segunda-feira, abril 14, 2025

Ossos do futuro

     Sentia-se preso. Preso a um lugar, preso a uma certa maneira de assistir à passagem do tempo, sentia-se preso ao corpo que sempre lhe servira de morada. Aquela sensação começava a deixá-lo desconfortável consigo próprio, coisa que havia muito tempo o não apoquentava. Talvez uma viagem pudesse atenuar tão desconfortável sensação. Mas também não lhe parecia que isso pudesse resolver o problema (se é que tudo aquilo poderia ser considerado um problema).

     O que fazer, então? Inventar trabalhos estranhos, tarefas impossíveis que pudessem ocupar-lhe os pensamentos? Deitar-se no chão de barriga para cima a olhar o tecto? Ler os livros que tinha na prateleira e que ainda não lera? Pensando bem podia engendrar diversas actividades capazes de atenuar aquela dor que continuava a não conseguir localizar. Mas também aquelas ideias pareciam vir engaioladas. Duvidou que pudesse escapar por essas vias.

    Foi então que sentiu aquela friagem subir-lhe corpo acima até se lhe gelar por completo o interior do crânio, como se tivesse chegado um inverno desconhecido que se instalou dentro dele. Gelo, neve e uma tristeza infinita.

sexta-feira, abril 11, 2025

Da finitude

     Não é aconselhável, não se pode esperar que um adolescente páre ou tenha tempo para contemplar as árvores. Olhando em volta constato que as pessoas que frequentam a calçada sobre a qual desloco os meus passos estão envelhecidas. Todas elas, Reconheço um ou outro antigo jovem lá por detrás das rugas ou debaixo da curvatura da coluna. Andamos com a canga do tempo às costas.

    Vivemos num espaço onde a memória se confunde com o futuro. Isso não é muito saudável. Na verdade nada é saudável pois todo o momento que vivemos nos conduz em direcção à morte certa. Umas coisas aceleram, outras retardam o momento fatal, no finzinho não haverá saúde que nos valha. Ou já se terá perdido algures ao longo da estrada ou algum acontecimento súbito a faz secar de um momento para o outro. Finito. 

segunda-feira, abril 07, 2025

Para chegar à alma

     A religião é útil para a organização de sistemas sociais embrionários, enquanto os elementos que formam um grupo não têm ainda consciência do papel que poderão vir a desempenhar no todo sem imaginarem coisas um bocado difíceis de aceitar (matar, roubar, cobiçar a mulher alheia, etc). Nessas circunstâncias é razoável ameaçar toda a gente com a figura de um pai que vive para lá das nuvens ou no topo daquela montanha inacessível que virá distribuir desgraças caso não sejam cumpridas as regras impostas pela religião. É como fazemos com as crianças quando elas não se portam de acordo com os nossos desejos, ameaçamos com o papão. Deus é o papão dos animais humanos mais ou menos adultos.

    Para sociedades formadas por elementos com dois dedos de testa, a filosofia facilmente substitui a religião. Penso que podemos encontrar a felicidade para lá dos altares e das estantes de livros mas reconheço que precisamos de algo que nos possa iluminar nas horas mais escuras. Pessoalmente não estou a ver que a religião sirva para atenuar a dor (quando os meus pais faleceram não me serviu de grande coisa, na verdade não me serviu de nada) mas acredito que possa confortar quem acredite piamente em certas coisas que, aos meus ouvidos, soam a treta absoluta. Não sei se invejo essas pessoas.

    Quanto à filosofia... confesso que não pensei muito no assunto, sou mais adepto da arte como via para fortalecimento e alívio do espírito. Bem vistas as coisas talvez o sistema seja encontrar complementaridade entre as diferentes vias: religião, filosofia, arte e mais que venha.

    O cérebro é, de facto, uma máquina complicada. É uma máquina capaz de produzir uma alma que lhe faça companhia.

quarta-feira, abril 02, 2025

Que somos nós?

    Se "pensar é acrescentar frases a uma frase inicial, multiplicar as frases em volta de uma primeira sentença" (Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, pág 065), o que dizer do ser vivo? O que dizer de ti, que lês estas palavras? 

    O que somos nós senão vidas que andam à volta de si próprias? O que somos senão múltiplos de algo há muito esquecido? O que seremos senão seres unicelulares que se complicaram para além da capacidade de uma imaginação alucinada?                                              

terça-feira, abril 01, 2025

Árvore Imunalógica (reflexão opaca)

     

    Em princípio Deus terá sido inventado por algo semelhante a um Ser Humano apesar de, na maioria das cosmogonias religiosas entretanto estabilizadas, a coisa tenha acontecido ao contrário. Na tentativa de clarificar esta complexa questão criou-se a adivinha: “o que apareceu primeiro?”, na qual substituímos Deus e o Ser Humano, pelo Ovo e pela Galinha. Até hoje as respostas mais conclusivas e definitivas, que postulam ter sido Deus o primeiro a aparecer e que depois vai criando tudo o que mexe e tudo o que está parado, são teorias impostas à força da martelada ou plantadas em territórios fertilizados pela mais profunda ignorância. 

    A existência de Deus parece implicar obrigatoriamente que se tenha medo de alguma coisa, reverência absoluta e necessidade de protecção perante as forças cósmicas. Trata-se de uma protecção do tipo mafioso: “se queres estar seguro pagas uma mensalidade, se não pagas ainda te acontece alguma desgraça”; esta ideia resume, de algum modo, o essencial das chamadas “religiões do livro”. Normalmente a alma é a moeda de troca.

    (continua)

sábado, março 29, 2025

O fantasma

     Já ali não havia dia nem havia noite. Apenas um estado de paroxismo permanente; um espanto, uma estupidificação, uma ausência de sentido no fluir do tempo. A cidade; ruído infinito, movimento perpétuo.

    Ali estava ele. Cambaleante.

    As palavras salivavam-lhe nos lábios e ele a cuspi-las. As palavras saíam-lhe da boca acompanhadas de grunhidos, roncos animalescos, sons que só naquela cabeça faziam algum sentido. Aquele ser vivo não iria morrer tão depressa apesar de a vida não lhe fazer grande falta. 

    Transmigrava suavemente para a condição de fantasma.

terça-feira, março 25, 2025

Árvore Imunalógica

    

Árvore Imunalógica (inacabada)
acrílico sobre papel de aguarela em folhas de tamanho A3
7X42cm de altura

    A lua, uma aranha, hipopótamo, um nome, uma ideia, homem, mulher, espírito, o sol, luz, montanha, nuvem, jaguar, o livro, floresta, rio, pássaro, fantasma, nota de banco, elefante, demónio, fogo, coisas pequenas, infinito, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas das formas de Deus. Desenhar a árvore genealógica de Deus, entidade híbrida por excelência, é tarefa deveras ingrata. Ao reflectir sobre o assunto encontrei uma árvore, sim, mas imune a qualquer tipo de lógica, encontrei uma “árvore imunalógica”.