Livros do Escritor

Livros do Escritor

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Já esqueceste o Canto-da-Sereia?


 

Tudo começa com uma demora nos olhares, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por dizer, ele não prescindia, a meio da tarde, de um café, esta necessidade agudizou-se há uns meses, descia com um colega, atravessavam a rua e entravam no café em frente, nessa dezena de minutos nunca falavam de trabalho, como se um acordo tácito, frases de circunstância e pouco mais, eram apenas colegas ávidos de sair um pouco daquele asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, ecos, por todo o lado, de ininterruptos telefones, pouco conheciam do outro, mas o suficiente que permitisse atravessar uma rua para um café, um casado há uma década, com duas filhas, desposou a mulher para esquecer uma paixão, a mulher desposou-o para deixar de ser a divorciada, era uns anitos mais velha, em verdade, uniram-se para esquecer paixões, um erro grosseiro, as paixões nunca se esquecem, apenas podemos adormecê-las, ela, muito cedo, entregou-se ao calor de tal sentir, enfrentou a família e, perante a autoridade dos homens, colocou uma aliança no anelar-esquerdo, não ousou ascender à autoridade divina, tudo se esfumou em poucos meses, regressou a casa paterna e “Quantas vezes te avisámos, minha filha?” repetia-se, pelo menos, três dezenas de vezes por dia, equitativamente dividido entre pai e mãe, de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, olheiras, as maçãs do rosto descaídas, uma magreza e flacidez simultâneas, das piores combinações possíveis, é sempre duro compreender que só nos apaixonamos por ideias, o sujeito que lhe colocou uma aliança no anelar-esquerdo, sob a autoridade dos homens, contra a vontade da família, não regressou, durante uma semana, ao apartamento, de uma assoalhada, alugado, as irmãs contaram-lhe que fôra visto na companhia, em múltiplas ocasiões, de senhoras com generosos decotes, sempre de copo na mão, a entrar e sair de bares madrugada adentro, do trabalho ligaram, apenas por uma vez, a perguntar o porquê da sua ausência, elucidativo, ela não soube o que responder, mas intuiu, pelo tom, que tal chamada não se repetiria, um facto, pelo sétimo dia, no decorrer de uma manhã de Domingo, após ligar a uma das irmãs, com a voz entrecortada, a pedir que a viessem buscar, ela fez as malas, desceu, e aguardou no passeio, nesse entretanto ainda olhou para o seu carro ali estacionado perto, não conseguia reunir forças e guiar para longe dali, teriam de a levar, no dia seguinte rescindiu o contrato de arrendamento, com o suporte da família entrou com a papelada para, sob a autoridade dos homens, retirar a aliança do anelar-esquerdo, de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, os pais respiraram melhor apesar de se sentirem nodoados com a aliança tão precocemente colocada no anelar-esquerdo da filha mais velha para, pouco depois, ser tão abruptamente retirada, a paixão dele mergulhou-o na mais densa das noites, chegou a ter de se socorrer de quem norteie a razão alheia, uma vez que não há medicina para o coração da alma, e como esse lhe sangrava, olharam-se como um porto.de-abrigo, eram dois seres dilacerados pelas paixões, estavam exangues, apenas procuravam a quietude de um abrigo após tão dolorosa intempérie, do colega que o acompanhava nas fugas de café pouco sabemos, apenas que vivia maritalmente com uma enfermeira, quando se questionava a razão de não haver alianças, tudo servia, até o anacronismo da instituição casamento (a quem interessa este facto? Pois, aos do costume…), tudo começa com uma demora nos olhares, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por dizer, assim foi nessa tarde quando abandonaram o café, ele ficou perdido no olhar esverdeado, atencioso e doce da nova empregada, aprendera, há muito, que nunca se partilha um destino almejado, assim que saíram, após os habituais dez minutos onde nunca falavam de trabalho, como se um acordo tácito, frases de circunstância e pouco mais, sentiu um imenso desejo de regressar, até se estranhou, não sentia um calor assim desde, pois, a intempérie que o dilacerou, antes de atravessar a rua, olhou para trás, ela recolhia as chávenas da mesa onde se sentaram, assim que se ergueu, os seus olhares, pela segunda vez nessa tarde, demoraram-se,  tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por dizer, pelo largo vidro da montra, ficou a contemplá-la, de bandeja na mão, imóvel, num desamparo que lhe fendia o coração, nesse final de tarde, ao entrar em casa, só a imagem dela, de bandeja na mão, imóvel, num desamparo que lhe fendia ainda mais o coração, ausente para a sua circunstância familiar, respondia com monossílabos e um sorriso, apenas se queria centrar naquela imagem de bandeja na mão, imóvel, nessa noite, já deitado, olhou a mulher, a seu lado, com uma revista de vulgaridades, olhou-a com discrição e reflectiu na sua relação íntima, entre lençóis nunca houve paixão, apenas sexo, foi a sua conclusão, se há uma década ela de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, com dois filhos, descuidou-se bastante, nesse aspecto, ele não falhava a sua corrida de fim-de-semana, a verdade é que já não se sentia muito atraído, e foi penosa a sua conclusão: entre lençóis nunca houve paixão, apenas sexo; ela há muito aí aportara, daí não se coibir dos seus docinhos ou salgadinhos ao longo do dia, quanto a corridas, já lhe bastavam as lides domésticas e as diárias para o trabalho, nesta fase, quando o olhava, a seu lado, deitado, concluíra que o coração de uma mulher só conhece uma Primavera, e a sua terminou numa manhã de Domingo, com um indesejado regresso à casa paterna, no dia seguinte, teria de regressar sozinho ao café, para compreender se, de facto, aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, era para si, para o efeito, teria de sair, discretamente, noutra hora, assim o fez, sem nada dizer, escapuliu-se, atravessou a rua quase em corrida, e entrou, àquela hora só duas ou três mesas ocupadas, e uns quantos vultos ao balcão, ela estava de costas a tirar um café enquanto a outra empregada de volta das mesas, não lhe restou alternativa, sentou-se ao balcão e, enquanto ela de costas, a tirar um café, apreciou-lhe alonga  trança, num castanho-claro, quase louro, zelosamente entrelaçada, as formas que tanto agradam a um olhar masculino, no entanto, ele somente aguardava por aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, onde se perdera, assim que ela se virou, em equilíbrio, com a chávena de café fumegante na mão, os seus olhares reencontraram-se, nesse instante, ele soube-se, uma vez mais, perdido…

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Filadélfia

 


Hoje resolvi levantar a memória de uma figura que, num certo contexto, ficou conhecida pelo supracitado título (homónimo de um aclamado filme), nesta altura, estar-se-á o leitor a questionar: Porquê Filadélfia? Bom, já lá iremos… A primeira característica a ressaltar era a sua irritante voz, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, para agudizar o efeito, tinha o condão de muito pouco se calar, era efectivamente simpático, nada a obstar, no entanto, aquele timbre, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, assassinava a paciência de qualquer um, falava com todos, diálogos de superfície, pouco mais, embora, por vezes, tentasse dar um passito para além do circunstancial, para o efeito, elegeu a música como seu baluarte, sobretudo uma área recente – a denominada “música alternativa” – ou lá o que isso seja, creio, com sinceridade, que, por estes dias, haja nichos para tudo, de volta à personagem em apreço, há que sublinhar o seu divórcio com o trabalho, e foi litigioso, sublinhe-se, nunca o ouvi proferir tal vocábulo, ainda hoje não sei se foi logo à nascença, é uma possibilidade, quando alguém, por acaso, falava de um episódio no seu emprego, ficava em espanto, emudecido, como se, de repente, falasse num idioma estranho proveniente de longínquas paragens, o seu quotidiano cingia-se a casa, à frequência daquele contexto, e aguardar pelas sextas-feiras onde, na companhia de outro melómano, rumava para essas lojas recônditas, sobretudo na capital, onde se vendiam álbuns de “música alternativa,” era vê-lo chegar, uma dezena de minutos antes da hora combinada, para povoar todo o espaço em redor com aquele timbre, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, assassinava a paciência de qualquer um, como gostava de discorrer sobre álbuns e cantores incógnitos para a maioria, muitas vezes, no regresso, lá vinha com alguns debaixo do braço, com ar de júbilo, pois, incógnitos para a maioria, em algum momento teria de se sentir um iluminado, embora luz não lhe faltasse, pelo contrário, essa era uma das suas mais notáveis características, em verdade, independentemente da hora ou da circunstância, parecia sempre saído de uma intensa sessão de sauna, as luzes em volta reflectiam-se-lhe no rosto, o cabelo similar a um anúncio de gel, talvez fosse um homem de calores, é possível, a seu lado, omnipresente, a figura materna, dessas que acha ser o farol do mundo, apesar de nem a pirilampo chegar, não só pela altura como pela consistência das frases emitidas, o semblante registava a aspereza de uma inextinguível dívida por cobrar do mundo, as coisas são, quase sempre, muito simples, a partir de certa idade, as mulheres que registam um semblante áspero de uma inextinguível dívida por cobrar do mundo são as divorciadas e mal resolvidas, denotava-se-lhe pelo penteado que a sua inspiração estava além-Atlântico, numa jornalista cuja permanente companhia era um papagaio-verde, de facto o cabelo transparecia uma aura falante e alada, confesso que, não raras vezes, dei por mim a olhar para os seus ombritos, na expectativa de por ali vislumbrar um papagaio-verde, como era estranho conciliar estas duas personagens, à superfície tão distintas, mas com tão singulares laços como: mãe e filho: ela com um semblante áspero, de uma inextinguível dívida por cobrar do mundo, a achar-se um farol da razão, apesar de nem a pirilampo chegar, ele parecia sempre saído de uma intensa sessão de sauna, as luzes em volta reflectiam-se-lhe no rosto, o cabelo  similar a um anúncio de gel, com a sua irritante voz, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, para agudizar o efeito, tinha o condão de muito pouco se calar, soube-se mais tarde, em certos contextos tudo acaba por emergir, que, além de ter uma companheira, já tinha um descendente, cioso da sua privacidade, compreensível, já brilhava em demasia, certa tarde, de uma sexta-feira, foi visto com a sua companheira, antes de embarcar na odisseia por lojas recônditas, sobretudo da capital, onde se vendiam álbuns de “música alternativa,” houve quem jurasse que a sua companheira parecia a última contratação de um conhecido clube de futebol, enfim, pura maledicência, só podia ser, talvez alguém que se sentisse ofuscado com tanto brilho e almejasse ter um cabelo saído de um anúncio-televisivo de gel.


domingo, 6 de abril de 2025

Consolação

 


Antes da chave na porta, já lhe ouvira os saltos no patamar, a porta a abrir e fechar-se, o elevador, num lamento mecânico, a caminho de outras altitudes, a carteira pousada à pressa, o prolongado gemido da porta-da-despensa, por fim, uma breve luta para abrir algo, encosta-se à bancada e suspira, de onde estava, no sofá, frente à televisão, visualizava, no pensar, cada passo da filha, ia para dois meses desta cadência, acabava, minutos depois, por lhe aparecer, cumprimentos, frases de circunstância, tudo muito pela superfície, bastavam os olhares para se compreender a desolação pressentida, filhos e pais, a partir de certa idade, simplesmente não devem coabitar, antagónico à ordem natural do existir, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o pai ainda presente, em verdade, a frase era-lhe dirigida, entre elas sempre vincadas diferenças, a vida e o seu enlear levaram-na a capitular quantos dos seus valores? Contra os desígnios maternos, juntou-se a um sujeito mais velho, divorciado, pai de dois filhos, a mãe incessantemente lhe repetia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), ela prontamente rebatia com conceitos oníricos de Felicidade e Realização, a mãe respondia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), passados oito meses, anuncia aos pais a sua gravidez, vendia viagens na agência do sujeito, aí se conheceram, embora detestasse fazer as malas, aqui se vislumbrava uma primeira fissura que não passou despercebida ao atento olhar materno, ele sempre prontinho para o próximo destino, assim que soube da gravidez aparentou entusiasmo, a paternidade não lhe era estranha, não é possível, a quem está de fora, percepcionar a força e magia dos invisíveis laços que levam um homem e uma mulher a caminhar na mesma direcção, oito semanas depois de anunciar aos pais a sua gravidez, certo final de tarde, a olhar os sapatos, num murmúrio, comunica-lhes que não vingou, o médico, por precaução, desaconselhou novas tentativas, o problema era dela, estrutural, o pai abraçou-a prontamente, a mãe questionava a razão de a filha ali estar sozinha a dar-lhes tal notícia, pensou em questioná-la onde estava o sujeito, a emoção da cena fê-la silenciar-se, há muito não via pai e filha tão irmanados na dor, sabia do seu sonho de ser avô, agora, nesse final de tarde, esfumado, não conseguiu levantar-se e abraçar a filha, o marido já o fizera por si, permaneceu sentada e emitiu frases de ocasião, o facto de a filha ali estar só, a dar-lhes tal notícia, apenas lhe causava repulsa, em verdade, nem conseguia fitá-la,  não era também seu objectivo ser avó, tal como mãe, daí só ter aceitado o facto por uma vez, tudo fez para que não se repetisse – quando lhe puseram aquela pequena criatura nos braços, enrugada, ruborescida, que se contorcia como um idoso, em busca de uma posição que lhe pacificasse ossos e articulações, olhou-a como uma estranha, ainda procurou, em si, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada, por si ecoaram frases ocas repetida e exaustivamente propaladas (“É um momento único! Inexplicável! Tornamo-nos logo outras… A vida muda naquele segundo… Deixamos de importar, só o bebé… Até o nosso respirar muda… Nada de iguala àquele instante em que nos depositam o bebé nos braços… Vale por uma vida! Não se encontram palavras à altura de tal sentir…”), ela ainda procurou, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada –, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, foi dos momentos de maior solidão da sua existência, talvez o maior, naquela madrugada, com a bebé nos braços, olhá-la e nem vislumbres de um sentir cantado desde tempos imemoriais, um sentir que jamais ousou comunicar, pois, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, extenuada, dorida, sapiente de que a dor maior jamais poderia verbalizar, levaria dali uma estranha, nos braços, para casa, uma noite de hospital é a eternidade, quando a luz se apagou, ela só se recorda de virar costas, ao berço plástico ao lado da cama, e rezar pela misericórdia de um sono que a levasse para bem longe dali, apesar de ela jamais verbalizar o seu sentir, com o tempo, a filha bebeu-o, o olhar na direcção da mãe apenas reflectiu esse fel, quando o pai se aproximava, o rosto suavizava-se e o olhar em luz, assim decorreram os anos entre eles, vendo bem as coisas, sob a luz do tempo, a verdade é que o pai não insistiu muito em dialogar por outro filho, é possível que, nos primeiros meses, em múltiplas ocasiões, a visse de costas voltadas para o berço a seu lado, há coisas, na vida, que sabemos, no entanto, incompreensivelmente não queremos acreditar, por conseguinte, atiramos para uma indistinta zona de nós, algures entre indizível e o esquecimento, para continuarmos a respirar com quem vive sob o mesmo tecto, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o olhar da mãe gritava-lhe essa frase, sentia-o de onde estava, encostada ao balcão da cozinha, de olhos fechados, a saborear, com lentidão, cada quadrado do chocolate que há pouco abrira, precisava daquele doce para equilibrar o tanto fel que a habitava.


 

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Que ninguém diga que está bem

 


Aquela frase (Veja lá se cuida de si, homem), hoje, diante de mim, de certa forma, como se tivesse regressado, com um propósito, talvez para me relembrar que, pois, talvez por aí, assim que a ouvi, virei-me, com a esperança de um rosto, embora soubesse que o destinatário do - Veja lá se cuida de si, homem – fosse outro… Não se pode dizer que não gostasse da minha vida, nada disso, casada, dois filhos, ainda por cima um casalinho, ele mais velho três anos, uma casa agradável, nada de luxos, é verdade, mas tinha todas as comodidades, a única coisa que me incomodava um pouco, não assim tão pouco, já que estamos com esta mania das verdades, era aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, trabalhava como engenheiro numa construtora, era o primeiro a sair de casa, já de cigarro na boca, e parecia-me, não sei se era só uma vaga impressão, que falava cada vez menos, ia para a estação a pé, com o tempo parecia que se divorciara do carro, que para ali ficava a remoer desamparos e costas voltadas, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) também caminhava pelas engenharias, ela ainda indecisa no términus do liceu, eu apanhava diariamente boleia de um casal vizinho para a repartição pública onde trabalhava há quase década e meia, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, e como havia quotidianamente um recorrente tema de conversa, mas é curioso, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, regressava de comboio, mas nunca por ali encontrei um cigarro a acentuar apatias, depois de fechar a porta de casa, às vezes, ainda a mulher-a-dias por ali, aproveitava para lhe dar indicações para o dia seguinte, bem sei que, entre os vizinhos, nesta altura, houvesse invejas pelo facto de serem outras mãos a cuidar da limpeza do que é nosso, mas não me ralava nada, chegada do trabalho, eu queria era sentar-me na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, era disso que eu mais gostava, dava por mim, não raras vezes, durante o dia, a suspirar por este momento, na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, tinha a maior parte das vezes como companhia a vizinha que me dava boleia de manhã, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, percebia-se-lhe uma latente fuga da ruralidade, nos gestos, palavras, vestuário, vaticinava-lhe sucesso, no entanto, ainda não terminara, gostava de conversar com ela, não obstante um par de anos mais velha, ouvia-me com um fascínio reverencial, pois, ainda a fuga da ruralidade, o facto de o marido ser vendedor de artigos de construção, só lhe atrasava os passos da fuga, sempre que se referia ao meu era o senhor engenheiro, ria-me interiormente, aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, confesso que gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, há tanto que ninguém segue assim as minhas palavras, o senhor engenheiro numa apatia crescente, consagrado ao fumo daquele infindável cigarro que tanto me irrita, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) às voltas com a calculadora e com a namorada, a miúda (uma filha também nunca cresce para os pais, ou talvez o faça demasiado depressa) sempre a falar da próxima noite de Sábado, com um sublimado pedido de saída, ou de penteados e mexericos com as amigas, não me lembro da última vez em que, algum deles, se sentou diante de mim, na esplanada do café em frente, por mais que um minuto, confesso que me dava imenso jeito a boleia, todos os dias, de manhã, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, permitia-me sair uma hora depois de casa, e poupava-me à infindável sucessão de encontrões das viagens matinais de comboio, para retribuir com algo, sentia-me na obrigação de lhe ensinar a melhor direcção na sua fuga da ruralidade, e como eu gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, às minhas palavras, ela só tinha um filho, teria aproximadamente a idade do nosso, a certa altura, falou-se no bairro das companhias, ela jamais comentou alguma coisa, nem nas boleias matinais, nem nos cafés vespertinos, também nunca lhes denotei algo de diferente, nem nos gestos, nem nas vozes, ao contrário do senhor engenheiro, o marido dela coloria as palavras de emoção e graça, quantas vezes, nas boleias matinais, não dei por mim em gargalhadas, tão distinto da austeridade nocturna da nossa casa, apesar de termos uma das primeiras televisões a cores do bairro, ele com o infindável cigarro e a galopante apatia, certa manhã, a boleia atrasou-se, parece que, durante a noite, a polícia os visitou, confirmou-se que o filho com muito más companhias, o bairro expressou a sua desaprovação, felizmente, o meu menino quase a suceder ao pai como senhor engenheiro, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, consegui uma repartição mais próxima de casa, já não precisei de mais boleias, entretanto, abriu um café com uma esplanada bem mais solarenga, optei por essa, e, em verdade, parecia mal que a mulher do senhor engenheiro apanhasse boleia daquele casal com um filho que andava com tão más companhias, depois dessa visita nocturna das autoridades, talvez por vergonha, soube que mudaram de casa, perdi-lhes o rasto, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, foi mais ou menos quando pus os papéis para a reforma, que um amigo nosso se sai com esta Veja lá se cuida de si, homem, a partir daqui, tudo se traduziu numa queda, a magreza, uma crescente palidez, médico, exames, outros médicos, uma frase que tanto me cansou (Tem de largar o cigarro já!), mais exames, mais médicos, a magreza continuava a ganhar terreno, tal como a palidez, o hospital, além dos filhos, a visitá-lo, somente eu e o meu irmão, nem um colega de trabalho, nem um vizinho, nas horas de visita, o omnipresente ponteiro do relógio de parede a relembrar a nossa insuficiência, como se cada segundo fosse um passo que o distanciasse de nós, por vezes, ele na súplica por um cigarro, nesses momentos, quem me dera saber o que fazer, logo eu, que fui ouvida com uma atenção desmedida e um fascínio reverencial, certa tarde, já sabíamos que ele perdera a corrida para o mal que o habitava, era uma questão de dias, informara-nos o médico, numa  indiferença de talhante, saberia ele que o meu marido era um senhor engenheiro? Deambulava eu, pelos corredores do hospital, surda para o que me rodeava, a arrastar uma dor que me puxava para a terra, quando a vi, ao fundo, veio ao meu encontro, enquanto se aproximava, não consegui reprimir um sorriso, afinal, nesta vida, há corridas que se vencem…

terça-feira, 1 de abril de 2025

 


... aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir...

in É isto...

domingo, 30 de março de 2025

É isto…


 

“Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, “Mas para quê? Tu nem gostaste daquilo…,” “Não interessa! Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho… Isso é o mais importante! Lembra-te de que, quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!,” “Já sabes que não sou bom a inventar… E tu gostaste ainda menos do que eu!”, “E o que interessa? Nada! Se souberem disso, até rejubilam, acredita… Ainda estou para descobrir o porquê daquele maldito tempo! Para mim foi, sem dúvida, inveja! E de alguma daquelas nojentas das minhas colegas… Só pode! Nunca vi! Dois dias com um sol radioso, os outros cinco piores que Dezembro….,” “Começaste logo, mal chegaste, a publicar fotos e fotos…,” “Vens com essa conversa, porquê? Tu nem acreditas nessas coisas de… És sempre o primeiro a rebater essas teorias.,” “Verdade, no entanto, foi tudo muito estranho, mau demais… Lembras-te quando chegámos? O mar num verde-esmeralda, quente, a praia quase deserta, o mundo parecia ceder aos nossos desejos…,” “Claro que me lembro! A foto que tiraste do avião… Acredita, se não fossem as fotos, duvidaria de ter visto por ali o sol! Em verdade, duvidaria de tudo! Já tive pesadelos com aquilo, acreditas? A chuva copiosa e nós enfiados no quarto! Já nem falo da fortuna que gastámos para, no fim de contas, ali experienciar o Inferno!,” “E nem íamos com expectativas assim tão altas.,” “Mesmo, foi o contexto da altura a ditar aquele destino. No primeiro dia, chegámos, largámos as malas e corremos logo para a praia…,” “Eu todo orgulhoso pela minha escolha – apesar de, a montante, estar o contexto da altura… Depois veio o suplício!,” um casal, em lua-de-mel, durante cinco dias não sair do quarto é salutar, bem diferente é um casal, com mais de duas décadas de casamento, ser quase confinado a esse espaço, por chover copiosamente num destino somente de praia, nada mais havia para ver, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, um ano a suspirar por sol, mar e costas voltadas para o relógio, e, chegada essa circunstância, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, no resto do tempo deambularam pelo hotel, certa tarde foram até à piscina-interna, embora, mal entraram no espaço, fossem invadidos pelo cheiro a cloro, a humidade tão típica desse cenário relembrou-lhes Inverno, era nessa altura que ansiavam por piscinas-internas,  jamais em pleno Verão, numa ilha onde nada mais havia para ver, um destino somente de praia, instalou-se-lhes um dilacerante paradoxo, como se a vida reunisse toda a ironia possível e lhes despejasse em cima, ali estavam eles, num rectângulo cheio de água, sob uma luz-artificial, a olhar, pelas rasgadas janelas, o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, não conseguiram ali estar mais de trinta minutos, pois, não era Inverno, e se a vida agora lhes despejava em cima toda a ironia possível, antes já lhes despejara demasiado fel, entre um casal não é costume haver muitos gestos simultâneos, o virar costas às rasgadas janelas voltadas para o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, sair das águas artificialmente tépidas, os passos até às espreguiçadeiras, pegar nos roupões para se cobrirem e sair, constituiu uma dessas singularidades, nada disseram, mas uma certeza nascia-lhes, se sobrevivessem àquela provação, nada os poderia apartar, de certa forma as grandes tragédias do existir solidificam as relações, são exactamente as pequenas adversidades a esboroar a outrora mais bela união, e, no horizonte da existência, dois dias de sol e cinco de chuva, numas férias, são, sem dúvida, uma singela contrariedade, se lhes perguntassem, hoje, como suportaram aqueles cinco dias, não teriam uma resposta, divagariam, como é habitual quando não se quer revisitar o ontem, a verdade é que foi a esperança – de sol na manhã seguinte – a mantê-los unidos e expectantes, se todos os casais, após uma singela contrariedade, aprendessem este facto, não haveria tantos filhos a olhar estranhos na hora das refeições, de forma imperceptível, ele intuiu o seu desejo de materializar sol na manhã seguinte ao proclamar “Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, sim, ela estava certa, aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir, poucos conseguem observar a ânsia de sol, na manhã seguinte, de cada alma, “Tens toda a razão: como há pouco disseste: Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho (…) quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!