"SOBRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA" DE GOTTLOB FREGE: O MAIS IMPORTANTE ARTIGO DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM

Deparei no YouTube com um vídeo de Jeffrey Kaplan (554 mil inscritos) que declara que o artigo "Über Sinn und Bedeutung" ("Sobre o Sentido e a Referência") publicado em 1892 pelo filósofo alemão Gottlob Frege foi "o mais importante da história da filosofia da linguagem". Por acaso debrucei-me sobre esse artigo nos meus tempos de curso de Filosofia no IFCS da UFRJ, quando fui aluno de lógica matemática do professor Paulo Alcoforado. Na época escrevi um artigo para ser publicado por uma revista, mas que acabou ficando inédito. Aqui está ele. Vamos ver se alguém descobre e lê. Você pode me contactar via escritorcarioca@yahoo.com.br. Estou no Facebook.


FREGE E RUSSELL E O PROBLEMA DO SIGNIFICADO


Resumo: O artigo analisa os problemas associados ao significado das palavras, expressões e frases, à luz da teoria semântica, e as soluções propostas pelos filósofos Gottlob Frege e Bertrand Russell, pioneiros neste ramo de estudos.

Abstract: The article analyzes the problems associated with the meaning of words, expressions and sentences, in the light of semantic theory, and the solutions proposed by philosophers Gottlob Frege and Bertrand Russell, pioneers in this field of study.

Palavras-chave: significado, semântica, teoria referencial.


O Problema do Significado

Dentre as grandes correntes da Filosofia da Linguagem destaca-se, por mais se aproximar, a nosso ver, da concepção do senso comum, a chamada Teoria Referencial. De fato, nada mais natural do que pensar que as palavras, expressões e sentenças nomeiam esta ou aquela entidade. No caso dos nomes próprios, isto é extremamente claro: “Pluto” nomeia aquele cãozinho que lá está a latir. Nas palavras de Alston:


A teoria referencial tem sido atraente para um grande número de teóricos, porque parece fornecer uma resposta simples facilmente assimilável às maneiras naturais de pensar acerca do problema do significado. Parece a muitos que os nomes próprios possuem uma estrutura semântica idealmente transparente. Aqui está a palavra “Pluto”: ali está o cão nomeado por esta palavra. Tudo está claramente exposto; nada há de escondido ou misterioso. O fato de possuir o significado que possui constitui-se simplesmente do fato de ser o nome daquele cão. É igualmente tentador e natural supor que uma tal explicação possa ser dada para qualquer expressão significativa. Pensa-se que toda expressão significativa nomeia isto ou aquilo, ou ao menos designa algo numa relação de algum modo similar à relação de nomear.”1


Partindo-se da constatação de que as expressões da linguagem são dotadas de algo que denominamos “significado”, pode-se levantar a seguinte questão: em que consiste este algo, o significado de uma expressão?

Ora, dentro de uma concepção referencial da linguagem, duas podem ser as respostas à questão acima: (i) ou bem, o significado da expressão é assimilado à entidade por ela nomeada, e neste caso estaríamos dentro de uma teoria referencial de dois níveis; o significado de “Kepler”, por exemplo, seria aquele indivíduo que nasceu em 1571, lecionou matemática em Graz de 1594 a 1598, escreveu o Mysterium Cosmographicum, onde se mostrou adepto do sistema copernicano...; (ii) ou bem, o significado não se identifica, propriamente, com a entidade nomeada pela expressão, mas se situa num domínio intermediário entre a expressão e aquilo que ela nomeia; por exemplo, o significado de “o mais brilhante dos astros noturnos” seria, não exatamente o planeta Vênus, mas uma espécie de conexão que associa a expressão “o mais brilhante dos astros noturnos” ao planeta Vênus; e aqui estamos dentro de uma teoria referencial de três níveis.

Duas grandes dificuldades emergem numa teoria referencial de dois níveis, ou teoria referencial mais ingênua (na terminologia de Alston) ou teoria referencial stricto sensu, quais sejam: (i) o caso de expressões distintas – por exemplo, “o mais brilhante dos astros noturnos” e “o segundo planeta do sistema solar” – que, se bem nomeiem a mesma entidade, possuem significados diferentes; (ii) o caso de expressões – como “eu”, “aqui” etc. – que possuem significado constante, porém nomeiam entidades distintas conforme o contexto em que sejam proferidas.

Quanto a esta última dificuldade, de fato, se assimilamos o significado de, digamos, “eu”, àquilo que este termo nomeia, então teremos de ser levados a admitir que tal termo possui um número indefinido de significados – o que não é o caso. Já a primeira dificuldade, é patente que “o mais brilhante dos astros noturnos” e “o segundo planeta do sistema solar” possuem significados distintos, se bem que nomeiem a mesma entidade, o planeta Vênus.


A Solução de Frege

Tais dificuldades não ocorrem numa teoria semântica de três níveis, ou teoria referencial menos ingênua, ou teoria do significado, cuja expressão clássica é a teoria do sentido e da referência de Frege.2 Esta teoria se estrutura a partir de uma investigação acerca da igualdade. “A igualdade desafia a reflexão dando origem a questões que não são muito fáceis de responder”: com estas palavras inicia Frege seu artigo “Sobre o Sentido e a Referência”. Ele constata que sentenças como


(1) O segundo planeta do sistema solar é o mais brilhante dos astros noturnos

não são meramente analíticas como é a sentença

(2) O segundo planeta do sistema solar é o segundo planeta do sistema solar.


Pelo contrário, as asserções (1) e (2) possuem valores cognitivos distintos. De fato, a descoberta de que o mais brilhante dos astros noturnos é o segundo planeta do sistema solar foi uma descoberta astronômica de grande relevância. Pois bem, numa semântica de dois níveis, dois poderiam ser os casos. Ou bem, a igualdade seria uma relação entre aquilo que as expressões nomeiam, caso este em que dificilmente encontraríamos critérios para distinguir, quanto ao valor cognitivo, as asserções (1) e (2); ou bem, a igualdade seria uma relação entre as próprias expressões, e em (1) estaríamos arbitrariamente estipulando nomes diferentes para um mesmo objeto – o que não é o que queremos.

Para dar conta do problema da igualdade, Frege irá introduzir, como mediador entre o que ele chama de “sinal” (Zeichen) e o que ele denomina de “referência” (Bedeutung),3 um terceiro elemento, a saber, o sentido (Sinn), que seria como que o “modo de apresentação” do referente.

Com a introdução deste terceiro elemento, mediando o sinal e a referência, o problema da igualdade fica assim resolvido: se bem que os sinais “o mais brilhante dos astros noturnos”, “o segundo planeta do sistema solar” e “a Estrela d’Alva” refiram-se ao mesmo objeto, o planeta Vênus, tais expressões são maneiras distintas de apresentar tal objeto.

Fica assim resolvida a questão de expressões com significados diferentes, porém nomeando uma mesma entidade. Também expressões como “eu”, “aqui” etc. não mais oferecem dificuldade: o sentido de tais expressões é constante, mas seus referta, variáveis.

Coloca-se agora o problema de qual o status ontológico do sentido. Para Frege, o sentido de uma expressão não se identifica à ideia que temos quando proferimos ou ouvimos a expressão. Para dar uma ideia clara da diferença entre sentido, ideia e referente, Frege faz uma analogia com alguém que observe a lua através de um telescópio. A própria lua pode ser comparada à referência; a imagem real projetada pela lente no interior do telescópio, Frege a compara ao sentido; finalmente, a imagem que se forma na retina do observador, compara-se à ideia.

Frege irá portanto admitir, além do domínio dos sinais e do domínio dos referta, uma espécie de Universo atemporal e inespacial – o terceiro domínio – habitado por sentidos ou, mais exatamente, por pensamentos, que são os sentidos das sentenças. “O pensamento que enunciamos no teorema de Pitágoras é intemporalmente verdadeiro, independente do fato de alguém tomá-lo como verdadeiro. [...] Ele não se torna verdadeiro a partir do momento de sua descoberta mas, como um planeta, antes mesmo de alguém o ter visto, esteve em interação com outros planetas.”4

Finalmente, em Frege, praticamente todas as expressões são, de alguma forma, nomes de entidades. Quanto a este aspecto, duas são as espécies de expressões: (i) os nomes próprios, que podem ser simples – Vênus, Kepler... – ou compostos – “o mais brilhante dos astros noturnos”, “o descobridor da forma elíptica das órbitas planetárias” – e que têm por referência objetos;5 (ii) os nomes funcionais – “a raiz quadrada de 4”, “casa” – que têm por referência conceitos, relações ou funções.


Problemas na Teoria de Frege

Uma teoria, como a de Frege, em que expressões tais como “o mais brilhante dos astros noturnos”, “o descobridor da forma elíptica das órbitas planetárias” etc. são encaradas como nomes próprios,6 conduz a terríveis dificuldades, como apontou Bertrand Russell, quando se trata de expressões que não possuem referência – por exemplo, “o atual rei do Brasil”, “a montanha de ouro”, “o maior número natural” etc.

Vejamos o tratamento que Frege dá a tais expressões. A posição de Frege é de que, numa linguagem logicamente perfeita – isto é, uma linguagem artificial destituída das imperfeições da linguagem corrente – pressupõe-se que toda expressão que funcione como nome próprio tenha uma referência. A carência de referência por parte de certos nomes próprios pode facilmente servir como apoio para o “abuso demagógico”: “‘A vontade do povo’ pode servir de exemplo a este respeito, pois é fácil estabelecer que não há uma referência universalmente aceita para esta expressão.” (S.R., pp. 22-3) Erros na história da matemática – diz ainda Frege – originaram-se da falta de referência de certas expressões. Observa o autor que mesmo a linguagem simbólica da Análise não está de todo destituída de tais imperfeições – é o caso da expressão “as séries infinitas divergentes” (S.R., p. 22). É importante que, ao menos na ciência, seja eliminada uma tal fonte de erros; e nos casos em que nenhuma entidade possa ser atribuída como referência de uma expressão – por exemplo, no caso das séries infinitas divergentes – dever-se-á pelo menos estipular uma referência convencional, o número zero (S.R., p. 22).

A atribuição de uma referência convencional a nomes próprios compostos sem referência acarreta a seguinte dificuldade: é uma verdade que


(1) Não existe a montanha de ouro.


Ora, segundo Frege, “a montanha de ouro” teria a mesma referência que “o número zero”. Portanto, podemos substituir, em (1), essa primeira expressão por esta segunda, o que dá:


(2) Não existe o número zero,

sentença esta que, ao contrário de (1), é inteiramente falsa.


Devemos portanto rejeitar a atribuição de uma referência convencional às expressões que nada nomeiam. Com isto, porém, surgem novas dificuldades.

Primeiramente, seja a sentença:


O padre Baco ali não consentia

No que Júpiter disse, conhecendo

Que esquecerão seus feitos no Oriente,

Se lá passar a Lusitana gente.7


Frege admitiria que ela, se bem que possua um sentido, não possui referência, pois, por estarmos circunscritos ao domínio da ficção, o valor de verdade da sentença não está aqui em jogo.


É possível que uma sentença como um todo tenha tão-somente sentido, mas nenhuma referência? [...] A sentença “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca” tem obviamente um sentido. Mas assim como é duvidoso que o nome “Ulisses”, que aí ocorre, tenha uma referência, é também duvidoso que a sentença inteira tenha uma.” (S.R., p. 10)


Todavia, a partir da sentença “O Sol gira ao redor da Lua”, que é obviamente falsa, podemos construir o seguinte par de sentenças, em que (1) é verdadeira, e (2), falsa:


(1) A revolução do Sol ao redor da Lua não existe;

(2) A revolução do Sol ao redor da Lua existe.


Vemo-nos ante o seguinte paradoxo:


(i) Aparentemente, a expressão “a revolução do Sol ao redor da Lua” não possui referência, posto que o Sol não gira ao redor da Lua;

(ii) Por outro lado, quando uma sentença é verdadeira ou falsa, seu sujeito possui necessariamente uma referência, pois de uma não-entidade não se pode afirmar uma verdade ou falsidade. “Aquele que não admite que o nome tenha uma referência não lhe pode afirmar nem negar um predicado.” (S.R., p. 11)


Teremos portanto que admitir que entidades tais como a revolução do Sol ao redor da Lua, o atual rei do Brasil, a montanha de ouro, etc. possuem alguma forma de existência. O próprio Russell, antes da publicação de “Da Denotação”, admitia tal solução.” “Os números, os deuses homéricos, as relações, as quimeras e os espaços quadridimensionais todos têm ser, pois se eles não fossem entidades de uma certa espécie, não poderíamos fazer proposições acerca deles.”8

Ora, a admissão de entidades tais como o atual rei do Brasil em nosso universo não elimina as dificuldades na teoria de Frege, como procuraremos agora demonstrar. De fato, seja a sentença:


(1) O atual rei do Brasil é um astronauta.


Ela é obviamente falsa, posto que, entre os astronautas, não encontramos nenhum que seja atualmente rei do Brasil.

Seja agora a negativa de (1), qual seja:


(2) O atual rei do Brasil não é um astronauta.


Esta sentença não é falsa, consoante a tábua da verdade da negação; tampouco é verdadeira, pelos mesmos motivos que (1) não é. Teremos assim de admitir um terceiro valor de verdade, que não é o verdadeiro ou o falso, violando o princípio do terço excluso.9


A Solução de Russell

A solução de Russell aos problemas acima abordados vão se constituir em sua famosa Teoria das Descrições. O ponto central desta teoria é que expressões como “o autor de Dom Casmurro10 não são, ao contrário do que classicamente se advogou, nomes próprios, como é “Machado de Assis”.11

Em outros termos, se bem que a sentença:


(1) Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro

seja uma sentença da forma sujeito-predicado – e aqui a forma lógica está em concordância com a forma gramatical – o mesmo não ocorre com:


(2) O autor de Dom Casmurro nasceu no Rio de Janeiro.

Aqui, a forma gramatical escamoteia a forma lógica da sentença, já que, embora “o autor de Dom Casmurro” seja o sujeito gramatical, não é verdadeiramente um sujeito, na acepção lógica deste termo. Admitir que o seja, isto é, admitir que seja um nome próprio, como faz Frege, acarreta todos aqueles problemas que abordamos: a introdução, no universo, de coisas tais como montanhas de ouro, a violação do princípio do terço excluso.

Como decorrência disto, as sentenças em que ocorrem descrições são submetidas por Russell à análise lógica.

Porém, antes de examinarmos de que maneira Russell procede a esta análise, dois pressupostos devem ser abordados.

Em primeiro lugar, Russell pressupõe, em suas investigações linguísticas, uma concepção diádica da linguagem. Diz ele:

Com relação ao que significamos por “significado”,12 darei algumas poucas ilustrações. Por exemplo, a palavra Sócrates [...] significa um certo homem; a palavra “mortal” significa uma certa qualidade; e a sentença “Sócrates e mortal” significa um certo fato.13

A admissão de um domínio de pensamentos atemporais e inespaciais não se coaduna com seu “sentimento da realidade” “Em obediência ao sentimento de realidade, insistiremos em que, na análise das proposições, nada de irreal deva ser admitido”.14

Em segundo lugar, a abordagem que Russell faz da linguagem vincula-se a um pressuposto epistemológico. Para uma boa compreensão de tal pressuposto, porém, devemos previamente explicitar as noções de componentes de uma sentença e conhecimento direto.

A noção de componentes de uma sentença é ambígua, em Russell. Por componentes de uma sentença podemos entender, ou bem, (i) as próprias palavras de que se compõe a sentença, ou bem, (ii) as contrapartidas extralinguísticas de palavras. Deste modo, dada uma sentença, “A ama B”, podemos considerar como sendo seus componentes (i) as palavras “A”, “ama” e “B”, ou (ii) os particulares A e B, e o conceito amar. Por ser esta segunda acepção a mais corrente em Russell, será a que adotaremos.

O problema do conhecimento direto é pela primeira vez abordado por Russell no “Da Denotação”. Neste artigo, ele contrapõe acquaintance (familiaridade) a knowledge about (conhecimento acerca). O tema é retomado em várias de suas obras posteriores, e em Misticismo e Lógica, o último capítulo é totalmente consagrado ao que, agora, denomina knowledge by acquaintance (a rigor, conhecimento por familiaridade, porém preferimos traduzir tal expressão por “conhecimento direto”) e knowledge by description (conhecimento por descrição).

O conhecimento direto revela-nos a presença imediata do objeto. Assim, temos conhecimentos direto de cores, ruídos, sabores, em suma, dos dados sensíveis. Tal espécie de conhecimento não se limita, porém, ao conhecimento de objetos particulares, mas engloba ainda os objetos universais: conceitos, como o amarelo, e relações, como a semelhança (M.L., pp. 232-6).

Já o conhecimento por descrição envolve:


(i) que saibamos existir um único objeto possuidor de determinada propriedade;

(ii) que não possuamos conhecimento direto de tal objeto (M.L., p.237).


De Kepler, por exemplo não podemos ter conhecimento direto, posto que ele não nos é contemporâneo. No entanto, nosso conhecimento não se restringe ao que nos é dado imediatamente, ou ao que pode ser evocado por nossa memória. Podemos conhecer Kepler, portanto, como autor do Mysterium Cosmographicum, ou o descobridor da forma elíptica das órbitas planetárias, etc. O conhecimento por descrição, porém, não envolve apenas objetos do passado; poderá envolver objetos futuros (o centro de massa do sistema solar no primeiro instante do século XXII), objetos de localização temporal indeterminável (o homem que proferiu, em sua vida, o maior número de palavras), objetos de existência pouco provável (o décimo milionésimo rei da Inglaterra), ou mesmo um objeto do qual tenhamos conhecimento direto, sem porém podermos afirmar ser ele o detentor da propriedade em questão: o partido que obtiver o maior número de votos nas próximas eleições parlamentares.

Toda a abordagem russelliana da linguagem pressupõe o seguinte princípio: para que uma sentença nos seja inteligível, devemos ter conhecimento direto de cada um de seus componentes. Por exemplo, para uma pessoa destituída de visão, seria ininteligível a sentença “o verde simboliza a esperança”. Russell justifica este princípio pela constatação de que “parece impossível acreditar que possamos fazer um juízo [...] sem saber o que estamos julgando”15

Vimos que, quando consideramos as descrições – à maneira de Frege – como nomes próprios de objetos, somos forçados a admitir a existência de entes tais como a montanha de ouro e, o que é grave, deparar-nos-emos com casos em que é violado o princípio do texto excluso. Por outro lado, considerar as descrições como nomes próprios viola frontalmente o princípio epistemológico acima. Realmente, se aceitamos que expressões como “o autor de Dom Casmurro” possam funcionar como sujeitos lógicos de sentenças, então o autor de Dom Casmurro será um componente de tais sentenças, o que vai de encontro ao nosso princípio epistemológico, já que deste grande escritor não podemos infelizmente ter conhecimento direto.

Assim, pelas duas razões acima abordadas – razões de cunho lógico e pressuposições de caráter epistemológico – as sentenças onde ocorrem descrições são submetidas à análise, a saber:

Toda sentença acerca de um assim-e-assim (onde o assim-e-assim é uma descrição definida) será interpretada como afirmando a satisfação ou não de uma função sentencial.

Uma função sentencial é uma expressão em que ocorrem uma ou mais variáveis, ou que se torna uma sentença assim que as variáveis sejam quantificadas (ou instanciadas). Um exemplo de função sentencial é:


(1) x é um unicórnio

onde “x” é uma variável, que pode ser assim quantificada:

(2) Existe um x, tal que x é um unicórnio;

(3) Qualquer que seja x, x é um unicórnio.


Nas sentenças (2) e (3) usaram-se, respectivamente, os quantificadores existencial e universal. A sentença (2) afirma a satisfação de (1) para ao menos um valor de x; a sentença (2) afirma a satisfação de (1) para qualquer valor de x.

Assim, as sentenças existenciais são analisadas como afirmando a satisfação de uma função sentencial para um, e somente um, valor de x. Por exemplo a sentença

O reino de Troia existe

é analisada como envolvendo duas afirmações:


(1) Existe pelo menos uma entidade que é o reino de Troia ou, em linguagem técnica, existe um x, tal que x é o reino de Troia;

(2) No máximo uma entidade é o reino de Troia ou, em linguagem técnica, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, então y = x.


Sintetizando:

Existe um x tal que: x é o reino de Troia e, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, y = x.


Sentenças em que se atribuiu uma propriedade a um assim-e-assim envolvem, além da atribuição de tal propriedade, a afirmação da existência do assim-e-assim. A sentença

O reino de Troia foi descoberto por Schliemann

é portanto analisada como envolvendo as afirmações acima, e mais uma terceira afirmação, quais sejam:


(1) Existe pelo menos uma entidade que é o reino de Troia, isto é, existe um x, tal que x é o reino de Troia;

(2) No máximo uma entidade é o reino de Troia, isto é, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, estão y = x;

(3) Tal entidade foi descoberta por Schliemann, ou, x foi descoberto por Schliemann.


Sintetizando:

Existe um x tal que: x é o reino de Troia e, qualquer que seja y, se y é o reino de Troia, então y = x, e x foi descoberto por Schliemann.


Nossa dificuldade acerca de sentenças existenciais cujo sujeito gramatical é uma descrição sem referência fica assim resolvida: a sentença


A revolução do Sol ao redor da Lua existe,


que é analisada como: existe um x tal que x é a revolução do Sol ao redor da Lua e, qualquer seja y, se y é a revolução do Sol ao redor da Lua, então y = x, não mais afirma a existência da revolução do Sol ao redor da Lua, pois de uma não-entidade nada de falso pode ser afirmado; porém afirma que a função sentencial


x é a revolução do Sol ao redor da Lua e, qualquer que seja y, se y é a revolução do Sol ao redor da Lua então y = x


é satisfeita por pelo menos um valor de x, o que é uma inverdade. O mesmo raciocínio aplica-se, mutatis mutandis, à negação da sentença acima.

Com a análise das sentenças, também o problema da violação da lei do terço excluso é superado. A sentença


O atual rei do Brasil é careca,


analisada como

Existe um x tal que: x é o atual rei do Brasil e, qualquer que seja y, se y é o atual rei do Brasil, y = x, e x é careca


será falsa em qualquer um dos casos seguintes:


1. a função proposicional “x é o atual rei do Brasil” não é satisfeita;

2. a função proposicional “se y é o atual rei do Brasil, y = x não é satisfeita;

3. a função proposicional “x é careca” não é satisfeita.


Em outras palavras, nossa sentença será falsa se:

1. não existe nenhum atual rei do Brasil; ou

2. existe mais de um atual rei do Brasil; ou

3. existe um e somente um atual rei do Brasil, porém ele não é careca.


Consequentemente, nossa sentença é falsa, não porque o atual rei do Brasil não seja careca, mas porque não existe o atual rei do Brasil.

Pois bem, consoante a análise de Russell, a negação de nossa sentenças será:

É falso que existe um x tal que: x é o atual rei do Brasil e, qualquer que seja y, se y é o atual rei do Brasil, y = x, e x é careca,

o que é evidentemente verdadeiro. Assim, não mais se viola a lei do terço excluso.


Dificuldades de uma Teoria Referencial Diádica

Várias dificuldades emergem numa teoria referencial diádica, das quais duas, sugere-nos W. Alston, chegariam a invalidar uma tal teoria: (1) o caso de expressões (como “o mais brilhante astro noturno” e “o segundo planeta do Sistema Solar”) que, se bem possuam idêntico refertum, indubitavelmente possuem significados distintos, e (2) o caso de expressões (como “eu”, “aqui”) que, se bem possuam um significado constante, possuem variados referta, conforme o contexto em que sejam enunciadas.

Se, por um lado, a Teoria das Descrições foi extremamente feliz em lidar com expressões que nada nomeiam, vejamos de que modo ela lidará com estas duas dificuldades, e verifiquemos se elas realmente invalidam a teoria de Russell.

A primeira dificuldade pode ser assim recolocada. Dadas as expressões “o mais brilhante dos astros noturnos” e “o segundo planeta do Sistema Solar”, (i) dado que elas nomeiam o mesmo objeto, possuem idêntico significado (já que, numa semântica diádica, significado = referente). Ora (ii) se elas possuem idêntico significado, posso substituir numa sentença uma pela outra, sem alterar a verdade ou a falsidade da sentença, o que nem sempre ocorre, posto que, admitindo-se que seja verdadeira a sentença

Fulano perguntou se o mais brilhante dos planetas é o segundo planeta do sistema solar,

isto não acarreta necessariamente a verdade de

Fulano perguntou se o segundo planeta do sistema solar é o segundo planeta do sistema solar.

Ora, na concepção de Russell, as descrições não são expressões que nomeiam, portanto, elas não possuem significado. As asserções (i) e (ii) repousam sobre falsas premissas.

Em outros termos, se bem que “brilhante” signifique um conceito e “sistema solar” signifique um particular, a descrição “o mais brilhante astro noturno do sistema solar” não possui significado, no sentido em que “brilhante” e “sistema solar” possuem. Por isso, ela não pode ser o sujeito lógico de uma sentença, e onde ocorre como sujeito gramatical, requer-se uma análise que faça a descrição desaparecer do sujeito. Ela será – conforme vimos – traduzida em termos de um predicado, predicado este que, mediante a quantificação, é relacionado a particulares do universo (no caso da quantificação universal, a todos tais particulares; no caso da quantificação existencial, a pelo menos um particular). Daí a introdução de funções sentenciais em nossa análise.16

Quanto à segunda dificuldade, a saber, o caso de palavras como “eu”, “aqui” que, se bem possuam um significado único, nomeiam entidades as mais diferentes, conforme o contexto em que são proferidas, devemos observar o seguinte. Nas obras até aqui mencionadas, escritas entre 1905 (“Da Denotação”) e 1919 (Introdução à Filosofia Matemática e “A Filosofia do Atomismo Lógico”), tais palavras são consideradas como nomes próprios, sem que Russell se aperceba dos problemas que tal colocação acarreta. O problema só é realmente desenvolvido por Russell a partir do Inquiry into Meaning and Truth, escrito em 1945. Nesta época, porém, a teoria referencial diádica havia sido abandonada por Russell em favor de uma teoria condutista (behaviorista), por não explicar, segundo ele, o que vem a ser o significado. Em Meu Pensamento Filosófico,17 – escreve ele: “Foi em 1918 [...] que primeiro me interessei na definição de “significado”, e na relação da linguagem com os fatos. Até então eu havia encarado a linguagem como “transparente”, e nunca havia examinado em que consiste sua relação com o mundo não-linguístico.

Na última parte do trabalho, faremos um levantamento de como Russell discute – a partir do Inquiry into Meaning and Truth – a questão de tais palavras, limitando-nos porém ao que interessa estritamente a uma teoria da referência.


Os Particulares Egocêntricos

A questão do significado de palavras como “isto”, “eu”, “aqui”, “agora” – que Russell denomina particulares egocêntricos – só vem a ser colocada em An Inquiry into Meaning and Truth18 e, posteriormente, em O Conhecimento Humano.19

Em O Conhecimento Humano, após definir “particulares egocêntricos” como “as palavras cujo significado varia conforme o locutor e sua posição no tempo e no espaço”, Russell reconhece que “entretanto, há obviamente algum sentido em que tais palavras possuem um significado constante”.

No Inquiry, após observar que “todas as palavras egocêntricas podem ser definidas em termos de ‘isto’”, diz ele: “A palavra ‘isto’ é uma palavra que, em algum sentido, tem um significado constante” (p.109).

Ainda no Inquiry, duas hipóteses são levantadas: (i) ou bem, “isto” é um nome próprio, ou bem, (ii) é uma descrição disfarçada.20

Em obras anteriores ao Inquiry, palavras como “isto” eram consideradas como nomes próprios. Por exemplo, em Misticismo e Lógica, Russell chega a afirmar que “só há duas palavras que são a rigor nomes próprios de particulares, a saber, ‘eu’ e ‘isto’ (p.246).

No Inquiry, porém, Russell reconhece que, se queremos que “isto” tenha um significado constante – e em Russell o significado de um termo identifica-se com aquilo que ele designa –, então não poderá ser tratado como um nome próprio.

Poder-se-á alegar que tampouco palavras como “João” possuem um significado constante; de fato, esta palavra nomeia grande número de pessoas. Entretanto, a relação de “João” com estas pessoas é diferente da relação dos particulares egocêntricos com os objetos por estes nomeados. “João” nomeia diferentes pessoas, porém de maneira constante. Uma pessoa que tenha sido batizada de “João” será assim chamada por toda a sua vida. Já um particular egocêntrico como, por exemplo, “você”, também pode nomear um número indefinido de pessoas, porém apenas enquanto esta palavra esteja sendo empregada. Ao dirigir-me a João, posso chamá-lo de “você”, porém assim que cesso de empregar esta palavra, João não continua chamando-se “você”.

O que se pode concluir é que uma palavra como “João” possui significado constante, porém ambíguo; já um particular egocêntrico como “isto” ou “você”, se tratado como nome próprio, não possui nenhum significado constante. A hipótese (i) deve ser descartada.

Examinemos agora a segunda hipótese. Em obras anteriores ao Inquiry, Russell já havia observado que, por exemplo, quando usamos a palavra “Sócrates”, não se trata de um nome próprio, posto que não temos conhecimento direto deste filósofo. “Quando usamos a palavra ‘Sócrates’, estamos na verdade usando uma descrição.”21 O termo “Sócrates” seria, portanto, uma abreviação de uma descrição tida em mente pelo seu usuário ou ouvinte, por exemplo, “o mestre de Platão”, ou “o filósofo que bebeu a cicuta”, ou ainda “a pessoa que os lógicos afirmam ser mortal”. 22

Do mesmo modo, o termo “Deus” seria uma descrição abreviada de “o mais perfeito dos seres”.23

Não é implausível pensar que, quando se usa um particular egocêntrico, trata-se de uma descrição abreviada, disfarçada. No Inquiry, Russell sugere que “isto” seja uma abreviação da descrição “o objeto da atenção”, mas mostra a seguir que tal não é o caso, posto que esta descrição, se bem que, por sua forma, seja uma descrição definida, é ambígua, porque descreve todo e qualquer objeto que alguma vez tenha sido objeto de atenção – do mesmo modo que “o habitante de Londres” descreve toda e qualquer pessoa que habite, ou tenha alguma vez habitado, Londres.

Em qualquer tentativa de contornar esta ambiguidade, ou caímos em circularidade, ou novos particulares egocêntricos são introduzidos no definiens e o problema se desloca para ele. Se defino “isto” como “o objeto deste ato de atenção” (admitindo-se que “isto” e “este” tenham o mesmo significado), recaio no primeiro caso. Se o defino como “o objeto de meu ato de atenção agora”, recaio no segundo.

A solução que Russell dá, no Inquiry, a este problema envolve considerações de cunho condutista, fugindo portanto do escopo de uma Teoria Referencial.

Em O Conhecimento Humano, o problema é colocado em termos de definição ostensiva. “Definição ostensiva” é definida como “qualquer processo pelo qual uma pessoa aprende a entender uma palavra por meios outros que pelo uso de outras palavras”. O exemplo típico de definição ostensiva é a aprendizagem da língua quando se é criança.

Dentre os particulares egocêntricos, Russell tomará “isto” como fundamental – deixando claro que a escolha é arbitrária – e dirá que qualquer outro particular egocêntrico poderá ser definido em termos de “isto”. Por exemplo, “eu” será definido como “a pessoa que presencia a isto”, e assim por diante. Russell procurará então dar uma definição ostensiva de “isto”, a saber: “‘isto’ denota qualquer coisa que, no momento em que a palavra é usada, ocupa o centro de atenção.”

Na verdade, não se trata de uma definição ostensiva, já que envolve o uso de palavras, mas uma explicação de como é possível a aprendizagem, por definição ostensiva, do termo “isto”.

Se de fato “isto” pode ser ostensivamente definido, então de alguma forma a Teoria Referencial estará salva. Que palavras como “cavalo”, “Corcovado”, “amarelo” são ostensivamente definíveis está fora de qualquer dúvida. Se o mesmo ocorre com “isto”, eis um problema que diz respeito à Psicologia da Aprendizagem.

NOTAS:

1 W. Alston, Filosofia da Linguagem, Zahar, p. 12.

2 G. Frege, “Sobre o Sentido e a Referência”, trad. bras. em Littera, 5 (1972), pp. 102-118. Daqui em diante, faremos menção a este artigo pela sigla S.R. Publicado pela primeira vez sob o título “Über Sinn und Bedeutung” em Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, NF, 100 (1892) pp.25-50.

3 O termo fregeano “Bedeutung é difícil de traduzir. Literalmente, tal termo significa “significado”, porém, na acepção técnica em que Freire o emprega, não deve ser entendido como tal, já que o que correntemente se entende por “significado” identifica-se, na teoria de Frege, muito mais com “Sinn” (sentido), e não com “Bedeutung”. Por isso, o Prof. Paulo Alcoforado, em sua tradução do artigo de Frege, preferiu seguir a solução de P. Geach e M. Black (orgs.), Translations from the Philosophical Writings of G. Frege, Oxford, 1952, que traduzem tal termo por reference (referência).

4 G. Frege, “O Pensamento, uma análise lógica”.

5 Quanto às sentenças, Frege as considera como nomes próprios, quer do objeto o Verdadeiro, quer do objeto o Falso. Ver “Sobre o Sentido e a Referência”.

6 Frege denomina tais expressões “nomes próprios compostos”.

7 Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto I, 30.

8 Bertrand Russell, The Principles of Mathematics, p. 449.

9 Ou princípio do terceiro excluído, segundo o qual, se uma sentença não é verdadeira, sua negação o será, não existindo uma terceira alternativa.

10 Tais expressões – que Frege denomina “nomes próprios compostos” – são chamadas por Russell de descrições definidas. Por uma descrição definida, entende Russell uma frase da forma “o assim-e-assim” (the so-and-so). Em “A Filosofia do Atomismo Lógico” (em Os Pensadores, volume. XLII, Editora Abril. p. 111), Russell dá como exemplos de descrições definidas: “o homem com a máscara de ferro”, “a última pessoa que entrou nesta sala”, “o único inglês que ocupou a sé papal”, “o número de habitantes de Londres”, “a soma de 43 e 34”, e chama a atenção para o fato de que o que faz com que uma expressão seja uma descrição definida é unicamente sua forma, independentemente de se realmente existe um objeto definido descrito.

11 A rigor, “Machado de Assis” é uma descrição abreviada. Porém, para fins de exposição, a trataremos como nome próprio, procedimento este que o próprio Russell por vezes adota. O problema das descrições abreviadas ou descrições disfarçadas será retomado no segmento final deste trabalho, quando tratarmos dos egocêntricos particulares.

12 Em “Da Denotação” (em Os Pensadores, volume. XLII), nos trechos em que discute a teoria de Frege, Russell usa “significado” (meaning) também como tradução do termo fregeano “Sinn” (sentido).

13 “A Filosofia do Atomismo Lógico”, p. 66.

14 Bertrand Russell, Introdução à Filosofia Matemática, Zahar, p. 163.

15 Misticismo e Lógica, p. 241.

16 Ver M.S. Gram, “Ontology and the Theory of Descriptions”, em E. D. Klemke (org.), Essays on Bertrand Russell, Illinois, p. 130.

17 Companhia Editora Nacional, 1960 – original britânico de 1959.

18 Allen & Unwin, 1945. Não há tradução em língua portuguesa desta obra. Daqui em diante, mencionaremos esta obra como Inquiry.

19 O original inglês é de 1948. A tradução brasileira foi editada pela Cia. Ed. Nacional em 1959.

20 Na verdade, são três hipóteses; porém, no contexto deste trabalho, apenas as duas primeiras são interessantes.

21 “A Filosofia do Atomismo Lógico”, p. 78.

22 Ver A. J. Ayer, As ideias de Bertrand Russell, Cultrix, 1974, p. 58.

23 “Da Denotação”, p. 19. 

TRÊS CABECINHAS, conto de SCHOLEM ALEIHEM

 


 O escritor judeu Scholem Rabinovitch, mais conhecido pelo nom de plume Scholem Aleichem, nasceu na Ucrânia e se tornou um escritor popular entre as comunidades judaicas da Europa Oriental falantes do dialeto ídiche, antes de emigrar para os Estados Unidos, destino de milhões de judeus daquela região fugindo da pobreza, preconceito e perseguição. Ele é um dos três grandes escritores clássicos da língua iídiche, junto com Peretz  e Mêndele.

 Seu projeto era escrever para o grande público de judeus simples, na maioria pobres, habitantes do stetl (vilarejo) do leste europeu no final do século XIX e início do século XX. Para isso, valeu-se da realidade quotidiana do stetl, de seus tipos característicos – o rabino, o chantre, o marido suando para prover o pão de cada dia, as crianças irrequietas presas àquele mundinho limitado, a mulher nervosa com a sobrecarga das tarefas domésticas, o caixeiro viajante, Tevye, o leiteiro (ou Teive, ou ainda Tobias, personagem celebrizado no já citado O Violinista no Telhado), o ingênuo e trapalhão Menahem-Mendl (ou Menahem-Mêndel) de Yehupetz, que tenta enriquecer metendo-se em todo tipo de negócio, mas sem êxito, etc.

 Um falante do português poderá começar a se familiarizar com a literatura de Scholem Aleichem através do livro A Paz Seja Convosco, coletânea de contos muito bem traduzidos que integra a Coleção Judaica, o primeiro grande projeto editorial da Editora Perspectiva, organizada por J. Guinsburg e publicada originalmente em 1966. Embora esgotado no site da editora, o livro está à venda na Estante Virtual. Outras obras do autor traduzidas para o vernáculo: são Stempenyu: um romance judaico e Tévye, o leiteiro. Da coletânea de Guinsburg selecionei o conto Três Cabecinhas abaixo. Leia mais sobre Scholem Aleihem no meu artigo UM EXPOENTE DA LITERATURA ÍDICHE: SCHOLEM RABINOVITCH, MAIS CONHECIDOCOMO SHOLEM ALEICHEM.


Se a pena do escritor fosse um pincel de pintor, ou pelo menos um aparelho fotográfico, eu lhes ofereceria, amigos, como presente de Schavuot, um quadro, um grupo raro: três tenras, bonitas e encantadoras cabecinhas de três pobres, descalças e esfarrapadas crianças judias. As três cabecinhas são morenas, de cabelinhos crespos e olhinhos graúdos, ardentes, luminosos, que fitam a gente cheios de espanto, como que perguntando ao mundo: "Por quê?" E fica-se olhando para elas, tomado de admiração, e a gente sente-se culpada perante elas, como se houvesse cometido um pecado, como se tivesse realmente culpa de tê-las criado – criado mais três seres supérfluos neste mundo! 

As três lindas cabecinhas pertencem a Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke, dois irmãos e uma irmāzinha menor. Abramtchik e Moiseitchik, foi o pai, Peissi, o cartoneiro, quem lhes esticou assim o nome à moda russa. E se não tivesse vergonha da mulher, e não fosse tamanho pobretão, modificaria também o seu próprio nome, e de Peissi, o encadernador, viraria "Petia, perepliotchik". Mas, como sente certo receio de sua mulher, Pessi, e como, de vós não seja dito!, é um grande pobretão, ficou por ora com o velho nome de Peissi, o encadernador, até que um dia cheguem os bons tempos, aqueles tempos felizes quando tudo há de mudar, como diz August Bebel, Karl Marx, e como diz toda a gente boa e inteligente. Então... oh! então tudo será diferente... Mas, enquanto não chegam tais tempos felizes, é preciso permanecer de pé desde o amanhecer até bem tarde da noite, cortando papelão e colando caixas, invólucros... E o cartoneiro Peissi passa de pé o dia inteiro, corta papelão, cola caixas e cantarola neste ínterim velhas e novas cançonetas judias e não-judias, na maioria triste-alegres, com refrões triste-alegres.

Se ao menos você parasse de cantar essas cantigas de goi– ralha a mulher. – Onde se viu uma pessoa apaixonar-se desse jeito pelos goimDesde que viemos para a cidade grande, virou goi de uma vez!  

Os três Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke nasceram e cresceram no mesmo canto, entre a parede e o fogão. Os três veem todos os dias à sua frente sempre o mesmo: o pai alegre, que corta papelão, cola caixas e trauteia cantigas; e a mãe sempre preocupada, acabada, que cozinha, assa, varre, limpa e nunca consegue dar conta do serviço. E ambos vivem eternamente atarefados, a mãe com o fogão, o pai com as caixas de papelão. Para que tanta caixa? Quem é que precisa de tantas caixas? Será que o mundo inteiro está cheio de caixas? Assim pensam as três lindas cabecinhas e não enxergam a hora em que o pai apronte muitas, muitas caixas. Então êle as levará na cabeça e nos braços para o mercado, umas mil caixas, e voltará para casa sem as caixas, mas com dinheiro para a mãe, e com pãezinhos, rosquinhas e doces para as crianças... Ah! que pai bom é o deles, um homem de ouro! A mãe também é boa, mas é brava: apanha-se dela uma palmada, um safanão, um puxão de orelha. Ela não gosta de desordem em casa. Não quer que as crianças brinquem de "papai-mamãe", que Abramtchik recorte as aparas de papelão, que Moiseitchik furte cola do pai, que Dvoirke faça bolinhos de lama... A mãe deseja que as crianças fiquem quietas, estáticas. A mãe não sabe, segundo parece, que as cabecinhas infantis trabalham o tempo todo, que as almas juvenis forcejam, forcejam, forcejam... Para onde? Para fora! Para a luz! Para a janela! Para a janela!

Ao todo uma só janela. Um pedacinho de janela. E as três cabecinhas lutam por essa única janelinha. E o que se vê atrás dela? Um muro. Um muro alto, largo, cinzento, úmido. Sempre, eternamente úmido. Até mesmo no verão! Será que o sol aparece aqui? É claro que o sol aparece às vezes por aqui. Quer dizer, não é bem o sol mesmo, mas um reflexo do sol. E então é uma festa. As três lindas cabecinhas apoiam-se no pedaço de janela, olham para cima, o mais que podem, e veem uma longa faixa, estreita e azul, como uma comprida fita azul.

– Oh! estão vendo, crianças? Isto é céu.

Assim diz Abramtchik. Abramtchik sabe. Abramtchik frequenta a escola. Já conhece o alfabeto. O heder, na verdade, não fica muito longe, a casa adiante, isto é, a porta pegada. Ah! que histórias maravilhosas Abramtchik traz da escola! Abramtchik jura que viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, uma chaminé, altíssima, com fumaça subindo da chaminé... Abramtchik conta que ele viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, uma máquina que funciona sem mãos. Abramtchik conta que ele viu com seus próprios olhos, que possam assim ver tudo o que é bom, um carro que corre sozinho, sem cavalos. E muitos outros milagres Abramtchik conta da escola. E ele jura, como sua mãe costuma jurar: "Que assim possa ver tudo o que é bom!"... Moiseitchik e Dvoirke o escutam, suspiram e o invejam, porque ele sabe tudo, tudo!

Por exemplo, Abramtchik sabe que uma árvore cresce. É verdade que ele, como todos os outros, nunca viu uma árvore crescendo. Na sua rua não existem árvores. Não existem. Mas ele sabe (ouviu na escola) que na árvore crescem frutas, e é por isso que se recita, sobre uma fruta, a oração de graças ao "Criador das árvores de frutas". Abramtchik sabe (que é que ele não sabe!) que a batata, ou, por exemplo, os pepinos, ou a cebola ou o alho crescem na terra, e é por isso que ao comê-los a gente recita uma oração de graças ao "Criador dos frutos da terra". Abramtchik sabe tudo! Só não sabe onde e como tudo isso cresce, porque ele, como os outros, nunca viu uma árvore viva, porque na sua rua não há campo, nem jardim, nem árvores, nem sequer uma graminha  não há nada! Nada! Na sua rua existem muros enormes, paredes cinzentas, altas chaminés, das quais não para de subir fumaça, e uma porção de janelinhas em cada uma das enormes paredes, milhares, milhares de janelinhas, e máquinas que funcionam sem mãos, e carros que andam sem cavalos e nada mais! Nada!

Mesmo um passarinho é raro ver aqui. Às vezes um pardal transviado aparece por ali, cinzento como o muro cinzento, dá uma bicada ou duas nas pedras cinzentas e levanta voo... Quanto a aves maiores, veem às vezes, no sábado, um quarto de galinha, com uma perninha pálida e esticada... Quantas pernas tem uma ave? Quatro, naturalmente! Como um cavalo! Assim sentencia Abramtchik, o mais velho, e Abramtchik sabe de tudo!... De vez em quando, a mãe traz da feira uma cabecinha de galinha, de olhos arregalados, revestidos de uma película esbranquiçada. "Está morta" diz o mais velho. Abramtchik, e as três cabecinhas se fitam com seus grandes olhos negros e suspiram. Nascidos e criados na cidade grande, no grande muro, no grande aperto, pobreza e miséria, as três cabecinhas jamais tiveram oportunidade de ver à sua frente vivo, nem um pássaro, nem um bicho, nem um animal doméstico, além do gato. Um gato eles têm, um gato de verdade vivo, um gato cinzento como o grande muro cinzento e úmido. Esse gato é a sua maior alegria. Com esse gato brincam horas a fio, amarram-lhe um lenço na cabeça, chamam-no de "comadre", e riem às gargalhadas, riem sem parar! Mas, se a mãe os apanha, cada um leva o seu quinhão um recebe uma palmada, outro um safanão, o terceiro um puxão de orelha. As crianças se refugiam no seu cantinho, atrás do fogão. O mais velho, Abramtchik, conta alguma coisa, e os menores, Moiseitchik e Dvoirke, escutam. Fitam o irmão mais velho com grandes olhos e escutam. Abramtchik diz que a mamãe tem razão; Abramtchik diz que não se deve brincar com um gato, porque o gato é um animal impuro e um demônio. Tudo Abramtchik sabe, tudo! Será que existe alguma coisa no mundo que Abramtchik não saiba?

Abramtchik sabe tudo. Abramtchik sabe que existe uma terra, uma terra muito, muito distante, que se chama América. Lá, naquela América, eles têm muitos parentes e conhecidos. Lá, naquela América, os judeus, benza-os Deus, têm uma vida alegre e boa. Para lá, para aquela América, eles irão, se Deus quiser, no ano que vem, assim que receberem de lá as passagens marítimas. Sem passagem não se pode ir para a América, porque há um mar e, no mar, ventos tempestuosos e ondas que é um pavor... Tudo o Abramtchik sabe!

Tudo! Até mesmo o que acontece no outro mundo. Éle sabe, por exemplo, que no outro mundo existe o Paraíso... para judeus, naturalmente. E no Paraíso crescem árvores, muitas, com os frutos mais lindos. Lá correm rios de azeite. Brilhantes e diamantes rolam pelas ruas. É só abaixar-se e pegá-los e entupir os bolsos. E judeus virtuosos passam lá dia e noite, estudando e deliciando-se com a Presença Divina.

Assim lhes fala Abramtchik. E os olhinhos de Moiseitchik e Dvoirke fulguram, e êles invejam o irmão mais velho, que sabe tudo. Tudo êle sabe! Até o que acontece no céu. Abramtchik jura que duas vezes por ano: na noite de Hoschana Rabá e na noite de Pentecostes, o céu se parte. É verdade que ele mesmo nunca viu o céu se partindo, porque lá onde moram não há céu. Mas os seus companheiros de escola viram. Eles juram que viram com os próprios olhos, possam assim ver tudo o que é bom. E não iriam jurar por uma mentira. Não se pode jurar por uma mentira. É pena que na sua rua não exista céu. Existe apenas uma estreita faixa azul, como uma longa fita azul. O que se pode ver num pedacinho de céu tão pequeno, além de duas ou três estrelinhas e um pálido clarão da lua?... E para convencer o irmãozinho menor, Moiseitchik, e a irmãzinha Dvoirke, de que o céu de fato se parte, Abramtchik corre para a mãe e começa a puxá-la pela saia: 

– Mamãe, não é verdade que hoje, véspera de Schavuot, o céu vai partir-se?

– Sua cabeça é que eu vou partir!

Mal sucedido junto à mãe, Abramtchik espera pela volta do pai. O pai foi ao mercado, com todo um tesouro de caixas.

– Como é, crianças, vamos ver quem adivinha o que o pai vai nos trazer do mercado hoje?  pergunta Abramtchik, e as crianças tentam, adivinhar o que o pai vai lhes trazer de presente. Contam pelos dedos tudo o que um olho humano é capaz de distinguir e o que o coração humano pode almejar: pãezinhos doces, e rosquinhas, e confeitos mas ninguém conseguiu acertar. E vocês, leitores, receio que tampouco o conseguirão. O cartoneiro Peissi desta vez não trouxe do mercado nem pãezinhos, nem rosquinhas, nem mesmo doces. Ele trouxe capim, sim, um feixe de capim, um capim estranho, comprido, verde, cheiroso.

E as três lindas cabecinhas, Abramtchik, Moiseitchik e Dvoirke, rodearam o pai.

– Papai, o que é isso, isso aqui?

– Isso é verdura.

– O que quer dizer isso, verdura?

– Verdura para a festa. Na festa de Pentecostes os judeus precisam ter verdura em casa!

– E onde é que se arranja isso, pai?

– Onde se arranja? Hum... no mercado... compra-se no mercado...

Assim responde o pai, espalhando o capim verde e cheiroso pelo aposento recém-varrido. Ele está todo contente com êsse verdor e com o cheiro gostoso, e diz para a mamãe, alegremen-te, como é seu costume!

– Pessi, boas festas para você!

– Parabéns! Como se me faltasse lixo! Esses bastardozinhos seus vão ter o que sujar!  responde a mãe, em tom aborrecido, como sempre, e, como sempre, mimoseia as crianças.. safanão para um, puxão de orelha para outro, palmada para a terceira. Que mãe esquisita, a deles! Nunca está satisfeita, sempre carrancuda, sempre preocupada, exatamente o oposto do pai!

E as três lindas cabecinhas olham para a mãe, olham para o pai, olham uma para a outra. E quando pai e mãe viram as costas, todas as três no chão, esfregam o rosto no capim cheiroso, beijam o capim cheiroso que se chama "verdura", e que os judeus precisam ter para a festa, e que se compra no mercado...

Tudo se pode conseguir no mercado, até verdura. E tudo o pai lhes compra. De tudo os judeus precisam e tudo os judeus têm. Até verdura! Até verdura!...

O MALHO E A CARGA TRIBUTÁRIA

Nada mais atual que esta charge de O MALHO de 21 de abril de 1906 criticando a carga tributária descomunal.


LEGENDA (observe a palavra FISCO no cão):

Zé Povo: Raios! urubus! cães! tudo, tudo em cima de mim, que nem me deixam tomar fôlego! Com raios de diabos, que se o mártir Tiradentes adivinhasse, não se teria deixado enforcar por uma república que dá comigo em pantanas! Arre, que é demais!
O burro (comovido): Consola-te comigo, Zé! Também eu arrebento ao peso desta carga, desde que me conheço. Foi, é e será sempre assim! Que se lhe há de fazer? A nossa sorte é esta...

DO AULETE:
Dar (com algo) em pantana(s)
1 Lus. Fig. Perder, dissipar (algo): Achavam que logo daria com a herança em pantana.