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A pandemia e seus impactos no Brasil

2020, Middle Atlantic Review of Latin American Studies

O trabalho apresenta um panorama da pandemia da COVID-19 no Brasil. Enquanto as desigualdades sociais no país são apontadas como uma das causas do elevado número de casos da doença, a análise destaca um elemento que suaviza a ocorrência de uma catástrofe nacional: o Sistema Único de Saúde (SUS) implementado a partir da Constituticao de 1988. Palavras-chave: Brasil, COVID-19, desigualdades sociais, Sistema Único de Saúde (SUS) The commentary presents an overview of the COVID-19 pandemic in Brazil. While social inequalities in the country are identified as one of the causes of the high number of cases of the disease, this analysis points to an element that has ameliorated the occurrence of a national catastrophe: the Brazilian National Health System (Sistema Único de Saúde, SUS) implemented under the 1988 constitution.

Middle Atlantic Review of Latin American Studies, 2020 Vol. 4, No. 1, 20-25 A pandemia e seus impactos no Brasil Carla Almeida Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM) carlaalm@uol.com.br Lígia Lüchmann Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ligia@cfh.ufsc.br Carla Martelli Professora da Universidade Estadual Paulista (UNESP) carla.martelli@unesp.br1 O trabalho apresenta um panorama da pandemia da COVID-19 no Brasil. Enquanto as desigualdades sociais no país são apontadas como uma das causas do elevado número de casos da doença, a análise destaca um elemento que suaviza a ocorrência de uma catástrofe nacional: o Sistema Único de Saúde (SUS) implementado a partir da Constituticao de 1988. Palavras-chave: Brasil, COVID-19, desigualdades sociais, Sistema Único de Saúde (SUS) The commentary presents an overview of the COVID-19 pandemic in Brazil. While social inequalities in the country are identified as one of the causes of the high number of cases of the disease, this analysis points to an element that has ameliorated the occurrence of a national catastrophe: the Brazilian National Health System (Sistema Único de Saúde, SUS) implemented under the 1988 constitution. Keywords: Brazil, COVID-19, social inequalities, universal health care, SUS Introdução Na segunda semana de junho, o Brasil tornou-se o segundo país no mundo com o maior número de casos do Covid-19 e também com vítimas fatais da doença. De acordo com as projeções, o número de mortes no país poderá chegar a mais de 80 mil no início de agosto, conforme declarou 1 A ordem das autoras segue a ordem alfabética dos sobrenomes. © 2020 The Authors. Published by the Middle Atlantic Council of Latin American Studies on the Latin American Research Commons (LARC) at http://www.marlasjournal.com DOI: 10.23870/marlas.313 Almeida et al - A pandemia e seus impactos no Brasil a diretora da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), Carissa Etienne. 2 Além de suas dimensões continentais, outros dois fatores tornam o Brasil um forte candidato a liderar as tristes estatísticas mundiais, quais sejam: o comportamento do presidente do país e as profundas desigualdades sociais. De outra parte, registramos um elemento que, diante desse contexto político e socioeconômico desfavorável, suaviza, ainda que territorialmente de forma bastante desigual, a ocorrência de uma catástrofe em todo o país: o Sistema Único de Saúde (SUS) implementado a partir da Constituição de 1988. O artigo aborda esses três fatores. 1. O Presidente da República: Jair Bolsonaro e a “gripezinha” e o “E daí?”3 É com espanto que o mundo assiste aos pronunciamentos e acompanha o comportamento do presidente Jair Bolsonaro diante da pandemia da Covid-19, desde a afirmação de que se trata de uma “gripezinha”, passando pela obsessão ao uso indiscriminado da “cloroquina”, pela defesa do fim do isolamento social e, como corolário, pelos embates e conflitos com governadores que têm se posicionado de forma responsável diante da pandemia no país. As demissões de dois ministros da saúde no contexto da pandemia e as aparições em eventos e manifestações públicas sem máscara e em total desacordo com os protocolos da Organização Mundial de Saúde são exemplos inquestionáveis do descaso governamental com a doença e com as mortes que, a cada dia, assolam os brasileiros em uma proporção (uma morte por minuto) que supera todas as estatísticas de óbitos no país. Tem sido notório o caráter eleitoral desse comportamento que, seguindo cartilha de Donald Trump, vem apostando nos argumentos de abertura econômica e de manutenção de empregos junto a um eleitorado castigado pela crise econômica e bombardeado pelas fake news que tornam o Brasil o líder mundial, seguido pelos EUA, de produção e disseminação de informações falsas sobre os números da doença,4 amplificando um processo de desinformação que encontra solo fértil em um país assentado, estruturalmente, em profundas desigualdades sociais e em gigantescos déficits educacionais. 2. Desigualdades sociais e regionais A desigualdade social é a característica mais marcante e conhecida da sociedade brasileira o que, evidentemente, torna mais dramático os impactos da pandemia, principalmente porque ela nos atinge em um momento particularmente preocupante de crescimento do desemprego, queda de renda e de encolhimento das proteções sociais. A combinação entre crise política e econômica 2 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/26/opas-se-diz-profundamente-preocupadacom-brasil-e-descarta-melhora-rapida.htm. 3 No dia 28 de abril uma jornalista questionou o presidente sobre o aumento no número de óbitos no país, e a sua resposta foi: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. 4 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/brasil-lidera-desinformacao-sobre-numero-de-casos-emortes-por-covid-19-no-mundo.shtml. 21 MARLAS 4(1), 2020, DOI: 10.23870/marlas.313 Middle Atlantic Review of Latin American Studies experimentada pelo país nos últimos anos abriu espaço para a implementação de propostas que espreitavam o Brasil há tempos: a desregulamentação de direitos e o desmonte de políticas públicas que visam à seguridade social.5 Considerando essa realidade, não foi ao acaso que a primeira vítima fatal da Covid-19 no Rio de Janeiro, a segunda cidade brasileira com maior número de casos da doença, tenha sido uma trabalhadora doméstica de 63 anos, categoria profissional fortemente atingida pela informalidade, que percorria semanalmente 120km para chegar à casa dos empregadores, de quem pegou o vírus.6 As condições de vida dessa trabalhadora retratam as desigualdades sociais da sociedade brasileira e iluminam o caráter multidimensional das vulnerabilidades que afetam a maioria da população das periferias das metrópoles e das regiões que concentram pobreza: a dificuldade em manter o isolamento social em face da necessidade de buscar renda num contexto de frágil sistema de proteção social; as condições precárias de habitação e de saneamento; o acesso precário a serviços de saúde, as desigualdades raciais, e a baixa escolarização. Essas desigualdades se traduzem de várias maneiras, clivando territórios e grupos sociais. Um estudo mostrou que as chances de morte pela Covid-19 no Brasil são maiores entre negros diante de brancos e de pessoas com menor escolaridade. 7 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram que enquanto Estados como São Paulo, servido com 260 médicos por 100 mil habitantes, e Rio Grande do Sul com 244 (situados nas Regiões Sul e Sudeste), o Maranhão e o Pará (situados nas Regiões Nordeste e Norte) contam com, respectivamente, 81 e 85 médicos por 100 mil. No geral, esse padrão de desigualdade regional se repete na distribuição de leitos de UTI, respiradores e outros profissionais da saúde8 e reflete as diferenças de número de mortes entre as regiões do país, com clara vantagem para a região sul.9 Em que pesem essas desigualdades, o fato é que o país conta com um sistema de saúde, o SUS, cuja natureza descentralizada e pautada no princípio da universalidade é apontada como fator central na contenção de uma tragédia de proporções inigualáveis no mundo. 5 A Emenda Constitucional n.º 95, aprovada em 2016, é um exemplo. Ela alterou a Constituição brasileira de 1988 para barrar o crescimento das despesas do governo brasileiro nos próximos 20 anos. Outro exemplo foi a Reforma Trabalhista, aprovada em 2017, que encolheu direitos trabalhistas e desregulamentou em vários aspectos as obrigações sociais dos empregadores. 6 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-epegou-coronavirus-da-patroa.htm. Acesso em: 11/06/2020. 7 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/02/covid-mata-54-dos-negros-e-37-dos-brancosinternados-no-pais-diz-estudo.htm?cmpid=copiaecola 8 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27614-ibge-divulgadistribuicao-de-utis-respiradores-medicos-e-enfermeiros, acessado em 10/06/2020. 9 Por exemplo, se o Estado de Santa Catarina (7.164.788 hab) contava, até o dia 12 de junho, com 13.165 casos e 191 óbitos por Covid, o Estado do Amazonas (4.144.597 hab) contava com 55.111 casos e 2.429 óbitos. http://www.coronavirus.sc.gov.br /. http://www.saude.am.gov.br/painel/corona/. Acesso em: 13/06/2020. 22 MARLAS 4(1), 2020, DOI: 10.23870/marlas.313 Almeida et al - A pandemia e seus impactos no Brasil 3. O SUS e a Pandemia A pandemia causada pela Covid-19 traz à luz a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), que assume protagonismo no atendimento às vítimas da doença. De fato, as autoridades da saúde não cansam de reverenciar o SUS por ser o maior sistema público de saúde universal, abrangendo assistência à saúde, vigilância em saúde, fornecimento de medicamentos, desenvolvimento de pesquisas, vacinação gratuita, entre outras várias frentes. Dos países reconhecidos por possuírem sistema de saúde público e universal, como Canadá, Dinamarca, Suécia, Espanha, Portugal, Cuba e Reino Unido, o mais populoso é o último, com cerca de 66,4 milhões de pessoas, colocando o Brasil em destaque por ser o único país a ter um sistema universal com uma população de mais de 200 milhões de habitantes.10 Recordemos que a criação do SUS ocorreu no bojo do processo de redemocratização do país, na década de 1980, orientada por princípios universalistas, equânimes e democráticos. O Movimento Sanitário teve papel central nesse processo ao defender uma política de restabelecimento da democracia atrelada a um projeto de seguridade social universal e gerido de forma participativa e descentralizada. Sua proposta de um novo modelo de sistema de saúde, fundamentado no direito público e universal no que diz respeito ao cuidado de saúde e ao controle exercido pela sociedade, foi sintetizada na VIII Conferência Nacional de Saúde realizada em 1986. A carta Constitucional de 1988 absorveu a proposta sacramentando a garantia de direitos de cidadania à saúde, tornando-se a proposta mais abrangente que já se viu em uma carta magna, quando comparada com a de qualquer país. O Estado assumiu o papel de produtor direto dos serviços e de principal agente de financiamento e regulamentação do setor de saúde, combinando seu papel com normas de descentralização e municipalização (Silva 1995; Gerschman e Santos 2006). Assim, em que pese os problemas, em especial de desfinanciamento do sistema no decorrer dos anos, tem sido o SUS, ao longo das suas três décadas de história, a garantir saúde para todos e todas no Brasil: atualmente 162 milhões de pessoas dependem exclusivamente do SUS para quaisquer atendimentos, da atenção primária a tratamentos de alta complexidade. No que se refere especificamente à pandemia da Covid-19, também é o SUS que tem dado as melhores respostas, que vão desde a assistência direta para todos os que procuram os serviços de saúde, até o funcionamento conjugado dos laboratórios públicos e o trabalho da vigilância epidemiológica do Ministério da Saúde (Dantas 2020). Ressalta-se a importância da descentralização do atendimento, alimentado por um sistema capilarizado (Unidades Básicas de Saúde, Unidades de Pronto Atendimento, e os hospitais) e da gestão, por meio dos conselhos gestores – municipais, estaduais e nacional – de formulação e controle das políticas de saúde. A complexidade e amplitude do sistema enfrenta os desafios da saúde no Brasil, que convive com problemas básicos e primários, ainda não resolvidos, como a falta de saneamento básico, 10 https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/noticias/9beecf4ad16d38b194a13624781a489e/. Acesso em: 9/06/2020. 23 MARLAS 4(1), 2020, DOI: 10.23870/marlas.313 Middle Atlantic Review of Latin American Studies desnutrição infantil, mortalidade materna, fragilidade nas políticas voltadas à saúde ocupacional, violência das grandes metrópoles, entre outros, em um contexto de naturalização da miséria (Pires e Demo 2006). O Brasil vive hoje um cenário tenebroso com a pandemia: tem históricas desigualdades no território e entre grupos sociais que se cruzam e se reforçam; passa por um contexto de crise econômica e política que tem resultado em encolhimento das políticas de proteção; é governado por um presidente despreparado e inconsequente nas respostas ao controle da pandemia. É nesse cenário que ganha corpo na opinião pública o acerto de algumas políticas para o enfrentamento dos problemas estruturais do país, como o SUS, em um contexto internacional que atesta a importância de políticas públicas universais. Essas pautas, esperamos, devem orientar o debate público sobre a reconstrução do país pós-pandemia. Carla Almeida é professora da Universidade Estadual de Maringá/PR e atua no Programa de Pósgraduação em Ciências Socais e no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas dessa universidade. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com estágio pós-doutoral no Programa de Sociologia e Política da UFSC. Tem experiência na área de Ciência Política e desenvolve pesquisas sobre os temas: instituições participativas, democracia, participação, gênero e política. PhD Social Sciences. Associate Professor in the Graduate Program in Social Sciences at the Universidade Estadual de Maringá (UEM), Brazil. Lígia Lüchmann é professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e vinculada à Linha de pesquisa “Movimentos sociais, participação e democracia” do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política desta Universidade. Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, com estágio de pós-doutorado pela University of British Columbia, com interesse nos seguintes temas: associativismo, sociedade civil, teorias da democracia, participação e novos formatos de representação política. PhD Social Sciences. Professor, Graduate Program in Sociology and Political Science at the Universidade Federal de Santa Catarina, Brazil. Carla Martelli é professora do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” – UNESP/Araraquara, e do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UNESP de Araraquara. Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Seus temas de pesquisa estão divididos entre o estudo da atual fase de modernização reflexiva e suas implicações no que concerne ao mundo das instituições e da política, e os estudos sobre a qualidade da democracia no Brasil em seus desdobramentos sobre novas modalidades de participação política. PhD Sociology. Professor in the Department of Anthropology, Politics and Philosophy and coordinator of the Graduate Program in Social Sciences at the Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brazil. 24 MARLAS 4(1), 2020, DOI: 10.23870/marlas.313 Almeida et al - A pandemia e seus impactos no Brasil Referências Dantas, André V. 2020 “Coronavírus, o pedagogo da catástrofe: lições sobre o SUS e a relação entre público e privado.” Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 18 (3), e00281113. DOI: 10.1590/1981-7746sol00281. Gerschman, Silvia, e Maria Angélica Borges Santos 2006 “O Sistema Único de Saúde como desdobramento das políticas de saúde do século XX.” RBCS 21 (61, junho): 177-190. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092006000200010. Pires, Maria Raquel Gomes Maia, e Pedro Demo 2006 “Políticas de Saúde e Crise do Estado de Bem-Estar: repercussões e possibilidades para o Sistema Único de Saúde.” Saúde e Sociedade 15 (2 maio-ago): 56–71. Silva, Guilherme Rodrigues 1995 “O Sus e a Crise Atual do Setor Público da Saúde Silva.” Saúde e Sociedade 4 (1/2): 15–21. 25 MARLAS 4(1), 2020, DOI: 10.23870/marlas.313