409/416). Publique-se. Brasília, 31 de março de 2004.
ministro CeLso de meLLo relator. (Informativo STF, nº 342)
Feitas essas considerações acerca do controle exercido pelos tribunais de Contas,
passamos, em seguida ao estudo do controle judicial da atividade administrativa do
estado.
18.7 Controle judicial
18.7.1 sistemas de controle
A composição de disputas entre particulares e a definição da norma jurídica
aplicável ao caso concreto constituem as principais atribuições conferidas ao Poder
Judiciário. Além desta, outra relevante atividade conferida aos órgãos judiciais do
estado diz respeito ao controle a ser exercido sobre as atividades desenvolvidas pelo
próprio estado.
Ao lado da proteção à propriedade privada e do princípio da legalidade, o controle judicial das atividades estatais constitui aspecto fundamental para a definição do
estado democrático de direito. o controle judicial da Administração Pública constitui,
nesse ponto, decorrência natural do princípio da legalidade. Afinal, de nada serviria
fixar a regra segundo a qual a Administração Pública se encontra plenamente vinculada
à lei se não fossem criados mecanismos que assegurassem a observância dessa regra.
diversos sistemas têm sido concebidos para assegurar a observância, pela Administração Pública, do princípio da legalidade.
o primeiro deles, denominado de sistema do contencioso administrativo, ou sistema
francês, prevê a criação de órgão dentro da própria estrutura da Administração Pública
cuja função é assegurar: 1. a observância da lei pelas diversas unidades administrativas;
e 2. a solução dos conflitos entre estas e os particulares. De acordo com esse sistema,
as questões resolvidas pelos órgãos administrativos encarregados do controle da Administração Pública não poderiam ser levadas à apreciação perante o Poder Judiciário.
A principal característica deste sistema corresponde ao fato de que os ordenamentos
jurídicos que o adotam conferem a determinadas decisões administrativas a natureza
de coisa julgada oponível ao próprio Poder Judiciário.
nesse ponto, merece crítica a tese de que o direito Administrativo brasileiro teria
buscado no direito francês sua fonte de inspiração. ora, se a principal característica
do direito Administrativo francês corresponde à adoção do sistema do contencioso
931
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
932
administrativo, e dado que o Brasil adota solução diversa, como é possível afirmar que
o Brasil segue o modelo francês se sua principal característica não é acolhida em nosso
modelo administrativo?
o Brasil, em matéria de controle da Administração Pública, adota o sistema da
jurisdição única.
A adoção desse sistema decorre da regra constante na Constituição Federal, art. 5º,
XXXv, que determina que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”.
o modelo constitucional vigente resgata o princípio democrático na medida
em que assegura que todas as pendências que envolvam a Administração Pública e os
particulares se sujeitem à apreciação de órgãos dotados de plena autonomia e independência. As garantias previstas na Constituição Federal (art. 95, caput) em favor dos
magistrados não são conferidas tendo em vista a existência de prerrogativas ou privilégios, mas com o propósito de assegurar aos cidadãos a certeza de que seus conflitos
com o estado serão decididos por agentes públicos independentes.
18.7.2 Limites ao controle judicial
diversamente do que dispunha o texto constitucional de 1967, com as alterações
inseridas pelos Atos institucionais, especialmente o de número 5, que previa temas que
não poderiam ser levados à apreciação judicial, a vigente Constituição Federal prevê a
possibilidade de todas as matérias poderem ser levadas à apreciação judicial.
o texto constitucional deixa expresso que é vedado à lei criar situações em que
o controle judicial não possa ser exercido. Há hipóteses, todavia, em que, a partir do
que dispõe o próprio texto constitucional, é possível admitir que o controle judicial seja
exercido de forma mitigada em relação à atuação de certos órgãos.
É o que se verifica, por exemplo, com a definição das questões interna corporis das
casas legislativas. Nesse ponto, não se pode deixar de verificar a ocorrência de significativo avanço na jurisprudência do eg. stF acerca dos limites ao controle exercido pelo
Poder Judiciário sobre o processo legislativo. de posições extremamente preocupadas
com o respeito à liberdade das casas legislativas, o stF tem avançado no sentido de
requerer, em qualquer caso, a plena observância à Constituição Federal, e não se tem
admitido que o pretexto de que determinada decisão produzida em casa legislativa
seja de natureza interna corporis poderia impedir a verificação, pelo Poder Judiciário, da
plena observância da Constituição Federal e das normas regimentais aplicáveis.83 desse
modo, questões de conveniência política das casas legislativas — da mesma forma que
o mérito administrativo — não se sujeitam à apreciação judicial, salvo se contrariarem a
83
no julgamento do ms nº 24.849-dF (Pleno. rel. min. Celso de mello. Julg. 22.6.2005. DJ, 29 set. 2006), por exemplo, o stF concedeu liminar para determinar ao Presidente do Congresso nacional que indicasse os membros
de Comissão Parlamentar de inquérito. impensável, dez anos atrás, a adoção desta decisão em razão do sempre
apresentado argumento de que se trataria de questão interna corporis. em praticamente todas as recentes oportunidades em que o argumento de que a decisão adotada pela Casa Legislativa se basearia em decisão interna
corporis, o stF tem repelido a argumentação. nesse sentido, stF: Adi nº 3.146-dF, Pleno. rel. min. Joaquim
Barbosa. Julg. 11.5.2006. DJ, 19 dez. 2006; Adi nº 2.461-rJ, Pleno. rel. min. Gilmar mendes. Julg. 12.5.2005. DJ,
07 out. 2005; re nº 413.327-BA, 2ª turma. rel. min. Joaquim Barbosa. Julg. 14.12.2004. DJ, 03 jun. 2005; e ms
nº 24.832-mC/dF, Pleno. rel. min. Cezar Peluso. Julg. 18.3.2004. DJ, 18 ago. 2006. neste último julgado, o stF
argumenta que a alegação de que se trataria de ato interna corporis não poderia importar em restrição ao exercício de direitos individuais.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
Constituição Federal ou importarem, de algum modo, em violação de direito subjetivo
público de parlamentar ou de terceiro.84
outra questão que, no passado, era apresentada como insuscetível de sindicância
pelo Poder Judiciário dizia respeito aos denominados atos políticos (ou de governo). este
tema já foi examinado no Capítulo 5. Aqui, cumpre-nos tão somente relembrar que
esta categoria especial de ato foi desenvolvida com o específico propósito de torná-lo
imune ao controle judicial.
determinados atos praticados pelo Presidente da república, como o veto ou a
apresentação de projeto de lei ou a edição de medida provisória, são normalmente apresentados como exemplos de atos de governo em função do elevado nível de interferência
política em sua formação e de serem regulados diretamente por normas constitucionais.
Conforme examinado no Capítulo 5, as dificuldades para o seu enquadramento em
qualquer das três categorias de atos praticados pelo estado (administrativo, legislativo
e judicial) resultaram na indevida criação desta categoria especial de ato.
entre nós, em razão do princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação
judicial, a existência desta categoria de ato, além de ser desprovida de fundamentação
teórica, torna-se totalmente desprovida de sentido prático.
vê-se, portanto, que todo e qualquer ato praticado pelo Estado deve-se sujeitar ao
controle judicial.
o controle a ser realizado pelo Poder Judiciário é controle de legalidade, ou de
legitimidade. isto importa em que o exame a ser empreendido pelo Poder Judiciário
deve-se ater à verificação da conformidade do ato com o ordenamento jurídico. Todos
os atos, vinculados ou discricionários, sujeitam-se ao controle de legalidade judicial.
A própria discricionariedade se sujeita, em função da aplicação do princípio da razoabilidade, ao controle de legalidade judicial. o mérito do ato administrativo, isto é, o juízo
de conveniência e de oportunidade de que se vale o administrador para construir a
melhor solução para os casos concretos em situações em que a lei tenha conferido
discricionariedade é imune ao controle judicial. Estas afirmações devem ser examinadas,
todavia, com muito cuidado.
18.7.3 etapas para o controle judicial da discricionariedade
A simples arguição de discricionariedade administrativa, ou de que o mérito do
ato não está sujeito a controle judicial, conforme já examinado, não justifica o afastamento da apreciação do ato pelo Poder Judiciário.85
84
85
nesse sentido, stF: “A ratio subjacente a esse entendimento jurisprudencial apóia-se na relevantíssima circunstância de que, embora extraordinária, essa intervenção jurisdicional, ainda que instaurada no próprio momento
de produção das normas pelo Congresso Nacional, tem por precípua finalidade assegurar, ao parlamentar (e a
este, apenas), o direito público subjetivo — que lhe é inerente — de ver elaborados, pelo Legislativo, atos estatais
compatíveis com o texto constitucional, garantindo-se, desse modo, àqueles que participam do processo legislativo, a certeza de prevalecimento da supremacia da Constituição, excluídos, necessariamente, no que se refere
à extensão do controle judicial, os aspectos discricionários concernentes às questões políticas e aos atos interna
corporis, que se revelam essencialmente insindicáveis (rtJ 102/27 – rtJ 112/598 – rtJ 112/1023 – rtJ 169/181182)” (ms nº 24.645-mC/dF, decisão monocrática. rel. min. Celso de mello. Julg. 8.9.2003. DJ, 15 set. 2003).
em igual sentido: “É por essa razão que a jurisprudência constitucional do supremo tribunal Federal jamais tolerou
que a invocação da natureza interna corporis do ato emanado das Casas legislativas pudesse constituir um ilegítimo
manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários do Poder Legislativo” (stF. ms nº 24.458-mC/dF, decisão
monocrática. rel. min. Celso de mello. Julg. 18.2.2003. DJ, 21 fev. 2003).
em se tratando de anulação de ato discricionário, o Poder Judiciário se restringe a invalidar o ato. o processo
deve ser em seguida restituído à autoridade administrativa competente para a prática do novo ato. nesse sentido,
933
934
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
A tutela judicial a ser empreendida em face da discricionariedade administrativa
é tarefa que requer cuidado e que se deve realizar em diferentes etapas.
A primeira etapa desse processo consiste no exame da própria legislação que
tenha fundamentado a prática do ato a fim de verificar se ela efetivamente confere liberdade ao administrador para a adoção de mais de uma solução possível. A segunda
etapa corresponde à avaliação da situação ou circunstância de fato ou de direito que,
segundo o administrador, tenha justificado a prática do ato — etapa que corresponde
ao exame dos motivos do ato. em terceiro lugar, ou como terceira etapa do processo
de controle judicial da discricionariedade administrativa, deve-se proceder à avaliação
de ponderação ou de razoabilidade da solução adotada em face da lei, e dos motivos
invocados para a prática do ato. em quarto lugar, cabe ao Poder Judiciário examinar
se as regras procedimentais aplicáveis ao caso foram atendidas, especialmente aquelas
relacionadas à observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa. desse
modo, não obstante o mérito do ato administrativo não se sujeite ao controle judicial,
todos estes aspectos podem ser examinados pelo Poder Judiciário, e, verificada ilegalidade, o ato deve ser anulado.
Um dos mais modernos fenômenos verificados no Direito Administrativo está
relacionado à procedimentalização das manifestações de vontade da Administração Pública.
os atos administrativos não são mais considerados atos isolados, mas decorrentes de
uma manifestação que se formou ao longo de determinado processo administrativo.
esta constatação desloca a importância ou o foco do ato para o processo no sentido de
que o controle do ato deve necessariamente envolver o exame do processo do qual ele
resultou. desse modo, os atos discricionários decorrem de processos administrativos e se
sujeitam a controle, e por meio do controle desses processos de formação da manifestação
de vontade da Administração Pública se torna mais simples o controle da legitimidade
do ato discricionário.
Vícios processuais, falhas ou falta de motivação, eventuais desvios de finalidade
são facilmente percebíveis nos atos discricionários quando se examina o processo administrativo de formação da vontade administrativa.
18.7.4 intensidade do controle judicial da atividade administrativa:
teoria da reserva da Administração
no exame da intensidade com que é exercido o controle judicial sobre a atividade
administrativa, não se pode reconhecer primazia do Poder Judiciário em relação aos
demais poderes da República. Este aspecto é fundamental para a definição do ponto
de equilíbrio, para a “harmonia” e a “independência” com que devem atuar os poderes
da república, conforme dispõe a Constituição Federal (art. 2º).
stJ: “Administrativo. mandado de segurança. Processo administrativo disciplinar. vícios formais. inexistência.
Decadência não operada. Aplicação da pena de demissão. Desproporcionalidade verificada na espécie. Segurança
concedida em parte. 1. Preliminares afastadas. decadência não operada. 2. A punição administrativa há de se
nortear, porém, segundo o princípio da proporcionalidade, não se ajustando à espécie a pena de demissão, ante a
insignificância da conduta do agente, consideradas as peculiaridades da espécie. 3. Segurança concedida em parte
para o fim específico de anular-se a Portaria n. 944, de 27 de agosto de 2002, que demitiu o impetrante do cargo
de Agente Administrativo do instituto nacional do seguro social – inss, sem prejuízo de eventual apenamento
menos gravoso, pelas infrações disciplinares detectadas, a partir do procedimento administrativo disciplinar instaurado” (ms nº 8.845-dF, 3ª seção. rel. min. Hélio Quaglia Barbosa. Julg. 14.12.2005. DJ, 06 fev. 2006).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A Constituição Federal confere ao Poder Judiciário a importante missão de
interpretar a Constituição. isto equivale a dizer que a Constituição será o que o Poder
Judiciário disser que ela é. de qualquer modo, os poderes constituídos são — ou devem
ser — harmônicos, e essa harmonia deve ser valorizada pelo próprio Judiciário no exercício da sua missão de intérprete maior do texto constitucional. A cláusula constitucional
que zela pela preservação do equilíbrio entre os poderes é de importância tão elevada
que sequer emenda à Constituição poderá aboli-la (CF, art. 60, §4º, iii).
se deve ser reconhecida e valorizada a soberania da função estatal de julgar,
o mesmo deve ocorrer em relação às demais funções estatais, inclusive em relação à
função de administrar.
o equilíbrio entre as diferentes funções do estado, que devem atuar de forma
harmônica e interdependente, é definido e deve ser exercido nos limites e nas hipóteses
fixadas pela Constituição Federal. O grande desafio consiste em definir, a partir da Constituição, esses limites. Esse desafio decorre, em grande parte, da aparente contradição que
opõe, de um lado a possibilidade de todos os atos estarem sujeitos ao controle judicial,
e do outro, a harmonia entre os poderes.
sob a ótica da harmonia entre os poderes, o primeiro aspecto a ser considerado
diz respeito à existência do que se tem denominado reserva da administração. de acordo
com o administrativista edehard schmidt-Assmann:
una reserva de tal tipo no puede tener otro fundamento que no sea la idea de la existencia
dentro de cada poder de un ámbito nuclear, idea ésta inherente a la teoría de la división
de poderes. según ésta, a ningún poder le está permitido penetrar en los ámbitos centrales
de conformación de otro poder. (...) el núcleo esencial de responsabilidad del ejecutivo
no comprende, sin embargo, sectores materiales o funcionales determinados, sino una
serie de formas de actuación, recursos, procedimientos y dispositivos organizativos que
resultan imprescindibles para la capacidad de funcionamiento del segundo Poder.86
A jurisprudência pátria tem reconhecido a existência dessa zona nuclear da
atividade administrativa do estado. no julgamento do Agrg no resp nº 261.144-sP, o
stJ se manifestou no sentido de que:
1. O Poder Judiciário, no exercício da função jurisdicional, deve observância aos princípios constitucionais, inclusive ao da independência e harmonia entre poderes (art. 2º, CF).
2. A observância das normas constitucionais delimita a interpretação e o âmbito de aplicação da legislação infraconstitucional.
3. não compete ao Judiciário, no seu mister, editar normas genéricas e abstratas de conduta,
nem fixar prioridades no desenvolvimento de atividades de administração.
4. Ao Poder executivo compete analisar a conveniência e oportunidade da adoção de
medidas administrativas. (stJ. Agrg no resp nº 261.144-sP, 2ª turma. rel. min. Paulo
medina. Julg. 6.9.2001. DJ, 10 mar. 2003, grifos nossos)
idêntica tese foi adotada pelo stJ por ocasião do julgamento do ms nº 9.384-dF:
em relação ao controle jurisdicional do processo administrativo, a atuação do Poder Judiciário circunscreve-se ao campo da regularidade do procedimento, bem como à legalidade
86
sCHmidt-AssmAnn. La teoría general del derecho administrativo como sistema: objeto y fundamentos de la construcción sistemática, p. 217-218.
935
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
936
do ato demissionário, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo a fim
de aferir o grau de conveniência e oportunidade. (stJ. ms nº 9.384-dF, 3ª seção. rel. min.
Gilson dipp. Julg. 23.6.2004. DJ, 16 ago. 2004)
A jurisprudência do stF segue raciocínio idêntico. no julgamento do rms
nº 21.362-dF, o relator, ministro Celso de mello, manifestou-se no sentido da “incompetência da autoridade judiciária para ordenar, em sede mandamental, a substituição do
órgão apontado como coator”.87 o mesmo relator — o sempre brilhante ministro Celso
de mello — já havia defendido idêntico entendimento no julgamento do ms nº 20999/dF:
o mandado de segurança desempenha nesse contexto, uma função instrumental do maior
relevo. A impugnação judicial do ato disciplinar, mediante utilização desse writ constitucional, legitima-se em face de três situações possíveis, decorrentes (1) da incompetência
da autoridade, (2) da inobservância das formalidades essenciais e (3) da ilegalidade da
sanção disciplinar. A pertinência jurídica do mandado de segurança, em tais hipóteses,
justifica a admissibilidade do controle jurisdicional sobre a legalidade dos atos punitivos
emanados da administração pública no concreto exercício do seu poder disciplinar. O que
os juízes e tribunais somente não podem examinar nesse tema, até mesmo como natural decorrência
do princípio da separação dos poderes são a conveniência, a utilidade, a oportunidade e a necessidade da punição disciplinar. (stF. ms nº 20.999-dF, Pleno. rel. min. Celso de mello. Julg.
21.3.1990. DJ, 25 maio 1990, grifos nossos)
A necessidade de serem fixados limites à intensidade com que se exerce o controle
judicial sobre a atuação administrativa interessa não apenas ao administrador público,
que deve ter sempre a consciência de que seus atos estão sujeitos a esse controle, mas
ao próprio Poder Judiciário.
no Brasil, as estatísticas88 indicam que grande parte das ações judiciais em curso
são propostas pelo estado ou contra ele. essas ações são propostas em volume tão
elevado que comprometem a capacidade do Poder Judiciário de exercer suas funções
judiciais. A maior vítima desse processo não é o juiz, mas a própria sociedade, que deixa
de contar com a segurança necessária à proteção de seus direitos subjetivos em face
do exagerado volume de processos judiciais que impedem o bom funcionamento da
administração judiciária. são necessárias regras constitucionais e processuais modernas a fim de melhorar a atuação da função jurisdicional do Estado. Mas é igualmente
necessária a fixação de limites à intensidade com que se exerce o controle judicial sobre
os atos da Administração Pública.
A evolução da sociedade, as novas demandas sociais e a implantação do estado
moderno, de marcante atuação no campo social e econômico, reclamam cada vez mais
a participação e a interferência da Administração Pública na vida social, o que não
necessariamente é feito por meio de medidas impositivas. diante desse contexto,
impõe-se a redefinição do papel desempenhado pelo controle judicial como instrumento para a realização e proteção dos direitos fundamentais na sociedade.89
87
88
89
stF. rms nº 21.362-dF, 1ª turma. rel. min. Celso de mello. Julg. 14.4.1992. DJ, 26 jun. 1992.
servimo-nos aqui de pesquisa realizada pela diretoria Geral de Apoio ao segundo Grau de Jurisdição do
tribunal de Justiça do estado do rio de Janeiro, datada de 7 de julho de 2004.
nesse sentido, stF: “Crianças e adolescentes vítimas de abuso e/ou exploração sexual. dever de proteção integral
à infância e à juventude. obrigação constitucional que se impõe ao poder público. Programa sentinela – Projeto
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
18.7.5 Controle judicial e arbitragem
A utilização da arbitragem — mecanismo extrajudicial de solução de conflitos
— no Brasil se encontra regulada pela Lei nº 9.307/96. sem fazer qualquer referência
expressa à utilização de cláusula arbitral pela Administração Pública, o art. 1º da lei
simplesmente admite a utilização da arbitragem para “dirimir litígios relativos a direitos
patrimoniais disponíveis”.
18.7.5.1 Arbitragem e inafastabilidade da apreciação judicial
o primeiro aspecto tormentoso do tema diz respeito à possibilidade de o compromisso arbitral impedir, nos termos da Lei nº 9.307/96, qualquer das partes de levar a
decisão proferida pelo tribunal arbitral à apreciação judicial. esta dúvida foi enfrentada
pelo stF no julgamento do se nº 5.206-Agr/eP. Por maioria, o eg. stF declarou constitucional a Lei nº 9.307/96, “por considerar que a manifestação de vontade da parte na
cláusula compromissória no momento da celebração do contrato e a permissão dada
ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar compromisso não
ofendem o art. 5º, XXXv, da CF (‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito’)”.90
esta decisão é importante porque — ao menos em matéria de litígios relativos a direitos
patrimoniais disponíveis — admite que o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial
possa ser mitigado pela própria vontade das partes firmada em compromisso arbitral.
não se tratou, todavia, nem na lei, nem na supracitada decisão do stF, da utilização da
cláusula arbitral pela Administração Pública.
18.7.5.2 Arbitragem, contratos administrativos e indisponibilidade do
interesse público
outra questão controvertida acerca da arbitragem diz respeito à possibilidade de
os contratos administrativos, especialmente contratos de concessão de serviços públicos, conterem cláusulas compromissórias que sujeitam a solução de conflitos ao juízo
arbitral. Nesse ponto, convém observar que parte significativa da doutrina entende
ser essa pretensão descabida em razão da sujeição desses contratos ao regime jurídico
público e à indisponibilidade do interesse público.
90
Acorde. inexecução, pelo município de Florianópolis/sC, de referido programa de ação social cujo adimplemento
traduz exigência de ordem constitucional. Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão inconstitucional
imputável ao município. desrespeito à constituição provocado por inércia estatal (rtJ 183/818-819). Comportamento que transgride a autoridade da lei fundamental (rtJ 185/794-796). impossibilidade de invocação, pelo
poder público, da cláusula da reserva do possível sempre que puder resultar, de sua aplicação, comprometimento
do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191-197). Caráter cogente e vinculante das normas constitucionais, inclusive daquelas de conteúdo programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas.
Plena legitimidade jurídica do controle das omissões estatais pelo poder judiciário. A colmatação de omissões
inconstitucionais como necessidade institucional fundada em comportamento afirmativo dos juízes e tribunais e
de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito. Precedentes do supremo tribunal federal em tema
de implementação de políticas públicas delineadas na constituição da república (rtJ 174/687 - rtJ 175/1212-1213
- rtJ 199/1219-1220). recurso extraordinário do ministério Público estadual conhecido e provido” (re nº 482.611-sC,
decisão monocrática. rel. min. Celso de mello. Julg. 23.3.2010. DJe, 07 abr. 2010).
stF. se nº 5.206-Agr/eP - espanha, Pleno. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 12.12.2001. DJ, 30 abr. 2004.
937
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
938
essa linha de orientação foi adotada pelo tCu no julgamento do processo em que
se discutia a possibilidade de utilização da arbitragem na contratação de energia elétrica
por parte da Comercializadora Brasileira de energia emergencial (CBee), empresa
pública vinculada ao mme (Acórdão nº 584/03, 2ª Câmara). no voto proferido, o relator
do mencionado acórdão bem sintetizou a questão: “os serviços de energia elétrica são
serviços públicos exclusivos do estado, sendo, nesse caso, inadmissível à Administração
dispor, ao seu arbítrio, do interesse público, em não havendo autorização legislativa específica
para a utilização da arbitragem nos contratos administrativos celebrados pela CBee com os
produtores independentes de energia” (grifos nossos).
no âmbito do Poder Judiciário, ao que parece, a tendência é de se admitir a possibilidade do juízo arbitral nos contratos em que figure em um dos polos sociedade de
economia mista. o precedente do superior tribunal de Justiça (Agrg no ms nº 11.308-dF)
tratou do conflito entre sociedade de economia mista e empresa permissionária relativo
a permissão de uso de área portuária.91
91
oportuno transcrever excertos da ementa do sobredito aresto, verbis:
“Administrativo. mandado de segurança. Permissão de área portuária. Celebração de cláusula compromissória.
Juízo arbitral. sociedade de economia mista. Possibilidade. Atentado. (...)
8. deveras, é assente na doutrina e na jurisprudência que indisponível é o interesse público, e não o interesse da
administração.
9. nesta esteira, saliente-se que dentre os diversos atos praticados pela Administração, para a realização do
interesse público primário, destacam-se aqueles em que se dispõe de determinados direitos patrimoniais, pragmáticos, cuja disponibilidade, em nome do bem coletivo, justifica a convenção da cláusula de arbitragem em
sede de contrato administrativo.
10. nestes termos, as sociedades de economia mista, encontram-se em situação paritária em relação às empresas
privadas nas suas atividades comerciais, consoante leitura do artigo 173, §1º, inciso ii, da Constituição Federal,
evidenciando-se a inocorrência de quaisquer restrições quanto à possibilidade de celebrarem convenções de
arbitragem para solução de conflitos de interesses, uma vez legitimadas para tal as suas congêneres.
11. destarte, é assente na doutrina que ‘Ao optar pela arbitragem o contratante público não está transigindo com
o interesse público, nem abrindo mão de instrumentos de defesa de interesses públicos, está, sim, escolhendo
uma forma mais expedita, ou um meio mais hábil, para a defesa do interesse público. Assim como o juiz, no
procedimento judicial deve ser imparcial, também o árbitro deve decidir com imparcialidade, o interesse
público não se confunde com o mero interesse da Administração ou da Fazenda Pública; o interesse público está
na correta aplicação da lei e se confunde com a realização correta da Justiça’ (in artigo intitulado ‘da validade
de Convenção de Arbitragem Pactuada por sociedade de economia mista’, de autoria dos professores Arnold
Wald, Athos Gusmão Carneiro, Miguel Tostes de Alencar e Ruy Janoni Doutrado, publicado na Revista de
direito Bancário do mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 18, ano 5, outubro-dezembro de 2002, página 418).
12. em verdade, não há que se negar a aplicabilidade do juízo arbitral em litígios administrativos, em que presente direitos patrimoniais do estado, mas ao contrário, até mesmo incentivá-la, porquanto mais célere, nos termos do artigo 23 da Lei 8987/95, que dispõe acerca de concessões e permissões de serviços e obras públicas, que
prevê em seu inciso Xv, entre as cláusulas essenciais do contrato de concessão de serviço público, as relativas ao
‘foro e ao modo amigável de solução de divergências contratuais’.
13. Precedentes do supremo tribunal Federal: se 5206 Agr/eP, de relatoria do min. sepúlveda Pertence, publicado no dJ de 30-04-2004 e Ai. 52.191, Pleno, rel. min. Bilac Pinto. in rtJ 68/382 – ‘Caso Lage’. Cite-se ainda ms
199800200366-9, Conselho especial, tJdF, J. 18.05.1999, relatora desembargadora nancy Andrighi, dJ, 18.08.1999.
14. Assim, é impossível desconsiderar a vigência da Lei 9.307/96 e do artigo 267, inc. vii do CPC, que se aplicam
inteiramente à matéria sub judice, afastando definitivamente a jurisdição estatal no caso dos autos, sob pena de
violação ao princípio do juízo natural (artigo 5º, Lii da Constituição Federal de 1988).
15. É cediço que o juízo arbitral não subtrai a garantia constitucional do juiz natural, ao contrário, implica realizá-la,
porquanto somente cabível por mútua concessão entre as partes, inaplicável, por isso, de forma coercitiva, tendo
em vista que ambas as partes assumem o ‘risco’ de serem derrotadas na arbitragem. Precedente: resp nº 450881 de
relatoria do ministro Castro Filho, publicado no dJ, 26.05.2003:
16. deveras, uma vez convencionado pelas partes cláusula arbitral, será um árbitro o juiz de fato e de direito da
causa, e a decisão que então proferir não ficará sujeita a recurso ou à homologação judicial, segundo dispõe o artigo
18 da Lei 9.307/96, o que significa dizer que terá os mesmos poderes do juiz togado, não sofrendo restrições na sua
competência.” (stJ. Agrg no ms nº 11.308-dF, 1ª seção. rel. min. Luiz Fux. Julg. 28.6.2006. DJ, 14 ago. 2006).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
não há dúvida de que este julgado constitui importante precedente. É importante
ressaltar, no entanto, que a tese adotada pelo STJ foi firmada em caso de utilização do
juízo arbitral em contrato celebrado por sociedade de economia mista, que se submete, nos
termos do art. 173, §1º, da Constituição Federal, ao regime jurídico privado, sendo-lhes
aplicável o direito Administrativo somente nas hipóteses e situações expressamente
previstas na Constituição Federal. este precedente não permite inferir, portanto, que
seja legítimo utilizar cláusula arbitral em todos os contratos celebrados pela Administração Pública.
É de se exigir cautela a quem pretenda transportar as conclusões constantes do
mencionado precedente do stJ para os contratos administrativos.
diogo de Figueiredo moreira neto defende, a partir da distinção clássica entre
interesses públicos primários e secundários, a utilização do juízo arbitral em contratos
administrativos como forma de melhor realizar o interesse público secundário. Afirma
o autor:
em outros termos e mais sinteticamente: está-se diante de duas categorias de interesses
públicos, os primários e os secundários (ou derivados), sendo que os primeiros são indisponíveis e o regime público é indispensável, ao passo que os segundos têm natureza
instrumental, existindo para que os primeiros sejam satisfeitos, e resolvem-se em relações
patrimoniais e, por isso, tornaram-se disponíveis na forma da lei, não importando sob
que regime.92
A par da aludida distinção entre interesses primários e secundários do estado,
com o objetivo de verificar a legitimidade da utilização da arbitragem em contratos
administrativos, é importante distinguir o sentido e o alcance das expressões “direitos
patrimoniais disponíveis” e “indisponibilidade do interesse público”, posto que “não
há qualquer relação entre disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais
e disponibilidade ou indisponibilidade de interesse público” (conforme trecho do voto
proferido pelo ministro relator do mencionado Agrg no ms nº 11.308-dF). em outras
palavras, o fato de a Lei nº 9.307/96 somente admitir a utilização do juízo arbitral para
questões relativas a direitos patrimoniais disponíveis em nada afeta a disponibilidade ou a
indisponibilidade do interesse público. A disponibilidade do interesse público é medida
em razão do que dispõe o ordenamento jurídico. o juízo do administrador no sentido
de que o interesse público será melhor realizado com a utilização do juízo arbitral,
ou com a sua vedação, é irrelevante. É necessário verificar em que hipóteses o Direito
Administrativo admite a utilização desse sistema de composição de lides.
nesse ponto, é necessário destacar a inclusão do art. 23-A na Lei nº 8.987/95,
promovida pela Lei nº 11.196/2005, que expressamente prevê que “o contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas
decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no
Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996”.
em razão do advento dessa regra legal, a discussão sobre o uso da arbitragem
em contratos de concessão se transfere da possibilidade ou não de sua utilização para a
delimitação da extensão e do alcance da aplicação desse instituto (e de outros mecanismos
92
Cf. moreirA neto. Arbitragem nos contratos administrativos. Revista de Direito Administrativo – RDA, p. 81-90.
939
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
940
privados de solução de divergência) nos serviços públicos concedidos, tendo em vista
que a própria lei de arbitragem somente admite sua utilização para dirimir questões
relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis.
A discussão de que a arbitragem importa em tornar o interesse público disponível
perde o sentido. o interesse público está diretamente relacionado: 1. ao cumprimento dos
princípios constitucionais, especialmente àqueles relacionados à realização dos direitos
fundamentais; 2. à observância da lei; e 3. à realização do princípio da economicidade.
O conteúdo do interesse público não é definido, portanto, pelo administrador público;
é o próprio ordenamento jurídico que fixa os parâmetros para sua definição.
Ora, se a lei é o parâmetro para a definição do interesse público, e se ela expressamente admite a utilização do juízo arbitral em contratos de concessão de serviço
público, não nos parece correto afirmar que a utilização da cláusula compromissória
em referidos contratos importaria em violação do interesse público (primário).
As concessões de serviço público se apresentam — salvo melhor juízo — como
campo apropriado à utilização da arbitragem tendo em vista que boa parte das controvérsias ali instauradas se refere a questões de ordem técnica ou econômica. A perspectiva
de o juízo arbitral resultar em decisões rápidas, juridicamente adequadas e tecnicamente
fundamentadas, recomenda sua utilização em contratos de concessão de serviço público
como meio para a realização do interesse público primário e secundário. desse modo,
a utilização da arbitragem, em última instância, não compromete, mas preserva a segurança jurídica do contrato e afasta o que atualmente vem-se denominando “incerteza
jurisdicional”,93 o que permite a realização do interesse público secundário.
Resta verificar se a possibilidade de utilização da arbitragem em contratos celebrados por empresas estatais exploradoras de atividades empresariais (conforme o julgado
do stJ mencionado) e em contratos de concessão de serviço público permite concluir
que é legítima a utilização dessa sistemática nos demais contratos administrativos.
no caso das empresas estatais, a cláusula compromissória é admitida em
função da adoção do regime jurídico privado. os contratos de concessão de serviço
público igualmente admitem o juízo arbitral em função de expressa autorização legal
(Lei nº 8.987/95, art. 23-A).
em relação aos demais contratos administrativos, a inexistência de expressa autorização legal não deve impedir a utilização da arbitragem. A regra contida na Lei nº 8.987/95
(art. 23-A) pode ser utilizada, por analogia, para permitir a utilização do juízo arbitral nos
demais contratos administrativos pelas seguintes razões.
A partir da vigência deste dispositivo da lei de concessões, não mais se pode afirmar
que o instituto da arbitragem seja estranho ou incompatível com a atividade administrativa do estado, ou ainda que seja imprópria para a solução de questões relacionadas aos
contratos administrativos.
93
essa expressão, proposta pelos economistas Persio Arida, edmar Bacha e André Lara-resende (In: High interest
rates in Brazil: Conjectures on the Jurisdictional uncertainty. Núcleo de Estudos de Política Econômica, Casa das Garças – NUPE/CdG. Disponível em: <http://www.econ.puc-rio.br/mgarcia/Macro%20II/ABRrevised.040303.PDF>),
refere-se ao custo indireto, de transação, associado às incertezas regulatórias dos investimentos realizados no
Brasil. A “incerteza jurisdicional” decorre, segundo os referidos economistas, da insegurança gerada pelos múltiplos e conflitantes controles estatais a que se sujeitam os investimentos realizados no Brasil. Isso faz despertar nos
investidores a desconfiança e o temor de que os contratos não serão cumpridos conforme celebrados. A alta “incerteza
jurisdicional” dificulta ou mesmo inviabiliza os investimentos no País, principalmente os de longo prazo. Para
os citados economistas, a “incerteza jurisdicional” brasileira concorre decisivamente para as altas taxas de juros
oferecidas pelo Brasil aos investidores como forma de compensar os altos riscos em que estes incorrem.
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o instituto da arbitragem tem suas origens no direito Privado, e foi desenvolvido
como meio para a solução de conflitos entre particulares. A vigência do mencionado
art. 23-A da Lei de Concessões, no entanto, faz com que o instituto não possa mais ser
tido como inconciliável com o interesse público ou estranho à solução de conflitos em
contratos administrativos, não obstante sua origem privatista.
nesse ponto, convém recordar que a Lei nº 8.666/93, em seu art. 54,94 expressamente admite a utilização, em contratos administrativos, dos mecanismos do direito
Privado, desde que compatíveis com o direito Administrativo. ora, se havia dúvidas
acerca da compatibilidade entre o direito Público e o instituto da arbitragem, essas
dúvidas foram dissipadas pela vigência do mencionado art. 23-A, da Lei de Concessões.
A regra contida nesse dispositivo da Lei de Concessões de serviços públicos
não pode ser interpretada, isoladamente, como autorização genérica à utilização da
arbitragem em contratos administrativos. este raciocínio não seria correto. A regra da
Lei de Concessões apenas torna o instituto compatível com o direito Administrativo.
Admitida esta compatibilidade, a possibilidade do uso da arbitragem nos demais contratos
administrativos irá decorrer, de modo expresso, da Lei de Licitações quando dispõe que
“os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado” sejam
aplicados supletivamente a mencionadas avenças.
em qualquer caso, o uso da arbitragem em contratos administrativos deve estar
restrito aos direitos patrimoniais disponíveis — que se poderiam traduzir por meio das
cláusulas econômico-financeiras do contrato.95
18.7.5.3 Arbitragem e controle de legalidade
Admitimos, conforme demonstra o subitem anterior, a legitimidade do uso da
arbitragem em contratos administrativos. Questão, a nosso ver, bem mais intrincada
consiste em verificar se uma controvérsia decidida mediante arbitragem teria o condão de
suprimir o exercício do controle de legalidade exercido pelo Poder Judiciário e pelo tCu.
seria possível, por exemplo, decisão proferida em sede de ação popular, ou pelo
tCu, determinar à agência reguladora a adoção de medidas corretivas com vistas ao
adequado cumprimento da lei caso o assunto já tenha sido solucionado pelo juízo arbitral? A conduta dos agentes públicos tornar-se-ia isenta de fiscalização em função de a
decisão por ele implementada decorrer de juízo arbitral?
A postura dos órgãos de controle quando se depararem com matérias definidas
em sentenças arbitrais deve ser idêntica àquela adotada em decisão judicial em razão
do que dispõe a Lei nº 9.307/96, art. 31, in verbis: “A sentença arbitral produz, entre as
partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder
Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo”.
A utilização da arbitragem com base no permissivo do art. 23-A da Lei nº 8.987/95
não importa, todavia, em abrir mão do controle de legalidade.
Por meio da cláusula compromissória, é lícito ao poder público e ao contratado
definirem que suas pendências sejam resolvidas em tribunais arbitrais. Esse pacto
94
95
o art. 54 da Lei nº 8.666/93 dispõe nos seguintes termos: “os contratos administrativos de que trata esta Lei
regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios
da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado” (grifos nossos).
Para maiores distinções entre cláusulas econômico-financeiras e cláusulas de serviço remetemos o leitor ao Capítulo 6.
941
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Curso de direito AdministrAtivo
942
firmado entre as partes não afasta a possibilidade de ser proposta, por exemplo, ação
popular, ação civil pública ou de o TCU instaurar processo para verificar a regularidade
da decisão adotada e da postura do gestor público. A decisão arbitral vincula as partes
contratantes, e somente elas. isto, aliás, é expressamente dito no acima citado art. 31
da Lei nº 9.307/96. não é lícito à unidade administrativa contratante ou ao contratado
discordar da sentença arbitral. esta sentença não subordina nem vincula, todavia, os
órgãos de fiscalização, muito menos os impede de usar os instrumentos de controle de
legalidade previstos no sistema constitucional vigente.
de acordo com o professor Adilson Abreu dallari, para quem a arbitragem representa mecanismo útil para assegurar a regularidade na execução dos serviços públicos
concedidos, o juízo arbitral não exclui as espécies de controle da Administração Pública
previstas no ordenamento jurídico pátrio, tampouco a apreciação do Poder Judiciário
em caso de nulidade do processo arbitral. eis o que diz o douto administrativista:
A adoção da arbitragem como forma amigável de solução de divergências na execução de
contratos administrativos não se choca com a regra, constitucionalmente estabelecida, no
sentido de que nenhuma lesão de direito pode ser subtraída ao exame do Poder Judiciário.
(...) o compromisso das partes é sempre no sentido do acatamento de decisão regular,
tomada pelo árbitro após regular tramitação do feito. A ocorrência de vício jurídico no curso
do processo de arbitragem libera a parte prejudicada do compromisso de não recorrer ao Judiciário,
exatamente porque nenhuma das partes jamais se comprometeu a acatar decisão tomada de forma
irregular, contrariando disposições legais ou contratuais, ou, ainda, especialmente, os próprios
termos do compromisso arbitral.
Além disso, cabe destacar que o compromisso arbitral vincula apenas as partes contratantes, não se estendendo a terceiros, que, julgando-se prejudicados, sempre poderão
recorrer à via judicial para a defesa de seus direitos e interesses.
em se tratando de contratos administrativos, onde sempre estão presentes interesses públicos,
é absolutamente certo que não se poderá impedir a eventual propositura de Ação Popular ou de Ação
Civil Pública, conforme o caso.96 (grifos nossos)
A mencionada decisão do stJ acerca da constitucionalidade do compromisso
arbitral97 deve ser entendida como válida para as partes do acordo. ou seja, as partes
que firmaram o compromisso não podem discordar da decisão que venha a ser proferida pelo juízo arbitral, buscando rediscuti-la na esfera judicial. Caso contrato de concessão de serviço público firmado entre a ANEEL e concessionária de serviço público,
por exemplo, preveja cláusula compromissória, e juízo arbitral seja instado a decidir
questão afeta a direito patrimonial disponível da relação, não podem a AneeL ou a
concessionária discordar da decisão proferida pelo árbitro.
A vinculação das partes ao compromisso não importa, todavia, em suprimir a
possibilidade de terceiros, que não fizeram parte do acordo, de impugnarem a sentença
arbitral. Admitir o contrário importaria em suprimir um dos princípios básicos do estado
de direito: o controle judicial da atividade administrativa.
da mesma forma que a sentença arbitral não vincula nem se impõe a terceiros,
que dela podem discordar questionando em juízo a validade do ato praticado pelo
poder público por força da decisão proferida pelo árbitro, os órgãos de fiscalização
96
97
dALLAri. Arbitragem na concessão de serviço público. Boletim de Direito Municipal, p. 799.
stJ. Agrg no ms nº 11.308-dF, 1ª seção. rel. min. Luiz Fux. Julg. 28.6.2006. DJ, 14 ago. 2006.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
da Administração Pública, especialmente aqueles de estatura constitucional, de que é
exemplo o tCu, não devem ter sua atuação limitada em razão de o ato praticado pelo
gestor ter decorrido de decisão arbitral.
A cláusula compromissória, conforme afirmado, vincula as partes, mas não
afasta o controle da Administração Pública, nem impede os órgãos incumbidos dessa
fiscalização de poderem verificar a legalidade da conduta do gestor público, pouco
importando se ela decorreu de decisão unilateral do poder público, de composição
amigável realizada entre a Administração Pública contratante e o terceiro contratado
ou de decisão arbitral.
deve ser observada, ademais, a possibilidade de as próprias partes buscarem
a anulação da sentença arbitral nos termos definidos pelo art. 32 da Lei nº 9.307/96.98
Fixadas essas premissas, parece-nos que a utilização da arbitragem não poderia
ser feita de modo a afastar a fiscalização judicial ou a exercida pelo TCU — o que certamente constitui o grande temor dos órgãos de controle.
18.7.6 direitos subjetivos, controle judicial e esgotamento da instância
administrativa
espera-se do estado moderno e democrático racionalidade e equilíbrio no exercício de todas as suas funções.
nos momentos em que o sistema democrático fraqueja — situação que não raro se
verifica em países da nossa América Latina —, em que a vontade da população é totalmente suprimida do processo de formação da vontade dos administradores públicos,
a atividade judiciária deve ser exercida de forma mais invasiva em relação à atividade
administrativa. nestas ocasiões, que devem ser consideradas exceção, o Poder Judiciário
passa a ser única barreira ou instância capaz de assegurar à população o exercício dos
seus direitos fundamentais básicos. Daí por que nestas ocasiões se justifica que o Poder
Judiciário assuma postura mais rigorosa no exercício da sua função de controlar a atividade do Poder executivo, porque este carece de qualquer legitimidade democrática.
em períodos de normalidade democrática, como o que vivemos, em que se
reconhece legitimidade no exercício de todas as funções do estado, deve ser buscado
novo equilíbrio para os mecanismos de controle recíprocos existentes entre os poderes,
e não se justifica a exacerbação ou o excesso de interferência de um poder em relação
aos demais.
Com o objetivo de testar o raciocínio desenvolvido, pode ser apresentado julgado
do superior tribunal de Justiça (resp nº 218.270-rs) em que se reitera a tese corrente de
que não há necessidade de esgotamento da via administrativa para a propositura da ação
98
dispõe o art. 32 da Lei de Arbitragem:
“Art. 32. É nula a sentença arbitral se:
i - for nulo o compromisso;
ii - emanou de quem não podia ser árbitro;
iii - não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei;
iv - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem;
v - não decidir todo o litígio submetido à arbitragem;
vi - comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva;
vii - proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso iii, desta Lei; e
viii - forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, §2º, desta Lei”.
943
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
944
judicial. Neste julgado foi afirmado que o reconhecimento do pedido do interessado em
recurso administrativo provocou a perda do objeto da ação judicial proposta — o que é
evidente —, e, ademais, condenou a união — que ao decidir o recurso administrativo
reconheceu o direito do interessado — a pagar honorários ao advogado do particular.99
É patente a falta de racionalidade deste julgado que reflete o entendimento
vigente no Brasil.
se no caso em exame existe a possibilidade de a própria Administração Pública
reconhecer o direito do indivíduo que aguarda decisão de recurso pendente na instância
administrativa, com efeito suspensivo, qual o interesse do particular de agir na via judicial? onde está o direito subjetivo violado ou ameaçado de lesão? não há, com a devida
vênia, sequer lide que justifique a propositura de ação judicial. Isto resta demonstrado
de forma cabal quando a ação judicial perde seu objeto em face ao reconhecimento do
direito do particular pela própria Administração Pública que lhe deu provimento no
recurso administrativo.
A rigor, a ação judicial aqui referida não perdeu seu objeto; ela nunca teve objeto.
o julgado proferido pelo eg. stJ põe em risco o equilíbrio entre os poderes e
suscita inúmeras questões acerca do controle judicial sobre a atividade administrativa
do estado.
A fim de que os particulares possam suscitar o controle judicial sobre a atuação
da Administração Pública, deve-se buscar, inicialmente, o objeto da proteção, o bem
jurídico a ser amparado pelo Judiciário. A que bem jurídico se refere a Constituição
quando estabelece que “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito”? igualmente relevante a regra disposta no art. 6º do Código de Processo
Civil quando afirma que ninguém “poderá pleitear em nome próprio direito alheio”,
ressalvadas as hipóteses previstas em lei. ora, se os indivíduos somente podem acessar
o Poder Judiciário para pleitear direitos próprios, é necessário que este direito tenha-se
concretizado, que ele esteja materializado, ou esteja sendo ameaçado, a fim de ser legitimada a propositura de ações judiciais.
É ponto pacífico que o direito a que se refere a Constituição Federal e o Código
de Processo Civil é o direito subjetivo, entendido como aquele que surge da aplicação
da norma positivada a situações concretas, gerando para determinado indivíduo a
legitimidade de exigir, pela via judicial inclusive, que outrem seja obrigado a fazer ou
deixar de fazer algo.
o direito subjetivo, instituto desenvolvido originariamente no âmbito do direito
Civil, surge a partir do momento em que o ordenamento jurídico reconhece a determinado
indivíduo o poder de fazer valer sua vontade contra terceiro, impondo-lhe obrigações e
99
A ementa do acórdão mencionado apresenta a seguinte redação: “Administrativo e Processual Civil – recurso
Administrativo – reconhecimento do pedido – Perda do objeto da ação judicial – Honorários advocatícios. o
ingresso em juízo prescinde de prévio esgotamento da via administrativa. reconhecido o pedido na esfera
administrativa, a ação a ele referente perde o objeto, sendo a união responsável pela verba honorária. recurso
improvido” (stJ. resp nº 218.270-rs, 1ª turma. rel. min. Garcia vieira. Julg. 14.9.1999. DJ, 11 out. 1999).
em igual sentido: “rms – Constitucional – Administrativo – Processual Civil – Preliminar – Carência do direito
de ação quanto ao segundo impetrante – Esgotamento das vias administrativas – Desnecessidade – Gratificação de representação – extensão aos inativos – natureza pro labore faciendo – inexistência de linearidade e
generalidade. i - Após a proclamação da Constituição Federal de 1988, o exaurimento da via administrativa é
mera faculdade da parte interessada, não consubstanciando condição sine qua non para impetrar-se mandado de
segurança” (stJ. rms nº 4.289-ms, 5ª turma. rel. min. Gilson dipp. Julg. 3.5.2001. DJ, 04 jun. 2001).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
podendo utilizar-se da tutela judicial para tal mister. na relação Administração Pública/
administrado, o direito subjetivo pode-se aperfeiçoar tanto em favor de um quanto do
outro. Aqui, interessa-nos o direito subjetivo do administrado em seu sentido comum
de poder impor à Administração Pública ação ou abstenção.
esse direito subjetivo pode decorrer do direito obrigacional — de origem contratual, extracontratual ou legal —, do direito real ou diretamente de atos administrativos
que tenham declarado ou criado direitos em favor dos administrados.
de se observar que a legitimidade do particular de postular o controle judicial
sobre os atos da Administração Pública não se restringe à tutela dos seus direitos
subjetivos, mas também alcança outros interesses legítimos, de que seria exemplo a
preservação do meio ambiente.
A tutela judicial referida pelo texto constitucional (art. 5º, XXXv) compreende,
todavia, tão somente os direitos que preencham os requisitos necessários à sua caracterização como direitos subjetivos, individuais ou coletivos. essa conclusão decorre do
fato de que, não obstante tenha havido por parte da Constituição Federal a preocupação
com a proteção dos direitos coletivos, difusos ou não, a forma como é feita esta proteção
depende de lei — “o estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (CF,
art. 5º, XXXii). ou seja, o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial, previsto
no art. 5º, XXXv, da Constituição Federal, legitima o particular a acessar o Judiciário
para a defesa de direitos subjetivos e não para a impugnação de atos ilegais ou ilegítimos. Para esta tarefa, a Constituição Federal prevê arsenal específico de instrumentos
jurídicos (ação popular, ação civil pública, ação de improbidade, habeas corpus etc.).
Essa linha de interpretação é defendida por Gomes Canotilho, quando afirma
que “a garantia de proteção jurídica individual subjetiva pressupõe a lesão de direitos
subjetivos ou interesses legalmente protegidos. Isto significa que a existência, conteúdo
e extensão das posições subjetivas do particular, não são pressupostos jurídicos autonomamente criados pela garantia do recurso contencioso; são pressupostos por esta. (...)
entre as posições jurídicas protegidas incluem-se os direitos fundamentais e os restantes direitos subjetivos públicos e privados bem como outros interesses juridicamente
protegidos não reconduzíveis a direitos subjetivos (entendidos num sentido restrito).
saber se existe ou não um direito ou um interesse legalmente protegido depende, em
termos tendenciais, da existência de uma norma material (lei, regulamento, estatuto,
contrato) cujo escopo seja, ou, pelo menos, seja também, proteger os interesse dos particulares, de forma a que estes, com base nessa norma, possam recortar um poder jurídico
individualizado legitimador da defesa dos seus interesses contra a administração”.100
o objeto básico merecedor de proteção pelo princípio do controle judicial é o
direito individual subjetivo. este é o bem jurídico tutelado pelo princípio da inafastabilidade da apreciação judicial. não que os demais direitos ou interesses não sejam objeto
de proteção jurídica, ou que sua violação não possa reclamar a necessária interferência
judicial. A proteção desses outros direitos ou interesses, todavia, bem como o controle
a ser realizado sobre eles pelo Poder Judiciário, deve-se realizar na forma definida pela
própria Constituição Federal ou pela lei. A inafastabilidade da apreciação judicial, como
princípio básico do estado democrático de direito, visa proteger, de forma especial, os
direitos subjetivos dos cidadãos lesados ou ameaçados de lesão.
100
CAnotiLHo. Direito constitucional, p. 656.
945
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
desse modo, a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário deve ser franqueada
aos particulares sempre que decisão, ou omissão, administrativa ferir ou puser em risco
(ameaça de lesão) direitos subjetivos, e é inconstitucional qualquer regra que estabeleça
limitações ou impedimentos ao livre acesso ao Poder Judiciário.
Quando a atuação administrativa não lesionar direito subjetivo, ao contrário, a
interferência do Poder Judiciário sobre a Administração Pública será legítima somente
quando tiver sido expressamente autorizada por lei específica ou pela própria Constituição. É exemplo desta situação a possibilidade de cidadão propor ação popular contra
ato que não viole direito subjetivo, mas que seja lesivo à moralidade administrativa
(CF, art. 5º, LXXiii).
Fixadas essas premissas, se a eventual lesão, ou a ameaça de lesão, de direito decorrer de ato proferido em processo administrativo, enquanto houver a possibilidade de
discussão no âmbito deste processo, deve ser tida como invasiva, e, portanto, ilegítima a
interferência judicial. sempre, e enquanto a lesão, ou a ameaça de lesão, a direito puder
ser questionada na esfera administrativa, e enquanto esse questionado fizer sustar referida lesão, bem como sua ameaça, a interferência judicial irá ferir a autonomia do Poder
executivo, e, em consequência, a harmonia entre os poderes. se decisão proferida em
processo administrativo for contrária ao interesse de particular, que entende ser titular
de direito subjetivo, e couber recurso com efeito suspensivo contra esta decisão, não há
que se falar em violação de direito subjetivo.
tomemos o exemplo de particular que solicite alvará para funcionamento de
estabelecimento empresarial e que tenha sua pretensão negada. Haja vista a legislação
conferir ao particular o legítimo direito de recurso contra referida negativa, não ocorrerá violação de direito subjetivo enquanto não esgotado o processo administrativo.
enquanto for possível ao particular discutir a matéria no processo administrativo, não
estarão presentes os requisitos para que este se considere lesionado ou violado em seus
direitos ou pretensões.
se a Administração Pública não observa as regras procedimentais ou se extrapola
o tempo razoável para a produção de uma manifestação conclusiva, seria legítimo arguir-se
a violação de direito subjetivo e estaria o particular legitimado à propositura da ação judicial
destinada a coibir o ilícito, inclusive por meio de medidas judiciais cautelares. nestas hipóteses, não cabe igualmente ao juiz substituir a vontade e as atribuições do administrador.
Identificada a ilegalidade, cabe ao juiz anular o ato do processo administrativo viciado e
determinar ao administrador que o refaça. ilegalidades processuais devem resultar em
anulação de todo o processo administrativo ou, eventualmente, em anulação de ato ou atos
específicos do processo, e não em transferência da competência do administrador para o
juiz decidir o processo administrativo, substituindo a vontade do administrador público.
García de enterría, certamente o mais festejado administrativista espanhol, sustenta a tese de que “o juiz não pode penetrar no âmbito de autotutela administrativa,
interferir no seu desenvolvimento. não poderá proibir ou evitar que a Administração
dite um ato executório, ou privar tal ato de executoriedade, ou intervir na execução
forçosa do mesmo, ou paralisar a atuação administrativa e nem sequer pronunciar-se
sobre o conteúdo eventual de uma relação antes que a Administração o tenha executoriamente declarado. enunciado em forma positiva: o juiz deve respeitar a realização
íntegra (declarativa e executiva) pela Administração da sua potestade de autotutela;
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ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
unicamente poderá intervir quando a autotutela declarativa esteja já produzida e
precisamente para verificar se a mesma, considerada na sua singularidade, se ajusta
ou não ao direito material aplicável”.101 Acerca da necessidade de esgotamento da via
administrativa, García de Enterría afirma que “a reclamação prévia constitui um autêntico pressuposto processual, quer dizer, um elemento que afeta a regular constituição
da relação jurídica em que o processo consiste. A doutrina processualista é unânime
neste sentido (...) de admitir as demandas que se dirijam contra o Estado sem haver
apurado antes a via governista”.102
de acordo com essa concepção, se a atuação administrativa não afetar direito
subjetivo de particular, a Administração Pública estará isenta de controle judicial.
A adoção dessa regra ao ordenamento jurídico brasileiro requer algum cuidado.
É certo que o Poder Judiciário, em função do que dispõe o modelo constitucional
vigente, pode ser acionado com vista a exercer controle sobre atuações administrativas
que não importem necessariamente em violação de direitos subjetivos. A possibilidade
de o Poder Judiciário interferir nessas situações não está vinculada nem decorre da
proteção de direitos subjetivos ou do princípio constitucional da inafastabilidade da
apreciação judicial.
tomemos aqui, outro exemplo, relacionado ao uso da ação popular. nos termos
da Constituição Federal (art. 5º, LXXiii), “qualquer cidadão é parte legítima para propor
ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que
o estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural”.
vê-se que a legitimidade do cidadão para promover ação popular, e, portanto, o
controle judicial em áreas do ordenamento jurídico cuja violação não importe em lesão
a direito subjetivo, mas para coibir ilegalidade, não decorre do princípio genérico do
controle judicial, ou do princípio da inafastabilidade da apreciação judicial, mas de
disposição constitucional expressa.
A tese que aqui se defende não busca implantar, no Brasil, o sistema francês do
contencioso administrativo. neste, as matérias decididas pela instância administrativa
não podem ser controladas ou revistas pela instância judicial. não é esta a ideia. Busca-se,
ao contrário, definir o momento em que a interferência administrativa importa em violação de direito subjetivo individual ou coletivo e, somente então, legitimar a necessária
e pronta atuação judicial.
A fixação do momento em que se legitima a atuação judicial não atenta contra
a autonomia do Poder Judiciário, ou sequer impede o exercício do necessário controle
judicial sobre a Administração Pública. Ao contrário, definido esse limite temporal, a
interferência judicial poderá ocorrer de forma mais equilibrada e racional.
Admitida, ao contrário, a possibilidade de, a qualquer momento, independentemente de violação ou ameaça de lesão a direito subjetivo, ou ainda no curso de processo administrativo que observe o devido processo legal, inclusive quanto a aspectos
temporais, o Poder Judiciário interferir na instância administrativa, compromete-se a
capacidade do próprio Judiciário de atender, a tempo e a contento, a sociedade.
o livre acesso ao Judiciário deve ser igualmente examinado sob a ótica do interesse de agir, da preclusão de direitos e da própria racionalidade da atuação do estado.
101
102
GArCíA de enterríA. Democracia, jueces y control de la administración, p. 438.
GArCíA de enterríA. Democracia, jueces y control de la administración, p. 946.
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Acerca do interesse de agir, Antônio Carlos Cintra, Ada Grinover e Cândido
dinamarco tecem a seguintes considerações:
essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o estado o interesse
no exercício da jurisdição, não lhe convém acionar o aparato judiciário sem que dessa
atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que,
em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada.
repousa a necessidade da tutela jurisdicional na impossibilidade de obter a satisfação
do alegado direito sem a intercessão do estado — ou porque a parte contrária se nega a
satisfazê-lo (...).103
visto que o ordenamento jurídico-administrativo põe à disposição do particular
meios hábeis para fazer sustar as interferências estatais que afetem seus interesses,
na hipótese de tratar de processo administrativo sancionador ou restritivo de direito,
ou de exigir que se conclua o processo como requisito ao reconhecimento do direito
do particular, no caso dos processos ampliativos de direito, não é razoável arguir-se
a imediata interferência judicial como caminho necessário à satisfação dos interesses
juridicamente tutelados dos particulares. se a atuação do particular perante a própria
Administração for suficiente para afastar a ameaça de lesão a direito — no caso de processos restritivos de direitos ou punitivos — ou de viabilizar o reconhecimento desse
direito — na eventualidade do processo ampliativo de direito — não há que se falar
em interesse de agir em juízo.
Em resumo, é possível afirmar que enquanto a questão estiver sob a apreciação da
Administração Pública sendo tratada em processo administrativo e isto não caracterizar
violação (ou ameaça de violação) de direito subjetivo do cidadão, ele não está legitimado
a se socorrer das vias judiciais, devendo aguardar a conclusão do mencionado processo
administrativo. Esta conclusão não afasta a possibilidade de o Poder Judiciário intervir nas
decisões administrativas, mas apenas define o momento em que a intervenção judicial na atividade
administrativa se torna legítima.
Questão distinta consiste em saber se o particular está obrigado a esgotar a instância administrativa sob pena de, em não o fazendo, ocorrer preclusão do direito.
em relação a este instituto, o Código de Processo Civil, art. 473, dispõe ser vedado
à parte discutir questões em relação às quais a preclusão já se tenha operado.
tomemos o exemplo de cidadão regularmente intimado de decisão proferida
pela Administração tributária que lhe impôs o pagamento de determinado tributo. É
certo que este cidadão dispõe de instrumentos legais que o permitem impugnar administrativamente, com efeito suspensivo, o lançamento tributário que, em seu sentir, fira
a legislação. desse modo, se o cidadão se vale da faculdade de peticionar na instância
administrativa (direito expressamente reconhecido pela Constituição Federal que em
seu art. 5º, XXXiv, “a”, dispõe que “são a todos assegurados, independentemente do
pagamento de taxas o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou
contra ilegalidade ou abuso de poder”), a lesão ou a própria ameaça de lesão ao seu
direito por parte do poder público deixa de existir. Assim sendo, ou seja, não havendo
sequer ameaça de lesão de direito, não é legítima a intervenção judicial.
103
CintrA; Grinover; dinAmArCo. Teoria geral do processo, p. 258.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A dúvida consiste em saber se ocorreria preclusão do direito caso o particular
não impugnasse o ato administrativo por meio do qual lhe é imposto o pagamento do
tributo. sabemos que enquanto a questão estiver sob apreciação administrativa não
se pode falar em violação de direito pela Administração Pública e que, portanto, a
eventual intervenção judicial deve aguardar a conclusão do processo administrativo.
Como proceder, todavia, caso o particular opte por não promover a impugnação pela
via administrativa e prefira se socorrer diretamente da instância judicial. Poder-se-ia
falar, no caso, em preclusão de direito?
Nesta segunda situação, vê-se que não se busca apenas definir o momento em que
a intervenção judicial se torna legítima. Aqui, a conclusão a que se poderia chegar seria
a de que o não esgotamento da instância administrativa impediria o acesso ao Poder
Judiciário. Caso seja admitida a tese da preclusão do direito em razão de o particular
não ter esgotado a instância administrativa, a conclusão deveria ser no sentido de que
o direito não pode mais ser ressuscitado quando o cidadão se socorresse da via judicial.
A Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93) pode-nos apresentar inúmeras situações para
exame da questão. Em seu art. 42, §1º, é fixado o prazo de cinco dias úteis anteriores à
data final para apresentação de propostas para que os licitantes possam impugnar cláusulas do edital, sob pena de se operar decadência. Caso particular opte por impugnar
administrativamente a cláusula do edital, ele deve aguardar a decisão administrativa
para poder propor a medida judicial cabível. este ponto nos parece devidamente esclarecido. todavia, caso ele não tenha utilizado a prerrogativa de impugnar o edital, poderia,
desde já, propor a ação judicial? ou, ao contrário, a não utilização da prerrogativa de
impugnar o edital pela via administrativa importaria em decadência (ou preclusão) do
direito e impediria o exame da matéria na via judicial?
No âmbito do STJ, a questão não é totalmente pacífica. A tese majoritária é no
sentido de que a não impugnação do edital perante a própria Administração Pública
não impede o particular de se socorrer da via judicial,104 tese que nos parece acertada.
exigir o esgotamento da instância administrativa como condição para a propositura de ações judiciais importa em violação do princípio do controle judicial da
104
A esse respeito, stJ: “direito Administrativo. Licitação. Cláusula editalícia redigida sem a devida clareza. interpretação pelo judiciário, independentemente de impugnação pelos participantes. Possibilidade. no procedimento licitatório, as cláusulas editalícias hão de ser redigidas com a mais lídima clareza e precisão, de modo
a evitar perplexidades e possibilitar a observância pelo universo de participantes. A caducidade do direito à
impugnação (ou do pedido de esclarecimentos) de qualquer norma do edital opera, apenas, perante a Administração, eis que, o sistema de jurisdição única consignado na Constituição da república impede que se subtraia
da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Até mesmo após abertos os envelopes (e ultrapassada a primeira fase), ainda é possível aos licitantes propor as medidas judiciais adequadas à satisfação do
direito pretensamente lesado pela Administração. Consoante o magistério dos doutrinadores, a inscrição (da
empresa proponente) no cadastro de contribuintes destina-se a permitir a imediata apuração de sua situação
frente ao Fisco. decorre, daí, que se o concorrente não está sujeito à tributação estadual e municipal, em face
das atividades que exerce, o registro cadastral constitui exigência que extrapola o objetivo da legislação de
regência. A cláusula do Edital que, ‘in casu’, se afirma descumprida (5.5.1), entremeada da expressão ‘se for o
caso’, só pode ser interpretada no sentido de que, a prova da inscrição cadastral (perante as fazendas estadual
e municipal) somente se faz necessária se o proponente for destas (Fazendas) contribuintes, porquanto a lei somente admite a previsão de exigência se ela for qualificável, em juízo lógico, como indispensável à consecução
do fim. ‘In hiphotesi’, a impetrante, ao apresentar, com a sua proposta, certidões negativas de ‘débitos’ para com
as Fazendas estadual e municipal ofereceu prova bastante ‘a permitir o conhecimento de sua situação frente aos
Fiscos’, ficando cumprida a cláusula editalícia, ainda que legal se considerasse a exigência. Mandado de segurança concedido. decisão unânime” (ms nº 5.655-dF, 1ª seção. rel. min. demócrito reinaldo. Julg. 27.5.1998. DJ,
31 ago. 1998).
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Administração Pública. não nos parece correto sobrepor as regras constantes da Lei
de Licitações (que menciona a decadência do direito) ou do CPC (que cuida da preclusão) para afastar a disposição constitucional (art. 5º, XXXv) que preceitua que “lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Ainda em relação à Lei de Licitações, tomemos o exemplo de licitante desclassificado pela comissão de licitação. A própria lei, em seu art. 109, admite recurso com
efeito suspensivo, o que equivale a dizer que, enquanto este recurso não for decidido,
o processo licitatório não terá seguimento. É certo que se o recurso contra o ato de desclassificação for mantido, o licitante terá todo o interesse de propor a necessária ação
judicial. todavia, se o licitante não se utilizou dos instrumentos que o próprio processo
administrativo lhe põe à disposição, não nos parece correto afirmar que se verificou a
preclusão (ou decadência) do direito do licitante de modo que ele estaria impedido de
questionar a invalidação da decisão administrativa na via judicial.
o esgotamento da via administrativa não é condição necessária ao acesso ao Poder
Judiciário. Todavia, enquanto a existência de processo administrativo fizer sustar a ameaça
de violação de direito subjetivo do particular, não se deve admitir o acesso judicial.
totalmente distinta, a situação vivida por nós brasileiros, até muito recentemente,
em que para poder recorrer administrativamente de multa de trânsito deveríamos comprovar o pagamento da multa. naquele contexto de evidente ameaça de lesão a direito
do particular, e em que se mostrava flagrante a inconstitucionalidade do processo administrativo, que não observa os princípios básicos da ampla defesa e do contraditório,
era imperativo assegurar ao particular o direito de impugnar a qualquer tempo os atos
administrativos.
Definir que somente quando a atuação da Administração ferir ou ameaçar direito
subjetivo estará o particular legitimado a propor ação judicial contra ato da Administração Pública não restringe ou limita a atividade de controle exercida pelo Poder Judiciário
em relação ao Poder executivo. evita-se, ao contrário, a banalização na propositura de
ações precipitadas e, muitas vezes, desnecessárias, haja vista, não raro, o provimento
final por parte da Administração Pública ser favorável ao particular.
A linha de raciocínio aqui defendida foi adotada pelo stJ em seu enunciado de
súmula nº 2, que diz respeito a saber se a propositura do habeas data deve ter como
pressuposto a existência de pedido formulado pelo interessado à autoridade administrativa e a consequente recusa. A solução adotada pelo stJ nos parece adequada e
supera a equivocada visão de que o acesso ao Poder Judiciário, em matéria de controle
da Administração Pública, independe de qualquer manifestação por parte desta última.
ora, se não houver recusa por parte da autoridade responsável pelo fornecimento da
informação, não haverá sequer interesse de agir do particular.
o mais importante controle é aquele exercido em última instância, como decisão
definitiva, como palavra final. É este o verdadeiro papel do controle judiciário. A tese
de que a intervenção judicial sobre a atividade administrativa pode ocorrer a qualquer
tempo, tese adotada de modo irrestrito pela jurisprudência e doutrina pátrias, banaliza
o controle judicial e compromete a efetividade da atividade judicial.
A exacerbação na utilização da via judicial tem criado sérias dificuldades ao bom
funcionamento do Poder Judiciário no Brasil. É necessário fixar critérios que definam a
intensidade e, sobretudo, o momento em que será exercida a tutela judicial da atividade
administrativa. o estudo do direito subjetivo constitui o primeiro e mais importante
critério legitimador da intervenção judicial sobre a atividade estatal de administrar.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
o estado é uno, e suas funções devem ser desempenhadas de modo harmônico.
A defesa da tese da reserva da Administração, que decorre diretamente da separação
de poderes e cuja validade pressupõe a normalidade democrática, impõe maior respeito
à atividade administrativa do Estado e à fixação de limites às interferências judiciais
sobre a atividade administrativa. A adoção dessa tese tornará o sistema brasileiro de
controle judicial da atividade administrativa mais racional e mais efetivo.
18.7.7 instrumentos de controle judicial
o ordenamento jurídico pátrio disponibiliza diversos instrumentos por meio dos
quais pode ser questionada a legitimidade dos atos e atividades desenvolvidos pela
Administração Pública. Alguns desses instrumentos estão previstos no próprio texto
da Constituição Federal (mandado de segurança, habeas corpus, habeas data e ação de
improbidade administrativa, ação civil pública e ação direta de inconstitucionalidade).
Além desses meios específicos de controle judicial da Administração Pública,
inúmeros outros podem ser utilizados para provocar a tutela judicial, de que seria
exemplo a ação anulatória. examinaremos, em seguida, cada um dos instrumentos
específicos de controle judicial da Administração Pública.
18.7.7.1 mandado de segurança
o mandado de segurança é mencionado em dois dispositivos da Constituição
Federal. no art. 5º, LXiX, é tratado de mandado de segurança individual — ou simplesmente
mandado de segurança —, e no inciso seguinte, art. 5º, LXX, de mandado de segurança
coletivo. Cuidaremos, inicialmente, do mandado de segurança individual, que se encontra
regulado pela Lei nº 12.016/2009.
esta ação constitucional, nos termos do art. 5º, LXiX, será concedida “para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o
responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”.
o bem jurídico a ser tutelado por meio do mandado de segurança é o direito
líquido e certo, não protegido por habeas corpus ou habeas data.
inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais se formaram em razão
da falta de definição legal ou constitucional do que efetivamente seria o direito líquido
e certo. Primeiramente, poder-se-ia cogitar de que é líquido e certo aquele direito em
relação ao qual não haveria qualquer controvérsia ou dúvida — tese repelida pela
súmula stF nº 625, que expressamente admite o cabimento da ação ainda que haja
controvérsia acerca da matéria de direito. Outra definição indicaria ser líquido e certo
aquele direito que não depende de provas materiais. esta teoria evoluiu para a concepção, atualmente dominante, de que é líquido e certo o direito que independe de dilação
probatória. ou seja, se o autor tiver condições de, por ocasião da propositura da ação,
apresentar todas as provas necessárias à configuração dos fatos e ao seu enquadramento
jurídico, entender-se-á presente o direito líquido e certo, ainda que a questão jurídica
seja controvertida.
A legitimidade ativa para a propositura do mandado de segurança é conferida a
qualquer pessoa física ou jurídica que sofra violação de direito subjetivo próprio (enquadrado no conceito de direito líquido e certo). de se observar que a jurisprudência do
951
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
952
stF (RDA, 15/46) admite a possibilidade de alguns órgãos poderem propor mandado
de segurança para a defesa de suas prerrogativas ou atribuições. essa legitimidade
ativa somente é reconhecida aos denominados órgãos que integram a cúpula do estado
(órgãos independentes) e àqueles que estão imediatamente subordinados aos independentes (órgãos autônomos).105
A legitimidade passiva no mandado de segurança é conferida pela Constituição
Federal a “autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições
do Poder Público”.
A redação utilizada pela Constituição Federal para descrever o sujeito passivo
adota o critério do exercício de potestade pública. no caso das pessoas de direito público,
é fácil identificar a possibilidade de impetração da ação, e o cabimento da ação decorre
da própria natureza da pessoa que pratica o ato. no caso das pessoas de direito Privado,
o cabimento do mandamus está condicionado ao exercício de prerrogativa pública. nesse
sentido, a jurisprudência tem reconhecido, por exemplo, o cabimento do mandado de
segurança contra atos praticados por empresa concessionária de serviço público (CC
nº 54.854-sP),106 por instituição financeira (REsp nº 156.015-MG),107 ou contra entidade
privada de ensino (CC nº 30.297-dF).108 vê-se que no caso das pessoas de direito Privado,
desde que exerçam, por delegação do poder público, autoridade pública, é admitido
o mandado de segurança.
A questão se torna um pouco nebulosa quando se trata de entidades de direito
Privado que integram a Administração Pública. referimo-nos, aqui, às empresas públicas e sociedades de economia mista. Em tese, a questão é simples e pacífica: somente cabe
mandado de segurança se se tratar de ato de império praticado por empresa estatal,
não sendo admitida a ação mandamental na eventualidade de se tratar de ato de gestão.
105
106
107
108
Para maiores considerações acerca dos órgãos independentes e autônomos, remetemos o leitor ao Capítulo 4.
No julgamento deste conflito de competência, o STJ não apenas admitiu o cabimento do mandado de segurança
como igualmente enfrentou a questão da competência para o julgamento da ação conforme indica trecho da
ementa a seguir transcrito:
“A competência para julgar mandado de segurança deve levar em consideração a natureza ou condição da pessoa
que pratica o ato e não a natureza do ato em si. Assim, o argumento de que a competência para julgar o feito seria
da Justiça estadual porque o ato praticado pelo dirigente da concessionária teria natureza administrativa não pode
prevalecer. no caso de mandado de segurança, a competência está estabelecida no retrocitado artigo 109, viii da
Constituição Federal. efetivamente, é competência da Justiça Federal processar e julgar os mandados de segurança
contra ato de autoridade federal, considerando-se como tal também o agente de empresa concessionária de serviços
públicos de energia elétrica, quando pratica o ato no exercício de função federal delegada. no caso de empresa
concessionária dos serviços públicos de energia elétrica, o poder concedente é a união, conforme decorre do art. 21,
Xii, ‘b’, da Constituição.” (stJ. CC nº 54.854-sP, 1ª seção. rel. min. José delgado. Julg. 22.2.2006. DJ, 13 mar. 2006)
stJ: “Crédito rural. securitização. Alongamento da dívida. mandado de segurança. o ato do gerente do Banco
do Brasil, indeferindo o pedido do devedor, não é ato de autoridade que possa ser atacado por mandado de segurança. recurso conhecido em parte e, nesta, provida” (resp nº 156.015-mG, 4ª turma. rel. min. ruy rosado de
Aguiar. Julg. 10.3.1998. DJ, 08 fev. 1999).
STJ: “Processual Civil. Conflito Negativo de Competência. Ensino Superior. Universidade Privada. Indeferimento de matrícula. Art. 109, i e viii, C.F. i - Quando o ato corresponde a típica atividade administrativa
interna corporis, originariamente ditada nos estatutos e regimento do estabelecimento de ensino superior do
Poder Público estadual ou de organização não governamental, a competência pode ser reconhecida em favor da
Justiça do estado. ii - A tratar de ato, pela sua natureza, longa manus do Poder delegante, decorrente da regência
de disciplinamento para o ensino superior nacional, decidido pelo conselho Federal de educação, nos limites
da delegação, o controle judicial compete à Justiça Federal. iii - no caso, consabido que a competência para processar e julgar o mandado de segurança decorre da autoridade coatora que pratica o ato (rationae personae). iv
- Precedentes da jurisprudência. V - Conflito conhecido e declarada a competência do Juízo Federal suscitado”
(CC nº 30.297-dF, 1ª seção. rel. min. milton Luiz Pereira. Julg. 18.12.2000. DJ, 28 maio 2001).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A Lei nº 12.016/2009, que estabeleceu nova disciplina para o mandado de segurança,
trouxe expressa previsão nesse sentido, conforme disposição contida no art. 1º, §2º.109
A dificuldade prática consiste em identificar, caso a caso, se o ato praticado pela estatal
é de império ou de gestão. no caso de concurso público realizado por órgão público
integrante da estrutura de pessoa de Direito Público, por exemplo, não há dúvida de
que é cabível a segurança. se o concurso público é realizado por empresa pública, a
jurisprudência do stJ entende igualmente cabível,110 se se trata de concurso público
realizado por sociedade de economia mista exploradora de atividade empresarial, sob
o argumento de que se trata de ato de gestão, o stJ não admite o cabimento da ação.111
em relação aos atos praticados por empresas estatais na condução de licitação, o
entendimento do STJ é pacífico no sentido de que se trata de atos de império112 passíveis de serem atacados por meio de mandado de segurança.
Aspecto relevante acerca do sujeito passivo no mandado de segurança diz respeito a saber contra quem deve ser proposta ação na eventualidade de se tratar de ato
praticado no exercício de competência delegada. exemplo: mandado de segurança contra
ato praticado por ministro de estado, nos termos da Constituição Federal, art. 105, i,
“b”, deve ser julgado originariamente pelo superior tribunal de Justiça. Caso o ministro
delegue a prática de determinado ato ao secretário-executivo do ministério, autoridade
que não possui foro especial, e este, no exercício de competência delegada pratique o
ato, contra quem e em que foro deve ser proposta a ação?
109
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“Art. 1º (...) §2º não cabe mandado de segurança contra os atos de gestão comercial praticados pelos administradores de empresas públicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias de serviço público.”
nesse sentido, stJ: “Processual Civil e Administrativo. recurso especial. mandado de segurança. Legitimidade
passiva. Agente da Caixa Econômica Federal. Decadência. Inocorrência. Idade mínima fixada para concurso
público. i - Ao se submeter a normas de direito público para seleção e contratação de servidores, instituindo concurso e convocando-os pela ordem de classificação, a empresa pública sujeita-se a controle através de mandado
de segurança” (resp nº 588.017-dF, 5ª turma. rel. min. Felix Fischer. Julg. 13.4.2004. DJ, 07 jun. 2004).
nesse sentido, stJ: “Administrativo. Banco de Brasília. seleção de empregados. Concurso público. Ato de gestão.
exclusão do mandado de segurança. 1. sociedade de economia mista que explora atividade econômica, como
por exemplo o Banco regional de Brasília, sujeita-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, estando,
portanto, seus dirigentes excluídos, em princípio, do âmbito do mandado de segurança. A seleção de empregados
através de concurso público não exterioriza ato de autoridade e nem exercício de competência delegada, mas
simples ato de gestão. 2. recurso especial não conhecido” (resp nº 164.443-dF, 6ª turma. rel. min. vicente Leal.
rel. p/ acórdão min. Fernando Gonçalves. Julg. 14.9.1999. DJ, 28 fev. 2000).
nesse sentido, stJ: “Processual Civil. recurso especial. mandado de segurança. Ato coator praticado por diretor de sociedade de economia mista (BAnrisuL). Licitação. Cabimento. 1. Consoante a doutrina clássica e a
jurisprudência dominante, o conceito de autoridade coatora deve ser interpretado da forma mais abrangente
possível. 2. Sob esse ângulo, a decisão proferida em processo de licitação em que figure sociedade de economia
mista é ato de autoridade coatora, alvo de impugnação via mandado de segurança, nos moldes do §1º, do art. 1.º
da Lei 1.533/51. Precedente: resp 598.534/rs, rel. min. eliana Calmon, dJ 19.09.2005. 3. É cediço na Corte que o
‘dirigente de sociedade de economia está legitimado para ser demandado em mandado de segurança impetrado
contra ato decisório em licitação’ (resp 122.762/rs, rel. min. Castro meira, dJ 12.09.2005). 4. deveras, a doutrina
do tema não discrepa desse entendimento, ao revés, reforça-o ao assentar: ‘Cumpre, ademais, que a violação
do direito aplicável a estes fatos tenha procedido de autoridade pública. este conceito é amplo, entende-se por
autoridade pública tanto o funcionário público, quanto o servidor público ou o agente público em geral. vale
dizer: quem quer que haja praticado um ato funcionalmente administrativo. daí que um dirigente de autarquia,
de sociedade de economia mista, de empresa pública, de fundação pública, obrigados a atender, quando menos
aos princípios da licitação, são autoridades públicas, sujeitos passivos de mandado de segurança em relação aos
atos de licitação (seja quando esta receber tal nome, seja rotulada concorrência, convocação geral ou designações
quejandas, não importando o nome que se dê ao certame destinado à obtenção de bens, obras ou serviços)’ (Licitações, pág. 90) (Celso Antônio Bandeira de mello, citado pelo e. min. demócrito reinaldo, no julgamento do
resP nº 100.168/dF, dJ de 15.05.1998) (resp 639.239/dF, rel. min. Luiz Fux, dJ 06.12.2004). 5. recurso especial
provido” (resp nº 683.668-rs, 1ª turma. rel. min. teori Albino Zavascki. rel. p/ acórdão min. Luiz Fux. Julg.
4.5.2006. DJ, 25 maio 2006).
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essa questão foi enfrentada pelo stF, que a sumulou nos seguintes termos:
“Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ela cabe
o mandado de segurança ou medida judicial” (súmula nº 510). vê-se que no exemplo
apresentado o sujeito passivo do mandado de segurança é o secretário-executivo do
ministério, que não tem foro especial, o que resulta em que a ação deve ser proposta
perante juiz federal, e não perante o stJ.
Ainda acerca do sujeito passivo, importa consignar que sob a expressão autoridade
coatora podem ser enquadrados agentes, órgãos ou entidades públicas. desse modo, é
cabível, por exemplo, mandado de segurança contra ato do advogado-geral da união
(agente), do tribunal de Contas da união (órgão) ou contra ato da união (entidade).
É necessário, portanto, em cada caso, que seja identificada a autoridade coatora com o
propósito de se verificar inclusive a existência de foro especial.
É possível, portanto, apontar os seguintes requisitos necessários ao cabimento do
mandado de segurança:
- tratar-se de ato de autoridade pública (ou de particular no exercício de atribuições públicas);
- o ato violar direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data;
- o ato importar em ilegalidade ou abuso de poder;
- o ato importar em lesão ou ameaça de lesão a direito subjetivo.
A jurisprudência tem-se manifestado acerca do não cabimento de mandado de
segurança nas seguintes hipóteses:
- Para atacar ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução (Lei nº 12.016/2009, art. 5º, i);
- Contra ato judicial contra o qual haja recurso judicial próprio (Lei nº 12.016/2009,
art. 5º, ii, e súmula stF nº 267);
- Contra lei em tese (súmula stF nº 266);113
- Contra decisão judicial transitada em julgado (súmula stF nº 268);
- Para a cobrança de crédito (súmula stF nº 269);
- Para assegurar o direito de locomoção, o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de
entidades governamentais ou de caráter público, ou ainda para a retificação
de dados (CF, art. 5º, LXiX e LXXii);114
- Para impugnar ato ilegal que não importe em violação de direito subjetivo
(súmula nº 101).
em relação à última hipótese, de que não cabe mandado de segurança contra ato
ilegal, a súmula stF nº 101 mencionada dispõe que o mandado de segurança não substitui
a ação popular. É de se concluir, portanto, que se o ato ilegal praticado por autoridade
pública não violar direito subjetivo do cidadão, ele não pode valer-se do mandado de
segurança. se, por exemplo, é autorizada a construção de obra em área de preservação
ambiental, não obstante se trate de ato ilegal, não é possível ao cidadão atacá-lo por meio
do mandado de segurança, devendo utilizar a ação popular.
113
114
Caso se trate de lei com efeito concreto, em que a sua aplicação, independentemente da prática de qualquer ato
por parte da Administração Pública, violar direito líquido e certo, é cabível o mandado de segurança.
Para assegurar o conhecimento de mencionadas informações ou a sua retificação, o instrumento cabível é o habeas
data. se o órgão ou entidade pública se recusa a fornecer certidão em que constem dados ou informações de interesse
do solicitante, o mandado de segurança é cabível.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
A Constituição Federal prevê regras especiais de competência quando o ato a ser
impugnado por meio do mandado de segurança é praticado por determinadas autoridades. desse modo, a competência para processar e julgar o mandado de segurança cabe:
- Ao supremo tribunal Federal, quando se tratar de ato praticado pelo Presidente
da república, pelas mesas da Câmara dos deputados e do senado Federal,
pelo tribunal de Contas da união, pelo Procurador-Geral da república e pelo
próprio supremo tribunal Federal (CF, art. 102, i, “d”);
- Ao superior tribunal de Justiça, quando se tratar de ato praticado por ministro
de estado, pelos comandantes da marinha, do exército e da Aeronáutica ou
pelo próprio tribunal (CF, art. 105, i, “b”);
- Ao tribunal regional Federal, quando se tratar de ato do próprio tribunal ou
de juiz federal (CF, art. 108, i, “c”);
- A juiz federal, quando se tratar de ato praticado por autoridade federal ou no
exercício de competência delegada pelo poder público federal (CF, art. 109, viii);
- À Justiça do trabalho,115 quando o ato questionado envolver matéria sujeita à
sua jurisdição (CF, art. 114, iv); e
- À Justiça eleitoral, conforme dispõe o art. 121, caput e §4º, v.
o mandado de segurança admite duas modalidades básicas: o mandado de segurança repressivo, caso já tenha ocorrido violação de direito líquido e certo, e o mandado de
segurança preventivo para as situações em que direito líquido e certo esteja na iminência
de ser violado.
o prazo decadencial para a interposição do mandado de segurança é de 120 dias,
contados da data em que o interessado tomou ciência do ato impugnado, conforme
dispõe o art. 23 da Lei nº 12.016/2009. no caso de se tratar de ato omissivo, não há como
identificar o termo inicial, de modo que, enquanto persistir a omissão do poder público
que viole direito líquido e certo, o mandado de segurança é cabível.116
115
116
Até recentemente, no âmbito da Justiça do trabalho, eram admitidos mandados de segurança perante o próprio
tribunal regional do trabalho ou tribunal superior do trabalho contra decisões administrativas produzidas
pelo próprio Tribunal. Na prática, essa possibilidade criou a perspectiva desses Tribunais fugirem à fiscalização
do tCu. Bastava que o Presidente do respectivo tribunal negasse pedido administrativo, que eram protocolados mandados de segurança perante o próprio tribunal, que deferia os pedidos de liminares e autorizava o
pagamento de vantagens ilegais. Houve casos em que, no mesmo dia, era indeferido pelo Presidente do tribunal
o pedido formulado pela via administrativa, no mesmo dia era impetrado o ms, no mesmo era deferida a liminar
e, finalmente, ainda no mesmo dia era efetuado o pagamento dos valores reclamados pelos magistrados. A
modificação sofrida pela Constituição Federal, que doravante somente reconhece competência da Justiça do
trabalho para julgar mandados de segurança que envolvam matéria sujeita à sua jurisdição, exclui do âmbito
destes tribunais o julgamento de mencionadas ações, que passam a ser da competência da Justiça Federal.
nesse sentido, stF: “(...) 19. no mais, o writ dirige-se contra pretenso ato omissivo do impetrado, que teria
deixado de admitir os impetrantes. Há que se enfrentar a questão afeta à decadência, já que decretada pelo
acórdão recorrido. 20. É certo que, tratando-se de ato omissivo, não há como, na maior parte dos casos, identificar o termo inicial da omissão para fins de fluência do prazo decadencial. Isso ocorre porque em geral não
existe prazo normativo para a prática do ato, circunstância que implica a renovação contínua da inércia. 21. Há,
no entanto, outras situações em que a lei ou o ato regulamentar fixam prazo para o administrador atuar e que,
não o fazendo, estará, conforme o caso, tacitamente deferindo ou negando a pretensão dos destinatários do ato
administrativo não materializado. Nessas hipóteses, esse prazo fatal importa no fim da inércia, pois desde então
não pode ser considerado omisso o administrador que não mais detém autorização legal para o ato. A propósito,
oportuna a lição de Hely Lopes meirelles, verbis: ‘Quando a norma limita-se a fixar prazo para prática do ato,
sem indicar as conseqüências da omissão administrativa, há que se perquirir, em cada caso, os efeitos do silêncio. (...) no direito público’ o silêncio ‘pode valer como aceitação ou rejeição do pedido’ (Direito Administrativo
Brasileiro, Malheiros, 17ª ed., p. 99). 22. Para Sérgio Ferraz, cuidando-se de ato omissivo ‘não flui o prazo, a não
ser que a lei ou o regulamento fixem momento fatal para a prática, hipótese em que, após sua incidência in albis,
começa a correr o lapso da ecludente caducária’ (Mandado de Segurança – individual e coletivo – aspectos polêmicos,
malheiros, 3ª ed. p. 132)” (rms nº 24.119-dF, 2ª turma. rel. min. maurício Corrêa. Julg. 30.4.2002. DJ, 14
jun. 2002).
955
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
956
são aspectos processuais relevantes acerca do mandado de segurança:
- nas hipóteses em que sejam demonstrados o periculum in mora e o fumus boni
juris, será concedida a liminar requerida, com ou sem a manifestação da autoridade coatora, ressalvadas as hipóteses em que lei tenha vedado a concessão
de medida liminar;117
- das decisões proferidas em ações mandamentais são cabíveis os seguintes
recursos: 1. agravo de instrumento (da decisão do juiz de 1º grau que conceder
ou denegar a liminar); 2. apelação (do indeferimento da inicial pelo juiz de
primeiro grau e da sentença denegando ou concedendo o mandado); 3. agravo
(do indeferimento da inicial ou de medida liminar, quando a competência
couber originariamente a um dos tribunais, ou do despacho do presidente
do tribunal que suspenda a execução da liminar e da sentença); 4. recurso de
ofício (da sentença que conceda a segurança); 5. recurso especial e extraordinário (das decisões proferidas em única instância pelos tribunais, nos casos
legalmente previstos); 6. recurso ordinário (de decisão que denega a ordem
proferida em única instância pelos tribunais); e 7. recurso extraordinário (nas
hipóteses previstas na Constituição Federal);118
- estende-se à autoridade coatora o direito de recorrer (art. 14, §2º, Lei nº 12.016/2009);
- A sentença que concede ou que nega a segurança faz coisa julgada; não faz coisa
julgada, todavia, a decisão que extingue a ação sem julgamento do mérito por
falta das condições específicas da ação — não ter sido demonstrada existência
de direito líquido e certo, por exemplo —, fato que não impede que a questão
seja enfrentada em outra ação.119
o mandado de segurança coletivo se encontra disciplinado na Constituição Federal,
art. 5º, LXX, que prevê a possibilidade de ser impetrado por:
a) Partido político com representação no Congresso nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída
e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus
membros ou associados.
Não tendo sido indicados requisitos específicos para o mandado de segurança
coletivo, deve-se entender que lhes são aplicáveis, como regra, os mesmos requisitos
exigidos para a propositura do mandado de segurança individual.
o mais importante aspecto relacionado ao cabimento do mandado de segurança
coletivo diz respeito a saber quais são os direitos passíveis de proteção por meio da
ação — especialmente quando se tratar de mandado de segurança coletivo proposto
pelas entidades representativas indicadas na alínea “b” do supracitado art. 5º, LXX —,
se seriam direitos individuais da categoria ou direitos coletivos.
A dúvida tende a ser resolvida em favor da tese de que o mandado de segurança coletivo deve ser proposto para a defesa dos direitos individuais dos associados.
essa constatação decorre da elaboração das súmulas nº 629 e 630 do stF. A primeira
117
118
119
o art. 7º, §2º, da Lei nº 12.016/2009 veda a concessão de liminar para a compensação de créditos tributários, a
entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos
e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza.
A súmula nº 735 do stF expressamente veda o cabimento de recurso extraordinário contra decisão que defere
medida liminar.
nesse sentido, vide súmula stF nº 304.
CAPítuLo 18
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delas, a súmula nº 629, dispõe que “a impetração de mandado de segurança coletivo
por entidade de classe em favor dos associados independe de autorização destes. A
segunda, de nº 630, afirma que a entidade de classe tem legitimação para o mandado
de segurança ainda quando a pretensão veiculada interessa apenas a uma parte da
respectiva categoria”.
Ao enunciar essas súmulas, o stF deixa inequívoca a sua compreensão de que os
direitos a serem defendidos são de interesse dos associados, e não interesses genéricos
ou difusos.
Fixada essa regra, as demais normas pertinentes ao mandado de segurança individual se aplicam automaticamente ao mandado de segurança coletivo.
18.7.7.2 Habeas corpus
As origens do habeas corpus remontam à Carta magna inglesa, de 1215.
entre nós, a ação foi originariamente prevista no Código de Processo Criminal
do império, de 1832, e, desde 1891, tem estatura constitucional.
nos termos da Constituição Federal de 1988, art. 5º, LXviii, “conceder-se-á habeas
corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação
em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. dispõe ainda o
texto constitucional (art. 5º, LXXvii) acerca da sua gratuidade.
não obstante o fundamento constitucional, a ação é regulada pelos artigos 647
a 667 do Código de Processo Penal. Nos termos do CPP, figuram como participantes
do habeas corpus o impetrante, que propõe a ação, o paciente, aquele que sofre restrição
em seu direito de locomoção e em favor de quem a ação é proposta, e o coator, agente
público ou privado a quem se atribui a responsabilidade pela violação do direito de
locomoção de terceiro.
trata-se de ação cujo bem jurídico a ser preservado é o direito de locomoção, e que
pode ser proposta por qualquer pessoa, física ou jurídica, em favor próprio ou de terceiro. essas são as principais características da ação que, na prática, é utilizada de forma
sistemática para obter o relaxamento de prisões ilegais.
os requisitos constitucionais para a propositura da ação são:
- ilegalidade ou abuso de poder; e
- Ameaça ou o cometimento de efetiva violência ou coação na liberdade de locomoção.
são admitidas duas modalidades de habeas corpus, o repressivo, cabível quando o
paciente “sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção”, e o preventivo,
admitido quando o paciente se “achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua
liberdade de locomoção”.
nos termos da Constituição Federal, a competência para processar e julgar habeas
corpus pode variar em razão do paciente ou do coator nas seguintes hipóteses:
- supremo tribunal Federal, quando o paciente for qualquer autoridade com
foro especial no próprio stF (nas infrações penais comuns, o Presidente da
república, o vice-Presidente da república, os membros do Congresso nacional, seus próprios ministros e o Procurador-Geral da república, e nas infrações
penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de estado e os
comandantes da marinha, do exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto
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no art. 52, i, os membros dos tribunais superiores, os do tribunal de Contas
da união e os chefes de missão diplomática de caráter permanente – CF, art. 102,
i, “b”, “c” e “d”), ou quando o coator for tribunal superior ou quando o
coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos
diretamente à jurisdição do supremo tribunal Federal, ou se trate de crime
sujeito à mesma jurisdição em uma única instância (CF, art. 102, i, “i”);
- superior tribunal de Justiça, quando o coator ou paciente forem governadores dos estados e do distrito Federal, os desembargadores dos tribunais de
Justiça dos estados e do distrito Federal, os membros dos tribunais de Contas
dos estados e do distrito Federal, os dos tribunais regionais Federais, dos
tribunais regionais eleitorais e do trabalho, os membros dos Conselhos ou
tribunais de Contas dos municípios e os do ministério Público da união que
oficiem perante tribunais, ou quando o coator for tribunal sujeito à jurisdição
do stJ, ministro de estado ou comandante da marinha, do exército ou da
Aeronáutica, ressalvada a competência da Justiça eleitoral – CF, art. 105, i, “c”;
- tribunal regional Federal, quando a autoridade coatora for juiz federal – CF,
art. 108, i, “d”;
- Juízes federais, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos
a outra jurisdição – CF, art. 109, vii. (CF, art. 109, viii);
- Justiça do trabalho, quando o ato envolver matéria sujeita à sua jurisdição –
CF, art. 114, iv; e
- Justiça eleitoral, conforme dispõe o art. 121, caput, e §4º, v.
nas demais hipóteses, a competência para julgar o habeas corpus é da Justiça Comum
dos estados, conforme dispuserem as respectivas leis de organização judiciárias estaduais.
18.7.7.3 Habeas data
o habeas data se trata de ação criada pela Constituição Federal de 1988 cujo objeto
consiste em permitir ao interessado o acesso a informações de seu particular interesse
constantes de registros de dados de entidades governamentais ou de caráter público,
bem para a retificação de dados ali constantes.
nos termos da Constituição Federal (art. 5º, LXXii),
Art. 5º (...)
LXXii - conceder-se-á habeas data:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial
ou administrativo.
A ação está regulamentada pela Lei nº 9.507, de 1997. Nela é definido o processo
a ser observado na tramitação do habeas data, bem como é acrescentada nova situação
em que a ação é cabível: para permitir a anotação de esclarecimentos ou justificativas no
registro de dados (art. 7º da Lei nº 9.507/97).
o bem jurídico tutelado pelo habeas data — o direito à informação — é igualmente
amparado pelo art. 5º, XXXiii, do texto constitucional, que dispõe que “todos têm direito
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do estado”.
A simples leitura dos dois incisos do art. 5º (XXXiii e LXXii) da Constituição
Federal leva à conclusão de que, não obstante estejam voltados à proteção do direito
de obter informações, o alcance da regra contida no art. 5º, inciso XXXiii, é mais amplo
do que o mencionado no inciso LXXii do mesmo artigo, que cuida do habeas data. este
último somente trata de informações “relativas à pessoa do impetrante”, ao passo que a
regra contida no inciso XXXiii do art. 5º trata de informações “de seu interesse particular,
ou de interesse coletivo ou geral”. Ademais, tão somente em relação às informações
de interesse coletivo ou geral poderá ser conservado o sigilo da informação, desde que
este seja “imprescindível à segurança da sociedade e do estado”. Caso o interessado
solicite ao órgão ou entidade pública o acesso a informação do seu interesse particular,
a Constituição Federal não prevê qualquer hipótese ou argumento que autorize o ente
público a recusar a solicitação. se houver a negativa, o interessado estará legitimado a
propor o habeas data. se, ao contrário, o interessado solicitar o acesso a informações de
“interesse coletivo ou geral”, havendo recusa do poder público no seu fornecimento,
deve o interessado buscar outro instrumento jurídico (mandado de segurança, ação
ordinária etc.). neste último caso, se a recusa do poder público em fornecer a informação tiver por fundamento a “segurança da sociedade ou do estado”, o argumento será
submetido ao crivo judicial, que poderá determinar o acesso à informação.
Questão até muito recentemente controvertida e atualmente superada pela súmula
stJ nº 2 dizia respeito a saber se a propositura do habeas data teria como pressuposto a
existência de pedido formulado pelo interessado à autoridade administrativa e a consequente
recusa. em outras palavras, haveria a necessidade de provocação da instância administrativa a fim de que o interessado pudesse acessar o Poder Judiciário por meio do
habeas data? No enunciado da mencionada Súmula STJ nº 2, é afirmado que “não cabe
habeas data se não houver recusa por parte da autoridade administrativa”.
A solução adotada pelo stJ nos parece adequada e supera a equivocada visão de
que o acesso ao Poder Judiciário, em matéria de controle da Administração Pública, independe de qualquer manifestação por parte desta última. ora, se não houver recusa por
parte da autoridade responsável pelo fornecimento da informação, não haverá sequer
interesse de agir do particular. A solução adotada pelo stJ é igualmente utilizada pela
Lei nº 9.507/97, que requer que a petição inicial do habeas data esteja instruída, dentre
outras informações, com a prova da recusa ao acesso às informações ou do decurso de
mais de 10 dias sem decisão (art. 8º, i).
o exame da Lei nº 9.507/97 permite ainda extrair as seguintes conclusões acerca
do habeas data:
- o sujeito ativo da ação é qualquer pessoa física ou jurídica; o sujeito passivo pode
ser qualquer entidade governamental120 (expressão que compreende qualquer
órgão ou entidade estatal, de qualquer dos poderes da república), bem como
120
no julgamento do re nº 195.304-sP (Informativo STF, nº 208), o stF deu provimento ao recurso extraordinário e
decidiu que não era cabível o habeas data contra o Banco do Brasil proposto por ex-empregada do Banco que pedia
acesso a informações da sua ficha funcional. O eg. STF — em mais uma das suas decisões conservadoras e limitadoras de direitos — entendeu que o Banco do Brasil não se enquadrava na expressão entidade pública e que os
arquivos relativos às fichas funcionais dos empregados desta empresa estatal seriam arquivos de natureza privada.
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Curso de direito AdministrAtivo
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-
-
entidades privadas responsáveis pela guarda de “registros ou bancos de dados
de caráter público”;
o processo segue o rito sumaríssimo e muito se assemelha àquele definido pela Lei
nº 1.533/51 para o mandado de segurança compreendendo despacho da inicial,
notificação à autoridade coatora para prestar informações, oitiva do Ministério
Público, devendo os autos serem em seguida conclusos ao juiz para decisão;
os recursos previstos são a apelação — cabível contra o despacho de indeferimento liminar da ação ou da decisão de mérito — e o agravo, utilizado contra a
decisão do presidente do tribunal competente para o conhecimento do recurso
que suspender a execução da sentença;
A tramitação do habeas data terá prioridade sobre todos os demais processos, ressalvados o mandado de segurança e o habeas corpus;
o processo de habeas data é gratuito;
A competência para julgar o habeas data cabe: 1. ao stF, quando o coator for o
Presidente da república, a mesa da Câmara dos deputados ou do senado
Federal, o tribunal de Contas da união, o Procurador-Geral da república e
o próprio supremo tribunal Federal (CF, art. 102, i, “d”); 2. ao stJ, quando o
coator for ministro de estado ou comandante da marinha, do exército ou da
Aeronáutica ou o próprio stJ (CF, art. 105, i, “b”); 3. aos tribunais regionais
Federais, quando o coator for o próprio trF ou juiz federal (CF, art. 108, i,
“c”); 4. aos juízes federais, quando o coator for autoridade federal, excetuada
a competência dos trFs (CF, art. 109, viii); 5. à Justiça do trabalho, quando
o ato envolver matéria sujeita à sua jurisdição (CF, art. 114, iv); e 6. à Justiça
eleitoral, conforme dispõe o art. 121, caput, e §4º, v.
18.7.7.4 mandado de injunção
o mandado de injunção se encontra disciplinado no art. 5º, LXXi, da Constituição
Federal. dispõe a regra constitucional que será concedido o “mandado de injunção
sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania
e à cidadania”.
Nos termos da Constituição Federal, são fixados dois requisitos para a concessão
do mandado de injunção:
- A falta de norma regulamentadora; e
- A impossibilidade de exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das
prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
A falta de técnica na redação do texto constitucional é evidente e tem resultado
em infindáveis controvérsias sobre o tema.
de acordo com o texto constitucional, o direito do interessado a ser tutelado por
meio do mandado de injunção deve existir e decorrer da Constituição Federal, não
sendo possível o exercício desse direito em razão da inexistência de regulamentação.
esta, a regulamentação necessária ao exercício do direito, nos termos da Constituição,
constituiria o ponto central da discussão no mandado de injunção.
daí resulta outro aspecto controvertido do tema consistente na determinação
do conteúdo da decisão a ser proferida pelo Poder Judiciário no julgamento do mandado de
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
injunção. Deve essa decisão reconhecer a omissão regulamentar e: 1. fixar prazo para
o órgão promover a necessária regulamentação; 2. criar a norma para o caso concreto,
possibilitando o exercício do direito por meio de ação de conhecimento própria; ou 3.
criar a norma do caso e, desde já, assegurar ao interessado o exercício do direito.
no julgamento do mandado de injunção nº 107-3/dF,121 o stF adotou o entendimento de que ao reconhecer a inexistência de regulamentação, o Poder Judiciário deve
tão somente fixar prazo para que o órgão responsável pela elaboração da norma o faça
no prazo a ser fixado pelo Judiciário.
na prática, esta solução importou em evidente esvaziamento do instituto e equiparou as consequências do julgamento desta ação àquele proferido em ação direta de
inconstitucionalidade por omissão.
Ao argumento de que se o Judiciário elaborasse norma para o caso, suprisse a
omissão da regulamentação e assegurasse ao interessado a satisfação do seu direito,
ocorreria violação da teoria da separação dos poderes do estado, o stF violou a teoria da
separação dos poderes. explico: no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade
por omissão, a Constituição Federal é expressa ao indicar que o Judiciário está autorizado
a “dar ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em
se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias” (CF, art. 103, §2º). ou
seja, no julgamento da mencionada ação de inconstitucionalidade, o stF está autorizado
a se reportar aos demais poderes e deles solicitar a adoção das providências cabíveis
para suprir a omissão normativa. em relação ao mandado de injunção, não consta regra
constitucional expressa que autorize esta interferência judicial nos demais poderes. se
a este fato se acrescenta o princípio da efetividade da intervenção judicial, dever-se-ia
esperar do Poder Judiciário a solução do caso, solução que não deveria importar em
interferência na atuação dos demais poderes. desse modo, a solução que mais se adapta
ao texto constitucional e ao princípio da separação dos poderes importa em reconhecer
ao Judiciário a prerrogativa de suprir a omissão da regulamentação, expedir a norma
para o caso e assegurar a realização do direito constitucional do interessado cujo exercício não se verificou em função da omissão da regulamentação.
Poder-se-ia argumentar que esta solução importa em reconhecer ao Judiciário
função que lhe é estranha, a de normatizar, ou mesmo a de legislar, caso a omissão
normativa seja imputada a órgão legislativo.
Esta dificuldade conceitual parece, todavia, ter sido superada pelo próprio STF.
em julgado mais recente (mandado de injunção nº 543-dF), que tratou da falta de
regulamentação do art. 81, §3º, do AdCt, o stF, por maioria, decidiu “assegurar, nos
termos do direito comum, a possibilidade de imediata ação de liquidação do direito
assegurado”.122
vê-se que nesse julgado o stF avançou da posição inicial e passou a admitir que
o próprio Judiciário indique a norma que irá permitir o exercício do direito carente
de regulamentação. em vez de assegurar ao titular a plena satisfação do seu direito,
o stF remete o interessado às vias ordinárias que deverão julgar o direito a partir
do parâmetro fixado na sentença ou acórdão que julgou o mandado de injunção. De
acordo com o critério definido pelo STF, a sentença ou acórdão que julga o mandado
121
122
stF. mi nº 107-dF, Pleno. rel. min. moreira Alves. Julg. 21.11.1990. DJ, 02 ago. 1991.
STF. MI nº 543-DF, Pleno. Rel. Min. Octavio Gallotti. Julg. 26.10.2000. DJ, 24 maio 2002.
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de injunção indica a regra a ser observada e por meio de ação própria o interessado
deve buscar a realização do seu direito utilizando-se, para tanto, da norma fixada no
mandado de injunção.
o avanço na jurisprudência do eg. stF se deve, em grande parte, à nova composição do órgão. Vislumbram-se, ademais, significativos avanços em relação ao instituto
quando são examinados os votos vencidos proferidos no julgamento do mencionado
mi nº 543-dF e se constata que estes objetivavam não apenas indicar a norma aplicável,
mas igualmente assegurar o pleno exercício do direito do interessado.123
no que toca à competência para julgamento, a Constituição Federal a atribui: 1. ao
stF, “quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente
da república, do Congresso nacional, da Câmara dos deputados, do senado Federal,
das mesas de uma dessas Casas Legislativas, do tribunal de Contas da união, de um
dos tribunais superiores, ou do próprio supremo tribunal Federal” (art. 102, i, “q”);
2. ao stJ, “quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição de órgão,
entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuados os
123
o Informativo STF, n. 485 relata caso que ilustra a evolução no entendimento da Corte maior: “o tribunal concluiu julgamento de três mandados de injunção impetrados, respectivamente, pelo sindicato dos servidores
Policiais Civis do espírito santo – sindiPoL, pelo sindicato dos trabalhadores em educação do município de
João Pessoa – sintem, e pelo sindicato dos trabalhadores do Poder Judiciário do estado do Pará – sinJeP, em
que se pretendia fosse garantido aos seus associados o exercício do direito de greve previsto no art. 37, vii, da
CF (‘Art. 37. (...) VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica;’) – v.
informativos 308, 430, 462, 468, 480 e 484. o tribunal, por maioria, conheceu dos mandados de injunção e propôs
a solução para a omissão legislativa com a aplicação, no que couber, da Lei 7.783/89, que dispõe sobre o exercício
do direito de greve na iniciativa privada”.
no mi nº 670-es (Pleno. rel. min. maurício Corrêa. rel. p/ acórdão min. Gilmar mendes. Julg. 25.10.2007. DJe,
31 out. 2008) e no mi nº 708-dF (Pleno. rel. min. Gilmar mendes. Julg. 25.10.2007. DJe, 31 out. 2008) prevaleceu o voto do ministro Gilmar mendes. nele, inicialmente, teceram-se considerações a respeito da questão da
conformação constitucional do mandado de injunção no direito brasileiro e da evolução da interpretação que
o Supremo lhe tem conferido. Ressaltou-se que a Corte, afastando-se da orientação inicialmente perfilhada no
sentido de estar limitada à declaração da existência da mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica, passou, sem assumir compromisso com o exercício de uma típica função legislativa, a aceitar a
possibilidade de uma regulação provisória pelo próprio Judiciário. registrou-se, ademais, o quadro de omissão
que se desenhou, não obstante as sucessivas decisões proferidas nos mandados de injunção. entendeu-se que,
diante disso, talvez se devesse refletir sobre a adoção, como alternativa provisória, para esse impasse, de uma
moderada sentença de perfil aditivo. Aduziu-se, no ponto, no que concerne à aceitação das sentenças aditivas ou
modificativas, que elas são em geral aceitas quando integram ou completam um regime previamente adotado
pelo legislador ou, ainda, quando a solução adotada pelo tribunal incorpora “solução constitucionalmente
obrigatória”. salientou-se que a disciplina do direito de greve para os trabalhadores em geral, no que tange às
denominadas atividades essenciais, é especificamente delineada nos artigos 9 a 11 da Lei nº 7.783/89 e que, no
caso de aplicação dessa legislação à hipótese do direito de greve dos servidores públicos, afigurar-se-ia inegável
o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos, de um lado, com o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua, de
outro. Assim, tendo em conta que ao legislador não seria dado escolher se concede ou não o direito de greve,
podendo tão somente dispor sobre a adequada configuração da sua disciplina, reconheceu-se a necessidade de
uma solução obrigatória da perspectiva constitucional.
Por fim, concluiu-se que, sob pena de injustificada e inadmissível negativa de prestação jurisdicional nos âmbitos federal, estadual e municipal, seria mister que, na decisão do writ, fossem fixados, também, os parâmetros
institucionais e constitucionais de definição de competência, provisória e ampliativa, para apreciação de dissídios de greve instaurados entre o Poder Público e os servidores com vínculo estatutário. dessa forma, no plano
procedimental, vislumbrou-se a possibilidade de aplicação da Lei nº 7.701/88, que cuida da especialização das
turmas dos tribunais do trabalho em processos coletivos. no mi nº 712-PA (Pleno. rel. min. eros Grau. Julg.
25.10.2007. DJe, 31 out. 2008), prevaleceu o voto do ministro relator, nessa mesma linha. Ficaram vencidos, em
parte, nos três mandados de injunção, os ministros ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e marco Aurélio,
que limitavam a decisão à categoria representada pelos respectivos sindicatos e estabeleciam condições específicas para o exercício das paralisações. Também ficou vencido, parcialmente, no MI nº 670-ES, o Min. Maurício
Corrêa, relator, que conhecia do writ apenas para certificar a mora do Congresso Nacional.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
casos de competência do supremo tribunal Federal e dos órgãos da Justiça militar,
da Justiça eleitoral, da Justiça do trabalho e da Justiça Federal” (art. 105, i, “h”); e 3. à
Justiça Eleitoral, nas hipóteses definidas no art. 121, caput, e §4º, v.
A Constituição Federal nada dispõe acerca da competência da Justiça Federal ou
do trabalho para julgar mandado de injunção.
em relação ao sujeito passivo, é relevante observar que o stF, no julgamento do
mi nº 153-Agr/dF,124 citado por José dos Santos Carvalho Filho, fixou a regra de que a
autoridade a ser chamada ao processo é aquela que tem o dever de iniciar o processo, e
não necessariamente o órgão responsável pela elaboração da norma. “Por exemplo, se é
a lei que deve regulamentar certo mandamento constitucional, e se essa lei é de iniciativa do Presidente da república, é esta autoridade que deve ser chamada ao processo,
e não a Câmara dos deputados ou o senado Federal, já que estes só podem atuar se o
Presidente der início ao processo legislativo”,125 conforme leciona o competente autor.
18.7.7.5 Ação popular
A Constituição Federal, em seu art. 5º, LXXiii, dispõe que “qualquer cidadão
é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio
público ou de entidade de que o estado participe, à moralidade administrativa, ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé,
isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
A ação se encontra regulamentada pela Lei nº 4.717/1965.
os bens jurídicos tutelados pela ação popular são:
- o patrimônio público;
- A moralidade administrativa; e
- o meio ambiente.
não obstante o texto constitucional estabeleça distinção entre patrimônio público e
patrimônio histórico e cultural, a primeira expressão — patrimônio público — é suficientemente ampla para compreender não apenas o patrimônio histórico e cultural como
igualmente qualquer outro bem de “valor econômico, artístico, estético, histórico ou
turístico”, conforme dispõe o art. 1º, §1º, da mencionada Lei da Ação Popular.
A legitimidade ativa para a ação é reconhecida pela Constituição Federal a qualquer
cidadão,126 independentemente da existência da violação de direito subjetivo próprio.
Poderão figurar no polo passivo da ação:
- As pessoas públicas ou privadas e as entidades mencionadas127 pelo art. 1º da
Lei nº 4.717/65;
124
125
126
127
stF. mi nº 153-Agr/dF, Pleno. rel. min. Paulo Brossard. Julg. 14.3.1990. DJ, 30 mar. 1990.
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 835.
nos termos do art. 1º, §3º, da Lei nº 4.717/65, a qualidade de cidadão deve ser demonstrada na inicial por meio
da juntada de cópia do título eleitoral.
o art. 1º da Lei nº 4.717/65 faz referência “ao patrimônio da união, do distrito Federal, dos estados, dos municípios,
de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a união
represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do
patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da união, do distrito Federal, dos estados
e dos municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos”.
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Curso de direito AdministrAtivo
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- As autoridades, os funcionários ou os administradores que houverem autorizado,
aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado ou que, por omissas, tiverem
dado oportunidade à lesão; e
- Os beneficiários diretos do ato impugnado.
o objeto do pedido na ação, conforme expressamente indicado no texto constitucional,
é a anulação do “ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o estado participe,
à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”.
Além da anulação do ato, o art. 11 da Lei nº 4.717/65 menciona a possibilidade de os
responsáveis pela prática do ato e os beneficiários serem condenados em perdas e danos.
Outra questão relevante acerca do tema diz respeito à eficácia erga omnes da
sentença que julga a ação popular. nos termos do art. 18 da Lei nº 4.717/65, “a sentença
terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação
julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá
intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.
As razões para a adoção desta solução pela lei são evidentes. em razão de o
autor da ação não defender interesse próprio, mas o patrimônio público, a moralidade
e o meio ambiente, a decisão proferida não interessa apenas ao autor, mas a toda a
sociedade. Desse modo, se a ação for julgada procedente ou improcedente a eficácia erga
omnes da decisão permite que qualquer pessoa, ainda que não tenha sido parte, possa
dela se utilizar. se, todavia, a ação for julgada improcedente e tiver por fundamento
falta de provas, a decisão não fará coisa julgada e o pedido poderá ser reiterado pelo
mesmo autor ou por terceiro.
Caso o Ministério Público deseje questionar a legitimidade de ato que cidadão
impugnaria por meio da ação popular, deverá fazê-lo por meio de instrumento jurídico
apropriado, de que seria exemplo a ação civil pública.
não obstante o ministério Público não tenha legitimidade para propor a ação popular, ele deve ser sempre intimado para acompanhar a ação. Atua, portanto, como fiscal
da lei, podendo manifestar-se pelo deferimento ou indeferimento do pedido formulado.
nos termos da Lei nº 4.717/65, o ministério Público:
- “Acompanhará a ação, cabendo-lhe apressar a produção da prova e promover a
responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela incidirem, sendo-lhe vedado,
em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato impugnado ou dos seus autores”
(art. 6º, §4º);
- Providenciará para que as requisições de documentos ou informações solicitadas pelo autor ou por ele próprio sejam atendidas dentro dos prazos fixados
pelo juiz (art. 7º, §1º);
- Poderá “promover o prosseguimento da ação se o autor dela desistir ou der
motivo à absolvição da instância” – faculdade igualmente conferida a qualquer
cidadão (art. 9º);
- Promoverá a execução da sentença128 se, decorridos 60 dias da publicação
da sentença condenatória de segunda instância, o autor ou terceiro não tiver
promovido a respectiva execução (art. 16);
128
nos termos da Constituição Federal, art. 129, iX, é vedado ao ministério Público representar judicialmente as
entidades públicas. nesses termos, a regra contida na Lei nº 4.717/65, interpretada em cotejo com a vedação
constitucional, resulta na impossibilidade de o ministério Público promover a execução da sentença com vista
ao ressarcimento dos danos sofridos pela entidade pública. esta tarefa é conferida às procuradorias e órgãos de
advocacia pública das respectivas entidades. Cumpre ao ministério Público promover a execução da sentença,
conforme menciona o art. 16 da Lei da Ação Popular no sentido de que deve acompanhar e adotar providências
com vista a torná-la efetiva, e não de promover sua execução judicial.
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- Poderá recorrer das sentenças e decisões proferidas contra o autor da ação –
faculdade igualmente conferida a qualquer cidadão (art. 19).
A Lei nº 4.717/65, em seu art. 21, estabelece que a prescrição da ação popular ocorre
em cinco anos. Cotejada essa regra com o texto constitucional, chega-se à conclusão de
que o prazo de cinco anos previsto na lei somente se aplica à ação se o seu objetivo for
a anulação do ato administrativo. se a ação tiver o propósito de obter ressarcimento
de danos sofridos pelo erário, nos termos do art. 37, §5º, da Constituição Federal, ela
poderá ser proposta a qualquer tempo.
A ação popular segue procedimento ordinário (Lei nº 4.717/65, art. 7º).
18.7.7.6 Ação civil pública
Diversamente do que se verifica com as ações até o momento examinadas
(mandado de segurança, habeas data, habeas corpus e mandado de injunção), que são
disciplinadas pelo texto constitucional dentro dos direitos e garantias fundamentais,
a Constituição Federal faz referência à ação civil pública quando trata das atribuições
do Ministério Público. O art. 129, III, do texto constitucional afirma que é uma das
funções institucionais do ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos”.
o objetivo básico da ação civil pública é promover a defesa dos interesses difusos
e coletivos. nos termos da Lei nº 7.347/85:
Art. 1º regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de
responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
i - ao meio-ambiente;
ii - ao consumidor;
iii - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
iv - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo;
v - por infração da ordem econômica e da economia popular;
vi - à ordem urbanística.
A ação civil poderá ter por objeto, nos termos do art. 3º da Lei nº 7.347/85, “a
condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”.
Além do ministério Público, têm legitimidade para propor ação civil pública a
união, os estados, o distrito Federal, os municípios, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou associação constituída há pelo menos um ano
que inclua entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico.
se o ministério Público não for parte — hipótese em que a ação foi proposta
por qualquer dos outros legitimados —, ele “atuará obrigatoriamente como fiscal da
lei” (Lei nº 7.347/85, art. 5º, §1º), e em caso de “desistência infundada ou abandono da
ação por associação legitimada, o ministério Público ou outro legitimado assumirá a
titularidade ativa” (Lei nº 7.347/85, art. 5º, §3º).
em relação ao sujeito passivo, dispõe a lei que a ação civil pública poderá ser proposta contra qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, que viole qualquer
dos direitos difusos mencionados.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
966
outras regras relativas à ação popular estudadas no item anterior deverão ser
observadas na tramitação da ação civil pública, inclusive em relação à possibilidade
de a “sentença civil produzir efeitos erga omnes, nos limites da competência territorial
do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de
provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico
fundamento, valendo-se de nova prova” (Lei nº 7.347/85, art. 16).
18.7.7.7 Ação de improbidade
A ação de improbidade é mencionada pela Constituição Federal, que, em seu
art. 37, §4º, dispõe, in verbis:
os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos,
a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na
forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
A ação de improbidade administrativa se encontra disciplinada pela Lei nº 8.429/92.
O primeiro aspecto a ser enfrentado no estudo desta ação diz respeito à definição
da sua natureza jurídica.
A grande dificuldade para a definição da natureza jurídica da ação resulta da
diversidade das sanções passíveis de aplicação em razão de condenação pela prática de
ato de improbidade. A Constituição Federal menciona “suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário”. A
estas sanções, o art. 12 da Lei de improbidade acrescenta outras: “pagamento de multa
civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o
poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente”. diante desse quadro, qual a natureza jurídica de ação que pode resultar
na aplicação de tão variadas sanções?
A primeira conclusão a que se chega, em razão de expressa disposição constitucional, é a de que não se trata de ação penal: “os atos de improbidade administrativa
importarão (...), sem prejuízo da ação penal cabível” (grifos nossos).
não se trata igualmente de processo administrativo. estes são conduzidos perante
autoridades administrativas e se submetem às regras do direito Administrativo. A ação de
improbidade administrativa é conduzida perante juiz e observa o direito Processual Civil.
Chega-se, então, à conclusão de que se trata de ação civil, conclusão reforçada pela
determinação feita pelo art. 17, §3º, da Lei nº 8.429/92, que determina a aplicação à ação
de improbidade administrativa das regras pertinentes à ação civil pública.
A ação de improbidade administrativa constitui, conforme bem observa maria
sylvia Zanella di Pietro, a tentativa de harmonização de dois importantes princípios
da Administração Pública — legalidade e moralidade —, em que se busca, por meio de
hipóteses descritas em lei (legalidade), tipificar condutas contrárias à moralidade administrativa.129
Haja vista se tratarem de ilícitos civis, é possível utilizar tipologia mais aberta
que a admitida pelo direito Penal. Basta, nesse ponto, examinar o disposto no art. 11 da
129
di Pietro. Direito administrativo, p. 765.
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
lei, que descreve como ato de improbidade aquele “que atenta contra os princípios da
administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.
A legitimidade ativa para a propositura da ação de improbidade (art. 17 da Lei
de improbidade) é conferida ao ministério Público ou à pessoa jurídica interessada.130
A legitimidade passiva na ação é reconhecida aos agentes públicos e “àquele que,
mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta” (art. 3º).
nesse ponto, revela-se de grande importância o conceito de agente público apresentado pela lei (art. 2º): “reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele
que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação,
designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato,
cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”.
Quando se examina a legitimidade passiva na ação de improbidade administrativa, a discussão se torna tormentosa quando envolve agente com foro privilegiado.
Haja vista a ação de improbidade ter natureza civil, não se lhe poderia simplesmente estender o foro privilegiado criminal. Com o propósito de resolver a questão, a
Lei nº 10.628/2002 alterou a redação do art. 84 do Código de Processo Penal de modo a
assegurar às autoridades processadas em ações de improbidade a mesma prerrogativa
que teriam se fossem demandadas criminalmente. vale dizer, se determinada autoridade,
nos termos da Constituição Federal, responde criminalmente perante o stJ, perante este
foro deveria ser igualmente proposta a ação de improbidade administrativa.
Ao argumento de que lei não poderia estender o foro especial a outras hipóteses além daquelas expressamente mencionadas no texto constitucional, a Associação
nacional dos membros do ministério Público e a Associação dos magistrados Brasileiros propuseram as Adi nº 2.797-dF e nº 2.860-dF,131 que resultaram na declaração de
inconstitucionalidade dos dispositivos do Código de Processo Penal inseridos pela Lei
nº 10.628/02. em resumo, não se pode mais falar — salvo eventual mudança no texto
constitucional — de foro privilegiado para ação de improbidade administrativa.132
A não aplicação das regras do foro privilegiado à ação decorrente da declaração
de inconstitucionalidade dos dispositivos acima referidos suscita outra questão: poderia
juiz de 1º grau determinar a perda de cargo do Presidente da república ou de alguma
outra autoridade pública sujeita a foro penal privilegiado?
A questão não é banal e requer interpretação da Lei de improbidade em conformidade com a Constituição Federal.
130
131
132
As pessoas jurídicas interessadas estão descritas no art. 1º da lei. são elas as entidades da “administração direta,
indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da união, dos estados, do distrito Federal, dos municípios, de
território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário
haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual” (art. 1º, caput),
bem como a “entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem
como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por
cento do patrimônio ou da receita anual” (art. 1º, parágrafo único).
stF: Adi nº 2.797-dF, Pleno. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 15.9.2005. DJ, 19 dez. 2006; e Adi nº 2.860-dF,
Pleno. rel. min. sepúlveda Pertence. Julg. 15.9.2005. DJ, 19 dez. 2006.
O STF confirmou o entendimento de que, independente do cargo exercido pelo réu, não é sua competência o
julgamento de ação cível de improbidade, relativa a atos praticados a qualquer tempo. Cabe à suprema Corte
julgar detentores de prerrogativa de foro apenas no campo da ação penal (Pet nº 3.030-Qo/ro, rel. min. marco
Aurélio. Julg. 23.5.2012).
967
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
968
o texto constitucional prevê, por exemplo, que o Presidente da república (art. 52),
os deputados federais e os senadores (art. 55) poderão perder seus cargos de acordo com
critérios e procedimentos especiais definidos na própria Constituição Federal. Definidos
esses critérios, não seria correto o raciocínio que levasse à conclusão de que a ação de
improbidade proposta contra referidas autoridades poderia igualmente resultar na perda
desses cargos. Ora, se a Constituição Federal define mecanismos especiais para a perda
dos mencionados cargos, lei não pode definir solução diversa ou por meio de mecanismos
distintos daqueles indicados no texto constitucional.
isto não importa em afastar a aplicação da Lei de improbidade a mencionadas
autoridades ou em tornar-lhes imunes às regras nela previstas. deve-se concluir tão
somente que a aplicação da Lei de improbidade Administrativa a mencionadas autoridades não pode resultar na aplicação da pena de perda do cargo.133
A lei divide os atos de improbidade administrativa em três diferentes categorias:
- Ato de improbidade que importa enriquecimento ilícito (art. 9º);
- Ato de improbidade que causa prejuízo ao erário (art. 10); e
- Ato de improbidade que viola princípio da Administração Pública (art. 11).
A maioria das condutas descritas na lei como atos de improbidade têm natureza
dolosa. Há hipóteses, todavia, em que o ato de improbidade admite a forma culposa.
Podemos apresentar como exemplo desta última categoria a hipótese indicada no art. 10, X
(“agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito
à conservação do patrimônio público”).
As sanções decorrentes da prática do ato de improbidade irão variar em função
da categoria do ato praticado. Desse modo, nos termos definidos pelo art. 12 da lei,
independentemente da possível aplicação de outras sanções de natureza penal, civil e
administrativa, o responsável pelo ato de improbidade se sujeita às seguintes cominações:
- na hipótese de ter sido praticado ato de que importe enriquecimento ilícito
(art. 9º) – “Perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio,
ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública,
suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil
de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar
com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual
seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos” (art. 12, i);
- na hipótese de ter sido praticado ato de improbidade que cause prejuízo ao
erário (art. 10) – “ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores
acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda
da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar
com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual
seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos” (art. 12, ii); e
- na hipótese de ter sido praticado ato de improbidade que viole princípio da
Administração Pública (art. 11) – “ressarcimento integral do dano, se houver,
133
Idêntica conclusão é adotada pela ilustre professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Afirma a autora que “isso
não significa que a tais autoridades não se aplique a lei de improbidade administrativa. Ela aplica-se de forma
limitada, porque não pode resultar em aplicação de pena de perda de cargo” (Direito administrativo, p. 781).
CAPítuLo 18
ControLe dA AdministrAção PúBLiCA
perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos,
pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida
pelo agente e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios
ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de
três anos” (art. 12, iii).
Ainda sobre a aplicação das sanções, a lei, em seu art. 12, parágrafo único, estabelece que “na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão
do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”. Fixa-se,
desse modo, a necessidade de ser observado o critério de dosimetria na aplicação das
sanções mencionadas. É possível, por exemplo, que o juiz julgue procedente a ação de
improbidade que cause dano ao erário, determine o ressarcimento ao erário, mas não
a perda da função pública ou a suspensão dos direitos políticos.
no que toca à aplicação das sanções, cabe observar que a lei expressamente veda
transação, acordo ou conciliação (art. 17, §1º) e determina que as penas “de perda da
função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em
julgado da sentença condenatória” (art. 20).
A lei prevê (artigos 14 a 16) regras a serem observadas na tramitação administrativa
preliminar à propositura da ação de improbidade, além de dispor expressamente acerca
da possibilidade de ser adotada, por meio de medida cautelar, o sequestro dos bens do
agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio
público.
A ação principal segue o rito ordinário, e o ministério Público, quando não atuar
como parte, intervirá no processo necessariamente como fiscal da lei (art. 17).
Acerca da prescrição, dispõe o art. 23 da lei:
Art. 23. As ações destinadas a levar a efeito as sanções previstas nesta lei podem ser propostas:
i - até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de
função de confiança;
II - dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis
com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego.
18.7.7.8 outras ações
Além das ações mencionadas nos itens anteriores, diversas outras igualmente se
prestam para provocar o controle judicial da atividade administrativa do estado. Por
exemplo, se for editado ato de caráter normativo por unidade administrativa federal
ou estadual que viole a Constituição Federal, o ato pode ter sua validade questionada
perante o supremo tribunal Federal por meio de ação direta de inconstitucionalidade.
nesse sentido, inúmeras resoluções editadas por tribunais regionais do trabalho que
concediam aos magistrados e servidores vantagens ou benefícios foram questionadas
e declaradas inconstitucionais pelo eg. stF, o que demonstra a importância da medida
para garantir o controle da atividade administrativa do estado.
Ações ordinárias, de natureza declaratória ou condenatória, igualmente se prestam para provocar o controle judicial da Administração Pública.
969
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
É importante observar, finalmente, que não obstante o controle judicial constitua
fundamento básico do estado democrático de direito, ele não pode ser utilizado de
modo a substituir ou a inviabilizar a atuação do estado. A concessão de inúmeras liminares, muitas vezes cassadas posteriormente pelas instâncias superiores, tem causado
sérios transtornos ao normal desenvolvimento da atividade pública e imensos prejuízos
financeiros ao País.
o ponto de equilíbrio entre o efetivo controle judicial — que, em nosso entender,
deve examinar inclusive aspectos relacionados à economicidade da atuação administrativa — e o normal e correto funcionamento da atividade administrativa pública deve
ser buscado em benefício da própria sociedade. decisões corporativas, tão comuns em
matéria de controle judicial da Administração Pública, apenas danos causam à democracia brasileira.
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo
19.1 Processo judicial e processo administrativo
A ideia de processo sempre esteve relacionada ao exercício da atividade jurisdicional do estado. Jamais se admitiu que o ato judicial, aquele por meio do qual o juiz
declara o direito ao caso concreto, fosse um ato isolado, sem conexão com outros atos.
o ato judicial, especialmente a sentença, sempre foi concebido como o resultado de atos
processuais praticados ao longo do processo pelo juiz ou pelas partes. este fenômeno
justifica a importância conferida ao processo no exercício da atividade jurisdicional.1
no que toca à atividade administrativa do estado, a evolução se deu de forma
diversa, ou talvez inversa àquela ocorrida na atividade jurisdicional. se esta sempre
foi considerada como decorrente de um encadeamento de atos preliminares, ou seja,
se a atividade de julgar sempre esteve relacionada ao processo judicial, a atividade
administrativa do estado se desenvolveu em torno do ato administrativo, e não do
processo administrativo. Por meio de atos administrativos se desenvolvia, e ainda se
desenvolve, a atividade administrativa estatal. mas estes atos eram considerados de
forma isolada. Pouco importava de onde eles se originavam ou quais as circunstâncias
que resultaram na sua prática, ou ainda quantos atos foram necessários para que se
produzisse determinado ato administrativo.
esta distinção na evolução das atividades estatais de julgar e de administrar certamente explica as inúmeras dificuldades para o reconhecimento do processo administrativo.
se jamais se questionou a existência do processo judicial ou do processo legislativo, ainda
nos dias atuais há importantes referências doutrinárias que insistem em negar a existência
do processo administrativo, reconhecendo tão somente o procedimento administrativo.
1
Pode-se — evidentemente com certa dose de exagero — afirmar que a supervalorização do papel desempenhado
pelo processo no exercício da atividade judicial resultou na perda da importância do foco dessa atividade. os
juízes passaram a ser especialistas em processo, e não mais no mérito das questões a serem por eles enfrentadas. nesse contexto, o direito Processual Civil se torna mais importante para a atividade diária do juiz do que
o Direito Civil, e o mesmo se verifica com o Direito Processual Penal e o Direito Penal. A prova desta inversão
de valores pode ser constatada nos bancos das escolas jurídicas, onde se verifica que a grande maioria dos
magistrados que se dedicam ao magistério leciona disciplinas relacionadas ao direito Processual ou à prática
processual, e não ao direito material.
972
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
o moderno direito Administrativo busca mudar esse contexto. isto não importa
em retirar a importância do ato administrativo, mas em reconhecer que ele não surge
do nada. Assim como a lei ou a sentença decorrem de processos (legislativo e judicial,
respectivamente), a prática de certo ato administrativo se deve necessariamente à existência de atos anteriores que irão compor o processo administrativo. se foi aplicada
sanção disciplinar, se foi efetuado lançamento tributário, se a determinada empresa foi
adjudicado o objeto de determinada licitação, se o candidato foi nomeado para o cargo
público, enfim, todo ato administrativo é o resultado de inúmeros atos preliminares
praticados tendo em vista aquele resultado pretendido.
se a sentença judicial ou a lei são o resultado dos atos que compõem os respectivos
processos judicial e legislativo, não se poderia esperar que a atividade administrativa
do estado se desenvolvesse de forma diversa.
A procedimentalização da atividade administrativa do estado não é, a rigor,
fenômeno novo. ela sempre existiu. A ela, todavia, jamais foi dada a necessária importância. enxergar o processo administrativo não deve ser mera decorrência de expressas
referências a ele feitas pela Constituição Federal ou pelas leis. o reconhecimento da
existência do processo administrativo advém do exame da atividade administrativa
desenvolvida no dia a dia da Administração Pública brasileira.
dar — ou reconhecer — a devida importância ao processo no direito Administrativo não importa em valorizar a concepção clássica da Administração Pública burocrática, em que a atividade estatal nunca chega ao fim e em que o volume de documentos
exigidos dos que se envolvem com o estado beira o escândalo.
A importância crescente que o processo assume para a atividade administrativa
do estado está relacionada à realização do princípio democrático. não se deve jamais
esquecer que o exercício de qualquer atividade estatal se vincula à ideia de função
pública, ou seja, toda atividade estatal é uma atividade funcional, voltada à realização
de determinado fim público, e dela se deve esperar, portanto, além da observância de
todos os princípios do direito Administrativo, racionalidade. Ao se inserir o ato administrativo como o produto final do processo administrativo, torna-se possível aferir não
apenas a racionalidade da atividade administrativa, mas a observância dos princípios
administrativos, especialmente daqueles relacionados ao devido processo legal.
Do ponto de vista da técnica jurídica, impõe-se, ademais, a definição do marco
teórico de que nos valeremos para conceituar o processo.
O processo pode ser conceituado como o encadeamento de atos tendentes a determinado
resultado. Assim sendo, o processo judicial deve ser entendido como o encadeamento de
atos tendentes à produção do ato que porá fim à lide, no caso, a sentença. O processo
legislativo, de igual modo, é o encadeamento de atos voltados à elaboração de leis, de
emendas constitucionais, de resoluções etc. o processo administrativo, a seu turno, está
voltado à produção dos atos administrativos.
o excesso de vinculação entre a existência de processo e o exercício da atividade
jurisdicional levou alguns autores a incluírem como requisitos à existência do processo
elementos específicos da atividade judicial, especialmente aqueles relacionados à imutabilidade da sentença judicial e à existência de uma relação tripartite, em que o juiz
atue como terceiro, distinto das partes do processo.
nosso sistema jurídico segue a regra da unicidade de jurisdição. de acordo com
essa regra, nenhuma matéria pode deixar de ser levada à apreciação judicial. esta regra
possibilita que todas as decisões administrativas possam ser questionadas perante o
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo
Poder Judiciário — e assim deve ser como imperativo do princípio democrático. desse
modo, de acordo com a visão clássica ainda vigente em importantes setores do direito
Administrativo brasileiro, a possibilidade de revisão judicial dos atos administrativos
impediria a existência do processo administrativo. Ademais, dado que em muitos processos administrativos a Administração Pública atua como parte interessada e como
órgão responsável pela decisão a ser proferida, como é o caso do processo disciplinar,
parte da doutrina defende que não seria possível caracterizar a existência do processo
administrativo, mas do mero procedimento administrativo.
evidentemente que a possibilidade de os atos administrativos serem revistos
pelo Poder Judiciário não invalida ou nega a existência do processo administrativo,
nem muito menos justifica que o processo administrativo deva ser chamado de procedimento. Aliás, em nada resta diminuída a importância do processo administrativo ante
a sua designação como mero procedimento. devemos, ao contrário, apenas buscar o
conceito adequado para processo e para procedimento de modo a afastar essa confusão
terminológica, tarefa que empreenderemos em seguida.
o controle judicial da atividade administrativa é requisito básico do estado
democrático, e não se busca, aqui, afastar a sujeição dos atos administrativos a esse
controle. deve-se apenas ter a compreensão de que a possibilidade de revisão e controle judicial dos atos administrados em nada afeta ou nega a existência do processo
administrativo. este existe pelo simples fato de que a atividade administrativa não se
faz ao acaso. ela decorre de atos previamente ordenados, em que se pratica certo ato
tendo em vista a prática de diversos outros atos que dele advirão, com o propósito de
se atingir determinado fim.
o fato de a Administração Pública atuar, em alguns processos, como parte interessada e como “juiz” igualmente não afeta a existência do processo administrativo.
se essa relação bilateral é evidente em processos disciplinares, por exemplo, ela não se
caracteriza nos processos administrativos conduzidos no âmbito do Conselho Administrativo de defesa econômica (CAde), em que uma empresa pode litigar contra outra e
em que a Administração Pública assume a função de árbitro no processo.
Em conclusão, é possível afirmar que o processo administrativo existe e que tem
por objeto a prática de atos administrativos, à semelhança do processo judicial que
objetiva a emissão de sentenças e do processo legislativo, cujo propósito é a elaboração
de leis, decretos-legislativos, emendas constitucionais etc.
19.2 Processo e procedimento
A Constituição Federal faz referência expressa à existência do processo administrativo em dois dispositivos do art. 5º: incisos Lv (“aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”) e LXXviii (“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação”). no ano de 1999 foi editada, ademais, a Lei
nº 9.784, que regula o processo administrativo no âmbito da união.
evidentemente que as simples menções feitas pela Constituição Federal ou em
leis à existência do processo administrativo não são suficientes para que a discussão seja
dada por encerrada. Celso Antônio Bandeira de mello utiliza uma expressão (processo
973
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
974
administrativo) pela outra (procedimento administrativo) quando trata da atividade
administrativa. Afirma o tão ilustre autor que “procedimento administrativo ou processo
administrativo é uma sucessão intinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final conclusivo”. O mesmo autor, todavia, ao concluir o item
em que enfrenta a dicotomia entre processo e procedimento administrativo afirma: “Dizem
eminentes mestres que esta sucessão de atos tendentes a uma finalidade é um processo
e que há, sem dúvida, formas específicas de realizá-lo, isto é, aspectos externos dele, os
quais constituem os procedimentos. Por força disto muito sustentam, ao nosso ver com
razão, consoante dantes dissemos, que o chamado procedimento administrativo melhor
se denominaria processo, por ter realmente esta natureza, o que, de resto, é exato”.2
A existência do processo administrativo, e neste ponto discordamos — máxima
vênia — do ilustre autor, em nada invalida a existência do procedimento administrativo.
maria sylvia Zanella di Pietro leciona que “não se confunde o processo com o procedimento. o primeiro existe sempre como instrumento indispensável para o exercício de
função administrativa; tudo o que a Administração Pública faz, operações materiais ou
atos jurídicos, fica documentado em um processo; cada vez que ela toma uma decisão,
executar uma obra, celebrar um contrato, editar um regulamento, o ato final é sempre
precedido de uma série de atos materiais e jurídicos, consistentes em estudos, pareceres,
informações, laudos, audiências, enfim, tudo o que for necessário para instruir, preparar
e fundamentar o ato final objetivado pela Administração”. Ao se referir ao procedimento
administrativo, afirma a autora que se trata do “conjunto de formalidades que devem
ser observadas para a prática de certos atos administrativos; equivale a rito, a forma de
proceder; o procedimento se desenvolve dentro de um processo”.3
A partir da correta visão exposta pela autora, é de se concluir que o processo
administrativo corresponde ao próprio encadeamento de atos; o procedimento administrativo, ao iter processual a que se devem submeter os atos do processo. Quando se
afirma que a licitação é um processo administrativo, por exemplo, quer-se dizer que se
trata de um conjunto ordenado de atos tendentes a determinado resultado, no caso à
adjudicação do objeto à empresa vencedora do certame e à consequente contratação. A
definição do rito, ou seja, a indicação da ordem, do prazo, da forma ou da competência
para a prática dos atos do processo, corresponde ao procedimento da licitação. Assim,
se a licitação é um processo administrativo, a concorrência, a tomada de preços, o convite, o pregão etc., ou seja, as modalidades de licitação indicam o procedimento a ser
observado na condução do processo licitatório.
sempre que a lei estabelecer determinado processo, cumpre a ela indicar o procedimento a que se sujeitará a sua condução. Se a lei fixa o processo disciplinar aplicável
aos servidores públicos, do processo tributário, do processo de prestação ou de tomada
de contas, a ela cumpre indicar o procedimento, isto é, o rito processual a ser observado
na prática dos atos tendentes à aplicação das sanções, ao lançamento tributário ou ao
julgamento das contas dos gestores. se a prática de determinado ato requer a instauração de processo e não for indicado procedimento específico, deverão ser observados, ao
2
3
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 446.
di Pietro. Direito administrativo, p. 600.
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo
menos no âmbito da Administração Pública federal, os ritos definidos pela Lei nº 9.784/99,
conforme será examinado adiante.
É de se concluir, portanto, que à semelhança da atividade judicial, a função administrativa do estado igualmente convive com processos e procedimentos, sem que os
primeiros possam ser confundidos com os segundos.
19.3 Processo e forma do ato
A Lei de Licitações, em seu art. 4º, parágrafo único, dispõe que “o procedimento
licitatório previsto nesta Lei caracteriza ato administrativo formal, seja ele praticado em
qualquer esfera da Administração Pública” (grifos nossos).
Ao dispor que a licitação caracteriza ato administrativo formal, a lei demonstra a
dificuldade de distinguir os conceitos de processo, de procedimento e de ato formal,
ou de formalidade do ato.
o processo e o procedimento, conforme demonstrado no item anterior, não se
confundem, haja vista o primeiro corresponder ao encadeamento de atos e o segundo
ao rito a que se submetem esses atos.
o processo igualmente não pode ser confundido com a formalidade que é
comum ao ato administrativo. A forma do ato corresponde à exteriorização do ato, à
indicação de como ele deve manifestar-se. A licitação, conforme já mencionado, não
é ato administrativo formal como afirma a lei. Ela é um processo administrativo, haja
vista se compor de diversos atos encadeados e tendentes à produção de determinado
resultado. Cada ato que compõe o processo licitatório é ato formal, no sentido de que
deve ser produzido de acordo com os critérios e regras definidos em lei. A forma do
ato indica como ele deve ser exteriorizado, se deve ser produzido por escrito por meio
de escritura pública, se deve ser praticado por escrito por meio de escritura particular;
uma vez sendo praticado por escrito, se é necessário o reconhecimento de firma em
cartório, que informações devem ser lançadas no instrumento que formaliza o ato, como,
por exemplo, a assinatura de quem pratica, data, local de sua realização, ou ainda se
ele pode ser praticado verbalmente, que segundo alguns importaria na ausência de
forma. A Lei nº 9.784/99, em seu art. 22, dispõe acerca da forma dos atos do processo
administrativo. No §1º desse artigo é afirmado que “os atos do processo devem ser produzidos por escrito, em vernáculo, com a data e o local de sua realização e a assinatura
da autoridade responsável”.
A licitação, portanto, não é, diversamente do que afirma a lei, ato formal. Ela é
um processo administrativo, mas cada ato que integra esse processo é ato formal.
19.4 Categorias de processos administrativos
diversos critérios podem ser utilizados para enquadrar os processos administrativos em diferentes categorias.
Há processos internos, que se desenvolvem dentro das unidades administrativas
e que não afetam pessoas estranhas à Administração Pública. Pedido formulado por
servidor público para a incorporação de determinada vantagem é exemplo de processo
interno. outros, como a licitação ou o concurso público, são processos externos, haja vista
afetarem pessoas estranhas às estruturas administrativas das unidades responsáveis
975
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
976
pela sua condução. determinados processos podem ser instaurados de ofício, como o
processo administrativo disciplinar; outros dependem de provocação do interessado, como
o pedido para a Administração Pública expedir alvará de construção. maria sylvia
Zanella di Pietro fala-nos ainda em processos jurídicos em oposição aos processos técnicos,
onde o segundo corresponde à prática de atos internos, de preparação para a prática
daqueles primeiros (jurídicos), em que a Administração deverá coordenar o interesse
público com o interesse do particular.4
De todas as possíveis categorias de processo administrativo, a classificação mais
importante os divide em duas categorias: processos ampliativos de direito e processos restritivos de direito. os processos ampliativos de direito podem ainda ser divididos em
concorrenciais ou não-concorrenciais. A licitação e o concurso público podem ser apontados como processos ampliativos de direito concorrenciais. A expedição de alvará para
construir é exemplo de processo ampliativo de direito não-concorrencial.
A divisão dos processos em ampliativos (concorrenciais ou não-concorrenciais) e
restritivos de direito é relevante em razão da necessidade de sujeição do procedimento
a maiores ou menores rigores formais.
os processos ampliativos concorrenciais, por exemplo, devem observar maior
rigor formal em sua condução que os processos ampliativos não-concorrenciais em razão
da necessidade de observância do princípio da impessoalidade e da competição. Assim,
se licitante perde prazo para recorrer contra a habilitação de outro licitante, não se pode
admitir o recurso se ele for intempestivo, haja vista se tratar de processo concorrencial.
Ao contrário, se certo indivíduo solicita a expedição de licença, tem o pedido negado
e recorre fora do prazo, poderia, ainda assim, em nome da sua relevância e em caráter
excepcional, ser admitido o recurso em razão de que seu conhecimento não acarretaria
prejuízo a terceiros.
idêntico raciocínio deve ser observado em relação aos processos restritivos de
direito, ainda que por razões diversas. no caso dos processos concorrenciais, o rigor
formal se impõe em função da necessidade de tratamento igualitário que deve ser dispensado aos competidores. no caso dos processos restritivos de direito, o formalismo
se vincula à necessidade de observância do princípio do devido processo legal e de seus
consectários: contraditório e ampla defesa.
importa observar que o contraditório e a ampla defesa, impostos pela Constituição Federal (art. 5º, Lv) aos processos punitivos (o texto constitucional faz referência
expressa aos acusados em geral), são de observância obrigatória em todo e qualquer
processo restritivo de direito. desse modo, não apenas o processo disciplinar, mas
qualquer processo que possa importar em restrição de direito dos particulares, como
processo administrativo que objetive anular ato ou contrato, como condição de validade,
requer a observância do contraditório e da ampla defesa.5
4
5
di Pietro. Direito administrativo, p. 602.
A jurisprudência do supremo tribunal Federal em relação à necessidade de observância do contraditório e da
ampla defesa em processos encontra-se em constante evolução. Até recentemente — re nº 213.513-sP (1ª turma.
rel. min. ilmar Galvão. Julg. 8.6.1999. DJ, 24 set. 1999) e re nº 224.283-sP (1ª turma. rel. min. ellen Gracie. Julg.
11.9.2001. DJ, 11 out. 2001) — o entendimento adotado acerca da interpretação do art. 5º, Lv, da Constituição
Federal era no sentido de que a aplicação desse dispositivo “pressupõe litígio ou acusação, não se aplicando,
assim, à espécie, já que se trata de ato de nomeação nulo, passível de revogação pela própria Administração”
(re nº 224.283-sP). Precedente citado: Informativo STF, n. 241.
recente jurisprudência do stF tem adotado nova interpretação do dispositivo constitucional no sentido de que
o contraditório e a ampla defesa devem ser observados em quaisquer processos administrativos tendentes a afetar interesses individuais, conforme se depreende do julgamento do RE nº 158.543-RS, onde ficou assentado que,
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo
19.5 Princípios do processo administrativo
o processo administrativo deve ser conduzido com observância dos princípios
básicos da Administração Pública (legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade, publicidade, eficiência, motivação etc.). Além desses princípios, surgem outros
princípios próprios dos processos administrativos, como o da oficialidade, da gratuidade, da economia processual, da recorribilidade das decisões etc. A aplicação dos
princípios da Administração Pública ao processo administrativo, em muitas situações,
não requer qualquer distinção ou adaptação em relação à sua aplicação a qualquer outra
situação que envolva a atuação administrativa. A necessidade de serem observados no
processo administrativo a moralidade e a finalidade pública, por exemplo, não justifica
qualquer tratamento diferenciado ou específico em relação à aplicação desses princípios
a qualquer outra situação.
É o que ocorre, por exemplo, com o princípio da legalidade. Ao longo do presente
trabalho, temos defendido a necessidade de mitigação da visão clássica do princípio da
legalidade administrativa segundo a qual todo e qualquer ato somente pode ser praticado
se a Administração Pública tiver sido expressamente autorizada por lei. Há processos
administrativos que se submetem de forma restrita à legalidade. É o que se verifica, por
exemplo, com a licitação. A própria Lei nº 8.666/93, em seu art. 22, §8º, veda “a criação
de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo”. essa
sujeição estrita do processo e dos procedimentos licitatórios à legalidade decorre de
expressa disposição legal, e não da aplicação do princípio da legalidade administrativa.
ressalvadas as hipóteses em que a lei expressamente impõe determinado processo
ou procedimento administrativo, o administrador pode criar seus procedimentos ou
processos, podendo fazê-lo, eventualmente, por meio de atos normativos infra-legais.
É o que se verifica, por exemplo, com os concursos públicos para os quais não foi promulgada qualquer lei que defina o seu procedimento. Se fosse verdadeira a tese de que a
Administração Pública nada pudesse fazer sem que houvesse lei autorizativa específica,
dever-se-ia concluir pela ilegalidade de todos os concursos públicos realizados pelas
diferentes esferas de governo. seria, de qualquer modo, adequado que se aprovasse
lei com o propósito de regular os concursos públicos. A inexistência dessa lei, todavia,
não impede realização dos concursos públicos, devendo o próprio edital indicar os
procedimentos que irão conduzir a prática dos diversos atos do certame.
A não sujeição dos processos administrativos ao princípio da legalidade estrita
importa em dar relevância aos princípios do processo administrativo. desse modo, caso
não exista lei específica para cuidar de certo processo ou que defina seu procedimento,
ele deve ser orientado com a observância do contraditório e da ampla defesa, da recorribilidade das decisões, da publicidade, da motivação etc.
A sujeição do processo administrativo aos princípios gerais da Administração
Pública é decorrência natural do próprio texto constitucional. A Lei nº 9.784/99, em seu
“tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseja a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de legitimidade do
ato administrativo praticado que não pode ser afastada unilateralmente, porque é comum à Administração e ao
particular” (re nº 158.543-rs, 2ª turma. rel. min. marco Aurélio. Julg. 30.8.1994. DJ, 06 out. 1995). no mesmo
sentido, vide ms nº 24.268-mG, Pleno. rel. min. ellen Gracie. rel. p/ acórdão min. Gilmar mendes. Julg. 5.2.2004.
DJ, 17 set. 2004. Para maiores considerações sobre o tema, remetemos o leitor ao Capítulo 5.
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978
LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
art. 2º, caput, entendeu necessário repetir a necessidade dessa aplicação e expressamente
menciona a necessidade de serem observados:
(...) dentre outros, os princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse
público e eficiência. Dispõe ainda mencionada lei, em seu art. 2º, parágrafo único que nos
processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
i - atuação conforme a lei e o direito;
II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes
ou competências, salvo autorização em lei;
iii - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de
agentes ou autoridades;
iv - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;
V - divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas
na Constituição;
VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções
em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;
vii - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;
viii - observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;
IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;
X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção
de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e
nas situações de litígio;
Xi - proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei;
Xii - impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados;
Xiii - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento
do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
Para maiores considerações acerca dos princípios gerais da Administração
Pública, remetemos o leitor ao Capítulo 2, em que foi examinado o regime jurídicoadministrativo. Em seguida, serão examinados os princípios específicos do processo
administrativo.
19.5.1 Oficialidade
trata-se de princípio expressamente mencionado pela Lei nº 9.784/99, art. 2º,
parágrafo único, Xii. dispõe mencionado dispositivo que os processos administrativos
deverão observar critérios de “impulsão, de ofício, (...), sem prejuízo da atuação dos
interessados”.
deve-se observar que o dever da Administração Pública de impulsionar, de ofício, os processos administrativos não importa em que todos os processos possam ser
instaurados de ofício pelo poder público. A Lei nº 8.112/90 e a Lei nº 8.443/92 dispõem,
respectivamente, acerca do dever da autoridade competente de instaurar os devidos
processos disciplinares e de tomada de contas especiais. nestas hipóteses, além de
impulsionar, a mencionada autoridade tem o dever de instaurar de ofício o processo,
sob pena de responsabilidade.
A regra da instauração de ofício não se aplica, todavia, aos processos ampliativos
de direito não concorrenciais. não é cabido, por razões evidentes, à Administração
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo
Pública instaurar processo de interesse dos particulares. de qualquer modo, ainda que
a Administração não possa instaurar de ofício determinados processos, ela tem o dever
de impulsioná-los independentemente de qualquer nova provocação, ressalvadas as
situações em que caiba ao interessado a prática de ato que não possa ser suprido pela
própria unidade administrativa em que o processo tem curso.
19.5.2 Gratuidade
A Lei nº 9.784/99, art. 2º, parágrafo único, Xi, expressamente proíbe a “cobrança
de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei”.
desse modo, desde que haja lei autorizativa, é possível a cobrança de despesas
processuais. Essa possibilidade, todavia, fica restrita aos processos ampliativos de direito.
no caso de concurso público, por exemplo, é lícita a cobrança de taxas de inscrição.
em hipótese alguma é lícita a cobrança de taxas nos processos restritivos de direito.
19.5.3 Ampla defesa e contraditório
Como consectários do princípio maior do devido processo legal, em todos os
processos restritivos de direito, o contraditório e a ampla defesa devem ser obrigatoriamente assegurados. A previsão para a observância desses princípios é decorrência
do próprio texto constitucional, não obstante diversas legislações, inclusive a Lei
nº 9.784/99, ratifiquem sua observância. Consequências diretas dos princípios da ampla
defesa e do contrário são a possibilidade de o interessado ter acesso às informações
constantes dos autos do processo de modo a poder contraditá-las e delas se defender.
19.5.4 recorribilidade das decisões administrativas
A possibilidade de as decisões administrativas poderem ser objeto de recurso por
parte dos interessados se encontra prevista na Constituição Federal, que ao fixar o princípio do devido processo legal, expressamente dispõe que “aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (grifos nossos).
As regras básicas relacionadas à possibilidade de que aos interessados seja assegurado o direito de recorrer das decisões administrativas que lhes sejam contrárias se
encontram disciplinadas na Lei nº 9.784/99, que, em seu art. 56, dispõe que “das decisões
administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito”. Define a lei
ainda as regras básicas acerca da interposição dos recursos, conforme será examinado
adiante.
Antes mesmo da vigência da Lei nº 9.784/99, no entanto, o estudo dos recursos
administrativos já havia evoluído e merecido importância especial como instrumento
de controle da Administração Pública.
Foram admitidas pela doutrina pátria diferentes categorias de recursos administrativos. Falava-se, inicialmente, em recursos hierárquicos próprios e impróprios. os primeiros têm tramitação dentro da mesma unidade administrativa em que o ato recorrido foi
praticado, sendo dirigidos à autoridade hierarquicamente superior àquela que praticou
o ato. os recursos hierárquicos impróprios são dirigidos a autoridades às quais aquela
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
980
que praticou o ato não se encontra subordinado. seria exemplo desta última categoria a
possibilidade de ato praticado por uma autarquia ser revisto pelo ministro ou secretário
de estado a que mencionada autarquia esteja vinculada.
o cabimento dos recursos hierárquicos próprios independe de expressa previsão
legal e decorre do exercício do próprio poder hierárquico. o recurso hierárquico impróprio, que não decorre do exercício do poder hierárquico, somente deve ser admitido se
expressamente previsto em lei.
são apontados como recursos administrativos:
- As representações, por meio das quais as autoridades legitimadas questionam
a validade de atos praticados pela Administração Pública;
- As reclamações, em que a pessoa diretamente afetada pelo ato administrativo
pleiteia sua reforma;
- o pedido de reconsideração, em que o interessado se dirige à mesma autoridade
que praticou o ato e solicita que ela reveja o ato praticado; e
- A revisão, em que é solicitado reexame de matéria já decidida em processo
administrativo.
não obstante esta terminologia seja corrente na doutrina — e aqui nos reportamos
diretamente aos ensinamentos de José dos santos Carvalho Filho6 — deve ser observado
que nem sempre o legislador se mantém fiel a esta terminologia. Não necessariamente
o recurso utilizado para pedir o reexame de decisão proferida em processo de contas
julgado pelo tCu observará a mesma linguagem da legislação que disciplina o processo
tributário, disciplinar ou licitatório. Adiante serão examinados os recursos disciplinados
pela Lei nº 9.784/99.
19.5.5 economia processual
A Lei nº 8.443/92, que institui a Lei orgânica do tCu, contém dispositivo que
representa, de modo inequívoco, o princípio da economia processual. dispõe o art. 93
da mencionada lei que “a título de racionalização administrativa e economia processual,
e com o objetivo de evitar que o custo da cobrança seja superior ao valor do ressarcimento, o tribunal poderá determinar, desde logo, o arquivamento do processo, sem
cancelamento do débito, a cujo pagamento continuará obrigado o devedor, para que
lhe possa ser dada quitação”.
vê-se que o princípio pode legitimar o próprio arquivamento de processos
administrativos.7 Além disso, a possibilidade de serem aproveitados atos praticados
em outros processos ou em processos anulados igualmente decorre da aplicação do
princípio da economia processual. em relação a esta última possibilidade, de serem
aproveitados atos praticados em processo nulo, deve-se restringir o aproveitamento
àqueles atos não afetados pela nulidade. Caso esta tenha contaminado todos os atos
processuais, evidentemente que o princípio da economia processual não legitimaria
seu aproveitamento.
6
7
CArvALHo FiLHo. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 768.
A título de exemplo, tem-se que o tribunal de Contas da união decidiu arquivar o Processo nº tC-324.009/1991-7
mesmo restando resíduo de débito contra o responsável, em favor da união, no valor de r$2,88 (dois reais e oitenta
e oito centavos). Aquele tribunal de Contas considerou que o valor do débito restaria inferior ao custo de sua
cobrança e, por esse motivo, decidiu arquivar definitivamente o processo e dar quitação ao responsável, em nome
da economia processual (tCu. Acórdão nº 042/95, Plenário. DOU, 09 maio 1995).
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo
19.5.6 Formalismo moderado
o excesso de importância conferida aos processos judiciais talvez constitua uma
das razões mais relevantes para a ineficiência da atividade jurisdicional do Estado, e
parte significativa dos problemas do processo judicial (civil ou penal) reside no formalismo exagerado previsto em lei e valorizado por parte significativa da magistratura.
É certo que o processo deve ser o instrumento para a realização dos fins estatais
e para assegurar a observância dos princípios garantidores dos direitos e garantias
fundamentais. no momento em que se dá ao processo, ou às formalidades processuais,
importância maior que ao fim buscado pelo Estado, perde-se a racionalidade do processo e o resultado é a ineficiência estatal.
A possibilidade de serem superadas falhas processuais que não tenham causado
dano a terceiros ou de serem conhecidos recursos administrativos intempestivos em
razão da relevância da matéria tratada são exemplos de aplicação aos processos administrativos do princípio do formalismo moderado.8
evidentemente que nos processos concorrenciais a regra deve ser o formalismo.
salvo se a superação de falhas ou de exigências processuais não causar dano ou prejuízo
aos demais competidores do certame, não se deve admitir soluções contrárias às regras
pertinentes à tramitação desses processos. Em matéria de licitação, tem-se verificado o
que a jurisprudência denomina de excesso de rigor formal. A impossibilidade de serem
superadas pequenas falhas em propostas apresentadas pelos licitantes resulta, em muitas
circunstâncias, na desclassificação de propostas que poderiam gerar enormes benefícios
para a Administração Pública. É o caso, por exemplo, de proposta que, contrariando
o edital, apresenta os preços somente em algarismos e não o faz por extenso. se, não
obstante esta falha, não houver dúvida acerca do conteúdo e do valor da proposta, deve
ela, ainda assim, ser desclassificada? A jurisprudência, inclusive do STJ, tem reiteradamente repudiado essa postura que tem sido denominada de excessivamente formalista.
A possibilidade de mitigação do formalismo nos processos concorrenciais não pode ser
utilizada, todavia, para favorecer determinado competidor em detrimento dos demais,
fato que importaria em quebra de outro princípio, o da isonomia.
o tribunal de Contas da união tem adotado esse mesmo entendimento, no qual
a desclassificação de licitantes por conta de erro formal sanável na apresentação da
proposta ou na documentação exigida pelo certame constitui apego ao formalismo, que,
muitas vezes, acarreta prejuízos para a própria Administração Pública.9 de igual modo
8
9
na sessão da 1ª Câmara de 9.5.2006, o tribunal de Contas da união decidiu conhecer de recurso interposto
intempestivamente pela responsável recorrente, com base no seguinte voto condutor, que teve por fundamento
o princípio do formalismo moderado:
“inicialmente, registro que, a despeito da apresentação a destempo da presente peça recursal, por ser esta a primeira intervenção da responsável no processo, em respeito ao princípio do formalismo moderado, os argumentos
e a documentação oferecidos poderão ser recebidos como documentos novos, capazes de fazer relevar a intempestividade apontada, conhecendo-se o recurso como recurso de reconsideração, nos termos do art. 285, §2º do
ri/tCu, eis que preenchidos os requisitos processuais aplicáveis à espécie.” (Acórdão nº 1.175/06, 1ª Câmara. tC
011.567/2004-8. rel. min. marcos Bemquerer. DOU, 15 maio 2006)
nesse sentido, cita-se o Acórdão tCu nº 1.924, Plenário, de 27.07.2011: “22. A jurisprudência do tCu é uniforme
no sentido de constituir-se excesso de rigor a desclassificação de licitantes por conta de erro formal na apresentação da proposta e da documentação exigida (Acórdãos nº 1.791/2006 - Plenário e nº 1.734/2009 - Plenário, entre
outros). É certo que o pregoeiro poderia sanar a falha relacionada à ausência de rubrica em algumas folhas da
proposta, por força do disposto nos itens 8.4 e 9.3 do edital. 23. sendo assim, entendo que não se consubstancia
em razão suficiente para a desclassificação da representante, a ausência de rubrica em algumas folhas da proposta, erro formal perfeitamente sanável”.
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
982
pode ser admitida a moderação do formalismo nos processos restritivos de direito,
especialmente se tiver por objetivo a realização do princípio da verdade material. A
aplicação desse princípio do formalismo moderado tem sido admitida inclusive em
situações contrárias ao interesse dos acusados em processos restritivos de direito. É
o que se verifica, por exemplo, com o processo disciplinar, em que, não obstante a lei
fixe prazo para sua conclusão, a jurisprudência pacificou-se no sentido de considerar
válida a sanção aplicada fora do prazo.
19.5.7 verdade material
nos processos administrativos, diversamente do que ocorre com os processos
judiciais, especialmente no âmbito do processo civil, os responsáveis pela condução
processual não se devem ater às informações constantes dos autos para a formação das
suas convicções e para a construção das decisões a serem proferidas.
evidentemente que se espera que a denominada verdade formal, aquela que se
extrai exclusivamente das informações constantes dos autos, corresponda à realidade
dos fatos e à correta aplicação do direito. ou seja, é de se esperar que a denominada
verdade formal esteja em perfeita harmonia com a verdade material. Caso se constate
eventual descompasso entre uma e outra, no entanto, os responsáveis pela condução
do processo administrativo devem decidir com base na verdade material.
A realização do princípio da verdade material mantém forte relação com o do
formalismo moderado. Assim, exigências ou limitações formais não devem impedir
que a Administração Pública decida com base na verdade material caso esta contrarie
a verdade formal.
Como primeira providência, a Administração Pública deve buscar trazer aos
autos as informações que lhes são estranhas. Caso esta providência não seja possível em
função de limitações materiais ou jurídicas, a formação da convicção do administrador
público deve considerar as informações estranhas aos autos, não obstante elas possam
contrariar aquelas constantes dos autos e, de forma sempre motivada, proferir a decisão
mais condizente com a realidade dos fatos.
A aplicação do princípio da verdade material não pode ser igualmente levada ao
extremo de comprometer a realização de outros princípios. não se admite, por exemplo,
que em razão de recurso interposto pelo interessado sua situação seja agravada.10 ou
seja, a verdade material não se sobrepõe ao princípio do non reformatio in pejus expressamente previsto na Lei nº 8.112/90, art. 182, parágrafo único, que dispõe que “da revisão
do processo não poderá resultar agravamento de penalidade”. idêntica redação é adotada
pela Lei nº 9.784/99 (art. 65, parágrafo único).
10
o tribunal de Contas da união, por ocasião de julgamento de recurso de reconsideração realizado em sessão da
2ª Câmara de 24.7.2001, decidiu não acolher as novas provas colhidas por sua unidade técnica contra o responsável, por entender que o recorrente não poderia ter sua situação agravada, dando assim acolhimento ao voto
do ministro-relator, proferido nos seguintes termos:
“Como se nota, os motivos agora ressaltados pela unidade técnica para o não-provimento do presente recurso
não foram levantados por ocasião do julgamento, motivo pelo qual, face ao princípio recursal da non reformatio
in pejus, penso que seu exame, com possível prolação de decisão mais desfavorável ao responsável, restaria
prejudicada na presente etapa recursal.” (Acórdão nº 378/01, 2ª Câmara. tC 725.091/1998-3. rel. min. Adylson
Motta. DOU, 24 jul. 2001)
CAPítuLo 19
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19.5.8 Publicidade
o princípio da publicidade, por exemplo, requer a divulgação dos dados e
informações constantes dos autos, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade ou do estado, conforme dispõe o art. 5º, XXXiii, da Constituição Federal. Com o objetivo de realizar o princípio da publicidade, o art. 93, X,
da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pela emenda Constitucional
nº 45/04, dispõe que “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em
sessão pública”.
19.5.9 motivação
o princípio da motivação assume igualmente posição especial no moderno direito
Administrativo e na condução dos processos administrativos. não mais se admite decisões sem a expressa indicação das razões de direito e de fato utilizadas para a formação
da convicção do gestor público. A observância do princípio da motivação ao processo
administrativo se encontra disciplinada pelo art. 50 da Lei nº 9.784/99.
19.5.10 Lealdade e boa-fé
Celso Antônio Bandeira de mello menciona ainda o princípio da lealdade e boa-fé.
segundo o autor, a Administração Pública, “em todo o transcurso do procedimento, está
adstrita a agir de maneira lhana, sincera, ficando, evidentemente, interditos quaisquer
comportamentos astuciosos, ardilosos, ou que, por vias transversas, concorram para
entravar a exibição das razões ou direitos do administrado”.11
19.6 Processo da Lei nº 9.784/99
19.6.1 Processo administrativo previsto na Lei nº 9.784/99 e outros
processos administrativos
em capítulos anteriores tivemos a oportunidade de examinar modalidades específicas do processo administrativo: no Capítulo 7, foi examinado o processo licitatório,
no Capítulo 16, referente aos servidores públicos, examinamos o processo administrativo disciplinar previsto na Lei nº 8.112/90, e no Capítulo 18, relativo ao sistema de
controle, foram verificadas particularidades relativas à tramitação dos processos sujeitos
à jurisdição do tCu.
Além dessas modalidades específicas, inúmeras outras legislações estabelecem
processos específicos que não foram objeto de exame em razão de suas especificidades e por extrapolarem as pretensões do presente trabalho. dentre estes, poderíamos
mencionar o processo de inscrição de débitos para com a Fazenda Pública em dívida
ativa (Lei nº 6.830/80) ou o conduzido no âmbito do Conselho Administrativo de defesa
econômica (CAde), nos termos da Lei nº 8.884/94.
11
BAndeirA de meLLo. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 463.
983
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
vê-se que não há um único processo administrativo e, em inúmeras situações,
para um único processo, a lei admite diferentes procedimentos, como o que ocorre com
a licitação, em que cada modalidade constitui procedimento distinto.
Com a pretensão de estabelecer, ao menos no âmbito da Administração Pública
federal, regras a serem observadas na condução de outras modalidades processuais
para as quais não existisse legislação específica, foi aprovada a Lei nº 9.784/99. Caso
exista legislação específica, os processos por ela disciplinados observarão aos critérios
da Lei nº 9.784/99 somente em caráter supletivo. esta regra se encontra prevista na
própria Lei nº 9.784/99, que, em seu art. 69, expressamente prevê que “os processos
administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes
apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”.
19.6.2 Âmbito de aplicação da Lei nº 9.784/99
o art. 1º da Lei do Processo Administrativo dispõe que as regras nela previstas
são aplicáveis “no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da
Administração”. estabelece ainda o §1º deste mesmo artigo que “os preceitos desta Lei
também se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da união, quando
no desempenho de função administrativa”.
Não obstante a lei defina que seu objetivo é disciplinar o processo administrativo
no âmbito da Administração Pública federal, ela vai muito mais além. na Lei do Processo Administrativo são definidas regras aplicáveis a praticamente todas as atividades
administrativas, e não necessariamente relacionadas ao processo administrativo. regras
básicas relacionadas à anulação, revogação e convalidação dos atos administrativos,
por exemplo, que não mantêm pertinência direta com o processo administrativo, estão
previstas na mencionada Lei nº 9.784/99.
importa ainda observar que, não obstante a união não tenha competência para
dispor acerca de processo administrativo no âmbito dos estados e municípios, diversas unidades da Federação têm utilizado a legislação federal como parâmetro para a
aprovação de leis próprias. no caso do distrito Federal, por exemplo, foi aprovada lei
específica determinando pura e simplesmente a aplicação da lei federal aos processos
administrativos do dF.
no caso de não existir lei estadual ou municipal para regular seus processos
administrativos, parece-nos perfeitamente razoável defender a aplicação, por analogia, da legislação federal. A bem da verdade, a Lei nº 9.784/99 não criou ou inovou no
ordenamento jurídico, e quando inovou, o fez em caráter extremamente limitado. em
quase todos os temas ou aspectos enfrentados pela Lei do Processo Administrativo, o
legislador simplesmente adotou uma tese já defendida pela doutrina. tomemos, aqui, a
fixação de prazo dentro do qual a Administração Pública deve anular seus atos. Dispõe o
art. 54 da referida lei que “o direito da Administração de anular os atos administrativos
de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados
da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. Ora, parte significativa da
doutrina, antes mesmo do advento da mencionada lei e como decorrência necessária
do princípio da segurança jurídica, já defendia a impossibilidade de a Administração
Pública poder anular seus atos a qualquer tempo. Quando a Lei nº 9.784/99 fixa o prazo
CAPítuLo 19
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de cinco anos para a adoção dessa providência, ela simplesmente fez opção por solução
que já era defendida pela doutrina e pela jurisprudência.12 Isto igualmente se verifica
quando a lei admite a convalidação de atos que apresentem vícios sanáveis (art. 55),
quando requer a motivação dos atos administrativos (art. 50), quando dispõe sobre
delegação de competência (artigos 11, 12 e 13), quando trata da formalização dos atos
do processo (art. 22) e em diversas outras circunstâncias.
Caso determinado estado ou município aprove legislação própria, observados
os parâmetros constitucionais, evidentemente que ele poderá adotar solução diversa
daquela prevista na legislação federal. todavia, se o estado ou município não houver
aprovado legislação própria para regular seus processos administrativos, ou caso o
tenha feito, não tenha dado solução para questão enfrentada pela Lei nº 9.784/99, entendemos que em razão da segurança dos administrados e da racionalidade da atividade a
legislação federal deva ser observada. desse modo, se lei estadual regula os processos
administrativos no âmbito da Administração Pública estadual, mas não fixa prazo
para a anulação dos seus atos administrativos, o prazo de cinco anos previsto na Lei
nº 9.784/99 deve ser observado. reiteramos que essa aplicação analógica e subsidiária
da lei federal aos estados e municípios deve ser feita como imperativo à segurança
jurídica dos administrados.
19.6.3 direitos e deveres dos administrados
A Lei nº 9.784/99 adota o princípio da oficialidade, segundo o qual cumpre à
Administração Pública impulsionar o processo. Não obstante a regra da oficialidade, a
lei determina que o impulso oficial deve ocorrer “sem prejuízo da atuação dos interessados”. desse modo, não obstante a condução do processo seja atribuição da Administração, a lei fixa regras que conferem encargos (deveres) e direitos aos administrados.
A lei (art. 3º) confere ao interessado, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados, os seguintes direitos:
i - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício
de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;
ii - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de
interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer
as decisões proferidas;
iii - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto
de consideração pelo órgão competente;
iv - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei.
12
nesse sentido, stJ: “mandado de segurança. Aposentadoria, servidor público. revisão do ato. Ausência de instauração de processo administrativo disciplinar. Violação do devido processo legal e da ampla defesa configurada.
impossibilidade da administração revisar o ato. decadência. Artigo 54 da Lei nº 9.784/99. 1. A jurisprudência
desta Corte Superior de Justiça, seguindo orientação do Pretório Excelso, firmou entendimento no sentido de
que a desconstituição da eficácia de qualquer ato administrativo, que repercuta no âmbito dos interesses individuais dos servidores ou administrados, deve ser precedido de instauração de processo administrativo, em obediência aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, com todos os recursos a ela
inerentes. 2. ‘o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis
para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.’
(artigo 54 da Lei nº 9.784/99). 3. ‘Após decorridos 5 (cinco) anos não pode mais a Administração Pública anular
ato administrativo gerador de efeitos no campo de interesses individuais, por isso que se opera a decadência.’
(ms nº 6.566/dF, relator p/ acórdão ministro Francisco Peçanha martins, in dJ 15/5/2000). Precedente da 3ª seção.
4. ordem concedida” (ms nº 7.978-dF, 3ª seção. rel. min. Hamilton Carvalhido. Julg. 28.8.2002. DJ, 16 dez. 2002).
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LuCAs roCHA FurtAdo
Curso de direito AdministrAtivo
no que toca aos deveres, a lei (art. 4º) impõe os seguintes, sem prejuízo de outros
previstos em ato normativo:
i - expor os fatos conforme a verdade;
ii - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé;
iii - não agir de modo temerário;
iv - prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos
fatos.
19.6.4 instauração e condução do processo
nos termos do art. 5º, o processo administrativo pode iniciar-se de ofício ou a
pedido de interessado.
Caso a instauração do processo decorra de provocação do interessado, esta deverá
ser formulada por escrito, salvo casos em que for admitida solicitação oral.
A petição do interessado deverá, conforme dispõe o art. 6º, conter os seguintes
dados:
i - órgão ou autoridade administrativa a que se dirige;
II - identificação do interessado ou de quem o represente;
iii - domicílio do requerente ou local para recebimento de comunicações;
iv - formulação do pedido, com exposição dos fatos e de seus fundamentos;
v - data e assinatura do requerente ou de seu representante.
têm legitimidade para pleitear a instauração do processo administrativo, nos
termos do art. 9º:
i - pessoas físicas ou jurídicas que o iniciem como titulares de direitos ou interesses
individuais ou no exercício do direito de representação;
ii - aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou interesses que possam ser
afetados pela decisão a ser adotada;
iii - as organizações e associações representativas, no tocante a direitos e interesses
coletivos;
iv - as pessoas ou as associações legalmente constituídas quanto a direitos ou interesses
difusos.
A Lei nº 9.784/99, em seus artigos 11 a 17, indica as regras básicas acerca da competência dos responsáveis pela condução do processo. As principais regras são as seguintes:
- A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que
foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente
admitidos (art. 11);
- se não houver impedimento legal, poderá ocorrer a delegação de parte da competência do responsável a outros órgãos ou titulares, ainda que estes não lhe
sejam hierarquicamente subordinados, quando for conveniente, em razão de
circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial (art. 12);
- não é admitida delegação de competência para 1. a edição de atos de caráter
normativo, 2. a decisão de recursos administrativos; e 3. as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade (art. 13).
CAPítuLo 19
ProCesso AdministrAtivo
À semelhança do que se verifica com o Direito Processual Civil e Penal, a Lei
nº 9.784/99, em seu art. 18, estabelece normas de impedimento para atuar em processos
administrativos em relação ao servidor ou autoridade que:
i - tenha interesse direto ou indireto na matéria;
ii - tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante,
ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até o
terceiro grau;
iii - esteja litigando judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo
cônjuge ou companheiro.
Caso o servidor ou autoridade impedida não comunique seu impedimento, o que
constitui falta grave, poderá ele ser arguido pelos interessados.
Além das regras sobre impedimento, a lei fixa igualmente regras de suspeição, a
qual pode ser arguida caso a autoridade ou servidor tenha amizade íntima ou inimizade
notória com algum dos interessados ou com os respectivos cônjuges, companheiros,
parentes e afins até o terceiro grau (art. 20). O indeferimento de alegação de suspeição
poderá ser objeto de recurso, sem efeito suspensivo.
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esta obra foi composta em fonte Palatino Linotype, corpo 10
e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa)
pela Artes Gráficas Formato Ltda.
Belo Horizonte/mG, abril de 2013.