MISCELÂNEA DE
ESTUDOS
EM HONRA DE
MARIA DE FÁTIMA SILVA
Volume I
FREDERICO LOURENÇO
SUSANA MARQUES
(COORD.)
Este volume reúne estudos diversos nas áreas das Literaturas Grega e
Latina, Cultura, Filosofia, Arte, Linguística, Antiguidade Tardia, Idade
Média, Humanismo, Receção dos Clássicos e Literatura Portuguesa
Contemporânea.
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EDIÇÃO
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensa@uc.pt
URL: http//www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Imprensa da Universidade de Coimbra
C ONCEÇÃO GRÁFICA
Imprensa da Universidade de Coimbra
REVISÃO
Daniela Pereira
I MAGEM DA C APA
Laura Adai - Unsplash
I NFOGRAFIA
Margarida Albino
E XECUÇÃO G RÁFICA
KDP
ISBN
978-989-26-2144-9
ISBN D IGITAL
978-989-26-2145-6
DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-2145-6
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UIDB/00196/2020
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra
© JUNHO 2022, I MPRENSA DA U NIVERSIDADE DE C OIMBRA
MISCELÂNEA DE
ESTUDOS
EM HONRA DE
MARIA DE FÁTIMA SILVA
Volume I
FREDERICO LOURENÇO
SUSANA MARQUES
(COORD.)
(Página deixada propositadamente em branco)
SUMÁRIO
PREFÁCIO ................................................................................... 9
PUBLICAÇÕES DE MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA ................. 11
TABVLA GRATVLATORIA ............................................................ 27
LITERATURA GREGA .................................................................. 31
A paleta homérica – Ana Paula Pinto & João Carlos Onofre Pinto ....33
Hearts and Minds in Greek Tragedy: Metanoia in Text and
Performance – Lorna Hardwick .....................................................67
¿Monodein: threnein? Tradiciones poéticas en la monodia
trágica – Milagros Quijada Sagredo ...............................................85
La caída de troya y el campo semántico de kairós en Agamenón
de Esquilo – Graciela Zecchin de Fasano .................................... 105
Las guerras de Esquilo y el léxico de la violencia contra las
mujeres – Marta González González ............................................ 123
O que os olhos veem na Helena de Eurípides – Jorge Deserto ..... 143
Troia, paradigma de cidade aniquilada na tragédia grega
– Félix Jácome Neto ...................................................................... 163
De volta ao aguilhão das vespas. Origens e fortuna de um
motivo aristofânico – Carlos A. Martins de Jesus ........................ 185
Aristófanes e Platão: do poder das mulheres na pólis. Paródia
e Utopia – Rui Tavares de Faria ................................................... 209
As palavras do mundo heroico na epopeia alexandrina
– Ana Alexandra Alves de Sousa ................................................... 231
A dívida de A Feiticeira de Teócrito ao fragmento PSI 1214
de Sófron – Cláudia Cravo ........................................................... 249
5
Ecos da Comédia Nova em Flávio Josefo (AJ 18.65-80) – Nuno
Simões Rodrigues ......................................................................... 259
O vinho como fonte de prazer e elixir de males, em três
epístolas de Álcifron – Adriano Milho Cordeiro ......................... 283
Evolução no tempo e no espaço: Plutarco e a ação de Alexandre
perante os bárbaros derrotados – Delfim F. Leão
& Ália Rodrigues ........................................................................... 299
Plutarco e Heródoto: entre biografia e história –
Joaquim Pinheiro .......................................................................... 321
LITERATURA LATINA ................................................................ 339
Amphitruo de Plauto y la construcción de la “romanidad” –
Aldo Rubén Pricco ........................................................................ 341
O cinismo, Menipo e a identidade romana. Os testemunhos
de Diógenes Laércio, Cícero e Varrão – Paulo Sérgio
Margarido Ferreira ........................................................................ 363
Montanhas em Plínio o Antigo – Francisco Oliveira ....................... 389
A mesa como elemento caracterizador e identitário na Roma
do poeta Marcial – José Luís Brandão ......................................... 435
Visión de aspectos del teatro grecorromano en Apuleyo Met. X
– Aurora López & Andrés Pociña .................................................. 463
FILOSOFIA ............................................................................... 481
Aristóteles, Sócrates y los socráticos sobre la riqueza – Javier
Campos Daroca ............................................................................. 483
Um Ângulo Morto da Memória? Maine de Biran sobre
a Reminiscência, a Memória e os seus Fantasmas – Luís
António Umbelino ......................................................................... 503
CULTURA.................................................................................. 517
Festa e Banquete: a fórmula ugarítica de assembleia dos deuses
– José Augusto Ramos .................................................................. 519
La fuerza a-cósmica. La amenaza de Tifón y el poder de Zeus
– María Cecilia Colombani ............................................................ 541
6
ARTE . ................................................................................................................ 557
Corpos atléticos gregos – Fábio de Souza Lessa . ...............................559
O grande Serapeum de Alexandria: Esboço de reconstituição
– Rogério Sousa .....................................................................................581
De novo sobre o vaso de vidro de Odemira e o porto de
Pvteoli (Pozzuoli) – Vasco Gil Mantas . ............................................611
LINGUÍSTICA . ................................................................................................ 649
O lugar do input linguístico e metalinguístico em teorias de
aqui-sição/aprendizagem de línguas não maternas.
Implicações pedagógicas – Cristina Martins . .................................651
Desvios linguísticos na aquisição do português por falantes
estrangeiros: o caso particular dos aprendentes chineses
– Maria Carmen de Frias e Gouveia . ..................................................673
ANTIGUIDADE TARDIA . ............................................................................. 697
Basilio ante el Teatro. Mimesis y Katharsis Cristiana
vs Mimesis y Katharsis Dramática – Aurelio Pérez Jiménez . ....699
Paximathivm: traçando o caminho de uma tipologia de pão
na tradição romano-mediterrânica tardia – Paula Barata Dias ...
719
7
T R O I A , PA R A D I G M A D E C I D A D E A N I Q U I L A D A
N A T R AG É D I A G R E G A *1
T R OY A S A P A R A D I G M O F T H E A N I H I L I T E D C I T Y
I N G R E E K T R AG E DY
Félix Jácome Neto
Univ. São Paulo
ORCID: 0000-0003-2036-6491
felixjacome@hotmail.com
Resumo: Este texto apresenta um levantamento dos principais tratamentos do aniquilamento de Troia na tragédia grega. Este trabalho
discute peças cujas ações dramáticas estão situadas durante ou imediatamente depois da queda de Troia, de forma a entender como
personagens e Coros representaram a ruína de Troia. Este estudo
argumenta que as várias facetas da queda de Troia em Agamémnon de Ésquilo, As Troianas e Hécuba de Eurípides, convergem na
exploração das ambiguidades inerentes a uma vitória que destrói
completamente o vencido, incluindo seus espaços sagrados. Uma vez
que as tragédias evitavam mencionar a destruição de cidades gregas,
o aniquilamento de Troia, cidade não-grega do passado remoto, serviu, assim, como um meio para a audiência grega refletir sobre a sua
*1 Este texto é fruto da investigação de pós-doutoramento financiada pela Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2018/17414-6.
Gostaria de agradecer ao Dr. Christian Werner (Universidade de São Paulo) a leitura
deste material, assim como ao avaliador anónimo deste volume. As deficiências argumentativas restantes são, naturalmente, de minha responsabilidade.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_7
própria experiência histórica de destruição de cidades em tempos
de guerra.
Palavras-chave: Tragédia grega, Ésquilo, Eurípides, Troia
Abstract: This text presents a survey of the principal treatments of the
annihilation of Troy in Greek tragedy. This study discusses tragedies
whose dramatic actions are situated during or immediately after the
fall of Troy to understand how characters and choruses represented
the ruin of Troy. This work argues that the various aspects of the fall
of Troy in Aeschylus’ Agamemnon, Euripides’ Hecuba, and Trojan
Women converge in the exploration of the ambiguities inherent in a
victory that destroys the defeated completely, including their tombs
and temples. Since Greek tragedy avoided mentioning the destruction
of Greek cities, the ruin of Troy, being a non-Greek city situated in
the remote past, served thus as a means for the Greek audience to
reflect on their own historical experience of having cities destroyed
in times of war.
Keywords: Greek tragedy, Aeschylus, Euripides, Troy
Troia, “paradigma da cidade vítima da guerra” 1 desde a épica,
tornou-se um espaço dramático privilegiado na tragédia grega para
se pensar o aniquilamento de uma cidade e as suas consequências
para vencedores e perdedores. Vista como grande feito dos heróis
gregos do passado contra bárbaros, como castigo desmesurado que
carregou marcas de impiedade ou, ainda, como uma ordem advinda
da vontade de Zeus, a conquista de Troia teve muitas faces e significados na tragédia grega.
Com a provável exceção de Ecália, destruída por Héracles em As
Traquínias de Sófocles, 2 as cidades gregas representadas ou men-
1
Silva 2005a: 94.
2
Ecália foi uma cidade grega associada a Héracles desde a poesia épica, tendo
recebido localizações distintas consoante o autor antigo. Em As Traquínias, Ecália é
localizada na Beócia.
164
cionadas na tragédia sempre sobrevivem e nunca são destruídas.
Tebas, por exemplo, está constantemente sob ameaça nas tragédias conservadas (Sete Contra Tebas, de Ésquilo; Antígona e Rei
Édipo de Sófocles; As Fenícias, Héracles e Bacantes, de Eurípides)
e, ainda assim, nunca é arruinada. Atenas em Heraclidas e na
fragmentária Erecteu, ambas de Eurípides, salva-se do perigo de aniquilamento.
Somente Troia, de todas as principais cidades trágicas, é completamente arruinada. Levando em consideração que Troia não era
originalmente uma cidade grega, David Carter3 sustenta que existia um padrão na tragédia segundo o qual a polis grega sempre se
salvava, ainda que estivesse em crise ou sob ameaça de destruição.
A repreensão sofrida pelo poeta trágico Frínico por ter representado,
em 494 a.C.,4 a queda de Mileto, cidade grega, pode reforçar a nossa
impressão de que tal padrão existiu 5, ainda que não possamos estar
seguros uma vez que muitas tragédias se perderam. 6
As histórias acerca de Troia forneceram matéria-prima para a
produção trágica.7 O tema do aniquilamento de Troia, e suas consequências imediatas, por sua vez, está substancialmente presente, dentre
as tragédias conservadas, em Agamémnon de Ésquilo, As Troianas e
Hécuba de Eurípides. As Troianas é situada temporalmente no breve
instante entre a queda de Troia e as derradeiras manifestações da
aniquilação física da cidade, mostrando o destino das nobres troianas
3
Carter 2006.
4
As datas neste texto são todas a. C.
5 “The only tragedy known to have centred around overthrow of a Greek polis
(Phrynichos’ Capture of Miletos) caused the tragedian to be fined” (Seaford 2012:
206, n. 1).
6 Ésquilo e Sófocles apresentaram, cada um, Epigonoi, que poderia ter dramatizado a destruição de Tebas, ainda que não possamos estar completamente seguros
devido à escassez de fragmentos pertencentes a estas tragédias. Em Sete Contra Tebas,
a audiência poderia ter imaginado a ruína de Tebas se interpretarmos os versos
840-844 e 902-903 enquanto menções à futura destruição desta cidade grega pelos
epigonoi.
7 Anderson 1997: 105 estima que um quarto de toda a produção teatral de Sófocles
tenha sido dedicada ao mito de Troia, ao passo que Ésquilo e Eurípides teriam reservado um quinto das suas obras a esta temática.
165
transformadas em cativas de guerra dos vencedores gregos. O recorte temporal em As Troianas é, portanto, um pouco anterior do que
vemos em Hécuba. Nesta última, a destruição da cidade de Príamo
está consumada, ainda que muito recentemente, dado que a cidade
ainda arde (ver o verso 477). Ainda em Hécuba, os gregos já saíram
de Troia e estão na costa da Trácia, ao passo que em As Troianas
ainda estão na cidade de Heitor. Agamémnon, por sua vez, inicia
com o Vigia identificando o sinal de fogo que anunciara a queda
de Troia. A chegada dos aqueus e de Agamémnon a Argos forma
o próximo acontecimento da peça. Presumivelmente, eles tardaram
alguns dias para chegar a solo grego, ainda que Clitemnestra discurse como se a tomada da cidade tivesse acontecido no mesmo dia
dos demais eventos da peça (ver o verso 320). Estas três tragédias,
portanto, lidam com os eventos do saque de Troia e seu imediato
desenlace, o que nos fornece o critério para privilegiar estas peças
na nossa discussão sobre o aniquilamento de Troia na tragédia
grega. 8
No primeiro tópico deste texto, mostraremos que a recorrência
do tema, em Ésquilo, da vitória dos gregos sobre os troianos como
uma conquista de aniquilamento, leva-nos à conclusão de que estamos diante de um motivo que objetivava inserir a Guerra de Troia
8 Certas tragédias mencionam a queda de Troia como um evento futuro, assim
Filoctetes de Sófocles, ou enquanto um acontecimento do passado recente, a exemplo de Andrómaca e Helena de Eurípides. A Suda, enciclopédia bizantina, atribui
ao filho de Sófocles, Iofon, uma tragédia chamada O saque de Troia (Iliou Persis),
cujo conteúdo não conhecemos. Em um passo da Poética com dificuldades textuais
(1456a, 10-19), Aristóteles dá a entender que outros poetas dramáticos teriam apresentado peças que abarcavam toda a “destruição de Troia” (πέρσιν Ἰλίου 1456a 16,
tradução por Valente 2011). A expressão “destruição de Troia” não é clara, pois o
poeta de Estagira poderia estar aqui a referir-se ao poema épico Iliou Persis. De todo
modo, dentre as tragédias que nos chegaram em fragmentos, vale destacar a obra de
Sófocles. Políxena recuperou a história do sacrifício da heroína homónima da peça
pela armada grega após a tomada de Troia, um tema também desenvolvido, como
veremos, por Eurípides em Hécuba. Ájax, o Locriano, contém um discurso da deusa
Atena, fragmento 10c (TrGF 4), condenando a violência de Ájax, filho de Oileu, contra
Cassandra, ocorrida logo após a queda de Troia. Em Laocoon, a partida de Eneias de
Troia deve ter amplificado o tema da iminente destruição completa da cidade, como
se percebe no discurso do mensageiro, fragmento 373 (TrGF 4), no qual é referido
que a multidão busca desesperadamente fugir de Troia.
166
na reflexão mais ampla proposta pela Oresteia: a possibilidade de
se estabelecer uma instituição jurídica humana que pudesse decidir
com legitimidade a correta justiça que deveria nortear a punição de
um determinado crime. Assim, a atitude excessiva dos gregos contra
Troia poderia ter sido vista por parte da audiência como um paralelo
para a tensão causada pelas punições desmedidas, incluindo o assassinato de Clitemnestra, que caracterizam o historial da família dos
Atridas. Eurípides, como será discutido no segundo e terceiro tópicos,
explora o fim de Troia a partir da ótica das mulheres vencidas como
uma maneira de evidenciar as dificuldades morais inerentes a uma
conquista que arrasa o inimigo completamente. Como será sustentado,
as peças troianas de Eurípides não desenvolvem uma crítica à guerra
per se, antes mostram os horrores da dissolução completa do vínculo
entre indivíduo e cidade, que é resultado, não da simples conquista,
mas do aniquilamento de uma cidade. Por fim, argumentaremos que
este tema também possuía ressonância na realidade histórica, dada
a ameaça de aniquilamento de cidades gregas durante as Guerras
Pérsicas e a Guerra do Peloponeso.
1. Agamémnon de Ésquilo
“Coro: os deuses não perdem de vista os que causam muitas
mortes”
(A. A. 461-462). 9
A comparação do uso do epíteto ptoliporthos (“destruidor de
cidades”) na épica e no Agamémnon ilustra como a perceção sobre
a ruína de uma cidade mudou de Homero a Ésquilo. Na Ilíada, a
palavra é usada positivamente, por exemplo, para se referir a Aquiles
(8.372) e a Odisseu (2.278; 10.363). Em Agamémnon, a terceira
9
Tradução por Pulquério 2008. Texto grego por West 2008.
167
antístrofe do primeiro estásimo conclui o seu pensamento sobre o
receio diante daqueles que prosperam sem justiça com a afirmação
de que “eu não seja destruidor de cidades” (μήτ’ εἴην πτολιπόρθης
472). Diferentemente da Ilíada, ser um saqueador de cidades adquire
uma clara conotação negativa neste passo de Ésquilo, o que nos leva
à constatação de que de Homero a Ésquilo o tema da destruição de
uma cidade tornou-se mais ambíguo e problemático. 10
No início do segundo episódio de Agamémnon, o Arauto de Argos
anuncia a chegada do esposo de Clitemnestra. O tom do anúncio é,
aparentemente, triunfante, porém algum gosto amargo transborda
por entre os feitos de glória:
Arauto – Ele vem trazer a luz da noite, a vós e aos restantes
juntamente – Agamémnon, nosso senhor. (endereçando-se ao povo
de Argos) Acolhei-o bem, pois assim está certo, a ele que minou
completamente a cidade de Troia (Τροίαν κατασκάψαντα) com a
picareta de Zeus, administrador da justiça, trabalhando até ao fim
o seu solo, arrasando os altares e os templos dos deuses ({βωμοὶ
δ’ ἄϊστοι καὶ θεῶν ἱδρύματα}), exterminando as sementes na terra
(522-528). 11
O verbo kataskapto, formado pelo intensificador da ação kata mais
o verbo skapto, que significa “escavar”, adquire aqui, como observam
Denniston e Page 12, o sentido metafórico de “escavar completamente”, ou seja, refazer todo o terreno destruindo o que existe a fim de
torná-lo cultivável. Este verbo é utilizado também por Odisseu em
Filotectes de Sófocles para se referir à destruição completa de Troia
por meio da força (998). Antígona, em Édipo em Colono, usa a mesma palavra para se referir à ruína de Tebas que Polinices poderia
10
Ver Fartzoff 2009: 170-171, que serviu de base para a construção deste parágrafo.
11
West 2008 coloca o verso 527 entre colchetes por suspeitar de sua autenticidade.
12
Denniston, Page 1957: ad 525.
168
trazer (1421), num exemplo significativo pois usado em referência
a uma cidade grega.
O supracitado verso 527 de Agamémnon pode ser considerado
justamente uma dessas manifestações do aniquilamento de Troia.
Em que pese o facto de estas linhas indicarem que a ação de
Agamémnon foi fruto da “picareta de Zeus” (526), a destruição de
altares e templos dos vencidos pesará na mudança de fortuna que
marcará o penoso retorno de muitos gregos para casa após a Guerra
de Troia. 13 É digno de nota que existe um verso similar a este em
Os Persas de Ésquilo: “e os altares foram destruídos e as estátuas
dos deuses desenraizadas” (βωμοὶ δ’ ἄιστοι, δαιμόνων θ’ ἱδρύματα
/ πρόρριζα 811-812). Nesta última peça, o fantasma do Rei Dario
reflete sobre as motivações divinas da inesperada derrota do seu
povo contra os gregos sob o comando de Xerxes. Uma das razões,
pensa Dario, liga-se à destruição de templos e estátuas, vista como
atitude de soberba e que fere a vontade dos deuses, como pode ser
entendido pelo verso 808.
É certo, no entanto, que a semelhança entre o verso 527 de
Agamémnon e 811 de Persas tem sido usada como argumento contra
a autenticidade da linha 527, que teria sido incluída tardiamente por
influência justamente do verso dos Persas. 14 Denniston e Page 15
sustentam, todavia, que o conteúdo da linha 527 alinha-se perfeitamente com outros passos de Agamémnon que enfatizam o modo
13 O saque de Troia é justamente o momento em que certos deuses, como Atena,
que até então ajudavam os gregos, passam a persegui-los, pois entendem que a punição ao rapto de Helena foi excessiva. Assim, a punição divina aos ultrajes cometidos
por líderes gregos (Ájax, Neoptólemo, Odisseu) durante a tomada de Troia também
reverberou no coletivo. Essa linha de raciocínio, já evidente no discurso de Nestor
na Odisseia 3.132-134, é nítida no prólogo de As Troianas, no qual Poséidon e Atena
refletem sobre o engajamento dos deuses em relação ao destino dos gregos. A deusa
afirma que ofertará um “amargo regresso” (65) e “um regresso de desgraças” (75) aos
aqueus, e não apenas a Ájax, que “arrastou Cassandra à força” (70) do seu templo
em Troia.
14 Sommerstein 2008: 61, n. 112 pensa que a linha 527 de Agamémnon foi provavelmente adicionada, por um produtor ou ator, no final do século V.
15 Denniston, Page ad loc. Na mesma linha de defesa do verso 527 segue o tradutor
português Pulquério 2008: 45 n. 59, bem como Leahy 1974: 21, n. 61.
169
ímpio com o qual os gregos arrasaram a cidade de Troia. Uma destas
passagens é particularmente interessante, pois deixa clara a relação
entre o sofrido regresso dos gregos e seus atos de crime contra os
deuses. Trata-se das palavras de Clitemnestra, em 338-350, advertindo
os gregos a serem piedosos mesmo na qualidade de vencedores. Este
discurso está marcado pela repetição de palavras religiosas (eusebousi…theous 338; theon…hidrumata 339; theois 345), acentuando
o significado religioso dos acontecimentos pertinentes à queda de
Troia. 16
O espírito de Agamémnon relativamente à Guerra de Troia é expresso, ainda, pelo Arauto, quando este informa as notícias acerca da
tempestade que vitimizou muitos gregos, mas que deixou incólume
a nau de Agamémnon. O Arauto começa a dizer que “não é próprio
manchar um dia auspicioso com o anúncio de más notícias” (636-637),
segue então por lamentar a sua sorte de ter de fornecer à cidade
notícias sobre “as abomináveis calamidades de um exército caído”
(639), que acarreta “ferida pública aberta no flanco da cidade” (640).
Se não soubéssemos que os gregos foram afinal vitoriosos em Troia,
suporíamos que o Arauto teria vindo relatar a derrota de um exército
em guerra no estrangeiro! Certamente, Ésquilo quis apresentar uma
imagem realista da guerra, o que inclui sofrimentos e perdas também do lado dos vencedores. Ao fazer isso, convidou o seu público
a refletir sobre este “dia auspicioso” (euphemon emar 636), no qual
coincidem salvação, regresso de Troia, ruína e assassinato. 17
As apreciações, ora positivas, ora negativas, sobre a Guerra de
Troia em Agamémnon, foram classificadas de maneira especialmente
lúcida por Leahy.18 Seguindo este estudioso, podemos discernir três
significados básicos da saga de Troia na economia da primeira peça
16 Note que este discurso de Clitemnestra é tido pelo Coro como sensato: “Senhora,
falas com a sensatez de um homem sábio” (351).
17 “The victory transmitted by the fire is both Agamemnon’s over Troy and
Klutaimestra’s over Agamemnon (1378), who is therefore both winner and loser”
(Seaford 2012: 180).
18
Leahy 1974.
170
da Oresteia. O sentido positivo da tomada de Troia, que enfatiza a
missão chefiada pelos Atridas para recuperar Helena, conferindo
glória para si mesmos e para a armada ao vencer o inimigo com
ajuda dos deuses. É a versão da Guerra de Troia contada sobretudo
pelo próprio Agamémnon quando regressa a Argos (810-854). O segundo significado pode ser tido como “realista”. Como comentamos
acima, esta abordagem reforça os efeitos corrosivos e nocivos desta
guerra para argivos e troianos. Neste âmbito, trata-se de uma guerra
levada a cabo para reaver uma mulher vista como indigna e que gera
insatisfações populares contra os Atridas. Esta versão da empresa
bélica está presente no relato de Clitemnestra (320-354) e nas partes
corais, como no primeiro estásimo que expõe o descontentamento
popular com a expedição 19 e no segundo estásimo, nomeadamente
entre os versos 783 e 804. 20
O terceiro sentido da Guerra de Troia no Agamémnon discutido
por Leahy diz respeito a uma tentativa de síntese dos dois outros
significados supracitados. Neste caso, a vontade de Zeus ganha
destaque enquanto razão para a punição de Páris e dos troianos.
O desígnio divino reequilibraria a ordem cósmica, conferindo certo
sentido ao sofrimento humano, bem como restabeleceria a fronteira
entre homens e deuses. Trata-se, aqui, do entendimento de que Troia
foi conquistada, como vimos, “com a picareta de Zeus, administrador
de justiça” (525-526).
Eurípides, por sua vez, explora o contraste entre a visão positiva e negativa da tomada de Troia, e as consequências realistas e
práticas da guerra para vencedores e vencidos, ainda que, muitas
vezes, a razão última para a queda de Troia resida na vontade dos
deuses, como argumenta François Jouan. 21 Vejamos como o tema
do aniquilamento de Troia aparece na obra de Eurípides.
19
O sofrimento dos argivos gera “uma dor ressentida [que] marcha secretamente
contra os demandantes Atridas” (450-451).
20 Este segundo significado da Guerra de Troia também focaliza a maneira como
Troia foi saqueada, ainda que este ponto não seja devidamente realçado por Leahy 1974.
21
Jouan 2007: 172-74.
171
2. Hécuba de Eurípides
“Coro: tu, ó Ílion, minha pátria, não serás contada entre as
cidades indestrutíveis, tal é a nuvem dos Helenos que te cobre”.
(E. Hec. 905-907). 22
A fumaça ainda emerge do incêndio das ruínas de Troia quando
a ação de Hécuba inicia. Nesta peça, nós vemos uma estreita relação
entre a destruição de Troia e as duas intrigas que movimentam a
ação trágica, a morte de Polidoro e o sacrifício de Políxena. Já no
prólogo, o espectro de Polidoro estabelece um vínculo direto entre
a morte de Heitor, a queda de Troia e a quebra da hospitalidade de
Polimestor. O rei trácio tirou proveito da ruína de Troia para matar
o seu hóspede Polidoro, filho de Hécuba.
O espectro de Polidoro afirma, ainda, que Polimestor cometeu o
assassinado com o intuito de se apoderar do tesouro que o jovem
troiano portava (26-27). O próprio rei da Trácia, no entanto, apresenta
outra versão: afirma ter matado Polidoro para evitar a continuação
da linhagem real troiana, pois este seria um possível agente de reconstrução de Troia (1135-1143). Assim, Polimestor teria assassinado
o jovem para evitar a regeneração da cidade de Príamo, que por
sua vez atrairia outra guerra contra os gregos, o que poderia atingir
também os trácios, dada a proximidade com Troia.
É relevante notar que essas linhas apresentam Polidoro como uma
esperança de renascimento de Troia, o que significa pensar que a
cidade poderia, de alguma maneira, sobreviver, enquanto os seus
cidadãos existissem. Dado que Eurípides, nesta tragédia, deliberadamente omite a regeneração de Troia após a sua primeira destruição
por obra de Héracles 23 , somos levados a pensar que a ênfase de
22 Tradução de Hécuba de Eurípides por Fialho e Coelho 2010. Texto grego por
Diggle 1984.
23 As Troianas (809-820), contudo, menciona a destruição de Troia por Héracles.
Os antigos, como observa Jouan 2007: 158, questionaram a estranha lógica de Troia
ter sido arrasada duas vezes em um curto intervalo de tempo.
172
Polimestor na restauração de Troia aparece como uma hipótese
implausível, uma espécie de argumento malicioso para esconder os
motivos mesquinhos que o levaram a assassinar o filho de Hécuba.
O sacrifício de Políxena, que constitui a segunda linha temática
de Hécuba, também está ligado ao motivo da destruição de Troia.
O morto Aquiles exige o sacrifício de Políxena como “vítima propícia e troféu de honra para o seu túmulo” (τύμβωι φίλον πρόσφαγμα
καὶ γέρας λαβεῖν 41). Após uma assembleia disputada com opiniões
favoráveis e contrárias, a armada aqueia estacionada na Trácia concorda com o pedido de Aquiles, sendo que esta decisão coletiva
é enfatizada em diversos momentos no início da peça: pelo Coro
(107-109), por Hécuba (188-190; 195-196) e por Odisseu (218-221).
O sacrifício de Políxena constitui uma espécie de “obrigação” (charis) da armada grega em prestar tributo da sua “amizade” (philia)
a Aquiles, uma vez que o Pelida tinha sido um guerreiro decisivo
na vitória sobre Heitor e, consequentemente, sobre Troia. 24 Esse é
precisamente o teor do argumento de Odisseu quando ele informa a Hécuba da decisão dos aqueus (299-331). Segundo o pai de
Telémaco, existiria uma espécie de acordo entre os soldados gregos
que, uma vez conquistada Troia, o melhor dos guerreiros receberia
Políxena como prémio e vítima (304-305). Portanto, é fundamental,
para Odisseu e para a maioria dos gregos que votaram a favor do
sacrifício na assembleia, honrar Aquiles e respeitar os laços de gratidão que vinculam os combatentes. 25
Desde há muito que a crítica aponta dificuldades em Eurípides
conferir unidade a uma peça que articula o mito de Polidoro, o sacrifício de Políxena e a brusca passagem de Hécuba de vítima dos
sofrimentos pela morte dos filhos a agente de uma vingança quase
24 Sobre o papel central da charis como uma obrigação entre as figuras aristocráticas em Hécuba, ver Stanton 1995.
25 Esta é razão para a necessidade do sacrifício de Políxena em Hécuba. Certos
comentadores, por exemplo Franciscato 2014: 26, atribuem, equivocadamente, a exigência do sacrifício da jovem também à interrupção, por parte de Aquiles, dos ventos
favoráveis à navegação. Como demonstra o verso 900, contudo, é uma divindade que
recusa facultar os ventos apropriados à armada grega estacionada na costa da Trácia.
173
selvática.26 O sofrimento de Hécuba, elemento essencial da coerência
temática do drama, é motivado pela morte de três entes queridos:
os dois filhos, Políxena e Polidoro, e a cidade de Troia, cujo aniquilamento é frequentemente lamentado por Hécuba e pelas cativas
troianas que formam o Coro.27 Assim, o terceiro estásimo de Hécuba
ilustra a indissociabilidade entre indivíduo e cidade, um elemento
que esquecemos facilmente quando nos concentramos em figuras
trágicas extraordinárias, porém conflitivas para a cidade e a comunidade, como Ájax e Medeia.28 É por esta razão que a ruína da cidade
é tão lamentada quanto a desgraça das protagonistas nas peças do
ciclo troiano que contam a sorte final de Troia. O Coro entrelaça,
no belo canto seguinte, a tomada de Troia com a abrupta passagem
de esposas a cativas levadas à força pelos vencedores:
1ª Estrofe
Tu, ó Ílion, minha pátria, não serás contada entre as cidades
indestrutíveis, tal é a nuvem dos Helenos que te cobre, depois de
te devastar pela lança, ai pela lança! Arrasada foi a coroa das tuas
muralhas. A cinza te suja de alto a baixo e te enegrece. Desgraçada,
jamais voltarei a pisar o teu solo! (905-913).
2ª Antístrofe
Deixando o querido leito, com uma simples túnica, à maneira
de uma donzela dórica, fui dirigir súplicas – em vão – a Ártemis
venerável. Ah, desafortunada! Arrastada sou, depois de presenciar
a morte de meu esposo, até ao alto mar. Tinha os olhos fixos na
cidade, lá ao longe. E o navio tomava o seu rumo de regresso e da
26
Sobre a estrutura da ação trágica em Hécuba, ver Gregory 1999: xxiii-xxxvi.
27
Como argumenta Silva 2014: 76, n. 4, Hécuba, na peça homónima de Eurípides,
é a ilustração do “estatuto de uma vencida de guerra”, que perdeu os filhos, o marido
e a cidade.
28 Uma forte imagem que ilustra essa comunhão de destino entre as cativas troianas e Troia pode ser vista na tentativa de Hécuba, em As Troianas, de se suicidar
atirando-se ao fogo que consome a sua cidade (1272-1286).
174
terra de Ílion me apartava. Desgraçada, à dor eu sucumbia (933-942).
É significativo contrastar a perspetiva do Coro, que canta a experiência pessoal de ter vivido, enquanto vítima, a tomada de Troia, com
o relato de Clitemnestra em Agamémnon, que apresenta os eventos
da ruína da cidade de Príamo sem os ter vivenciado:
Os Aqueus são hoje senhores de Tróia. Imagino gritos que não
se fundem, a ecoarem distintamente na cidade. Assim, deitando
vinagre e azeite no mesmo vazo, dir-se-ia que se aparta como inimigos. Separadamente se ouvem, marcadas por diferente fortuna,
as vozes dos vencidos e dos vencedores” (A. A 320-325). 29
3. As Troianas de Eurípides
“Hécuba: um abalo de terra, um abalo…Coro: submerge toda a
cidade”.
(E. Tr. 1326). 30
As Troianas é a terceira peça de uma trilogia que Eurípides
consagrou à Guerra de Troia em 415. As três tragédias seguem uma
sequência cronológica. Alexandre conta eventos do início da saga
de Troia, especialmente o retorno do jovem Alexandre/Páris para
Troia, vinte anos depois de ter sido exposto enquanto bebê, ao passo
que Palamedes explora um episódio de disputa entre o herói que
dá nome à peça e Odisseu, que ocorreu durante o sítio dos gregos
à Troia. As Troianas, por sua vez, é uma tragédia de lamento com
29 Conforme observa Bakewell 2016: 116, “there is a world of difference between
imagining the sack of one’s city and experiencing it”.
30
Tradução de As Troianas por Pereira 1996. Texto grego por Diggle (1981).
175
pouca ação. Lamento pela ruína de Troia. 31 A peça aborda este tema
sob a ótica da parte dos vencidos que escapou ao aniquilamento: as
mulheres troianas. Elas, contudo, não se viram isentas da servidão:
a peça inicia justamente quando estas mulheres estão sendo atribuídas a seus novos mestres gregos. O foco da peça concentra-se nas
reações da protagonista, Hécuba, diante de um duplo sofrimento: 32
a sua dor de ver seu estatuto desmoronar de nobre rainha a serva
de um grego, bem como o horror de contemplar a sua cidade completamente destruída e seu marido morto. A ação progride com a
interação de Hécuba com o Coro, Taltíbio, e três outras mulheres,
Andrómaca, Helena e Cassandra.
Em Sete Contra Tebas de Ésquilo, Etéocles, o rei tebano, adverte
as mulheres do Coro que as cidades somente são abandonadas pelos
deuses após serem conquistadas (216-217). Esse é o caso precisamente do que se passa em As Troianas. No prólogo, Poséidon anuncia
que irá “abandonar a ilustre Ílion e os altares que me pertencem,
pois, quando a desgraça da devastação se apodera de uma cidade,
o culto dos deuses é afectado, e não quer aceitar honrarias” (25-27).
Troia é, assim, uma cidade sem ritos e sem deuses desde o início
da peça. 33 Ao sair de cena no fim do prólogo, Poséidon preludia,
em tom gnómico, o seguinte: “louco entre os mortais é aquele que
arrasar cidades, templos e túmulos, lugares consagrados dos que já
partiram. Quem os devastar, mais tarde há-de perecer por sua vez”
(95-97). Não obstante a dificuldade no estabelecimento do texto
original relativamente à sintaxe e pontuação destas três linhas, parece claro que, para Poséidon, o “louco” (μῶρος) é quem saqueia
31
“Lament appears to be the only song left for a city that has lost all its men”
(Weiss 2018: 102). Para o conjunto de As Troianas como uma peça de lamento, ver
Suter 2003.
32 “Il portatore principale della linea del pathos nelle Troiane è la protagonista,
Ecuba” (Di Benedetto 2018: 27).
33 Mikalson 1991: 53 comenta que Euripides “portrays, in the fullest detail found
in Greek literature, a city which lacks entirely the goodwill and help of the gods”.
Ainda sobre a enorme distância entre deuses e homens em As Troianas, ver Werner
2011: 133-34.
176
cidades e, também, quem profana (ou desola) templos e tumbas.
Nesse sentido, “louco” não é meramente quem saqueia cidades, mas
quem as destrói (ou tenta destruir) completamente, incluindo seus
espaços sagrados. 34
Taltíbio, no êxodo, conclama seus companheiros a incendiar, uma
vez mais, a cidade de Troia. 35 O Arauto grego utiliza aqui o verbo
kataskapto (1263) que, como vimos anteriormente, também está presente em Agamémnon e em outras tragédias, aludindo, precisamente,
à devastação total. Uma destruição assim também afeta templos e
tumbas, como Poséidon tinha anunciado no prólogo. Além disso,
as palavras do deus podem ser relacionadas com o facto de, como
afirma Hécuba, Príamo morreu “sem sepultura” (ataphos 1313) 36 .
A referência ao templo deve, naturalmente, ser ligada ao que é dito
no prólogo por Atena, de que seu templo foi ultrajado (69) “quando
Ájax arrastou Cassandra à força” (70). A deusa associa-se a Poséidon
precisamente no seu intento de ensinar aos aqueus a respeitarem os
lugares sagrados (ver 86-87). Nesse sentido, o final de As Troianas
reforça o quadro de despovoação e destruição muito bem qualificado
por Hécuba quando ela diz estar numa “cidade deserta” (eremopolis
603) 37.
A questão moral que emerge relativamente aos vencedores em
As Troianas não consiste, portanto, no mero facto de que os gregos
promovem guerras ou mesmo que saqueiem cidades. As Troianas
não é propriamente uma tragédia que denuncia a “selvajaria” de
34 West 1980: 15: “the fool is not ‘whoever sacks cities’, but ‘whoever sacks cities
laying waste shrines and tombs’. αὐτὸς ὤλεθ’ ὕστερον then follows in an asyndeton
which can be classified as explanatory (‘he is a fool because …’)”.
35 Estudiosos têm especulado se a audiência teria visto fogo ou fumo vindos da
cenografia da peça. Em caso afirmativo, este seria um significativo complemento visual
ao motivo do aniquilamento de Troia. Kovacs 2018: ad 1263, no entanto, argumenta
que o público não veria nenhuma ação relativa ao incêndio.
36 As mulheres do Coro igualmente lamentam que seus esposos troianos morreram
“sem sepultura” (athaptos 1085).
37 O termo eremopolis é bastante significativo, pois o campo lexical da eremia
marca, em As Troianas, como observa David 2009: 277, “l’anéantissement de la cité”.
177
toda e qualquer guerra, como tantas vezes se afirma. 38 O problema
reside numa vitória do aniquilamento que destrói a cidade inimiga,
incluindo os seus espaços sagrados, os seus habitantes e mesmo
o seu nome (ver os versos 1278, 1319, com a significativa palavra
anonymoi em 1322). 39
É importante ter em mente que a ruína completa de uma cidade
não era, para a audiência de As Troianas, um motivo meramente literário. De início, o temor de se ter a cidade ou mesmo toda a Hélade
aniquilada pelos persas foi real durante as Guerras Pérsicas. Além do
receio de a Grécia se tornar uma escrava dos bárbaros, como diz o
emissário de Plateias em Tucídides,40 existia o medo de a Hélade ser
reduzida às cinzas pelos persas (um tópico enfatizado por Heródoto,
por exemplo em 7.8; 8.50-64). Os Persas de Ésquilo, somente sete anos
após a Batalha de Plateias, contém diversas referências à salvação
dos gregos diante da ameaça do extermínio por parte dos invasores
persas. Logo após o Mensageiro anunciar que “os deuses salvaram
a cidade de Palas” (347), a mãe de Xerxes responde com palavras
que transparecem a catástrofe que poderia ter acontecido: “Atenas
escapou, portanto, à destruição” (348). 41
38 Por exemplo, David 2009: 278. Fialho 2016: 81 pensa que, nas peças troianas,
Eurípides põe “o mito ao serviço de uma veemente crítica da guerra”. Uma variante
desta leitura “pacifista” de Eurípides concebe As Troianas como uma espécie de
admoestação do poeta contra as ambições de guerra por parte de Atenas. Nesta última
linha, segue, por exemplo, Sutter 2003: 19, qualificando As Troianas como “a proleptic
lament for Athens”. Green 1999 oferece uma competente e necessária crítica à leitura
“pacifista” de As Troianas. Em linhas similares a Green, segue Kovacs 2018: 2-16.
39
Ainda que tenha vivido em um contexto histórico distinto, vale a pena lembrar
a observação de Políbio de que destruir templos e estátuas do inimigo seria uma atitude reprovável, que não se adequaria às necessidades da guerra. Para o historiador
grego, “os homens virtuosos não devem guerrear contra os faltosos para destruí-los
ou exterminá-los, mas para corrigir ou emendar seus erros” (5.11.5). Tradução por
Sebastiani 2016. Faz parte do argumento deste artigo que a abordagem de Eurípides
sobre o aniquilamento de Troia guarda semelhança com esta censura de Políbio das
guerras de extermínio.
40
Tucídides 3.56.4.
41
Tradução de Os Persas por Pulquério 1998. Rosenbloom 2003: 189 argumenta
que o Coro dos Sete Contra Tebas recuperou elementos, como incêndio e destruição
de lugares sagrados, que a audiência poderia ter associado com o saque de Atenas
pelos persas em 480/479. Em linhas similares, ver Silva 2005b: 24-25.
178
O impacto do horror da ruína de uma cidade não foi apenas
corrente na época do conflito contra os persas. Não obstante a
afirmação feita por Sage, 42 de que a tendência da guerra entre os
gregos seria de conquista do terreno de batalha antes do que a exterminação do inimigo, houve casos de guerras de aniquilamento
durante a Guerra do Peloponeso. Em 427, isto é, somente doze anos
antes de As Troianas, aconteceu a traumática conquista da cidade de
Plateias pelo exército espartano. Tucídides descreve nestas linhas o
derradeiro destino desta cidade da Beócia:
Arrasaram toda a cidade até ao chão (καθελόντες αὐτὴν ἐς
ἔδαφος πᾶσαν) e sobre as suas fundações construíram, vizinha ao
santuário de Hera, uma estalagem de duzentos pés quadrados, com
quartos em toda a volta, em cima e em baixo, e utilizaram para
essa finalidade os telhados e as portas dos Plateenses (Tucídides
3.68.3). 43
A dizimação de Plateias poderia estar bem presente na mente e
na memória da audiência de As Troianas, especialmente se levarmos
em conta que muitos plateenses se refugiaram em Atenas por conta
da guerra contra Esparta, não sendo impossível que alguns deles
pudessem estar no teatro no dia da apresentação desta peça euripidiana. Além disso, Eurípides encenou o que poderia ser o receio
de muitos atenienses: ver a sua cidade completamente arruinada no
contexto da luta contra Esparta.44 Como é típico da tragédia, todavia,
acontecimentos históricos recentes e traumáticos foram retrabalhados
por meio de uma perspetiva que os distanciava da realidade concreta e presente do público. Assim, o aniquilamento de Troia – cidade
bárbara – ocorrida no remoto tempo dos heróis, permitiu um certo
42
Sage 1996: 95; 97-8.
43
Tradução por Rosado Fernandes e Granwehr 2010.
44 Como nota Raaflaub 2014: 20, “this is one of the leitmotifs in Herodotus’
Histories, and it can be applied to Athens as well: this greatest of all cities too may
one day be crushed into a pile of smoking rubble”.
179
distanciamento que poderia tornar tolerável, para a audiência grega,
imaginar ou ressentir os temores da ruína completa de uma pólis.
Diante deste referencial histórico, percebe-se como, em tempos
de guerra, o destino individual está ligado à sorte do coletivo e da
cidade. A atenção dos cantos corais, especialmente o segundo (799859) e terceiro estásimos (1061-1122), repousa nesta espécie de
destino em comum entre, de um lado, a cidade destruída e privada
dos seus homens e, de outro lado, as mulheres que veem seus estatutos arruinados de esposas de uma cidade próspera para servas de
um oikos grego. De forma a reforçar esta conexão, o poeta reserva,
para o tempo da ação da peça, os últimos incêndios e destruições
das muralhas e edifícios troianos, assim como o sepultamento da
última esperança de reconstruir Troia, Astíanax, filho de Heitor e
Andrómaca.
Astíanax e a sua descendência, com efeito, representavam, para
Hécuba, o desejo de refundação de Troia (703-705). Essa esperança,
contudo, acaba logo em seguida, pois Taltíbio anuncia a iminente
morte do pequeno Astíanax pelos aqueus. 45 Este desfecho contrasta
com outra peça de Eurípides, Andrómaca, na qual Tétis, enquanto
dea ex machina, regenera a combalida casa de Éaco ao criar um oikos a partir da sobrevivência do filho de Andrómaca e Neoptólemo,
Molossos, e do novo casamento de Andrómaca com Heleno, irmão
de Heitor. As novas bodas e a sobrevivência de Molossos garantem,
assim, a continuidade da família real troiana e, de certo modo, sua-
45 Há divergência entre os filólogos relativamente ao estabelecimento do início
do verso 704. Se aceitarmos o texto de Diggle 1981, que lê ἐκ σοῦ (“de ti”), seriam
os filhos de Andrómaca que reergueriam Troia, pois Hécuba estaria a se endereçar à
esposa de Heitor. Caso aceitemos, por outro lado, a lição ἐξ οὕ (“dele”), impressa por
Lee 1997 e Kovacs 2018, os potenciais refundadores de Troia seriam os descendentes
de Astíanax, dado que, neste caso, Hécuba estaria referindo-se a Astíanax. A última
hipótese parece mais coerente com o restante da intriga da peça, pois o pathos da
reentrada de Taltíbio em cena incide precisamente na morte de Astíanax enquanto
última esperança de salvação da família real e de Troia (“the killing of Hector’s son
marks the end of Troy’s existence”, Kovacs 2018: ad 706-798). Sobre a maneira pela
qual a presença em cena do cadáver do filho de Heitor em As Troianas, com seu
respectivo ritual fúnebre, reforça o tema do aniquilamento de Troia, ver Dyson e Lee
2000. Ainda sobre o episódio de Astíanax, ver Werner 2018.
180
vizam a ruína completa de Troia e da sua nobreza em comparação
com As Troianas e Hécuba.
Como vimos neste breve panorama, Troia constitui o grande paradigma de cidade destruída na tragédia grega. A ruína da cidade de
Príamo foi, obviamente, um dado da tradição mítica assente no ciclo
épico. Teria sido improvável, portanto, que os dramaturgos do século de Péricles pudessem ter alterado este elemento central quando
compuseram suas peças. Ainda assim, os poetas trágicos não foram
forçados a darem tanta ênfase à saga de Troia e, particularmente,
ao destino final da cidade. Uma memória coletiva, assim como a
memória de um indivíduo, precisa esquecer certos acontecimentos
para lembrar outros. Por que, então, o mito de Troia e de sua ruína
não cessou de reaparecer nas manifestações culturais dos gregos
do período clássico? Uma resposta, apontada neste trabalho, remete
para a elasticidade própria do mito, capaz de concentrar significados
opostos numa mesma narrativa. Assim, a guerra contra Troia poderia
ser vista como uma empresa sancionada pelos deuses para punir um
mau hóspede e, ao mesmo tempo, uma ilustração do que pode ocorrer de desastroso quando os vencedores exterminam uma cidade. 46
O tema do aniquilamento de Troia, como vimos, foi profícuo
para a reflexão dos gregos acerca das ameaças de ruína total das
suas próprias cidades. Podemos supor que as Guerras Pérsicas e a
Guerra do Peloponeso despertaram um vívido interesse dos poetas
e da audiência sobre o destino funesto de Troia, e as ambiguidades
inerentes a uma vitória que se transforma num aniquilamento do
vencido, aspeto realçado por Ésquilo e Eurípides nas tragédias discutidas neste texto. Por meio de Troia, situada no passado remoto e
não helénico, os gregos ponderaram sobre a ruína das cidades e o
papel de vencedores e vencidos em guerras extremas.
46 Neste último caso, estaremos próximos à apreciação de Heródoto (2.120), que
viu a ruína de Troia como uma lição que expressava o castigo divino diante de grandes injustiças humanas. Agradeço ao avaliador anónimo deste texto por ter chamado
a atenção para esta passagem de Heródoto.
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