Deparei no YouTube com um vídeo de Jeffrey Kaplan (554 mil inscritos) que declara que o artigo "Über Sinn und Bedeutung" ("Sobre o Sentido e a Referência") publicado em 1892 pelo filósofo alemão Gottlob Frege foi "o mais importante da história da filosofia da linguagem". Por acaso debrucei-me sobre esse artigo nos meus tempos de curso de Filosofia no IFCS da UFRJ, quando fui aluno de lógica matemática do professor Paulo Alcoforado. Na época escrevi um artigo para ser publicado por uma revista, mas que acabou ficando inédito. Aqui está ele. Vamos ver se alguém descobre e lê. Você pode me contactar via escritorcarioca@yahoo.com.br. Estou no Facebook.
FREGE E RUSSELL E O PROBLEMA DO SIGNIFICADO
Resumo: O artigo analisa os problemas associados ao significado das palavras, expressões e frases, à luz da teoria semântica, e as soluções propostas pelos filósofos Gottlob Frege e Bertrand Russell, pioneiros neste ramo de estudos.
Abstract: The article analyzes the problems associated with the meaning of words, expressions and sentences, in the light of semantic theory, and the solutions proposed by philosophers Gottlob Frege and Bertrand Russell, pioneers in this field of study.
Palavras-chave: significado, semântica, teoria referencial.
O Problema do Significado
Dentre as grandes correntes da Filosofia da Linguagem destaca-se, por mais se aproximar, a nosso ver, da concepção do senso comum, a chamada Teoria Referencial. De fato, nada mais natural do que pensar que as palavras, expressões e sentenças nomeiam esta ou aquela entidade. No caso dos nomes próprios, isto é extremamente claro: “Pluto” nomeia aquele cãozinho que lá está a latir. Nas palavras de Alston:
A teoria referencial tem sido atraente para um grande número de teóricos, porque parece fornecer uma resposta simples facilmente assimilável às maneiras naturais de pensar acerca do problema do significado. Parece a muitos que os nomes próprios possuem uma estrutura semântica idealmente transparente. Aqui está a palavra “Pluto”: ali está o cão nomeado por esta palavra. Tudo está claramente exposto; nada há de escondido ou misterioso. O fato de possuir o significado que possui constitui-se simplesmente do fato de ser o nome daquele cão. É igualmente tentador e natural supor que uma tal explicação possa ser dada para qualquer expressão significativa. Pensa-se que toda expressão significativa nomeia isto ou aquilo, ou ao menos designa algo numa relação de algum modo similar à relação de nomear.”1
Partindo-se da constatação de que as expressões da linguagem são dotadas de algo que denominamos “significado”, pode-se levantar a seguinte questão: em que consiste este algo, o significado de uma expressão?
Ora, dentro de uma concepção referencial da linguagem, duas podem ser as respostas à questão acima: (i) ou bem, o significado da expressão é assimilado à entidade por ela nomeada, e neste caso estaríamos dentro de uma teoria referencial de dois níveis; o significado de “Kepler”, por exemplo, seria aquele indivíduo que nasceu em 1571, lecionou matemática em Graz de 1594 a 1598, escreveu o Mysterium Cosmographicum, onde se mostrou adepto do sistema copernicano...; (ii) ou bem, o significado não se identifica, propriamente, com a entidade nomeada pela expressão, mas se situa num domínio intermediário entre a expressão e aquilo que ela nomeia; por exemplo, o significado de “o mais brilhante dos astros noturnos” seria, não exatamente o planeta Vênus, mas uma espécie de conexão que associa a expressão “o mais brilhante dos astros noturnos” ao planeta Vênus; e aqui estamos dentro de uma teoria referencial de três níveis.
Duas grandes dificuldades emergem numa teoria referencial de dois níveis, ou teoria referencial mais ingênua (na terminologia de Alston) ou teoria referencial stricto sensu, quais sejam: (i) o caso de expressões distintas – por exemplo, “o mais brilhante dos astros noturnos” e “o segundo planeta do sistema solar” – que, se bem nomeiem a mesma entidade, possuem significados diferentes; (ii) o caso de expressões – como “eu”, “aqui” etc. – que possuem significado constante, porém nomeiam entidades distintas conforme o contexto em que sejam proferidas.
Quanto a esta última dificuldade, de fato, se assimilamos o significado de, digamos, “eu”, àquilo que este termo nomeia, então teremos de ser levados a admitir que tal termo possui um número indefinido de significados – o que não é o caso. Já a primeira dificuldade, é patente que “o mais brilhante dos astros noturnos” e “o segundo planeta do sistema solar” possuem significados distintos, se bem que nomeiem a mesma entidade, o planeta Vênus.
A Solução de Frege
Tais dificuldades não ocorrem numa teoria semântica de três níveis, ou teoria referencial menos ingênua, ou teoria do significado, cuja expressão clássica é a teoria do sentido e da referência de Frege.2 Esta teoria se estrutura a partir de uma investigação acerca da igualdade. “A igualdade desafia a reflexão dando origem a questões que não são muito fáceis de responder”: com estas palavras inicia Frege seu artigo “Sobre o Sentido e a Referência”. Ele constata que sentenças como
(1) O segundo planeta do sistema solar é o mais brilhante dos astros noturnos
não são meramente analíticas como é a sentença
(2) O segundo planeta do sistema solar é o segundo planeta do sistema solar.
Pelo contrário, as asserções (1) e (2) possuem valores cognitivos distintos. De fato, a descoberta de que o mais brilhante dos astros noturnos é o segundo planeta do sistema solar foi uma descoberta astronômica de grande relevância. Pois bem, numa semântica de dois níveis, dois poderiam ser os casos. Ou bem, a igualdade seria uma relação entre aquilo que as expressões nomeiam, caso este em que dificilmente encontraríamos critérios para distinguir, quanto ao valor cognitivo, as asserções (1) e (2); ou bem, a igualdade seria uma relação entre as próprias expressões, e em (1) estaríamos arbitrariamente estipulando nomes diferentes para um mesmo objeto – o que não é o que queremos.
Para dar conta do problema da igualdade, Frege irá introduzir, como mediador entre o que ele chama de “sinal” (Zeichen) e o que ele denomina de “referência” (Bedeutung),3 um terceiro elemento, a saber, o sentido (Sinn), que seria como que o “modo de apresentação” do referente.
Com a introdução deste terceiro elemento, mediando o sinal e a referência, o problema da igualdade fica assim resolvido: se bem que os sinais “o mais brilhante dos astros noturnos”, “o segundo planeta do sistema solar” e “a Estrela d’Alva” refiram-se ao mesmo objeto, o planeta Vênus, tais expressões são maneiras distintas de apresentar tal objeto.
Fica assim resolvida a questão de expressões com significados diferentes, porém nomeando uma mesma entidade. Também expressões como “eu”, “aqui” etc. não mais oferecem dificuldade: o sentido de tais expressões é constante, mas seus referta, variáveis.
Coloca-se agora o problema de qual o status ontológico do sentido. Para Frege, o sentido de uma expressão não se identifica à ideia que temos quando proferimos ou ouvimos a expressão. Para dar uma ideia clara da diferença entre sentido, ideia e referente, Frege faz uma analogia com alguém que observe a lua através de um telescópio. A própria lua pode ser comparada à referência; a imagem real projetada pela lente no interior do telescópio, Frege a compara ao sentido; finalmente, a imagem que se forma na retina do observador, compara-se à ideia.
Frege irá portanto admitir, além do domínio dos sinais e do domínio dos referta, uma espécie de Universo atemporal e inespacial – o terceiro domínio – habitado por sentidos ou, mais exatamente, por pensamentos, que são os sentidos das sentenças. “O pensamento que enunciamos no teorema de Pitágoras é intemporalmente verdadeiro, independente do fato de alguém tomá-lo como verdadeiro. [...] Ele não se torna verdadeiro a partir do momento de sua descoberta mas, como um planeta, antes mesmo de alguém o ter visto, esteve em interação com outros planetas.”4
Finalmente, em Frege, praticamente todas as expressões são, de alguma forma, nomes de entidades. Quanto a este aspecto, duas são as espécies de expressões: (i) os nomes próprios, que podem ser simples – Vênus, Kepler... – ou compostos – “o mais brilhante dos astros noturnos”, “o descobridor da forma elíptica das órbitas planetárias” – e que têm por referência objetos;5 (ii) os nomes funcionais – “a raiz quadrada de 4”, “casa” – que têm por referência conceitos, relações ou funções.
Problemas na Teoria de Frege
Uma teoria, como a de Frege, em que expressões tais como “o mais brilhante dos astros noturnos”, “o descobridor da forma elíptica das órbitas planetárias” etc. são encaradas como nomes próprios,6 conduz a terríveis dificuldades, como apontou Bertrand Russell, quando se trata de expressões que não possuem referência – por exemplo, “o atual rei do Brasil”, “a montanha de ouro”, “o maior número natural” etc.
Vejamos o tratamento que Frege dá a tais expressões. A posição de Frege é de que, numa linguagem logicamente perfeita – isto é, uma linguagem artificial destituída das imperfeições da linguagem corrente – pressupõe-se que toda expressão que funcione como nome próprio tenha uma referência. A carência de referência por parte de certos nomes próprios pode facilmente servir como apoio para o “abuso demagógico”: “‘A vontade do povo’ pode servir de exemplo a este respeito, pois é fácil estabelecer que não há uma referência universalmente aceita para esta expressão.” (S.R., pp. 22-3) Erros na história da matemática – diz ainda Frege – originaram-se da falta de referência de certas expressões. Observa o autor que mesmo a linguagem simbólica da Análise não está de todo destituída de tais imperfeições – é o caso da expressão “as séries infinitas divergentes” (S.R., p. 22). É importante que, ao menos na ciência, seja eliminada uma tal fonte de erros; e nos casos em que nenhuma entidade possa ser atribuída como referência de uma expressão – por exemplo, no caso das séries infinitas divergentes – dever-se-á pelo menos estipular uma referência convencional, o número zero (S.R., p. 22).
A atribuição de uma referência convencional a nomes próprios compostos sem referência acarreta a seguinte dificuldade: é uma verdade que
(1) Não existe a montanha de ouro.
Ora, segundo Frege, “a montanha de ouro” teria a mesma referência que “o número zero”. Portanto, podemos substituir, em (1), essa primeira expressão por esta segunda, o que dá:
(2) Não existe o número zero,
sentença esta que, ao contrário de (1), é inteiramente falsa.
Devemos portanto rejeitar a atribuição de uma referência convencional às expressões que nada nomeiam. Com isto, porém, surgem novas dificuldades.
Primeiramente, seja a sentença:
O padre Baco ali não consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente,
Se lá passar a Lusitana gente.7
Frege admitiria que ela, se bem que possua um sentido, não possui referência, pois, por estarmos circunscritos ao domínio da ficção, o valor de verdade da sentença não está aqui em jogo.
É possível que uma sentença como um todo tenha tão-somente sentido, mas nenhuma referência? [...] A sentença “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca” tem obviamente um sentido. Mas assim como é duvidoso que o nome “Ulisses”, que aí ocorre, tenha uma referência, é também duvidoso que a sentença inteira tenha uma.” (S.R., p. 10)
Todavia, a partir da sentença “O Sol gira ao redor da Lua”, que é obviamente falsa, podemos construir o seguinte par de sentenças, em que (1) é verdadeira, e (2), falsa:
(1) A revolução do Sol ao redor da Lua não existe;
(2) A revolução do Sol ao redor da Lua existe.
Vemo-nos ante o seguinte paradoxo:
(i) Aparentemente, a expressão “a revolução do Sol ao redor da Lua” não possui referência, posto que o Sol não gira ao redor da Lua;
(ii) Por outro lado, quando uma sentença é verdadeira ou falsa, seu sujeito possui necessariamente uma referência, pois de uma não-entidade não se pode afirmar uma verdade ou falsidade. “Aquele que não admite que o nome tenha uma referência não lhe pode afirmar nem negar um predicado.” (S.R., p. 11)
Teremos portanto que admitir que entidades tais como a revolução do Sol ao redor da Lua, o atual rei do Brasil, a montanha de ouro, etc. possuem alguma forma de existência. O próprio Russell, antes da publicação de “Da Denotação”, admitia tal solução.” “Os números, os deuses homéricos, as relações, as quimeras e os espaços quadridimensionais todos têm ser, pois se eles não fossem entidades de uma certa espécie, não poderíamos fazer proposições acerca deles.”8
Ora, a admissão de entidades tais como o atual rei do Brasil em nosso universo não elimina as dificuldades na teoria de Frege, como procuraremos agora demonstrar. De fato, seja a sentença:
(1) O atual rei do Brasil é um astronauta.
Ela é obviamente falsa, posto que, entre os astronautas, não encontramos nenhum que seja atualmente rei do Brasil.
Seja agora a negativa de (1), qual seja:
(2) O atual rei do Brasil não é um astronauta.
Esta sentença não é falsa, consoante a tábua da verdade da negação; tampouco é verdadeira, pelos mesmos motivos que (1) não é. Teremos assim de admitir um terceiro valor de verdade, que não é o verdadeiro ou o falso, violando o princípio do terço excluso.9
A Solução de Russell
A solução de Russell aos problemas acima abordados vão se constituir em sua famosa Teoria das Descrições. O ponto central desta teoria é que expressões como “o autor de Dom Casmurro”10 não são, ao contrário do que classicamente se advogou, nomes próprios, como é “Machado de Assis”.11
Em outros termos, se bem que a sentença:
(1) Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro
seja uma sentença da forma sujeito-predicado – e aqui a forma lógica está em concordância com a forma gramatical – o mesmo não ocorre com:
(2) O autor de Dom Casmurro nasceu no Rio de Janeiro.
Aqui, a forma gramatical escamoteia a forma lógica da sentença, já que, embora “o autor de Dom Casmurro” seja o sujeito gramatical, não é verdadeiramente um sujeito, na acepção lógica deste termo. Admitir que o seja, isto é, admitir que seja um nome próprio, como faz Frege, acarreta todos aqueles problemas que abordamos: a introdução, no universo, de coisas tais como montanhas de ouro, a violação do princípio do terço excluso.
Como decorrência disto, as sentenças em que ocorrem descrições são submetidas por Russell à análise lógica.
Porém, antes de examinarmos de que maneira Russell procede a esta análise, dois pressupostos devem ser abordados.
Em primeiro lugar, Russell pressupõe, em suas investigações linguísticas, uma concepção diádica da linguagem. Diz ele:
Com relação ao que significamos por “significado”,12 darei algumas poucas ilustrações. Por exemplo, a palavra Sócrates [...] significa um certo homem; a palavra “mortal” significa uma certa qualidade; e a sentença “Sócrates e mortal” significa um certo fato.13
A admissão de um domínio de pensamentos atemporais e inespaciais não se coaduna com seu “sentimento da realidade” “Em obediência ao sentimento de realidade, insistiremos em que, na análise das proposições, nada de irreal deva ser admitido”.14
Em segundo lugar, a abordagem que Russell faz da linguagem vincula-se a um pressuposto epistemológico. Para uma boa compreensão de tal pressuposto, porém, devemos previamente explicitar as noções de componentes de uma sentença e conhecimento direto.
A noção de componentes de uma sentença é ambígua, em Russell. Por componentes de uma sentença podemos entender, ou bem, (i) as próprias palavras de que se compõe a sentença, ou bem, (ii) as contrapartidas extralinguísticas de palavras. Deste modo, dada uma sentença, “A ama B”, podemos considerar como sendo seus componentes (i) as palavras “A”, “ama” e “B”, ou (ii) os particulares A e B, e o conceito amar. Por ser esta segunda acepção a mais corrente em Russell, será a que adotaremos.
O problema do conhecimento direto é pela primeira vez abordado por Russell no “Da Denotação”. Neste artigo, ele contrapõe acquaintance (familiaridade) a knowledge about (conhecimento acerca). O tema é retomado em várias de suas obras posteriores, e em Misticismo e Lógica, o último capítulo é totalmente consagrado ao que, agora, denomina knowledge by acquaintance (a rigor, conhecimento por familiaridade, porém preferimos traduzir tal expressão por “conhecimento direto”) e knowledge by description (conhecimento por descrição).
O conhecimento direto revela-nos a presença imediata do objeto. Assim, temos conhecimentos direto de cores, ruídos, sabores, em suma, dos dados sensíveis. Tal espécie de conhecimento não se limita, porém, ao conhecimento de objetos particulares, mas engloba ainda os objetos universais: conceitos, como o amarelo, e relações, como a semelhança (M.L., pp. 232-6).
Já o conhecimento por descrição envolve:
(i) que saibamos existir um único objeto possuidor de determinada propriedade;
(ii) que não possuamos conhecimento direto de tal objeto (M.L., p.237).
De Kepler, por exemplo não podemos ter conhecimento direto, posto que ele não nos é contemporâneo. No entanto, nosso conhecimento não se restringe ao que nos é dado imediatamente, ou ao que pode ser evocado por nossa memória. Podemos conhecer Kepler, portanto, como autor do Mysterium Cosmographicum, ou o descobridor da forma elíptica das órbitas planetárias, etc. O conhecimento por descrição, porém, não envolve apenas objetos do passado; poderá envolver objetos futuros (o centro de massa do sistema solar no primeiro instante do século XXII), objetos de localização temporal indeterminável (o homem que proferiu, em sua vida, o maior número de palavras), objetos de existência pouco provável (o décimo milionésimo rei da Inglaterra), ou mesmo um objeto do qual tenhamos conhecimento direto, sem porém podermos afirmar ser ele o detentor da propriedade em questão: o partido que obtiver o maior número de votos nas próximas eleições parlamentares.
Toda a abordagem russelliana da linguagem pressupõe o seguinte princípio: para que uma sentença nos seja inteligível, devemos ter conhecimento direto de cada um de seus componentes. Por exemplo, para uma pessoa destituída de visão, seria ininteligível a sentença “o verde simboliza a esperança”. Russell justifica este princípio pela constatação de que “parece impossível acreditar que possamos fazer um juízo [...] sem saber o que estamos julgando”15
Vimos que, quando consideramos as descrições – à maneira de Frege – como nomes próprios de objetos, somos forçados a admitir a existência de entes tais como a montanha de ouro e, o que é grave, deparar-nos-emos com casos em que é violado o princípio do texto excluso. Por outro lado, considerar as descrições como nomes próprios viola frontalmente o princípio epistemológico acima. Realmente, se aceitamos que expressões como “o autor de Dom Casmurro” possam funcionar como sujeitos lógicos de sentenças, então o autor de Dom Casmurro será um componente de tais sentenças, o que vai de encontro ao nosso princípio epistemológico, já que deste grande escritor não podemos infelizmente ter conhecimento direto.
Assim, pelas duas razões acima abordadas – razões de cunho lógico e pressuposições de caráter epistemológico – as sentenças onde ocorrem descrições são submetidas à análise, a saber:
Toda sentença acerca de um assim-e-assim (onde o assim-e-assim é uma descrição definida) será interpretada como afirmando a satisfação ou não de uma função sentencial.
Uma função sentencial é uma expressão em que ocorrem uma ou mais variáveis, ou que se torna uma sentença assim que as variáveis sejam quantificadas (ou instanciadas). Um exemplo de função sentencial é:
(1) x é um unicórnio
onde “x” é uma variável, que pode ser assim quantificada:
(2) Existe um x, tal que x é um unicórnio;
(3) Qualquer que seja x, x é um unicórnio.
Nas sentenças (2) e (3) usaram-se, respectivamente, os quantificadores existencial e universal. A sentença (2) afirma a satisfação de (1) para ao menos um valor de x; a sentença (2) afirma a satisfação de (1) para qualquer valor de x.
Assim, as sentenças existenciais são analisadas como afirmando a satisfação de uma função sentencial para um, e somente um, valor de x. Por exemplo a sentença
O reino de Troia existe
é analisada como envolvendo duas afirmações:
(1) Existe pelo menos uma entidade que é o reino de Troia ou, em linguagem técnica, existe um x, tal que x é o reino de Troia;
(2) No máximo uma entidade é o reino de Troia ou, em linguagem técnica, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, então y = x.
Sintetizando:
Existe um x tal que: x é o reino de Troia e, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, y = x.
Sentenças em que se atribuiu uma propriedade a um assim-e-assim envolvem, além da atribuição de tal propriedade, a afirmação da existência do assim-e-assim. A sentença
O reino de Troia foi descoberto por Schliemann
é portanto analisada como envolvendo as afirmações acima, e mais uma terceira afirmação, quais sejam:
(1) Existe pelo menos uma entidade que é o reino de Troia, isto é, existe um x, tal que x é o reino de Troia;
(2) No máximo uma entidade é o reino de Troia, isto é, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, estão y = x;
(3) Tal entidade foi descoberta por Schliemann, ou, x foi descoberto por Schliemann.
Sintetizando:
Existe um x tal que: x é o reino de Troia e, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, então y = x, e x foi descoberto por Schliemann.
Nossa dificuldade acerca de sentenças existenciais cujo sujeito gramatical é uma descrição sem referência fica assim resolvida: a sentença
A revolução do Sol ao redor da Lua existe,
que é analisada como: existe um x tal que x é a revolução do Sol ao redor da Lua e, qualquer seja y, se y é a revolução do Sol ao redor da Lua, então y = x, não mais afirma a existência da revolução do Sol ao redor da Lua, pois de uma não-entidade nada de falso pode ser afirmado; porém afirma que a função sentencial
x é a revolução do Sol ao redor da Lua e, qualquer que seja y, se y é a revolução do Sol ao redor da Lua então y = x
é satisfeita por pelo menos um valor de x, o que é uma inverdade. O mesmo raciocínio aplica-se, mutatis mutandis, à negação da sentença acima.
Com a análise das sentenças, também o problema da violação da lei do terço excluso é superado. A sentença
O atual rei do Brasil é careca,
analisada como
Existe um x tal que: x é o atual rei do Brasil e, qualquer que seja y, se y é o atual rei do Brasil, y = x, e x é careca
será falsa em qualquer um dos casos seguintes:
1. a função proposicional “x é o atual rei do Brasil” não é satisfeita;
2. a função proposicional “se y é o atual rei do Brasil, y = x não é satisfeita;
3. a função proposicional “x é careca” não é satisfeita.
Em outras palavras, nossa sentença será falsa se:
1. não existe nenhum atual rei do Brasil; ou
2. existe mais de um atual rei do Brasil; ou
3. existe um e somente um atual rei do Brasil, porém ele não é careca.
Consequentemente, nossa sentença é falsa, não porque o atual rei do Brasil não seja careca, mas porque não existe o atual rei do Brasil.
Pois bem, consoante a análise de Russell, a negação de nossa sentenças será:
É falso que existe um x tal que: x é o atual rei do Brasil e, qualquer que seja y, se y é o atual rei do Brasil, y = x, e x é careca,
o que é evidentemente verdadeiro. Assim, não mais se viola a lei do terço excluso.
Dificuldades de uma Teoria Referencial Diádica
Várias dificuldades emergem numa teoria referencial diádica, das quais duas, sugere-nos W. Alston, chegariam a invalidar uma tal teoria: (1) o caso de expressões (como “o mais brilhante astro noturno” e “o segundo planeta do Sistema Solar”) que, se bem possuam idêntico refertum, indubitavelmente possuem significados distintos, e (2) o caso de expressões (como “eu”, “aqui”) que, se bem possuam um significado constante, possuem variados referta, conforme o contexto em que sejam enunciadas.
Se, por um lado, a Teoria das Descrições foi extremamente feliz em lidar com expressões que nada nomeiam, vejamos de que modo ela lidará com estas duas dificuldades, e verifiquemos se elas realmente invalidam a teoria de Russell.
A primeira dificuldade pode ser assim recolocada. Dadas as expressões “o mais brilhante dos astros noturnos” e “o segundo planeta do Sistema Solar”, (i) dado que elas nomeiam o mesmo objeto, possuem idêntico significado (já que, numa semântica diádica, significado = referente). Ora (ii) se elas possuem idêntico significado, posso substituir numa sentença uma pela outra, sem alterar a verdade ou a falsidade da sentença, o que nem sempre ocorre, posto que, admitindo-se que seja verdadeira a sentença
Fulano perguntou se o mais brilhante dos planetas é o segundo planeta do sistema solar,
isto não acarreta necessariamente a verdade de
Fulano perguntou se o segundo planeta do sistema solar é o segundo planeta do sistema solar.
Ora, na concepção de Russell, as descrições não são expressões que nomeiam, portanto, elas não possuem significado. As asserções (i) e (ii) repousam sobre falsas premissas.
Em outros termos, se bem que “brilhante” signifique um conceito e “sistema solar” signifique um particular, a descrição “o mais brilhante astro noturno do sistema solar” não possui significado, no sentido em que “brilhante” e “sistema solar” possuem. Por isso, ela não pode ser o sujeito lógico de uma sentença, e onde ocorre como sujeito gramatical, requer-se uma análise que faça a descrição desaparecer do sujeito. Ela será – conforme vimos – traduzida em termos de um predicado, predicado este que, mediante a quantificação, é relacionado a particulares do universo (no caso da quantificação universal, a todos tais particulares; no caso da quantificação existencial, a pelo menos um particular). Daí a introdução de funções sentenciais em nossa análise.16
Quanto à segunda dificuldade, a saber, o caso de palavras como “eu”, “aqui” que, se bem possuam um significado único, nomeiam entidades as mais diferentes, conforme o contexto em que são proferidas, devemos observar o seguinte. Nas obras até aqui mencionadas, escritas entre 1905 (“Da Denotação”) e 1919 (Introdução à Filosofia Matemática e “A Filosofia do Atomismo Lógico”), tais palavras são consideradas como nomes próprios, sem que Russell se aperceba dos problemas que tal colocação acarreta. O problema só é realmente desenvolvido por Russell a partir do Inquiry into Meaning and Truth, escrito em 1945. Nesta época, porém, a teoria referencial diádica havia sido abandonada por Russell em favor de uma teoria condutista (behaviorista), por não explicar, segundo ele, o que vem a ser o significado. Em Meu Pensamento Filosófico,17 – escreve ele: “Foi em 1918 [...] que primeiro me interessei na definição de “significado”, e na relação da linguagem com os fatos. Até então eu havia encarado a linguagem como “transparente”, e nunca havia examinado em que consiste sua relação com o mundo não-linguístico.
Na última parte do trabalho, faremos um levantamento de como Russell discute – a partir do Inquiry into Meaning and Truth – a questão de tais palavras, limitando-nos porém ao que interessa estritamente a uma teoria da referência.
Os Particulares Egocêntricos
A questão do significado de palavras como “isto”, “eu”, “aqui”, “agora” – que Russell denomina particulares egocêntricos – só vem a ser colocada em An Inquiry into Meaning and Truth18 e, posteriormente, em O Conhecimento Humano.19
Em O Conhecimento Humano, após definir “particulares egocêntricos” como “as palavras cujo significado varia conforme o locutor e sua posição no tempo e no espaço”, Russell reconhece que “entretanto, há obviamente algum sentido em que tais palavras possuem um significado constante”.
No Inquiry, após observar que “todas as palavras egocêntricas podem ser definidas em termos de ‘isto’”, diz ele: “A palavra ‘isto’ é uma palavra que, em algum sentido, tem um significado constante” (p.109).
Ainda no Inquiry, duas hipóteses são levantadas: (i) ou bem, “isto” é um nome próprio, ou bem, (ii) é uma descrição disfarçada.20
Em obras anteriores ao Inquiry, palavras como “isto” eram consideradas como nomes próprios. Por exemplo, em Misticismo e Lógica, Russell chega a afirmar que “só há duas palavras que são a rigor nomes próprios de particulares, a saber, ‘eu’ e ‘isto’ (p.246).
No Inquiry, porém, Russell reconhece que, se queremos que “isto” tenha um significado constante – e em Russell o significado de um termo identifica-se com aquilo que ele designa –, então não poderá ser tratado como um nome próprio.
Poder-se-á alegar que tampouco palavras como “João” possuem um significado constante; de fato, esta palavra nomeia grande número de pessoas. Entretanto, a relação de “João” com estas pessoas é diferente da relação dos particulares egocêntricos com os objetos por estes nomeados. “João” nomeia diferentes pessoas, porém de maneira constante. Uma pessoa que tenha sido batizada de “João” será assim chamada por toda a sua vida. Já um particular egocêntrico como, por exemplo, “você”, também pode nomear um número indefinido de pessoas, porém apenas enquanto esta palavra esteja sendo empregada. Ao dirigir-me a João, posso chamá-lo de “você”, porém assim que cesso de empregar esta palavra, João não continua chamando-se “você”.
O que se pode concluir é que uma palavra como “João” possui significado constante, porém ambíguo; já um particular egocêntrico como “isto” ou “você”, se tratado como nome próprio, não possui nenhum significado constante. A hipótese (i) deve ser descartada.
Examinemos agora a segunda hipótese. Em obras anteriores ao Inquiry, Russell já havia observado que, por exemplo, quando usamos a palavra “Sócrates”, não se trata de um nome próprio, posto que não temos conhecimento direto deste filósofo. “Quando usamos a palavra ‘Sócrates’, estamos na verdade usando uma descrição.”21 O termo “Sócrates” seria, portanto, uma abreviação de uma descrição tida em mente pelo seu usuário ou ouvinte, por exemplo, “o mestre de Platão”, ou “o filósofo que bebeu a cicuta”, ou ainda “a pessoa que os lógicos afirmam ser mortal”. 22
Do mesmo modo, o termo “Deus” seria uma descrição abreviada de “o mais perfeito dos seres”.23
Não é implausível pensar que, quando se usa um particular egocêntrico, trata-se de uma descrição abreviada, disfarçada. No Inquiry, Russell sugere que “isto” seja uma abreviação da descrição “o objeto da atenção”, mas mostra a seguir que tal não é o caso, posto que esta descrição, se bem que, por sua forma, seja uma descrição definida, é ambígua, porque descreve todo e qualquer objeto que alguma vez tenha sido objeto de atenção – do mesmo modo que “o habitante de Londres” descreve toda e qualquer pessoa que habite, ou tenha alguma vez habitado, Londres.
Em qualquer tentativa de contornar esta ambiguidade, ou caímos em circularidade, ou novos particulares egocêntricos são introduzidos no definiens e o problema se desloca para ele. Se defino “isto” como “o objeto deste ato de atenção” (admitindo-se que “isto” e “este” tenham o mesmo significado), recaio no primeiro caso. Se o defino como “o objeto de meu ato de atenção agora”, recaio no segundo.
A solução que Russell dá, no Inquiry, a este problema envolve considerações de cunho condutista, fugindo portanto do escopo de uma Teoria Referencial.
Em O Conhecimento Humano, o problema é colocado em termos de definição ostensiva. “Definição ostensiva” é definida como “qualquer processo pelo qual uma pessoa aprende a entender uma palavra por meios outros que pelo uso de outras palavras”. O exemplo típico de definição ostensiva é a aprendizagem da língua quando se é criança.
Dentre os particulares egocêntricos, Russell tomará “isto” como fundamental – deixando claro que a escolha é arbitrária – e dirá que qualquer outro particular egocêntrico poderá ser definido em termos de “isto”. Por exemplo, “eu” será definido como “a pessoa que presencia a isto”, e assim por diante. Russell procurará então dar uma definição ostensiva de “isto”, a saber: “‘isto’ denota qualquer coisa que, no momento em que a palavra é usada, ocupa o centro de atenção.”
Na verdade, não se trata de uma definição ostensiva, já que envolve o uso de palavras, mas uma explicação de como é possível a aprendizagem, por definição ostensiva, do termo “isto”.
Se de fato “isto” pode ser ostensivamente definido, então de alguma forma a Teoria Referencial estará salva. Que palavras como “cavalo”, “Corcovado”, “amarelo” são ostensivamente definíveis está fora de qualquer dúvida. Se o mesmo ocorre com “isto”, eis um problema que diz respeito à Psicologia da Aprendizagem.
NOTAS:
1 W. Alston, Filosofia da Linguagem, Zahar, p. 12.
2 G. Frege, “Sobre o Sentido e a Referência”, trad. bras. em Littera, 5 (1972), pp. 102-118. Daqui em diante, faremos menção a este artigo pela sigla S.R. Publicado pela primeira vez sob o título “Über Sinn und Bedeutung” em Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, NF, 100 (1892) pp.25-50.
3 O termo fregeano “Bedeutung” é difícil de traduzir. Literalmente, tal termo significa “significado”, porém, na acepção técnica em que Freire o emprega, não deve ser entendido como tal, já que o que correntemente se entende por “significado” identifica-se, na teoria de Frege, muito mais com “Sinn” (sentido), e não com “Bedeutung”. Por isso, o Prof. Paulo Alcoforado, em sua tradução do artigo de Frege, preferiu seguir a solução de P. Geach e M. Black (orgs.), Translations from the Philosophical Writings of G. Frege, Oxford, 1952, que traduzem tal termo por reference (referência).
4 G. Frege, “O Pensamento, uma análise lógica”.
5 Quanto às sentenças, Frege as considera como nomes próprios, quer do objeto o Verdadeiro, quer do objeto o Falso. Ver “Sobre o Sentido e a Referência”.
6 Frege denomina tais expressões “nomes próprios compostos”.
7 Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto I, 30.
8 Bertrand Russell, The Principles of Mathematics, p. 449.
9 Ou princípio do terceiro excluído, segundo o qual, se uma sentença não é verdadeira, sua negação o será, não existindo uma terceira alternativa.
10 Tais expressões – que Frege denomina “nomes próprios compostos” – são chamadas por Russell de descrições definidas. Por uma descrição definida, entende Russell uma frase da forma “o assim-e-assim” (the so-and-so). Em “A Filosofia do Atomismo Lógico” (em Os Pensadores, volume. XLII, Editora Abril. p. 111), Russell dá como exemplos de descrições definidas: “o homem com a máscara de ferro”, “a última pessoa que entrou nesta sala”, “o único inglês que ocupou a sé papal”, “o número de habitantes de Londres”, “a soma de 43 e 34”, e chama a atenção para o fato de que o que faz com que uma expressão seja uma descrição definida é unicamente sua forma, independentemente de se realmente existe um objeto definido descrito.
11 A rigor, “Machado de Assis” é uma descrição abreviada. Porém, para fins de exposição, a trataremos como nome próprio, procedimento este que o próprio Russell por vezes adota. O problema das descrições abreviadas ou descrições disfarçadas será retomado no segmento final deste trabalho, quando tratarmos dos egocêntricos particulares.
12 Em “Da Denotação” (em Os Pensadores, volume. XLII), nos trechos em que discute a teoria de Frege, Russell usa “significado” (meaning) também como tradução do termo fregeano “Sinn” (sentido).
13 “A Filosofia do Atomismo Lógico”, p. 66.
14 Bertrand Russell, Introdução à Filosofia Matemática, Zahar, p. 163.
15 Misticismo e Lógica, p. 241.
16 Ver M.S. Gram, “Ontology and the Theory of Descriptions”, em E. D. Klemke (org.), Essays on Bertrand Russell, Illinois, p. 130.
17 Companhia Editora Nacional, 1960 – original britânico de 1959.
18 Allen & Unwin, 1945. Não há tradução em língua portuguesa desta obra. Daqui em diante, mencionaremos esta obra como Inquiry.
19 O original inglês é de 1948. A tradução brasileira foi editada pela Cia. Ed. Nacional em 1959.
20 Na verdade, são três hipóteses; porém, no contexto deste trabalho, apenas as duas primeiras são interessantes.
21 “A Filosofia do Atomismo Lógico”, p. 78.
22 Ver A. J. Ayer, As ideias de Bertrand Russell, Cultrix, 1974, p. 58.
23 “Da Denotação”, p. 19.