7.4.25

 METANOITE

A actualidade de uma ópera llansoliana

Deixamos aqui o resumo da sessão de sábado, 5 de Abril, no Espaço Llansol, recuperando uma ópera feita a partir de textos de M. G. Llansol, e que hoje volta a ser muito actual. 


METANOITE

A forma quimérica do mundo

Metanoite foi uma ópera de câmara concebida expressamente para o fórum cultural do projecto da Fundação Gulbenkian «O estado do mundo», em 2006-2007. O libretto foi escrito por João Barrento a partir da Obra de Maria Gabriela Llansol, em especial do livro O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a representação estética do mundo, e suas tentações (de 2002). A ópera, com música de João Madureira, foi apresentada em estreia absoluta nos dias 29 e 30 de Junho de 2007, no Grande Auditório da Fundação.

O libretto foi composto a partir de conversas com a própria autora e o compositor, e ganhando forma no caderno de João Barrento (exposto entre outros materiais, na sessão de sábado), de que se mostram aqui algumas páginas preparatórias:


O habitual caderno temático feito para esta sessão contém uma selecção de cenas, apresentadas numa leitura encenada, com as vozes de Diogo Dória (o Produtor), Anita Ribeiro (Psalmodia, a autora do espectáculo), Eva Dória (a Rapariga do Fulgor) e João Barrento (o Escrivão do contrato), acompanhada por fragmentos da música original de João Madureira para as quatro cenas da leitura, que o breve vídeo que se segue apresenta com imagens da sessão (fotografias de Teresa Huertas e João Barrento):

https://vimeo.com/1073210526

O caderno da sessão –  Metanoite. A forma quimérica do mundo – inclui ainda o texto de apresentação da ópera e das suas ideias-chave por João Barrento, de que transcrevemos a seguir o essencial:


Uma música sem mancha de ruído

 

Metanoite é o espectáculo de um espectáculo virtual dentro do grande espectáculo real do mundo. Um espectáculo sobre o estado desse mundo e as suas perspectivas futuras, nomeadamente no âmbito da produção artística. Como a play within the play de Hamlet («The play’s the thing / Wherein I’ll catch the conscience of the King», II, ii), esta ópera é um catalizador que porá à vista a consciência – e o inconsciente – do nosso mundo.

De que matéria(s) se faz hoje o mundo? A visão barroca e simbolista do mundo como sonho aplica-se menos ao nosso mundo do que a shakespeariana (e também calderoniana) do mundo como palco. Maria Gabriela Llansol, que forneceu a matéria para o libretto desta ópera, via-o, a princípio, como sendo feito sobretudo da matéria da injustiça, da «trama da existência» subordinada ao tempo do poder. Hoje, sem renunciar a esse ponto de vista, mas deslocando-o e ampliando-o, insiste mais (como demonstra o subtítulo de um dos últimos livros, O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações) na matéria das imagens e na natureza constitutivamente estética do mundo.

«O mundo é puramente estético (mas raramente santo)», diz a Rapariga do Fulgor. O ser estético disponibiliza-o para uma série de possibilidades (potencialidades) de apreensão para lá da sua mera representação e exposição, numa zona de que a maior parte das pessoas, ocupadas com o que (lhes) é útil, não se apercebe – porque esse trabalho estético consiste em ver à sombra do que se não vê. O não ser santo, por sua vez, implica que o mundo só pode ser (tendencialmente) cínico, pérfido, ressentido, absurdo. As estéticas de que o mundo é feito dão corpo, cor, imagem às coisas, são sinais de vida: «a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas», lemos já, na pré-história desta Obra, em Depois de Os Pregos na Erva. É essa, precisamente, a sua outra «santidade», aquela que Spinoza nelas viu com olhar (de) intenso. E é esse equilíbrio tensional entre a substância do invisível (que o estado actual do mundo insiste em esconder ou negar) e o estendal de absurdidade da sua imensa superfície visível, que Metanoite pretende dar a ver e problematizar – com humor e sensibilidade. Musil trata já este problema e esta tensão em O Homem sem Qualidades, uma obra imensa em que o essencial se joga entre a busca de um «outro estado» (que implica uma existência tacteante e céptica, aberta ao reino do possível e sem «qualidades») e a auto-satisfação dos «pragmáticos da razão suficiente». No meio, em inúmeras variantes, vegetam os ingénuos paladinos de uma realidade já sem perfil identificável, a que a cultura ocidental gosta de chamar o «Espírito», com maiúscula.

Também o libretto de Metanoite propõe dois filões alternantes, deixando repetidamente o caminho aberto a terceiras vias. O primeiro é o da paródia e da ironia (em relação às figuras do Escrivão e do Produtor do espectáculo), mais presente do que geralmente se pensa na Obra de Maria Gabriela Llansol, e que só por si poderia ter originado uma ópera puramente buffa. A paródia, lembremo-lo, tem a sua etimologia no párodos do teatro grego, aquela entrada lateral, ou canto paralelo que, remetendo para o pano de fundo contra o qual se desenrola a acção, se apresenta como discurso que passa ao lado da acção principal (isto é, mais visível) do mundo, que, no nosso caso, se pretende séria e é hilariante e absurda («Se o mundo é o imediato, este espectáculo / passa longe dele», diz a sua criadora, Psalmodia). O segundo filão, representado pelos intermezzi e pelo coro final, dá voz ao que deseja o que o desejo pode, à potência, despossuída de interesse, do «sexo do mundo», terceiro sexo que pode propiciar a terceira via implícita na ideia de Psalmodia para o seu espectáculo, que, repetindo realidades e práticas correntes no universo capitalista dominante, é sabotado, destruído, atraiçoado pelos «intermediários» (aquelas figuras, sinistras, invertebradas e sem rosto, de «funcionários» e guardas de uma lei que desconhecem, que povoam já o universo de Kafka). A perspectiva aberta da criação, para lá do «Ou... ou» do Produtor e da ignorância gestionária do Escrivão, é a do «ímpar»: não simplesmente a do número, já que participa do duplo sentido do termo, e implica, para um espectáculo como para uma existência, a relação tensional fora da simetria estéril, a orientação para a singularidade in-igualável (do mundo por vir). Só assim se poderá sair dos maniqueísmos do mundo e da eterna oposição não resolvida entre o carnaval (trágico) da História e um outro antiquíssimo (e mais humano) rumor da história. «Onde houver Bem e Mal» – lemos em O Senhor de Herbais – «a justiça nunca será reposta.» Mas, sabemo-lo há muito, o mundo precisa de se reger (de ser regido) por batutas dualistas, desvirtuando inevitavelmente os resultados dessa equação viciada. Por isso, o grande problema do mundo – e do espectáculo (de Psalmodia) dentro do espectáculo (da ópera) dentro do espectáculo do mundo – é o da reposição de uma justiça imanente, para além do Bem e do Mal.

[...]

As cenas da preparação do espectáculo (gorado) a que aqui se assiste deixam no ar dilemas e perguntas: como conceber o grande teatro do mundo de modo a que nele se possa afirmar a forma do humano? O humano será já hoje um fóssil, como sugere, no segundo quadro, a máquina que lê o pensamento e grava a palavra? Já estivémos mais perto da sua efectivação? A técnica desumaniza? Quando poderá o humano voltar a ser o que a visão ofertou a alguns e a História lhes retirou? Quando é que os olhos do humano estarão melhor apetrechados para ver o invisível, arriscando entrar no brilho perigoso e irresistível do Sol da metanoite? O que é, afinal, a metanoite?

A metanoite é o que nos espera do outro lado de uma fronteira que poucos atravessam: uma noite, mas de luz, um lugar de risco que é preciso atravessar para crescer na intensidade. Desde O Livro das Comunidades que encontramos na Obra de Maria Gabriela Llansol três noites: a do deserto, noite do agir em vida, travessia cega que os Gregos subordinavam a um destino (a moira) que o texto de Llansol  desconhece, porque nele o caminho da Figura, o «nocturno trabalho figural» (Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 167), é o da busca de uma energia autónoma (dos semelhantes na diferença); a do exílio, noite escura dos banidos do tempo, do esquecimento a que a História e os seus poderes os votaram; e a do espírito (daquele espírito que é manifestação de uma energia do corpo), da futura noite da ressuscitação sem ressurreição, da salvação sem deus, de um «espaço edénico» a-teológico, que pode estar à espera de cada um de nós na dobra de qualquer experiência, do outro lado da fronteira da metanoite. A metanoite seduz, e mete medo. Os perigos inerentes ao poço da metanoite, com a sua natureza de «imagens tempestuosas», são inseparáveis dos prazeres do jogo da escrita, da criação e do encontro de si (a psicologia jungiana chama-lhe «processo de individuação», e nele o papel da arte pode também ser central): porque é aí que encontramos o que não sabemos, mas precisamos de saber, porque é aí que arde a «chama num interior de anel», ou seja, a luz que torna possível o «eterno retorno do mútuo» e a emergência do humano – aquela categoria que o texto de Llansol desde sempre desloca do centro para a periferia e questiona, o não realizado, já fóssil e ainda quimera. A metanoite, na definição que dela dá em O Ensaio de Música, é o terreno onde se ilumina a transparência deste enigma:

«Há, no real, um lugar envolvente e sublime, a que chamo metanoite, que está para além da noite,

quando se caminha porque é o único caminho,

obscura,

mas, depois dela,

o corpo volta a envolver o querer, o paladar age com a certeza, a visão rejubila em metamorfose. 

[...]

E, como diria Alberto Caeiro, e Llansol confirma, não há mistério nenhum nisto. Há e não há, como sempre nos textos de Maria Gabriela Llansol. De todas as figuras de Metanoite, talvez só o cão Jade possa verdadeiramente entender essa língua.

21.3.25

 METANOITE

Regresso a uma ópera llansoliana

No próximo dia 5 de Abril, pelas 16 horas, teremos mais uma sessão pública do Espaço Llansol, em que apresentaremos fragmentos de uma ópera de 2007, construída a partir do conceito llansoliano de «Metanoite», com música do compositor João Madureira e libretto de João Barrento.

Faremos uma leitura encenada de partes dessa ópera, com os actores Diogo Dória, Anita Ribeiro e Eva Dória (e algumas falas e música em gravação), e João Barrento apresentará o conceito e situará a ópera no seu contexto.



 LLANSOL EM ITALIANO

O blog de poesia italiano Bottega Portosepolto acaba de publicar alguns fragmentos de Maria Gabriela Llansol, em tradução de Fabrizio Boscaglia, professor da Universidade Lusófona de Lisboa e co-organizador do nosso colóquio sobre a figura de Ibn 'Arabî em 2016.

Occaso: voci poetiche dal Portogallo (XXVI) – Maria Gabriela Llansol

Autore/a cura di:

Os textos traduzidos podem ler-se aqui:

https://bottegaportosepolto.it/2025/03/20/occaso-voci-poetiche-dal-portogallo-xxvi-maria-gabriela-llansol/

3.3.25

 A «MESTRA IGNORANTE»

ou: As dobras do não-saber


Da nossa sessão de sábado, 1 de Março, deixamos aqui o breve resumo da intervenção de João Barrento e algumas imagens das peças expostas. Foram ainda lidos fragmentos de Llansol sobre a figura da sua «Mestra ignorante», a Maria Adélia de Um Beijo Dado Mais Tarde, a partir do Caderno feito para esta sessão.



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A «Mestra ignorante»

ou: As dobras do não-saber

 

Este tema leva-nos para um novo espaço na Obra de Maria Gabriela Llansol, que ela própria designou de «a ordem figural do quotidiano», depois de tratarmos um outro que com ele tem afinidades, o da «Restante Vida» (vd. caderno «Os restos e a restante vida», de 2024). De facto, também as figuras do quotidiano, particularmente a partir de um livro como Um Beijo Dado Mais Tarde (1990) vêm todas dessa esfera de uma «Restante Vida», que neste caso não é a das margens da História (que as duas primeiras trilogias, ou Lisboaleipzig, exploram), mas a dos «restos actuantes», através da busca de outras formas de sageza e de vida, com figuras do dia a dia e para lá dos saberes instituídos. A figura que aqui designamos de «Mestra ignorante« (na senda do filósofo Jacques Rancière e do seu livro Le maître ignorant, de 1987), a da criada Maria Amélia das casas da avó paterna e dos pais (e que no livro assume os nomes de Maria Adélia ou Mélito), é colocada por Maria Gabriela Llansol no centro desse livro, que poderia ter sido um romance autobiográfico, mas é de facto o registo, em diferido, de uma «signografia» dos seus anos de formação desde a mais tenra infância, à sombra dessa figura da sua segunda (ou talvez primeira?) mãe, que frequentemente evoca nos seus cadernos de escrita desde os anos da Bélgica. É ela – juntamente com uma outra, a da «Mestra de leitura» representada pela estátua de Sant'Ana ensinando Myriam a ler – a responsável pela formação da figura (essa mais explicitamente autobiográfica, confundindo-se muitas vezes com a da narradora que diz «Eu») de Témia, «a rapariga que temia a impostura da língua» e do mundo, impostura mais claramente associada ao fausto da casa e seus objectos, à figura do Pai, detentora de um saber mais livresco, e à fachada da casa – Témia preferia habitar as traseiras, ou os espaços da sua «Mestra», a cozinha ou o quarto. De facto, o saber, o conhecimento que emana de Maria Adélia – que é «um pedaço de Natureza», como diria Goethe, e por isso a pura «não-impostura» – é neste aspecto diferente do da estátua de leitura (que configura «uma ideia»), e aproxima-se mais dos objectos que lhe servem muitas vezes de referência, com a sua «verdade móvel» (Maria Gabriela iria transformá-los,  na sua escrita,  em «objectos nómadas», susceptíveis de adquirir diferentes significações na sua relação com as diversas figuras e seus contextos).

A figura da «Mestra ignorante» é, assim, o centro de um «romance de formação» muito particular, em que nos é narrada, não tanto «a história de uma família ambiciosa e fechada, vinda da Beira para um andar mítico na cidade...», como é sugerido no segundo capítulo do livro, mas antes a história de uma origem. Não a biológica, mas uma outra, escolhida e reconhecida como determinante ao longo de toda uma vida e uma Obra: «Eu crio-me sentada à beira da minha origem...» (Um Beijo Dado Mais Tarde); «Eu nasci no decorrer da leitura silenciosa de um poema...» ou «Eu nasci na sequência de um ritmo» (Onde Vais, Drama-poesia?). Esta ideia é claramente de inspiração nietzschiana, em textos como Ecce Homo. Como se chega a ser o que se é, ou a segunda das Considerações intempestivas, onde essa noção de origem tem a ver com «aquela força e crescer a partir de si próprio, de transformar e assimilar coisas passadas e que nos são estranhas».

Os textos reunidos no caderno sobre «A Mestra ignorante» dão conta dos modos de ensinar e de saber dessa mestra singular que representa claramente uma alternativa às vias de formação e aos saberes tradicionais e convencionais, como também acontecerá nas Escolas que Llansol e Augusto Joaquim criam no exílio da Bélgica. Também aí, nas práticas pedagógicas à margem da escola oficial, se parte do princípio de que há outras vias para o conhecimento, não racional, mas intuitivo, não erudito ou científico, mas prático e simplesmente humano. Não se trata de rejeitar o saber e a aprendizagem, mas de dar o seu lugar a modos de conhecimento não conceptuais, abstractos ou sistemáticos. A intuição é aqui tão importante como o saber científico, é uma forma particular de sageza, mas não necessariamente de saber.

Na sua interacção com Témia, a Mestra mergulha assim nas suas próprias origens, num mundo elementar da intuição e do vivo, que se foi perdendo e que ela procura despertar na mente e no corpo da sua «menina», com frases lapidares, narrativas e olhares, jogos e brincadeiras – e que esta interioriza. Na grande entrevista «O espaço edénico», de 1995,  Maria Gabriela  lembra a  importância da  «Mestra ignorante» para encontrar «as imagens fundadoras da sua realidade», «a criança que nascera para a escrita». É ela que lhe ensina a procurar os «existentes-não-reais», realidades que estão aí, ainda que se não vejam, sem lições de sábios, mas descobrindo sinais: uma estátua que fala, uma jarra que é mais do que isso, o «corpo-barco» de Maria Adélia que a levava nessas viagens da imaginação, que se iriam revelar decisivas para a sua escrita (a Mestra torna-se assim, como lemos em Um Beijo Dado Mais Tarde, uma «futurível mãe»). 

Maria Gabriela Llansol aprendeu – melhor, apreendeu intuitivamente – a lição da «Mestra ignorante», e nunca mais abandonará essa «Nuvem do não-saber» (título de um tratado medieval anónimo sobre estas questões onde o «acto de ver» ou a «inteligência natural» têm lugar de destaque, como em Llansol), ideia que foi mais amplamente desenvolvida a partir do livro de Jacques Rancière e do seu «mestre ignorante», o revolucionário francês Joseph Jacotot, e regressando a fontes como o Sócrates da Apologia ou do Fédon, os mestres orientais do Tao (o caminho seguido a partir da origem escolhida), místicos como Mestre Eckhart ou Ibn 'Arabi, o Spinoza do Tratado da Reforma do Entendimento, ou também traçando paralelos com autores portugueses como Gonçalo M. Tavares (o do Atlas do Corpo e da Imaginação) e poetas como Fernando Echevarría ou Casimiro de Brito.



Também Maria Gabriela Llansol cultivou o «improvável» («Tudo o que se prova morre na incerteza»), que Augusto Joaquim definiu um dia como algo que «não tem prova, mas abre ao gosto», e apreendeu as lições da sua «Mestra ignorante», para nunca mais abandonar a sua nuvem de um saber-outro, sempre presente no céu da sua vida e da sua escrita, um saber sem forma, que assenta na consciência da mutação permanente das coisas.

Foi a lição da Mestra que lhe permitiu escrever um dia num dos seus cadernos:

«Há todo-um-saber na Enciclopédia [ou na inteligência artificial, diríamos hoje!]______ mas eu saberei infinitamente mais!» (Caderno 1.26, p. 161, em 31 de Julho de 1987). É o seu «sonho de nomadismo [por mundos-outros] e de contemplação do movimento nas coisas leves e simples», como lemos ainda nesse livro-chave para este nosso tema, Um Beijo Dado Mais Tarde.

J.B. 

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                            «... eu crio-me sentada à beira da minha origem...»

 



A HERANÇA DA «MESTRA»



27 de Abril de 1994

Recebo a herança da Maria Amélia – o seu amor por nós, em fotografias e numa carta.

(Caderno 1.40, p. 12)

16.2.25

 A «MESTRA IGNORANTE»

No próximo dia 1 de Março, pelas 16 horas, entraremos num novo ciclo da Obra (e vida) de Maria Gabriela Llansol, que ela própria designou de «a ordem figural do quotidiano». Sem abandonar a área da História (neste caso mais a pessoal) e a sua noção de «Restante Vida», a Maria Gabriela passa a certa altura a alimentar a sua busca de outras formas de sageza e de vida através de figuras ligadas à sua experiência quotidiana. No caso da «Mestra ignorante» trata-se da sua criada-mãe Maria Adélia, figura central do livro Um Beijo Dado Mais Tarde. João Barrento apresentará a Mestra de Témia/Gabi, e situará o tema dos mestres do não-saber numa longa tradição, que vem de Platão e dos mestres orientais e chega ao filósofo francês contemporâneo Jacques Rancière e a alguns poetas portugueses.

Teremos o habitual caderno, leremos alguns textos que documentam o tema am Llansol e mostraremos as peças da modesta herança que Maria Amélia/Adélia deixou à sua «menina» Maria Gabriela.

21.1.25

LLANSOL VIAJANTE:

O DIÁRIO DOS TRÊS CONTINENTES

No próximo dia 1 de Fevereiro, pelas 16 horas, retomamos as sessões públicas do Espaço Llansol, com a apresentação de um dos primeiros diários de Maria Gabriela Llansol, que resulta de um «Cruzeiro dos Três Continentes» feito em 1953 pelo Mediterrâneo, de Gibraltar a Constantinopla e Argel, passando por Palma de Maiorca, Itália e Grécia.

Os lugares visitados serão apresentados num video com os comentários de Llansol, provenientes do Diário, que estará disponível num dos nossos habituais Cadernos ilustrados.

9.12.24

 COMUNIDADES, FULGURAÇÕES E... «O ABSURDO»

Deixamos aqui o resumo da última sessão pública, centrada no livro que documenta o Colóquio evocativo dos sessenta anos do primeiro livro de Maria Gabriela Llansol, Os Pregos na Erva, organizado por um dos Centros da Faculdade de Letras de Lisboa, o CLEPUL. Com dois momentos distintos. No primeiro, a Profª Teresa Cadete apresentou o livro (Edições Colibri, 2024), comentando as múltiplas perspectivas de abordagem do Texto de Llansol que este volume documenta. Num segundo momento, e a propósito desse primeiro livro de contos, João Barrento revelou e comentou um texto ainda desconhecido do espólio, que constitui a versão original, em forma de «teatro radiofónico»,  de um dos contos de Os Pregos na Erva (versão lida no final da sessão por Diogo Dória, Anita Ribeiro e Eva Dória).


Da apresentação de Teresa Cadete destacamos:

==== Com prefácio de Patrícia Soares Martins e Golgona Anghel, este volume reúne as versões escritas de textos apresentados num colóquio realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e dedicado à obra de Maria Gabriela Llansol (doravante MG).
A mesma obra é assumida como enigma aberto. Daí que ao longo dos treze textos que compõem o livro (catorze com o prefácio), o leitor se depare com numerosas formulações que podem equivaler a interrogações e hipóteses, por assim dizer enquanto portas abertas ao sentido e aos sentidos, portas suscitadas por uma obra que inibe toda a escrita sobre ela, mas convida à leitura e à escrita com elaLogo na primeira página do prefácio, surge o que pode ser lido como dúvida acerca de uma alegada “paralisia de acção” (p. 7), manifestada na obra de MG desde o estranhamento causado no meio literário dos anos 1960 pelo livro de contos Os Pregos na Erva. Mas será “paralisia” a recusa de linearidade narrativa, recusa talvez como prenúncio de uma fragmentação que se veio depois acentuando ao longo da sua obra e que poderá (deverá? terá de?) ser lida como rejeição da invasividade de todos os paradigmas de progresso? E as questões não ficam por aqui: será a “sobreimpressão” llansoliana uma forma de “auto-referencialidade” (8), como afirmam as autoras, ou antes – e de certo modo em sentido inverso - de abertura a um leque de horizontes? Haverá uma “ausência de referências culturais” (9) ou estarão estas apenas encriptadas? Terá a leitura de “construir o sentido de imagem em imagem” (9)? Penso que pelo menos esta última questão poderá ser respondida afirmativamente sem hesitações. 
Em “’O poder absoluto  de estar só’. Paradoxos criativos nas comunidades llansolianas”, João Barrento realça o sentido político da oposição llansoliana entre os poderes do Livro e o poder dos Príncipes, o que permite entender as motivações subjacentes a comunidades sem hierarquia mas com coordenação (15). Essa “dialéctica de uma incompletude completa”, composta por figuras que bem conhecem e amorosamente cultivam o “mistério da solidão” (16), segue um traçar a que poderíamos chamar antropológico de uma cultura que rejeita o tribalismo comunitário, fazendo-o porventura numa dupla herança judaico-cristã e clássica promotora da individuação, nunca nomeada mas sempre presente. A História incumprida fantasmagoriza-se na escrita de MG e talvez possamos ler as suas formas de fulgorização, ucronia, inconforto (18), em constante vibração e metamorfose (19) como nostalgia de algo que parece não querer ver-se cumprido, apenas registado em escrita. Os textos de MG remetem-nos assim para uma herança de singularidade, culturalmente acentuada desde o dealbar da Idade Moderna e que talvez não tenha sido seguida como merece na acutilância crítica deixada entrever por aquela “comunidade visionária, discreta, itinerante” (21), com que MG desafia o leitor a seguir os seus fios. 
Com “Llansol: uma poética da experiência sensível”, Maria Etelvina Santos chama a atenção para os caminhos da escrita abertos pela experiência do exílio (24), como vias  de acesso a numerosas espécies. Podemos assim ler o desfazer da cápsula do antropocentrismo enquanto substituição do “sempre-drama”, preso nas alturas do olhar humano, por um difuso “drama-poesia”, enquanto “sistema conceptual metafórico” uma vez que cada conceito teria um “percurso nómada e transformável” (25). Tal des-hierarquização é radical mas não isenta de compromisso, nomeadamente no seu “contrato com o Vivo” (28), que retoma os caminhos de leitura numa “gramática do sensível” (29), presente também no minucioso trabalho com o arquivo de MG e na preservação de um espólio de mais de 30 000 páginas (29). 
Para Amândio Reis, Os Pregos na Erva teriam por assim dizer uma espécie de efeito de ricochete, na medida em que essa prosa poderia ter sido entendida como irreal no seu tempo, porém como “demasiado realista” (41) à luz da obra posterior. 
Em “Uma dança sem par”, Golgona Anghel explora uma escrita desregulada, tanto face ao que se lhe aproxima como ao que dela se dissocia, deixando entrever como o mundo é “matéria de puras passagens” (51). Tudo isto resultaria em formas de “coreografia de signos e sentidos” (53), por assim dizer em constante tensão (des)orbitante, devido à pluralidade de estratégias de organização e disposição da matéria textual por MG. 
Com efeito, MG incita a pensar para além dos registos do provável. É o que faz Francisco Fino em “Diálogos (Im)prováveis entre Maria Gabriela Llansol e Daniel Faria”, imaginando os fios através dos quais ambos os autores poderiam comunicar na vasta “geografia dos mundos” (72). Se para Daniel Faria “cada um é um lugar para os outros” (65), MG parece ecoar os apelos do poeta em Ardente Texto Joshua (p. 73), mesmo quando afirma que “a dor e o medo não vêm de estarmos sós mas de não haver texto”. 
Em “Tempo histórico e tempo pessoal: uma grandiosa condensação”, António Guerreiro resgata os escritores tidos por “imperdoáveis”. Estes, mantendo-se “estranhos ao contexto” (75), acolhem no tempo da vida o tempo do mundo, para logo dele se libertarem no espaço. Daí que os seus textos instituam “uma regra de simultaneidade” (76). Serão por isso os textos de MG isentos de historicidade? Para António Guerreiro, tal historicidade surge através de “constelações” (76), o que permite elevar a História a uma “potência ficcional” (76). Mas é a ficção que permite à História fulgorizar-se como soma de acontecimentos e actores, sem o espartilho da cronologia (77). Por esse motivo, os livros de MG são para A. Guerreiro “metonímias da História” (78) que vivem em permanente condição de expatriamento (78). Para os ler, talvez seja necessário seguir a indicação benjaminiana de “escovar a História a contrapêlo” (79) e criar aquilo a que Hans Blumenberg chamou de “campos originários” (Urfelder), para onde convergem experiência, nomeação, predicação e teoria (H. Blumenberg, Lebenszeit und Weltzeit, Frankfurt am Main: Suhrkamp 1986, p. 12). 
Esse tempo pessoal adquire uma vida inusitada, porque pouco conhecida, no texto “Enigma e saber – uma pedagogia do indeterminado” de Rita Anuar, que se debruça sobre a criação e a prática de uma escola em Lovaina, a partir de 1975 como Cooperativa de Produção e Ensino.  Nela, MG teve um papel pioneiro, com Augusto Joaquim. Aí onde “o jogo estava aberto a todas as possibilidades” (82), o saber era “vivido e experimentado, não sendo adquirido” (83). Nela predominavam actividades que para além de ler, escrever e contar ensinavam a habitar o mundo (83), uma vez que tão pouco se descuravam os afectos, esses “lugares mais humildes do que o poder” (84). Seria aliás num jogo de repetição, porém de modo livre e fora do tempo, que o impulso vital reencontraria o princípio do prazer para avançar (85). O exercício da cópia surge assim não como uma imposição enfadonha mas como uma forma de “abertura e conhecimento dinâmico”, deixando espaços em aberto (87). Desse modo, “a conversão de uma letra em imagem passa pelo artesanato implicado nas mãos do que escreve, e [pela] letra tornada artefacto, qualquer coisa única e irrepetível”, ou seja, “experimentada” (89) – com intersecções entre desenho e escrita (91) e com isso estimulando “sem restrição” o exercício da escrita e da leitura (92). Daí resultaria “um mapa experimentado a céu aberto, sem fronteiras” (92) e por aí se atingiria “um saber” contendo em si “uma centelha de ‘não imaginado’”, para assim conviver com o enigma (93). 
Com uma misteriosa relação especular com o texto anterior, as considerações de Maria Brás Ferreira concentram-se nos primórdios da escrita de MG: “Apontamentos para uma sementeira – das redacções escolares de Gabi”. A autora destaca três termos julgados fundamentais, de certo modo como grelha de leitura: o móbil agitador da vida psicológica, a devolução de emoções, ideias e factos e um trabalho constante (95). Daí resulta uma tendência de exteriorização, corporizada na questão “Quem me chama?” em lugar do solipsista “Quem sou?”, como lemos em Um Falcão no Punho (96). As redacções analisadas concentram-se assim sobre um “rosto de infância” aberto às metamorfoses entre figuras, e aberto também a momentos que deixam entrever a sua irreversibilidade, com a subsequente permeabilidade a todos os riscos, sendo porventura o risco maior a “impostura da língua” (104). A metamorfose prolonga assim todos os começos, inclusive o da escrita, que também evidencia a sua mudança de pele, com que “o texto se vai fazendo e refazendo” (105). 
Em “Comunidades llansolianas”, Simone Zanon Moschen recorda um estado que perdura, quase cinquenta anos depois de Finita: “Por enquanto estamos soltos mas ainda não livres. As instituições, as categorias, os poderes, o saber e a ignorância epidémicos continuam a mediatizar as relações entre as pessoas; não há qualquer sinal de criação de ecossistemas” (texto de 26.8.1975: Finita, Edições Rolim 1987, p. 52-3). Como já tínhamos visto anteriormente com João Barrento, o impulso da comunidade llansoliana implica não submissão, mas travessia voluntária, “do sucessivo ao simultâneo” (114). Por assim dizer, são comunidades que se tecem na textualidade, articulando na mesma “uma colecção de lugares dispostos num espaço textual que abdica do centro ou de hierarquias definidas” (119). Nelas pode o vivo pulsar “sua força sexual” (121). 
Sem pretender “explicar Llansol” (123), Silvina Rodrigues Lopes revela saber que tal se trataria de qualquer modo de uma missão impossível. Através do seu texto “O gesto pensativo”, entendemos a leitura como “um instante de um passeio em que se pensa com outros respondendo por si” (123). As suas reflexões são suscitadas por um livrinho a que nem sempre se dá atenção, O Raio Sobre o Lápis, com uma primeira edição em 1991 (no âmbito da Europália) e uma segunda de 2004 . Escreve Silvina Rodrigues Lopes, sempre interrogando-se: “Pode dizer-se que há um drama dito, redito e não dito, que é a impossibilidade de viver ingenuamente num mundo que se deseja cheio de deuses, mas cuja ausência Hölderlin viu ser sem remédio” (126). Trata-se por isso de uma confissão? Não sabemos ao certo. Continua Silvina Rodrigues Lopes: “Escrever em eco é escrever sobre (no sentido de vir depois e sobrepor-se) a ruína do gesto de escrever” (127). Assim como os desenhos de Julião Sarmento, que também podem ser lidos como fulgor ou como ofuscação (131), toda a leitura principia por ser “leitura do mundo” (134). A proposta de Silvina Rodriques Lopes vem acrescentar, à leitura e escrita com MG, possibilidades de leitura em torno da mesma. Assim, “aquilo que está em causa é o testemunho de uma ligação única aos outros habitantes do mundo e às coisas observadas, que, como tal, se não inclui em nenhuma generalidade, é isso que é feito na escrita de Llansol e faz com que cada livro seu seja não finito” (138). Uma incitação, portanto, à cultura de uma dúvida jubilosa. 
Na secção “Outros Contributos”, temos neste livro dois textos e um poema. 
Em “Llansol: uma poética do fulgor”, Elisabete Marques recorda a feliz expressão acerca da força da “escrita orgânica”, como a escrita do ”mundo vivo e vivificado”, como exercício de procura de fulguração, vibração e intensidade (145). Isto porque segundo esta autora, existe uma compreensão (partilhada por MG e seus legentes) de que “o mundo que nos rodeia é fundamentalmente heterogéneo, desconhecido, inapropriável” (146), porém abordável se for evocada a relação aristoteliana entre “alma, vitalidade e transmutação” (148). 
Fernando Guerreiro concentra-se na “Imagem de um texto”, em torno da capa de Ardente Texto Joshua (1998). Esse quadro, “A infância” de Jean-Baptiste Greuze, abre uma tensão entre imagem e textualidade, que porventura teria um ponto culminante na cena do “garoto do Porto” do texto de MG, garoto esse cuja marginalidade o torna indiferente às debilidades de uma classe capaz não só de satisfazer, mas igualmente de vomitar, os seus desejos materiais (Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d’Água 1998, pp 39-44). O texto de MG teria assim uma dimensão “transmorfa e meta-orgânica”, espalhando-se num “sentido-rizoma de ‘vegetalização’” (153), por aí dissolvente, a par da narrativa sequencial, também  de toda a visão antropocêntrica. 
Do poema de Regina Guimarães (“Haters Will hate dizem que ao que dizem”), incluído no final do volume, transcrevemos as linhas seguintes: “sabendo umas poucas migalhas do que tu sabias / umas quantas que guardavas para todos e não só / para ti / semeei-as no caminho para aqui / sempre que um certo dali para um incerto aqui / me desnudou de todos os lugares / excepto os de vontade e vocação” (158). 
Em conclusão: sendo este livro um lugar para habitar, um companheiro na leitura sempre inquieta de MG, é a ela que gostaria de dar a palavra final no seu último livro publicado em vida: “A escriturária anotou que os cantores de leitura eram também caçadores de leituras implacáveis” (Os Cantores de Leitura, Lisboa: Assírio & Alvim 2007, p. 270). =====


Regressamos aos anos de Os Pregos na Erva, que a habitual exposição sobre o tema documentou com diversas peças do espólio, a partir de algumas das observações de João Barrento, que enquadram os contos desse primeiro livro, em particular um deles – «A pedra que não caiu», o único publicado num jornal de referência, A Capital –, com a sua génese num esboço dramático de M. G. Llansol que poderia ser visto como um ensaio de escrita de «teatro do absurdo».



1. Depois da apresentação do livro, e para relembrar a motivação original do Colóquio de há dois anos, completaremos a sessão com uma evocação desse primeiro livro, bastante mais esquecido do que todos os que se seguiram ao «livro-fonte», como Lansol a certa altura designará O Livro das Comunidades 

Há, no livro que foi apresentado, duas intervenções que recuam explicitamente até esses anos de Os Pregos na Erva, e mesmo aos primórdios absolutos da escrita, então ainda mais convencionalmente «ficcional», de Maria Gabriela: o de Amândio Reis, que se ocupa especificamente de Os Pregos na Erva, que refere como «um livro que tem sido pouco lido e ainda menos discutido criticamente» (p. 34). Esta intervenção destaca a originalidade dos primeiros contos, do ponto de vista genológico (o que é ou não é um «conto»), da recepção crítica e da sua inserção num tempo histórico e social, que nos permite falar já de «comunidade» a propósito destes contos: a comunidade, ainda désoeuvrée (i. é, não estruturada), mas inavouable (inevitável e inconfessável) nesses tempos, que é a das figuras dominantes: pobres, sem voz, das margens, desajustadas do mundo. E há ainda, recuando até à «cena primitiva» da escrita da «Gabi», o texto de Maria Brás Ferreira sobre as primeiras redacções escolares, de que já falámos aqui com a autora, ao comentar esses primeiros ensaios de escrita narrativa. Algumas dessas primeiras redacções – que de facto já são «contos» – figuram num dos nossos últimos livros (M. G. Llansol, «O Timbre da Estrela». Contos juvenis, 1942-1957), onde reunimos redacções e contos anteriores a Os Pregos na Erva, em que já se anunciam muitos dos «pregos» espalhados pelos poderes sobre a «erva« do acto libertador da escrita e de possíveis vidas-outras.

Nos cadernos e textos dactiloscritos hoje expostos Llansol explicita bem o sentido  dos «Pregos na Erva», ao responder a perguntas de uma jornalista sobre esses primeiros contos. Ficam aqui dois desses excertos dos cadernos manuscritos:




2) Pensei que faria então sentido evocar Os Pregos na Erva propriamente ditos, dando a conhecer materiais do espólio directamente ligados a esse primeiro livro meio esquecido: referências elucidativas nos cadernos e dossiers de escrita, ecos da imprensa da época (que foram bastantes, dos mais significativos jornais de Lisboa à imprensa de província: Jornal do Fundãodo Ribatejo...), de várias antologias com contos desse livro, cá e no Brasil, de traduções de alguns desses primeiros contos, etc.). Tudo isto esteve presente na habitual exposição sobre o tema:



E ainda o revelador, e desconhecido, original de um dos contos, «A pedra que não caiu». Acontece que esse original não é um conto, mas uma breve peça de «teatro radiofónico», de 1959, que, para além de revelar o conhecimento, e a prática de difusão, de uma forma então ainda muito em voga (desde os começos, nos anos vinte alemães!), o teatro radiofónico, me pareceu também interessante dar a conhecer, como eco, em Llansol, de uma tendência teatral que nos anos 50 começava a dar os primeiros passos: o chamado «teatro do absurdo». E o conto depois incluído em Os Pregos na Erva tem, nesta versão dramática, precisamente o título «O Absurdo». Lembro-me de, no mesmo ano de 1959, ter assistido a uma representação da peça que deverá ter sido a entrada do teatro do absurdo em Portugal: À Espera de Godot, de Samuel Beckett, com uma encenação histórica de «Ribeirinho» (Francisco Lopes Ribeiro) no Teatro da Trindade (por acaso, ou não, um teatro frequentado por Maria Gabriela: vd. Diário de 1959, 23 de Dezembro).

Penso que será uma revelação para todos, este breve texto teatral da Maria Gabriela, que depois não voltou a este género. Sabemos, no entanto, pelos primeiros diários destes anos (1959-1961), que ela lia e via também muito teatro – Lorca, Tenesse Williams, Arthur Miller, Sartre, Eugene O'Neill... –, embora não mencione Beckett ou Ionesco (provavelmente porque não estavam ainda muito presentes cá).

 

3. Ouviremos, a finalizar, a leitura deste caso de «teatro radiofónico».

Antes da leitura situarei um pouco melhor, para vossa orientação, o assunto deste ensaio dramático.

A peça expõe o absurdo da existência, agora não só, como nos contos, centrado em personagens isoladas (ou de «classe», em tempos de chumbo), mas com um sentido mais universal, «de qualquer um», da condição humana em geral, como em Beckett ou Ionesco. A indicação cénica que abre o texto é clara sobre isto: a acção situa-se «Em qualquer parte onde possa acontecer, num mundo pelo menos temporalmente próximo». O sentido da peça é já existencial, não social (isto é claro sobretudo na personagem Inês).

Trata-se de duas irmãs (na peça Inês e Joana, no conto Inês e Cristina) que herdam a casa e a quinta dos pais, e se sentem perdidas nas suas vidas, tal como a terceira personagem, o prisioneiro de guerra que se evade do Campo próximo.

O título posterior do conto – «A pedra que não caiu» – fica claro já nesta primeira versão: as pedras não «caem» propriamente, quem cai – no absurdo da existência sem horizontes – somos nós: vd. o final, e a insistência na «casa vazia», que afinal está cheia, contradição absurda como a de um Godot que não virá, ou da mulher, Winnie, enterrada até ao pescoço na sua própria casa, na peça Happy Days / Ah, les beaux jours / Dias Felizes, de Beckett.

Ouvimos a certa altura uma das mulheres dizer: «Tanto existir inerte!» – isto, numa quinta activa, em vésperas da vindima, e numa casa cheia de tudo. O estar ali (ou no Campo de Prisioneiros – de que guerra, perguntamo-nos, em 1959?) é o puro não-sentido de existir – ou a incapacidade de encontrar um sentido, sempre numa situação de espera, da existência como prisão, com medo da «coleira de arame farpado» que é tanto a do Campo de Prisioneiros como a da simbólica «casa vazia».

Inês coloca a certa altura a questão de fundo: «Por que vivemos nós nesta casa [aquela e a do mundo?], aqui e neste tempo?». 

Um tempo que é um eterno presente em que nada de novo acontece, como sugere. Mais tarde, haverá sempre outros ecos disto em M. G. Llansol: «Nada ainda modificou o mundo», «Concebe um mundo humano que aqui viva, nestas paragens onde não há raízes», etc. Mas também o propósito de superar essa condição do absurdo, porque «Existe o mundo e a Restante Vida». Mas para estas personagens não existe (ainda) «restante vida»...

27.11.24

 CAUSA AMANTE NO BRASIL


Acaba de sair na editora 7Letras, do Rio de Janeiro, a edição brasileira de Causa Amante, acompanhada do posfácio de Augusto Joaquim à 2ª edição portuguesa e de um texto de Maria Alzira Seixo publicado na revista Colóquio-Letras após a saída da primeira edição.

24.11.24

NOS 93 ANOS DE MARIA GABRIELA LLANSOL


 

17.11.24

LLANSOL : COMUNIDADES E FULGURAÇÕES

No próximo dia 7 de Dezembro, pelas 16 horas, faremos no Espaço Llansol a apresentação do livro Comunidades e Fulgurações na Obra de Maria Gabriela Llansol (Edições Colibri, organização de Patrícia Soares Martins e Golgona Anghel), que reune as intervenções do Colóquio que teve lugar na Faculdade de Letras de Lisboa em Novembro de 2022, a pretexto dos sessenta anos do primeiro livro de Llansol, Os Pregos na Erva. Os contributos são muito variados, como se pode ver pelo Índice reproduzido a seguir.

A Profª Teresa Cadete, escritora e professora jubilada da Faculdade de Letras, apresenta o livro, e aproveitamos a oportunidade para evocar ainda Os Pregos na Erva, um livro fundador mas menos presente quando se fala da Autora, com uma exposição de materiais do espólio relacionados com a sua primeira edição em 1962: cadernos de escrita, jornais, entrevistas, edições e traduções, fotografias da época.

A exposição e o livro serão enquadrados e comentados por João Barrento, e ouviremos ainda ler um breve conto – «A pedra que não caiu» – que tem a sua primeira versão num esboço teatral inédito de Maria Gabriela Llansol intitulado O Absurdo, de 1959.

O novo livro das Edições Colibri estará à venda neste dia no Espaço Llansol.