terça-feira, março 07, 2017

O tempo de um gelado no McDonalds

Sentia-me gulosa e fui ao McDonalds de Almada comer um McFlurry de Oreo. O gelado ia-me sabendo bem, enquanto meditava nas calorias e observava à volta, como é costume.
À minha frente, na zona da sombra, afastados duas filas de mesas, um grupo de casais de velhotes convivia em separado. Numa mesa, três senhoras nos seus sessentas, setentas, mostravam fotografias e comentavam-nas. Na mesa imediatamente atrás, três homens pela mesma idade, falavam de locais, estradas e viagens. Percebi que era um grupo de casais costumeiro em excursões, que provavelmente se terão conhecido nesse contexto.
Havia entre eles uma separação enorme, como se depois não saíssem dali, e não fossem para casa dormir juntos na mesma cama. O que eu via, ao contemplá-los, era o enorme muro de interesses que separa homens e mulheres, desde sempre. Aos homens não cabe ver e comentar comentar fotos?! As mulheres não serão capazes de participar em conversas sobre viagens?!
Revivi outros momentos do meu passado: era habitual, no final dos almoços e jantares, e nos piqueniques, haver um momento em que homens e mulheres formavam grupos distintos entre os quais eu circulava livremente, escutando.
As mulheres falavam da vida, de casos da vida. Os homens, de trabalho, de negócios. Ambos contavam histórias do passados: situações insólitas, misteriosas. Histórias de espíritos e de casas assombradas ou de gente enganada, ou maluca. As conversas dos adultos eram ricas em informação sobre mundo, dos dois lados; não podia, portanto, compreender a separação.
Agora, no MacDonalds, com o McFlurry quase no fim, pensava que talvez fosse uma questão de honra masculina. A separação demonstraria respeito pelas mulheres. Não sobrariam dúvidas, para a comunidade, que os homens juntos nas suas conversas não estariam a cobiçar a mulher alheia. E mesmo sendo estes já velhos, a tradição cumpria-se no espaço uniforme e incaracterístico do McDonalds.
Envolvida nestes pensamentos, os três homens levantaram-se, ajeitaram a gola da camisa, passaram pela mesa das mulheres não lhes dedicando qualquer atenção, nem uma palavra, e saíram porta fora. Estas não repararam nos homens que saíam. Continuaram envolvidas nas fotos.
Os dois grupos não estavam relacionados. Não eram casais. Nada tinham nada a ver uns com os outros.

Roupa em 2ª mão

Foto: Yuki Onodera


Tenho muita roupa que me está larga ou apertada ou que já não uso. Debato-me com duas hipóteses, doá-la à Humana, fundação que financia projectos de desenvolvimento em África, através da venda de peças em 2ª mão, ou tentar negociá-la numa loja em Lisboa, ainda não sei qual. Aceito indicações. Talvez opte por uma solução mista, que consistirá em doar uma parte e vender outra.
Estou a escrever isto porque enquanto seleccionava as peças de que quero desfazer-me, deparei-me com t-shirts dos anos 80, blusas e túnicas que a minha mãe me fez quando ainda podia. Já não as uso, mas não sou capaz de me ver livre delas. Estive quase, mas ao olhar para os costurados da minha mãe, desisti. Seria como deitar fora uma parte da minha vida, e mesmo considerando que seja bom isso de se deitar fora partes inteiras da vida, estas não quero. Tenho-lhes demasiado afecto. Estou presa por vício a essa juventude, a esse amor dedicado. Há uma t-shirt de riscas vermelhas que nem me fica particularmente bem, mas que usei muito; vivi muitos dias com ela no corpo, e não consigo...
Há trapos que vou ter de carregar sempre comigo, e que alguém, um dia, deitará fora por mim ou venderá a bom preço para uma loja vintage.

Morrer é uma festa



Não há assuntos inabordáveis, mas há assuntos tramados de abordar. Este é um deles.
Se a minha mãe soubesse que eu escrevia sobre estes temas, não me deixava. Felizmente, não sabe.

Imaginemos que uma jovem ex-concorrente do Big Brother de há meia dúzia de anos, agora com 27 anos, mãe de dois filhos, vítima de cancro irremediável e em fase terminal, decide deixar-se filmar e fotografar, e à família, em situações íntimas do quotidano, incluindo a própria morte, como forma de ganhar dinheiro para garantir o futuro das crianças? Imaginem que transforma os seus últimos meses de vida numa extensão do Big Brother com a plausível desculpa do dinheiro que ganhará para os meninos?
É censurável ou louvável? Ou ambos? A questão atormenta-me. Há nesta história algo de mórbido que transcende o bem estar das crianças e me dá comichão nas palmas das mãos.

Quem é Jade Goody? O que fez desde o Big Brother britânico de 2002? Escreveu um livro especialmente interessante? Ganhou um prémio científico? Salvou um menino que se afogava na praia das Maçãs? Deu uma valente bofetadona ao Sócrates e garantiu-lhe que nunca mais na vida iria ter uma maioria absoluta? Não, não realizou nenhuma das boas acções atrás enumeradas. Participou no referido Big Brother, teve cancro, morreu e deixou dois filhos. Ponto final. Eis os motivos porque fomos todos obrigados a conhecê-la.

O que distingue esta jovem mãe de outras jovens mães que morrerão no próximo mês, vítimas da mesma doença?
Em princípio, nada. O filão da piedade relativamente aos órfãos, e à idade da vítima, poderá ser explorado até à exaustão no que toca a qualquer outra mulher tão jovem.
Como é que este caso, igual a tantos outros, nos entra pelas janelas dentro e, pior, tenhamos de gramar a xaropada como assunto de grande seriedade?
Se calhar, porque a vida privada das doninhas vende jornais e revistas, e esta jovem escolheu transformar os seus últimos meses de vida numa extensão do Big Brother, alcançando assim o estatuto de estrela (trágica) que sempre desejou; cheia de vida ou cheia de morte, mas cheia de sucesso - o que fez, vendendo as imagens da sua sorridente e fotogénica agonia aos media, que nem hesitaram. Isto gera muito pathos, e, consequentemente, muita katarsis. É uma telenovela das boas, porque é real.

Nas últimas semanas perdi a conta às capas de revista e artigos onde se lia, "ainda está viva", "tem muitas dores e já se despediu dos filhos", "mal consegue andar mas ainda sorri", "casou e baptizou as crianças apenas algumas semanas antes de morrer", "comeu a última fatia de bolo", "comeu a última fatia de pizza"... Juro que já andava a pensar, cá com os meus botões, e sem desabafar com ninguém, nem o pai morre, nem a gente almoça!




Concordo que isto é muito chato de dizer por causa dos filhos! Custa uma pessoa estar aqui a levantar esta lebre terrível. E nisso ela foi esperta. A alegada necessidade de assegurar a sobrevivência dos órfãos calou as vozes mais críticas. Pelo menos em Portugal. Quem é que, pensando no bem das criancinhas, se atreve a sugerir que Jade Goody não fez isto pelos filhos, mas, se calhar, apenas por si? As crianças ficariam mesmo desamparadas?! Não terão avós, padrinhos, tios? Ninguém?! Serão todos toxicodependentes e alcoólicos?
Se a desculpa não fossem as crianças, se ela tivesse dito, "ok, esta é a minha vida e a minha morte, olhem todos, vejam bem, quero mesmo que vejam, e quero ser bem paga por isso", eu estava aqui caladinha.

Li hoje, no DN, que o acompanhamento, pelos media, dos seus últimos meses de vida, lhe rendeu mais de 4 milhões de euros. Confesso não saber bem o que são 4 milhões de euros, por isso perdoem-me estas contas tão por alto. Imagino, vagamente, que com 4 milhões de euros pudesse comprar 8 moradias de 10 assoalhadas, com piscina, aquecimento central, vidros duplos e videovigilância na Herdade da Aroeira.

Aqui, no meu bairro, 4 milhões de euros chegavam-me para adquirir 40 apartamentos de 3 assoalhadas cada, com duas casas de banho, vidros duplos e uma ou outra mariquice. Ou seja, comprava a correnteza inteira dos prédios onde moro.
Se comprasse 40 apartamentos, viveria num deles e alugava os restantes a 400 euros a peça. Não seria caro. Isto render-me-ia, ao mês, 15.600 euros, o que me daria para viver melhor que o franciscano padre Melícias, que, coitadinho, mal chega aos 8 mil. Escusado será dizer que deixava de trabalhar na fábrica, e me dedicaria inteiramente à escrita de postes, qual Saramago na sua ilha.

O que eu quero dizer com isto tudo é que alguém vai ficar muito bem na vida, e não sei se serão os filhos da Jade, mas alguém... Agora que os filhos serviram lindamente como desculpa para arrecadar esta bela fortuna, e um enorme desejo enorme de estrelato, serviram.
Até estou em crer que, para os meninos, esta exposição da mãe não deve ter sido grande exemplo emocional. Se lhes morre mais alguém sem a devida atenção dos media, os miúdos acharão estranho. Morrer é uma festa, dizia a mamã que foi para o céu. Mas se alguém, nomeadamente, a Segurança Social, for capaz de agarrar estas crianças e de as trazer de volta ao mundo real, pode ser que a coisa ainda se componha.

Uma mega-operação para apreender charro aos putos

Esta garrafinha seria o meu sonho!


Eu gostaria que a GNR fizesse mega-operações stop para apanhar cidadãos na posse de um flagrante desrespeito pelo outro, mas a GNR tem ordens para mandar parar os putos que vão em viagens de finalistas com o charrito no bolso.
Parece que o Estado considera o acto de fumar charros um crime grave. Beber shots de vodka com rum, não. Comer batatas fritas com ketchup e maionese também não.
Acho uma injustiça para as pessoas que fumam charros, que os colegas, que já vão na terceira garrafa de litro de cerveja choca, não sejam igualmente identificados e presentes a uma comissão. Tenho dificuldade em perceber quem é que estará mais intoxicado.
Posso comprar, se me apetecer, 25 garrafas de Borba tinto, sentar-me a bebê-las à porta de casa, que ninguém chama a polícia para me apanhar em flagrante delito. Mas se me puser a enrolar um cigarrito de canabis lá em baixo, tudo como deve ser, sem incomodar ninguém, sem vomitar, sem insultar os outros, chamam a polícia.
Penso que deve ser muito chato para os agentes da autoridade, que na sua maioria têm cara de fumar grandes charradas ou beber do tinto para aguentar o stress da profissão, andar a identificar pessoas com doses individuais ou colectivas de haxixe. É ridículo. Não tem ponta por onde se lhe pegue.
Enquanto se ocupam com finalistas, que bem precisam de relaxar após um longo 2º período de Matemática da brava, 32 criminosos a sério assaltam caixas multibanco, postos de gasolina e casas particulares.
Ao Estado cabe proteger os cidadãos, mas protegê-los de quê? Que distinção faz a Lei entre liberdade individual e crime no que respeita aos consumos? Por que motivo me é concedida a liberdade de me viciar em tabaco e álcool, mas não em drogas? Os perigos para a saúde pública são maiores no caso da droga? Se nos reportarmos aos consumos excessivos, não encontro diferenças, em termos de saúde pública, entre um alcoólico em grau adiantado e um toxicodependente. É igualmente oneroso para o Estado e para a sociedade. Para além de que o espectáculo é igualmente decadente.
Por outro lado, os estudos sobre adições já se cansaram de provar que a apetência para consumos excessivos resultando em dependências não tem qualquer relação com a proximidade e facilidade de acesso ao produto; depende, sim, das carências emocionais e particulares de cada indivíduo. E agora chegámos ao que me move: o que eu queria mesmo era um conjunto de mega-operações semanais da GNR, em zonas estratégicas de incidência, habilitadas a detectar indivíduos com carências emocionais relevantes, tudo seguido da devida identificação, e encaminhamento para o respectivo posto de saúde e médico de família, onde seriam seleccionados para início de tratamento com uma equipa de saúde mental. Acredito muito nos benefícios da saúde mental, que opera milagres nas feridas que todos carregamos e com as quais não sabemos lidar, porque nos roubaram os utensílios para as combater. Nada pode substituir um bom profissional em psicologia, psicanálise, psicoterapia ou hipnoterapia. A não ser o charro. Na justa medida, é igualmente muito libertador. Mas melhor, mesmo melhor é a saúde mental acompanhada, de vez quando, de um bom copo de vinho e de um belo charro.



Nota:
Por favor, ver o vídeo RTP no línque lá em cima. ("A nossa camioneta é só puros... A nossa camioneta é um exemplo para os jovens!")


Isto é tudo muito chato, porque a droga não é barata, e os miúdos já têm de fazer muitos bolos para vender, durante o ano, e rifas, para conseguir dinheiro para as viagens e bebidas em Lloret del Mar. Agora, agrava-se a situação económica da malta, portanto a dos pais, ao obrigá-los a comprar haxixe em Espanha, provavelmente de pior qualidade e mais caro. Se querem treinar os cães porque é que não vão para o aeroporto esperar os voos da América Latina?

Utensílios de cozinha

Hoje comprei uma escumadeira longa, produto de alta resistência a temperaturas até 204º. Parece-me um bom utensílio de cozinha. Nas últimas semanas tenho comprado vários da mesma qualidade, a pouco mais de 1 euro. Todos trazem como brinde um jornal chamado Diário de Notícias.

À deriva pela Europa

"Contudo era muito melhor que viajar a pé: pelo menos podíamos gozar da paisagem à nossa vontade."
Esta é a quinta frase da página 160 do livro que me encontro a ler, a saber, A Trégua, de Primo Levi.

A Gi, do Garden of Philodemus, incluiu-me nesta corrente, o que aceitei, embora não a passe a mais ninguém, lamentando imenso quebrar as regras que alguém estabeleceu, mas, sinceramente, até algumas inscritas em Diário da República me esforço por quebrar.
A utilidade destas correntes parece-me ser a de pôr os envolvidos a falar sobre o item referido, porque a mera transcrição da quinta frase de determinada página seria improdutiva.

Ando a ler Primo Levi pela ordem inversa: comecei com Os que Sucumbem e os que se Salvam, livro escrito muitos anos após o Holocausto, e uma reflexão sobre essa realidade. Passei agora para A Trégua, obra de progressão difícil, uma vez que descreve minuciosamente os meses que se seguiram à Libertação, com excesso de indicações e movimentações geográficas. Faz-me lembrar um livro de viagens. A acção dispersa-se por múltiplos comboios em movimento, mas sem destino, porque toda aquela gente deslocada pela guerra se encontra à deriva por uma Europa cheia de fronteiras, por onde entraram facilmente, mas donde dificilmente se sai; estranhos, corruptos campos de refugiados; esquemas para arranjar dinheiro, comida, lugar onde dormir; personagens, aventuras, uma liberdade aprisionada pela fome, pelo cansaço, pela doença e pelas dificuldades de comunicação, sendo que convém falar o mínimo alemão possível, mesmo que a necessidade de sobrevivência tenha levado à aprendizagem do vocabulário necessário nos campos de morte.

Com o final da Guerra, os sobreviventes dos campos de concentração, os que aí foram deixados para morrer, porque estavam demasiado doentes para caminhar, ficam totalmente abandonados. Os russos prestam-lhes uma desorganizada e incerta ajuda alimentar e sanitária, mas estão verdadeiramente sós, despojados, e longe de casa. A ideia que tinha de que os prisioneiros dos campos tinham sido prestamente socorridos, declarado o final da II Grande Guerra, caiu por terra.

Assim que acabar A Trégua, voltar-me-ei para Se Isto É um Homem, obra que já tentei ler por várias vezes, mas que tive de abandonar por falta de coragem. Mas agora é que vai ser.

Uma doce tarde de sesta

Não vou dizer que ela saltou para cima da cama e me lambeu a cara toda. Seria mentira. Ela já estava em cima da cama há muito tempo, procurou a minha cara, a arfar, e lambeu-ma toda.
Tinha-a tirado do seu cestinho, umas horas antes, dizendo-lhe, agora vamos dormir uma sestinha as duas, e metia-a comigo na cama. Eu tinha frio, e ela é um cobertor, o meu conforto. Dormimos uma bela sesta.
Depois ela acordou-me. Eram horas de comer. Ri-me e disse-lhe, conheço-te tão bem, conheço-te tão bem, e correspondi aos seus beijos e fiz-lhe festas. Sei-te de cor, disse ainda, e comecei a cantar-lhe o Sei-te de Cor do Paulo Gonzo, sei porque becos te escondes/ sei ao pormenor o teu melhor e o pior/ sei de ti mais do que queria /numa palavra diria / sei-te de cor, e percebia-se que ela estava a gostar. É praticamente o único ser que gosta de me ouvir cantar. Ela e o meu pai. A minha prima afastada diz que o meu pai compreendia-se, porque era meu pai.

O tempo de um gelado no McDonalds

Sentia-me gulosa e fui ao McDonalds de Almada comer um McFlurry de Oreo. O gelado ia-me sabendo bem, enquanto meditava nas calorias e obser...