31/03/2009

O reencontro


Entre a insónia e o despertar há um mundo de palavras respiráveis, à espera para se soltar.
Do passado à insónia, marcas foram sulcadas, rasgadas, aprisionadas. Marcos de pedra e cal, espetados, amarrados.
A insónia do passado traz consigo uma urgência de se reabilitar.
Entre a insónia e o despertar, um sono mal dormido, numa ânsia mordida, calada, dorida… parada, sofrida.

Abriu, por fim, os olhos. Viu-o. Era ele. Afinal… era ele. Era tudo tão estranho.

Olhou-a, como quem não sabe o que quer; como quem não sabe o que faz; como quem não sabe nada de nada. Era tudo tão estranho!

Ele estava ali. Ela estava ali. Frente a frente. Como num sonho, ou num feitiço, em que os dois são outros e não eles. Meses e meses de dor concentrados num momento. Meses e meses de amor prisioneiros de um olhar.
Ambos sentiram, de repente, falta de um mimo. Falta de o receber e de o dar.
José Miguel aproximou-se e tomou-lhe a mão… De olhos nos olhos e de mão na mão, todas as palavras são demais. Todos os gestos revelam as palavras não ditas.
As lágrimas acabaram por se soltar, os soluços por irromper. Ambos deram vazão à emoção que os sufocava. Nenhum dos dois conseguia falar; só o facto de estarem juntos já preenchia todo o vazio que se houvera instalado durante a longa ausência. José Miguel foi impelido a afogar o rosto no pescoço de Luísa e esta a afagar-lhe a cabeça, a apertá-lo de encontro a si. E assim permaneceram por largos minutos, até serem interrompidos. Então olharam-se ainda ébrios do que sentiam.
Como faz falta um mimo!


27/03/2009

Pássaro selvagem

Benjamim é um beija-flor, um pássaro selvagem, um pinga-amor.
Ele não sabe, mas partilha de uma maldição, comum a variadas maldições, que não o deixa parar em ramo verde. Desconfia, apenas, de algo trágico e eminente, pululando em seu redor, nos sons melodiosos de uma flauta. E essa música deixa-o receoso. Todavia, não se atreve a criar coragem para escutar com atenção a voz do vento. Desse modo, fica sem perceber bem de onde sopra o toque e o que quererá dizer essa ode.
Por um lado, uma verdade portátil borbulha no seu cérebro de pardal de telhado; por outro, uma simplicidade volúvel fervilha no seu bico carregado de néctar e pólen de flores - vitualhas imprescindíveis à sua sobrevivência.
Ainda assim, a sua natural rebeldia, aliada à desconfiança de que algo não estará bem, levam-no a tomar providências no sentido de tecer um ninho seguro, que o proteja de contratempos. Mas, apesar de tudo, continua firme na decisão de que será sempre um pássaro selvagem.


Texto do 12.º Jogo das 12 Palavras

20/03/2009

Integrada

A professora de História traz um camaleão no carro, debaixo de um chapéu de palha.
A minha turma é a preferida dela, talvez por sermos só meninas. Também, de todos os professores, ela é a nossa preferida. É muito nova, linda, e uma simpatia. Uma jóia. Usava óculos, mas começou a aparecer sem eles. E é ainda mais linda! Usa saias, com pregas e machos, todas parecidas umas com as outras. Certa vez descobrimos que não são meras saias: são saias-calção. Ainda hei-de ter uma assim...
Como somos boas alunas e bem comportadas, ela deu-nos um presente que adoramos: um conto, que nos vai lendo, aos bocadinhos, numa parte das aulas. Por isso, portamo-nos ainda melhor, na expectativa da continuação da história, que não tem nada a ver com História. É sobre uma menina que fecham em casa, um casarão, e a quem não deixam passear nem brincar com os colegas. Está a ser muito emocionante. Até já chorei. Todas temos uma enorme empatia com esta professora. E eu, que até nem era grande aluna a História, comecei a tirar muito boas notas.
Foi ela que me ajudou a integrar na escola e principalmente na turma. Notou como eu me andava a sentir e falou comigo, e depois falou com as minhas colegas. As suas palavras são de mel.
Um dia ela mostrou-nos o camaleão. Assustei-me um pouco, pois nunca tinha visto nenhum, e pensei que ele fizesse mal. Mas não. É um bichinho muito querido, que muda de cor conforme o que tiver junto a si...

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