ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
Recebido em:08/04/2022
Aprovado em: 24/08/2022
Publicado em: 30/09/2022
[TRADUÇÃO]
PSYCHOANALYSE UND PHILOSOPHIE
eine Erwiderung auf die Kritik von Dr. Theodor Reik
Por
James J. Putnam (Boston) 1
Tradução e notas
Guilherme Germer2
(guilhermeguita@gmail.com)
Caio Padovan3
(caiopadovanss@gmail.com)
NOTA INTRODUTÓRIA
Caio Padovan
Weiny César Freitas Pinto4
(weiny.freitas@ufms.br)
O presente artigo foi publicado por James Jackson Putnam em 1913, no Zentralblatt für
Psychoanalyse und Psychotherapie, alguns meses após a publicação da resenha crítica de Reik
sobre a conferência de Putnam intitulada Sobre a importância da formação e das perspectivas
filosóficas para o desenvolvimento futuro do movimento psicanalítico. Para mais informações
1
Originalmente publicado em: PUTNAM, J. J. Psychoanalyse und Philosophie. Eine Erwiderung auf die
Kritik von Dr. Otto Reik. Zentralblatt für Psychoanalyse und Psychotherapie, v. 3, n. 6-7, p. 265-269, 1913.
2
Doutor em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9731890269292935.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3173-6750.
3
Professor colaborador de Psicologia clínica na Université Paul Valéry, Montpellier 3, e pesquisador
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5546489394122208.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6397-6631.
4
Professor Doutor do curso de Filosofia e de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1411304686102041.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7101-9150.
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
a respeito da conferência de Putnam, ver Freitas Pinto e Padovan (2019)5. Escrita originalmente
em alemão, apresentamos aqui ao leitor a primeira versão brasileira da resposta de Putnam a
Reik. Não temos notícia de outras traduções desse material para qualquer outro idioma. Tratase, portanto, de um trabalho pioneiro, que encerra uma sequência de traduções e publicações
realizadas por nós, dirigidas a textos que compõem o primeiro grande debate entre filosofia e
psicanálise no interior do movimento psicanalítico6. Nosso próximo passo é integrar o conjunto
desses textos, aprofundando a reflexão sobre a sua importância histórica e filosófica, e ampliar
o debate, apresentando outros autores que se debruçaram sobre o tema, no mesmo período,
discussões acerca da relação entre psicanálise e filosofia.
5
Cf. FREITAS PINTO, W. C.; PADOVAN, C. James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia e
psicanálise: Apresentação, tradução e notas de um apelo para o estudo de métodos filosóficos na preparação
para o trabalho psicanalítico (1911). Modernos & Contemporâneos – International Journal of Philosophy,
v. 3, n. 6, p. 305-316, 2019.
6
Além da tradução já referenciada acima, relativa ao seu artigo de 1911, foram também publicadas em
língua portuguesa a réplica de Ferenczi e a tréplica de Putnam. Cf. PADOVAN, C. GERMER, G. Filosofia
e psicanálise (considerações sobre um artigo do Sr. Professor Dr. James J. Putnam da Universidade de
Harvard, Boston, EUA), Eleuthería, v. 6, n. 10, p. 345-358, 2021; PADOVAN, C. GERMER, G. Resposta
à réplica do Senhor Dr. Ferenczi. Eleuthería, n. 6 (Especial), p. 398-405, 2021.
296
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
PSICANÁLISE E FILOSOFIA
uma resposta à crítica do Dr. Thedor Reik7
Por
James J. Putnam (Boston)
[Tradução e notas: Guilherme Germer e Caio Padovan]
Mesmo que com um pequeno atraso, seria ainda possível reivindicar um espaço no
Zentralblatt para explicar, um pouco mais, o objetivo da minha conferência realizada no
Congresso de Weimar, em 1911, conferência que o Sr. Dr. Theodor Reik teve a bondade de
debater no número de outubro?
Espero que o senhor expositor me desculpe por também dizer aqui que, depois da leitura
de sua recensão, estou ainda mais profundamente convencido do direito e valor prático de meus
argumentos. Eu também queria, por outro lado, admitir que ficou claro para mim mesmo que
não fui capaz de gerar em meus colegas psicanalistas o mesmo sentimento que me impeliu a
realizar essa palestra.
Há, principalmente, quatro elementos que eu procurei defender.
Em primeiro lugar, afirmei que quando os psicanalistas saem do estreito círculo do
trabalho puramente terapêutico (como eles, de fato, muitas vezes fizeram, precipitando-se como
conhecedores da alma), deles se deveria exigir, para que se faça justiça à ciência e a si próprios,
que estudem cuidadosa e amistosamente todos os demais métodos de interpretação através dos
quais as ações e as motivações humanas normais [Motive normaler Menschen]8 têm sido
explicadas até aqui. Isso vale, antes de tudo, para os métodos de interpretação filosóficos, que
deveriam ser de especial interesse a todos os psicanalistas, e precisamente, por causa de sua
sutileza e relevância.
Resenha do Dr. Reik sobre o trabalho de Putnam: “Sobre a importância da formação e das perspectivas
filosóficas para o desenvolvimento futuro do movimento psicanalítico”, publicado no primeiro número do
terceiro volume do Zentralblatt für Psychoanalyse. [Nota dos tradutores (N.T). “Dr. Otto Reik”, no original.
Corrigimos o erro de grafia na tradução incluindo o primeiro nome de Reik, “Theodor”.
8
[N.T. A questão das “motivações humanas normais” será desenvolvida por Putnam dois anos mais tarde
em uma obra de divulgação científica intitulada Motivações humanas. Dois dos seis capítulos que compõem
este trabalho abordarão diretamente questões psicanalíticas. Cf. PUTNAM, J. J. Human motives. Boston:
Little, Brown, and Company, 1915].
7
297
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
O estudo da filosofia e da metafísica foi tão indevidamente negligenciado pelos
cientistas naturais nos últimos cinquenta anos que, muitos, têm ainda hoje a convicção de que
essas tentativas de interpretação da vida humana não podem trazer à luz nada de essencial. Isso,
porém, é um grave erro. Minha opinião é a de que, justamente, os psicanalistas seriam capazes
de trazer um material precioso para reabilitar a reputação da filosofia e da metafísica entre
médicos e naturalistas; [pois] lhes foi possível, graças à sua perspicácia, descobrir muitas
nuances da atividade espiritual, que os outros pesquisadores até agora eludiram.
É certo, no entanto, que a postura dos psicanalistas que levantam de maneira otimista a
bandeira da “verdade total” não seria nem científica, nem digna, uma vez que se permitem
continuamente adentrar o domínio da filosofia sem fazer justiça à própria filosofia. Assim, a
escolha dos sistemas [filosóficos] é atribuída “parcialmente” à ação do inconsciente dos
diversos filósofos; mas não deveríamos permanecer no escuro, e por tanto tempo, sobre em que
medida essa ação do inconsciente é vista como responsável pela escolha do sistema. A proposta
de substituir a palavra e o conceito de “metafísica” por “metapsicologia” também é de grande
importância; gostaríamos, no entanto, de saber se desse modo se entende que a filosofia e a
metafísica devem ser antes de tudo vistas como manifestações [Erscheinungen] de origem
biogenética.
Eu reconheço de bom grado que, enquanto a psicanálise dava os seus primeiros passos,
seus partidários não estavam obrigados ou comprometidos a serem completamente justos em
relação à sua rival filosofia e a reconhecerem. Minha crítica não se endereça, portanto, de modo
algum, ao fato de que até agora as reivindicações da filosofia não foram consideradas. Contudo,
como diz o título de minha conferência, espero que chegue o dia em que se considere benéfico
estudar as atividades espirituais não apenas do ponto de vista biogenético, mas também
filosófico. O fato de se ter até agora hesitado é, segundo minha visão, baseado em uma
resistência, ou seja, em um preconceito infundado. Acreditava-se e ainda se acredita que, se as
ciências naturais são exatas, e seus procedimentos confiáveis, isso não poderia ser admitido no
caso da metafísica. Essa é uma conclusão muito deficiente. A causa dessa opinião repousa no
fato de que a metafísica é uma ciência demasiado complexa, que exige, junto a uma grande
clareza de pensamento lógico, uma capacidade especial de penetração nos processos anímicos,
bem como uma formação particular. Poderíamos afirmar a mesma coisa, como todos nós
sabemos, da própria psicanálise, o que explica facilmente o lamentável desdém que persiste
ainda hoje também em relação a esta.
Meu segundo ponto foi de que todo o tratamento psicanalítico é “uma etapa de um
processo educacional”, e aponta, necessariamente, para algum tipo de “sublimação”
298
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
como seu objetivo final e ideal. Essa sublimação talvez não seja sempre perseguida pelo
psicanalista. Existem pouquíssimos casos em que a vontade, ou as ideias morais, ou a
consciência social [soziale Bewusstsein]9 do paciente não sejam exigidas em um certo grau, por
vezes particularmente elevado. O psicanalista, em seu papel de educador, deveria, portanto, ser
íntimo de todas as fontes de ideias e impulsos morais, mesmo que ele não comunique esse saber
de modo sistemático ao paciente. Quando temos a certeza de conhecer as fontes de nossas ideias
morais, então, essa certeza contribuirá, substancialmente, na determinação da direção de nossos
processos sublimatórios. Nenhuma sublimação, porém, pode ser completa, se não se estudam
os fatos que compõem a sua base. Todo procedimento distinto (agnóstico) reconduz àquele
individualismo e infantilismo terríveis do assim chamado período “científico”10, de cuja grande
estreiteza felizmente nos livramos, e precisamente agora11. Os psicanalistas aplicam um grande
9
[N. T. O conceito correspondente em inglês, social consciousness, foi bastante debatido na filosofia norteamericana, em especial pelo pragmatismo, com o qual Putnam provavelmente teve contato por ser-lhe
contemporâneo e conterrâneo. Em seus textos inéditos, Charles Peirce fala tanto de uma “consciência social,
ou o sentimento de simpatia em relação ao outro” (PEIRCE, C. The Collected papers of Charles Peirce, IV
– Consciousness, §2, Forms of consciousness, 7.540); quanto de uma consciência social distinta da carnal,
e “pela qual o espírito de um homem é incorporado em outros, e que continua a viver e respirar e ter o seu
ser muito mais longo (longer) do que os observadores superficiais imaginam” (Idem, §5, 7.575). James
Tufts, em Creative inteligence – essays in the pragmatic atitude (1917), publicado quatro anos após o
presente artigo, defendeu que a “consciência social [...] não foi trabalhada nos tempos de Kant como por
autores recentes” (TUFTS, H. The moral life and the construction of values and standards. In: DEWEY, J.
(Org.). Creative intelligence, New York: Henry Holt and Company, 1917, p. 363). E a definiu como “a
atitude [...] de ir junto (along) ao outro, e assim, estender e enriquecer nossas experiências. Entramos em
suas ideias, nos alinhamos à sua imaginação, nos acendemos com seus entusiasmos, nos simpatizamos com
suas alegrias ou tristezas [...] Se ‘o lar é o lugar onde, quando você deve ir até ele, ele deve te acolher’, como
diz Frost, um amigo é aquele que, quando você vai a seu encontro, ele irá te aceitar” (Idem, p. 377)
10
Putnam parece opor-se, aqui, à “lei geral do desenvolvimento do espírito humano” (COMTE, A. Curso
de filosofia positivista. In: CIVITA, V. (Org.). Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, v. 33, 1973,
p. 13), defendida por Augusto Comte em Curso de filosofia positivista (1830). Essa lei foi citada por Freud
em Totem e tabu (1913), e seus colaboradores próximos pareciam simpatizar com esta. Trata-se da seguinte
teoria: para Comte, o desenvolvimento da inteligência humana atravessa três fases principais: a teológica, a
metafísica e a científica. Essa última supera as duas anteriores, tidas por “primitivas”, por usar o método
positivo no filosofar, fundado no reconhecimento da “impossibilidade de obter noções absolutas” e de se
“conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem
combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão
e de similitude” (Idem). Essa teoria também engloba um otimismo prático que Putnam associa, aqui, ao
infantilismo: Comte cria que o desenvolvimento científico-positivista seria necessariamente acompanhado
de uma evolução política, social e moral da humanidade, a qual só poderia ser alcançada por aquele caminho.
Em suas palavras: “A grande crise política e moral das sociedades atuais provém, em última análise, da
anarquia intelectual” (Idem, p. 23). “A razão pública deve encontrar-se implicitamente disposta a acolher
atualmente o espírito positivo como a única base possível para uma verdadeira resolução da profunda
anarquia intelectual e moral, que caracteriza sobremaneira a grande crise moderna” (COMTE, A. Discurso
sobre o espírito positivo. In: CIVITA, V. (Org.). Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, v. 33, 1973,
p. 74). “Completando a vasta operação intelectual iniciada por Bacon, por Descartes e por Galileu,
construamos diretamente o sistema de ideias gerais que esta filosofia, de agora em diante, está destinada a
fazer prevalecer na espécie humana, e a crise revolucionária, que atormenta os povos civilizados, estará
essencialmente terminada” (COMTE, 1974a, p. 25).
11
[N. T. Curiosamente, o mesmo Friedrich Nietzsche que Theodor Reik utilizou, em seu texto, para defender
a importância da emancipação da ciência da psicanálise perante a metafísica, pode ser citado entre os autores
299
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
cuidado ao estudo dos aspectos dos instintos [Triebe], e rastreiam as pegadas de suas
influências. Contudo, eles só se ocupam de modo insuficiente da origem dos instintos, e
sobretudo da origem e natureza dos processos espirituais.
Entre os homens formados nas ciências naturais, parece existir a ideia geral de que a
mente resulta de uma evolução puramente física, que começou com o caos. De acordo com essa
doutrina, não se exigirá dos homens, segundo sua determinação e origem, nenhum
reconhecimento [Anerkennung] de uma responsabilidade moral superior. Por esses homens, a
que encabeçam essa tendência aludida por Putnam de crítica à estreiteza de uma fé infantil e exagerada na
ciência: “É ainda uma fé metafísica, aquela sobre a qual repousa a nossa fé na ciência” (NIETZSCHE, F.
Genealogia da Moral. Tradução de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. III, 1998, §24, p.
139-140). Assim como o sacerdote ascético acredita ter encontrado o único método de apreensão da essência
das coisas, Nietzsche afirma que a ciência também faz isso, ao recusar qualquer traço de interpretação e
subjetividade em sua busca de uma verdade puramente objetiva e factual: “Mas o que força a isto, a
incondicional vontade de verdade, é a fé no próprio ideal ascético [...] — é a fé em um valor metafísico, um
valor em si da verdade, tal como somente esse ideal garante e avaliza [...] Não existe, a rigor, uma ciência
‘sem pressupostos’ [...] deve haver antes uma filosofia, uma ‘fé’, para que a ciência dela extraia uma direção,
um sentido, um limite, um método, um direito à existência. (Quem entende o contrário, quem, por exemplo,
se dispõe a colocar a filosofia ‘sobre base estritamente científica’, precisa antes colocar não só a filosofia,
mas também a verdade de cabeça para baixo” (Idem). Ou seja, ao se crer capaz de despir-se de qualquer
fundação ou orientação externa, como a filosófica, a ciência se apresenta como uma nova religião, mais
refinada, é verdade, mas, analogamente, acredita no valor absoluto (e, portanto, metafísico) de sua própria
verdade e metodologia. Daí a semelhança externa entre o cientista e o sacerdote ascético: “Também do
ponto de vista fisiológico, a ciência pisa no mesmo chão que o ideal ascético: um certo empobrecimento da
vida é o pressuposto, em um caso como no outro — as emoções tornadas frias, o ritmo tornado lento, a
dialética no lugar do instinto, a seriedade impressa nos rostos e nos gestos” (Idem, III, §25, p. 141). Em um
texto anterior, Nietzsche também precisa que o homem objetivo, “no qual o instinto científico vem a florir
por inteiro”, priva-se de toda pessoalidade, filosofia e finalidade, e desse modo, torna-se um simples espelho
ou escravo: “Habituado a submeter-se ao que quer ser conhecido, sem outro prazer que o dado pelo
conhecer, ‘espelhar’ [...] Sua alma-espelho, que eternamente se alisa, já não sabe afirmar, nem sabe negar;
ele não comanda [...] tampouco é um homem-modelo; a ninguém precede nem sucede; colocando-se muito
a distância, não tem motivos para tomar partido entre o bem e o mal [...] Ele é um instrumento, algo como
um escravo [...] Um homem sem conteúdo e substância, um homem ‘sem si’” (NIETZSCHE, F. Além do
bem e do mal. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, §207, p. 97-98). Nietzsche opõe a essa ideia de uma ciência
puramente factual e objetiva, sem filosofia e ideal, o perspectivismo do conhecimento: “Existe apenas uma
visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma
coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será
nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’” (NIETZSCHE, 1998, III, §12, p. 108). O apelo de Putnam a um
trabalho em conjunto da filosofia e psicanálise retoma significativamente o perspectivismo nietzschiano.
Quanto ao individualismo da concepção científica criticada por Putnam, ele também foi alvo da crítica de
seu contemporâneo John Dewey. Para ele, “As ciências criaram novas artes industriais. O domínio físico
das energias naturais do homem foi multiplicado indefinidamente [...]. Porém, um pequeno grupo de pessoas
é suficientemente otimista para declarar que um comando similar das forças que controlam o bem-estar
social e moral do homem foi alcançado [...]. Não apenas a evolução do método de conhecimento permaneceu
muito limitado aos assuntos econômicos e físicos, como que o progresso também trouxe consigo distúrbios
morais novos e sérios” (DEWEY, J. Reconstruction in philosophy. New York: Henry Holt and Company,
1920, p. 125). Há uma necessidade, portanto, de uma “reconciliação das atitudes da ciência prática e da
apreciação estética e contemplativa”, liderada pela filosofia. Sem essa conciliação, ou seremos “vítimas de
forças naturais” avassaladoras (enfrentadas pela técnica), ou nos tornaremos “uma raça de monstros
econômicos” (Idem, p. 127), individualistas, entediados ou extravagantes (combatido pela filosofia).
Somente o último pode guiar o saber científico para além da condição de ser um mero “catálogo dos fatos
particulares descobertos sobre o mundo” (DEWEY, J. (1916). Educação e democracia. Tradução de G.
Rangel e A. Teixeira. São Paulo: Ed. Nacional. 1979, p. 357), e situá-lo na construção de “uma atitude geral
para com este”, orientada à “continuidade social da vida” (Idem, p. 2).
300
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
ética se reduziria ao nível de um utilitarismo puro e estreito. Essa doutrina se transformou
diretamente em uma visão geral, que, porém, pode ser defendida apenas com grandes
dificuldades. Mas ela é incontestavelmente o resultado lógico da superstição existente de que
se poderia explicar tudo com o auxílio do método biogenético.
O estudo da metafísica e dos pressupostos necessários da filosofia não são meras frases
sem alcance prático. Quem acredita nisso precisa apenas considerar o frontispício do “Studies
in Hegelian Cosmology” de McTaggarts e ler o prefácio do livro12. A metafísica superior é
difícil de conceber, mas, segundo minha visão, os princípios fundamentais dessa ciência
consistem, inerentemente, em um patrimônio comum de todos os homens tidos por normais.
A afirmação de Abraham, que diz em seu admirável “Sonho e mito” (p. 67): “Assim
como a criança não vem ao mundo com uma ética altruísta, tampouco é de se aceitar que os
homens dos tempos pré-históricos portem em si ideias religiosas ou filosóficas, as quais se
simbolizaram posteriormente nos mitos” não me parece especialmente iluminadora13. Como se
deve explicar que a filosofia tenha sido trazida à existência, se os seus germes já não existissem
nas mentes saudáveis dos homens pré-históricos, ou dormissem como disposições naturais no
espírito de cada recém-nascido? O mesmo vale, naturalmente, para toda forma de ciência.
Nenhuma evolução caminha em linha reta, mas se manifesta em círculos e espirais. Em cada
broto está a coroa da árvore e das próximas sementes por virem, e a realização de cada espírito
pressupõe que o espírito já exista como seu precursor. O espírito, portanto, deve ter sido o início
de todo universo. A carência do método biogenético, como de todo método de explicação,
repousa, destarte, no fato de que ele não estuda um exemplo real de evolução como um todo,
mas sempre e somente uma curta etapa deste.
O espírito de todo homem, mesmo nas formas mais primitivas, deve, além disso, ser
criado de acordo com o mesmo plano do espírito universal, cujas reações internas,
consequentemente, são dignas de estudo.
Meu terceiro ponto foi, em sua essência, de que hoje não se arriba mais na pergunta de
se os psicanalistas deveriam usar “intuições gerais” [Allgemeine Anschauungen], pois eles já as
12
[N.T. Referência do autor à obra: McTAGGART, J. Studies in Hegelian Cosmology. Cambridge:
University Press, 1901. John McTaggart (1866-1925) foi um filósofo idealista britânico, importante
representante do pensamento de Hegel na Inglaterra. Ao consultar a obra citada, não encontramos nenhuma
informação a este respeito, nem no frontispício, nem no prefácio, comentados por Putnam. Talvez o
psicanalista estadunidense estivesse se referindo à introdução do livro, na qual McTaggart discute a noção
cosmologia do ponto de vista hegeliano].
13
[N.T. Referência à obra: ABRAHAM, K. Traum und Mythus. Eine Studie zur Völkerpsychologie. Leipzig
und Wien: Franz Deuticke, 1909. A mesma passagem de Karl Abraham já havia sido evocada por Putnam,
também em tom crítico, em sua resposta a Ferenczi. Ver a versão por nós traduzida deste texto em:
PUTNAM, J. J. Resposta à réplica do senhor Dr. Ferenczi. Eleuthería, v. 6, número especial, p. 398-405, p.
401, 2021].
301
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
usam, por mais que queiram relutar tanto contra isso, e inclusive mais do que deveriam. Assim,
por exemplo, o Dr. Reik me caracteriza como um monista (espiritual), e convoca a autoridade
de Kant para a discussão, para apresentar as minhas intuições como indefensáveis. Aqui, porém,
é um caso de: ou isso ou aquilo. Se o Dr. Reik discorda das minhas ideias, ele deve,
necessariamente, aceitar outras como melhores. Ele é, portanto, dualista? E está realmente
preparado para defender a impossível doutrina dualista? Ele negaria que um pensador talvez
ainda maior do que Kant (Hegel) nos conferiu boas provas (que deveriam interessar diretamente
a nós psicanalistas) de que as afirmações do pensador de Königsberg sobre a questão acima
foram fundadas de modo muito insuficiente? Ou o senhor expositor rejeita, de algum modo, o
princípio dualista; e aceita, em contrapartida, a doutrina de um monismo material, embora
precise de suas habilidades espirituais para provar que os fenômenos psíquicos, em sua esfera
de ação e por meio das habilidades evolutivas, são subordinados aos fenômenos físicos e podem
ser a eles reduzidos? Isso, porém, seria uma afirmação bem grave, e que representa, segundo
minha visão, uma perspectiva que não poderá ser defendida.
Meu quarto ponto é que nenhuma atividade espiritual depende apenas da experiência. É
possível que cada ação espiritual guarde da experiência certa tonalidade, quer dizer, que ela não
possa, em condições normais, desfazer-se de todos os elementos da experiência. Mas existe
uma porção de pressupostos necessários que opera silenciosamente no espírito de todo homem,
acompanhando cada pensamento, e que, por isso, não nos chegam por meio da experiência.
Ninguém “experimenta”, por exemplo, o “movimento” enquanto tal ou a causalidade enquanto
tal, mas somente seus resultados. Portanto, esses conceitos nos remetem a capacidades
analisáveis e reais do espírito, que foram estudadas zelosamente por homens habilitados. Graças
a eles, uma miríade de fatos importantes foi trazida à luz, e que nós, pesquisadores do campo
da atividade espiritual e de seus símbolos, não podemos ignorar. Alguns desses fatos, foram
mencionados em minha palestra, outros; eu relatei em meu segundo artigo na revista “Imago”
(n. 5)14 (todos eles naturalmente podem ser encontrados na literatura filosófica). Eu também
chamei a atenção ao fato de que esse tipo de atividade do espírito, por meio dos quais aqueles
“pressupostos” são reconhecidos, tem o seu próprio meio de expressão simbólica, que nós
deveríamos limitar em nosso estudo, para poder avaliar aqueles outros tipos de simbolismos
que interessam especialmente a nós, psicanalistas, exatamente de acordo com sua importância.
Nessa oportunidade, eu gostaria de me referir aos preciosos trabalhos de Silberer,
sobretudo àqueles em que ele estuda o mecanismo dos sonhos que são sonhados no estágio
14
[N.T. Cf. PUTNAM, J. J. Antwort auf die Erwiderung des Herrn Dr. Ferenczi. Imago, v. 1, n. 5, p. 527530, 1912].
302
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
de transição entre o sono e a vigília15. “Transição” em si mesma, porém, considerada como um
verdadeiro objeto de investigação, não foi a nenhuma parte reconhecida a não ser na metafísica,
e sua interpretação não foi estudada por ninguém com mais zelo do que Hegel e seus discípulos,
que a trataram como um processo espiritual definitivo e típico. O mesmo se aplica à
“reconciliação de estados espirituais opostos”, que nós temos de considerar continuamente em
nosso trabalho. Por que, contudo, devia ser uma ofensa ao movimento psicanalítico quando
propomos esclarecer o objetivo de nosso trabalho e elevar seu valor através do estudo, do modo
como mencionamos? O Sr. Dr. Reik insiste em que “Até agora, nossa posição em relação à
metafísica nunca foi negativa, como, aliás, supõe Putnam, mas, sim, neutra”16. Entretanto, já
ofereci argumentos que defendem, com completude, que isso não é o caso nem pode sê-lo.
Afinal, a uma potência neutra não se dá a liberdade de determinar suas próprias fronteiras,
dando a entender senão uma exigência, ao menos um desejo de reduzir, assim, as linhas de
demarcação dos vizinhos. O Sr. Dr. Reik, todavia, faz algo semelhante quando, sem
qualificação, afirma: “O que impulsiona alguém a uma filosofia depende, sim, em última
instância, do que ele é como pessoa”17. Essa afirmação é parcialmente verdadeira, mas é apenas
parcialmente verdadeira. O Sr. Dr. Jung, por exemplo, cujas exposições são de palavras tão
eminentes, também tornaria a “libido” em sentido amplo a base de todo conhecimento
espiritual. Por que, porém, temos de nos deter aqui? Por que não poderíamos obter o
conhecimento de que a “libido”, considerada sob esse ângulo, não é, na realidade, nada além
da “poussée vitale” de Bergson, ou a “autorrealização” [Selbstbetätigung]18 de Hegel, ou outros
15
[N.T. Referência do autor aos trabalhos do filósofo vienense Herbert Silberer, então membro da Sociedade
Psicanalítica de Viena. O primeiro desses trabalhos foi publicado em 1909, com o título Notas sobre um
método de produção e observação de certos fenômenos de alucinação simbólica. Cf. SILBERER, H. Bericht
über eine Methode, gewisse symbolische Halluzinations-Erscheinungen hervorzurufen und zu beobachten.
Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen, n. 1, p. 513-525, 1909.
16
Reik, T., Padovan, C., & Germer, G. (2022). JAMES J. PUTNAM, SOBRE A IMPORTÂNCIA DA
FORMAÇÃO E DAS PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS PARA O DESENVOLVIMENTO FUTURO DO
MOVIMENTO PSICANALÍTICO. Eleuthería - Revista Do Curso De Filosofia Da UFMS, vol. 7, n. 13,
289 – 294, 2022.
17
[Reik, T., Padovan, C., & Germer, G. (2022). JAMES J. PUTNAM, SOBRE A IMPORTÂNCIA DA
FORMAÇÃO E DAS PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS PARA O DESENVOLVIMENTO FUTURO DO
MOVIMENTO PSICANALÍTICO. Eleuthería - Revista Do Curso De Filosofia Da UFMS, vol. 7, n. 13,
289 – 294, 2022.
18
[N.T. O termo Selbstbetätigung, traduzido por “autorrealização”, aparece pela primeira vez na resposta
de Putnam a Reik. No primeiro artigo de Putnam, publicado em inglês, encontramos a expressão self-active
energy (p. 252 e p. 255). Cf. PUTNAM, J. J. A Plea for The Study of Philosophic Methods in Preparation
for Psychoanalytic Work. The Journal of Abnormal Psychology, 6, pp. 249-264, 1911. Na versão alemã de
seu primeiro artigo, encontramos a expressão Selbsttätige Energie e Selbsttätige Kraft (p. 104, 105, 106,
107, 108, 109) que parecem traduzir a expressão inglesa de maneira bastante literal. Cf. PUTNAM, J. J.
Ueber die Bedeutung philosophischer Anschauungen und Ausbildung für die weitere Entwicklung der
psychoanalytischen Bewegung. Imago, v. 1, n. 2, p. 101-118, 1912. Considerando a filiação desta noção ao
conceito hegeliano de Selbstbetätigung, explícita no presente artigo, optamos por traduzir todas as demais
303
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
filósofos? Admitir isso é, com certeza, reconhecer por completo a realidade ou o domínio
superior de um princípio idealista como sendo a base de toda a vida. Negá-lo, porém, significa
aderir a uma doutrina que torna a atividade do espírito dependente logicamente das leis físicas,
e que, no entanto, falta na explicação do sentido e da origem das leis físicas ou da atividade do
espírito como o resultado delas.
Em poucas palavras, nós temos de entrar nos jardins da filosofia, o que também já
fizemos. Se não podemos penetrá-lo pela porta, devemos pular a cerca, como amigos ou
inimigos – tanto faz! Contudo, isso de fazer rodeios sem se ter reconhecido, de fato, o
significado da filosofia é cair no mesmo erro em que sucumbem aqueles médicos que se
nomeiam psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas etc., mas que não estudaram com exatidão a
psicanálise.
Nós que nos declaramos desejosos da investigação e descoberta “da realidade”, não
deveríamos nos satisfazer apenas com a realidade relativa. Não é suficientemente reconhecido
que “realidade” significa, para nós, “concordância com nosso espírito”, o qual unicamente sente
e julga. Contudo, realidade, neste sentido, não será expressa completamente por meio de
conteúdos de experiência, como o definem as percepções sensíveis. Nossas experiências
poderiam ser vistas, antes, como formas de expressão simbólica da realidade, do que como a
realidade “em si”.
Para finalizar, eu acredito que se pode dizer que a confusa discussão sobre “monismo”
e “dualismo” perde seu direito de existência quando considerada à luz da pesquisa filosófica.
Isso, em todo caso, é um alívio e um benefício para nós.
Os trabalhos de Bergson sobre esse tema são muito interessantes e importantes,
inclusive quando não são metafísicos19. Contudo, o reconhecimento da demonstração hegeliana
(que me parece logicamente irrefutável), segundo a qual é uma característica de toda atividade
do espírito que ela suceda sob uma forma subjetivo-objetiva quase dualista, oferece-nos, ao
menos, uma base para a argumentação posterior, por meio da qual todo o problema é trazido a
uma luz que pouco pode ser extraída de outras fontes.
ocorrências das expressões inglesa e alemãs por “força” ou “energia autorrealizadora”. Cf. FREITAS
PINTO, W. C.; PADOVAN, C. Ibid.].
19
[N.T. Segundo Geovana Monteiro, Bergson defende uma “espécie de monismo do tempo que não exclui
a variedade qualitativa de seus fluxos. Em certo sentido, teríamos o monismo apresentado desde Matéria e
memória (1896), a partir da constatação da temporalidade na matéria, e, por fim, da interpretação da duração
como dissipada em ritmos distintos em todos os níveis do real. Mas, Deleuze caracteriza esta multiplicidade
de ritmos como uma espécie de ‘pluralismo quantitativo’, o que poderia, no entanto, recolocar o problema
do monismo/pluralismo” (MONTEIRO, G. Um absoluto movente: considerações sobre monismo e
pluralismo em Bergson. Griot: Revista de Filosofia, v. 18, n. 2, p. 86-99, 2018, p. 92). Esse embate entre
monismo e pluralismo é abordado por Bergson sob uma nova luz em A evolução criadora (1907), e,
também, em Duração e simultaneidade (1922), mas que, no entanto, é posterior ao presente artigo].
304
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia
Volume 07, Número 13, Ano 2022
REFERÊNCIAS
PUTNAM, J. J. Psychoanalyse und Philosophie. Eine Erwiderung auf die Kritik von Dr. Otto
Reik. Zentralblatt für Psychoanalyse und Psychotherapie, v. 3, n. 6-7, p. 265-269, 1913.
305