E-Book HISTORIA DA ARTE - FRONTEIRAS PDF

Descargar como pdf o txt
Descargar como pdf o txt
Está en la página 1de 153

EDIÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE

ARTE E PROJETO GRÁFICO

Joyce Farias

NOTA DE ESCLARECIMENTO

O direito de reprodução das imagens deste livro é de inteira


responsabilidade dos autores dos textos.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

BRANDÃO, ANGELA; GUZMÁN, FERNANDO; SCHENKE, JOSEFINA (ORGS.) & FARIAS,


JOYCE (ARTE E PROJETO GRÁFICO). HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS / VÁRIOS
AUTORES. SÃO PAULO: PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE,
UNIFESP, 2019, 153 p.

ISBN: 978-85-66540-11-6

1. ARTE 2. HISTÓRIA DA ARTE I. VÁRIOS AUTORES II. TÍTULO


SUMÁRIO
JOYCE FARIAS
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO
BRASIL.......................................................................pág. 71
APRESENTAÇÃO............................................................pág. 5

1 JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO


O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA NA HISTÓRIA DA
ARTE ANTIGA NO SÉCULO XIX.......................................pag. 8
8 JUAN MANUEL MARTÍNEZ
CARTOGRAFÍA, ARTE Y PAISAJE. LA CONSTRUCCIÓN DE LOS
LÍMITES DE UNA NACIÓN............................................pág. 88

2
LUIS JAVIER CUESTA HERNANDeZ
DE ITALIA A LA NUEVA ESPAÑA Y DE MÉXICO A LA FRONTERA
NORTE DEL VIRREINATO: LAS VÍRGENES DEL POPOLO Y LOS
9 ELAINE DIAS
ARTISTAS FRANCESES NO BRASIL: AS FRONTEIRAS PARA A
RECEPÇÃO DA TRADIÇÃO CLÁSSICA E A CIRCULAÇÃO DE MO-
DELOS ARTÍSTICOS NO SÉCULO XIX............................pág. 98
DOLORES Y SU PAPEL EN LA EXPANSIÓN MISIONAL JESUITA
EN LA NUEVA ESPAÑA.................................................pág. 21

10
KARIN PHILIPPOV

3
BENEDITO CALIXTO ATRAVÉS DE SUAS PESQUISAS GEOGRÁ-
ADRIÁN CONTRERAS-GUERRERO FICO-HISTÓRICAS: RECUOS E TRANSFORMAÇÕES...................
LAS FRONTERAS LEGALES DEL ARTE EN NUEVA GRANADA: LA ................................................................................pág. 103
BÚSQUEDA DE LA ORTODOXIA EN LAS ESCULTURAS RELIGIO-
SAS............................................................................pág. 30

11
KLENCY KAKAZU DE BRITO YANG

4
NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS PINTURAS DA ESCOLA DE ARTE
JUAN RICARDO REY MÁRQUEZ DE BEURON NO MOSTEIRO DE SÃO PAULO..................pág. 110
CARTÓGRAFOS Y BOTÁNICOS DEL SIGLO XVIII NEOGRANADINO
¿DOS CARAS DE UNA MISMA MONEDA?......................pág. 39

12
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

5
O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS FRONTEIRAS NA HISTÓ-
ANGELA BRANDÃO RIA DA ARTE.............................................................pág. 120
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA: CATÁSTROFES E
RECONSTRUÇÕES........................................................pág. 49

13
MARIA LUIZA ZANATTA DE SOUZA

6
PIETRO MARIA BARDI ENTRE A ARTE E OS LIVROS...................
JOSEFINA SCHENKE ................................................................................pág. 134
IMÁGENES EN MADERA POLICROMADA DE LA ZONA DE “LA
FRONTERA” MAPUCHE (CHILE): EL SILENCIO DE LA HISTORIO-

14
GRAFÍA.......................................................................pág. 62 PAULO H. DUARTE-FEITOZA
O BRASIL NA ESPANHA: EXPOSIÇÕES ARTÍSTICAS COMO PRO-
CESSOS DE INTERNACIONALIZAÇÃO..........................pág. 145
APRESENTAÇÃO

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


E
stão reunidos, nesta publicação, os textos resultantes dos trabalhos apresentados du-
rante as XII Jornadas de História da Arte, entre os dias 21 e 22 de agosto de 2019,
com o tema “Fronteiras”.
As Jornadas de História da Arte vêm ocorrendo desde 2003, como encontros
científicos organizados pela Universidad Adolfo Ibañez do Chile, em parceria com outras
instituições chilenas: o Museo Histórico Nacional e o Centro de Restauración y Estudios
Artísticos. A partir de 2014, a Universidade Federal de São Paulo passou a colaborar como
co-organizadora do evento. No ano seguinte, as Jornadas de História da Arte passaram a
ocorrer também no Brasil, em São Paulo, em alternância com as edições chilenas. A partir
de então, o evento vem sendo sediado na Pinacoteca de São Paulo, em 2015 e 2017, sem-
pre com o importante apoio desta instituição museal, e também da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo, a FAPESP; e do Conselho Nacional de Aperfeiçoamento
5
de Pessoal em Nível Superior, CAPES. As Jornadas de História da Arte se consolidaram, em
mais de quinze anos desde sua primeira edição, como um dos mais importantes fóruns de
debate da América Latina, a reunir professores, pesquisadores, estudantes, curadores e ar-
tistas em torno de um tema da história da arte.
Nas duas ocasiões em que as Jornadas de História da Arte tiveram lugar no Brasil, a
CAPES possibilitou a publicação das Atas em forma de livro digital e impresso. Em 2019 não
foi diferente. Esta publicação, portanto, é uma resposta ao apoio concedido pela CAPES e
resultado do esforço conjunto das instituições que se somaram a este desafio.
As XII Jornadas lançaram a proposta aos pesquisadores para que refletissem sobre o
tema das fronteiras na arte e na história da arte. A fronteira para a história da arte, confor-
me tinha sido definida por Castelnuovo, pode ser entendida como um caminho para refle-
xão sobre o campo artístico: “fronteiras da arte”. Mas, também, “falar de fronteira significa
sublinhar a dimensão espacial da história da arte, a inscrição e a disposição de seus objetos
no espaço”. Para ele, os historiadores da arte, ainda não estavam muito habituados a tratar
das fronteiras ou a utilizar este termo. Afirmou que há momentos em que não é fácil en-
xergar fronteiras: “elas parecem inexistir no terreno estilístico ou, quando muito, parecem
ser bastante tênues.” Alguns episódios, na história da arte, segundo o autor, são capazes
de embaralhar as fronteiras e colocá-las em crise. Em suas palavras: “O espaço artístico é
um objeto fugaz, sem divisores de água fíxos nem limtes linguísticos (...). Seus limites são
extremamente complexos, tanto que carecem de toda uma série de precauções para tornar
menos equívoca a definição de fronteira”1.

1  CASTELNUOVO, Enrico. A fronteira na história da arte. In: Retrato e Sociedade na Arte Italiana. Ensaios de história
social da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 197-222.
Parece oportuno pensar hoje sobre fronteiras na história da arte do ponto de vista
de uma geografia da arte, dos territórios físicos, da representação e invenção da paisa-
gem. Porém, cabe também refletir sobre o posicionamento da história da arte diante das
fronteiras como divisões políticas, nacionais, de espaços transponíveis ou intransponíveis:
diante dos muros reais ou imaginários que bloqueiam os povos ou das linhas tênues que os
aproximam. Em outras palavras, resta perguntar como a história da arte vem apresentando
os problemas da arte no que se refere aos territórios de fluxos de populações, cenários de
migrações, corredores de pessoas, ideias e objetos. A proposta lançada foi pensar a arte e a
história da arte nesse espaço de suspensão, de tensões, limites ou fusões, que é a fronteira.
Igualmente foram evocadas as fronteiras epistemológicas da história da arte: onde a história
da arte começa e onde termina, quais os limites de nossa disciplina, quais suas interrelações
com as demais áreas do conhecimento?
O tema proposto para a XII edição, Fronteiras, ocorre num momento importante para
a América Latina, permitindo refletir sobre suas divisões, seus dilemas, seus encontros e de-
sencontros no passado e na atualidade. No entanto, o tema das fronteiras se amplia para
discussões em âmbito global, para refletir sobre migrações, fugas e territórios. Da mesma
forma, o tema das fronteiras é uma metáfora importante para a reflexão sobre os objetos da
história da arte e sobre os limites da historiografia da arte, enquanto disciplina em diálogo
com diferentes campos do conhecimento.
Os textos reunidos neste livro condensam, mantidos em seus idiomas originais, as
apresentações realizadas durante as Jornadas de 2019, bem como as discussões suscitadas
durante o encontro. Sem esconder a preferência que as Jornadas de História da Arte sempre
tiveram por trabalhos que atendam à compreensão das obras de arte, buscou-se nesta opor-
tunidade reunir investigações mais especificamente voltadas para as fronteiras, como um

6
tema amplo e aberto para diferentes abordagens sobre os limites da arte e sobre as ques-
tões artísticas como fenômenos geopolíticos: artes e nacionalismos, artes e identidades. Por
outro lado, cabia refletir sobre a arte como superação de fronteiras rigidamente constituídas,
insistimos, como estudo dos objetos, pessoas e ideias em fluxo. Do ponto de vista teórico,
também estava aberto o diálogo sobre os problemas da história da arte como disciplina,
cujas fronteiras sempre foram positivamente “invadidas” por diversos saberes.
Este livro está divido em quatorze capítulos ordenados cronologicamente, segundo
o tema, de modo aproximativo. Iniciamos com uma leitura sobre o significado do termo
“pornografia”, quando aplicado para o estudo da arte antiga. Em seguida, podemos veri-
ficar uma reflexão sobre o papel da devoção à Virgen del Popolo y los Dolores no México
- 2019

como expansão das missões jesuíticas. O terceiro e quarto textos apresentam duas diferen-
- 2019

tes abordagens sobre a arte no Vice-Reino de Nova Granada, hoje Colômbia: de um lado,
ARTE

a perspectiva da legislação canônica como ordenamento artístico e, de outro, a partir de


ARTE

desenhos de cartografia e botânica, o papel artístico dos militares e milícias como sujeitos
DADA

artísticos no século XVIII. O capítulo cinco propõe uma comparação entre o Grande Incêndio
HISTÓRIA

de Londres e o Terremoto de Lisboa como episódios de destruição e reconstrução. Os capí-


HISTÓRIA

tulos sexto e sétimo trazem duas reflexões diferentes sobre objetos artísticos resultantes de
encontros e sobreposições culturais entre a arte católica e esculturas, de um lado, entre os
DEDE

povos mapuches no Chile; de outro, estatuetas de Santo Antônio realizadas na tradição do


JORNADAS

catolicismo congolês, feitas por aqueles que foram trazidos como escravos para o Brasil do
JORNADAS

século XIX.
O texto “Cartografia, Arte e Paisagem” discute as relações entre pintura de paisagem
XII XII
e a simbologia dos mapas na constituição dos limites territoriais do Chile no século XIX. Em

HISTÓRIA
HISTÓRIADA
seguida, temos um estudo sobre os artistas franceses no Brasil do século XIX e as fronteiras
encontradas para a circulação dos modelos artísticos e para a recepção da tradição clássica.
Os capítulos dez e onze contribuem com dois aspectos diversos sobre a arte no contexto de

DAARTE:
São Paulo do século XIX e começos do XX: a pintura histórica de Benedito Calixto – por uma

ARTE:FRONTEIRAS
parte; e a arte beuronense no Mosteiro de São Paulo – por outra. No texto seguinte, temos
uma reflexão sobre as possibilidades e limites do emprego de “impressionismo” como forma

FRONTEIRAS
de tratar aspectos da pintura no Brasil de finais do oitocentos e inícios do novecentos. O ca-
pítulo treze traz um aspecto da biografia intelectual de Pietro Maria Bardi como colecionador
de livros, para além de sua atuação como criador e curador do Museu de Arte de São Paulo.
Esta publicação se encerra com um panorama crítico sobre as exposições de arte brasileira
ocorridas na Espanha, nas últimas décadas, enquanto processo de internacionalização.
A diversidade de temas, tempos e lugares que deram o colorido a este livro resultam,
certamente, das múltiplas respostas, debates e entendimentos do problema das fronteiras
para a história da arte. Agradecemos aos autores que generosamente colaboraram com
esta edição e desejamos a todos uma leitura proveitosa.

Os organizadores.
São Paulo, outubro de 2019.
7
7
1
O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA
NA HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA NO SÉCULO
XIX
JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO*

* Professor do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH – UNIFESP).
JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO

INTRODUÇÃO

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


A
s pesquisas sobre a pornografia têm crescido e se expandido nos últimos anos. Se
por um lado, o tema é tratado como uma parte dos estudos sobre a prostituição
(MICHELSON, 2006); por outro, tornou-se, também, um campo próprio de inves
tigação e expandiu suas fronteiras para além da prostituição, abrangendo, por
exemplo, o estudo da pornografia na literatura (MOULTON, 2006) e na arte, destacando-se
a relação entre arte e pornografia (MAES; LEVINSON, 2012) ou, ainda, o contraste entre
arte pornográfica e a estética da pornografia (MAES, 2013).
No que tange à arte, dois importantes estudos sobre temas envolvendo a pornogra-
fia abordaram a sua relação com a arte antiga. O primeiro é o de Walter Kendrick (1987)
sobre a constituição da noção de pornografia na cultura moderna, cuja ideia entende estar
originalmente ligada ao colecionismo moderno da arte antiga, e o segundo é o de John R.
Clarke (2013) sobre a representação sexual na cultura visual da Roma antiga; no qual, ele
defende ter a sexualidade romana uma concepção peculiar, anterior e diferente da de por-
nografia no mundo moderno.
No geral, ambos trazem valiosas contribuições para os temas que abordam. Toda-
via, há dois problemas quanto ao entendimento que têm sobre à origem da palavra por-
nografia. O primeiro, vem da afirmação de que Karl Otfried Müller, em sua obra sobre a
arte antiga, teria cunhado a palavra para o alemão, a qual entrou para o inglês a partir de
sua tradução em 1850. O segundo, reside na leitura dos vocábulos pornografia e de seu
antecedente pornógrafo no Dicionário Oxford de inglês, o qual serviu de base documental
9
para ambos; pois, não consideram, adequadamente, as informações lexicais e os problemas
de documentação envolvidos.
Com isso em mente, apresenta-se, primeiramente, o problema detectado, para, em
seguida, propor outra resposta para o surgimento do termo pornografia na história da arte
antiga no século XIX.

1. UMA ORIGEM PROBLEMÁTICA

Walter Kendrick, ao se indagar sobre as origens da noção de pornografia, entende


que a palavra apareceu pela primeira vez em inglês com a publicação de uma obra de arte
antiga traduzida do alemão em 1850:

O Dicionário de Patrimônio Americano (1975) dá uma definição única e aparentemente de-


cisiva: “Formas de comunicação escrita, gráfica ou outras destinadas a excitar o sentimento
lascivo”. A etimologia sugere que a palavra é tão antiga quanto a cultura ocidental: “Do
grego pornographos, escrito sobre prostitutas” […].
Se voltarmos algumas décadas, no entanto, descobrimos que o oposto é verdadeiro. O pro-
jeto de cinquenta anos do Dicionário Oxford de Inglês chegou à letra “P” em 1909; sua defi-
nição de “pornografia” é, estranhamente, mais complexa do que qualquer outra. O primeiro
significado, surpreende ao leitor moderno, vem de um dicionário de medicina de 1857:
“uma descrição das prostitutas ou da prostituição, como uma questão de higiene pública”.
Os leitores modernos estão familiarizados com esse tipo de escrita, mas a última coisa que
O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA NA HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA NO SÉCULO XIX

chamamos hoje é “pornografia”. A segunda definição do DOI é um pouco mais atualizada:


“Descrição da vida, maneiras, etc., de prostitutas e seus frequentadores: daí a expressão ou
sugestão de assuntos obscenos ou indecorosos na literatura ou na arte”. […].
Se recuarmos novamente, acontece algo ainda mais estranho: “pornografia” desaparece.
O Dicionário de Samuel Johnson, de 1755, salta de “porco” para “porosidade” sem nada
entre os dois, um salto muito surpreendente visto que os gregos já tinham uma palavra para
isso: pornographos. Em 1857, “pornografia” significava algo muito diferente do que significa
agora; em 1755, “pornografia” não significava absolutamente nada. A conclusão inescapá-
vel é que, em algum momento do século entre 1755 e 1857, nasceu a “pornografia”. Mas,
já devia ser antiga ao nascer, saindo da sepultura ao invés de vir a ser uma nova palavra
(KENDRICK, 1987, p. 1-2).

Estabelecido o período para o nascimento da palavra pornografia, Kendrick afirma


que foi Karl Otfried Müller quem a cunhou, visto a mesma ter sido impressa pela primeira
vez em inglês com a publicação de sua obra:

A palavra “pornografia” apareceu pela primeira vez impressa em inglês, em uma tradução
do historiador de arte alemão C. O. Müller’s Handbuch der Archäeologie der Kunst [Manual
de arqueologia da arte] (1850). No final do volume, Müller aludiu brevemente ao “grande
número de representações obscenas… às quais também a mitologia dava frequente oca-
sião”; ele nomeou os produtores de tais representações de “pornógrafos” (Pornographen).18
A fonte da cunhagem de Müller foi uma instância única no grego clássico da palavra por-
nographoi (“pintores de prostitutas”), escondida nas profundezas do Deipnosophistai (“Ban-
quete dos eruditos”), pelo compilador do século II [d. C.] Ateneu. (KENDRICK, 1987, p. 11).

10
[Nota] 18. Arte antiga e seus monumentos, ou um manual de arqueologia da arte, traduzida
por John Leicht (Londres, 1850), p. 619. [...]. Este é o exemplo mais antigo de qualquer for-
ma em ‘pornograf-’ [pornograph] listada pelo DOI (KENDRICK, 1987, p. 242, n. 18).

John R. Clarke segue este entendimento em seu estudo sobre as representações se-
xuais na cultura visual romana antiga antes do surgimento da concepção moderna de por-
nografia:

O estudo das antigas representações visuais da atividade sexual revela a modernidade do


termo “pornografia”. A pornografia não é apenas uma palavra moderna, sua gênese está
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

nas modernas práticas de colecionismo que isolam os objetos eróticos antigos de seus con-
textos, de modo a torná-los sem sentido. […]
Temos que agradecer ao erudito alemão, Karl Otfried Müller, pelo termo “pornografia”,
emprestado da palavra grega pornographos. Sabemos que o pornographos era literalmente
um “escritor sobre prostitutas”, isto é, um autor que escrevia sobre as famosas e consagra-
das prostitutas da época, chamadas pornai. Müller tomou emprestada a palavra e mudou
seu sentido, inventando a palavra alemã Pornographie, significando objetos “obscenos”. Foi
na tradução inglesa do seu livro publicado postumamente, Arte antiga e seus monumentos:
ou, um manual da arqueologia da arte, que a palavra aparece primeiro em inglês com seu
sentido moderno (Müller, 1852: 619). A ideia de Müller foi lentamente percebida, mas foi
somente em 1909 que o Dicionário Oxford de Inglês usou o termo pela primeira vez. Ali,
o primeiro significado de pornografia é “uma descrição das prostitutas ou da prostituição,
JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO

como uma questão de higiene pública”. Apenas como um segundo significado o dicionário

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


nos dá uma definição que corresponde ao nosso uso da palavra: “a expressão ou sugestão
de assuntos obscenos ou indecorosos na literatura ou na arte” (CLARKE, 2013, p. 141-142).

Há dois problemas com entendimento destes autores sobre a origem da palavra por-
nografia. O primeiro relacionado ao seu surgimento a partir da obra de Müller e o segundo
quanto à compreensão das informações lexicais do dicionário de Oxford sobre o vocábulo.

A. A obra de Karl Otfried Müller

As edições da obra de Karl Otfried Müller usadas por Kendrick e por Clarke apresen-
tam o mesmo texto traduzido por John Leicht da terceira edição alemã (MÜLLER, 1848), que
foi publicado por duas editoras britânicas diferentes. A passagem da tradução inglesa na
qual aparece a palavra pornógrafo é a seguinte: “Sobre os pornógrafos [pornographers] dos
tempos posteriores §163.4” (MÜLLER, 1850 e 1852, p. 619, §429.5).
Visando a um texto mais acurado em português, do trecho citado por eles, no qual
aparece a palavra pornógrafo, apresenta-se uma tradução direta do alemão:

Magia do amor, Tischbein II, pr. 44. Além disso, o grande número de ideias obscenas (espe-
cialmente a Veneris figurae, sobre pinturas, gemas, moedas, lasciva numismata, Marcial VIII,
78) deve ser considerado aqui, ao qual a mitologia também deu muita peculiaridade, §137,
3. Vale ressaltar que os vasos de Vulci sempre apresentam objetos obscenos no estilo mais
antigo. Sobre os Pornógrafos [Pornographen] de épocas posteriores §163, 4 [sic] (MÜLLER,
11
1848, p. 756, §429, 5).

O texto referenciado por Müller sobre os pornógrafos é o seguinte: “Como porno-


gráphoi [em grego], Polemon, em Ateneu XIII, p. 567, nomeia a Aristides (provavelmen-
te aquele da 116ª Olimpíada) junto com Nicófanes e Pausânias” (MÜLLER, 1848, p. 171,
§163.3).
Ateneu foi um escritor originário da cidade grega de Náucratis no Egito. Sua obra Dip-
nossofistas [Deipnosophistaí] deve ter sido concluída, conforme a evidência interna, no final
do século II d.C. (EDWARDS; BROWING; WILSON, 1996). A passagem de sua obra citada
por Müller é uma fala de Cinulco dirigida a Mírtilo, na qual se refere a ele como pornógrafo
por causa de seu interesse pelo tema das hetairas. A mesma pode ser traduzida como segue:

Nem estaria equivocado alguém caso te nomear pornógrafo [pornográphon] também, como
os pintores Aristides, Pausânias e mesmo Nicófanes. Deles fez menção, como bons pintores
destes temas, Polemon em seu Sobre as pinturas de Sicíone” (ATENEU, Dipnossofistas, XIII,
567B).

O texto grego usado por Müller foi o editado por Johannes Schweighäuser; o qual o
fez acompanhar de sua tradução para o latim:

Ninguém erraria em te nomear pornógrafo [pornographum], como os pintores Aristides,


Pausânias e Nicófanes; acerca dos quais fez menção Polemon em seu livro Sobre os Qua-
dros [Tabulis] que existiam em Sicíone (ATHENAEI NAUCRATITAE, Deipnosophistarum, XIII,
O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA NA HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA NO SÉCULO XIX

p. 47).

Schweighäuser preferiu, então, latinizar a palavra pornógrafo [pornographum] ao


invés de a traduzir e deve ter sido este procedimento que inspirou Müller a dar sua forma
germânica.
À luz destes dados, é plausível concluir que Müller não pode ter cunhado a palavra
pornografia uma vez nunca a ter utilizado e, consequentemente, a mesma não apareceu
primeiramente impressa em inglês com a tradução de sua obra.

B. O dicionário de Oxford

O dicionário de Oxford resultou de um grande projeto liderado por James Augustus


Henry Murray (GILLIVER, 2016), o qual o publicou, entre 1884 e 1928, com o título de Novo
dicionário de inglês. A partir de 1895, Dicionário Oxford de inglês começou a aparecer como
segundo título, e, em 1933, com a republicação completa da primeira edição, este passou
a ser o título definitivo do dicionário (MUGGLESTONE, 2009); o qual se tornou a fonte mais
importante de consulta sobre o vocabulário da língua inglesa (WILLINSKY, 1994).
Kendrick e Clarke apoiam seu entendimento sobre a palavra pornografia nas infor-
mações lexicais deste dicionário; o qual atesta duas grafias para pornógrafo e uma para
pornografia:

Pornógrafo [Pornograph], substantivo. A. No sentido 1, do francês pornographe, do grego


pornográphos; ver o seguinte.
1. = Pornógrafo [Pornographer], obsoleto [arcaico].

12
1877 The Contemporary Review, março, p. 562.
2. Escrito ou ilustração pictórica obscena.
1890 no The Century Dictionary [...].
Pornógrafo [Pornographer].
Do grego pornográphos, escrito sobre prostitutas. Etimologia: porne, prostituta + graphos,
escrito, escritor; (Pornograph) + ER. Alguém que escreve sobre prostitutas ou temas obsce-
nos, um retratista de pessoas obscenas.
1850 Em Arqueologia, Ancient art de C. O. Müller, §429, p. 619: Os pornógrafos dos últimos
tempos.
[...].
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Pornografia [Pornography]. Etimologia: como o anterior [Pornograph] + Y. Assim, o francês


pornographie.
1. (Ver citação [abaixo])
1857 DUNGLISON, Dicionário de medicina, uma descrição de prostitutas ou prostituição,
como uma questão de higiene pública.
2. Uma descrição da vida, maneiras, etc., das prostitutas e seus frequentadores: daí a ex-
pressão ou sugestão de assuntos obscenos ou indecorosos na literatura ou na arte.
1864 WEBSTER, Pornografia, pinturas licenciosas empregadas para decorar as paredes de
salas consagradas às orgias báquicas, exemplos das quais existem em Pompéia. [...] (MUR-
RAY, 1909, p. 1131).

Ao dar a etimologia dos três vocábulos, Murray pressupõe a origem francesa de to-
JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO

dos eles. Todavia, ele não apresenta documentação para nenhum dos casos, sem a qual

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


não é possível estabelecer, com precisão, como os mesmos entram para a língua inglesa a
partir do francês. Dúvida que o lexicógrafo John Algeo coloca para todos os vocábulos se-
melhantes: “como o vocabulário greco-latino influenciou também outras línguas europeias
e é a base de grande parte da terminologia científica, por vezes, é difícil ter certeza sobre a
origem de uma nova palavra específica, se é, realmente, formada a partir de fontes greco-
-latinas” (ALGEO, 1998, p. 65).
Para o primeiro vocábulo, pornógrafo [pornograph], Murray oferece documentação
para os dois sentidos: a Revista Contemporânea do mês de março de 1877 para o primeiro
e, para o segundo, o Dicionário Century de William Dwight Whitney, publicado em 1890.
Para o segundo, pornógrafo [pornographer], a atestação mais antiga é a Arte antiga de Karl
Otfried Müller, publicada em 1850. O vocábulo pornografia também vem documentado em
seus dois sentidos: o Dicionário de medicina, publicado em 1857 e o Dicionário de Noah
Webster, publicado em 1864.
Apesar da autoridade do Dicionário Oxford de inglês como instrumento de pesquisa
(WILLINSKY, 1994), há lexicógrafos que têm recomendado cautela quanto ao seu uso como
fonte para a origem de uma palavra. Assim, John Algeo:

O problema da documentação é encontrar fortes evidências para a origem de uma palavra.


Nossa principal fonte para essa documentação é o DOI. Entretanto, a evidência do DOI deve
ser usada com cautela, porque sabemos que sua data de atestação mais antiga não é, fre-
quentemente, o primeiro uso documentável de uma palavra. As fontes apuradas pelo DOI
não são distribuídas uniformemente através dos séculos (ALGEO, 1998, p. 63).
13
Este é o caso dos três vocábulos em consideração. A fonte de Murray para as duas
grafias de pornógrafo foi o Dicionário Century, um léxico enciclopédico de língua inglesa de
William Dwight Whitney:

Pornógrafo [Pornograph], substantivo, do grego pornográfos, escrito sobre prostitutas; veja


pornografia. Escrita ou pintura obscena.
Pornógrafo [Pornographer], substantivo, derivado de pornograph + er. Aquele que escreve
sobre prostitutas ou assuntos obscenos.
[1888] “As ofensas literárias dos pornógrafos franceses” The Fortnightly Review, n. s., XLIII,
p. 745 (WHITNEY, 1889, p. 4627).

Murray preencheu a lacuna documental para a primeira grafia de pornógrafo [por-


nograph] e ofereceu uma atestação anterior para a segunda [pornographer], indicando a
obra de Müller, publicada em 1850. Todavia, estas não são as atestações mais antigas de
ambas as grafias.
Shearjashub Spooner usou, em 1840, a primeira grafia de pornógrafo em seu verbete
sobre o pintor grego Parrásio na Enciclopédia Penny:

Parrásio entretinha-se também pintando pequenos quadros libidinosos. O Arquigalo, men-


cionado por Plínio, foi muito provavelmente descrito deste modo, seja pelo favor especial de
Tibério com o qual foi honrado, seja pela natureza peculiar dos ritos de Cibele; a qual dava
ao chefe de seus sacerdotes o título de Arquigalo. A esta classe pode ser acrescentada a
O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA NA HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA NO SÉCULO XIX

pintura de Meleagro e Atalanta, mencionada por Suetônio. […]. Essas produções renderam
a Parrásio o epíteto de Pornógrafo [Pornograph] e provam que esse estilo de pintura estava
em voga bem antes da decadência da arte grega (SPOONER, 1840, p. 287).

Posteriormente, em 1852, Spooner usa as duas grafias de pornógrafo nos verbetes


sobre os pintores Aristides e Parrásio em seu Dicionário biográfico e crítico de pintores, gra-
vadores, escultores e arquitetos. No caso de Aristides, o significado dado é o de pintor de
quadros lascivos: “Polemon, em sua obra sobre as pinturas de Sicíone, citada por Ateneu, diz
que ele pintou temas leves; mas, que ele também é denominado um Pornógrafo [Pornogra-
pher], ou pintor de quadros lascivos” (SPOONER, 1852, p. 43). No de Parrásio, o significado
é de temas libidinosos: “Parrásio foi distinguido, também, por seus pequenos [quadros de]
temas libidinosos”, sendo está a única alteração feita ao verbete de 1840 (SPOONER, 1852,
p. 656).
No que concerne à palavra pornografia, passa-se algo parecido. Para o primeiro
sentido dado por Murray, o Dicionário de medicina de Robley Dunglison define pornografia
de maneira restrita ao tema da prostituição, problematizada pela questão da higiene pú-
blica: “Pornografia [Pornography], Pornographia; de porne, ‘uma prostituta’ e grapho ‘eu
descrevo’. Uma descrição de prostitutas ou da prostituição, como uma questão de higiene
pública” (DUNGLISON, 1857, p. 745). Quanto a isso, o autor deixa claro no prefácio que os
vocábulos do dicionário, inclusos os acrescentados nesta quinta edição – como é o caso de
pornografia –, referem-se à nomenclatura usada na medicina:

Na presente edição, não apenas a obra foi “revisada e corrigida”, mas foram acrescenta-
dos cerca de seis mil temas e termos […]. Muitos destes foram introduzidos na terminologia

14
médica em consequência do progresso da ciência; enquanto outros escaparam do autor nas
edições anteriores. […]. Sempre foi ansioso o desejo do autor de torná-la um léxico satisfa-
tório e desejável – se não indispensável –, no qual o estudante pode buscar sem desaponta-
mento por todo termo que tenha sido legitimado na nomenclatura da ciência (DUNGLISON,
1857, p. p. 5).

Dunglison não oferece documentação para a etimologia e para o uso na medicina.


Entretanto, é possível supor qual tenha sido sua fonte. No contexto das ciências médicas,
a palavra pornografia já havia sido usada em 1855, na França, por Pierre-Hubert Nysten
na décima edição de seu Dicionário de medicina: “Pornografia [Pornographie], substantivo
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

feminino. Etimologia: Pornographia, de pórne, prostituta e gráphein, descrever. Descrição


das prostitutas em relação à higiene pública” (NYSTEN, 1855, p. 1009). Considerando a
anterioridade da obra e a similaridade na etimologia e na definição do vocábulo, bem como
sua distribuição nas livrarias da editora Ballière em Londres e Nova Iorque, esta pode ter
sido a fonte de Robley Dunglison. Seja como for, em ambos os casos, parece tratar-se de
um neologismo ligado particularmente à questão da higiene púbica e sem origem em fontes
greco-latinas da antiguidade.
O segundo sentido foi dado pelo Dicionário americano de língua inglesa de Noah
Webster: “Pornografia [Pornography], substantivo (do grego pórne, prostituta e gráphein,
escrever). Pinturas licenciosas empregadas para decorar as paredes de salas consagradas às
orgias báquicas, exemplos das quais existem em Pompéia” (WEBSTER, 1865, p. 1013). Ape-
sar de Webster não apresentar qualquer documentação para a etimologia e para a acep-
JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO

ção, sua fonte parece ter sido o Dicionário de termos na arte de Frederick William Fairholt,

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


publicado em 1854 com a mesma definição: “Pornografia [pornography]. (do grego) Pintura
licenciosa, utilizada para decorar as paredes de salas consagradas a orgias báquicas, e das
quais existem exemplos em Pompeia” (FAIRHOLT, 1854, p. 348).
Entretanto, o uso da palavra pornografia por Fairholt ainda não foi o primeiro. Ralph
Nicholson Wornum já a havia usado, em 1842, no seu verbete sobre Pintura no Dicionário
de antiguidades grega e romana de William Smith:

Pornografia [pornography], ou pintura obscena, que, na época dos romanos, era pratica-
da com a mais grosseira licença [...], não prevaleceu especialmente em um período par-
ticular da Grécia, mas foi aparentemente tolerada em um grau considerável em todos os
momentos. Parrásio, Aristides, Pausânias, Nicófanes, Queréfanes, Arélio e alguns outros
pornográphoi são mencionados como tendo se tornado notórios por esta espécie de licença
(WORNUM, 1842, p. 694).

Pouco depois, Charles Knight também a usou, em 1847, na sua Galeria pictórica das
artes ao tratar do declínio da pintura na antiguidade, no período compreendido entre cerca
de 300 e 146 a.C.:

Entre os estilos característicos desse período estavam caricaturas, pornografia [pornography]


e o que os gregos chamavam de riparografia, que é quase equivalente ao gênero francês, e
expressa bem as características distintivas da escola holandesa de pintura. Dessa época, fo-
ram Antífilo do Egito, que frequentava a corte de Ptolomeu Filopator e Pirico, o mais famoso
15
de todos os pintores de gênero [genre] grego (KNIGHT, 1847, p. 338).

Feitas estas observações, passa-se, agora, a apresentar a palavra pornografia e seu


antecedente, pornógrafo, visando estabelecer sua origem no contexto francês, conforme
indicado pelos dicionários ora considerados, bem como seu primeiro uso na história da arte
antiga.

2. A ORIGEM FRANCESA DA PALAVRA PORNOGRAFIA

A palavra pornografia teve origem na França e estava diretamente vinculada à pala-


vra pornógrafo, a qual foi usada primeiramente por Ateneu no segundo século II e retomada
no XVIII, no contexto dos estudos sobre a prostituição.

A. Pornógrafo

Depois do primeiro uso por Ateneu na antiguidade, a palavra pornógrafo ressurge


somente na época moderna ligada à questão da prostituição. O primeiro a usá-la foi Nico-
las Restif de la Bretonne em 1769 (COWARD, 2006, p. 1104). A palavra vem a ser o título
de seu livro, O pornógrafo; no qual, a certa altura de sua narrativa a retoma, tanto para
destacar seu caráter inusitado e estranho quanto para definir seu sentindo: “Eu te vejo sor-
rindo: o nome meio-bárbaro de Pornógrafo2 [Pornographe] vagueia em teus lábios”; cujo
significado é dado em nota de rodapé: “Isto é, escritor que trata da prostituição” (RESTIF DE
O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA NA HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA NO SÉCULO XIX

LA BRETONNE, 1769, p. 32, n. 2).


Os lexicógrafos da língua francesa levaram trinta anos para incorporar o vocábulo
em seus dicionários; mas, fizeram-no bem antes que os de outros países. Pierre Catineau
foi o primeiro, em 1799, no seu Dicionário da língua francesa: “Pornógrafo [Pornographe],
substantivo masculino” (CATINEAU, 1799, p. 188). Todavia, ele apenas registrou o vocábulo
sem lhe dar um significado. No ano seguinte, Pierre-Claude-Victoire Boiste preenche esta
lacuna com a inclusão do vocábulo na primeira edição de seu Dicionário universal da língua
francesa, publicada em 1800: “Pornógrafo [Pornographe], substantivo masculino, Catineau,
Voltaire. Autor de um tratado sobre a pornografia [pornographie]” (BOISTE, 1803, p. 314).

B. Pornografia

A primeira atestação de pornografia ocorre no início do século XIX em um dicionário


de francês. Apesar de a palavra já ter aparecido, em 1800, na definição de pornógrafo dada
por Pierre-Claude-Victoire Boiste, ela só entra como vocábulo próprio na segunda edição
de seu dicionário, em 1803, com a indicação de “palavra acrescentada: Pornografia [Porno-
graphie], substantivo feminino. Tratado sobre a prostituição” (BOISTE, 1803, p. 314). Logo
em seguida, Jean-Baptiste Morin oferece a primeira etimologia ao acrescentar o vocábulo
na segunda edição de seu Dicionário etimológico de palavras francesas derivadas do grego:
“Pornografia [pornographie], substantivo feminino. Tratado sobre a prostituição; de pórne,
uma mulher depravada, e grápho, eu escrevo” (MORIN, 1809, p. 247).
Até aqui, a palavra está circunscrita ao tema da prostituição. Porém, com o decorrer
do tempo, os dicionários franceses passam a distinguir entre o uso relacionado à prostituição
e às artes, especialmente à pintura na arte antiga. Distinção que já pode ser vista, em 1850,

16
no Dicionário universal da língua francesa de Louis Nicolas Bescherelle; o qual a faz tanto
para pornografia quanto para pornógrafo:

Pornógrafo [pornographe], substantivo masculino (Etimologia: do grego pórne, prostituta,


gráphein, escrever). 1. Aquele que escreve sobre prostituição. 2. Pintor que trata de temas
obscenos.
Pornografia [pornographie], substantivo feminino (Etimologia: ver Pornógrafo). 1. Tratado
sobre prostituição. 2. Pintura obscena (BESCHERELLE, 1850, p. 940).

Pierre Larrouse segue na mesma direção; mas, ao contrário do anterior, apresenta


XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

documentação para o vocábulo pornografia:

Pornógrafo [pornographe], substantivo masculino, (por-no-gra-fe – do grego pornê, prosti-


tuta; graphó, escrevo). 1. Aquele que escreve, que escreveu sobre a prostituição. 2. Pintor,
gravador, que trata de temas obscenos.
Pornografia [pornographie], substantivo feminino, (por-no-gra-fi – radical pornographe). 1.
Tratado sobre a prostituição. 2. Coleção de pinturas, de gravuras obscenas.
[...]
Os artistas gregos sempre se envolveram na pintura de temas obscenos, o que não deve
nos surpreender. [...]. Os quadros obscenos de alguns edifícios religiosos faziam parte do
material do culto [...]. Toda a religião grega, seguindo a justa observação de Raoul Rochette,
prestava-se à pornografia [pornographie] [...]. Aristides, Nicófanes, Pausânias e Queréfanes
JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO

estavam entre os pornógrafos mais habilidosos da escola grega. Mas, ninguém se igualou

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


a Parrásio: este mestre, que, segundo Plínio, pintou pequenos quadros obscenos (Libidines),
que foram muito procurados posteriormente; podem-se citar entre suas obras-primas des-
te gênero uma Atalanta saciada por Meleagro e um Arquigalo. Pode-se imaginar que os
gregos, um povo essencialmente artístico, amavam na pornografia [pornographie] mais a
beleza das formas do que a licença do tema (LARROUSE, 1874, p. 1438).

3. O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA NA HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA

O primeiro uso de pornografia, como um termo relacionado à pintura na antigui-


dade grega e romana, foi feito por Raoul Rochette em seu artigo Sobre a Pornografia [De la
Pornographie], publicado no Journal des Savants, fascículo de dezembro de 1835. Em nota
ao título, ele explica que “este texto é parte de um trabalho que está sendo impresso no mo-
mento”. (ROCHETTE, 1835, p. 717, n. 1); trata-se de sua dissertação (mémoire), Pesquisas
sobre o uso da pintura na decoração de edifícios sagrados e públicos, entre os gregos e os ro-
manos, publicada no ano seguinte. O artigo corresponde ao quinto capitulo da primeira par-
te, dedicada às pinturas gregas, o qual traz o mesmo título (ROCHETTE, 1836, p. 246-268).
O parágrafo de abertura do texto faz a vez de explicar a que se refere o termo por-
nografia:

Trata-se das composições licenciosas, das quais não se teria uma ideia suficientemente exa-
ta, se acreditássemos que elas representavam apenas imagens lascivas, tais como as conhe-
17
cemos por alguns vasos pintados, ou cenas voluptuosas, como nos mostram duas encanta-
doras pinturas de Herculano; e que estas composições eram exclusivamente e em princípio
destinadas a propósitos domésticos. [...]. Quadros obscenos foram postos à vista até dentro
dos recintos sagrados; grandes artistas distinguiram-se por composições deste gênero (RO-
CHETTE, 1835, 717-718; 1836, p. 246-248).

A ligação da pintura com o licencioso e com o obsceno é, então, fundamental. A base


de Rochette para tal associação vêm a ser justamente as informações prestadas por autores
da antiguidade, como Ateneu, Plutarco, Plínio e Suetônio sobre os artistas que se destaca-
ram neste gênero, como Aristides, Pausânias, Nicófanes, Queréfanes e Parrásio:

O fato destas pinturas obscenas, dedicadas nos templos, constata-se de tal modo que não
permite qualquer dúvida [...]. Pois, sabemos, por testemunhos genuínos, que artistas de pri-
meira ordem, como Aristides, haviam praticado este gênero de pintura; isso foi estabelecido
no livro de Polemon, citado por Ateneu [...]. Outros pintores, Nicófanes e Pausânias, com-
preendidos na mesma categoria, nos são conhecidos a partir do mesmo testemunho. Entre
estes, é necessário incluir Queréfanes, nomeado por Plutarco em termos que são muito ade-
quados a certas pinturas de vasos gregos, as quais podemos supor terem sido executadas a
partir dos desenhos desse pintor pornógrafo [pornografe]. Mas entre todos aqueles artistas
da antiguidade grega, que não pensaram em degradar o seu talento, empregando-o em
obras deste gênero, o mais ilustre e aquele cujo alto renome garante a máxima perfeição,
que pode encontrar-se unido a uma licença extrema é, sem dúvida, Parrásio.
Sabemos, de fato, pelo testemunho expresso de Plínio, que Parrásio se exercitara, para seu
O SURGIMENTO DO TERMO PORNOGRAFIA NA HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA NO SÉCULO XIX

prazer, com composições do gênero o mais lascivo, executadas em uma proporção muito
pequena [...]. Além disso, conhecemos com certeza um daqueles pequenos quadros licen-
ciosos de Parrásio, sua Atalanta, sobre o qual Suetônio expressou-se de tal modo que não
deixa dúvidas sobre a composição dessa pintura, acrescentando que o quadro fora legado
a Tibério, com a condição de que, se o tema agradasse ao imperador, ele receberia como
equivalente a soma de um milhão de sestércios. Mas, longe de ser escandalizado por tal
legado, ou tentado por tal soma, Tibério aceitou o quadro, que colocou em seu quarto, onde
já havia outra pintura do mesmo gênero e do mesmo autor, o Arquigalo, citado por Plínio
entre as principais obras de Parrásio. Tais fatos não precisam de comentários: as pinturas
em questão eram pinturas obscenas (ROCHETTE, 1835, pp. 722-723; 1836, p. 254-256).

Percorrido este caminho entre os autores antigos, Rochette conclui definindo o senti-
do do termo pornografia na arte antiga:

Foi, como eu já disse, e como seria natural presumir, as aventuras de Vênus e os amores
de Júpiter que formaram o tema mais comum dessas pinturas, de uma composição mais ou
menos obscena, de uma execução mais ou menos erudita, compreendidas sob o nome geral
de pornographía - e, desde cedo, esses tipos de pinturas tinham que servir, entre os gregos,
de peças móveis e de ornamentos na parte mais reservada de suas casas (ROCHETTE, 1835,
p. 724; 1836, p. 258).

Na dissertação, além de reproduzir o texto acima, Rochette anuncia o mesmo tema


no parágrafo que antecede ao capítulo sobre a pornografia destacando ser uma classe de
pintura que nomeia com este termo:

18 Resta-me assinalar toda uma classe dessas pinturas, das quais me reservei para tratar por
último com alguns detalhes e que serão compreendidas sob o título geral de Pornografia
[pornographie]; pinturas que deviam ser, necessariamente, em madeira, [...] e que, pelo
talento de seus autores, e pelo próprio mérito de sua execução, sem dúvida pertenciam à
pintura do grande estilo (ROCHETTE, 1836, p. 246).

Em suma, pornografia é um termo geral usado na história da arte antiga para abranger a
classe de pintura de composição obscena.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo neste estudo não foi outro que o de tentar esclarecer o surgimento do ter-
mo pornografia na história da antiga no século XIX utilizando-se uma metodologia advinda
da filologia e da lexicografia.
Se as observações feitas são procedentes, outra resposta foi oferecida à questão co-
locada. Em suma, a palavrava pornografia surgiu na França na passagem do século XIX ao
XX e foi cunhada a partir da palavra pornógrafo, que foi usada primeiramente por Ateneu
na Antiguidade e retomada, em 1769, por Nicolas Restif de la Bretonne.
Inicialmente, o termo pornografia estava relacionado aos estudos sobre a prostituição
vindo a ser usada para se referir a temas tratados nas artes um pouco depois. Désiré Raoul
JOSÉ GERALDO COSTA GRILLO

Rochette foi o primeiro, em 1835, a usá-lo em seu estudo sobre a pintura no mundo antigo

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


grego e romano.
Nos estudos sobre a prostituição, pornografia relacionava-se à questão da higiene
pública; enquanto que na história da arte antiga surgiu como um termo genérico para de-
nominar uma classe de pintura, cuja temática era tida como obscena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALGEO, John. Vocabulary. In: ROMAINE, Suzanne (ed.). The Cambridge history of the English
language. Volume 4, 1776-1997. Cambridge: Cambridge University, 1998. p. 57-91.
ATHENAEI NAUCRATITAE. Deipnosophistarum libri quindecim. Tomus quintus. Ex optimis co-
dicibus nunc primum collatis emendavit ac supplevit nova latina versione et Animadversio-
nibus cum Isaaci Casauboni aliorumque tum suis illustravit commodisque indicibus instruxit
Iohannes Schweighaeuser. Argentorati: Typographia Scietatis Bipontiana, 1805.
BESCHERELLE, Louis Nicolas. Dictionnaire national, ou Dictionnaire universel de la langue
française. Tome second. Deuxième édition. Paris: Garnier, 1850.
BOISTE, Pierre-Claude-Victoire. Dictionnaire universel de la langue françoise: avec le latin, et
manuel d’orthographie et de néologie; extrait comparatif des dictionnaires publiés jusqu’à
ce jour. Paris: Desray, 1800. Deuxième édition, 1803.
CATINEAU, Pierre. Dictionnaire de poche de la langue française, composé sur le système
orthographique de Voltaire. Paris, Batilliot, 1799.
CLARKE, John R. Before pornography: sexual representation in ancient Roman visual culture.
19
In: MAES, Hans (ed.). Pornographic art and the aesthetics of pornography. New York: Pal-
grave Macmillan, 2013. p. 141-161.
COWARD, David. Restif de la Bretonne, Nicolas. In: BRULOTTE, Gaëtan; PHILLIPS, John
(eds.). Encyclopedia of erotic literature. New York: Routledge, 2006. p. 1103-1107.
DUNGLISON, Robley. Medical lexicon: a dictionary of medical science. Fifteenth edition, re-
vised and very greatly enlarged. Philadelphia: Blanchard, 1857.
EDWARDS, Walter Manoel; BROWING, Robert; WILSON, Nigel Guy. Athenaeus, 1. In:
HORNBLOWER, Simon; SPAWFORTH, Antony (eds.). The Oxford classical dictionary. Third
edition. Oxford: Oxford University, 1996. p. 202.
FAIRHOLT, Frederick William. A dictionary of terms in art. London: Virtue, 1854.
GILLIVER, Peter. The making of the Oxford English dictionary. Oxford: Oxford University, 2016.
KENDRICK, Walter. The secret museum: pornography in modern culture. New York: Viking
Penguin, 1987.
KNIGHT, Charles. The pictorial gallery of arts. Fine arts, volume 2. London: Charles Cox,
1847.
LARROUSE, Pierre. Grand dictionnaire universel du XIXe siècle. Tome douzième. Paris: Admi-
nistration du Grand Dictionnaire Universel, 1874.
MAES, Hans (ed.). Pornographic art and the aesthetics of pornography. London: Palgrave
Macmillan, 2013.
MAES, Hans; LEVINSON, Jerrold (eds.). Art and pornography: philosophical essays. Oxford:
Oxford University, 2012.
MICHELSON, Peter. Pornography. In: BRULOTTE, Gaëtan; PHILLIPS, John (eds.). Encyclope-
dia of erotic literature. New York, 2006. p. 1044-1046.
MORIN, Jean-Baptiste. Dictionnaire étymologique des mots François dérivés du grec: ouvrage
utile à tous ceux qui se livrent à l’étude des sciences, des lettres et des arts, et qui ne sont
point versés dans les langues anciennes; auquel on a joint les noms des nouvelles mesures,
et les autres mots nouveaux tirés du Grec. Tome second. Paris: Imprimerie Impériale, 1800.
Seconde édition, corrigée, et augmentée de tous mots usuels de la langue Françoise, 1809.
MOULTON, Ian Frederick. Before pornography: erotic writing in early modern England. New
York: Oxford University, 2006.
MUGGLESTONE, Lynda. The Oxford dictionary. In: COWIE, Anthony P. (ed.). The Oxford
history of English lexicography. Volume I, General-purpose dictionaries. Oxford: Clarendon,
2009. p. 230-259.
MÜLLER, Karl Otfried. Handbuch der Archäologie der Kunst. Dritte, nach dem Handexemplar
des Verfassers berichtigte und vermehrte Auflage von Dr. Fr. G. Welcker. Breslau: Josef Max,
1848.
MÜLLER, Carl Otfried. Ancient art and its remains; or a manual of the archaeology of art.
New edition with numerous additions by F. G. Welcker. Translated from the German by John
Leitch. London: A. Fullarton, 1850.
MÜLLER, Carl Otfried. Ancient art and its remains; or a manual of the archaeology of art.
New edition with numerous additions by F. G. Welcker. Translated from the German by John
Leitch. London: Henry G. Bohn, 1852.
MURRAY, James Augustus Henry. A new English dictionary on historical principles: founded
mainly on the materials collected by the Philological Society, with the assistance of many
scholars and men of science. Volume VII. Oxford: Clarendon, 1909.
NYSTEN, Pierre-Hubert. Dictionnaire de médecine, de chirurgie, de pharmacie, des sciences
accessoires et de l’art vétérinaire. Dixième édition entièrement refondue par Émile Littré et

20
Charles Robin. Paris: Jean-Baptiste Baillière, 1855.
RESTIF DE LA BRETONNE, Nicolas. Le pornografe, ou idées d’un honnête-homme sur un projet
de réglement pour les prostituées, propre à prévenir les malheurs qu’occasionne le publicisme
des femmes: avec des notes historiques et justificatives. Londres: Jean Nourse, 1769.
ROCHETTE, Désiré Raoul. De la pornographie. Journal des Savants, décembre, p. 717-732,
1835.
ROCHETTE, Désiré Raoul. Recherches sur l’emploi de la peinture dans la décoration des édi-
fices sacrés et publics, chez les Grecs et chez les Romains. Paris: Imprimerie Royale, 1836.
SPOONER, Shearjashub. Parrhasius. In: The Penny cyclopaedia of the Society for the diffusion
of useful knowledge. Volume XVII. London: Charles Knigth, 1840. p. 286-287.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

SPOONER, Shearjashub. A biographical and critical dictionary of painters, engravers, sculp-


tors and architects, from ancient to modern times. New York, G. P. Putnan, 1852.
WEBSTER, Noah. An American dictionary of the English language. Springfield (MA): G. & C.
Merrian, 1865.
WHITNEY, William Dwight. The century dictionary, an encyclopedic lexicon of the English lan-
guage. Volume VI. New York: The Century, 1889.
WILLINSKY, John. Empire of words: the reign of the OED. Princeton: Princeton University,
1994.
WORNUM, Ralph Nicholson. Painting. In: SMITH, William. A dictionary of Greek and Roman
antiquities. London: Taylor and Walton, 1842. p. 680-697.
2
DE ITALIA A LA NUEVA ESPAÑA Y DE
MÉXICO A LA FRONTERA NORTE DEL
VIRREINATO
LAS VÍRGENES DEL POPOLO Y LOS DOLORES Y
SU PAPEL EN LA EXPANSIÓN MISIONAL JESUITA
EN LA NUEVA ESPAÑA*

LUIS JAVIER CUESTA HERNANDEZ**

* Este texto ha sido escrito a cuatro manos y dos cabezas con el maestro Alejandro Hernández. Es fútil pensar
que toda mi deuda con Alejandro se reduce a eso, pero él sabe que siempre le estaré agradecido por tantas y
tantas cosas.
** Universidad Iberoamericana de México.
LUIS JAVIER CUESTA HERNANDEZ

INTRODUCCIÓN

D
urante mucho tiempo se ha insistido en el papel central de la Compañía de Jesús
como introductora y difusora de toda una serie de cultos marianos con finalidad
fundamentalmente devocional pero también, en cierta medida, evangelizadora.
Los mecanismos de esas introducciones y difusiones, aunque muy estudiados, aun
nos permiten realizar una serie importante de matizaciones respecto de sus motivaciones,
así como de sus resultados1.
Las devociones marianas que impulsaron los jesuitas entre los habitantes de la Nueva
España, se hallaban ligadas a muy destacadas devociones marianas italianas, como Loreto,
Santa María la Mayor, Nuestra Señora del Refugio o la Virgen de la Luz o la Virgen de los Do-
lores2, y fueron llegando al Virreinato con los padres de la Compañía a lo largo del tiempo,
hasta encontrar carta de naturaleza entre los fieles americanos. Estas y otras devociones a
Maria que se fueron desarrollando en los territorios americanos, conmovieron los corazones,
impactaron en los espíritus de los feligreses, y también nombraron y poblaron los territorios
bajo el mando de los misioneros jesuitas.
La Compañía apostó, desde su llegada a la Ciudad de México en el último cuarto del
siglo XVI, por inculcar entre sus devotos la veneración a María a través de iconos, imágenes
y reliquias traídas del Viejo Continente. Para ello patrocinaron obras de arte y celebraciones
que quedaron impresas en la memoria popular y en la historia de la ciudad. Los feligreses
que habían logrado fortuna y posición social, no dudaban en apoyar las iniciativas jesuíticas
para reforzar los colegios y las casas de la Compañía en los ámbitos urbanos así como para
continuar la obra misionera en los territorios de frontera.
Ello será especialmente evidente en el caso de las misiones jesuitas hacia el Noroeste

22
del virreinato en los siglos XVII y XVIII en las que los cultos marianos, y con ellos el mece-
nazgo y las devociones de ciertas familias de la oligarquía de la ciudad de México, se con-
vertirían en constructores de identidad fundamentales para tener éxito en estas empresas3.
Este estudio ha sido posible gracias a la documentación que sobrevive hoy en archivos
y bibliotecas sobre la labor misional de la Compañía de Jesús. Y espero que sirva para poner
de relieve el poder discursivo e ideológico de las imágenes que utilizaron los jesuitas a lo
largo del siglo XVIII; la importancia de devociones y obras italianas para ornamentar templos
jesuitas en Mexico; así como los lazos familiares y el mecenazgo que configuraron el mapa
del Septentrión novohispano.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

LA(S) “POLÍTICA(S) MARIANA(S)” DE LA COMPAÑÍA DE JESÚS EN LA NUEVA ESPAÑA

La multitud de voces que, desde la Compañía de Jesús, se levantaron para venerar a


María, produjo una cartografía compleja y fascinante respecto a las devociones marianas,

1  Cfr. BARGELLINI, El arte de las misiones del Norte de la Nueva España.


2  Todas ellas aparecen citadas en su papel en las misiones por Bargellini. BARGELLINI, arte misiones, p. 70-75.
3  Sobre el tema la bibliografía es extraordinariamente amplia. Cfr. CUEVAS, Karina Ruiz. La Virgen Peregrina y Nuestra
Señora del Refugio, dos advocaciones marianas de vocación misionera en la Nueva España. En: Advocaciones maria-
nas de gloria. San Lorenzo del Escorial, 2012; ENRIQUEZ, Dora Elvia et. al. Sonora, territorio mariano. La Virgen de
Loreto en Bacadehuachi. En: Region y Sociedad año XXVI, nº 60, El Colegio de Sonora, 2014; BERNABEU ALBERT, Sal-
vador. California o el poder de las imágenes en el discurso y las misiones jesuitas. En: Contrastes. Revista de Historia.
Nº 12, Escuela de Estudios Hispano-Americanos (CSIC Sevilla), 2001-2003.
DE ITALIA A LA NUEVA ESPAÑA Y DE MÉXICO A LA FRONTERA NORTE DEL VIRREINATO

sus advocaciones, sus mecenazgos, y los proyectos regionales de evangelización.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


El padre jesuita Francisco de Florencia (Florida, 1620 – Ciudad de México, 1695), fue
quizá una de las plumas más “marianas” de la Societatis Iesu en la Nueva España.
En La Estrella del norte de México (1688), Florencia relata el mito fundacional de Te-
nochtitlan, el que mencionaba la salida del pueblo mexica del legendario paraje llamado
Aztlán, hasta la llegada al lago de Texcoco, donde según sus propias palabras:

Llegaron, pues, pasados muchos de peregrinación, y de trabajos en ella, una noche, a las
orillas de la gran Laguna, que llamaron después de Tezcuco; al tiempo, y cuando estando
toldado de espesas nubes el cielo, y con grande obscuridad, se despejó de repente y escla-
reciéndose el aire, apareció como es cosa natural, perfectamente representada en el agua
la Luna, que entonces estaba en creciente. Esta repentina aparición de la Luna, y esta no
imaginada ilustración del cielo, como tan dados a la superstición de los agüeros, tuvieron a
especial demostración y providencia de su dios Huitzilopochtli…4

Pero el sentido de la divina providencia de los jesuitas, no podía dejar la historia de


esta ciudad, y este nuevo reino de las Indias, a los designios de un hechicero o falsa deidad.
De esa forma, Florencia continua su argumentación así:

Debiendose con toda la verdad a [María] la aparición desta Luna Mística, que se le descubrió
en la orilla de su laguna, al rayar en ella la religión cristiana, su fe, su piedad, sus creces,
y continuados progresos espirituales y temporales; mejor que la gentil México a la supers-
ticiosa aparición de la Luna, el nombre de [Maria del] que tanto se gloria en su nobiliario
23
profano…5

El jesuita se valía así de una de las muchas interpretaciones de la etimología corres-


pondiente a la palabra ‘México’ (en el ombligo de la Luna) y lo aprovechó para prefigurar
no sólo la aparición de María en la serranía del Tepeyac, sino también el patrocinio mariano
sobre las Indias Occidentales.
A la llegada de la Compañía a la Nueva España (1572), y cuando los jesuitas desem-
barcaron en el puerto de Veracruz, el hermano coadjutor Gregorio Montes traía consigo un
baúl que se hallaba rodeado ya de milagros y leyendas piadosas.
Ese baúl contenía nada menos que cuatro copias del retrato que ejecutó san Lucas
a la Virgen María, y que se venera en Roma bajo el título de santa María Maggiore (Salus
Populi Romani/Santa Maria la Blanca. Parece que la confusión novohispana entre esta ad-
vocación pionera jesuita y el otro retrato de la Virgen, pintado también por Lucas, también
conservado en Roma, y conocido bajo el título de Nuestra Señora del Pópolo, comenzó en el
colegio de Puebla). En las palabras de Florencia:

El dicho P. General Everardo Mercuriano entregó las cuatro imágenes al hermano Gregorio
Montes, que las trajo a esta provincia el año de 1576, y la que cupo al Colegio Máximo, de
la cual ahora tratamos, se colocó en la iglesia, primero en la antigua, que estaba en donde
hoy está la iglesia de San Gregorio, y era un jacal de paja, como en la nueva bóveda, que se
dedicó el año de 1603. Se colocó acompañada de cincuenta reliquias de santos, que cupie-

4  FLORENCIA SJ, Francisco de. La estrella de el norte de México… p. 2.


5  FLORENCIA SJ, Francisco de. La estrella de el norte de México… p. 3.
LUIS JAVIER CUESTA HERNANDEZ

ron a esta provincia de doscientas cincuenta que la Santidad de Gregorio XIII concedió para
las Indias Orientales y Occidentales el año de 1574…6

No dudo en calificar a estas imágenes romanas como la piedra fundacional sobre la


que se edificaron las políticas marianas de los jesuitas en la Nueva España, como veremos a
continuación. Y es que, en torno a ellas, se generarían tanto devociones como congregacio-
nes importantes, (usualmente conocidas como congregaciones de la Anunziata en las fuen-
tes de la época). La procedencia romana/italiana, así como el peso del carácter venerable
y de vera imago de esas imágenes será una característica que veremos repetida en diversas
ocasiones a lo largo de la historia de la Compañía en el virreinato de la Nueva España.
A pesar de la importancia tanto devocional como artística de estas pinturas/de estos
objetos, para la historia de la Compañía en la Nueva España, pocos son los autores que
salen del lugar común de citar a los padres Alegre y Florencia (por cierto, como acabo de
hacer yo), pero tal vez hoy pueda arrojar un poco de nueva luz sobre ellas:

1) La Virgen que quedó en la ciudad de México (que se encontraba en san Pedro y san
Pablo), terminó en un retablo lateral de la antigua Casa Profesa, con añadidos de los
siglos XVII y XIX.
2) La imagen de Oaxaca salió de la iglesia jesuita y acabó depositada en el templo de
san Felipe Neri en un momento que no podemos asegurar (probablemente pronto
tras la expulsión ¿fines del XVIII-principios del XIX?). En el año 2006, los jesuitas recu-
peraron la pieza para su iglesia, sólo para que fuera robada al poco tiempo.
3) La imagen de Pátzcuaro es la única que permanece en su ubicación original.
4) La de Puebla, finalmente, sobrevive hoy en la Curia Provincial de la ciudad de México.

24
DEVOCIONES MARIANAS, MECENAZGO NOVOHISPANO, Y LAS MISIONES JESUITAS
DEL NOROESTE

Paso a referirme a continuación a esto que he dado en denominar “políticas marianas


de la Compañía de Jesús”, a su imbricación con la plutocracia novohispana y el papel del
mecenazgo en esta clase social. Y a referirme tambien a la presencia de determinados cultos
marianos entre las devociones favoritas de algunas de las personalidades más destacadas
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

del 1700 en la ciudad de México, así como, finalmente, al papel de las devociones marianas
en las misiones del Septentrión novohispano.
Para ejemplificar todo lo anterior, utilizaré la historia de una famosa feligresa y su
familia, doña Gertrudis de la Peña, Marquesa de las Torres de Rada, quienes, en la primera
mitad del siglo XVIII, impulsaron numerosas obras pías para la Compañía, que les convir-
tieron en unos de sus principales mecenas. Esta será también la historia de dos retablos (en
las iglesias jesuitas del Colegio Máximo de San Pedro y san Pablo, y de la Casa Profesa de la
ciudad de México), y de dos representaciones marianas de origen italiano.

6  FLORENCIA SJ, Francisco de; OVIEDO SJ, Juan Antonio de. Zodiaco mariano… p. 145. Cfr. ALCALÁ, Luisa Elena.
Fundaciones jesuíticas en Iberoamerica. Ediciones el Viso, las cuatro imágenes tocadas al original de Roma que el tercer
general de la Compañía, san Francisco de Borja, había mandado a hacer expresamente para las misiones de Indias. Las
otras tres fueron a Pátzcuaro, México y Puebla, p.33.
DE ITALIA A LA NUEVA ESPAÑA Y DE MÉXICO A LA FRONTERA NORTE DEL VIRREINATO

Finalmente, esta también es la historia del grupo de jesuitas, que mantuvieron viva la

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


obra misional en el norte del virreinato, particularmente en las por ellos llamado Californias.
En el desierto de la península de California, se erigirán dos misiones: una dedicada a
Nuestra Señora de los Dolores7 (hoy en ruinas); y otra aún en pie (tradicionalmente conside-
rada el más antiguo edificio de epoca española en California junto con la misión de Loreto),
la misión de Santa Gertrudis Kadakaamán.
Ambas misiones fueron patrocinadas por la Marquesa, la segunda perpetúa en su
advocación el nombre de tan ilustre fundadora, pero ¿por qué la advocación a la Virgen de
los Dolores?

DEVOCIONES MARIANAS Y OBRAS ITALIANAS: LOS RETABLOS DE LA VIRGEN DE LOS


DOLORES EN SAN PEDRO Y SAN PABLO Y DE LA BUENA MUERTE EN LA PROFESA

Narra el jesuita Juan del Pozo8, en su Sermon panegírico, que en la dedicación de un


altar a los Dolores de Maria SS…, cómo en los primeros años del siglo XVII fue sustituido en
la nave del templo del Colegio Máximo de San Pedro y San Pablo de la capital del Virreina-
to, un antiguo retablo dedicado a la Concepción, por uno más suntuoso de la advocación
de María en sus Dolores. En este panegírico, Pozo comenta como se encuentra en el centro
del retablo María Dolorosa “en un tablero” sentada. Asociada a ese retablo, fundaron los
jesuitas la Congregación de los Dolores, y con el tiempo el retablo acabaría por ser presidido
por una imagen de la Virgen de los Dolores de origen “napolitano”, imagen que como dice
Florencia “ha sido de grande veneración”9.
25
El retablo dedicado a la Buena Muerte en la nave del templo de la Casa Profesa de
México (pendiente la historia del retablo y las citas de la tesis de Paola Aguilar-Alvarez),
constituía el lugar de reunión de la Congregación de la Buena Muerte.
La Marquesa de las Torres de Rada, destacado miembro de la Congregación, dona-

7  LAZCANO, Carlos; PERICIC, Denis; CONSAG, Fernando. S.I. Textos y testimonios.


8  (Cabeza de buey, Badajoz, ca. 1630 – Ciudad de México, 1690) Sermon panegírico, que en la dedicación de un
altar a los Dolores de Maria SS… Fondo Reservado de la Biblioteca Nacional de Antropología e Historia (referencia
por confirmar). Dos fragmentos resultan poderosos de ese panegírico, que me atrevo a retomar para apuntalar así
la historia de la política jesuita respecto a las advocaciones marianas en el contexto californiano, y los mecenas que
patrocinaron los edificios y los altares.
“No dejemos de la mano el arco, y las flechas: mirad quien juega un arco para herir con sus flechas procura asegurar dos
cosas, la cercanía al blanco, y su competente distancia; la cercanía para asegurar el tiro y que dé la saeta en el blanco,
la distancia para que cobrando más impulso la flecha, hiera con fuerza y penetre con eficacia…”
Cristo en el arco de la cruz, es por tanto una flecha “una saeta entre cuantas había en la aljaba de la Omnipotencia”,
escogida por su cercanía con María, y para que el tiro no fallara, María en el monte Calvario tomó distancia de la
cruz. El panegirista comparó la saeta, por la pluma de su cauda, con un cálamo de punta acerada o pincel de hierro:
“Cristo, cuando dolorido en la Cruz distante de María se llama saeta, tuvo de saeta la ligera pluma, que escribe, o pinta,
lográndose de esa saeta en María la acerada aguda punta que traspasa”.
De manera que en María se inscribe el martirio de las flechas, pero también se escribe, o pinta, la verdadera efigie del
valor para vencerlos: “Pues si a esos Dolores se rinde el valor, llámese éste Altar aludiendo a esos solos, Altar de Dolores;
que aludiendo a todos los demás, no se ha de llamar sino arco triunfal de el Valor, pues el Valor salió victorioso de todos
los demás; éste es mi parecer, y del cielo la prueba”.
concluyó Pozo. Saetas, espadas, dolores, nos llevan casi de manera inmediata a la idea de la lucha y el martirio en las
misiones del norte. Algunas imágenes marianas, de hecho sufrirán ese destino (estamos trabajando en una investiga-
ción sobre imágenes martirizadas en las misiones).
9  Otras imágenes de muchas devoción se veneran en este Colegio. La de nuestra Señora de los Dolores ha sido de gran-
de veneración en el suntuoso Altar que tiene en nuestra Iglesia. La primitiva era de lienzo de valiente pinzel, y después
se substituyo en una estatua de cuerpo entero Neapolitana de grande Magestad y hermosura. Zodiaco Mariano, p. 99.
DE ITALIA A LA NUEVA ESPAÑA Y DE MÉXICO A LA FRONTERA NORTE DEL VIRREINATO

ría a su muerte, y para presidir el retablo, una hermosa pintura romana de la Virgen de los
Dolores, firmada por Bartolommeo Mancini, copia de la famosa Madonna de la misma ad-
vocación de Carlo Dolci, por la que sentía particular devoción.10
Esto nos habla de la enorme popularidad entre los jesuitas y sus feligreses de esta
devoción romana, como podremos apreciar ante la difusión de esta imagen entre los artistas
de la época.
A fines de 1716, el padre Oviedo (quien pronunciaría el sermón fúnebre a la muerte
de doña Gertrudis), partió del puerto de Veracruz con destino a Roma, como Procurador de
la provincia ante el Superior de la Compañía y el Papa. En algún momento entre 1717 y
1718 Oviedo debió adquirir una pintura que representa a la Virgen de los Dolores firmada
por Bartolomeo Mancini. Se trataba de una devoción enormemente popular copiada de un
modelo también muy prestigioso en la época: el de la Madonna del Dito, de Carlo Dolci,
maestro de Mancini (como aparece en el reverso del bastidor)11. El óleo viajó con el equipaje
del jesuita y en 1719 la Marquesa lo recibiría del padre Oviedo. Gertrudis atesoró el cuadro,
lo mantuvo en sus habitaciones y lo enmarcó en plata.

Por espacio de diez y nueve años, desde que la consiguió de Roma, no apartó de su retrete
y presencia aquella devotísima imagen de María Dolorosa, la cual tuvo siempre destinada
con el tiro marco de plata, que le hizo, para el altar de la Buena Muerte de esta iglesia,
ordenado que luego que muriese, se trajese a ella, y que la que había sido su consorte en
vida, asistiese también a su funeral y entierro…12

Gertrudis de la Peña murió en su casa, en la calle de la Aduana Vieja, en 1738. Fue


velada, enterrada y honrada con magnífico túmulo en el templo de la Casa Profesa de Mé-

26
xico, como la patrona de la iglesia.
La Dolorosa de Mancini se convertiría en una imagen de gran devoción, y como
tal, sería frecuentemente copiada por pintores del siglo XVIII como Cabrera (Peyton Wright
Gallery, sacristía de santo Domingo), Antonio de Torres o Alzibar (por ejemplo, la de la Pro-
fesa con san Ignacio-ojo al marco circular-).
La Virgen de los Dolores, su valor y sus dagas, fue una devoción que los sacerdotes de
la Compañía inculcaron pacientemente en las devociones de sus feligreses, y multiplicaron
en los oratorios de las casas señoriales de sus hijos de confesión. Pero también fue una de
las advocaciones marianas que llevaron los jesuitas en sus libros de horas, en estampas y
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

10  Sin duda aquel cuadro de Mancini es el que hoy se conserva en la Pinacoteca de La Profesa. Ya para 1774 se in-
ventarían las alhajas del susodicho retablo de la Congregación de la Buena Muerte y aparece el óleo con su marco de
plata. Al pie del nicho de Cristo Crucificado estaba “una lámina de Nuestra Señora de los Dolores de cerca de vara con
su cristal, en óvalo, guarnecido de plata con diversas reliquias, formando esta lámina con sus lados como un frontal de
cerca de tres varas de largo y más de una de alto...” AGN, Templos y Conventos, vol. 297, exp. 9, f. 3 r.
11  Questo raffigurazione della ‘Vergine addolorata’ porta a tergo del rame la firma di Bartolomeo Mancini, allievo e
imitatore di Carlo Dolci, e la data 1703. Ricorda per lo stile pittorico due tele ottagonali, anch’esse firmate, che Manci-
ni dipinse per il granduca Cosimo III de’ Medici nel 1687 e nel 1689 (Firenze, Galleria Palatina, Inv. nn. 276 e 280, cfr.
CHIARINI M. En: La Galleria Palatina, 2003). Dal punto di vista iconografico, il dipinto Martelli ricorda una tela ovale
del Dolci di proprietà delle Trafalgar Galleries di London (cfr. BALDASSARI F. 1995, pp. 125-126, n. 99) e deriva più
direttamente da quella eseguita da Dolci nel 1681 e conservata oggi nel Staten Museum for Kunst a Copenhagen (Inv.
n. 49, cfr. BALDASSARI F. 1995, pp. 183-184, n. 159). Somiglia in particolare a due versioni della ‘Madonna del dito’
esposte nella Galleria Corsini di Firenze e nella Galleria Borghese di Roma, due delle numerose derivazioni da questi
prototipi pubblicate da Francesca Baldassari nel 1995 (pp. 126-127, figure 42w e 43w).
12  La mujer fuerte… p. 16.
LUIS JAVIER CUESTA HERNANDEZ

pinturas, para la evangelización y pacificación de la California.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


LOS MECENAS. LA MARQUESA DE LAS TORRES DE RADA

Como hemos visto, Doña Gertrudis Peña Torres y Rueda, la marquesa de las Torres de
Rada , era una figura fundamental para entender la articulación que existe entre las devo-
13

ciones marianas, el patronazgo nobiliar sobre la compañía de Jesús y las misiones jesuitas.
Doña Gertrudis era alguien destacado en las líneas dinásticas y los juegos de paren-
tesco de familias antiguas avecindadas en la Nueva España desde la segunda mitad del XVII
y pos del XVIII14. Entre las muchas deudas que heredó la Marquesa de las Torres de Rada a
la muerte de su segundo marido (23 de abril de 1713), se encontraban numerosas limosnas
para la Casa Profesa de México (ya desde 1704, Salvatierra intentaba desesperadamente
mantener las misiones de Californias, Sinaloa y Sonora, pero el virrey no atendía los pagos
arguyendo los quebrantos de la real caja de Felipe V en el reino15), y sería a partir de ese
año de 1713 cuando la generosidad de la marquesa comenzó a fijarse en las obras pías de
la Compañía.
Doña Gertrudis y don José también financiaron una capilla dedicada a la Virgen de
los Dolores en el convento franciscano de la Villa de Tacubaya, cercano a la Ciudad de Méxi-
co (lo que demuestra su devoción por esa advocación). Además, donó hermosas perlas para
el tesoro de la Virgen de la Santa Casa de Loreto, en el templo del Colegio de San Gregorio
de la misma ciudad, donó doscientos pesos para el adorno del retablo de la Virgen de la Luz,
en el Colegio de San Andrés (todas ellas importantes advocaciones marianas).
27
En 1714, Gertrudis firmaría ante el Provincial, el padre Arrivillaga, la escritura de
donación para el nuevo templo de la Casa Profesa de México. Pero lo que no ha sido tan
estudiado es como las devociones marianas (y en particular, la Virgen de los Dolores) así
como las misiones del norte pasaron a formar parte fundamental del patronazgo de doña
Gertrudis
En 1717 muere el misionero Salvatierra en el Colegio de la Compañía de Guadala-
jara, figura por la que la marquesa tenía un extremado respeto (de hecho, en sus disposi-
ciones testamentarias ordenó ser enterrada con una vieja sotana del padre Salvatierra, que
conservaba como reliquia). Ese mismo año la marquesa contrajo nupcias por tercera vez,
con José de la Puente Peña Castrejón y Salcines16, quien a la postre sería el albacea testa-

13  Nació en la ciudad de México en 1663. Fue hija del capitán Francisco Peña Salcines y Josefa Rueda Esquivel. Tuvo
tres hermanos, Antonia Juana, Andrés Antonio y María Rosa. En 1687 casó con Marín Amor-Otáñez Llano, y procreó
a dos hijos. Después de la muerte de Martín, Gertrudis casó de nuevo en el Sagrario Metropolitano (parroquia de
españoles) (1700), con Francisco Lorenzo de Rada y Arenaza, quien casi la dejó en la ruina al carecer de caudales e
invertir la dote matrimonial de Gertrudis, entre otras cosas, para obtener el título nobiliario de Marqués de las Torres
de Rada y Vizconde de santa Gertrudis en 1704. Esto ultimo consta en el Manifiesto que saca a la luz el defensor de
los bienes…, 1741 AGN, Ramo Californias. Texto que a la muerte del matrimonio imprimen en Puebla sus albaceas y
defensores frente a la familia Rada que buscaban la herencia económica y el titulo nobiliar.
14  La vida de esta mujer acaudalada de la Ciudad de México se hallaba rodeada de lazos familiares y regionales con
la metrópoli. Su padre, Francisco, era natural de Camargo; Amor-Otáñez, el primer marido, provenía de Castro Ur-
diales y el capitán Francisco Lorenzo de Rada, canciller en las Reales Audiencias de México, Guadalajara, Guatemala
y Filipinas, esgrimista, gobernador de Veracruz y marqués Francisco, y su segundo marido, nació en Laredo.
15  El apóstol mariano… p. 126 y ss.
16  En el Sagrario de la Catedral de México (parroquia de españoles). Nacido en Muriendas, capitán, militar como
su padre y su segundo marido, además don José era primo de Gertrudis, y primo de Francisco Lorenz, y todos eran
DE ITALIA A LA NUEVA ESPAÑA Y DE MÉXICO A LA FRONTERA NORTE DEL VIRREINATO

mentario de Gertrudis a su muerte y el responsable de que sus donaciones para las misiones
de California llegaran a su destino. Así, su munificente voluntad llegaría hasta los confines
del virreinato, por la vía de la Congregación de los Dolores, con la fundación de la misión
de Nuestra Señora de los Dolores. Su viudo, tambien entregó otras sumas con las que se
construyó la misión de Santa Gertrudis de Kadakaamán, homenaje al nombre de la gene-
rosa matrona mexicana.

MISIONES Y ADVOCACIONES

Salvatierra, Consag, Zappa y otros jesuitas17 fueron piezas valiosas para continuar
la labor del pionero Kino en los desiertos de California. Como dijimos, el Virrey Conde de
Valladares había negado la ayuda económica al proyecto, y de esa forma, los jesuitas tuvie-
ron que dedicarse a conseguir mecenas y patrocinadores para ese fin, para lo cual se creo
el Fondo Pío de las Californias (que tantos problemas traería a la Compañía en el inmediato
futuro -fue una de las acusaciones que se adujeron a lo largo del proceso de extrañamiento).
Por lo que respecta a la figura de Maria y su papel en esas misiones jesuitas califor-
nianas, como menciona Bargellini:

la introducción y difusión jesuita de imágenes milagrosas en las misiones se centró en una


serie de advocaciones marianas importadas (…) el episodio narrado por Pérez de Ribas [se
refiere a la historia de las copias de la Virgen del Pópolo] manifiesta como el jesuita concebía
las imágenes milagrosas como misioneras y acompañantes de los sacerdotes (…) la Virgen
del Pópolo fue honrada en otros sitios de misión: en 1662 en San Miguel de Bocas (actual

28
Ocampo, Durango),(…) y en 1678, como titular de una misión entre los seris de Sonora y
dos más entre los tarahumaras. La segunda imagen milagrosa de Maria que trajeron los
jesuitas a Nueva España desde Italia fue la Virgen de Loreto (…) con los padres Francisco
Eusebio Kino y Juan Maria Salvatierra, generalmente se le atribuye a este ultimo su intro-
ducción en el norte (…) finalmente, en 1697 [Salvatierra] llevo una imagen de la Virgen de
Loreto, donación de Ventura Medina Picazo a Baja California (…) y también una petición de
Zappa, quien poco antes de morir, le había escrito “que se acordase de erigir [en California]
su Casa a Nuestra Señora de Loreto como a Conquistadora”. La expresión concuerda con la

novohispanos o cántabros.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

17  Figuras fundamentales en ese proceso fueron: el padre Juan María de Salvatierra SI (Milán, 15 de noviembre de
1648 – Guadalajara, Jalisco, 18 de julio de 1717), quien ya había externado durante su noviciado italiano la voluntad
por servir a la Compañía en las misiones de Indias. Y así, acabaría arribando al puerto de Veracruz el 13 de septiem-
bre de 1675. Para febrero de 1697, el virrey Conde de Moctezuma les concedió a él y a Eusebio Kino SI (Segno, Italia,
10 de agosto de 1645 – Magdalena de Kino, Sonora, 15 de marzo de 1711) la licencia para entrar a la provincia
californiana para evangelizar. Salvatierra ya había misionado en la sierra tarahumara, y su relevo ahí fue el jesuita
Francisco María Piccolo SI (Palermo, Italia, 25 de marzo de 1654 – Loreto, Baja California Sur, 22 de febrero de 1729
(…) Tambien por esas mismas fechas, llegaba a Nueva España desde Croacia Fernando Consag SI (Verazdin, diciem-
bre de 1703 - San Ignacio de Loyola Kadakaamán, Baja California Sur, 10 de septiembre de 1759) quien terminó sus
estudios entre el Colegio Máximo de san Pedro y san Pablo y el terceronado de san Andrés, de la Ciudad de México. En
María Eugenia Patricia Ponce Alcocer, “Estudio preliminar” en Carta del P. Fernando Consag de la Compañía de Jesús…
Tampoco podemos soslayar la figura de Juan Bautista Zappa, quien en su noviciado en Milán, preguntó a sus supe-
riores por los milagros marianos en América y expresa su deseo de misionar en esos territorios. Para cuando llegó a
Nueva España, ya había procurado indagar sobre la leyenda mariana de Guadalupe del Tepeyac y es que, como se
dice en su Vida y virtudes, a esta soberana reina en su advocación de Guadalupe atribuye su vocación e ida a las Indias.
En Vida y virtudes del V. P. Juan Bautista Zappa SJ… Libro I, capítulo VI, p. 30.
LUIS JAVIER CUESTA HERNANDEZ

noción de la imagen protectora y sujeto activo y poderoso de la historia misionera, especial-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


mente al inicio de los procesos de evangelización.18

Resulta tentadora la posibilidad de que Gertrudis de la Peña, junto a su hermana Ma-


ría Rosa, su segundo marido Francisco Lorenz de Rada y su tercer marido José de la Puente,
hayan sido conmovidos por las gentiles maneras y los buenos tratos de los misioneros jesui-
tas puesto que todos ellos terminarían dejando limosnas, y aportando poderosos caudales
para el Fondo Piadoso de las Californias: “para fundar la misión de Los Dolores en las nuevas
y apostólicas conversiones de la California dio diez mil pesos, y otros mil para el adorno de sus
iglesias…” 19 dice Oviedo20.
La misión de Nuestra Señora de los Dolores del Norte en Apeté fue fundada aún en
vida de la marquesa en 1737 por el jesuita Consag, y la misión de Santa Gertrudis de Ka-
dakaamán21 data ya de 1751, con la marquesa difunta22. Ambas fueron financiadas por el
dinero que entregó la Marquesa de las Torres de Rada, a través del Fondo Piadoso de las
Californias y la procuraduría de las Californias en el Colegio de San Andrés de la Ciudad de
México. “En una de las cláusulas de la dotación, realizada por el marqués de Villapuente […]
se decía que si ese dinero se aplicaba en una nueva misión, esta debería de llevar el nombre
de Santa Gertrudis la Magna, en honor a su esposa doña Gertrudis de la Peña, marquesa
de las Torres de Rada”23.
En 1739, tras encargarse de los últimos papeles y asuntos de la muerte y herencias
de su prima y esposa, José de la Puente testó sus bienes y falleció en el Colegio de la Com-
pañía de la Villa de Madrid. Aún hoy, se sigue celebrando la fiesta de santa Gertrudis en
Kadakaamán, en la que se procesionan imágenes de la santa que perpetúan el nombre de
29
la marquesa de las Torres de Rada.

18  BARGELLINI. El arte de las misiones del Norte, pp. 70 y ss.


19  OVIEDO, Juan Antonio de. La mujer fuerte, sermón panegírico y funeral… p. 9.
20  “Hasta la llegada de Consag habían establecido [los jesuitas] 12 fundaciones […] Loreto Conchó (1697), San
Francisco Javier Viggé Biaundó (1699), San Juan Bautista Malibat (1705), Santa Rosalía de Mulegé (1705), San José
de Comondú (1708), la Purísima Concepción de Cadegomó (1720), Nuestra Señora del Pilar de La Paz Airipí (1720),
Nuestra Señora de Guadalupe de Huasinapí (1720), Santiago de los Coras (1721), Nuestra Señora de los Dolores del
Sur Chillá (1721), San Ignacio Kadakaamán (1728) y San José del Cabo Añuití (1730)…” LAZCANO, Carlos; PERICIC,
Denis; CONSAG, Fernando. Textos y testimonios… pp. 110 – 111.
21  Fernando Consag SJ exploró buena parte de la península de Baja California, buscando los mejores sitios donde
poder establecer misiones y visitas. Además con ello demostró la peninsularidad de la California. Con el tiempo des-
cubrió un mejor sitio para la misión que había fundado en Apaté, y lo encontró en el oasis de Kadakaamán.
22  Ese mismo año de 1751, Consag tuvo que dejar el asunto de la fundación de santa Gertrudis Kadakaamán en
manos del alemán Jorge Retz SJ. La misión alcanzó la población de 1735 indígenas cochimíes en 1762. Después de
ejecutar el decreto de extrañamiento sobre los jesuitas en los territorios de la Monarquía Hispánica, en 1767 quedaron
a cargo los frailes franciscanos, y desde 1773 dominicos, quienes la abandonaron para 1822.
23  Consag decidió trasladar la misión de Nuestra Señora de los Dolores del Norte a un mejor enclave, “la dotación
que mantenía a Nuestra Señora de los Dolores del Norte se perdió, por lo que estuvo en peligro el avance misional
hacia el norte. Pero ocurrió igualmente que la misión de San José del Cabo fue cerrada, anexándose a la misión de
Santiago, por lo cual su dotación se pudo emplear para que pudiera continuar Nuestra Señora de los Dolores del
Norte. Sin embargo, en una de las cláusulas de la dotación, realizada por el marqués de Villapuente […] se decía
que si ese dinero se aplicaba en una nueva misión, esta debería de llevar el nombre de Santa Gertrudis la Magna,
en honor a su esposa doña Gertrudis de la Peña, marquesa de las Torres de Rada. Y aunque Nuestra Señora de los
Dolores del Norte no era una nueva misión, ya que llevaba funcionando 14 años bajo la dirección de Consag, se le
consideró así debido a que aún no tenía su sitio definitivo de establecimiento…” SAHAGÚN, Carlos Lazcano. Misión
de Santa Gertrudis La Magna. In: LAZCANO (coord.) Homenaje. Fernando Consag, SJ. 1703-1759. Memoria de la I
Reunión de Historiadores sobre los fundadores de la Antigua California, México, Fundación Barca, Sociedad de la Anti-
gua California, 2011, p. 109.
3
LAS FRONTERAS LEGALES DEL ARTE EN
NUEVA GRANADA
LA BÚSQUEDA DE LA ORTODOXIA EN LAS
ESCULTURAS RELIGIOSAS
ADRIÁN CONTRERAS-GUERRERO*

* Universidad Complutense de Madrid.


ADRIÁN CONTRERAS-GUERRERO

L
a escultura al igual que las demás manifestaciones artísticas, estuvo sujeta a la regu-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


lación impuesta por la Iglesia durante los siglos XVI a XVIII. El aparato jurídico que se
fue confeccionando a través de concilios, sínodos y ordenanzas eclesiásticas tuvo una
especial importancia en los territorios del Nuevo Mundo donde la ortodoxia de las
imágenes estuvo especialmente vigilada. En este sentido, los vastos dominios americanos
presentaban dos problemas básicos: uno de tipo externo, por la posible llegada desde Euro-
pa de imágenes que contravinieran la doctrina católica, y otro interno, por las desviaciones
iconográficas y/o heréticas que pudieran presentarse en las representaciones divinas.

CONTROL EXTERNO. LAS IMPORTACIONES

En el primer caso, para controlar los bienes que llegaban desde la metrópolis, se ideó
un sistema de visitas en los puertos americanos. La inspección era doble, civil y eclesiástica.
La primera estaba encaminada al pago de los derechos de aduana1, pues había que evitar
la entrada en Indias de “cosas vedadas, o descaminadas o fuera de registro”, o bien porque
atentaban contra el monopolio de ciertos productos. Según consta en el manual de Juan de
Hevia no se podía “cargar ni descargar ninguna cosa de la tierra a la mar a la nave, ni della
a la tierra, ni de un navio a otro, de dia ni de noche, sin preceder para ello licencia y albala
de guia de los officiales Reales a cuyo cargo fuere, so pena de perdimiento y confiscacion
de todo”2, y además, debían pagar derechos de aduana “qualquiera cosas que sean para
servicio de Yglesias monasterios, o capillas, para vender: mas no se deve no siedo para ello,
ni por trato, jurandose assi, como lo dize una ley de la Recopilacion”3.
31
La visita eclesiástica estaba a cargo de un visitador del Santo Oficio quien abordaba
la embarcación antes de que fueran bajados los pasajeros y la carga, y llevaba a cabo un
interrogatorio sobre, entre otras cosas, las imágenes, los libros y otros objetos religiosos
que se trajesen. Por lo general, si no se suscitaban sospechas, el interrogatorio era de mera
fórmula y “el resultado de la visita se hacía constar en unas cuantas notas”4. El visitador in-
quisitorial estaba acompañado por un alguacil, un notario y un portaestandarte del emble-
ma del Santo Oficio, quienes se reunían con el maestre y el piloto de la nave, así como dos
personas que representaban al conjunto de los pasajeros y que debían responder una serie
de preguntas como cuales habían sido los puertos de salida y parada de la embarcación5. Se
ponía especial atención a cuestiones como:

si hay alguno que sea Judío, Moro, Turco, o Morisco de los expulsos de España o Hereje,
Lutherano, Calvinista o de otra secta contraria a nuestra santa Fe Cathólica (…) si han he-
cho ayunos, o labatorios de Judíos y moros, o rezado oraciones, o hecho otras ceremonias
de Herejes, o maltratamiento de Imágenes, o disputado contra la Santa Fe Cathólica, y la

1 Cfr. VOLAÑO, I. Hevia. Labyrintho de Comercio terrestre y naval donde breve y compendiosamente se trata de la Mer-
cancia y Contratacion de Tierra y mar, util y provechoso para Mercaderes, Negociadores, Navegantes, y sus Consulados,
Ministros de los Iuyzios, profesores de Derechos, y otras personas. Lima, por Francisco del Canto, 1617, pp. 714-723.
2 Ibid: pp. 665-666.
3  Ibid: pág. 702. Sobre el tema de las inspecciones en las aduanas véase PÉREZ, M. C. Pérez. Circulación y apropiación
de imágenes religiosas en el Nuevo Reino de Granada, siglos XVI-XVIII. Bogotá, Universidad de los Andes, 2016, p.107.
4  LEONARD, I. A. Los libros del conquistador. México, Fondo de Cultura Económica, 1959, pp. 159-160.
5 MURCIA, L. L. Vargas. Estampas Europeas en el Nuevo Reino de Granada (Siglos XVI-XIX). Tesis doctoral. Sevilla, Uni-
versidad Pablo de Olavide, 2013, pp. 97-98.
LAS FRONTERAS LEGALES DEL ARTE EN NUEVA GRANADA

Iglesia Romana (…) si en el dicho navío vienen algunas imágenes, o figuras de Santos, de
Papas, Cardenales, Obispos, Clérigos, y Religiosos, indecentes o ridículos, de mala pintura,
o libros prohibidos6.

En lo que atañe a las imágenes religiosas, es significativo que se hable específicamen-


te del maltrato hacia ellas. Como la norma sigue a la falta, hay que entender que estas prác-
ticas eran muy comunes y de hecho, basta con advertir la gran cantidad de causas judiciales
que fueron abiertas por este motivo ante los tribunales de la Inquisición7. Otra preocupación
fue la corrección iconográfica y formal de las esculturas:

Yten, qué imágenes traen de bulto, pincel o de molde, en lienzo o papel, y mirar los rótulos
que traen y letras si son de alguna falsa doctrina, y ya que no traigan letra, si las mismas
pinturas son ignominiosas e injuriosas a los santos como cuando se mezclan cosas profanas
con las sagradas y santas, o se pintan los santos o santas no con su decencia y honestidad
sino en figuras de galanes y mujeres muy hermosas y arreadas, que estas tales imágenes
converná quitárselas y no se las volver, y para estos dos capítulos es necesario con diligencia
abrir, ver y visitar las caxas de los marineros y de los demás8.

Era común que el visitador pidiera abrir algunas cajas al azar para probar lo respon-
dido por la tripulación y los pasajeros, de manera que si encontraba alguna imagen inade-
cuada era inmediatamente decomisada. Cabe recordar que las esculturas españolas llega-
das a los puertos neogranadinos eran importaciones directas ya que durante mucho tiempo
el tráfico de ellas entre los virreinatos estuvo prohibido como recoge a principios del siglo
XVII el citado manual de Juan de Hevia “Asimismo no se pueden llevar de la nueva España

32
al peru mercaderias de España, so pena de perdimiento dellas, por estar assi ordenado por
cedula real fecha en Madrid a 5. de Março de 1607. publicada en Sevilla a 10. del mismo
mes, y en Lima por Septiembre del dicho ano”9.

CONTROL INTERNO. SÍNODOS Y CONCILIOS PROVINCIALES

Además del control de las importaciones, las autoridades eclesiásticas regularon la


obra creada en América. El instrumento fundamental para lograr este empeño fue el sínodo
diocesano, es decir, la reunión del clero de una diócesis convocada y presidida por el obispo
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

de ella para tratar diferentes asuntos eclesiásticos, entre los que solía estar el tema de las
imágenes. Los mandatos emanados de estas reuniones eran promulgados posteriormente
en forma de constituciones sinodales, siendo de obligado cumplimiento. Veamos cuales fue-
ron las regulaciones vigentes en el Nuevo Reino de Granada a lo largo de las tres centurias

6  LEONARD, Op. Cit.: p. 169.


7  Para el caso de Nueva Granada cfr. MURCIA, L. L. Vargas. Sobrenaturales, milagrosas, deshonestas, injuriadas:
interrogatorios inquisitoriales a civiles en el Nuevo Reino de Granada a causa de las imágenes. En.: DOMÍNGUEZ, P.
Revenga (coord.). Arte barroco y vida cotidiana en el mundo hispánico. Entre lo sacro y lo profano. Michoacán, El Cole-
gio de Michoacán, 2017, pp. 173-179.
8  CASTILLO, F. Fernández del. Libros y libreros en el siglo XVI. México, Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 359.
9  HEVIA, Op. Cit.: p. 687.
ADRIÁN CONTRERAS-GUERRERO

virreinales10.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Constituciones Sinodales de Santafé de 1556

El ideal de decoro (decorum) existente desde la Antigüedad clásica encontraría un


nuevo impulso tras el Concilio de Trento. Si bien el grueso de los decretos que tienen que
ver con el arte y con las imágenes fueron recogidos durante la sesión XXV del Concilio, en
el año 1563, en Santafé ya existían unas disposiciones de similar espíritu desde 1556. Las
constituciones sinodales promulgadas en ese año por Fray Juan de Barrios11 exigían que las
imágenes debían ser decentes y honestas, retomando lo dicho en el Concilio Mexicano de
1555. Esta primera reglamentación oficial se recogía en el capítulo 22, artículo 176, cuyo
título es: “Que no se pinten imágenes, sin que sea examinada la pintura”. El desarrollo de
este mandato impelía a los visitadores del obispado a que revisaran las esculturas y pinturas
que se colocaban en los templos ya que era necesario no confundir al fiel con imágenes
incorrectas o indecentes. El castigo para el culpable de incurrir en este delito era el pago de
una multa de diez pesos de oro12. Dice así:

Deseando apartar de la iglesia de Dios todas las cosas que causan indevoción, y a las per-
sonas simples causan errores, como son abusiones y pinturas, indecencias de imágenes
estatuimos y mandamos que en ninguna Yglesia de nuestro obispado se pinten historias de
santos en retablo, ni otro lugar pio, sin que se nos dé noticia, o a nuestro visitador general
para que se vea, y examine si conviene, o no13. 33
Su sucesor en la cátedra bogotana, fray Luis Zapata de Cárdenas, no desarrolló un
texto específico al respecto manteniendo en uso estas disposiciones, aunque expresó preo-
cupaciones similares en su Catecismo, donde demandaba a cada sacerdote que su templo
estuviera provisto de “imágenes, frontal y manteles todo limpio”14.

Constituciones Sinodales de Santafé de 1606

Tras la temprana reglamentación de fray Juan de Barrios, dos serían los arzobispos
que volverían sobre la corrección de las imágenes en la ciudad capital: Bartolomé Lobo
Guerrero y Fernando Arias de Ugarte. Ambos personajes mantuvieron preocupaciones si-
milares y corrieron una suerte pareja al acabar recalando en la prestigiosa sede arzobispal
de Lima. Tanto es así que del paso de ambos por el Nuevo Reino, suele destacarse el celo
evangelizador que compartieron, empeñándose en descubrir las idolatrías prehispánicas

10 La última publicación al respecto sobre el tema, aunque incompleto, es BETANCOURT, J. F. Cobo; COBO, N. La
legislación de la arquidiócesis de Santafé en el periodo colonial. Bogotá, INCANH, 2018.
11 “Constituciones Synodales fechas en esta ciudad de Santafe, por el señor don Frai Juan de los Barrios primer Arzo-
bispo de este Nuevo Reyno de Granada, que las acabo de promulgar a 3 de junio de 1556”. Cfr. RÁBANOS, J. M. Soto
(ed.). Sínodos de Lima de 1613 y 1636. Madrid-Salamanca, Centro de Estudios del Consejo Superior de Investigacio-
nes Científicas-Instituto de Historia de la Teología Española de la Universidad Pontificia, 1987, p. 181.
12  MURCIA, Vargas, Op. Cit.: pp. 98-99.
13  ROMERO, M. Germán. Fray Juan de los Barrios y la Evangelización del Nuevo Reino de Granada. Bogotá, ABC, 1960,
pp. 528.
14  ROMERO, M. Germán, Op. Cit.: pp. 351-353.
LAS FRONTERAS LEGALES DEL ARTE EN NUEVA GRANADA

existentes entre los indígenas. Lobo Guerrero por ejemplo, salió en visita pastoral por los
pueblos de la sábana de Bogotá y sólo en Fontibón encontró más de 3.000 ídolos ocultos
bajo tierra o en los techos de las viviendas de los naturales que mandó quemar en una es-
pecie de auto de fe, mientras que los que estaban hechos en oro se fundieron pasando a
adornar los templos cristianos15. Algo similar acaeció en tiempos de Ugarte cuando visitó su
diócesis entre 1619 y 162316.
Guerrero fue nombrado arzobispo de Santafé en 1596 pero su entrada en la ciudad
no tendría lugar hasta el 28 de marzo de 1599. Cincuenta años después del sínodo de
Juan de Barrios, el 21 de agosto de 1606, principió el sínodo diocesano que quiso convocar
el nuevo prelado para compendiar las disposiciones que regirían su diócesis, aunque en
realidad no son más que una prolongación del sentir expresado en Trento, ya aplicado en
estas tierras por el concilio provincial de Lima de 1583. Así en el prefacio del texto bogotano
Lobo Guerrero da cuenta de cómo las prescripciones de uno “están dispuestas y remediadas
admirablemente” en el otro y “a abido muy poco más que añadir”17. Se promulgaron 31
constituciones leídas públicamente el día 3 de septiembre de 1606 en la catedral que no
hacen expresa alusión a las imágenes aunque sí hay existe en ellas un apartado dedicado a
las cofradías y procesiones. Se pidió la moderación del número de cofradías, reduciéndose
a dos en el caso de los pueblos de indios. Asimismo se prohibían bajo pena de excomunión
“correr toros, hazer máscaras de noche y saraos de cosas profanas, en la yglesia”18, eventos
que según consta eran organizados por las cofradías.
Otro punto conflictivo lo representaban las “procesiones de sangre que los yndios
suelen hazer” las cuales a ojos de las autoridades eclesiásticas “tienen muy graves incon-
venientes y provecho ninguno, sino es el temporal de quien las suele solicitar, por la falta
de fe que generalmente estos yndios suelen tener, que no endereçan esta penitencia a sa-

34
tisfacción y perdón de sus pecados, antes a supersticiones e ydolatrías”. Por ello quedaban
prohibidas bajo pena de excomunión, pretendiendo evitar así “las borracheras que antes
y después de la disciplina suelen hazer, y la offensa que se sigue a Dios nuestro señor, de
alumbrarles sus mancebas, y ellos pensar que con sola esta penitencia les son lícitos quales-
quiera pecados”19.

Constituciones Sinodales de Popayán de 1617

El obispo agustino Juan González de Mendoza llegó a la sede de Popayán promo-


vido desde la de Chiapas. El mismo año antes de morir dejaba promulgadas las primeras
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

constituciones sinodales de Popayán que eran firmadas el 9 de julio de 1617 por el notario
Tomás Fernández de Ávila20. En lo que atañe a las imágenes y los retablos debemos señalar

15  Cfr. PACHECO, J. M. Don Bartolomé Lobo Guerrero, Arzobispo de Santafé de Bogotá. Ecclesiastica Xaveriana, 5,
1955, p. 134; Soto, Op. Cit.: p. XXV.
16 ZAMORA, A. Historia de la provincia de san Antonino del Nuevo Reino de Granada. Barcelona, Imprenta de Joseph
Llopis, 1701, p. 366.
17  PACHECO, Don Bartolomé Lobo…, Op. Cit.: pp. 154-155.
18  Ibid: p. 180.
19  PACHECO, J. M. Constituciones Sinodales del Sínodo de 1606, celebrado por don Bartolomé Lobo Guerrero. En Ec-
clesiastica Xaveriana, V, 1955, pp. 181-182.
20  AHCRSM (Archivo Histórico Cipriano Rodríguez Santa María, Chía). Fondo Manuel María Mosquera, caja 2, carp. 3,
ff. 1-26. Copia de los capítulos sinodales del Sínodo Diocesano convocado por el obispo de Popayán, Juan González de
Mendoza, en 1617. La primera parte es copia firmada en Cali a 31 agosto de 1754, mandada hacer por el visitador
ADRIÁN CONTRERAS-GUERRERO

tres mandatos recogidos en los capítulos 10, 17 y 62. El primero mandaba abolir todas las

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


cofradías existentes en los pueblos de indios y aún en los de españoles “aunque sean in-
memoriales”, teniendo que ser aprobadas por el obispo, lo que representaba una medida
mucho más drástica que la tomada por Lobo Guerrero en Santafé. En el capítulo 17 se llama
la atención sobre las faltas cometidas por los encomenderos con respecto ya los pueblos que
regentan ya que estando obligados “a dàr ornamentos, en los lugares de los Yndios que son
a su cargo, y todas las demas cosas que son necessarias para poder decir missa (…) y que
en esto ha havido; y hay tanto descuido, que apenas se pueden vestir los sacerdotes (…)
ni en las Iglesias tener Ymagenes, ni altares decentes (…) no lo guardan, ni tratan mas de
cobrar lo que le pertenecen”21. Por último, en el capítulo 62 se prohibía erigir “capillas en los
hatos, ni estancias”, refiriéndose especialmente a poner capillas junto a corrales o en sitios
reducidos donde se hacinen a dormir las familias.

I Concilio Provincial del Nuevo Reino, 1625

Los concilios provinciales debían celebrarse cada seis años según mandato del Con-
cilio de Trento, sin embargo sólo habían intentado celebrarlo los arzobispos Luis de Zapata
y Bartolomé Lobo Guerrero, sin conseguirlo. Finalmente fue Arias de Ugarte quien a la
llegada a su ciudad natal gestionó este encuentro presionado por una Real Cédula en la que
el rey le recordaba esta obligación. El Concilio se celebró con la única presencia del obispo
de Santa Marta pues el resto de obispados sufragáneos, Popayán y Cartagena, excusaron su
presencia aunque el de Cartagena que se encontraba en sede vacante mandó al tesorero
de la catedral22.
35
No obstante su celebración, este concilio parece que no haber tenido aplicación ya
que fue firmado el 25 de mayo de 1625 y enviado al Consejo de su Majestad y al Papa pero
nunca se tuvo noticia de que fuera aprobado. Aún Groot daba cuenta de que no se conocían
sus disposiciones por estar perdido el texto y así fue hasta que Restrepo encontró una copia
del siglo XIX en el Palacio Arzobispal, la cual acabó en manos de Monseñor Mario Germán
Romero. El único punto que ha trascendido de esa copia en relación al ámbito artístico es
la que se recoge en el Libro I, Título I, capítulo 14, donde se manda “Destruir los ídolos y
templos para que no recaigan en idolatría”23 los indígenas.

Constituciones Sinodales de Popayán de 1717

Con todo el bagaje24 que traía el obispo Juan Gómez Frías cuando arribó al Nuevo
Reino en 171725, se decidió a ordenar el uso de las imágenes en el título 2 de sus constitu-

general maestro don Fernando Antonio de Salazar Betancur.


21  Ibid: fol. 7r-v.
22  SALMORAL, M. Lucena. Primer Concilio Provincial del Nuevo Reino. Boletín Cultural y Bibliográfico, 1, 1963, pp.
11-14.
23  Cfr. DUSSEL, E. El episcopado latinoamericano y la liberación de los pobres 1504-1620. México, Centro de Reflexión
Teológica, 1979, pp. 245-246.
24 Procedía de la villa de Cebolla, en el arzobispado de Toledo, estudió en la Universidad de Alcalá y se graduó de doc-
tor en Teología en la de Sigüenza, fue presbítero en 1690 y era cura de Móstoles, ciudad cercana a la corte, cuando
fue nombrado por el rey Felipe V obispo de Popayán. Cfr. PACHECO, J. M. Los jesuitas en Colombia. Bogotá, Pontificia
Universidad Javeriana, 1989, t. III, p. 40.
25  BUENAVENTURA ORTIZ, J. Historia de la diócesis de Popayán. Bogotá, ABC, 1945, pp. 289-290.
LAS FRONTERAS LEGALES DEL ARTE EN NUEVA GRANADA

ciones sinodales, “De imágenes, y reliquias de santos”. Uno de los puntos sobre los que se
volvió a incidir es que no podía rendírsele culto a aquellos personajes que no habían sido
canonizados o beatificados por Roma26. Era un tema de actualidad a su llegada al virreina-
to pues por ejemplo sor Francisca María del Niño Jesús, religiosa carmelita de Bogotá que
había muerto en 1708 con fama de santidad, era objeto de una veneración popular no re-
glada. Su retrato encargado a los pintores Juan Francisco de Ochoa y Agustín García Zorro
y Usechi había sido copiado por numerosos creyentes y hasta José de Chinchilla, calificador
y notario del Santo Oficio poseía uno que prestaba a los vecinos en sus trances dadas sus
atribuciones milagrosas27.
Otro ámbito de preocupación lo constituía la corrección y coherencia de las imáge-
nes, y tanto las disposiciones de este sínodo como las del concilio santafereño que comenta-
remos a continuación prohibieron que los personajes sagrados se retrataran usando hábitos
o vestimentas contrarios a los acostumbrados, que se contradijera lo dicho por las Escrituras
así como la circulación de imágenes con la representación de nuevos milagros no aproba-
dos. Se pedía además que las esculturas procesionales “no las lleve ninguno de los cofrades
a su casa particular, ni a otra ninguna sino que estén en las iglesias, o hermitas”28, lo que
incluía la obligación de vestir a las imágenes en los templos.
Una iconografía explícitamente regulada fue la de la Trinidad. También éste era un
asunto de actualidad en la propia ciudad de Popayán ya que un religioso franciscano había
denunciado a los jesuitas y agustinos por tener cuadros de la Trinidad antropomorfa en los
que se podía ver a las tres personas con idéntico aspecto29.
Por último, se planteaba desde la sede obispal la necesidad de “que los curas enseñen
a sus feligreses el modo con que deben adorar, y venerar las imágenes. Deseando apartar
de la iglesia de Dios todas las cosas que son causa u ocasión de indevoción, o de otros in-

36
combenientes que a las personas simples suelen causar errores”30. Este mandato, como se
admitía en el mismo texto, emanaba “de lo dispuesto por el santo concilio de Trento”. Por
todo ello era necesario retirar de los altares públicos y privados todas aquellas esculturas
que pudieran causar errores en los creyentes.

II Concilio Provincial del Nuevo Reino, 1774

El II Concilio Provincial se reunió en la capital del virreinato en 1774 bajo la presi-


dencia del arzobispo Agustín Alvarado del Castillo. Las disposiciones sancionadas en dicho
encuentro son las más explícitas e interesantes de cuantas regularon la praxis artística en el
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Nuevo Reino, por lo que nos permitimos transcribirlas de forma extensa:

Así mandamos a que sean veneradas las sagradas imágenes con la debida religiosidad,

26  AAM (Archivo de la Arquidiócesis de Medellín). Fondo Diócesis de Popayán, Vicaría Superintendente, caja 1, carp.
2, ff.1r-246v. Constituciones Sinodales de Popayán. 10-I-1717.
27  PÉREZ, M. C. Pérez. Las imágenes de culto en la legislación eclesiástica del Virreinato de la Nueva Granada. Rela-
ciones. Estudios de historia y sociedad, 144, 2015, pp. 63-64.
28 AAM. Fondo Diócesis de Popayán, Vicaría Superintendente, caja 1, carp. 2, f. 10v. Constituciones Sinodales de Po-
payán, 10-I-1717.
29  AGN (Archivo General de la Nación, Bogotá). Sección Colonia, Fondo Obispado de Popayán, rollo 49, nº. 18, ff. 1r-
2v. Proceso sobre pinturas relativas a la Trinidad. 1706-1748. Citado en Pérez, Las imágenes de culto…, Op. Cit.: p. 68.
30  AAM. Fondo Diócesis de Popayán, Vicaría Superintendente, caja 1, carp. 2, ff.8r-8v. Constituciones Sinodales de
Popayán, 10-I-1717.
ADRIÁN CONTRERAS-GUERRERO

no absolutamente por ella sino con relación a Dios y a los originales, con apercibimiento

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


de proceder contra los menospreciadores de ellas, por los términos que haya lugar como
contra los herejes, con arreglo a los concilios se exhorta y amonesta a los fieles que tengan
una imagen sagrada en su casa como Cristo, María… y mandamos a los curas párrocos no
bendigan las casas donde no hallaren algunas imágenes o al menos una cruz.
Prohibimos que las imágenes de Jesucristo, María Santísima, de los ángeles, apóstoles,
evangelistas y otros se pinten y esculpan en otro hábito y forma que la que se ha acostum-
brado en la Iglesia Católica desde su origen, y que si estuvieren pintadas o esculpidas de
otro modo no se expongan a la pública veneración. Ni se vistan los santos de alguna religión
con el hábito de otra orden de que no hayan sido; y estándolos se quitarán y reformarán
poniéndoles el hábito de su propia orden y así lo observarán los eclesiásticos seculares y
regulares sin excepción alguna.
Prohíbese igualmente toda escultura, pintura e impresiones que representen las Santísima
Trinidad, Padre, Hijo y Espíritu Santo si ésta última no es en forma de paloma.
Los pintores, escultores o grabadores no pueden representar imágenes sagradas en traje
deshonesto, acto profano, ridículo, poético o que represente vanidad y pudicia o irreligi-
sodiad; sino que tienen que estar en acción, adorno y habito santo, respirando piedad y
devoción.
Se previene a los párrocos y rectores de iglesias, administradores o mayordomos de cofra-
días o lugares píos de no mandar a hacer imágenes sagradas por maestros imperitos con
la excusa que las hace por menor precio, pues bajo la pena que siendo ridículas, ineptas e
indevotas se tienen que quitar y volver a pintar con su propia plata.
No se pueden exponer las imágenes sagradas sin antes haber estado aprobadas y bendeci-
37
das por los ordinarios.
Las imágenes fastidiosas a la vista por la antigüedad o inmundas e indecentes, se enterrarán
en el pavimento de la iglesia. Las que fueren deformes, mutiladas e inútiles para el culto, se
quitarán también de las iglesias y de otra parte pública o privada.
Se prohiben las escenas obscenas en iglesias y casas particulares. Se reprende a los pintores
que pinten a Cristo en figura de cordero y no de hombre.
Las iglesias y conventos tienen que dejar las imágenes milagrosas a la vista de los fieles así
no den limosna si son pobres para no dejar de cumplir sus promesas y dejar de venerar di-
cha imagen. La limosna es voluntaria.
Las piedras que se encuentran y dicen tener imágenes de María, Cristo o algún santo no se
pueden dejar en las iglesias para venerarlas si no tienen la aprobación de los ordinarios31.

Como advierte Gabriel Giraldo, cada una de las normas trascritas son un “capítulo
de estética colonial que muestra el estilo y las características de la producción artística del
momento”32. La mayor preocupación vuelve a ser de nuevo la corrección iconográfica y la
decencia de las imágenes religiosas, siendo llamativo que se prohibiera encargar esculturas
a “maestro imperitos” que siendo más baratos produjeran unas piezas de menor calidad
artística. Incluso se dan instrucciones de cómo proceder para deshacerse de las imágenes
ridículas o que simplemente eran “fastidiosas a la vista por la antigüedad”. Estas esculturas

31  JARAMILLO, G.Giraldo. Notas y Documentos sobre el Arte en Colombia. Bogotá, ABC, 1955, pp. 95-99. Citado en
GIL, M. P. Álvarez; OCAMPO, L. M. Rozo. Estudio tecnológico de la obra del escultor Pedro Laboria. Trabajo de grado.
Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 2000, pp. 13-14.
32  JARAMILLO, G. Giraldo, Op. Cit.: p. 93.
LAS FRONTERAS LEGALES DEL ARTE EN NUEVA GRANADA

debían enterrarse bajo el suelo de la misma iglesia, cuidado que pone de manifiesto que
aunque se consideraban imágenes indignas, participaban en cierto modo de lo divino33.
En definitiva, las disposiciones emanadas de sínodos y concilios basaron su idea de
corrección en un concepto fundamental: el decoro. Las esculturas debían mantener la ho-
nestidad de lo religioso debido entre otras cosas a “la poca inteligencia en la adoración y
remisión de las imágenes” de los naturales34. Para asegurar la calidad de las obras expuestas
en los templos se echó mano de un instrumento esencial como fueron las visitas eclesiásticas
mediante las cuales se daban indicaciones sobre ellas, prescribiendo la realización de nue-
vas imágenes o recomponiendo las habidas. Tenemos constancia de que estos mandamien-
tos se cumplieron y por ejemplo en 1792 el obispo de Popayán, Ángel Velarde y Bustamante,
mandó enterrar un gran número de esculturas de la provincia de Antioquia35.

38
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

33  Que las imágenes eran enterradas cuando estaban deterioradas se puede comprobar en el caso de la Virgen del
Rosario de Talpa de Allende (en el estado mexicano de Jalisco), la cual por encontrarse “desfigurada é indecente” iba
a ser sepultada el 19 de septiembre de 1644 en la sacristía del templo, ocurriendo un milagro de autorenovación
milagrosa. Cfr. Campo y Rivas, M. A.: Compendio histórico de la fundación, progresos, y estado actual de la Ciudad
de Cartago en la Provincia de Popayán en el Nuevo Reyno de Granada (…) Guadalajara, por Don Mariano Valdés
Tellez Giron, 1803, p. 26.
34  AAM. Fondo Diócesis de Popayán, Vicaría Superintendente, caja 2, f. 8v. Constituciones Sinodales “De ymagenes y
reliquias de santos, Popayán, 1717-1772”. Citado en PÉREZ, Las imágenes de culto…, Op. Cit.: p. 77.
35  AHA (Archivo Histórico de Antioquia, Medellín). Colonia, Eclesiástico, t. 81, doc. 2251, ff. 220-331 y 242-258.
Visitas eclesiásticas realizadas a los templos de la provincia de Antioquia por el obispo de Popayán don Ángel Velarde y
Bustamante. 1792. Citado en PÉREZ, Las imágenes de culto…, Op. Cit.: p. 238.
4
CARTÓGRAFOS Y BOTÁNICOS DEL SIGLO
XVIII NEOGRANADINO
¿DOS CARAS DE UNA MISMA MONEDA?

JUAN RICARDO REY MÁRQUEZ*

* Centro Materia (UNTREF) – USAL – IDAES (UNSAM)


JUAN RICARDO REY MÁRQUEZ

E
l estudio de la formación de los pintores especializados en artes aplicadas, presenta
una serie de problemas que no son comunes a otras áreas artísticas. Por una parte
está el conocimiento necesario para producir una obra, según un soporte específico y
una técnica pictórica determinada; por otra se encuentra la dimensión técnica propia
del área de conocimiento que requiere de una representación artística. Esta doble dimensión
implica un trabajo colaborativo que le confiere a las producciones visuales una densidad
particular, pues se trata de obras determinadas por dos áreas de conocimiento cuyo punto
medio es la resolución de un problema de representación. Al pensar en el dibujo botánico
o en la cartografía, áreas de la que nos ocuparemos en este texto, podemos ver más cla-
ramente el problema antes expuesto. En ambos casos se precisa del dominio del dibujo,
aunque determinado por las necesidades de una disciplina ajena según la cual se dirime
la pertinencia de lo representado y la forma misma de la obra. En las expediciones hispa-
noamericanas del siglo XVIII a principios del XIX se presenta una vinculación especial de la
botánica y la cartografía, cuyos intereses coincidieron con los objetivos de la exploración
geográfica y natural.
Salvador Rizo Blanco (Mompox, 1762-Bogotá, 1816), de quien se tienen pocas no-
ticias biográficas, es la clave de nuestra reflexión. Este dibujante botánico llegó a la Real
Expedición Botánica del Nuevo Reino de Granada en marzo de 1784, como se desprende de
una anotación del director de la empresa científica José Celestino Mutis. En su diario el día
28 de dicho mes escribía el científico gaditano: “El viernes pasado se estrenó nuestro Rizo,
quien me parece se adelantará en poco tiempo en esta clase de dibujo, a que no estaba
acostumbrado” (ALBA, 1983: T. II, 186). La anotación de Mutis implica que Rizo contaba con
formación de dibujo, por lo cual el director de la Expedición aducía su capacidad para adap-
tarse a una necesidad especial completamente alejada a lo que venía haciendo. Imposible

40
no interrogarse ¿A qué tipo de dibujo estaba acostumbrado nuestro Rizo?
La pregunta nos lleva a indagar en la biografía de este artista neogranadino. Sabemos
que Salvador nació en la villa de Santa Cruz de Mompox en 1762, que su madre se llamaba
María Hipólita Blanco y que se trasladó a Cartagena en su juventud. Mompox era el principal
puerto fluvial de la depresión momposina, en la isla Margarita del Río Magdalena. Por esta
villa entraban mercancías desde Cartagena de Indias hacia el interior de Nueva Granada
al puerto de San Bartolomé de Honda, hasta Santafé, y salían en dirección contraria para
viajar a Europa. Dado su traslado a la Plaza Fuerte del Caribe, en una fecha indeterminada,
probablemente su formación artística ocurriera allí. De hecho sabemos que Rizo reputaba
como su maestro al pintor cartagenero Pablo Caballero Pimientel (1732-1796), comandan-
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

te de Milicias Pardas de la Plaza de Cartagena quien también se vinculó con la Expedición


Botánica. Por una carta de junio de 1792 remitida a Rizo por Caballero, sabemos que ade-
más de la relación tutelar había gran aprecio y familiaridad entre maestro y discípulo pues
Caballero le pregunta al dibujante por su madre y su hermana, la monja Inesita María Rita
de la Encarnación y termina diciendo: “Esté v[uesa] m[erce]d, en la firme Ynteligencia q[ue]
le é tenido […]como hijo adoptivo, y q[ue] no me separaré jamás de esta consideración…”
(Div. III, 1, 3, 223). Obviamente el padre de Rizo no estaba presente en Cartagena y por
ello Caballero se atreve a considerar al dibujante como un hijo adoptivo. Cabe aclarar que
Caballero tenía familia, estaba casado con Andrea Benavidez, con quien tuvo a Ignacio en
1770 y fuera del matrimonio tuvo a José Feliciano Caballero, subteniente de bandera del
batallón de pardos (SOLANO, 2012: 37).1 Lo interesante del caso, es que esta relación no

1  En el padrón de 1777, aparece la residencia de Caballero en casa baja de la Calle de Nuestra Señora de la Victoria
CARTÓGRAFOS Y BOTÁNICOS DEL SIGLO XVIII NEOGRANADINO

debió ser la de un contrato de aprendizaje común, dado el grado militar del maestro. Para

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


le época, en Cartagena -como en cualquier otra plaza fuerte de la Corona Hispánica- ser
artista y a la vez militar no era inusual (OCHOA, 2012; FLÓREZ Y SOLANO, 2012). De hecho
implicaba que había un vínculo con la acción del cuerpo de ingenieros militares, cuya pre-
sencia en los puertos españoles está detrás de la diseminación de la enseñanza del dibujo
para la cartografía, la edificación de fortalezas y la reparación de naves.

LAS MILICIAS Y LA ENSEÑANZA DE LAS ARTES

El alcalde ordinario de Santafé Manuel Díaz de Hoyos2 presentó un proyecto de refor-


ma de los gremios fechado el 26 de julio de 1789 que, si bien no fue aprobado, nos interesa
por lo establecido en el punto séptimo:

Desde que se fundaron las Milicias compuestas de estos Artesanos, se han llenado de sober-
bia, atreviéndose (como lo tenemos bien experimentado) hasta a los Alcaldes Ordinarios, y
a sus maestros total desobediencia: conviene para el arreglo, no tengan juego, respecto a
los vicios, y obligaciones en los oficios, que sus respectivos Jueces, tengan sobre ellos juris-
dicción pedánea (MURCIA, 2012: 374-380).

Díaz de Hoyos tenía un interés particular por garantizar la sujeción a la ley de “tanta
gente como es toda la plebe, destinada en los gremios, vagamunda (sic) y holgazana, como
se halla en esta ciudad con precisa necesidad de sujeción” (MURCIA, 2012: 375-376). Por
41
ello llama la atención que al mencionar la relación entre las milicias y los gremios subraye
el comportamiento soberbio de los menestrales, pues es una declaración contraria a la idea
que se tiene de un cuerpo militar. Para comprender este pasaje debemos, entonces, indagar
el sentido de época. Cuando se habla de milicias en el siglo XVIII hispanoamericano se hace
referencia a las milicias urbanas, una organización particular para la defensa frente a ame-
nazas externas, vinculada a los Batallones fijos. Estas organizaciones surgen de una nueva
estrategia borbónica de organización de los ejércitos reales, que incluso se reflejó en los
diccionarios de la Real Academia Española, pues en la edición de 1803 aparecen dos tipos
de milicia no mencionados en el diccionario de 1791: las provinciales y las urbanas (DRAE,
1803: 559). No obstante la Real Academia reflejó de manera tardía el cambio, pues en Car-
tagena de Indias venían funcionando milicias de la manera “tradicional”, o sea, como las
establecieron los Austrias, hasta 1773 cuando la reforma borbónica entró en propiedad con

del barrio de Getsemaní, junto con su esposa e hijo. Allí no se especifica que viva con su aprendiz. Adicionalmente
aparece que en la casa alta nº 2 de la calle del Espíritu Santo, Caballero “permanece de día” lo que podría significar
que ésa era la dirección de su taller (Censos - Varios Departamentos: SC.10 - CENSOS-DEPTOS:SC.10,8, D.9, folio
114 r).
2  Según una carta de méritos fechada el 31 de diciembre de 1771 (Archivo Histórico Nacional, Diversos -Coleccio-
nes, 32, N.21) Díaz de Hoyos fue teniente de milicias de Tocaima desde 1762, donde solicitó el grado de teniente
coronel interino al Virrey Francisco Gil y Lemos (el 29 de octubre), quien lo concedió el 10 de noviembre del mismo
año (Archivo Histórico Nacional de España. Sign.: Diversos - Colecciones, 32, N.39). Se encargó del envío de situados
desde Santafé (Bogotá) a Cartagena de 1757 a 1774, siendo diputado de comercio en 1770. En la capital virreinal
fue nombrado alcalde ordinario de la ciudad a pesar de ser Europeo soltero; solicitó el arreglo de las calles de Santafé
(8 de octubre de 1788), comisión que recibió el 17 de marzo de 1789. En cumplimiento de lo anterior construyó un
puente, arregló las calles y el edificio de la Aduana (Archivo Histórico Nacional de España, Diversos-Colecciones, 34,
N.57). Se desempeñó como comerciante, activo en Cartagena entre 1785 y 1796 (PEDRAJA, de la, 1976: 124-125).
JUAN RICARDO REY MÁRQUEZ

la adopción del Reglamento de Milicias de Infantería y Caballería de la Isla de Cuba, fechado


en 17693 (MARCHENA, 1982: 409-411). Si bien ambos cuerpos armados tenían el propó-
sito de apoyar a la tropa profesional, su instrucción y vituallas dejaban mucho que desear
(no tenían armas, ni uniformes, ni pólvora) hasta el último cuarto del siglo XVIII cuando se
logró conformar una tropa miliciana disciplinada buscando dejar atrás su “gran aureola de
inutilidad”4 (MARCHENA, 1982: 416-419); en cuanto a las diferencias, éstas estaban dadas
por su ubicación pues mientras las urbanas actuaban directamente en la Plaza Fuerte las
provinciales se conformaban en los partidos próximos, a partir de una oficialidad elegida
entre las personas más ilustres de cada pueblo (MARCHENA, 1982: 419).
En este contexto de necesidad “defensiva” en las plazas españolas en Indias, se pre-
sentó la urgencia de mano de obra calificada para trabajos relacionados con la reparación
de baluartes, mantenimiento de navíos, armerías, etc. De esta manera se abrió lugar en el
ejército para los artesanos, quienes pronto conformarían milicias en Cartagena de Indias;
las continuas guerras con potencias extranjeras, pero en especial con Inglaterra (1779-1784)
conllevaron la incorporación de nuevos sectores sociales que anteriormente se encontraban
excluidos del ejército (FLÓREZ Y SOLANO, 2012: 17-21). En este punto adquiere sentido la
alusión de Díaz de Hoyos: la creación de milicias de “negros” y “pardos” en las reformas de
1773, dieron inicio a múltiples incidentes en los que los milicianos de las castas presionaron
a los demás estamentos sociales de la Cartagena colonial para exigir su reconocimiento,
amparados doblemente en su condición gremial de artesanos y en la de milicianos, muni-
dos de uniformes y distintivos que portaban tanto con orgullo como con altivez (FLÓREZ Y
SOLANO, 2012: 28-33). De ahí el descontento manifestado por la exigencia de “jurisdicción
de jueces pedáneos”5 que podríamos entender en términos de un reclamo para quitarles el
fuero militar a los artesanos.

42
Este aspecto –en apariencia- marginal de las llamadas reformas Borbónicas, es de
gran trascendencia para la comprensión de la práctica del dibujo en el siglo XVIII. Dada la
gran militarización que se experimentó por entonces en los territorios hispánicos, se debe
tener a los militares de carrera, a los cuerpos de ingenieros y a los mismos milicianos como
vectores fundamentales en lo concerniente a la difusión de la práctica artística en sentido
amplio y en particular del dibujo. Cuando hablamos de militarización, debemos pensar en
cuerpos castrenses con figuras de la talla del ingeniero militar Félix de Azara (1742-1821),
capacitado para la realización de expediciones como la adelantada en el Virreinato del Río
de la Plata, en la que el recuento de cartografía e historia natural son parte de los registros
visuales dirigidos por el explorador (PENHOS, 2005: 204-222). En el caso Novohispano, se
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

conoce el tratado de Alexandro de la Santa Cruz Talabán, escrito en 1778, el cual fue me-
recedor de un estudio profundo (OCHOA, 2012), del que surge un aspecto poco reconocido
en obras generales sobre el arte en los territorios hispánicos como es el de la formación en
dibujo vinculada a las cátedras de matemáticas, pues sabido es que para ingeniería como
para arquitectura eran fundamentales los estudios de perspectiva. La instrucción de los inge-
nieros constaba de cuatro cursos complementados con lecciones extraordinarias: la lección

3  Acá nos enfocamos solamente en el caso cartagenero, pero esta reforma tiene efecto para todo el territorio de ul-
tramar. Para ver la reforma en el contexto americano (MARCHENA, 1992, pp. 106-109).
4  Según el mismo autor, las milicias provinciales continuaron siendo absolutamente inútiles a pesar de la reforma
(MARCHENA, 1982, p. 430).
5  Jurisdicción propia de jueces de aldea o de espacios pequeños, que para el caso puede entenderse como una vigi-
lancia de asuntos locales del comportamiento de los artesanos (DRAE, 1783, p. 715).
CARTÓGRAFOS Y BOTÁNICOS DEL SIGLO XVIII NEOGRANADINO

extraordinaria del tercer curso era de “perspectiva militar” y todo el cuarto curso estaba

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


dedicado al dibujo proyectual para edificaciones civiles y militares (CAPEL et al, 1988: 128-
132). El sargento mayor Talabán escribió su tratado de pintura a la manera de un conjunto
de apuntes extraídos de autores diversos entre los que se destaca Palomino (OCHOA, 2012:
249) por lo que su caso no habría de tomarse como un ejemplo aislado, por lo menos en lo
referido al estudio del dibujo, aunque sí lo sea en la redacción como tal de su tratado.
Para el caso neogranadino nos encontramos en Cartagena con la figura de Pablo
Caballero quien solicitó permiso en 1792 para establecer una escuela de dibujo y pintura
que se conserva en el Archivo General de Simancas (Secretaria_Guerra,7057, EXP.34 SGU,
LEG, 7057, 34, Fol. 275-276).6 En su solicitud, Caballero muestra elementos que nos per-
miten preguntarnos sobre los alcances del ejercicio de las artes en los cuerpos militares
españoles en Indias (SOLANO, 2012). En lo relativo a su trayectoria Caballero se presenta
como Capitán de Granaderos y “...actual comandante interino del batallón de Pardos de
Cartagena de Indias...” Indicando que desde los trece años hasta la edad de 56 –en la fecha
de su solicitud- se encontraba en dicho batallón de “Milicias Pardas” pasando por todos los
grados desde soldado hasta el de capitán, desempeñando tareas tales como “adiestrar a los
Reclutas en el Nuevo ejercicio pagando de su propio causal un tambor y un pito para que
estuviesen más expeditos en la táctica” (fol. 275)
La aseveración del “Nuevo ejercicio” seguramente se refiere al nuevo reglamento de
milicias y a las necesidades de disciplinar a las milicias; a continuación viene lo que más nos
interesa:

Levantar y pintar los planos de fortificaciones de la Plaza y su recinto; pintar el retratode


43
V[uestra] M[ajestad] para el solemne y augusto día de la Proclamación con los emblemas y
cifras alusivos a tan gloriosa función, y otras que más por menos constan de los documentos
originales adjuntos (fol. 275).

Lamentablemente tal documentación no se encuentra en el archivo, con lo cual no


conocemos las imágenes a las que se refiere Caballero; lo que si conocemos en cambio es
el dibujo del uniforme del arma de artillería de la milicia de Pardos tanto en los grados in-
feriores, como en el caso de los oficiales. Para el momento en el que Caballero presentó su
solicitud tenía 56 años y se sentía en capacidad de formar a nuevos reclutas en el arte del
dibujo y en matemáticas dada su solvencia en tales materias. Con respecto a su formación,
aunque Caballero se presenta como autodidacta quizá no se trate de un caso particular de
talento, pues en la ciudad de Cartagena de Indias a lo largo del siglo XVIII hubo muchos in-
genieros militares destinados a la plaza, formados en las academias militares españolas en
el arte de la montea7, además de matemáticas. De hecho la Real Academia para Ingenieros
Militares, ámbito del Real Cuerpo de Ingenieros creado en 1711 (CAPEL et al, 1988: 315),

6  La petición fue presentada por medio del apoderado Pedro Alcántara Pérez Delgado, quien firma como tal un docu-
mento que acompaña la representación de Caballero (fol. 276). El documento está fechado en Aranjuez el 14 de abril
de 1792, recordando que la representación estaba fechada el 26 de enero del mismo año. En el archivo aparecen la
representación de Caballero –cinco caras en total- más la carta de Pérez -una cara- con una foliación como si se trata-
ra solamente de dos folios. Por este problema se dificulta la citación en recto y verso. Por este motivo, nos referiremos
solamente al número de folio sin más indicaciones.
7  La palabra Montea reúne varios sentidos en el siglo XVIII, vinculados con la arquitectura: por una parte se refiere al
corte de los sillares de cantería; también designa al dibujo de tamaño natural de un arco o de una bóveda, para así
diseñan y medir medidas las partes que la componen.
JUAN RICARDO REY MÁRQUEZ

tuvo gran rivalidad con la Academia de San Fernando y sus satélites en la península como
la Academia de San Carlos de Valencia fundada 1768, es decir, en el mismo año de las
ordenanzas de modernización del ejército (CAPEL et al, 1988: 187). Los ingenieros eran in-
dispensables para el mantenimiento del sistema defensivo español en el Caribe y por ello se
complementaban con los artesanos de las milicias. Así en el ámbito militar circuló de manera
fluida el conocimiento en las artes tanto por los militares de carrera como por los voluntarios
milicianos: el ingeniero Juan de Herrera y Sotomayor (1667-1732) fundó en Cartagena la
Academia Militar de Matemáticas Cartaginesas el 9 de abril de 1731, misma que cerró de-
bido a la muerte de su fundador en febrero del año siguiente (CAPEL et al, 1988:343). Esta
academia acogía tanto a cadetes como a civiles para la enseñanza de “matemáticas” para
la ingeniería militar, según el modelo establecido desde el siglo XVII en la Real Academia
Militar de España en Bruselas que comprendía ingeniería, arquitectura militar, geometría
práctica y geografía; así al hablar de matemáticas nos referimos también al dibujo, siendo
el primer grado de un ingeniero el de “delineante” (CAPEL et al, 1988: 15-17, 25-26). La
tradición iniciada por Herrera y Sotomayor se continuó en 1775 cuando el gobernador de
Cartagena Juan Pimienta, recibió la orden de crear una Academia para “oficiales, cadetes,
oficiales distinguidos y gente decente de esta plaza” para la enseñanza de la “importante
ciencia” de las matemáticas (Milicias y Marina: SC.37 - CO.AGN.SC.37.65.148, fol. 2). Para
esta fecha Caballero contaba con 43 años y probablemente pudo haberse desempeñado
como profesor, como era usual en los cuarteles españoles. No obstante no contamos con
documentación para aseverar este hecho, salvo la propia declaración de Caballero quien en
1792 dice haber formado cadetes, como ya se mencionó.
Pero quizá el dato más intrigante hasta el momento sea el del “batallón de artilleros
pardos” creado a solicitud del pintor pardo Casimiro José Jinete “maestro mayor del arte de

44
pintores” quien propuso en Cartagena en 1773 formar una compañía compuesta por cien
“…artilleros voluntarios pardos […incluidos…] seis cadetes o soldados distinguidos hijos de
pardos decentes […para que…] estos desde su infancia [se estén] instruyendo en las faccio-
nes militares y tomen amor al real servicio…” lo cual, dice Jinete, se hará “…a satisfacción
de vuestra excelencia [el Virrey Manuel Guirior] y del comandante de artillería don Domingo
Esquiaqui…” (Archivo General de la Nación Colombia, Fondo Milicias y Marina, Sc. 37, 67,
D 49. Fol. 277 r).8 Jinete figura en el padrón de pintores de 1780 con residencia en la man-
zana 8, casa número 3 del barrio de Santa Catalina de Cartagena, con 44 años de edad, lo
que implica que nació en 1736 y por tanto era de la misma generación de Caballero (Censos
- Varios Departamentos: SC.10-CENSOS-DEPTOS:SC.10,6, D.72). Era un artista apreciado
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

aunque no conozcamos obras de su mano, como se desprende de un episodio relacionado


con la circulación de estampas del Juicio Final, mandadas a recoger con “Mano Regia” en
1772 (Archivo General de la Nación Colombia, Fondo Policía: SC.47 - Policía: SC.47, 3, D.21
y Fondo Real Audiencia - Cundinamarca: SC.59 – Real – Audiencia -C/Marca:SC.50,6,D.32)
por la sospecha de un acto de sedición al ubicar las armas de Carlos III del lado de los con-
denados (ROMERO Y SIRACUSANO, 2010). Jinete hace las veces de perito en la diligencia
llevada a cabo en Cartagena en 1773 y al parecer realiza un dibujo de la estampa incautada
a Domingo Cearra para el proceso (Archivo General de la Nación, Fondo Milicias y Marina,
T 128, Fols. 644 r-661r).9
Once años después Jinete solicita al rey una medalla “de las de mérito” por sus ser-

8  Tomado de MURCIA, Vargas. 2012, pp. 361-362.


9  Tomado de MURCIA, Vargas. 2012, pp. 365-366.
CARTÓGRAFOS Y BOTÁNICOS DEL SIGLO XVIII NEOGRANADINO

vicios en la plaza durante 33 años, entre las milicias antiguas y las “nuevas”, llegando a

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


obtener el grado de capitán de fusileros luego de haber formado la compañía de artilleros
pardos compuesta de “cien hombres de todos oficios, que a su costa los vistió, y coordinó
para Artilleros con los considerables desvelos, y fatigas… ” (Archivo General de la Nación,
Fondo Milicias y Marina: SC.37 - CO.AGN.SC.37.59.32, Cartagena, 1784, Fols. 131r-139v).
Lo trascendental de este caso es que la propuesta fuera aceptada, que la compañía fuera
dirigida por un pintor, bajo la comandancia general del ingeniero Esquiaqui –quien firma
dando fe (Fol 132r)- y que estuviera destinada a formar milicianos pardos, casta a la que
pertenecieron dos dibujantes de la Expedición Botánica: Pablo Caballero y Salvador Rizo
¿acaso se deba a las milicias pardas la primera formación de Rizo?

UN DIBUJANTE MULATO EN LA EXPEDICIÓN DE ANTONIO DE LA TORRE Y MIRANDA

En el amplio espectro sobre las artes en el siglo XVIII hasta acá presentado, nos
encontramos básicamente con un problema historiográfico. De atenernos solamente a la
formación artística en las instituciones que formaron parte de la órbita de San Fernando,
nos encontramos con el reclamo de la falta de academias en Hispanoamérica y por ende la
ausencia del pensamiento ilustrado en las colonias de ultramar. Pero si se enfrenta el mismo
problema de la formación desde otra perspectiva, surge la presencia de otras academias
con una movilidad de artistas, saberes y conocimientos más amplia que la que teníamos
en cuenta hasta el momento. El ingeniero Bernardo Fernández del Anillo llega al virreinato
como “director de fábricas de aguardiente” del Nuevo Reino de Granada en 1793 (Archivo
45
General de Indias, Arribadas, 517, N.7, fol. 52); Fernández del Anillo era discípulo del ca-
talán Benito Bails (1730-1797), autor de “Principios de matemática de la Real Academia de
San Fernando” que no era otra cosa que las llamadas Matemáticas mixtas que incluían la as-
tronomía, la gnomónica (relojes de sol), la relojería, la topografía y la fortificación. En Nueva
Granada el ingeniero Fernández del Anillo trabajó junto con el arquitecto fray Domingo de
Petrés (GUTIÉRREZ Y PERFETTI, 1999: 66). En este caso nos encontramos con un ingeniero
que por una parte es suscriptor de Elementos de fisica teórica y experimental, escrito por
Joseph-Aignan Sigaud de La Fond y traducidos por el ingeniero militar Tadeo Lope (1787)
y por otra parte abrió en Santafé una escuela de dibujo y arquitectura, hacia fines de 1801
(SILVA, 2002: 461). Baste este ejemplo para señalar cómo un ingeniero – como Fernández
del Anillo- fungía como un agente transmisor del conocimiento impartido en la península,
sin necesidad de la existencia de una academia neogranadina formal.
Las academias del ramo militar tuvieron mucho que ver con la difusión de las artes en
los territorios hispánicos por lo que podríamos denominar un auténtico cambio de paradig-
ma: por una parte la naturaleza castrense de estas instituciones es muy diversa de lo que se
pensaría actualmente para el ramo militar y por otro lado en el siglo XVIII el dibujo recibió
con justeza un lugar preponderante en la sociedad. Por la misma razón, aquellas institucio-
nes que quisieran modernizarse o estar en consonancia con los debates del siglo debían re-
conocer la importancia del conocimiento y del dibujo como una herramienta indispensable.
Esto explicaría el caso particular de la formación artística de Salvador Rizo Blanco. Como se
desconoce su biografía antes de 1784, lo presentado has acá nos permite imaginar cómo se
dieron los primeros años de Rizo. En primer lugar se encuentra con el pintor Pablo Caballero,
de calidad pardo como él, quien fungió como su maestro. Gracias a los trabajos del historia-
JUAN RICARDO REY MÁRQUEZ

dor cartagenero Sergio Paolo Solano tenemos una aproximación de los lugares en los que
pudo vivir Rizo con su maestro. En el censo del barrio de la Santísima Trinidad de Getsemaní
en Cartagena de Indias, en 1777, aparece asentada la vivienda de Caballero en casa baja
de la Calle de Nuestra Señora de la Victoria y en otra referencia dice que “permanece de
día” en la Calle del Espíritu Santo, vecina a la ermita de San Roque (SOLANO, 2012: 37).
Para esta fecha, Rizo contaba con quince años por lo que podría estar ya como aprendiz de
Caballero, aunque se desconoce si bajo un contrato de trabajo. Poco después llega a Carta-
gena Antonio de la Torre y Miranda (1734-1805), explorador del Caribe neogranadino que
tenía la misión de estudiar y organizar las poblaciones dispersas en dicha región. Para tal
trabajo contó con los servicios de Rizo, en calidad de delineante cartográfico, para producir
los mapas de Cartagena en 1777 (AGS MP-PANAMA, 339)10, la región del Darién y “Calido-
nia” en 1779 (AGS MP-PANAMA, 193), y las provincias del Orinoco en 1783 (MP-PANAMA,
197). La exploración de tales territorios era fundamental para el fortalecimiento del sistema
defensivo español: en el área del Caribe la llamada “Calidonia” o “Nueva Caledonia” era
una colonia de piratas escoceses - no reconocida por Inglaterra - que fue erradicada por la
Corona Española, a pesar de lo cual se asentaron posteriormente ingleses y franceses (AL-
CEDO, 1786: T. I., 316). Entre tanto el Orinoco designaba toda la cuenca del río homónimo
donde se encontraban terrenos poco explorados y desconocidos en la cartografía española,
cuyo estudio era capital para asegurar los límites con las posesiones portuguesas. De otra
parte sabemos que en 1781 Pablo Caballero De la Torre y Miranda y Rizo marcharon hacia
Santafé (Bogotá) como milicianos integrantes del Batallón fijo de Cartagena para enfrentar
el Alzamiento de los Comuneros (SOLANO, 2012: 38; ÁNGEL, 1993: 222-223, 238-239),
movimiento contrario a las reformas fiscales adelantadas por la corona. En suma, al com-
pletar la cronología de Rizo, vemos que estuvo como discípulo de Caballero en la década

46
de 1770, entre 1777-1779 inicia sus labores como delineante con De la Torre y Miranda, en
1781 interrumpe sus actividades para actuar como integrante de las Milicias pardas de Car-
tagena, en 1783 retoma su trabajo al realizar el mapa del Orinoco y a través del contacto
de De la Torre y Miranda con Mutis, finalmente el joven dibujante pardo pasó a principio de
1884 a la Oficina de Pintores de la Expedición Botánica.
Lo expuesto hasta este punto, da cuenta de la probable formación inicial de Rizo,
un joven momposino que llegó a ser un gran dibujante botánico gracias a su formación en
matemáticas mixtas, como consecuencia del ramo de ingenieros militares y las milicias de
artesanos pardos y negros de Cartagena. Un pardo de los cuerpos de milicias reformadas,
en las que maestros mayores de las artes como Jinete y Caballero, enriquecían un ambiente
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

pleno de proyectos para el florecimiento de las artes y el adelantamiento del reino gracias
a la enseñanza del dibujo. Llamativamente Rizo no hizo referencia a su pasado miliciano
cuando envió una representación al virrey Antonio Amar y Borbón, en 1803, cerca al final de
su vida y cuando estaba cerca a completar tres décadas al servicio de la botánica (MANTILLA,
1996). En dicha representación Rizo designa su trabajo en la Real Expedición Botánica como
el principio de su vida, con el cargo de mayordomo y primer dibujante, junto a una magní-
fica definición de su trabajo: “El dibujo, pues, este arte precioso tan necesario a las ciencias
demostrativas y a las artes útiles ha sido uno de los ramos de mi diaria y continua ocupación”
(MANTILLA, 1996: 520). Esta petición fue el principio del fin de Rizo como dibujante Botáni-
co pues Mutis estaba muy enfermo y murió en 1808, dos años antes del inicio del proceso
de Independencia de la que hoy es la República de Colombia. En medio de luchas entre los

10  Se cita una copia hecha diez años después y conservada en el Archivo de Indias.
CARTÓGRAFOS Y BOTÁNICOS DEL SIGLO XVIII NEOGRANADINO

miembros de la Expedición, Rizo fue injustamente acusado de robar dineros y materiales de

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


la empresa mutisiana tras lo cual renunció a su cargo y pasó a integrar el ejército de Simón
Bolívar como provisor de gastos. Por este motivo fue capturado por el Ejército de Reconquista
comparado por Pablo Morillo y fusilado por rebelión en 1816 (MANTILLA, 1996).
Valga este breve ejercicio biográfico para dar mayores luces sobre la obra de un ar-
tista lamentablemente olvidado, de quien sabemos que produjo –como Talabán- un tratado
artístico que quizá sea el primero que vincula el arte y la ciencia en Hispanoamérica. Este
manuscrito, fechado el 27 de julio de 1804, tenía por título Experimentos prácticos para la
miniatura, nuevas composiciones de los colores para la imitación del reino vegetal inventados
en la Real Expedición para su flora y sabemos de su existencia por un investigador alemán
que lo vio hacia finales del siglo XIX en la colección del entonces presidente de Colombia,
Miguel Antonio Caro (SCHUMACHER, [1884] 1984). El manuscrito, lamentablemente per-
dido, contiene fórmulas cromáticas formadas a partir de productos vegetales y minerales
propios de América, y en especial el Nuevo Reino de Granada (AMAYA, 1986). No obstante
le sobreviven los más de seis mil dibujos que componen el acervo de la obra Mutisiana y una
serie reducida de mapas. Dos caras de la vida de un dibujante, explorador y tratadista que
fue el mejor fruto de las reformas borbónicas para la defensa de América y murió fusilado
en 1816, por integrar el bando de la Indepencia. Pero ése es tema para otra historia.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBA, Guillermo Hernández de (comp.). Diario de observaciones de José Celestino Mutis


47
(1760-1790). 2 Tomos. Bogotá, Instituto Colombiano de Cultura Hispánica / Ediciones del
segundo centenario de la Real Expedición Botánica, 1983.
ALCEDO, Antonio de. Diccionario histórico-geográfico de las Indias Occidentales. Tomo I.,
Madrid, Imprenta de Benito Cano, 1786.
AMAYA, José Antonio. Mutisiana minima: selección de veintiséis láminas de la Real Expedición
Botánica del Nuevo Reyno de Granada. Madrid: Turner, 1989.
ÁNGEL, Pilar Moreno de. Antonio de la Torre y Miranda. Viajero y poblador Siglo XVIII. Bogo-
tá, Planeta, 1993.
CAPEL, Horacio (et. al.). Los ingenieros militares en España, siglo XVIII: repertorio biográ-
fico e inventario de su labor científica y espacial. Universidad de Barcelona, 1983. ISBN
8475281176.
FERNÁNDEZ, Juan Marchena. La institución militar en Cartagena de Indias en el siglo XVIII.
Sevilla, Escuela de Estudios Hispano-Americanos de Sevilla, 1982.
__. Ejército y milicias en el mundo colonial americano. Madrid, Mapfre, 1992.
FLÓREZ, Roicer; SOLANO, Sergio Paolo. Artilleros pardos y morenos artistas: Artesanos, raza,
milicias y reconocimiento social en el Nuevo Reino de Granada, 1770 – 1812. En: Historia
Crítica, No. 48, Bogotá, Universidad de los Andes, 2012, pp. 11-37. ISSN: 0121-1617.
MANTILLA, Luis Carlos O. F. M. Recordación del pintor Salvador Rizo 180 años después de
su sacrificio. En: Revista Academia colombiana de la ciencia. Bogotá, Vol. XX, Núm. 78, no-
viembre, pp. 519-525, 1996.
OCHOA, Rocío Gamiño. Alexandro de la Cruz Talabán. Un tratado artístico y científico inédi-
to, 1778. México, UNAM / Instituto de Investigaciones Estéticas, 2012.
PENHOS, Marta, 2005. Ver, conocer, dominar. Imágenes de Sudamérica a fines del siglo XVIII.
JUAN RICARDO REY MÁRQUEZ

Buenos Aires, Siglo XXI.


ROMERO, Agustina Rodríguez; SIRACUSANO, Gabriela. El pintor, el cura, el grabador y la
muerte. Los rumbos de una imagen del Juicio Final en el siglo XVII. En: Eadem Utraque Eu-
ropa, Buenos Aires, Año 6, Núm. 10/11, junio-diciembre, pp. 9-29, 2010.
SCHUMACHER, Hermann. Mutis, Un Forjador De La Cultura [1884]. Trad. Ernesto Guhl. Bo-
gotá, Empresa Colombiana de Petróleos, 1984.
SILVA, Renán. Los ilustrados de Nueva Granada 1760 – 1808. Genealogía de una comunidad
de interpretación. Medellín, Banco de la República, Fondo editorial Universidad Eafit, 2002.
SOLANO, Sergio Paolo. Entre pinceles y armas. Pablo Caballero Pimientel, pintor y capitán
de Milicias Pardas en Cartagena de Indias, Siglo XVIII. Revista Amauta, Universidad del Atlán-
tico • Barranquilla (COL.) • ISSN 1794-5658 • NO. 20 • Julio-DIC 2012 • 25-59, 2012.

Archivos consultados

ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN, Colombia. Fondos: Censos, Milicias y Marina.


ARCHIVO DE SIMANCAS, Sección Guerra, Documentos iconográficos.
ARCHIVO DE INDIAS.

48
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019
5
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA
CATÁSTROFES E RECONSTRUÇÕES

ANGELA BRANDÃO*

* Professora do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH – UNIFESP).
Bolsista em Produtividade de Pesquisa CNPq 2. Esta pesquisa conta com apoio da FAPESP – Auxílio Regular, pro-
cesso 2017/20984-6.
ANGELA BRANDÃO

E
ste texto estabelece a fronteira entre dois momentos históricos, distantes no tempo em
quase noventa anos e distantes no espaço em mais de dois mil quilômetros: o incêndio
de Londres, de 1666 e o terremoto de Lisboa, de 1755. Em ambas as catástrofes, as
maiores ocorridas no mundo moderno, os processos de reconstrução resultaram em
ricos debates sobre arquitetura e urbanismo e sobre como conceber uma cidade a partir
da destruição, porém tomando como base preceitos da tradição clássica. Interessa pensar,
aqui, especialmente, o papel, nestes contextos, do tratado de arquitetura de Giacobo Ba-
rozzio da Vignola e sua tradução e adaptação ao inglês por John Leeke, em 1669; assim
como as edições em língua portuguesa de 1787 de José Carlos Binheti e de José Calheiros
de Magalhães e Andrade.
A comparação entre o incêndio de Londres de 1666 e o terremoto de Lisboa de 1755
não é inusitada e tampouco inédita. Este paralelo foi observado antes por diversos ângulos:
místico-religiosos; urbanísticos e históricos, para refletir comparativamente sobre projetos
de reconstrução de cidades destruídas1. Os dois acontecimentos trágicos são considerados,
juntos, entre as maiores catástrofes urbanas do mundo moderno. O momento que vivemos
no Brasil de 2019 traz à tona um sentimento de cumplicidade histórica com os grandes de-
sastres do passado e o interesse por compreender como as duas cidades foram capazes de
se reconstruir e de se reinventar por inteiro após terem sido devastadas2.

1. O INCÊNDIO DE LONDRES DE 1666

Desde os primeiros anos que se seguiram ao chamado Great Fire of London, muitos
livros e estudos tentaram explicar como o incêndio que, de início, acometeu um único edi-

50
fício foi capaz de destruir a cidade praticamente inteira. Os fatos são bastante conhecidos.
No verão de 1666, na padaria do rei Charles II, de propriedade de Thomas Farriner, em
Pudding Lane – próximo à ponte de Londres – teve início o fogo que atingiu uma inimaginá-
vel proporção. As ruas estreitas da cidade ainda medieval, cujo crescimento havia sido de-
sordenado3, com casas construídas em madeira de carvalho e revestidas de alcatrão (usado
para combater a ação da umidade), totalmente coladas umas às outras; o armazenamento
doméstico de combustíveis e produtos inflamáveis, usados para aquecimento; o vento forte,
e outros vários fatores contribuíram para que, em quatro dias, oitenta por cento da cidade
fossem destruídos4.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

1  TAGLIANI, Simone. Como as tragédias em Londres e Lisboa ajudaram a moldar a arquitetura dessas cidades. In Blog
da Arquitetura Disponível em: https://blogdaarquitetura.com/como-as-tragedias-em-londres-e-lisboa-ajudaram-a-
-moldar-a-arquitetura-dessas-cidades/ Acesso em 03 de junho de 2019. LIMA, Magdalena Costa e NETO, Maria
João Baptista. Duas catástrofes históricas: o Grande Incêndio de Londres e o Terramoto de Lisboa de 1755 – efeitos
no Património Artístico e atitudes de recuperação in Conservar Património 25 (2017) 37-41 https://doi.org/10.14568/
cp2016047. Acesso em 03 de junho de 2019. ARP - Associação Profissional de Conservadores-Restauradores de Por-
tugal http://revista.arp.org.pt. TAVARES, Rui. O Pequeno Livro do Grande Terramoto. Ensaio sobre 1755. Lisboa: Tinta
China, 2019. p.122.
2  Um dos livros fundamentais sobre o tema e, mais especificamente, sobre a reconstrução de Londres foi publicado
em 1940, escrito em 1939, em meio aos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Para o autor, pensar sobre a
reconstrução de Londres após o Grande Incêndio de 1666 era uma forma de refletir sobre como reconstrui-la após
os bombardeios aéreos alemães. REDDAWAY, T. F. Rebuilding of London after the Great Fire. London: Johnatan Cape,
1940. Oxford, Alden. p.19.
3  Ibid. pp. 21-39.
4  HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc year, 1666. New Jersey, John Wiley & Sons, 2002. pp.
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA

Sobre Londres havia-se abatido uma terrível epidemia de peste bubônica, no ano

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


anterior ao grande incêndio. O fogo era usado como uma forma de assepsia e controle de
transmissão da doença, recomendado e praticado em vários locais. Após o Grande Incêndio
e talvez como um resultado ironicamente contraditório, a cidade nunca mais sofreu epide-
mias de peste bubônica5.
As razões apontadas para explicar esta impressionante tragédia urbana são muitas.
Não faltaram, por certo, premonições e explicações místicas como castigo divino ou cabalís-
tico relativo à data 666. No entanto, as razões climáticas poderiam, como vimos, somadas a
outros fatores, explicar por que ocorreu o Great Fire: um período de seca o havia precedido,
e durante os dias do incêndio, soprava um forte vento sobre a cidade que contribuiu para a
propagação do fogo6.
Quando o incêndio se iniciou não se poderia imaginar, contudo, as proporções que
iria atingir em poucos dias. À medida em que o fogo avançava, a população de Londres
ia abandonando suas casas e carregando o que podia de seus pertences. Os métodos de
combate ao fogo eram muito rudimentares no século XVII: água transportada manualmente
ou por animais em grandes tinas. Adotou-se, também, o desmoronamento de edifícios em
pedra para tentar conter o avanço do fogo, o que ampliou a destruição da cidade. Notou-
-se, também, a negligência por parte das autoridades da Corte de Charles II. A fuga do Rei,
levando consigo todos os tesouros, não deixava de representar uma espécie de abandono7.
O Grande Incêndio de Londres não destruiu somente edifícios e bens, mas “apagou
os traços de uma cidade medieval de seis séculos”, praticamente nada da velha cidade so-
breviveu. Segundo relatos da época, depois do incêndio, Londres ficou tão vazia, um campo
aberto, no qual era possível, estando de um lado da cidade, ver até o outro lado8. Treze mil
51
edificações, noventa igrejas e incontáveis edifícios públicos foram reduzidos a cinzas.
O número de mortos é impreciso, pois não havia recenseamento de grande parte da
população mais pobre. Não se chegou, nem mesmo em pesquisas mais recentes, a uma
conclusão a esse respeito. A peste, que havia se abatido sobre a população no ano anterior,
teria provocado um grande número de mortes não registradas. Embora os dados oficiais
apontassem uma dezena de mortos, relatos da época descreviam que procuravam e encon-
travam corpos entre as ruínas. O incêndio, assim, havia desabrigado mais de duzentas mil
pessoas. Após a catástrofe, episódios de fome e o frio do inverno que se sucederam foram
causas de grande mortalidade entre os sobreviventes desalojados, relacionadas às conse-
quências do incêndio9.
Não somente as causas foram tratadas sob prismas diferentes, como também houve
um esforço em apontar os culpados pela tragédia. Como vimos, a Corte, o próprio Rei e as
autoridades foram tão logo acusadas por negligência. Várias suspeições de incêndio crimi-
noso foram colocadas sobre a mesa, tendo sido criado um comitê de investigação. Poucos

31, 160, 240, 157, 149. Neil Hanson é autor de livros populares de não-ficção, com grande sucesso de público.
Embora não seja um historiador, trata de temas históricos, a partir de pesquisa sobre fontes primárias. Ainda que
com certo grau do que poderíamos chamar de “sensasionalismo histórico”, sua narrativa sobre o Grande Incêndio
de Londres é bastante detalhada e baseou-se em vasta pesquisa de documentação e também em estudos científicos
recentes sobre causas de incêndios.
5  HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc year, 1666.op.cit. p. 3, 178.
6  Ibid. p. 25, 29, 158.
7  Ibid. pp. 30, 76, 82, 183-184.
8  HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc year, 1666.op.cit. pp. XVIII, 95-96, 107-109, 161-169.
9  HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc year, 1666.op.cit. pp. 172, 243-246.
ANGELA BRANDÃO

acreditavam que o incêndio teria sido um mero acidente. Acusavam-se católicos, papistas,
estrangeiros, sobretudo alemães e franceses. Muitos foram presos e interrogados10.
Com a destruição de Londres pelo fogo, cogitou-se a transferência da capital para
Iorque ou para outras partes do Reino, mas a ideia foi rejeitada. Para a reconstrução, foi
criado um comitê que se reuniu nos primeiros dias logo após o incêndio11. As propriedades
– terrenos vazios sob os escombros, foram regularizadas. Uma lei sobre a reconstrução de
Londres foi promulgada em fevereiro de 1667, impondo controle rigoroso sobre os novos
edifícios: todos deveriam ser construídos de tijolos ou pedras, “não apenas mais belas e
duráveis, mas também mais seguras contra futuros perigos de incêndio” (1667 Rebuildind
Act). Apenas quatro tipologias de casas foram permitidas, com uma série de especificações
impostas quanto a altura, recuo, telhados e chaminés. O uso da madeira foi praticamente
banido das novas construções. Ocorreu, portanto, um processo de padronização das arqui-
teturas, casas estandartizadas. Para Reddaway, de fato, o incêndio transformou a cidade de
madeira em cidade de tijolos12.
A velocidade exigida para a reconstrução de Londres foi responsável por abalar outro
aspecto da sociedade medieval: as corporações de ofício e seus privilégios. Carpinteiros,
pedreiros, ensambladores e outros artífices foram chamados a trabalhar de madeira livre
das rígidas regras das guildas13. Para Reddaway, houve de fato a violação dos direitos das
guildas de Londres. Tentou-se, em certa medida, manter alguma regulamentação das cor-
porações de ofícios e controlar os trabalhadores que atuariam na reconstrução, como no
caso dos carpiteiros. Porém, a urgência que se impunha sobre os trabalhos acabou levando
à admissão de estrangeiros, aprendizes, ex-soldados e trabalhadores livres sobreviventes da
Peste e do Incêndio. No entanto, este processo de abertura das atividades a artesãos livres,
em oposição ao controle das guildas, resultou em inúmeros conflitos e processos14.

52
De fato, Londres ficou em ruínas durante os primeiros anos após o incêndio. Algo
foi sendo refeito, mas ainda em 1668 se dizia de escombros por todas as partes. Segundo
Reddaway, somente após três anos a cidade “começou a reviver” e somente após dez anos
da calamidade se poderia afirmar que Londres estava reconstruída e voltava à vida normal.
Contudo, no final de 1670 nenhuma das oitenta e quatro igrejas destruídas tinha sido reer-
guida. Em 1696, cinco igrejas ainda não tinham sido reconstruídas por completo. Trinta anos
seriam necessários para a reconstrução de igrejas menores15.
Foram apresentados cinco projetos urbanísticos, por assim dizer, para a reconstrução
de Londres. Os mais ambiciosos foram os projetos de Christopher Wren e John Evelyn, entre
outros mais modestos e de custos reduzidos. De modo geral, o traçado original foi mantido.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Para Reddaway, com efeito, prevaleceu uma reforma moderada, inspirada no passado e

10  Um personagem, com indícios de problemas mentais, foi considerado culpado, ao confessar ter causado o incên-
dio, foi punido com a pena de morte pública e exemplar HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc
year, 1666.op.cit. pp. 167-168, 179, 181, 192, 204, 221.
11  REDDAWAY, T. F. Rebuilding of London after the Great Fire. Op. Cit. pp. 53 e ss.
12  REDDAWAY, T. F. Rebuilding of London after the Great Fire. Op. Cit. pp. 68-90.
13  HANSON, Neil. Op.cit. pp. 176-177. REDDAWAY, T. F. Rebuilding of London after the Great Fire. Op. Cit.P. 32
14  REDDAWAY, T.F. op. Cit. pp.115, 117 e ss.
15  HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc year, 1666. Op.ct. pp. 227-229, 176-177. TAGLIANI,
Simone. Como as tragédias em londres e lisboa ajudaram a moldar a arquitetura dessas cidades. In Blog da Arquite-
tura. Disponível em: https://blogdaarquitetura.com/como-as-tragedias-em-londres-e-lisboa-ajudaram-a-moldar-a-
-arquitetura-dessas-cidades/ Acesso em 03 de junho de 2019. REDDAWAY, T. F. Rebuilding of London after the Great
Fire. Op. Cit. pp. 244,282, 126.
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA

sem antecipar as necessidades do futuro, ainda que algumas novas necessidades de trá-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


fego tenham sido consideradas. O sonho de uma cidade com planejamento inteiramente
novo fracassou. Apesar do entusiasmo, “as ruínas eram uma realidade mais forte do que
os planos sobre o papel”. Impuseram-se praticidade, economia, segurança e velocidade de
reconstrução. Ainda assim, com a forte regulamentação sobre a reconstrução das casas,
mesmo seguindo o traçado anterior, pode-se considerar que a cidade foi algo planejada e
que o medievalismo deu lugar “ao moderno”. A cidade medieval se abriu para uma nova
Londres com ruas mais largas e abertas e, definitivamente, mais seguras16.
Para Richard Sennet, o projeto de Christopher Wren era a manifestação de seu varia-
do e profundo conhecimento científico, da astronomia à dissecação de animais. A arquitetu-
ra era, portanto, um acréscimo a seus interesses científicos. A mera reconstituição da velha
cidade com a substituição, sob o mesmo traçado, dos edifícios de madeira por edifícios de
pedra e tijolos não foi a opção adotada por Wren, propondo uma inovação em termos de
urbanismo, com base em seu conhecimento sobre lentes ou sobre o corpo humano. Havia
cinco projetos para a reconstrução de Londres, como vimos. O projeto de Wren, assim como
o de Jonh Evelyn, transpunha para o urbanismo a observação do céu através de um telescó-
pio. Assim, também o microscópio parecia um instrumento adequado para indicar uma nova
forma de investigar a cidade, calculando densidade populacional e necessidades de servi-
ços urbanos. Os estudos de Wren acerca da circulação sanguínea lhe forneciam elementos
para compreender a circulação urbana – “a cidade circulatória”. Porém, as críticas sobre seu
projeto recaíam sobre a falta de um “coração”, uma praça central coordenadora dos fluxos.
Promover uma reestruturação inovadora de Londres, em lugar de restaurar o que existia da
mesma forma que a cidade anterior, mostrou-se uma opção muito exigente para a época e
53
impossível de ser executada com os recursos técnicos e financeiros de que se dispunha até
então17.
Ainda assim, segundo Reddaway, uma reconstrução exata sobre o modelo medieval,
“o velho modelo”, não seria tolerada. Melhorias deveriam ser e foram feitas. Rejeitou-se a
ideia de que a cidade devesse ser reconstruída “ao azar”, “ao improviso”, mesmo diante da
necessidade de uma reconstrução rápida, iniciativas individuais foram proibidas. O incêndio,
apesar de tudo, havia sido uma oportunidade de “refazer a cidade” sob uma nova lógica18.

2. O TERREMOTO DE LISBOA DE 1755

No dia 1º. de novembro de 1755, Lisboa sofreu um forte abalo sísmico, provocando
um dos piores desastres naturais de toda história, com 8,9 graus na escala Richter, sentido
em diversas partes do planeta. Além de novos tremores intensos que se seguiram, a capital
de Portugal foi invadida por três enormes ondas provocadas por maremoto que destruíram
o porto, o cais e muitos dos navios e barcos ancorados. Lisboa foi logo consumida por incên-
dios, possivelmente em razão das incontáveis velas que ocupavam as igrejas em celebração

16  HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc year, 1666. Op.ct. pp. 227-229, 176-177. TAGLIANI,
Simone. COMO AS TRAGÉDIAS EM LONDRES E LISBOA AJUDARAM A MOLDAR A ARQUITETURA DESSAS CIDADES. In
Blog da Arquitetura. Disponível em: https://blogdaarquitetura.com/como-as-tragedias-em-londres-e-lisboa-ajuda-
ram-a-moldar-a-arquitetura-dessas-cidades/ Acesso em 03 de junho de 2019. REDDAWAY, T. F. Rebuilding of London
after the Great Fire. Op. cit. pp. 79, 111.
17  SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2012. pp. 225-229.
18  REDDAWAY, op. cit. pp. 48-50.
ANGELA BRANDÃO

ao Dia de Todos os Santos. Grande parte da cidade foi transformada em ruína. Relatos da
época falam de um pesadelo coletivo 19.

O Paço da Ribeira, o palácio do rei, à beira do rio, estava em ruínas, assim como a Casa
da Índia, a Alfândega, a Casa da Ópera e – para grande satisfação de protestantes, judeus
e ‘livres pensadores’ – o Palácio dos Estaus, sede da Inquisição. Mais de vinte igrejas paro-
quiais foram completamente destruídas, assim como alguns dos maiores conventos e mos-
teiros. Grande número de palácios particulares e residências, lojas e armazéns, hospícios e
mercados foram devidamente arrasados. Mas as estruturas que mais sofreram foram, como
seria previsível, as habitações humildes, sem falar nos casebres, da classe trabalhadora e
pobre de Lisboa; estes estavam reduzidos a meros montes de pó, sem qualquer esperança
de reparo. A cidade não parecia Lisboa, mas uma versão deturpada por um pesadelo20.

A área de Lisboa especialmente atingida pelo terremoto e pelo fogo era justamente
a mais populosa e próspera, que abrigava instituições políticas, econômicas, eclesiásticas e
comerciais importantes. Para além dos prejuízos econômicos, que seriam recuperados com
o tempo, houve uma perda irrecuperável de “riqueza de livros, manuscritos, pinturas, escul-
turas, tapeçarias, mobília e objetos de arte que decoravam os palácios reais e particulares
(...)21”. As perdas humanas foram também inestimáveis. Calcula-se que quinze por cento da
população da cidade foi dizimada. Estimou-se, logo depois do terremoto, cem mil mortes,
número que seria contestado em seguida. “Mas mesmo as estimativas moderadas de dez
mil vítimas são bastante assustadoras. Em poucos dias, Lisboa perdeu aproximadamente dez
por cento de seus 250 mil habitantes: a cidade foi literalmente dizimada”. Embora a maioria
dos mortos fosse constituída pelos pobres de Lisboa e tenha havido poucas mortes nas re-

54
giões mais nobres, centenas de vítimas fatais de todas as classes sociais estavam dentro das
igrejas, participando das celebrações do Dia de Todos os Santos22.
Para Shardy, o terremoto de Lisboa não representou apenas uma das mais terríveis
calamidades em toda a história da humanidade, mas também a causa de uma mudança
de paradigma. O terremoto colocou em xeque a filosofia otimista de Leibniz, pôs fim ao
obscurantismo católico e inquisitorial ainda presente em Portugal, e abriu as portas para o
pensamento de Voltaire e para o Iluminismo23.
Após o terremoto, a destruição de Lisboa parecia de tal modo irreversível que se
cogitou a mudança da capital para Coimbra, Évora, Porto, ou até mesmo para o Rio de Ja-
neiro. Mas foi, em grande medida, a atuação política do secretário de Dom José I, Marquês
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

de Pombal, que manteve Lisboa como o centro do poder e foi quem se esforçou por sua
reconstrução, como metáfora das transformações filosóficas, religiosas e políticas, ligadas a

19  TAGLIANI, Simone. Op. cit. SHARDY, Nicholas. O último dia do mundo: fúria, ruína e razão no grande terremoto
de Lisboa de 1755. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. p. 31. TAVARES, Rui. Op. cit. pp. 71-89.
20  SHARDY, Nicholas. Op. cit. p. 31.
21  Ibid. pp.75-76.
22  SHARDY, op. Cit. p. 69-70.
23  Ibid. pp. 137-173, 203-235. É bastante conhecida a passagem do livro Cândido, de Voltaire, que trata da catástrofe
de Lisboa, justamente no contexto de uma oposição ao pensamento de Leibiniz que propunha que tudo concorre para
o bem e que o bem se manifesta sempre em todas as coisas. O terremoto foi apontado por Voltaire como metáfora
para combater o pensamento leibiniziano. VOLTAIRE, Cândido ou o Optimismo. Tradução, notas e posfácio de Rui
Tavares. Lisboa: Tinta China, 2006. TAVARES, Rui. O Pequeno Livro do Grande Terramoto. Ensaios sobre 1755. Op. cit.
pp. 151-165.
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA

sua ascensão junto ao Rei24.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


As relações políticas e comerciais entre Portugal e Inglaterra, como se sabe, eram in-
tensas durante o século XVIII. Portugal se transformara numa passagem das riquezas advin-
das das jazidas de ouro e outros minerais preciosos extraídos da Colônia Brasil em direção à
Inglaterra, de quem dependia da produção manufatureira, em alto grau de endividamento.
Sendo assim, após o terremoto, Portugal contou com uma grande ajuda financeira por parte
da Inglaterra. Embora tenha recebido ajuda de outras nações, como Espanha e França, nada
foi comparável à generosidade dos ingleses: “100 mil libras, metade em ouro e prata, meta-
de em alimentos e materiais. Ironicamente, grande parte do ouro era português, a mesma
moeda que o país usava para pagar seu habitual déficit comercial com a Inglaterra”25.
Por outro ângulo, observou-se desde logo uma cumplicidade entre Londres e Lis-
boa como cidades “destruídas”. Londres era exemplo de urbe recuperada, e certamente o
Marquês de Pombal, juntamente com a comissão responsável pela reconstrução de Lisboa,
conheciam muito bem os projetos de recuperação da capital inglesa. O esquema projetado
por Christopher Wren, embora não adotado em Londres, certamente era conhecido e ad-
mirado pela equipe que reconstruiria Lisboa. Manuel de Maia, aos 78 anos, grande conhe-
cedor da cidade, engenheiro-chefe da corte, apresentou seu plano para a reconstrução, o
qual denominou de “Dissertação”. Pediu a seus auxiliares que examinassem, especialmente,
dois planos de reconstrução como inspiração: o primeiro, embora nunca realizado, o mais
audacioso, era justamente o de Wren. O outro era o projeto de expansão de Turim, do início
do século XVIII, realizado por Filippo Juvarra. Ambos se inspiravam na Antiguidade26.
A reconstrução de Lisboa esteve fortemente relacionada, como dissemos, com a ação
política direta do Marquês de Pombal. “Lisboa renasceria das cinzas como uma fênix renova-
55
da e se livraria de grande parte do obscurantismo que impedira Portugal de ver a luz de uma
nova era27”. Refazer Lisboa não seria apenas, segundo Shardy, um projeto urbanístico e ar-
quitetônico; mas um projeto político-filosófico, como vimos. O desastre seria uma oportuni-
dade de renovação, de uma regeneração para que Portugal passasse a ser governado pela
Razão. Assim, urbanismo e arquitetura foram colocados a serviço de uma visão utópica28.
Passado pouco mais de um mês do terremoto, Lisboa ainda estava completamente
arrasada, ruas cheias de escombros, quando Manuel de Maia apresentou ao rei e seus mi-
nistros seus primeiros planos para a reconstrução. Somente em 19 de abril de 1756, apre-
sentou a parte final da Dissertação, contendo seis propostas para a reconstrução do centro
de Lisboa. Os projetos foram detalhados por uma equipe coordenada por Maia, composta
por Mardel, Santos, Poppe e Fonseca e constituíam um tributo à escola portuguesa de en-
genharia militar e à sólida orientação do próprio Maia. Os desenhos eram audaciosos e
visionários, baseados nos princípios de harmonia, simetria e proporção, incluindo a inteira
reconstrução da Baixa com amplas avenidas, edifícios regulares, simétricos e monumentais
a serem sobrepostos às ruínas de Lisboa e à memória da velha cidade medieval. A recons-
trução da Baixa foi inaugurada por decreto somente em 1758 e iniciada em 1760, devido
às duradouras disputas judiciais com proprietários de imóveis, com a Igreja Católica e, por

24  SHARDY, op. cit. p. 53.


25  Ibid. p. 63.
26  Ibid. pp. 182.
27  Ibid. pp. 135-217.
28  Ibid. p. 185.
ANGELA BRANDÃO

outro lado, pela escassez de recursos29.


Cada quarteirão, segundo o projeto, teria construções de quatro andares com um
pátio central para entrada de luz. As fachadas seriam rigorosamente uniformes em compri-
mento e altura e com janelas, portas, balcões, beirais e cornijas padronizadas, numa estan-
dartização que daria a impressão de se tratar de um palácio contínuo. O estilo era nobre e
sutil para o gosto tradicionalmente barroco dos portugueses. A linguagem arquitetônica das
construções era rigorosamente única: o neoclassicismo. Ao mesmo tempo, os recursos eram
escassos, e o projeto deveria ser economicamente viável e econômico, com seus desenhos
simples e repetitivos, gerando um certo “igualitarismo subversivo”, a ponto de que a casa
de um nobre, um comerciante ou até mesmo de um marceneiro pudessem ser sobremodo
semelhantes30.
A necessidade de minimizar os custos da construção foi solucionada pela unifor-
mização estética. Muitos módulos de portas, janelas, cornijas e outros elementos foram
pré-fabricados. Pedreiros e carpinteiros passariam a trabalhar nas peças em outro lugar e
trazê-las já prontas para o local da obra, uma vez que molduras de portas e janelas podiam
ser pré-fabricadas graças à uniformização das fachadas. Foi a primeira vez que métodos tão
modernos e padronizados foram empregados em tão larga escala. Assim, também, técnicas
de construção resistentes a abalos sísmicos foram sistematicamente aplicas pela primeira
vez na Europa. Mesmo diante dos limites de execução do projeto original, este tornou-se
um modelo de planejamento urbano esclarecido e cujas ideias seriam utilizadas no século
seguinte por Haussmann em Paris; e Ildefonso Cerdà, em Barcelona31.

3. A EDIÇÃO INGLESA DE VIGNOLA DE 1669 E AS EDIÇÕES EM PORTUGAL DE 1787

56 A partir da leitura de Reddaway, sobre a reconstrução de Londres, podemos depreen-


der dois aspectos. Um deles foi a abertura dos trabalhos artesanais para a reconstrução da
cidade por trabalhadores livres, em oposição ao controle das corporações de ofícios que
vigoravam desde a Idade Média. Pela necessidade de reconstruir rapidamente a cidade
devastada pelo incêndio, aceitou-se, em detrimento das guildas, o trabalho de estrangeiros,
aprendizes, ex-soldados das guerras contra França e Alemanha, trabalhadores sobreviven-
tes da Peste e do Incêndio32. Outro aspecto foi a transformação da cidade medieval em cida-
de moderna. No século XVII, o pensamento sobre a cidade planejada, ideal, devia em muito
aos preceitos renascimentais de regularidade, uniformidade, racionalidade, como constava
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

no conhecimento difundido pelos tratados de arquitetura, especialmente desde o século XVI.


As reformas de Paris levadas a efeito por Luís XIV, de certa forma, resultavam atraentes aos
olhos do Rei Charles II. Não podemos acreditar, no entanto, que a reconstrução de Londres
seria apenas baseada em decisões utilitárias como rapidez, economia e segurança. Elemen-
tos simbólicos foram considerados, como por exemplo a necessidade de apagar rapidamen-
te o estigma de uma cidade destruída perante as outras Nações. Pensou-se, a partir das

29  Ibid. pp. 185-192. LIMA, Magdalena Costa e NETO, Maria João Baptista. Duas catástrofes históricas: o Grande
Incêndio de Londres e o Terramoto de Lisboa de 1755 – efeitos no Património Artístico e atitudes de recuperação.
Op.cit. p. 39.
30  SHARDY, op. Cit. pp. 185-192.
31  Ibid. pp. 193-195.
32  REDDAWAY, op. Cit. pp. 115, 117 e ss. 304-305.
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA

ideias de John Evelyn, ainda que seu projeto não tenha sido implementado, em reconstruir

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Londres em tijolos e pedras, como uma “nova Roma” ou “outra Roma”33.
Sobre esses dois aspectos podemos compreender que a primeira tradução para a
língua inglesa do Tratado de Giacomo Barozzi da Vignola foi realizada, justamente, três
anos após a calamidade34. De um lado, a necessidade de incluir trabalhadores não qualifi-
cados na reconstrução da cidade pode explicar a edição em inglês do Tratado. De outro, a
preocupação com a idealização e o embelezamento urbano com base em valores modernos
(renascimentais) e portanto “anti-medievais”. Certamente, o livro e os princípios dos Trata-
dos de Arquitetura do Renascimento já eram conhecidos no ambiente artístico e artesanal
inglês. Desde a segunda metade do século XVI, os Tratados e o cânone das cinco ordens
clássicas foram bastante difundidos tanto em círculos eruditos e de Corte, quanto no espaço
das oficinas de artesãos35.
A primeira tradução de Vignola para o inglês, no entanto, foi realizada por John Leek
em 1669, como dissemos, três anos após o desastre, com gravuras de William Sherwin.
Leek era um estudioso da matemática, editor do livro The Elements of Geometry e tradutor
de New and Rare Inventions of Water-Works de Isaac e Caus. John Leek foi indicado como
um dos responsáveis pela supervisão dos trabalhos de mapeamento das ruínas de Londres
após o incêndio36. Os planos de Londres realizados por John Leek aparecem, de fato, repro-
duzidos no livro de Reddaway de 1940 sobre a reconstrução.
Uma das principais preocupações da tradução de Vignola por Leek era educar na
linguagem clássica os construtores, autores de risco e artesãos que eram requisitados para
reconstruir Londres depois do grande incêndio de 1666: “Para o uso de pedreiros livres, car-
pinteiros, ensambladores ou marceneiros, entalhadores, pintores, construtores e estucado-
57
res37”. A preocupação era apresentar o livro como um auxiliar para o trabalho prático e não
como um livro teórico, como atesta sua dedicatória aos leitores, onde diz que autores sobre
arquitetura proporcionam muitas descrições e explicações sobre os ornamentos das cinco or-
dens. Ao estabelecer o cânone tomado do antigo para reduzi-lo às cinco ordens, Leeke (com
o “uso” de Vignola) facilitou-o sobremaneira para ser colocado em prática na reconstrução
de Londres, para que todos pudessem compreendê-lo e retê-lo facilmente na memória38.
Até que ponto poderíamos relacionar o terremoto de Lisboa e a tradução de Vignola
para o português com a mesma evidência com que se aproximou o incêndio de Londres à
tradução do tratado para o inglês? Seguramente não poderíamos fazê-lo com a mesma
facilidade. A distância de tempo que separa o terremoto das edições do livro em Portugal
torna-se um problema para a confirmação da hipótese. De 1755 a 1787 haviam se passado
mais de trinta anos. No entanto, ao contrário da reconstrução de Londres, Lisboa demorou
muito mais tempo para se refazer da catástrofe. Vinte anos depois do cataclisma, ainda ha-

33  REDDAWAY, Op. cit. pp. 40, 221, 48. LIMA, Magdalena Costa e NETO, Maria João Baptista. Duas catástrofes his-
tóricas: o Grande Incêndio de Londres e o Terramoto de Lisboa de 1755 – efeitos no Património Artístico e atitudes de
recuperação. Op. Cit. p. 38.
34  LEEKE, John. Canon of the Five Orders of Architecture. Giacomo Barozzi da Vignola. New York, Dover, 2011.
35  MAGNINO, Julius von Schlosser. La Letteratura Ariística. Milano: Paperback Classici, 2000.
36  WATKIN, David. Introduction. in LEEKE, John. Canon of the Five Orders of Architecture. Giacomo Barozzi da Vignola
op. cit. p. VI. REDDAWAY, op. cit.
37  “for de use and benefit of Free Masons, Carpenters, Joyners, Carvers, Painters, Bricklayers, Plaisterers” LEEKE, John.
Canon of the Five Orders of Architecture. Giacomo Barozzi da Vignola. op. cit. capa
38  WATKIN, David. Introduction. in LEEKE, John. Canon of the Five Orders of Architecture. Giacomo Barozzi da Vignola.
New York, Dover, 2011. pp. VI-VII.
ANGELA BRANDÃO

via ruínas e destroços pelas ruas de Lisboa. Poderíamos acreditar que a edição de Vignola
no contexto português teria sido importante para os últimos anos de reconstrução. Talvez
para um período em que ainda houvesse muito a se fazer, sobretudo na decoração interna
dos edifícios e no feitio de mobília. Para isso, as referências de Vignola eram sobremodo
importantes. Sabemos que entre todos os tratados de arquitetura do Renascimento, ao lado
de Serlio, Vignola foi um dos mais importantes para as artes aplicadas e mobiliário, particu-
larmente lido e adaptado ao universo dos artesãos em diferentes lugares da Europa39.
O terremoto havia provocado a destruição de ruas inteiras dos artesãos, organizados
por arruamento específico da cidade. Muitas oficinas e grande parte da documentação das
corporações de ofícios foram arrasadas. Segundo Langhans, seria um forte abalo no siste-
ma de organização dos oficiais mecânicos na cidade de Lisboa, mas ainda não o seu fim. O
sistema seria abalado, assim como no caso inglês do século anterior, do mesmo modo pela
necessidade de acolher trabalhadores livres e estrangeiros para a grande empreitada de
reconstrução40.
Na coleção iconográfica da Biblioteca Nacional de Portugal41, há muitos desenhos de
arquitetura datados de 1755 e dos anos seguintes, do período de reconstrução de Lisboa42.
Muitos desses desenhos foram compreendidos como exercícios de alunos da Academia,
baseados nos Tratados de Arquitetura, especialmente nas gravuras de Vignola, como guias
e modelos de elementos arquitetônicos clássicos, talvez como um norte para a cidade des-
truída.
A tratadística do Renascimento circulava em Portugal, como se sabe, desde o século
XVI43. As duas primeiras traduções do Tratado de Vignola para a língua portuguesa, contudo,
foram realizadas no mesmo ano, somente em 178744. Nossa hipótese em relacionar a tra-
dução de Vignola para o inglês e o Grande Incêndio, de um lado; assim como as traduções

58
para o português e o Grande Terremoto, de outro, pode parecer inapropriada. Se no caso
inglês este aspecto é mais facilmente perceptível, até mesmo pela data de publicação ser
imediatamente posterior ao incêndio, no caso português, esta aferição é certamente mais
difícil de ser defendida. Porém, se consideramos a lenta reconstrução de Lisboa, sendo que
vinte anos após o terremoto ainda havia muito que se refazer, a edição em português de
Vignola no ano de 1787 pode ser considerada ainda como uma referência necessária do
mundo clássico, renovada pelo neoclassicismo, um modelo a ser seguido.
As duas traduções saídas no mesmo ano, uma edição de Coimbra e outra de Lisboa,
refletiam duas formas diferentes de absorção do tratado do Renascimento e do cânone das
cinco ordens clássicas. De um lado, uma orientação ao gosto em oposição aos exageros
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

barrocos e rococós e de revalorização do clássico, sob a ótica neoclássica. Por outro, assim

39  MAGNINO, Julius von Schlosser.La Letteratura Ariística. Milano: Paperback Classici, 2000.
40  LANGHANS, Franz Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos, Subsídios para sua história. Com um estudo do prof.
Marcello Caetano. 2 vols. Imprensa Nacional de Lisboa, 1943. p. XXII.
41  http://www.bnportugal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=112&Itemid=140&lang=pt. Aces
so em 03 de agosto de 2015.
42  CARVALHO, Ayres de. Catálogo da Coleção de Desenhos da Biblioteca Nacional de Lisboa. Lisboa: Biblioteca Na-
cional de Lisboa, 1977.
43  MOREIRA, R. e RODRIGUES, A.D. coord. Tratados de Arte em Portugal. Lisboa: Scribe, 2011.
44  Essas edições foram tratadas por Marcos Tognon em 2014, “Tratados De Arquitetura No Século XVIII Para A
Produção Artística Barroca: O “ Vinhola Português “ Do Século XVIII”. Disponível em: https://www.researchg
ate.net/publication/273455994_TRATADOS_DE_ARQUITETURA_NO_SECULO_XVIII_PARA_A_PRODUCAO_ARTI
STICA_BARROCA_O_VINHOLA_PORTUGUES_DO_SECULO_XVIII. Acesso em 2 de maio de 2019.
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA

como no caso da edição de John Leek, uma orientação para os artesãos – ainda ocupados

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


com a reconstrução e com os interiores dos edifícios a serem refeitos após o terremoto.
Uma dessas edições, do arquiteto decorador de origem italiana, mas nascido em
Lisboa, José Carlos Binheti45, foi impressa em Lisboa com o título: Regra das cinco ordes
de Architectura de Jacomo Barocio de Vinhola traduzidas do seu original em nosso idioma
com hum acrescentamento de Geometria Pratica, e Regras de Prespectiva de Fernando Gal-
libibiena46. José Carlos Binheti afirmava na exposição ao leitor que o motivo que o levara
a empreender a tradução havia sido, para além de responder ao pedido de alguns amigos
que o solicitaram, o “gosto” de ver traduzido para “o nosso idioma Portuguez”, evocava
novamente a tônica que movera as edições de Vignola no século XVII, uma obra essencial
aos que pretendem aprender arquitectura, “que he necessária aos Pintores, Emtalhadores,
Armadores, Carpinteiros, e Canteiros”, e ainda para todos os que pelas suas profissões, ou
por curiosidade, necessitam aprender as regras desta arte. A escolha de Vignola, se deveu
segundo este autor da edição portuguesa à “facilidade” com que expôs as cinco ordens,
tendo granjeado um sucesso ímpar nas principais cidades europeias.
O segundo livro editado em Portugal, no mesmo ano, era Regras das Sinco Ordens da
Architectura segundo os princípios de Vignhola com um ensaio sobre as mesmas ordens feito
sobre o sentimento dos mais célebres Architectos escriptas en Francez por ***e expostas em
Portuguez por J.C.M.A. (...) enriquecida com 88 estampas abertas em cobre47. Sem revelar o
autor do livro original em francês, a publicação saiu, em língua portuguesa, como de autoria
identificada apenas pelas iniciais de J.C.M.A. Tratava-se de José Calheiros de Magalhães e
Andrade e tradução ao português por Antonio Barneaud, dedicado ao Bispo de Coimbra,
datada de 1787. “José Calheiros de Magalhães e Andrade era natural de Braga, estudou
59
Medicina em Coimbra e, talvez, também Matemática, matéria que teria lecionado na Aca-
demia Real de Marinha e Comércio da Cidade do Porto48.
As Regras das Sinco Ordens de Magalhães e Andrade faziam parte, certamente, de
toda a história das edições e traduções de Vignola. No entanto, seguia mais diretamente a
estrutura expositiva e didática semelhante à do livro Jacques Barozzio de Vignole. Nouveau
Livre. Gravado por Babel e editado em Paris, por Jacques Cherreau, em 174749, mencionado
explicitamente pelo autor português. José Calheiros de Magalhães e Andrade afirmava, no
prólogo, sua intenção de, diante das edições de Vignola em outras línguas, traduzir ao por-
tuguês e explicar de modo mais claro aos principiantes o cânone das cinco ordens, quando
descobriu a edição francesa de Babel, a qual já cumpria com seus propósitos. “No tempo
em que eu meditava sobre o modo de por em execução o meu desígnio, apareceu-me um

45  MARQUES, Ana Luísa dos Santos. Arte, Ciência e História no Livro Português do Século XVIII. Tese de Douto-
rado em Belas Arte. Especialidade Ciências da Arte. Universidade de Lisboa, 2014. Disponível em: https://
repositorio.ul.pt/bitstream/10451/19926/1/ulsd071070_td_vol_1.pdf. Acesso em 22 de julho de 2019. pp. 74-79.
46  BINHETI, José Carlos. Regra das cinco ordes de Architectura de Jacomo Barocio de Vinhola traduzidas do seu original
em nosso idioma com hum acrescentamento de Geometria Pratica, e Regras de Prespectiva de Fernando Gallibibiena.
Lisboa: Oficina de José de Aquino Bulhoens, 1787.
47  J.C.M.A Regras das Sinco Ordens da Architectura segundo os princípios de Vignhola com um ensaio sobre as mesmas
ordens feito sobre o sentimento dos mais célebres Architectos escriptas en Francez por ***e expostas em Portuguez por
J.C.M.A. (...) enriquecida com 88 estampas abertas em cobre. tradução ao português por Antonio Barnicaud. Coimbra,
1787.
48  MARQUES, Ana Luísa dos Santos. Arte, Ciência e História no Livro Português do Século XVIII. Op. cit.
49  Jacques Barozzio de Vignole. NOUVEAU LIVRE. On y joint un essai sur les mêmes Ordres, suivant le sentiment des
plus Célébres ARCHITECTES. Le tout enrichi de Vignettes et Cartels; dessinés Et Gravés par Babel. A Paris. Chez Jacques
Cherreau. M.DCC.XLVII. [1747]
ANGELA BRANDÃO

livro em francês (...) [ele cita Babel] e que a tradução desse livro satisfaria ao fim que me
propunha50”.
Magalhães concluiu o prólogo, curiosamente, retomando as ideias reparadoras de
uma ordem perdida pelos abusos de invenção dos séculos XVII e do próprio XVIII. Escreveu
Magalhães: “Eu tive cuidado de advertir os principiantes dos limites que deve ter a invenção
do Arquiteto em compor segundo o seu gosto e variar os diferentes membros em cada
ordem porque sobre isso tem havido um abuso notável que tem feito pôr em execução
corpos desordenados e informes filhos unicamente da fantasia e contra as regras principais
adotadas pelos melhores arquitetos desde os Gregos até os nossos tempos.” Haveria,
portanto, no século XVIII, uma renovação do interesse editorial pelos livros dedicados às
cinco ordens.
A reconstrução de Lisboa foi lenta. Durante os anos dos trabalhos, vários dos enge-
nheiros envolvidos morreram, e uma nova geração de engenheiros militares os substituiu. A
demora se deveu, entre tantos motivos, às constantes disputas jurídicas por parte dos pro-
prietários, escassez de materiais de construção e de mão de obra especializada. Em 1766,
cinquenta e nove blocos de edifícios haviam sido erguidos na Baixa e centenas de edifica-
ções em outros bairros. Porém, isso era muito pouco para uma cidade que havia perdido
mais de dez mil construções. Viajantes ainda descreviam Lisboa – mais de dez anos depois
do terremoto – como uma cidade de entulhos e escombros, assim como as favelas ao seu re-
dor, formadas por pessoas desalojadas pelo terremoto. A inauguração da Baixa reconstruída
só ocorreu em 1775, e muitos blocos de edifícios ainda estavam em obras51.
As edições inglesa e portuguesas do Tratado de Vignola não deixavam de dever a
todo o conjunto secular de publicações sobre as cinco ordens. As edições das Regras das
Cinco Ordens e suas adaptações, com variadas interpretações do sentido desde o século XVI,

60
responderam ao mundo da leitura aristocrática, ao ambiente das Cortes, como formação
do olhar diletante para “conhecedores” das artes de modo geral. Foram também livros de
e para arquitetos, voltados para o ambiente intelectual das Academias. Porém, Vignola foi
igualmente editado como um livro aplicado à rotina dos artesãos, ao conhecimento exigido
para seus exames de ofício – portanto um saber destinado ao fazer artesanal. Diante do
Grande Incêndio de Londres e do terremoto de Lisboa, Vignola, porém, funcionava certa-
mente como um elemento de recuperação da ordem perdida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

BINHETI, José Carlos. Regra das cinco ordes de Architectura de Jacomo Barocio de Vinhola
traduzidas do seu original em nosso idioma com hum acrescentamento de Geometria Pratica,
e Regras de Prespectiva de Fernando Gallibibiena. Lisboa: Oficina de José de Aquino Bu-
lhoens, 1787.
CARVALHO, Ayres de. Catálogo da Coleção de Desenhos da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1977.
HANSON, Neil. The Great Fire of London. In that apocalypitc year, 1666. New Jersey, John
Wiley & Sons, 2002.
JACQUES BAROZZIO DE VIGNOLE.NOUVEAU LIVRE. On y joint un essai sur les mêmes Ordres,

50  J.C.M.A Prólogo. In Regras das Sinco Ordens da Architectura segundo os princípios de Vignhola (...) op. cit. pp. II-III.
51  SHARDY, op. cit. p. 225.
UMA FRONTEIRA ENTRE LONDRES E LISBOA

suivant le sentiment des plus Célébres ARCHITECTES. Le tout enrichi de Vignettes et Cartels;

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


dessinés Et Gravés par Babel. A Paris. Chez Jacques Cherreau. M.DCC.XLVII. [1747]
J.C.M.A Regras das Sinco Ordens da Architectura segundo os princípios de Vignhola com um
ensaio sobre as mesmas ordens feito sobre o sentimento dos mais célebres Architectos escrip-
tas en Francez por ***e expostas em Portuguez por J.C.M.A. (...) enriquecida com 88 estampas
abertas em cobre. tradução ao português por Antonio Barnicaud. Coimbra, 1787.
LANGHANS, Franz Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos, Subsídios para sua história.
Com um estudo do prof. Marcello Caetano. 2 vols. Imprensa Nacional de Lisboa, 1943.
LEEKE, John. Canon of the Five Orders of Architecture. Giacomo Barozzi da Vignola. New
York, Dover, 2011.
LIMA, Magdalena Costa e NETO, Maria João Baptista. Duas catástrofes históricas: o Gran-
de Incêndio de Londres e o Terramoto de Lisboa de 1755 – efeitos no Património Artístico
e atitudes de recuperação in Conservar Património 25 (2017) 37-41 https://doi.org/10.14
568/cp2016047. Acesso em 03 de junho de 2019. ARP - Associação Profissional de Conser-
vadores-Restauradores de Portugal <http://revista.arp.org.pt>.
MAGNINO, Julius von Schlosser. La Letteratura Artistica. Milano: Paperback Classici, 2000.
MARQUES, Ana Luísa dos Santos. Arte, Ciência e História no Livro Português do Século XVIII.
Tese de Doutorado em Belas Arte. Especialidade Ciências da Arte. Universidade de Lisboa,
2014. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/19926/1/ulsd071070_td_vo
l_1.pdf. Acesso em 22 de julho de 2019.
MOREIRA, R. e RODRIGUES, A.D. coord. Tratados de Arte em Portugal. Lisboa: Scribe, 2011.
REDDAWAY, T. F. Rebuilding of London after the Great Fire. London: Johnatan Cape, 1940.
Oxford, Alden.
61
SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2012.
TAGLIANI, Simone. Como as tragédias em Londres e Lisboa ajudaram a moldar a arquitetu-
ra dessas cidades. In Blog da Arquitetura. Disponível em: https://blogdaarquitetura.com/co-
mo-as-tragedias-em-londres-e-lisboa-ajudaram-a-moldar-a-arquitetura-dessas-cidades/
Acesso em 03 de junho de 2019.
TAVARES, Rui. O Pequeno Livro do Grande Terramoto. Ensaio sobre 1755. Lisboa: Tinta China,
2019.
TOGNON, Marcos. “Tratados De Arquitetura No Século XVIII Para A Produção Artística Bar-
roca: O “ Vinhola Português “ Do Século XVIII”. Disponível em: https://www.researchgate.net
/publication/273455994_TRATADOS_DE_ARQUITETURA_NO_SECULO_XVIII_PARA_A_PRO-
DUCAO_ARTISTICA_BARROCA_O_VINHOLA_PORTUGUES_DO_SECULO_XVIII. Acesso em
2 de maio de 2019.
VOLTAIRE. Cândido ou o Optimismo. Tradução, notas e posfácio de Rui Tavares. Lisboa: Tinta
China, 2006.
6
IMÁGENES EN MADERA POLICROMADA DE
LA ZONA DE “LA FRONTERA” MAPUCHE
(CHILE)
EL SILENCIO DE LA HISTORIOGRAFÍA
JOSEFINA SCHENKE*

* Historiadora del Arte, Profesora Asistente/ Universidad Adolfo Ibáñez, Santiago de Chile.
La autora es coinvestigadora del Proyecto Fondecyt nº 1180293, “Transformaciones de la imagen re-
ligiosa y su forma de estar en el espacio durante los siglos XVIII y XIX en Chile. Tensiones entre política
eclesiástica, ideas ilustradas, discursos republicanos y recepción local”, cuyo investigador responsable
es Fernando Guzmán.
JOSEFINA SCHENKE

E
ste trabajo surgió a partir de una investigación comenzada en 2015 en torno a la co-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


lección Holtz-Khani, compuesta por 60 esculturas de madera policromada de santos y
cristos de pequeño formato (de entre 20 y 40 cm de alto). Adquirido por la Universidad
de los Andes, en Santiago de Chile, en 2011, este inédito conjunto agrupa de manera
masiva un mismo tipo de cristos y santos. Esta colección invitó a relacionar y a situar estos
objetos con otros de su tipo, desperdigados en varias colecciones conservadas en la zona
del centro sur del país, en especial en aquellas de carácter privado, si bien también pueden
encontrarse en museos estatales del Servicio del Patrimonio Cultural de Chile. Desde 2015,
un equipo de trabajo reflexionó de modo transversal con respecto a esta realidad objetual
olvidada por la historiografía y despreciada en los museos donde, por lo general, ocupa un
lugar secundario en las exhibiciones o está relegada a los depósitos1. Una pequeña expo-
sición montada en 2008 en Recoleta, Santiago, con santos traídos de la Colección Morris
(Museo de la Alta Frontera, Linares) fue la única ocasión en que tales objetos habían salido
de su olvido cultural y fueron reconocidos en su singularidad.
En cuanto a la coincidencia de los orígenes geográficos de estas esculturas, estos
fueron detectados por un mapeo de su actual lugar de conservación (localizado entre las
coordenadas geográficas 35°27’44’’S - 37°28’11’’S y 71°34’0’’W - 73°6’18.61”W2). Esta
localización sugiere un origen que escapa de la capital, Santiago, así como de las latitudes
extremas de Quito y Chiloé, conocidos centros de producción de imaginería y proveedor,
en el primer caso, de esculturas devotas para Santiago. Por sus similitudes estilísticas y
materiales, así como por la coincidencia en cuanto a su ubicación geográfica, estas piezas
habrían sido producidas localmente, respondiendo a la demanda por imágenes devotas en
la zona centro-sur de Chile, colindante con la Frontera Mapuche3.
63
A partir de un método comparativo, es posible deducir la unidad estilística que existe
entre estas esculturas. Antes de explorar su fortuna historiográfica, comentaremos su sin-
gularidad material y formal. En primer lugar, exhiben un tamaño reducido (entre 11, 9 y 36
centímetros de alto, con un promedio de 22,9) y están esculpidas en un solo bloque de ma-
dera, salvo las manos, que van introducidas de manera frontal al interior de los orificios de
las mangas esculpidas muy cerca del tronco, siempre con los brazos doblados en “L”. Estas
esculturas son de bulto entero o redondo, y van montadas sobre una base cuadrada o rec-

1  El proyecto «La herencia colonial en el Chile republicano: Esculturas en madera policromadas producidas en la
zona central de Chile (siglos XVIII-XIX)», coordinado por Marisol Richter, investigó, desde 2015, las imágenes de este
tipo conservadas por museos públicos y privados en Chile. El equipo estuvo liderado por Marisol Richter y compuesto
por Fernando Guzmán, Patricia Herrera, Juan Manuel Martínez y la autora de este artículo. Las conclusiones de tales
estudios se encuentran inéditas y están en vías de publicación.
2  Las esculturas están resguardas en los siguientes museos: Villa Cultural Huilquilemu, Hernán Correa de la Cer-
da, Universidad Católica del Norte (35°27′44″S / 71°34′38″W) (11 esculturas); Museo Histórico de Yerbas Buenas
(Servicio Nacional del Patrimonio Cultural) (35° 45’ 0’’ S / 71° 34’ 0’’ W) (3); Museo de Arte y Artesanía de Linares
(35°50’47.1’’ S / 71°35’58.6’’ W) (15); Museo Pedro de los Ríos Zañartu, Hualpén (36°47’12.88”S / 73°6’18.61”O)
(número de piezas desconocido, museo parcialmente cerrado desde el terremoto de febrero de 2010); Museo de la
Catedral de Concepción (36°49’37.2’’ S / 73°2’59.2’’ W) (45); Museo de Historia Natural de Concepción (36°49’37.2’’
S / 73°2’59.2’’ W) (10); Museo Stom, Chihuayante (36°55’32.2’’ S / 73°1’42.3’’ W) (116), and Colección Raúl Morris,
Museo de la Alta Frontera (Los Ángeles) (37°28’11’’ S / 72°21’13.2’’ W) (14). La Colección Holtz-Khani es resguarda-
da por el Museo de Artes de la Universidad de los Andes, Santiago de Chile, pero todos los objetos provenían de la
misma zona sur aquí descrita.
3  Nos permitimos remitir aquí a un artículo donde se discute este tema: Josefina Schenke, “Pequeñas esculturas de
devoción en el Museo de Historia Natural de Concepción. Ejemplos de una producción de imaginería de carácter lo-
cal (siglos XVIII-XIX)”, Colecciones Digitales, Subdirección de Investigación, Servicio Nacional del Patrimonio Cultural,
2018. http://www.mhnconcepcion.gob.cl/640/articles-88749_archivo_PDF.pdf
IMÁGENES EN MADERA POLICROMADA DE LA ZONA DE “LA FRONTERA” MAPUCHE (CHILE)

tangular, siempre policromada y a veces con motivos decorativos geométricos, abstractos o


florales. A veces, la base forma parte del mismo madero en que fue desbastada la escultura.
Por otra parte, el cuerpo adquiere una posición completamente frontal y estática. Algunas
imágenes revelan el intento por dar movimiento a la escultura mediante un contrapposto
que se percibe especialmente en sus reversos.
Estas esculturas no fueron hechas para ser vestidas; prueba de ello es que están
enteramente esculpidas y policromadas. Además, la cabeza lleva el cabello enteramente
pintado y, en tercer lugar, los brazos, o las mangas de los vestidos, en realidad, emergen
frontalmente desde el tronco o van levemente separadas del cuerpo, lo que supondría una
dificultad superior para ser vestidas.
En cambio, en la imaginería colonial o de raigambre colonial, las esculturas hechas
para ser vestidas solo llevan rostro y manos esculpidos y policromados. Además, en estas
imágenes sólo el pecho de las figuras y el comienzo del cabello en la frente se encarnan,
porque el tronco está destinado a ser cubierto de vestidos y, la cabeza, de cabello natural o
de velo. Los cuerpos y trajes no van esculpidos, sino sólo someramente modelados en made-
ra, en tela encolada o sobre una estructura de palos. Por último, los brazos de las esculturas
hechas para vestir van separados del cuerpo, justamente para dar cabida al ajuste de las
vestimentas.
Por otra parte, en estas esculturas del centro-sur de Chile, el modo de disponer el
manto y el movimiento sugerido de la tela es diferente entre una escultura y otra, y los
pliegues de las túnicas también lo son: algunos son más rectilíneos; otros, más elaborados.
En los santos con túnicas largas, los pies no van representados, pero en el caso de las que
hemos podido identificar como vírgenes, a veces se representan los pies asomados bajo el
borde inferior del vestido. Sobresalen, además, algunos diseños especialmente elaborados

64
de los vestidos de figuras femeninas que son, presumiblemente, aquellos de las vírgenes.
Los dorsos de estas esculturas son muy planos vistos de costado y siempre van esculpi-
dos con someros detalles de las vestimentas. Las espaldas de los santos son extremadamente
rígidas, rasgo que puede derivar del intento por hacer que la figura se vea derecha, dándole
realismo visual y una cierta dignidad, y otorgándole, además, equilibrio para mantenerla en
pie. Sin embargo, es evidente que el dorso es menos cuidado en sus formas que el frente.
La proporción entre la cabeza y el cuerpo es, en promedio, de entre 1/5 y 1/6. Es
decir, no responde al canon de las proporciones clásicas buscado por la escultura española
y quiteña contemporánea. Los rostros son más o menos planos, las facciones no muy de-
talladas, y no llevan ojos de vidrio. Los cabellos van representados o de manera plana o con
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

estrías esculpidas. La fisiognomía de las figuras se logra mediante el esculpido y con una
pincelada delgada para dar cuenta de cejas y labios, y de la pintura lustrosa que se aplica
en las pupilas para darle más luminosidad a la mirada.
Una solución figurativa común en algunas figuras es la forma de dos triángulos isós-
celes superpuestos sobre un vértice ancho que hace las veces de cintura, dividiendo este
último la parte superior e inferior de una escultura. Esta fórmula para lograr una figura
humana con mínimos recursos es empleada, especialmente, en las imágenes de San Isidros
Labradores y en los Arcángeles. Esta estructura geométrica básica parece tratarse de la más
simple de las formas a partir de las cuales surgen otras que van complejizando este mode-
lo compositivo, ya sea alargándolo o completándolo con otros detalles vestimentarios. Los
arcángeles conservan vestigios del lugar donde se encajaban las alas: un orificio que cruza
horizontalmente la espalda a la altura de los omóplatos.
JOSEFINA SCHENKE

Desde las singulares características materiales y formales de estas pequeñas imáge-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


nes esculpidas en madera y policromadas, es posible concluir: (i) Su tamaño reducido revela
que se trataría, muy probablemente, de esculturas que recibieron originalmente una devo-
ción de orden doméstico, si bien hoy se encuentran en colecciones públicas y privadas. Ellas
fueron transformándose paulatinamente desde objetos de devoción a objetos de museo, si-
tuación común para muchas imágenes religiosas de origen o estilo colonial. (ii) La presencia
generalizada de base o peanas (o los signos de su ausencia, como clavos u orificios en la
base) demuestra que fueron hechas para ser pensadas como “figuras de devoción” y no, por
ejemplo, como personajes que formaban parte de una escena narrativa, como un pesebre
navideño o un calvario, donde las figuras no tienen peana. La base en madera, en cambio,
las pone de relieve, subraya su presencia como “representación de un santo”: es ella la que
otorga a la escultura un carácter no narrativo y, en cambio, plenamente simbólico, repre-
sentativo. El santo está allí esculpido como símbolo, como personificación simbólica del santo
mismo, como imagen palpable dispuesta para la devoción4. (iii) El hecho de ser esculpidas y
policromadas en su totalidad da cuenta de que servían para ser observadas desde cualquier
ángulo. Por lo tanto, no iban adosadas a una pared, como puede pasar a veces con las fi-
guras de retablos de altar o con ángeles.

LA HISTORIOGRAFÍA SILENTE EN TORNO A ESTAS IMÁGENES

La existencia misma de estos objetos en museos y colecciones privadas en Chile inter-


roga la historiografía tradicional con respecto a la casi inexistente producción de imaginería
65
religiosa en Chile durante los siglos de la administración virreinal, así como durante la tem-
prana república en el siglo XIX, por la falta de documentos que trate sobre tales imágenes. A
falta de documentos, los objetos se han obviado porque no responden a ciertas expectativas
“preciosistas”. Tradicionalmente, la historiografía de la historia del arte en Chile ha privile-
giado y seleccionado como “arte” un tipo de objeto validado por un gusto estético que exige
una conformación a un cierto canon que podríamos llamar “clásico”. Clásico en el sentido de
alejado de formas vernáculas, y cercano a una estética de la proporción armónica y perfecta
del cuerpo humano y al naturalismo en las formas. En efecto, si se buscan artesanos o piezas
coloniales o decimonónicos que respondan a este canon, ni los documentos los describen, ni
las fuentes notariales recaban información de artífices locales.
En segundo lugar, estas piezas han sido percibidas como marginales y poco sofisti-
cadas desde una perspectiva estética tradicional, que valora la perfección formal, el brillo
de la policromía, las proporciones cercanas al natural, la expresividad, el repujado de las
telas, etc., todas expectativas que la escultura quiteña sí logra cumplir. Además de su mal
estado de conservación, la factura de estas imágenes es más pobre en medios materiales
que la quiteña y menos perfeccionista también, sus trazos son más gruesos, la técnica es
más tosca y las proporciones menos naturalistas. Por todo ello, estas imágenes son llamadas
“populares”, como si “el pueblo” exigiera “menos” de una imagen y no fuera posible exigir
“algo distinto”. En suma, desde esa mirada “clasicista”, relacionada con el prestigio de una

4  SCHENKE, Josefina. Formas y tipos de la escultura religiosa popular de pequeño formato en Chile central (siglo
XIX): El ejemplo de la Colección Holtz-Khani (Museo de Artes Universidad de los Andes). En: RICHTER, Marisol (ed.).
Un ejemplo de la herencia colonial en el Chile republicano: Esculturas en madera policromada elaboradas en la zona
centro-sur de Chile (siglos XVIII-XX), (en prensa).
IMÁGENES EN MADERA POLICROMADA DE LA ZONA DE “LA FRONTERA” MAPUCHE (CHILE)

educación academicista y la reticencia por el arte barroco de corte hispano-virreinal, los


objetos que aquí nos ocupan aparecen como desprovistos de las proporciones adecuadas,
de la belleza clásica, del brillo esperado de la policromía, de la riqueza de los trajes y del
esplendor de los estofados.
La primera muestra de objetos de la Colonia en Chile es el primer ejemplo de la pers-
pectiva recién expuesta. En 1873, el urbanista, hombre de letras y coleccionista Benjamín
Vicuña Mackenna montó la Exposición del Coloniaje, donde se exhibieron más de dos mil
objetos cuyo criterio de elección fue el preciosismo de tales objetos. Vicuña Mackenna redac-
tó el catálogo que acompañaba la exposición. Cuando explica el propósito del libro, puede
ser interpretado como el propósito de la muestra misma: “<ser> memoria útil i razonada
para estudiar el coloniaje en lo más adentro de sus entrañas, en lo más denso de sus tinie-
blas”5. Sin comentar aquí la reticencia evidente hacia la “tenebrosa” sensibilidad virreinal, es
interesante destacar que ninguna de las esculturas que aquí analizamos formaron parte de
la exposición. Esto es señal de la negación de estos objetos como “arte colonial chileno” y del
intento por mostrar un “arte colonial” que cumpla con cánones de belleza cercano a los qui-
teños. Incluso podría afirmarse, si bien no es el propósito de este ensayo, que la Exposición
del Coloniaje fue, más bien, una muestra visual del Antiguo Régimen, como lo demuestra
la presencia de un “tapicería de Gobelinos” del siglo XVII que había sido adquirida reciente-
mente en Londres, o un “gran retablo pintado en madera en 1417”, ambos de Maximiliano
Errázuriz y, el retablo, “la obra jefe de la Esposicion”6. Es decir, la obra más importante de la
exposición no es de origen chileno ni de uso en Chile ni americano, sino europeo.
Los textos de los historiadores Luis Roa Urzúa (El arte en la época colonial de Chile,
Santiago de Chile: Imprenta Cervantes, 1929) y Fernando Márquez de la Plata (Arqueología
del antiguo Reino de Chile, 1953) no mencionan siquiera la existencia de estas esculturas,

66
si bien todos tratan la temática de la escultura local. Alfredo Benavides, en 1941, formula
la teoría según la cual los escultores “populares” que trabajaron en Chile a finales del siglo
XVIII se habrían formado bajo el alero de los maestros bávaros jesuitas7. Eugenio Pereira
Salas (El arte en el Reino de Chile, 1965) se refiere de manera general al tema de la escul-
tura producida en el territorio de la virreinal Capitanía General de Chile en el subcapítulo
“Los talladores en madera y la escultura”, donde menciona a tres escultores documentados
para Santiago. Y, de manera general, de acuerdo a las prácticas ejercidas en otros países
iberoamericanos, explica:

La faena del arte de la madera estuvo a cargo de maestros especializados, que formaban
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

una verdadera jerarquía artística. El carpintero, propiamente tal, se ocupaba sólo de la obra
gruesa: puertas, ventanas y trabazones de madera. El tallador, o ensamblador, tenía a su
cargo la tarea de los bajorrelieves; el escultor, artífice o encarnador, esculpía las estatuas de
bulto o encarnaba los rostros y miembros de las estatuas de ‘vestir’, que pasaban después
a manos del imaginero para ser estofadas las maderas y bordadas por el broslador las ricas

5  MACKENNA, Benjamín Vicuña. Catálogo de la Exposición del Coloniaje, Santiago: Imprenta del Sudamericana de
Claro i Salinas, 1873, p. VII.
6  Íbid: pp. 73, 79-80. Ver también FARIÑA, Constanza Acuña (introducción, presentación y notas), Perspectivas sobre
el Coloniaje, Santiago de Chile: Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2013.
7  BENAVIDES, Alfredo. Arquitectura en el Virreinato del Perú y la Capitanía General de Chile, Santiago: Editorial Andrés
Bello, 1961, p. 245.
JOSEFINA SCHENKE

prendas que cubrían polícromas o los vanos8.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


El autor subraya, además, que los vestigios de una producción de esculturas locales
son escasos y culpa “a las pasadas generaciones” de haberlas hecho desaparecer, invisibili-
zando, una vez más, el tipo que esculturas que aquí nos ocupa9.
Siguiendo a Teresa Gisbert y José de Mesa, Patricio Estelle, (Imaginería colonial: Si-
glos XVII y XVIII, 1974) distingue la variada gama de funciones que participaban en la labor
creativa en los grandes centros productores, como Quito10, para agregar: “Por último, y en
grupo aparte, estaban los santeros, humildes artesanos que esculpían, pintaban y doraban,
unificando modestamente las formas. Sus obras tuvieron un carácter mucho más restringido
y personal, y su irradiación fue eminentemente popular”11. Para el caso de Chile, sitúa el
“nacimiento de la escultura en Chile” en la llegada de “los jesuitas bávaros que llegaron al
país en 1748 bajo la égida del padre Carlos Haymenhausen”12. Estelle considera que

el magisterio jesuita dejó hondas huellas (…) el gran número de estatuillas que fue frecuente
encontrar en casas y templos a partir de la segunda mitad del siglo XVIII, permite afirmar
que existieron talleres que repetían, aunque muy modestamente, ciertas formas propias
de sus insignes maestros, incorporados de lleno a la tradición artística nacional. (…) Están
todavía por estudiar las escuelas de santeros chilenos, de hondas raíces populares, que se
diseminaron a lo largo de todo el país. Merecen recordarse, a vía de ejemplo, las tallas de
Limache y las de Chiloé, que pese a su primitivismo y pobreza de recursos, tienen fuerza e
indudable sentido local13. 67
Veinte años más tarde, Isidoro Vásquez de Acuña publicó Santería de Chiloé. Ensayo y
catastro, (Santiago de Chile: Editorial Antártica, 1994), una exhaustiva recopilación de imá-
genes chilotas donde se dedica, exclusivamente, a la santería del archipiélago, sin abordar
otras producciones de santos en Chile.
En 1978, Milan Ivelic publicó un breve libro de escultura que sitúa los orígenes de la
escultura chilena en “la creación de la clase de escultura en la Academia, a mediados del
siglo XIX”14, ignorando tanto el legado jesuita como la existencia de la imaginería chilota y
aquella que aquí nos compete. Cinco años más tarde, Víctor Carvacho Herrera publicó His-
toria de la Escultura en Chile, Santiago: Editorial Andrés Bello, 1983, donde teoriza, de modo
algo esotérico:

8  SALAS, Eugenio Pereira. Historia del Arte en el Reino de Chile, Santiago de Chile: Ediciones de la Universidad de
Chile, 1965, p. 76.
9  Ibid: p. 79.
10  Estelle cita a José de Mesa y Teresa Gisbert, (Escultura Virreinal en Bolivia, La Paz: s.n., 1972, p. 26) para distinguir
las siguientes categorías de artesanos: Ensambladores (artistas que diseñaban retablos, púlpitos o sillerías); entalla-
dores o escultores (tallaban la ornamentación arquitectónica), geométricos (especialistas en el trazado de techos y
artesonados); maestros escultores, doradores (realizan el estofado: recubren con panes de oro sobre la capa de pre-
paración y el bol de armenia dispuesto sobre las maderas esculpidas y pulidas de retablos e imágenes); pintores de
imaginería (que pintaban la talla con las técnicas del esgrafiado y encarnado). ESTELLE, Patricio. Imaginería colonial:
Siglos XVII y XVIII, Santiago de Chile: Editorial Nacional Gabriela Mistral, 1974, p. IX.
11  Ibid: p. X.
12  Ibid: p. XIII.
13  Ibid: p. XV
14  IVELIC, Milan. La escultura chilena. Santiago: Ministerio de Educación, 1978, p. 4.
IMÁGENES EN MADERA POLICROMADA DE LA ZONA DE “LA FRONTERA” MAPUCHE (CHILE)

Podemos expresarnos con propiedad diferenciando al escultor del imaginero. El primero


tiene todas las categorías elevadas de revelador de un mundo espiritual cuyo contenido es
de naturaleza mística y poética. El segundo fue eminentemente un artesano y tanto como
el primero estaba atado al taller, según la organización gremial que venía de antiguo en
España15.

Habría que contraargumentar diciendo que toda imagen, con independencia de las
capacidades del artesano para revelar un “mundo espiritual”, servía como objeto de piedad
y era, por lo tanto, una imagen espiritual de por sí, con independencia de su factura.
Isabel Cruz de Amenábar, en 1986, reconoce la existencia de “modestos escultores o
santeros” cuyas obras “han desaparecido, o forman parte de esa verdadera laguna sin fondo
que es la producción anónima de la que no se conocen nombres ni fechas”16. Se trata de la
invisibilización de estas esculturas de pequeño formato porque son anónimas y sus tamaños,
insignificantes. La historiadora comenta un calvario de la ciudad de La Serena (al norte de
Santiago) y los nombres de tres escultores que estuvieron activos en la zona central de Chile
para fines del siglo XVIII y comienzos del siglo XIX, pero no se refiere al tipo de imaginería
que aquí nos ocupa17. El caso más extremo es el del texto del especialista Pedro Querejazu,
quien no menciona a Chile en absoluto en un texto dedicado a la escultura en el Virreinato
del Perú18.
En 1998, un importante ensayo fue publicado en Santiago, dando a conocer fuentes
que mostraban cómo la Capitanía General de Chile fue dependiente de Quito en lo que
a imaginería se refiere. En este trabajo, Alexandra Kennedy reconoce la existencia de una
práctica escultórica local y explica que los santeros chilenos suplían las necesidades devo-
tas del feligrés menos instruido y más “popular”, mientras que las imágenes quiteñas iban

68
dirigidas a un público más culto. Quizás sería preciso subrayar la diferencia de precio entre
un producto lujoso e importado y otro sencillo y local: en clave “materialista” es más simple
pensar que no era la cultura la que distinguía la demanda, sino la capacidad de compra19.
El 2007, el Museo Histórico Nacional de Chile exhibía sólo una interesante pieza de
factura “popular”, si bien propia de la zona central del país, entre Santiago y el norte de
los límites geográficos que aquí se han trazado20. Ese mismo año se publicó un estudio que
trabajó la iconografía de las piezas “populares” en los museos estatales chilenos21. Dos años

15  HERRERA, Víctor Carvacho. Historia de la Escultura en Chile, Santiago: Editorial Andrés Bello, 1983, p.132.
16  AMENÁBAR, Isabel Cruz de. Arte y sociedad en Chile, Santiago de Chile: Ediciones Pontificia Universidad Católica
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

de Chile, 1984, p. 96.


17  El historiador Hernán Rodríguez se refiere a los escultores santiaguinos Ambrosio Santelices y Telésforo Allende y a
los quiteños Pedro Palacios e Ignacio Jacome, a quienes detecta en las fuentes trabajando en Santiago en 1844. RO-
DRÍGUEZ, Hernán. “Artistas en Chile en la primera mitad del siglo XIX”, Boletín de la Academia Chilena de la Historia,
nº100, Santiago, 1989, pp. 337-408.
18  LEYTON, Pedro Querejazu. “La escultura en el Virreinato de Perú y la Audiencia de Charcas”, en Ramón Gutiérrez
(coord.), Pintura, escultura y artes útiles en Iberoamérica. 1500-1825, Madrid: Cátedra, 1995, pp. 257-270.
19  TROYA, Alexandra Kennedy. “Circuitos artísticos regionales: de Quito a Chile. Siglos XVIII y XIX”, Historia, (Santiago
de Chile), vol.31, 1998. p. 42.
20  Anónimo, Cristo de la Paciencia, Chile, segunda mitad del siglo XIX, madera tallada y policromada, 26 x 11 cms.,
cat. 03.00572. Museo Histórico Nacional, Catálogo de la exposición permanente, Santiago de Chile: Impresión Andrós,
2007, pág. 69. Este mismo Cristo es comentado algunos años más tarde en MARTÍNEZ, Juan Manuel. Arte y culto, el
poder de la imagen religiosa, Santiago de Chile: Colecciones del Museo Histórico Nacional, 2011, pp. 60-61 y 64-65.
21  GUZMÁN, Fernando; MARTÍNEZ, Juan Manuel; NAGEL, Lina Nagel. La imaginería religiosa popular y los desafíos de
su interpretación. En: DRIEN, Marcela; MARTÍNEZ, Juan Manuel (eds.). Estudios de arte, Santiago de Chile: Ediciones
JOSEFINA SCHENKE

más tarde se inauguró en el Centro Cultural Palacio La Moneda la más grande retrospectiva

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


de arte virreinal que haya habido en Chile hasta esta fecha: “Chile mestizo”22. Juan Manuel
Martínez realiza en el catálogo de la exposición una interesante revisión historiográfica en
torno a la “imaginería popular” en Chile, donde se reconoce por primera vez que “Chile fue
territorio de transferencia de imágenes elaboradas en la península o en los centros de pro-
ducción artística americanos, o bien, de la producción de imágenes simples para el consumo
de la piedad en conventos y hogares” y que “es posible que gran parte de estos santeros
fuesen mueblistas o carpinteros, e incluso armadores de embarcaciones” 23.
El autor no invisibiliza este tipo de figuras, si bien considera dos lugares de prove-
niencia: Chiloé y Limache24, e identifica las razones por las cuales las piezas que venían de
talladores “populares” no fueron registradas por las fuentes escritas:

La necesidad de contar con representaicones religiosas obligó a la formación de talleres


anónimos, los que no dejaron un testimonio escrito de su producción, pues no estaban tan
organizados como en otras partes del virreinato; su producción, tanto en cantidad como en
calidad, habría sido suficiente par abastecer, en parte, a la demanda local. La producción
popular de los santeros continuó después de la Independencia, al margen de la importación
de imágenes europeas o quiteñas, y debió satisfacer los requerimientosde la piedad de todo
un pueblo25.

Durante el siglo XXI, otros estudios han comenzado a hacer visibles las “esculturas
devotas populares” es el caso del texto de Marisol Richter, “Tres Cristos chilenos” y dos textos
de la historiadora Isabel Cruz de Amenábar26, si bien estos textos no abordan la zona de
69
estudio que aquí se propone.

Altazor / Universidad Adolfo Ibáñez, 2007.


22  Para un comentario crítico y un análisis del uso del término mestizo para piezas que no fueron producidas en
Chile durante la época virreinal, sino solo utilizadas en el territorio de la entonces Capitanía, me permito reenviar a
SCHENKE, Josefina. Sobre el uso del término ‘mestizo’ en la historiografía de la historia de las imágenes en Chile.
Revista Fronteras de la Historia (Instituto Colombiano de Antropología e Historia), vol.22-1, 2017, pp. 70-109. En la
sección “Lo propio y lo popular” de la exposición “Chile Mestizo”, se expuso una figura que coincide con la tipología
antes descrita de esculturas de “La Frontera”: una Virgen de la Merced (anónimo, Chile, siglo XVIII) conservada por el
Museo de Arte y Artesanía de Linares.
23  MARTÍNEZ, Juan Manuel. La imaginería popular. En: Chile mestizo: tesoros coloniales, Santiago de Chile: Fundación
Centro Cultural La Moneda, 2009, pp. 39 y 43. Ver, también, MARTÍNEZ, Juan Manuel. La escultura religiosa: espacios
de tránsito y creación popular en los confines del imperio español, pp. 82-121. En DÍAZ, Claudio; SOLÍS, Loreto (eds.).
Escultura sacra patrimonial en Santiago de Chile, siglos XVI al XX, Santiago de Chile: Corporación del Patrimonio
Religioso y Cultural de Chile, 2016.
24  Ibid: pp. 39 y 43.
25  Ibid: p. 43.
26  RICHTER, Marisol. Tres Cristos chilenos. En: SCHENKE, Josefina (ed.). Catálogo Museo de Arte Universidad de los
Andes, Colección María Loreto Marín, Santiago de Chile: Universidad de los Andes, 2015, pp. 122-125. Ver también
Isabel Cruz de Amenábar: “Patrimonialmente, el conjunto de obras conservadas de esos años >en Chile> es hetero-
géneo y dispar. Ampliamente se impone en número la imaginería religiosa y dentro de esta las piezas procedentes de
Quito; si bien el estudio de imágenes de origen chileno, por realizar, puede aportar importantes hallazgos en cuanto
a identificación, autoría de las obras y empleo de materiales propios”, AMENÁBAR, Isabel Cruz de. Patrimonio artístico
en Chile: De la Independencia a la República, 1790-1840, Santiago de Chile: Origo, 2016, p. 145; y ver también “Una
abundante producción popular, con modelos y técnicas de una elementalidad atractiva para el ojo contemporáneo,
mantiene hasta el siglo XX los modelos del Barroco mestizo, diseminados a través de todo Chile, con especial densidad
en la zona centro sur y en el archipiélago de Chiloé. AMENÁBAR, Isabel Cruz de. Arte colonial americano, colección
Joaquín Gandarillas Infante, Santiago: Pontificia Universidad Católica de Chile, 2018, pp. 162-163.
IMÁGENES EN MADERA POLICROMADA DE LA ZONA DE “LA FRONTERA” MAPUCHE (CHILE)

CONCLUSIÓN

En las perspectivas de la historiografía del siglo XX en Chile, así como las de comien-
zos del XXI, es perceptible, quizás, un rasgo que invita a pensar cuáles son las condiciones
que exige la historia del arte para que su objeto pueda ser considerado como “arte”. La
disciplina misma y su objeto de estudio se ponen en cuestión. Se pueden entonces distinguir
dos perspectivas que se enfrentan: una que exige de su objeto de estudio mímesis, propor-
ciones clásicas, destreza técnica y materiales valiosos, preciosismo. Una segunda, a la que
se adscribe aquí, que busca el análisis de imágenes determinadas, sin exigirles más que ser
reflejo del mundo del que vienen y de una historia que vehiculan. En este último caso, el
interés por el objeto es histórico, pero también es estético y antropológico.

70
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019
7
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS
DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

JOYCE FARIAS*

* Mestre em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo (EFLCH – UNIFESP).
JOYCE FARIAS

INTRODUÇÃO

N
o que diz respeito à antologia crítica das esculturas de nó-de-pinho, uma produ-
ção do século XIX desenvolvida por africanos no Brasil, parece constatar-se um
abismo, uma espécie de fatalidade historiográfica. Primeiro porque depara-se com
a escassez de material historiográfico e os poucos textos desenvolvidos trazem
uma sintomática leitura em classificar essa produção como arte de menor valor estético,
quase sempre tendo a questão da autoria negligenciada por deduções que comprometem
o entendimento das origens destas esculturas. E em um segundo aspecto, essa limitação
de conhecimento demonstra que a forma de se fazer uma historiografia para estes objetos,
sofreram nitidamente uma restrição de abordagens epistemológicas. Ou seja, é uma his-
toriografia pautada em cânones eurocêntricos, oferecendo uma construção discursiva que
difundiu conhecimento a partir de uma ideologia hegemônica, legitimando abordagens que
nem sempre alcançam realmente o objeto estudado. Sendo assim, é presumível que a falta
de informação sobre um objeto pode condená-lo ao vazio.
Certamente essas esculturas foram enredadas neste sistema de interpretação, mas
não foram as únicas. Esse aspecto é recorrente quando se amplia o diagnóstico a outros ti-
pos de produção artística de origem africana no Brasil. Por exemplo, um dos trabalhos mais
célebre sobre esta temática, As bellas-artes nos colonos pretos do Brazil: a esculptura (1904)1,
do médico e antropólogo Raymundo Nina Rodrigues, é um dos textos mais citados na histo-
riografia de arte brasileira, justamente porque é considerado como a origem de uma crítica
brasileira sobre “artes” produzidas por africanos.
Rodrigues é considerado o pioneiro na antropologia criminal brasileira e nos estudos
sobre a “arte negra” no país, pela maneira que estabeleceu suas pautas, já deixava explícito

72
o teor etnocêntrico baseado em teorias evolucionistas acerca das raças2. Em As belas-artes
dos colonos pretos do Brazil, essa ideologia foi reiterada na análise crítica aplicada pelo
autor, onde esculturas africanas foram classificadas como primitivas e sobre elas o interesse
científico era mais por uma via antropológica do que estética3. Embora o trabalho de Rodri-
gues não foi utilizado nas primeiras abordagens que constituíram a antologia das esculturas
de nó-de-pinho, ainda assim, é um referencial do pensamento crítico de qualquer produção
de origem africana encontrada no Brasil. E mesmo que haja um distanciamento de suas
ideias racistas, há uma aproximação do seu método de identificar e classificar, deixando
essas esculturas à margem de qualquer leitura mais plausível em termos de conhecimento.
Assim se vê que, o histórico das abordagens desta singular produção africana é quase
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

tão trágico quanto o contexto histórico do escravismo da qual originou-se. Porque elas estão
arraigadas em ideias que conduziram para uma interpretação comum à maioria das abor-

1  Ver RODRIGUES, Raymundo Nina. As bellas-artes nos colonos pretos do Brazil: a esculptura. In: Kósmos: revista
artística, scientifica e litteraria, Rio de Janeiro, vol. 1, no. 1, 1904.
2  Nina Rodrigues alcunhou o termo “arte negra” para referir-se à produção artística de africanos no Brasil, sobretudo
à escultórica. Todavia, suas reflexões eram voltadas à arte iorubana e da análise de objetos ritualísticos da cultura
Yorubá, adotando uma perspectiva evolucionista etnocêntrica. CUNHA, Marcelo N. Bernardo; NUNES, Eliane; SAN-
DES, Juipurema A. Sarraf. Nina Rodrigues e a Constituição do Campo da História da Arte Negra no Brasil. In.: Gazeta
Médica, Suplemento 2, 2006, p. 24.
3  Neste trecho, o termo “primitivo” está associado ao pensamento crítico desenvolvido no início do século XX, de-
signado na esteira dos estudos etnológicos da época, que compreendiam as produções artísticas que permaneciam,
de algum modo, isoladas, à margem da cultura hegemônica vigente. Neste ponto, a questão da definição de arte
primitiva está muito mais associada à visão de superioridade artística, ou seja, da arte ocidental em comparação com
outras artes não-ocidentais. Ver Ibid, pp. 23-28.
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

dagens críticas sobre as produções artísticas desenvolvidas por africanos no Brasil, àquelas

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


que atribuíram a essas produções como místicas, exóticas e/ou primitivas. Estes predicativos
foram tão recorrentes que para desconstruí-los, é preciso que primeiro comprove-se que es-
tes objetos são verdadeiramente uma produção artística, que possuem conceitos históricos,
estéticos e filosóficos. Por isto, o texto aqui apresentado, expõe uma leitura mais analítica da
fortuna crítica destas pequenas esculturas, tentando entender de que forma estabeleceu-se
o conhecimento sobre elas. Contudo, a partir deste diagnóstico propõe-se a colocar sob ob-
servação os indícios ignorados que oferecem outra narrativa acerca destes objetos.

O ENIGMA DAS ESCULTURAS NÓ-DE-PINHO. AS PAULISTINHAS EM MINIATURAS?

Essas esculturas são majoritariamente provenientes do território paulista no século


XIX e que tudo indica, foram produzidas por africanos4. Essa nomenclatura, “nó-de-pinho”
foi atribuída às pequenas esculturas por diletantes e colecionadores. O codinome é referen-
te ao material que foi mais utilizado para a confecção, entretanto, essa tipologia de escultu-
ra também foi desenvolvida em jacarandá, imburana e até mesmo em marfim.
Não há uma precisão de quando realmente estes objetos se tornaram fruto de curio-
sidade e investigação, porém, essas esculturas apareceram em coleções particulares muito
antes de surgirem as primeiras publicações sobre estes objetos, isso ainda compromete um
pouco o diagnóstico da dimensão territorial destas peças.
Os primeiros indícios de abordagem figuram a década de 1930, mais de identifica-
ção e catalogação, do que propriamente historiográfico. Destacando algumas atuações,
73
como personalidades como Mário de Andrade e Luiz Saia, pois ambos colecionaram diver-
sos objetos relacionados à imaginária católica brasileira, entre eles, as pequenas esculturas
de nó-de-pinho5. Mas é apenas a partir da década de 1950, que surgem textos de alguns
pesquisadores que tentaram compreender esta produção no contexto histórico da produção
de arte religiosa do território paulista. Destacando-se as publicações, Imagens Religiosas do
Brasil (1956) de Stanislaw Herstal, os diversos estudos de Eduardo Etzel, sobretudo, Imagens
Religiosas de São Paulo (1971), onde o autor dedica um capítulo para as esculturas de nó-
-de-pinho e, convém mencionar os textos de Carlos Lemos, que trouxeram uma ampliação
das reflexões levantadas por Herstal e Etzel. Essas pesquisas são apenas alguns dos exem-
plos sobre o tema abordado6, mas que serve para ilustrar o processo de inserção e reconhe-
cimento desta produção na historiografia de arte no Brasil.
Neste conjunto, são os textos de Eduardo Etzel e Carlos Lemos, os mais referenciados.

4  A produção de nó-de-pinho também foi encontrada em regiões de Minas Gerais. Ver FRONER, Yacy-Ara. A presença
de objetos de marfim em Minas colonial: estética, materialidade e hipóteses acerca da produção local. In.: SANTOS,
Vanicléia Silva; PAIVA, Eduardo França; GOMES, René Lommez (orgs.). O comércio de marfim no mundo atlântico:
circulação e produção (séculos XV a XIX), 2018.
5  Mario de Andrade foi um ávido colecionador de imagens religiosas, sua extensa coleção foi perfilada pela pesquisa-
dora Marta Rosseti Batista. Entre tantos objetos, há alguns exemplares destas pequenas esculturas. Embora o interesse
de Andrade estava atrelado aos pares: iconográfico/religioso e técnico/estético. Assim, o olhar do colecionador en-
globava a questão dos costumes, das crenças e das superstições populares. Deste modo, o entendimento de Andrade
considerava esta produção com parte de um corpus maior que estava sob a insígnia de um “catolicismo popular bra-
sileiro”. BATISTA, Marta Rosseti. Coleção Mário de Andrade: religião e magia, música e dança, cotidiano, 2004, p. 24.
6  Outros estudos tornaram-se referências e conduziram para leituras menos turvas, trazendo novas tentativas de
abordagens epistemológicas. Ainda, os textos e autores mencionados fazem parte de um conjunto maior de material
crítico.
JOYCE FARIAS

Basicamente o material destes autores constitui a


historiografia conhecida dessas peças. Justamente
porque ambos apresentam estudos mais extensos
sobre essas esculturas e investigaram-nas seguindo
uma abordagem com tentativas mais analíticas (fi-
guras 1 e 2).

1. Esculturas de nó-de-pinho. Representação


da Virgem (7,5 cm) e Santo Antônio (15 cm), s.d.
Fonte: ETZEL, Eduardo. Imagens religiosas de São
Paulo: Apreciação Histórica. São Paulo: Melhora-
mentos, 1971, p. 154.

Etzel foi talvez o pesquisador

74
que mais aprofundou certos aspectos
territoriais em relação à matéria-prima 2. Santo Antônio. Esculturas de nó-de-pinho, s.d. Vale do Pa-
das esculturas, - o nó-de-pinho. Um raíba. Imagem 1:12,4 cm; Imagen 2: 11, 2 cm; Imagem 3: 17
cm; Imagem 4: 7,8 cm. Coleção Carlos Lemos. Fonte: LEMOS,
material encontrado em abundância Carlos. A imaginária dos escravos de São Paulo. In: ARAUJO,
no século XIX no território paulista e Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição
artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988, p. 192.
parte da região sul do país7.
Em partes, esse dado justifica a
utilização deste material para as esculturas, mas não responde porque se deu a escolha por
esta madeira tão dura na confecção de peças tão pequenas. E qual era o grau de conheci-
mento técnico das pessoas que produziram essas peças?
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Outro aspecto comentado pelo pesquisador, são as dimensões, pois as esculturas


possuem modestas medidas, variando de 3 a 15 centímetros de altura. Este pesquisador
chega classificá-las numa categoria denominada de “miniaturas”. Entendendo que esta clas-
sificação advém de um processo morfológico que resultou na perda de tamanho das escul-
turas conhecidas como paulistinhas.

Na evolução da imaginária passamos, como referimos linhas atrás, do coletivo para o par-
ticular, do grande para o pequeno, da capela para o correspondente doméstico: o pequeno
oratório, peça de mobiliário obrigatória no século XIX. O tamanho das imagens acompa-
nhou forçosamente esta tendência. Já declaramos ver nesta evolução uma identificação

7  A publicação Imagens religiosas de São Paulo: Apreciação Histórica (1971), é o material que apresenta o estudo mais
extenso do autor sobre as esculturas de nó-de-pinho, dedicando um capítulo para analizar essa produção.
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

cada vez mais íntima, e de significado sempre mais profundo e pessoal, com o culto religio-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


so. Testemunha esta evolução a presença de pequenas imagens entre o material recolhido,
as quais chamamos de miniaturas. O material destas é variado: entre 53 peças coligidas, a
maioria é de nó-de-pinho, havendo-as ainda de barro, chifre, osso, chumbo, porcelana e
gesso. A evolução do grande para o pequeno, atingindo o costume de externar a devoção
por meio dos oratórios domésticos, não parou aí. A necessidade de “entesourar” a imagem
fez com que suas dimensões diminuíssem. Com o tempo, foi ela ficando tão pequena que
já podia fazer parte da própria indumentária. E foi o que aconteceu mais tarde, com o uso
generalizado das medalhas, de grande aceitação, pois atendeu ao desejo de maior proximi-
dade física do fiel com o santo de sua devoção8.

Portanto, aqui há um entendimento que as pequenas esculturas de nó-de-pinho são


substratos do que venha ser as paulistinhas, só que em escala reduzida. Embora haja um
reconhecimento da diferenciação de uso e prática religiosa destas esculturas em relação às
paulistinhas, o autor até tenta argumentar esses aspectos como resquício de uma concepção
de escultura africana de forma mais abrangente, “Tudo sugere que sejam amuletos, - como
revela o halo de mistério que envolve estas pequenas imagens, [...] ainda que desvinculadas
atualmente de significados secretos, não deixam de ter uma ligação com o passado, pois o
talismã, a sorte, é ainda o sentido de sua influência atual”9.
Entretanto, esse caráter não é aprofundado.
Numa outra via, o texto de Etzel pouco alcança essas peças enquanto produção artís-
tica, pois o modo de compreender produções deste tipo, é sempre a partir de uma concepção
eurocêntrica. Vejamos o que pesquisador utilizou para conseguir enquadrar essas peças:
75
Podemos, neste grupo de miniaturas, separar as pequenas peças populares das congêneres
de valor artístico indiscutível. Com o barro cozido e o gesso, o artesanato popular é proble-
mático, pois com estes materiais o trabalho tem que ser obra de mãos hábeis na confecção
das peças, qual estudamos nos capítulos respectivos. O trabalho de confecção do homem
do povo, do artista improvisado, sem qualificação, embora com sensibilidade e certa habi-
lidade, se patenteia na madeira (nas pequenas peças feitas de nó-de-pinho, raramente de
cedro), na ponta de chifre, no osso e no chumbo10.

Etzel utiliza-se de hipóteses bem vagas, mas sempre beirando à ideia de inferioridade
desta produção perante às esculturas de origem luso-brasileira. Deste modo, as nó-de-pi-
nho são classificadas como arte menor, ou melhor, de pouco valor artístico, concluindo que
essa produção nasceu da improvisação de indivíduos sem qualificação técnica, entendida
pelo autor, sem formação erudita.
Ainda neste trecho, o “homem do povo” denominado pelo pesquisador, não fica claro
que trata-se do africano escravizado, porém, ao afirmar que as produções de nó-de-pinho
eram realizadas exclusivamente por africanos escravizados, logo, homem do povo também
se refere a estes indivíduos11. Isso já constatava-se na afirmação do autor ao definir estas

8  ETZEL, Eduardo. Imagens religiosas de São Paulo: Apreciação Histórica, 1971, p.151.
9  Ibid, p.152.
10  ETZEL, Eduardo. Op. cit., p.152.
11  Ibid.
JOYCE FARIAS

esculturas como amuletos12.


São nessas pautas que fica evidente a falta de conhecimento sobre as populações
africanas que foram escravizadas e inseridas no território paulista. Embora, Etzel afirme
que essas esculturas foram produzidas por africanos, só isso não permite ter compreensão
desta produção. Na verdade, as encerram como objetos de mistério, de misticismo, palavras
que o próprio autor utiliza, mas não explica o que isso realmente significa no enredo da
apresentação desta produção. Claramente, este é um caso de leitura sintomática, que mais
enquadra uma produção de cânone não-europeu, do que propriamente tenta entendê-la.
Sendo assim, a abordagem que Etzel traz é um sistema de ajustamento da produção artís-
tica do território paulista, influenciada por uma perspectiva de História da Arte europeia.
Obviamente, as regiões paulistas, enquanto território historicamente colonizado, resultou
em influências marcantes na produção escultórica de cunho católico. Porém, o que fica à
margem deste paradigma, - “aquilo que não se encaixa”-, é anulado ou classificado sempre
a partir de um referencial de cânones eurocêntricos, instituindo uma historiografia apática
para estes objetos marginalizados, e, nessas condições, deixa de gerar conhecimento.
Retomando a antologia conhecida sobre as esculturas de nó-de-pinho, observa-se
que Carlos Lemos também estudou a imaginária do território paulista. Seus textos serviram
de base referencial para projetos curatoriais que resultaram em importantes exposições em
território nacional, como A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histó-
rica (1988), uma das exposições mais significativas na difusão da produção artística negra
no Brasil e na qual apresenta as esculturas de nó-de-pinho como uma produção africana.
O texto mais significativo de Lemos sobre essas esculturas, é conferido no catálogo desta
exposição, intitulado A imaginária dos escravos de São Paulo13.
Nota-se que em suas investigações, Lemos fez apontamentos similares aos de Etzel,

76
contudo, reconheceu a escassez de informações destas esculturas para entender o sistema
simbólico das quais emergiram, colocando-as em outro patamar, que as distanciava em
certa medida das paulistinhas. A primeira consideração é sobre o modo devocional atrelado
a elas. Já se sabia desde Etzel, que essas esculturas eram utilizadas como amuletos14. No
entanto, é Lemos que aponta aspectos que justificam essa característica de uso, ignorando
o conceito de evolução que relaciona às nó-de-pinho às tradições da imaginária paulista, o
autor destaca esse caráter de “amuleto” argumentando tratar-se de uma forma de devoção
muito particular dos africanos, sugerindo que houve um processo de ressignificações cultu-
rais, dando um sentido dúbio às pequenas esculturas. Concluindo que não eram totalmente
objetos consoantes de uma imaginária católica paulista, eram também objetos associados
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

aos resquícios das religiosidades africanas trazidas pelos escravizados e que isso resultou

12  “Em se falando de amuletos, logo se pensa em negros e o Vale do Paraíba teve uma grande concentração deles.
Cassiano Ricardo refere-se a “três borrões de azeviche na nossa formação social e econômica”, que foram o litoral,
a zona do ouro e, por último, o Vale do Paraíba, com o advento da lavoura cafeeira. O material usado e as figuras
representadas apontam o negro como seu criador”. Ibid.
13  LEMOS, Carlos. A imaginária dos escravos de São Paulo. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: signi-
ficado da contribuição artística e histórica, 1988, pp.192-197.
14  Temos em nosso material, paulistinhas pequenas de 6 cm, imagem de osso de 8 cm, cie chumbo de 5 cm e as carac-
terísticas de nó-de-pinho desde 3 cm de altura. Tais imagens, de uso para ornamento de oratórios, foram feitas também
para porte pessoal, sobretudo o Santo Antônio de nó-de-pinho ou cedro que tem um furo para passagem do cordel que
o sustém. Daí para os escapulários e as medalhas de santos dependuradas no pescoço ou presas nas roupas íntimas,
junto ao coração, é um caminho natural na evolução da imaginária e da devoção cada vez mais internalizada. ETZEL,
Eduardo. Op. cit., p.53.
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

numa nova espécie de culto privado, só que

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


mais internalizado (figura 3).

O culto a Santo Antônio pelos escravos pau-


listas é uma pena que ainda não tenha sido
estudado; mas acreditamos que ele não
tenha passado de uma devoção descom-
promissada de qualquer prática organizada
ligada à tradição africana, ao contrário do
que aconteceu em outras regiões brasilei-
ras, onde o nosso santo correspondia ora a
Ogum (Bahia), ora a Xangô (Recife), a Bará
(Rio) ou ao próprio Exu (Porto Alegre). [...]
Basicamente, grande parte das aludidas
pequenas imagens de Santo Antônio, exe-
cutadas em nó de pinho, serviam de amule- 3. Escultura e depositório em tecido. S.d. Vale do Pa-
raíba. Coleção Roberto Lemos Monteiro. Fonte: LEMOS,
tos trazidos pendurados pelo pescoço e, ao Carlos. A imaginária dos escravos de São Paulo. In: ARAU-
que parece, nas costas dos negros velhos15. JO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da
contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988,
p. 195.
Em um texto anterior à pesquisa de
Lemos, Escultura Popular de madeira de Luiz
Saia, há também similaridade desta interpretação. Saia apresenta preposições de aproxi-
mações e distanciamentos da própria produção escultórica católica na qual as nó-de-pinho
77
foram convencionadas às ditas paulistinhas. Isso sugere que essas pequenas peças são dis-
sonantes das paulistinhas.

O fato de serem feitas de madeira dura, frequentemente do nó da madeira – de onde lhes


viria esse perjúrio “nó-de-pinho” – fá-los apresentar as fibras dispostas de modo aprovei-
tável para consolidar a estrutura da peça. Constituiria também uma condição de traba-
lhahabilidade da madeira, um fator a explicar o esquematismo da linguagem plástica uti-
lizada. [...] o fato é que a característica marcante dessas peças está na sua tendência para
a representação abstrata em baixo ou alto-relevo; [...] A linguagem identificatória constitui
geralmente uma incisão (Menino Jesus, etc.) o que permitiria uma liberdade maior da im-
postação plástica do conjunto. Liberdade é apenas um modo de dizer, porque o tamanho
reduzido das peças condiciona profundamente o esquema plástico geral. [...] A regra de boa
composição, que leva uma linha a encontrar continuidade depois de um intervalo de outro
tratamento, coisa frequente na escultura popular de madeira, pode ser uma explicação na
coincidência da forma original da madeira que recebeu o trabalho de escultura. Nesse senti-
do, esta escultura de madeira é uma peça da imaginária católica apenas na medida em que
alguns sinais inseridos nela (coroa, cruz, Menino Jesus, etc.) são elementos identificatórios
na imaginária católica. Tudo o mais nada representa de especificamente associável ao na-
turalismo convencional que caracteriza a escultura católica no Brasil16.

15  Algumas destas esculturas eram resguardadas dentro de pequenos acessórios, tipos bolsas, que alguns escraviza-
dos utilizavam. LEMOS, Carlos. Op. cit., p.194.
16  SAIA, Luiz. Escultura Popular de Madeira. In.: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo – IAU – USP, 2014,
pp.231-234.
JOYCE FARIAS

Retomando Lemos, embora o autor não aprofunda tanto essa questão do esquema-
tismo da linguagem plástica para justificar a origem africana desta produção, em seus textos
esse dado não é questionável, pelo contrário, não há dúvidas que se trata de uma produção
africana. Por outro lado, sua pesquisa pouco avançou em termos epistemológicos, ficando
a sensação que seu trabalho apenas afirma que essas esculturas são legitimamente uma
produção africana em território paulista, permanecendo sem respostas as especulações que
o próprio autor levantou17.
Outra peculiaridade pouco tratada pela maioria das pesquisas aqui abordadas, é o
fato destas esculturas apresentarem como devoção majoritária a de Santo Antônio. Embora
Lemos sinaliza tratar-se de uma devoção que não aparenta ser despretensiosa por parte dos
africanos, o pesquisador afirmou não ter indícios que possam fundamentar essa desconfian-
ça.
Vale ressaltar que as coleções de esculturas nó-de-pinho existentes em diferentes
acervos, são noventa por cento compostas por peças que possuem a representação ico-
nográfica do santo português18. O restante fica em incertezas de identificação e em algu-
mas representações da Virgem. Essa devoção antoniana atrelada às pequenas esculturas
de nó-de-pinho, não poderia ser definida pelo contexto do projeto de catequese de negros,
ordenado e divulgado pela Igreja Católica (a partir do século XVIII), na qual distinguiu santi-
dades específicas para servir de exemplos de negros convertidos, como São Benedito, Santo
Antônio de Categeró, Santa Efigênia e Santo Elesbão. Ou ainda, as devoções marianas inti-
tuladas protetoras de escravizados, como Nossa Senhora do Rosário, das Mercês, do Terço,
etc. Porque este quadro de devoções possui um discurso que envolve a representatividade de
figuras negras inseridas na Cristandade para servir de exemplo, ou ainda, cria-se a ideia de
uma Igreja universalizada, conferindo as invocações marianas, o título de “Mãe e Protetora

78
de todos”19, até mesmo de negros. Então, esse repertório retórico não confere às escultu-
ras de nó-de-pinho, porque Santo Antônio não foi um santo utilizado para este propósito
de conversão de negros20. Esse dado só reforça o distanciamento entre essa produção com
qualquer outro tipo que se enquadre em um cânone europeu.
Neste ponto, é pertinente retomar as observações feitas por Saia sobre a distinção
entre a imaginária católica de origem luso-brasileira e as nó-de-pinho. A primeira, constitui-
-se sempre de uma representação naturalista, enquanto as pequeninas nó-de-pinho apre-
sentam um reducionismo que resulta na simplificação das formas. Diferentemente do natu-
ralismo da imaginária luso-brasileira, esses aspectos cogitam que essa produção traz uma
representação simbólica do santo português. Quase todas as peças estudadas apresentam
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

essas características, o que permite considerar que há um cânone que traduz uma concep-
ção de representação muito específica, que foi elaborada com base em algum esquema re-

17  Após a pesquisa de Robert Slenes sobre as populações africanas escravizadas da região Sudoeste durante o século
XIX, Carlos Lemos revisa e complementa esta pesquisa sobre as esculturas de nó-de-pinho. Ver LEMOS, Carlos. Índios
e negros. In.: A Imaginária Paulista, 2000, pp.115-122.
18  Os acervos públicos de São Paulo que possuem o maior número de esculturas de nó-de-pinho no Brasil são: o
Museu de Arte Sacra de São Paulo e o Museu Afro Brasil.
19  A exemplo da retórica da obra de Padre Vieira no Sermão XIV (1633). VIEIRA, Pe. Antônio. Textos literários em
meio eletrônico Sermão XIV (1633). In: Literatura Brasileira/ Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e
Linguística – Universidade Federal de Santa Catarina. Edição de Referência, 1998, p.2. Disponível em: http://w
ww.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01858.html. Acessado em 17 de ago. /2019.
20  OLIVEIRA, Joyce Farias. Niger sed Formosus: A Construção da imagem de São Benedito. Dissertação de Mestrado/
Programa de Pós-Graduação em História da Arte - UNIFESP, 2017.
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

presentativo de Santo Antônio e não como uma reprodução tosca de um modelo de origem

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


portuguesa, trata-se de esquema compositivo que, partindo de elementos iconográficos do
santo português que foram mais ou menos preservados.
Apesar disso, nos textos analisados não houveram pautas que respondam estes as-
pectos, por outro lado, a maior parte das opiniões expostas sobre as esculturas de nó-de-pi-
nho repousa sobre pré-conceitos construídos para justificar uma teoria cômoda, que insiste
em reforçar um postulado eurocêntrico que enquadra estes objetos numa espécie de rami-
ficação da imaginária paulista, com poucas tentativas reais de uma leitura mais analítica
sobre seu contexto histórico-cultural, mas sobretudo, do conteúdo estético que essas peças
possuem. A falta de uma abordagem mais epistêmica é consoante à ausência de conheci-
mento sobre as populações africanas que foram trazidas em regime de escravidão. Como
resultado, a invisibilidade é o que corresponde à negligência, aos equívocos a respeito de
tudo o que essas populações e seus descendentes produziram no Brasil.

A SOBREVIVÊNCIA DE UM CÂNONE: DO KONGO AO BRASIL

A escravidão negra é sem dúvida, um dos capítulos mais turvos em termos de conhe-
cimento da Idade Moderna e não é diferente no cenário brasileiro. Como foi percebido, a di-
mensão deste capítulo também reflete nas agruras que cercam a produção de nó-de-pinho.
Obviamente, porque não permite definir um pensamento crítico sobre essas peças, sobre
quem as produziu e porque as produziu. Neste contexto, o indivíduo escravizado não é visto
por sua dimensão cultural e sim sua condição social apagada pelo sistema de escravismo.
79
Isto é, toda abordagem sobre as nó-de-pinho reflete puramente o desconhecimento do indi-
víduo que as produziram. Denominados seus produtores como escravos, pouco se sabe em
que circunstâncias ocorreu esse processo de criação.
É imprescindível neste contexto de invisibilidade, o reconhecimento de que o discurso
hegemônico que enreda essa produção é um mecanismo reverso a qualquer tentativa que
visa a construção de novas narrativas sobre estas peças. Por isso, é preciso rever os aspectos
ignorados, os indícios que não foram abordados, elementos que possam oferecer novos
olhares.
Se as pesquisas de Eduardo Etzel e Carlos Lemos, não conseguiram alcançar a dimen-
são do conteúdo destas peças, pelo menos sinalizaram a dificuldade de interpretação. Ainda
foram estas pesquisas que destacaram a situação propícia para este fenômeno no território
paulista relacionado à presença das novas levas de africanos no século XIX para as grandes
áreas de lavouras21.
Na década de 1990, o texto Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta do
Brasil (1992) de Robert Slenes conduziu para outra perspectiva sobre a população africana
do território paulista, primando pela identificação dos grupos étnicos das novas levas de
escravizados transladados durante o século XIX. Em absoluto, africanos de origem bantu da
África Central, mas de nações diversas22.

Entre o final do século XVIII e 1850, um enorme contingente de africanos foi introduzido no

21  ETZEL, Eduardo. Op. cit., 1971, pp.151-158; LEMOS, Carlos. op. cit., 1988, pp.192-197.
22  Ainda para constatação de dados sobre essas levas de escravizados, ver a pesquisa minuciosa de LUNA, Francisco
Vidal; KLEIN, Hebert S. Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São Paulo de 1750 a 1850, 2005.
JOYCE FARIAS

Brasil. O tráfico foi direcionado especialmente para Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Pau-
lo. [...]Em São Paulo, o tráfico afetou menos a população total e a de pretos e pardos, mas
resultou numa população escrava predominantemente “estrangeira”, sobretudo nas regiões
de grande lavoura [...] Se a escravidão no Centro-Sul era africana, isto vale dizer que era
bantu. Pesquisas recentes indicam que a predominância bantu entre escravos dessa região
era até maior do que se pensava antes. No final do século XVIII e início do XIX, quase a to-
talidade dos escravos trazidos para esta região provinha de “Angola” (isto é, dos portos de
Luanda e Benguela, nessa ordem). Depois de 1810, o tráfico da região que Karasch chama
de “Congo-Norte” (da desembocadura do rio Congo/Zaire até o Cabo Lopez e pontos ao
norte, no atual Gabão) cresceu muito, como também o de Ambriz (no norte de Angola), en-
quanto o de Benguela diminuiu. Após 1830, a exportação de escravos por Luanda encolheu,
enquanto as saídas de Benguela, Ambriz e Congo-Norte aumentaram. Ao mesmo tempo, a
partir da segunda década do século XIX, o tráfico da África Oriental aumentou muito; entre
1820 e 1850, aproximadamente um quarto dos escravos trazidos para o Rio de Janeiro pro-
vinha dessa região. Em suma, após 1810 houve uma mistura mais diversificada de etnias no
fluxo de escravos para o Brasil. Mesmo assim, manteve-se a predominância bantu23.

Slenes baseia-se na pesquisa de Mary Karasch que desenvolveu um importante e


amplo estudo sobre as origens da população escravizada no século XIX no Rio de Janeiro,
mas Slenes complementa e esboça um cenário mais amplo da região sudeste, fornecendo
um diagnóstico de imigração africana em outras regiões. Além disso, o autor constata que a
tradição da devoção antoniana entre escravizados de origem bantu, advinha de indivíduos
das etnias da cultura kongo, especificamente o povo Bakongo, originário do antigo Reino do
Kongo2425.

80 [...] o culto dos negros a esse santo, conhecido especialmente por sua capacidade de curar
doenças, encontrar objetos perdidos, e trazer a fecundidade (promover o casamento), deve
ser interpretado a partir do complexo cultural “ventura-desventura” da África Central, des-
crito por Craemer, Vansina e Fox. De acordo com essa visão do mundo, para alcançar a fe-
licidade ou contrariar a ação de pessoas ou espíritos malignos, não há nada melhor do que
pedir a ajuda de um feiticeiro ou bruxo poderoso, o espírito de alguém que desempenhou
um desses papéis na vida, ou um espírito benéfico da natureza. Enfim, o Santo Antônio dos
negros ofereceria um exemplo da capacidade de pessoas da África Central de reinterpretar
símbolos e objetos rituais estrangeiros, nos termos básicos de sua cultura de origem. [...] o
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Santo Antônio de meados do século XIX certamente se prestava a ser assimilado pelos para-
digmas religiosos da África Central, especificamente os da cultura kongo26.

23  SLENES, Robert Wayne.” Malungu, ngoma vem! “: África coberta e descoberta do Brasil. In: Revista USP, 1992,
pp.55-56.
24  Kongo com “K” e não Congo com “C” é utilizado para distinguir a civilização do Kongo e o povo Bakongo da entida-
de colonial chamada Congo Belga (atualmente Zaire) e da atual República Popular do Congo-Brazzaville, que incluem
numerosos povos não Kongo. Tradicionalmente a civilização Kongo abrange o moderno Baixo-Zaire e os territórios
vizinhos na moderna Cabinda, o Congo-Brazzaville, o Gabão e o norte de Angola. Os povos Punu (do Gabão), Teke
(do Congo-Brazzaville), Suku e o Yaka (da área do rio Kwango, a leste do Kongo, no Zaire) e alguns dos grupos étnicos
do norte de Angola partilham conceitos culturais e religiosos fundamentais com o povo Bakongo. THOMPSON, Robert
Farris. Flash of the spirit/Arte e filosofia africana e afro-americana, 2011, p. 108.
25  Ver KARACH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850, 1987.
26  SLENES, Robert Wayne. Op. cit., pp.64-65.
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

Outros apontamentos que enredam essa devoção antoniana na África Central, é o

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


trabalho do historiador John Thornton. O livro The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz
Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684–1706 (1998), apresentando a figura histórica
da profetiza e líder do movimento antoniano, Kimpa Vita27. É neste viés, que o texto San-
to Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro (2001) da historiadora Marina de
Mello e Souza, aponta as nó-de-pinho como objetos ressonantes do contexto histórico do
catolicismo no Reino do Kongo. As nó-de-pinho, denominadas por esta pesquisadora, como
objetos mágico-religiosos, são comparadas em termos de uso e valores religiosos com as
esculturas minkisi, uma categoria de esculturas que eram utilizadas para proteção, num sen-
tido mágico-religioso da cultura bakongo. Souza fundamenta esta aproximação à medida
que apresenta um cenário complexo do histórico desta devoção católica entre os bakongos,
pois a adoção por Santo Antônio surge à medida que os preceitos do catolicismo começaram
a penetrar na religião tradicional nas diferentes regiões da África Central, entre eles, o Reino
do Kongo28.
Com base nesses apontamentos, o distanciamento das nó-de-pinho com as paulis-
tinhas é aceitável. Mas para além desta conclusão, aprofundando a análise comparativa
entre as pequenas esculturas encontradas no Brasil, com a produção escultórica bakongo,
levanta-se a hipótese que as nó-de-pinho preservam um cânone de representação bakongo
de Santo Antônio.
Tanto os estudos sobre a devoção antoniana entre os escravizados do território pau-
lista de Slenes e posteriormente os de Souza, já sinalizavam para o antigo Kongo como ter-
ritório de origem. Contudo, foi a pesquisa de Cécile Fromont, historiadora da arte, foi que
forneceu a dimensão da transformação da cultura visual dos bakongos pelo viés do catolicis-
81
mo29. O que ajuda a pensar não só na sobrevivência de um cânone através das nó-de-pinho,
mas também de como se estabeleceu sua construção em terras africanas.

A escolha da iconografia, a proporção do corpo, e o tratamento estilizado de características


do santo, esculpida em material duro, brilhante, ecoam as figuras santo do Kongo [...] os
objetos brasileiros eram usados como pingentes ou adornos nas vestimentas, pertenciam
às comunidades escravizadas cujos membros eram predominantemente da África central, e
muitas vezes em regiões sob a jurisdição do Reino Kongo30

Por isso, cabe pautar sinteticamente alguns aspectos históricos que envolvem o antigo
reino dos bakongos e os contatos com os portugueses.
Praticamente uma década antes de Cristóvão Colombo chegar nas Américas, o ex-

27  Sobre essa significativa devoção e sua relação política no Reino do Kongo, Thornton cita a figura de Dona Beatriz
Kimpa Vita, uma médium (nganga marinda) da capital do reino, M’Banza Kongo. A pregação de Kimpa Vita havia
forte conotação política. Preconizava a reunificação do Kongo, chegando mesmo a envolver-se nas lutas facciosas da
época. Por meio de vários acordos, Kimpa Vita fortaleceu o movimento conhecido como antoniano, estabelecendo
aliança com famílias nobres, a exemplo dos grupos de Kimpanzi. Parte da nobreza contrária ao reinado de D. Pedro IV
do Kongo. Ver THORNTON, John. The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement,
1684-1706, 1998.
28  Ver SOUZA, Marina de Mello. Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro, 2001, pp. 171-188.
29  Sua pesquisa mais significativa sobre este tema é a The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom
of Kongo (2014), onde a autora aborda a influência do antigo Reino do Kongo no Ocidente, revelando uma rede de
contatos e circulações afro-atlânticas (a partir do século XVI) estabelecidos pelos bakongos. Ver FROMONT, Cécile.
The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo, 2014.
30  [Tradução nossa]. FROMONT, Cécile. Op. cit., p.291.
JOYCE FARIAS

plorador português Diogo Cão desembarcou


na costa da atual Angola31. Este ponto de vi-
ragem na história mundial originou intercâm-
bios significativos de cultura material através
do Atlântico.
Kongo: Power and Majesty (2015) foi
uma exposição realizada pelo Metropolitan
Museum que elucidou as transformações da
cultura visual do Reino do Kongo. No catálo-
go desta mostra, muitos dos objetos estão re-
lacionados com os resultados destes contatos
culturais entre bakongos e portugueses, como
as peças que apresentam Santo Antônio como
santo de devoção bakongo. Esses objetos, que
não apresentam uma datação precisa, e sim,
4. Santo Antônio (Toni Malau) Pingente. Latão fun- um arco temporal que vai do século XVI ao
dido (10,2 cm), séc. XVI - XIX. Povo Bakongo. Fonte:
Kongo: Power and Majesty. Catálogo de exposição. Nova
XIX, demonstram que a devoção antoniana foi
Iorque: Metropolitan Museum of Art, 2016. muito significativa no Kongo por um longo pe-
ríodo na Idade Moderna32 (figura 4).
Denominadas de Toni Malau, essas pe-
quenas esculturas apresentam um esquema
representativo de Santo Antônio que é mui-
to similar as esculturas recolhidas no Vale do
Paraíba e outras regiões paulistas. Essa pro-

82
dução surgiu no século XVII, peças feitas de
bronze, latão e algumas de marfim, de redu-
zidas dimensões (até 12 cm) e apresentando
argolas ou ganchos de sustentação na parte
posterior, é resultado de uma conjuntura his-
tórica entre portugueses e centro-africanos,
que não está pautada na questão da escravi-
dão negra e sim, dos contatos culturais entre
esses indivíduos (figura 5).
Os Toni Malau, ou Dontoni Malau,
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

como eram conhecidos, pois “Malau” é o plu-


ral de “Lau” que quer dizer “boa sorte” ou
“êxito, eram uma espécie de amuletos usados
como proteção contra os ataques dos inimigos
ou simplesmente intercessor para a sorte dos
seus detentores, eram também verdadeiras
5. Toni Malau. Escultura em marfim (11 cm/inciso de
hipopótamo), séc. XVIII. Povo Bakongo. Fonte: Acervo insígnias de determinados grupos servindo de
digital The Metropolitan Museum. símbolo dos seus ofícios33.
Cécile Fromont acredita que esse cris-

31  Ver BATSÎKAMA, Patrício. O Reino do Kongo e sua origem meridional, 2011.
32  Ver LAMMA, Alisa (org.). Kongo: Power and Majesty. The Metropolitan Museum of Art, 2015.
33  FRANCO, Anísio. Santo António/Toni Malau. In.: Masterpieces: Pegadas dos portugueses no mundo, 2010, p.12.
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

tianismo africano34 não foi um acontecimento particular da região centro-africana, mas um

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


fenômeno que caminhou com a diáspora africana. O cristianismo no Kongo ganhou forma
a partir do encontro prolongado entre pensamento religioso, as formas visuais e os sistemas
políticos da África Central e da Europa (figuras 6 e 7). Um encontro que ocorreu no escopo
de um conjunto de objetos culturais – narrativas, ilustrações, performances que forjaram
uma cultura visual muito particular35.

83
7. Cruz de Santo Antônio (Toni Malau).
6. Cetro com Santo Antônio (Toni Malau). Latão, madeira, século Latão fundido e sólido, folha de liga de
XIX. Povo Bakongo. Fonte: Kongo: Power and Majesty. Catálogo de ex- chumbo, estanho e madeira, séc. XVI -XVIII.
posição. Nova Iorque: Metropolitan Museum of Art, 2016. Povo Bakongo. Fonte: Kongo: Power and
Majesty. Catálogo de exposição. Nova Ior-
que: Metropolitan Museum of Art, 2016.

As ditas Toni Malau, saíam de oficinas de escultores bakongos renomados e como


o antigo Kongo foi um reino muito influente durante seu processo conversão, essa “nova
moda”36 absorvida por uma elite bakongo, mas também alcançou outros territórios centro-
-africanos e outras classes sociais. Obviamente, que essa transladação cultural sofreu modi-
ficações a medida em que os territórios iam absorvendo essas influências. Por exemplo, nas
comparações das imagens há variações na representação do santo, além dos diferentes ma-
teriais, os Toni Malau eram feitos de metal ou marfim, processos de construção de esculturas
totalmente diferentes das de nó-de-pinho, mas todos essencialmente carregam referências

34  O conceito de “cristianismo africano” foca o estudo dos contatos entre as elites convertidas dos reinos da região
centro-africana e os portugueses, configurando nos elementos devocionais uma linguagem artística combinada entre
culturas africanas e europeias. FROMONT, Cécile. Op. cit. Ver também THORNTON, John. A África e os africanos na
formação do mundo atlântico (1400-1800), 2004.
35  Ver FROMONT, Cécile. Op. cit.
36  Uma mudança de caráter políitco, religioso e estético, como interpretou Cécile Fromont.
JOYCE FARIAS

do cânone bakongo de representação de Santo Antônio (figura 8).

8. Detalhe da escultura de
Santo Antônio (Toni Ma-
lau). Pingente (10,2 cm) de
latão fundido, séc. XVI - XIX.
Povo Bakongo. Fonte: Kongo:
Power and Majesty. Catálogo
de exposição. Nova Iorque:
Metropolitan Museum of Art,
2016.
Detalhe das esculturas de
Santo Antônio. Esculturas
de nó-de-pinho, s.d. Vale
do Paraíba. Imagem 1:12,4
cm; Imagem 2: 11, 2 cm.
Coleção Carlos Lemos. Fon-
te: LEMOS, Carlos. A ima-
ginária dos escravos de São

84
Paulo. In: ARAUJO, Emanoel
(Org.). A mão afro-brasileira:
significado da contribuição
artística e histórica. São Pau-
lo: Tenenge, 1988, p. 192.

Por isso que Fromont é contundente em associar as imagens de nó-de-pinho a este


fenômeno cultural. Ainda que falte preencher lacunas acerca da escolha pelo nó-de-pinho
na fabricação destas pequenas esculturas, é certo que essa produção não era desenvolvida
por sujeitos desqualificados de conhecimentos técnicos, como afirmou Etzel. Pelo contrário,
tudo isso indica que seus executores eram escultores ou aprendizes pertencentes às gera-
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

ções influenciadas e formadas por tradições de um reino africano cristão. Considerando que
a assimetria das relações de poder entre portugueses e bakongos representa uma dimensão
constitutiva da modernidade e isso implica reconhecer este episódio histórico como um pro-
cesso dialético entre culturas. Portanto, a produção das esculturas de nó-de-pinho, mesmo
com um arco temporal de aproximadamente três séculos (XVI - XIX), é um dos resultados
desta síntese dos contatos culturais, mas sobretudo da “nova forma” do catolicismo pela
ótica do Reino do Kongo.
Porém, similaridade não anula o espaço-tempo que separa as imagens produzidas
na África Central, das que foram produzidas no Brasil. Então, chega-se no cerne do questio-
namento que se tem feito desde o início deste texto – em que circunstâncias as nó-de-pinho
foram produzidas no Brasil? A resposta não é simples.
A exemplo deste dilema, os estudos desenvolvidos pelo historiador Eduardo França
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

Paiva sobre objetos africanos, especificamente o marfim africano em Minas Gerais, contribui

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


para avaliar a problematização aqui colocada. Embora seus objetos de estudos são advindos
de um diferente trânsito afro-atlântico, a reflexão de Paiva, saluta para novas estratégias de
abordagens que sejam capazes de alcançar a dimensão desses objetos.

[...] é necessário se perguntar sobre como o marfim africano chegou e sobre como chegaram
as associações antigas, as transposições antigas, as equivalências, os suportes etc. E, ainda,
sobre como tudo isto sofreu alterações, adaptações e ressignificações no contexto america-
no, entre africanos, entre seus descendentes e entre outras pessoas sem ascendência africa-
na que incorporaram esses objetos “africanos” a seu cotidiano, muitas vezes sem conhecer
as origens e o histórico simbólico deles37.

Este caminho é condizente à situação das nó-de-pinho em relação às Toni Malau.


Deste modo, condições diferentes resultaram em produções e concepções diferentes desses
objetos, mesmo havendo a forte permanência estilística e devocional. Contudo, é impor-
tante rever as condições que um sistema de escravismo oferecia aos escravizados e assim,
entender quais foram as escolhas e estratégias que permitiram os escultores destas peças, a
continuidade de um cânone, a mudança de material e, para os portadores das esculturas, a
ressignificação do culto e do uso.
Por fim, a ideia que se assume nesta breve investigação é de emancipação, na qual
considera possível a inclusão desta produção numa narrativa contra hegemônica para uma
História da arte no Brasil, esta, que deve ser constantemente confrontada, reavaliada e
às vezes, reescrita. Porque ficou evidente que as nó-de-pinho trazem uma pauta pouco
85
percebida de sobrevivência e adaptação, atrelada de relações dialéticas que aproximam
continentes e ampliam a dimensão do conhecimento desses objetos. Em resumo, todo esse
escopo permitiu trilhar outra narrativa dessas pequenas esculturas, em contraste com a
perspectiva colonizada e quase teológica de se fazer História da arte, na qual aplica-se a
“dedução” como argumentação plausível de um objeto marginal, revelando a limitação de
conhecimento daquilo que não se consegue classificar dentro de um sistema canônico tra-
dicionalmente hegemônico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Marta Rosseti. Coleção Mário de Andrade: religião e magia, música e dança, coti-
diano. São Paulo, 2004.
BATSÎKAMA, Patrício. O Reino do Kongo e sua origem meridional. Luanda: Universidade Edi-
tora, 2011.
CUNHA, Marcelo N. Bernardo; NUNES, Eliane; SANDES, Juipurema A. Sarraf. Nina Rodri-
gues e a Constituição do Campo da História da Arte Negra no Brasil Nina Rodrigues e a Cons-
tituição do Campo da História da Arte Negra no Brasil. In.: GAZETA MÉDICA. Bahia 2006;76,
Suplemento 2, pp. 23-28.
ETZEL, Eduardo. Imagens religiosas de São Paulo: Apreciação Histórica. São Paulo: Melhora-

37  PAIVA, Eduardo França. Marfins e outros suportes – transposições, traduções, associações e resignificados de ob-
jetos nas Minas Gerais (século XVIII). In.: SANTOS, Vanicléia Silva; PAIVA, Eduardo França; GOMES, René Lommez
(orgs.). Op. cit., p. 229.
JOYCE FARIAS

mentos, 1971.
FRANCO, Anísio. Santo António/Toni Malau. In.: Masterpieces: Pegadas dos portugueses no
mundo. ARPAP: Lisboa, 2010.
FROMONT, Cécile. The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo.
Chapel Hill: The University of Carolina Press, 2014.
FRONER, Yacy-Ara. A presença de objetos de marfim em Minas colonial: estética, materiali-
dade e hipóteses acerca da produção local. In.: SANTOS, Vanicléia Silva (org.); PAIVA, Edu-
ardo França (org.); GOMES, René Lommez (org.). O comércio de marfim no mundo atlântico:
circulação e produção (séculos XV a XIX). Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora,
2018.
HERSTAL, Stanislaw. Imagens Religiosas do Brasil. São Paulo: ed. do autor, 1956.
KARACH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton, 1987.
LAMMA, Alisa (org.). Kongo: Power and Majesty. The Metropolitan Museum of Art. Nova Ior-
que: University Press, 2015.
LEMOS, Carlos. A imaginária dos escravos de São Paulo. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão
afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988,
pp.192-197.
LEMOS, Carlos. Índios e negros. In.: A Imaginária Paulista. São Paulo: Pinacoteca do Estado,
2000, pp. 115-122.
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Hebert S. Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São
Paulo de 1750 a 1850, São Paulo: EdusP, 2005.
MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. In.: Revista Brasi-
leira de Ciências Sociais - Vol. 32 n° 94, 2017.
RODRIGUES, Raymundo Nina. As bellas-artes nos colonos pretos do Brazil: a esculptura. In:

86
Kósmos: revista artística, scientifica e litteraria, Rio de Janeiro, vol. 1, no. 1, 1904.
OLIVEIRA, Joyce Farias. Niger sed Formosus: A Construção da imagem de São Benedito. Dis-
sertação de Mestrado/Programa de Pós-Graduação em História da Arte – UNIFESP. Guaru-
lhos, 2017.
PAIVA, Eduardo França. Marfins e outros suportes – transposições, traduções, associações e
resignificados de objetos nas Minas Gerais (século XVIII). In.: SANTOS, Vanicléia Silva (org.);
PAIVA, Eduardo França (org.); GOMES, René Lommez (org.). O comércio de marfim no mun-
do atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX). Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural
e Editora, 2018.
SAIA, Luiz. Escultura Popular de Madeira. In.: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

– IAU – USP, 2014, pp.230-239.


SLENES, Robert Wayne. Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta do Brasil. In: Re-
vista USP, São Paulo, vol. 12, p. 48-67,1992.
SOUZA, Marina de Mello. Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro.
Tempo, vol. 6, núm. 11, julio, 2001, pp. 171-188.
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit/Arte e filosofia africana e afro-americana. Trad.:
Tuca Magalhães. Museu Afro Brasil, São Paulo, 2011.
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800).
Trad.: Marisa Rocha Morta. Rio de Janeiro: Editora Campus / Elsivier, 2004.
THORNTON, John. The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian
Movement, 1684-1706. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 1998.
VALLADARES, Clarival do Prado. O negro brasileiro nas artes plásticas. Cadernos Brasileiros,
A FRONTEIRA VELADA DAS ESCULTURAS DE NÓ-DE-PINHO NO BRASIL

Rio de Janeiro, v.X, n.47, p.97-109, maio/jun. 1968.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão XIV (1633) /Textos literários em meio eletrônico. In: Literatura
Brasileira/ Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística – Universidade Fede-
ral de Santa Catarina. Edição de Referência: EDELBRA, v.5, 1998, p.2. Disponível em: http://
www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01858.html. Acessado em 17 de jun.
/2019.

87
8
CARTOGRAFÍA, ARTE Y PAISAJE
LA CONSTRUCCIÓN DE LOS LÍMITES DE UNA
NACIÓN

JUAN MANUEL MARTÍNEZ*

* Universidad Adolfo Ibáñez, FONDECYT N° 1180293.


JUAN MANUEL MARTÍNEZ

Cuando situado sobre una alta cima el viajero echa sus miradas sobre el conjunto de una

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


región montañosa, lo que llama primero su atención es el desorden que parece reinar en
la distribución de estas poderosas moles unidas unas a otras por líneas bizarramente con-
torneadas; pero insensiblemente desaparece la primera impresión y principia a distinguir
en este desorden aparente , algunas líneas que repiten de distancia en distancia y parecen
todas llevar el mismo rumbo; unas siguen la dirección de la línea de vertientes, otras vienen
a cruzar esta línea formando con ella ángulos más o menos abiertos; y la especie de red que
resulta de estas numerosas intersecciones forma el bosquejo de la Serranía1.

L
as palabras de Pissis, con las que inició su obra, la Geografía Física de la República de
Chile, dan cuenta de este concepto, al manifestar el deseo del cartógrafo de ordenar y
dar cuenta, desde su obra, del paisaje.
El paisaje, entendido como una construcción cultural, se transforma en un ele-
mento central en la concepción del territorio y la identidad de una comunidad o nación. Lle-
gando a convertirse en símbolos de la historia y la identidad colectiva, percibidas y valoradas
por una sociedad determinada. El territorio de Chile, especialmente el centro y el sur, fueron
objetos de descripciones de artistas que participaron de las expediciones europeas de fines
del siglo XVIII y del XIX. Las que legaron un nutrido corpus de imágenes, que nos puedan
entregar elementos para interpretar la visión sobre este lejano territorio y como estas se
pueden relacionar con la construcción de un paisaje diferenciador, el que puede condensar
ciertas claves de una identidad nacional.
Espacio, paisaje, territorio e identidad son temáticas de una profunda discusión en
los ámbitos de la historia, la historia del arte, la geografía, la sociología y la antropología,
89
ya que abordan la problemática de la identidad nacional o comunitaria. La construcción de
la nación y la apropiación de un territorio por parte de una entidad política social, plantean
dos problemáticas, por un lado el tema de la idiosincrasia, en el entendido que define un
espacio diferenciador frente a otro. Y lo temporal, en referencia a la continuidad de lo esen-
cial de una nación o comunidad en un contexto de cambios. Estas dos vertientes se acoplan
para erigir el territorio, como un elemento de un proceso identitario de pertenencia y apro-
piación2.
En este sentido, gran parte de las naciones, nacidas después del colapso del imperio
español en América, definieron su espacio geográfico como un elemento importante a la
hora de definir una identidad distinta. Chile no fue la excepción en estas definiciones tem-
pranas, y desde los años 30 del siglo XIX el poder político propició la elaboración de carto-
grafías y expediciones que dieran cuenta del territorio, a lo que se sumó las expediciones
europeas y norteamericanas, con sus consiguientes imágenes realizadas por viajeros y artis-
tas, que formularon en diferentes lenguajes plásticos, un imaginario de un paisaje chileno.
En este aspecto el paisaje, entendido como una construcción cultural3, se transfor-

1  PISSIS, A. 1875, p.1.


2  RODRÍGUEZ LESTEGÁS, 2010, p.147.
3  Entendemos como construcción de la representación, en todo lo amplio de las expresiones, como son las imágenes,
los relatos etc., que se expresan en el imaginario social, ver Ginzburg, Ojazos de Madera, nueve reflexiones sobre la
distancia (2000) o Mitos, emblema o indicios. Morfología e historia (1994). La discusión de la pertinencia del valor del
tema de la cultura visual se hace fundamental en el trabajo histórico actual. No obstante para Palos, en El testimonio
de las imágenes (2000), p. 133, advierte revisando la obra de Huizinga, El concepto de la historia, (1977), pp. 66-67
y pp. 124-125, sobre la postura del el historiador holandés, sobre el trabajo consiente de utilizar y proyectar una
imagen sobreiluminada, lo que podría producir, al momento de su utilización de manera inadecuada, una limitación y
CARTOGRAFÍA, ARTE Y PAISAJE

ma en un elemento central en la concepción del territorio, en el entendido que construye


representaciones significativas de los rasgos históricos y culturales de sus correspondientes
sociedades4. Existen ejemplos notables de paisajes que han llegado a convertirse en símbo-
los de la historia y la identidad colectiva, percibida y valorada por una sociedad determina5.
Paisajes a los que se le atribuye la cualidad de consensar, expresar y simbolizar ciertas claves
de una identidad nacional.
Recientemente la temática del paisaje está siendo motivo de reflexión para el mundo
de la filosofía y de las ciencias sociales en general. Como por ejemplo la obra de Mathieu
Kessler6 o en el caso de la cartografía, con la obra La nueva naturaleza de los mapas, sobre
el pensamiento de J.B. Harley7.
Se debe hacer una mención especial a la obra de Simon Schama8, en el ámbito de los
estudios históricos-culturales. Autor, que a través de un viaje en el tiempo y el espacio, exa-
mina la relación del hombre con el paisaje y el impacto que tiene esta imagen en la cultura y
en la construcción del imaginario de una comunidad. La naturaleza y la percepción humana
se unen, constituyendo el paisaje como un producto de la mente. Construido a partir de los
diferentes estratos de la memoria. Es así que el paisaje es la expresión visible de un orden
(natural y geográfico) que comprende al hombre. No es solo un monumento natural, sino
que expresa, fisonómicamente, una organización donde el hombre formó y forma parte.
El juego de las relaciones entre paisaje, historia e identidad, que se integran en el
concepto del paisajismo geográfico moderno iniciado por Humboldt y continuado por geó-
grafos del siglo XIX, ha conducido a que el paisaje sea un factor de construcción de mitos,
que la memoria otorga continuidad en el tiempo, conformando una idea nacional. En ello
radica esa cierta mística de la tradición del paisaje9. Humboldt reflexionó sobre este punto,
dando cuenta que:

90 La distinción que el artista expresa vagamente en las palabras de “la naturaleza de Suiza,
el cielo de Italia”, descansa en un sentimiento confuso del carácter de la naturaleza en los
diferentes países10.

Sin caer en un determinismo geográfico, es de una evidencia que los paisajes repre-
sentativos de gran parte de lo que actualmente comprende el territorio de Chile, especial-
mente el centro y el sur, fueron desde temprano un elemento muy recurrido en las frondosas
descripciones de este territorio producidas por artista de las expediciones de fines del siglo
XVIII y del siglo XIX. En este sentido lo que se propone en esta lectura, es la revisión de un
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

corpus de imágenes que nos puedan entregar ciertas claves para interpretar la visión sobre
este lejano territorio y como estas se pueden relacionar con la construcción de un paisaje
diferenciador, el que puede condensar ciertas claves de una identidad nacional11.

empobrecimiento de un relato histórico, en vez de proporcionar perspectivas nuevas y valiosas a un estudio. El peligro
de la seducción de las imágenes.
4  ORTEGA, 2010, p. 45.
5  Ver los ejemplos planteados por Schama, 1996.
6  KESSLER, 2000, p.13.
7  HARLEY, 2005.
8  SCHAMA, Op. Cit.
9  Op. Cit., p.15.
10  VON HUMBOLDT 2011, p. 241.
11  El presente artículo es parte de una serie de reflexiones, en el contexto de la investigación del proyecto desarrolla-
JUAN MANUEL MARTÍNEZ

Como también, una manera de reunir en una imagen, diferentes aspectos de una

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


región, que en muchos casos, tiene su correlato en una narración del texto de dichas expedi-
ciones científicas. La descripción del paisaje estaba supeditada a la asociación entre el clima
y su relación con la producción del lugar, entre otros aspectos. Por esa razón las ilustraciones
de estos viajes cumplieron un papel fundamental, ya que estas:

…fueron consideradas como medios privilegiados para cumplir una función ordenadora y
normativa, por su capacidad de recoger y organizar la experiencia visual12.

En 1836, llegó a Chile la expedición científica y comercial francesa, comandada por


el Capitán Nicolás Vaillant a bordo de La Bonite. En esta expedición viajaban los pintores
Barthélemy Lauvergne y Theodore Fisquet como también el pintor e ingeniero hidrográfico
Stanislas-Henri-Benoit Darondeau. Tanto Fisquet como Darondeau testimoniaron con dibu-
jos y acuarelas la vida cotidiana en Valparaíso.
Resultado de la misma expedición, fue la litografía Aduana de Valparaíso, dibujo de
Theodore Auguste Fisquet y litografía de Louis Philippe Alphonse Bichebois, con figuras de
Adolphe Jean Baptiste Bayot13. Tanto Bichebois como Bayot fueron artistas litográficos de
gran importancia en Francia, quienes trabajaron para la casa Lemercier de París.
La litografía, basada en el dibujos de Fisquet, muestra en un primer plano persona-
jes del puerto en sus actividades y atrás el edificio de la aduana, como telón de fondo, los
cerros y sus construcciones. Esta representación es una convención, ya que en una misma
imagen se trata de mostrar varios aspectos. Según la especificación de la litografía, tanto el
edificio como el paisaje fueron realizados por Fisquet, los personajes fueron obra de Bayot,
91
por lo que nos encontramos con un caso de una obra colectiva, en función de producir una
representación.
Fisquet y Lauvergne fueron artistas que formaron parte de las expediciones científi-
cas. Todos estos artistas, pintores, dibujantes, bocetistas y grabadores, o artistas aficionados
como se denominaba, se alejan ciertamente del sentido que daban a sus obras los pintores
más tradicionales, en términos del concepto de obra de arte. Los artistas viajeros, que eran
empleados para tales fines debían darle a sus representaciones la fidelidad de la naturaleza
y un carácter científico a sus obras en el sentido más estricto, sin tener sus trabajos un carác-
ter de creación artística, ya que debían ajustarse a las convenciones establecidas.
Lo primordial en estos artistas, fue que sus realizaciones no tenían un fin de obra de
arte, sino de representaciones científicas del paisaje, donde flora, fauna y habitantes de los
países visitados, están en sus obras, solo al servicio de publicaciones de crónicas de viajes y
como textos visuales de estas crónicas exploratorias. Estas estaban a cargo de las casas edi-
toriales o las imprentas. Una de las más importantes a nivel internacional, fue la que fundó
Joseph Lemercier, quien abrió su imprenta en 1836 en París. En un reportaje del Semanario

do en el marco del fondo de apoyo a la investigación patrimonial de la Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos;
Construcción y organización del paisaje en Chile, el ordenamiento de un nuevo territorio, dirigido por Juan Manuel
Martínez, Curador del Museo Histórico Nacional , con la participación como co-investigadora Lina Nagel, del Centro
de Documentación de Bienes Patrimoniales de la Subdirección de Museos, desarrollado durante el año 2010. Proyecto
que permitió publicar el texto de Martinez, El Paisaje Chileno, itinerario de una mirada, (2011) publicación de difusión,
en el marco de Acciones Culturales de la DIBAM, 2011. La propuesta de este texto se revisó y actualizó con nuevas
reflexiones; a partir de la curaduría de la muestra desarrollada en el Museo Histórico Nacional: El Paisaje Chileno,
itinerario de una mirada que se desarrollo entre abril y julio del 2012.
12  PENHOS, 2005, p. 24.
13  Impreso por Lemercier, Bernard y Cie. París, 1841.
CARTOGRAFÍA, ARTE Y PAISAJE

Pintoresco Español de 1851, se describía así el trabajo en dicha imprenta:

Ocupa a ciento cuarenta operarios, cuyo jornal diario asciende respecto a los impresores
desde cinco a quince francos, y en cuanto a los demás, de tres a cuatro. Se encuentra en
movimiento incesante noventa prensas de brazo, en las cuales se tiran anualmente más de
dos millones de láminas, tanto para cuadros como para libros de exportaciones14.

La construcción de una nación se basa en su afirmación territorial, en sus límites que


conforman su unidad y su identidad. La cartografía en el siglo XIX se sistematizó como una
ciencia, lo que se desarrolló en el contexto del surgimiento de los estados nacionales15.

Por el mar y la tierra amenazan


los secuaces del déspota vil
Pero toda la naturaleza
los espera para combatir:
el Pacífico al Sud y Occidente
al Oriente los Andes y el Sol
por el Norte un inmenso desierto
y el centro libertad y unión16.

El primer Himno Nacional de 1819, con letra de Bernardo de Vera y Pintado, mos-
trada ya una demarcación territorial, estableciendo la necesidad de fijar límites de la nueva
nación. Fue la construcción simbólica, a través de la fijación de los límites políticos, de un
territorio nacional. En el caso de del territorio chileno, este tenía; desierto en el norte, selva

92
austral en el sur, la cordillera en el este y por el oeste el gran océano. Estos fueron los límites
naturales que el primer himno recogió como una seña de identidad territorial y nacional, la
que perduro en gran parte del siglo, hasta la expansión del territorio durante la Guerra del
Pacifico y la ocupación del territorio ancestral de los pueblos mapuches en el sur. Decenios
después, desde el mismo estado se decidió realizar investigaciones sobre el país y su territo-
rio, su paisaje, flora y fauna, que el mismo Himno Nacional citaba:

Esos valles, también ved, chilenos,


que el Eterno quiso bendecir,
y en que ríe la naturaleza…17
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

La construcción de la imagen de un paisaje, diferenciador de otras naciones fue parte


de la consolidación de una joven nación, otorgándole un valor al paisaje que iba más allá
de un solo referente estético. Valor presente, por ejemplo en los himnos nacionales, como
también en su construcción geografica. Valoración que se debe entender en el contexto de
la reinvención de América, propuesta por Humboldt, al dar a conocer su visión de estos le-
janos territorios. Una reinvención asumida y apropiada por las elites europeas y americanas

14  Semanario Pintoresco Español, Madrid, 9 de noviembre de 1851, p. (45) 353.


15  MALOSETTI, 2007, pp. 18-19.
16  Himno nacional 1819, Estrofa VIII, citado por Chubretovich, 1991, p.29.
17  Himno nacional de Chile, Estrofa V, op. cit., p.28.
JUAN MANUEL MARTÍNEZ

para entender y fundar la visión de lo americano18.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


La institucionalidad republicana apoyo esta valoración, una referencia fue la creación
de la Academia de Pintura en 1849, punto central en el desarrollo del paisajismo entre los
pintores nacionales durante el siglo XIX. En estas primeras generaciones se debe destacar la
figura de Antonio Smith Irisarri, una suerte de fundador del arte paisajista nacional como lo
mencionara Vicente Grez:

Con sus economías de colegial compró telas, pinceles y pinturas, desplegando ardoroso vue-
lo compuso sus primeros paisajes, consultado mas las aspiraciones de su alma que la verdad
de la naturaleza…¡Qué paisajes aquellos! Eran una confusa aglomeración de líneas y co-
lores en que a veces se entrelazaba una gran pincelada maestra que anunciaba al artista19.

Sus obras se basaron en gran parte en el retrato y el paisaje, su dibujo; Peñalolén,


es completamente atmosférico y personal, lo que rompía la rigidez de la Academia, la que
no consideraba al paisaje como un género de importancia en la formación de los alumnos,
donde este funcionaba dentro de una lógica como un buen fondo para motivos históricos,
religiosos y mitológicos, o simplemente como copia idéntica de la naturaleza.
Si bien, en la formación pictórica en la Academia, no se le daba mayor importancia al
paisaje, debido a que se consideraba a la pintura como una herramienta para la formación
de una nueva nación, fomentando una base moral religiosa y republicana que generaría un
concepto civilizatorio y moderno, no anuló el desarrollo de este género en las Bellas Artes
en Chile20. Ya en la segunda mitad del siglo XIX, la pintura del paisaje se convirtió en una
moda y el Salón la reconoció y le dio una carta de ciudadanía.
93
Se puede establecer que el desarrollo del género del paisaje significó, el reconoci-
miento de la propia territorialidad a través del discurso visual, siguiendo una máxima de;
Chile, por su naturaleza, tiene que ser tierra de paisajistas21, esto se relaciona que ya desde
mediados del siglo XIX los salones oficiales le dieron a la práctica de la pintura de paisaje
un puesto destacado:

… acaso porque el encanto mismo de la Naturaleza que nos rodea atrae a los artistas y les
impulsa hacia la interpretación del paisaje, siempre rico de luz y colorido. Ello es que por
cada escultor tenemos diez o más pintores de talento22.

Sin duda los pintores de este período, practicaron la pintura de paisaje en dos di-
mensiones; como discurso de construcción de identidad y como estrategia comercial, clara-
mente instrumentalizada por la burguesía, la oligarquía y el comercio del arte23. Ya no era
necesaria la expedición científica para inventar un territorio, la invención de Chile ya estaba
en marcha. Lo ratifican las visiones institucionales, como se puede leer en el Correo de la
Exposición en 1875:

18  PRATT, 2010, p. 199-200.


19  GREZ,1882, p.16.
20  AMIGO, 2009, p.171.
21  SUBERCASEAUX, Benjamin Vicuña. Don Pedro Lira, la revista Selecta 2, año 1, (mayo 1909). Citado por CORTÉS,
2010, p. 398.
22  El Salón de Bellas Artes, p. 5, citado en Op. Cit., p. 399.
23  Op. Cit. p. 398 ss.
CARTOGRAFÍA, ARTE Y PAISAJE

…sentir un placer delicado al contemplar el suelo i cielo de Chile, tan bien reproducidos en
la tela por estos jóvenes artistas24.

No es menor que este desarrollo del paisaje se pueda relacionar con la rápida expan-
sión del territorio de Chile, en la segunda mitad del siglo XIX. Su consolidación de estado
nacional y por consiguiente la necesidad de territorios, coronado por el dominio de los ter-
ritorio al sur del Bio Bío y la región austral, como los territorio incorporados por la Guerra
del Pacifico en el norte, hizo que la sociedad chilena y por consiguiente el poder del Estado
mutara su visión del propio territorio, incorporando nuevos paisajes, conformando una idea
de país asociada a estos nuevos territorios25.
Con la llegada del siglo XX, y al igual que en el siglo anterior, se hizo patente la
idea del paisaje como un elemento de construcción nacional, respondiendo a los cambios
producidos por el nuevo siglo, en relación a la idea de lo nacional, lo que obligó a su vez a
replantear de qué manera se debía representar el país. Planteamiento que se visualizó níti-
damente en la Exposición Iberoamericana de Sevilla en 192926. En dicha muestra el gobierno
de Chile construyo un pabellón, obra del arquitecto Juan Martínez Gutiérrez, inspirado en la
cordillera de los Andes, y murales de Arturo Gordon y Laureano Guevara, en cuyos fondos se
denota un paisaje nacional, como también en el libro oficial de la representación chilena, un
texto de Nathanael Yáñez explicando la importación de este género para el arte nacional:

Domina en nuestro arte el género de paisaje, y la razón es lógica, lo da la tierra, el suelo, ya


que nuestro Chile es rico de hermosos y variados paisajes, y tanto es así, que la región del
sur es completamente distinta en ambiente y forma y en vegetación, a la región del norte y
del centro.

94
Y no está lejano el día, en que de seguro tendremos una gran escuela de paisajistas27.

Desde una perspectiva de los estudios culturales, entendemos que el paisaje, no es


solo la naturaleza, ni el medio físico que nos rodea, sino más bien un constructo, una ela-
boración mental, un fenómeno cultural que varía de una cultura a otra28. Ya Gombrich lo
afirmó al decir que, por paisajismo no se puede entender la representación de una escena
al aire libre, sino el género artístico establecido y reconocido como tal29.
Los corpus de imágenes que describieron un paisaje de un territorio lejano para el
mundo europeo, abrió un horizonte para la valoración posterior de un paisaje local, pero
fueron los pintores nacionales, desde mediados del siglo XIX, que determinaron las formas
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

en que un país fue representado, como también inventado.


Sin duda la construcción de la nación y la apropiación de un territorio por parte de
una entidad política social, tanto de la elite como el poder político que ella encarno en el
Chile del siglo XIX, trataron de resolver la disolución de las fronteras y límites administrativos
de la América virreinal. Donde el territorio americano bajo el dominio de la monarquía his-
pana era un todo, después del proceso emancipador se requirió la definición de un espacio

24  Correo de la Exposición, 23 de octubre 1875, p. 58, citado Op. Cit. p. 400.
25  PURCELL, 2009, p.187.
26  DÜMMER, 2010, p.85.
27  YÁÑEZ, 1929, p. 235.
28  MADERUELO, 2005, p. 17.
29  GOMBRICH, 1999, p.107.
JUAN MANUEL MARTÍNEZ

diferenciador frente al otro. Mecánica identitaria de pertenencia y apropiación, que domi-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


naron todo el siglo XIX y parte del siglo XX. Pero que hoy, con la necesidad imperiosa de la
migración y la globalización, ponen en cuestión las gruesas líneas divisorias de la cartografía
política.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMIGO, R. Relato Curatorial. En: ESCOBAR, Ticio; RICHARDS, Nelly (ed.). Catalogo de la
Trienal de Chile 2009. Fundación Trienal de Chile, Santiago de Chile, 2009.
CHUBRETOVICH, C. La historia de la canción nacional de Chile. Editorial La Noria, Santiago
de Chile, 1991.
CORTÉS, G.; HERRERA, F. Geografías urbanas, arte y memoria colectivas: el centenario chi-
leno y la definición del lugar. En: Revista Historia Mexicana, Volumen IX, Julio – Septiembre
2010, Colegio de México, México, 2010.
DÜMMER, S. Los desafíos de escenificar el “alma nacional”. Chile en la Exposición Iberoa-
mericana de Sevilla (1929). En: Historia Critica, N° 42, Bogotá, 2010.
GOMBRICH, E.H. Teoría del arte renacentista y el nacimiento del paisajismo. En.: Norma y
forma, estudio sobre el arte del renacimiento. Catedra, Madrid, 1999.
GREZ, V. Antonio Smith, Historia del Paisaje en Chile. Establecimiento Tipográfico de La Épo-
ca, Santiago de Chile, 1882.
HARLEY, JP. La nueva naturaleza de los mapas. Fondo de Cultura Económica, México, 2005.
KESSLER, M. El paisaje y su sombra. Idea Books, Barcelona, 2000.
95
MALOSETTI, L. Pampa, ciudad y suburbio. Catálogo de la exposición. Fundación OSDE, Bue-
nos Aires, 2007.
MARTÍNEZ, J.M. El paisaje chileno. Itinerario de una mirada. Museo Histórico Nacional, San-
tiago de Chile, 2011.
MARTÍNEZ, J.M. La invención de Chile. El paisaje como una forma de construcción cultural.
En: Puro Chile. Paisaje y Territorio. Catálogo de la exposición Centro Cultural La Moneda.
Ograma, Santiago de Chile, 2014.
PENHOS, M. Ver, conocer, dominar. Imágenes de Sudamérica a fines del siglo XVIII, Siglo XXI
Editores, Buenos Aires, 2005.
PISSIS, A. Geografía Física de la República de Chile. Instituto Geográfico de París, Ch. Dela-
grave, París, 1875.
PRATT, ML. Ojos imperiales, Literatura de viajes y transculturización. Fondo de Cultura Econó-
mica, México, 2010.
CARTOGRAFÍA, ARTE Y PAISAJE

IMAGENES

1. Aduana de Valparaíso (Chi-


le). Dibujo de Theodore Auguste
Fisquet, litografía de Louis Philippe
Alphonse Bichebois con figuras de
Adolphe Jean Baptiste Bayot, im-
preso por Lemercier, Bernard y Cie.
París, 1841. MHN 3-2772.

96
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

2. Provincia de Atacama. Pedro Amado Pissis y Narcisse Desmadryl, Impreso por Charles Chardon Ainé,
París, 1875. MHN 3-28993.
JUAN MANUEL MARTÍNEZ

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


97
3. Río de Valdivia. Pedro Amado Pissis. Acuarela sobre papel, MHN 3-34548.
9
ARTISTAS FRANCESES NO BRASIL
AS FRONTEIRAS PARA A RECEPÇÃO DA
TRADIÇÃO CLÁSSICA E A CIRCULAÇÃO DE
MODELOS ARTÍSTICOS NO SÉCULO XIX
ELAINE DIAS*

* Professora do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo.


ELAINE DIAS

A
história da arte brasileira no século XIX esteve certamente marcada pela circulação

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


de ideias, modelos artísticos e teorias internacionais na produção e no desenvol-
vimento das instituições de ensino. Desde a chegada dos franceses para o projeto
de uma Escola de Ciências, Artes e Ofícios em 1816, até o desenvolvimento deste
mesmo projeto como Academia Imperial de Belas Artes durante todo o século XIX, vemos
uma série de modelos sendo recebidos e ressignificados para o ambiente brasileiro, em
uma sociedade fortemente marcada por uma história colonial e de características escravis-
tas. Alguns franceses foram os protagonistas deste desenvolvimento artístico, seja por meio
de uma atuação direta na instituição acadêmica ou como agentes na formação do ainda
incipiente sistema artístico brasileiro em âmbito privado, atuando em ateliês, exposições
privadas e escolas de arte1.
No âmbito do ensino artístico, Félix-Émile Taunay destaca-se como o principal promo-
tor do avanço das metodologias acadêmicas, tendo como modelo primordial a tradição clás-
sica e a Academia francesa de artes. Como diretor da Academia entre 1834 e 1837, Taunay
foi o responsável pela inserção de disciplinas acadêmicas, publicação de livros, instituição
de prêmios e exposições, formação de coleções e a valorização do artista na sociedade bra-
sileira. Durante anos, vemos em seus discursos pronunciados anualmente na Academia e
publicados no Jornal do Commercio a insistência, perante à corte, na encomenda de obras
aos artistas para decoração das casas particulares, como paisagens, naturezas-mortas e
retratos; na inserção dos artistas nas instituições públicas para a elevação de edifícios e
monumentos, na inclusão de gravadores na Casa da Moeda, e em outras atividades onde o
artista pudesse mostrar sua utilidade e importância como promotor do desenvolvimento e do
progresso. Ao mesmo tempo, Taunay tem como objetivo o embelezamento da cidade do Rio
99
de Janeiro como capital da corte, de forma a concorrer com as grandes capitais europeias
repletas de grandes edificações e monumentos, comparando-a a Roma e a Paris, elevando a
importância do arquiteto como seu promotor e responsável, em certa medida, pela demons-
tração do poder político por meio das artes.
Para que os grandes artistas formassem a sonhada “escola brasileira”, assim desig-
nada por Taunay em 1835 em seus discursos pronunciados na Academia, e pudessem pro-
tagonizar o engrandecimento da cidade, deveriam, antes, passar pela formação baseada
em princípios clássicos onde o desenho assume papel fundamental. Não foi sem dificulda-
de, no entanto, que as classes de modelo vivo, essenciais para a efetivação da imitação da
natureza e dos princípios clássicos, foram implantadas. Desde sua inserção definitiva com
a contratação de modelos a partir de 1833, muitos foram os problemas para que o cânone
clássico se confirmasse no corpo do modelo, em perfeita associação com a estatuária antiga.
Taunay, completamente envolvido pelas teorias de Johann Winckelmann – onde o clima e o
povo eram essenciais para o desenvolvimento das artes -, acreditava que no Rio de Janeiro
“a natureza de nosso clima, o caráter poético dos habitantes, a riqueza do Império” 2 davam
subsídios para o avanço de nossa arte e de nossa escola3. Não contava, no entanto, com a
inexistência de profissionais para a aplicação de tal método, vendo-se obrigado a contratar,
por vezes, modelos magros e longe de enquadrarem à natureza perfeita já vista nos gre-

1 Parte deste texto é um dos resultados da pesquisa “Artistas Franceses nas Exposições Gerais da Academia Imperial de
Belas Artes: Circulação e Produção Artística entre 1840 e 1844” (CNPq, Edital Universal 2017-2020), e de uma bolsa
de estágio BPE Fapesp (11/2017-01/2018), sob supervisão de Jacques Leenhardt na EHESS.
2  Atas da Academia Imperial de Belas Artes. 2/4/1849. Museu D. João VI.
3  Sessão Pública da Academia Imperial de Belas Artes. 19/12/1848. Museu D. João VI.
ARTISTAS FRANCESES NO BRASIL

gos. Em outros momentos de mais sucesso na contratação, algum oficial da guarda ou um


professor de ginástica4 ocupavam o lugar, dando mais ênfase à proposta clássica, mas, de
fato, durante anos vemos nas atas acadêmicas a dificuldade para a contratação de modelos
eficazes para a vaga, comprometendo o método acadêmico e colocando em risco a eficácia
de um desenho considerado perfeito.
Nesse processo de ressignificação na recepção do modelo clássico, onde os anúncios
pediam um “homem branco, nacional ou estrangeiro”5 assim especificado, Taunay aprova
a inclusão de escravos negros para a vaga67, visto estes apresentarem “belas formas artísti-
cas”8, comprovando, assim, o quanto a ideia da natureza perfeita se configura de maneira
diversa frente às idiossincrasias de um sociedade com características fortemente coloniais.
Para algumas sessões, é apresentado o escravo que pertence a um dos professores, o francês
Zepherin Ferrez responsável pela classe de gravura, sendo aquele considerado “jovem e de
formas elegantes”, aceito em 1837. Embora esteticamente condizentes com o cânone clássi-
co, os escravos apresentados apresentam poses ineficazes, revelando, consequentemente, a
falta de habilidade parra exercer algo que não era destinado a ele, comprometendo, assim,
a aplicação do método. Por outro lado, é preciso também considerar outras questões. Nesse
ponto, a teoria de Winckelmann 9 se aplica de forma um tanto problemática na Academia de
Taunay, que se vale de alguns pontos de sua proposta, como apontamos acima, mas descon-
sidera a importância da noção de um povo livre para o mesmo desenvolvimento pleno das
artes. Não há questionamentos em relação à natureza mesma do escravo utilizado, sendo
apenas levado em conta os aspectos corpóreos para a aplicação do modelo clássico – ainda
que ineficientes -, sem questionamentos, por exemplo, acerca da abolição da escravatura no
Brasil e do quanto o progresso da cidade dependia deste fator.
Ao lado da inserção das aulas de modelo-vivo, mesmo que falha em alguns mo-

100
mentos, era de suma importância a ampliação da coleção de gessos antigos para ampliar a
compreensão do corpo humano a partir do modelo grego. Se, como afirma Goldstein, “an
Academy apart from the antique is unthinkable10”, Taunay deveria, necessariamente, ampliar
e renovar os modelos de gessos antigos para completar a formação dos alunos, e isso de
fato é feito a partir da compra, em 1837, da coleção do professor de escultura Marc Ferrez11
(com bustos, o tronco do Laocoonte e do Gladiador, por exemplo12.), outro francês professor
da Academia e irmão de Zepherin, e mais uma compra realizada em 1846 voltada à coleção
de medalhas em gessos. Ao lado da formação dos alunos com a ampliação da coleção de
gessos, a inserção desta nas exposições mostram para a sociedade a importância simbólica
da estatuária, evidenciando figuras de filósofos e de homens ilustres da política, da ciência
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

e da poesia, - entre os quais Homero, Sócrates e Platão13 - , para que o exemplo antigo pu-
desse ser evidenciado e oferecesse à nação brasileira os seus valores morais, no processo
de renovação do mundo clássico para o ambiente contemporâneo. Taunay procura, assim,

4  Atas da Academia Imperial de Belas Artes. 2/4/1840. Museu D. João VI.


5  Correio Oficial, nº 79, Rio de Janeiro, le 10 avril 1834. Apud DÓRIA (2005).
6  Atas da Academia Imperial de Belas Artes. 16/01/1837. Museu D. João VI.
7  Atas da Academia Imperial de Belas Artes. 5/5/1835. Museu D. João VI.
8  Atas da Academia Imperial de Belas Artes. 6/3/1837. Museu D. João VI.
9  WINCKELMANN (2005), pp. 92-95.
10  GOLDSTEIN (1996).
11  Atas da Academia Imperial de Belas Artes. 17/11/1837. Museu D. João VI.
12  Sessão Pública da Academia Imperial de Belas Artes. 19/12/1837. Museu D. João VI.
13  Sessão Pública da Academia Imperial de Belas Artes. 19/12/1847. Museu D. João VI.
ELAINE DIAS

evidenciar a importância da estatuária na construção da glória contemporânea e na difusão

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


da ideia de construção de monumentos públicos com os temas da história brasileira e dos
heróis nacionais.
As exposições promovidas pela Academia Imperial de Belas Artes, as quais o diretor
Taunay estendeu para todos artistas externos à instituição, deu, de certa forma, continuidade
ao seu processo de recepção do clássico e dos modelos visuais que pudessem, ressignifica-
dos, engrandecer a memória brasileira, eternizar seus heróis e os grandes eventos históri-
cos. Muitos artistas franceses residentes no Rio de Janeiro aproveitaram esse espaço para
mostrar seus trabalhos à sociedade, receber as críticas dos jornais e conquistar novas enco-
mendas, seja do Estado ou da sociedade privada. Mesmo aqueles que residiam por pouco
tempo foram beneficiados pelas Exposições, conquistando também os prêmios oferecidos
pela instituição aos melhores trabalhos. Estes artistas franceses acabavam contribuindo para
a ampliação das ofertas artísticas para esta mesma corte, colocando em prática suas espe-
cialidades na realização das encomendas, na participação em outras exposições coletivas
ou individuais privadas e atuando em escolas de artes, contribuindo enormemente para a
inserção definitiva do artista na sociedade e de sua valorização.
As obras apresentadas nas Exposições Gerais mostravam, evidentemente, cada papel
que eles exerciam na construção da memória visual e nacional brasileira junto aos artistas
da própria instituição, sendo responsáveis também pela imagem dos governantes, da natu-
reza e da representação das raízes históricas e dos fatos contemporâneos do Brasil. Entre
1840 e 1884, último ano das Exposições Gerais antes da Proclamação da República, temos
uma maioria de obras nos gêneros do retrato e da paisagem, e a pintura de história acaba
aparecendo em menor número. Artistas como Claude Joseph Barandier, François-René e
101
Louis-Auguste Moreaux, Jules le Chevrel e Édouard Vienot foram importantes agentes na
produção das imagens dos governantes, da corte e dos grandes eventos, apresentando-se
em uma série de exposições e conquistando encomendas da sociedade em seus ateliês
privados, cujos endereços apareciam nos catálogos das Exposições Gerais e também na
imprensa carioca14. Em outros suportes como a fotografia e a gravura, os artistas franceses
externos à Academia também se sobressaíram. François-René Moreaux juntou-se a fotógra-
fos alemães nos ateliês privados, e artistas como Louis-Alexis Boulanger e Sébastien Auguste
Sisson obtiveram grande sucesso na produção de gravuras de homens ilustres, vendidas de
forma avulsa ou posteriormente em forma de álbum, contribuindo igualmente para a cria-
ção de heróis contemporâneos, cujas imagens eram colecionadas pela população.
Nesse sentido, vemos o quanto a atuação de outros artistas franceses externos à ins-
tituição corria paralelamente ao desenvolvimento das metodologias de ensino na Academia
Imperial de Belas Artes. À medida em que os artistas brasileiros vão se formando a partir
destes modelos clássicos de ensino, onde o desenho assume uma função primordial, e apre-
sentando suas obras dentro deste escopo de criação de uma iconografia nacional, a crítica
de arte igualmente vai comparando suas produções com os artistas franceses formados
fora do Brasil e qualificados há mais tempo. Vitor Meirelles, por exemplo, começa a obter a
atenção dos críticos na década de 1860, momento em que, por exemplo, os irmãos Moreaux
obtém sucesso não somente em suas obras mas também na atuação de François-René como
diretor do Liceu de Artes e Ofícios e em sua própria escola de artes.
Os artistas franceses contribuíram neste processo de desenvolvimento das artes com
grande protagonismo durante o século XIX, mas as fronteiras para a recepção plena da

14  DIAS, 2019.


ARTISTAS FRANCESES NO BRASIL

tradição clássica e dos modelos artísticos no Brasil sempre foram muito tênues, devendo
obedecer, a todo o tempo, as características políticas e sociais de nossa sociedade, as suas
transformações, a busca pela valorização da cultura e do artista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHRISTO, Maraliz. A pintura de história no Brasil do Século XIX: Panorama Introdutório. In:
Arbor (Madrid. Internet), v. CLXXXV, 2009.
DIAS, Elaine.  Artistas Franceses no Brasil: descrição e promoção de sua imagem no Brasil
do século XIX. MODOS, v. 3, p. 127-143, 2019.
______Paisagem e Academia. Félix-Émile Taunay e o Brasil. 1824-1851. Campinas: Ed. Da
Unicamp, 2009.
DÓRIA, Renato Palumbo. Entre o Belo e o Útil: manuais e práticas do ensino do desenho no
Brasil do século XIX. Tese de Doutorado, FAU, USP, 2005.
ENDERS, Armelle. O Plutarco Brasileiro: A Produção dos Vultos Nacionais no Segundo Rei-
nado. Estudos Históricos. RJ, V.14, No. 25: 2000.
FERREZ, Gilberto. A Fotografia no Brasil. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985.
GALVÃO, Alfredo. Félix-Émile Taunay e a Academia de Belas Artes. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, 16, 1968.
GOLDSTEIN, Carl. Teaching art. Academies and Schools from Vasari to Albers. Cambridge
University Press, 1996.
MACIEL LEVY, C., R. Exposições gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas
Artes, Período Monárquico. RJ, Ed. Pinakotheke. 1990.

102
MARQUES DOS SANTOS, Francisco. Dois artistas franceses no Rio de Janeiro: Armand Julien
Pallière e Luiz Aleixo Boulanger. In: Revista do SPHAN, 3, 1939.
PEREIRA, Sonia. Arte Brasileira no Século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008.
SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos Brasileiros ilustres. RJ: Lithographia de Sisson, 1861.
SQUEFF, Letícia. Um rei Invisível. In: Revista de História. 18/9/2007. Disponível em: http://
www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/um-rei-invisivel.
WINCKELMANN, Johann J. Histoire de l’art de l’antiquité. Paris, Librairie Générale Française,
2005.
______Réflexion sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et en sculpture. Paris, Éditions
Jacqueline Chambon, 1991.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019
10
BENEDITO CALIXTO ATRAVÉS DE SUAS
PESQUISAS GEOGRÁFICO-HISTÓRICAS
RECUOS E TRANSFORMAÇÕES

KARIN PHILIPPOV*

* Pós-Doutora em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo - (EFLCH-UNIFESP).


KARIN PHILIPPOV

O
estudo da paisagem histórica do artista historiador Benedito Calixto de Jesus
(1853-1927) permite a expansão dos estudos calixtianos para novas fronteiras,
além dos limites propostos pela tradicional Historiografia da Arte, limites esses
que propõem a interpretação de sua paisagística histórica como representação
de um espaço observado na natureza, no qual um determinado fato histórico se desenrola
ou teria se desenrolado. Assim, observando-se a paisagem calixtiana historicamente cons-
truída, com o intuito de narrar fatos históricos localizados dentro de uma determinada geo-
grafia marcadamente histórica, propõe-se um olhar interpretativo e problematizador acerca
das construções narrativas feitas pelo artista.
Um exemplo e talvez o mais emblemático dentro da vasta produção de Benedito
Calixto, feito a partir da intensa pesquisa histórico-geográfica a ser discutido se refere à
série iconográfica de Martim Afonso de Souza 1 (1490/1500 – 1564), primeiro donatário
de terras e fundador da Capitania de São Vicente. Partindo de uma intensa pesquisa sobre
onde Martim Afonso teria ancorado de fato, ao chegar ao Brasil, debate esse realizado no
final do século XIX, quando da revisão historiográfica, da qual Calixto participa ativamente
tanto através da pesquisa, quanto através de escritos, quadros e fotografias, tem-se um
conjunto considerável de pinturas e escritos calixtianos, nos quais o historiador e artista
afloram. Assim, além de analisar os escritos e pinturas em questão, trata-se, igualmente de
compreender os meandros historiográficos que permeiam sua obra, através da representa-
ção da paisagem construída historicamente dentro de uma perspectiva positivista à época e,
que hoje, requer nova revisão historiográfica, para que se compreenda o local ocupado pela
geografia artística calixtiana dentro da disciplina da História da Arte.
Entretanto, antes de proceder à análise da série de pinturas feitas pelo artista e que
representam Martim Afonso de Souza, cumpre destacar o volume de pesquisas empreendi-

104
das tanto por Benedito Calixto, quanto por outros intelectuais e historiadores a ele contem-
porâneos, tais como o diretor do Museu Paulista, Afonso D’Escragnolle Taunay 2 (1876-1958)
e João Capistrano Honório de Abreu 3 (1853-1927), que se unem no final do século XIX, a
fim de reescrever a História de São Paulo, em um esforço conjunto de revisão historiográfica,
até então inédito. Assim, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
4
, em 1838, que ganha filiais espalhadas pelo território nacional, Benedito Calixto se torna
membro ativo no de São Paulo (IHGSP) 5, fundado em 1894. De sua relação com a intelec-
tualidade, Calixto passa a redigir uma série de artigos pela Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo 6, a partir de 1902 e livros, que são publicados, como “Capitanias
Paulistas” 7, que possui duas edições, a primeira em 1924 e a segunda, ampliada, em 1927,
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

publicada em dezembro após a morte do autor ocorrida no mês de maio, como forma de
homenagem. A última edição prefaciada por Afonso de Taunay traz um acurado estudo feito

1  MARTIM AFONSO DE SOUSA - biografia resumida, realizações, quem foi. Disponível em: https://www.historiado-
brasil.net/resumos/martim_afonso_sousa.htm. Acesso: 16 mar. 2019.
2  OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (org.). O Museu Paulista e a Gestão de Afonso Taunay: escrita da história e histo-
riografia, séculos XIX e XX. SP: Museu Paulista da USP, 2017.
3  JOÃO CAPISTRANO DE ABREU. Disponível em: https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/JCAbreu.html. Acesso em: 21
fev. 2019.
4 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Disponível em: https://www.ihgb.org.br/ihgb/historico/funda-
cao-instituto.html. Acesso em: 21 fev. 2019.
5  TEIXEIRA, Milton. Benedito Calixto Imortalidade. Santos, SP: Editora da UNICEB, 1982, p. 99.
6  Ibid: p.104.
7  CALIXTO, Benedito. Capitanias Paulistas. II Edição. São Paulo: Casa Duprat e Casa Mayença (Reunidas), 1927.
BENEDITO CALIXTO ATRAVÉS DE SUAS PESQUISAS GEOGRÁFICO-HISTÓRICAS

por Benedito Calixto demonstrando claramente um viés crítico do autor, além de profundi-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


dade de pesquisa, pois se percebe que o autor tem acesso a fontes até então desconhecidas
pela historiografia, como se pode observar ao longo do livro em questão, muito embora esse
não seja o foco do presente artigo.
Ao longo da narrativa calixtiana percebe-se que o autor toma partido de Martim
Afonso de Souza, que após morrer teria seu patrimônio roubado ao longo dos séculos, atra-
vés de herdeiros não diretos que teriam surgido e ilegalmente tomado posse de seu legado,
conforme se lê ao longo do referido livro de Calixto 8. A questão que se impõe aqui se refere
à construção da imagem histórica de Martim Afonso de Souza, sua inserção na paisagem,
bem como sobre o local que a geografia artística calixtiana ocupa no final do século XIX,
época em que o artista historiador pesquisa, pinta, fotografa e escreve. Propõe-se que Ca-
lixto se aproprie visualmente da iconografia de Martim Afonso de Souza, como forma de
construção de uma narrativa visual histórica e geográfica de São Paulo.
A análise da ampla série iconográfica de Martim Afonso de Souza revela aspectos
importantes a serem problematizados. Em primeiro lugar, salienta-se em sua produção a
existência de uma série de encomendas anteriores à publicação de “Capitanias Paulistas” e
que consistem em quadros de gênero histórico, como “A Fundação de São Vicente”, perten-
cente ao acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Igualmente, entretanto,
existem outras versões do tema em retratos e paisagens pertencentes a vários museus e co-
lecionadores particulares, o que poderia demonstrar o viés investigativo de Benedito Calixto,
bem como a popularidade que o tema alcança, conforme se pode observar no conjunto de
pinturas, escritos e fotografias do artista historiador. O sentido de fidedignidade e verossimi-
lhança buscado por Calixto se traduz na tentativa de recuperação histórica dos traços fisio-
105
nômicos de Martim Afonso de Souza, como se observa em uma de suas fotografias, na qual
Calixto fotografa uma página de uma publicação em espanhol arcaico9, que contém uma
gravura do que teria sido o rosto do primeiro donatário. Embora não seja possível identificar
nem a origem da publicação, nem a data da publicação fotografada por Calixto, percebe-
-se que sua escolha é determinante para a construção da narrativa histórica, paisagística e
geográfica de Martim Afonso de Souza dentro da História da São Paulo, nesse momento.
Salienta-se, igualmente, que existe uma circulação em gravura de sua efígie, que surge
estampada em moedas de mil réis10, da série vicentina, cunhada em 1932 como forma de
celebração dos quatrocentos anos da colonização do Brasil.
Propõe-se, então, que o artista parta da fotografia da gravura da efígie de Martim
Afonso e inicie uma série de encomendas 11, das quais restam conhecidas pela Historiografia
da Arte: “Martim Afonso no Porto das Naus” (1881) 12, “Desembarque de Martim Afonso de
Souza” (1881) 13, “Ruínas da Casa de Pedra Martim Afonso” (1889) 14, “Fundação de São Vi-

8  Ibid: p. 272.
9  RETRATO DE MARTIM AFONSO DE SOUSA 1-03292-0000-0000. Disponível em: http://acervo.mp.usp.br/Iconogra-
fiaV2.aspx#. Acesso: 13 mar. 2019.
10  SÉRIE VICENTINA: moedas dos 400 anos de colonização do Brasil. Disponível em: https://collectgram.com/blog/
serie-vicentina-moedas-dos-400-anos-de-colonizacao-do-brasil/. Acesso: 13 mar. 2019.
11  SOUZA, Marli Nunes de (coord.) Benedito Calixto 150 anos. CD-ROM. Santos: Fundação Pinacoteca Benedito Ca-
lixto, 2004.
12  Óleo sobre tela, 74,5 x 48 cm, Prefeitura Municipal de São Vicente.
13  Óleo sobre tela, 74,5 x48 cm, Prefeitura Municipal de São Vicente.
14  Óleo sobre tela, 60 x 40 cm, Câmara Municipal de Santos.
KARIN PHILIPPOV

cente” (1900) 15, “Retrato de Martim Afonso de Souza” (1900) 16, “A Caminho de Piratininga”
(1905) 17, “Martim Afonso no Porto de Piaçaguera” (1912) 18, “Chegada de Martim Afonso a
São Vicente” (s/d) 19 e “Desembarque dos Portugueses em São Vicente” (s/d) 20. Em primeiro
lugar, destaca-se que a produção pictórica de Benedito Calixto possui uma catalogação par-
cial e falha em muitos aspectos, pois a ausência de uma datação precisa das pinturas impe-
de uma visão de sua respectiva cronologia. Não obstante a falta de dados mais precisos, o
expressivo conjunto de pinturas supracitadas permite uma análise profunda no que concer-
ne aos recuos e aproximações de sua geografia artística dentro da tradição historiográfica e
de suas relações encomiásticas, bem como do tipo de construção de narrativa histórica feita
pelo artista entre o final do século XIX e início do XX.
Ressalta-se, ainda no conjunto de pinturas a criação de uma possível narrativa da tra-
jetória de Martim Afonso de Souza através de sua inserção na paisagem litorânea paulista.
Mas em que tipo de paisagem geograficamente construída Benedito Calixto insere seus per-
sonagens? De que maneira ele constrói suas cenas? Qual o grau de historicidade proposto
pelo artista historiador? E em relação às encomendas como, por exemplo, a “Fundação de
São Vicente”?
No que concerne à paisagem calixtiana, cumpre destacar que em “Capitanias Pau-
listas” 21 não há qualquer menção à paisagem ou descrição acerca de onde os fatos teriam
ocorrido, além de seus aspectos corográficos, tais como nomes de rios, pedras e demais
marcos territoriais, conforme Calixto escreve:

(...) para os herdeiros de Martim Affonso de Souza, o desmembramento dessa outra Ilha de
Ingaguaçú, onde estavam situadas as duas villas, de São Vicente e Santos, bem com o todo o
sertão do interior, comprehendendo as villas de S. Paulo, Parnahyba e as demais povoações

106
do planalto da serra de Paranapiacaba. (...)

Se em seu livro, não há qualquer descrição topográfica, dentro das paisagens pin-
tadas pelo artista, nas quais Martim Afonso de Souza aparece, destaca-se a representação
geográfica dos locais onde o donatário teria estado presente. Assim, cabe salientar que ao
pintar suas telas entre fins do século XIX e início do XX, o tipo de paisagem encontrado por
Calixto há muito não era a paisagem que teria sido a encontrada pelo donatário em 1532,
quando aporta em São Vicente, por exemplo. Sugere-se, portanto, um tipo de paisagem
historicamente construída de acordo com as pesquisas do artista historiador e em perfeita
consonância com as encomendas e o debate historiográfico da época. Assim, entre recuos
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

e transformações, Calixto compõe suas imagens buscando arqueológica, histórica e geo-


graficamente um estado bruto anterior a chegada dos portugueses, conforme se observa
no conjunto de pinturas supracitadas. Nesse sentido, Caleb Faria Alves 22 define Calixto,

15  Óleo sobre tela, 385 x 192 cm, Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
16  Óleo sobre tela, 130 x 200 cm, Prefeitura Municipal de São Vicente.
17  Óleo sobre tela, 63 x 21 cm, coleção particular.
18  Óleo sobre tela, medidas não encontradas, Palácio São Joaquim, Rio de Janeiro.
19  Óleo sobre tela, 83 x 21 cm, coleção particular.
20  Óleo sobre tela, 86 x 60 cm, Clube Atlético Paulistano, São Paulo.
21  Ibid: p. 64.
22  ALVES, Caleb Faria. A Fundação de Santos na Ótica de Benedito Calixto. In: REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 120-
133, março/maio 1999, p. 122.
BENEDITO CALIXTO ATRAVÉS DE SUAS PESQUISAS GEOGRÁFICO-HISTÓRICAS

como “falso viajante” 23, por representar a paisagem histórica como se tivesse sido testemu-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


nha ocular dos eventos, tal qual faziam os artistas viajantes, conferindo, desse modo, uma
“perspectiva científica” 24 aos fatos narrados pelo artista historiador. Além disso, ressaltam-
-se a necessidade e a tentativa calixtianas em localizar com precisão onde os fatos teriam
ocorrido. Percebe-se, então, a criação de uma narrativa historiográfica atreladora da figura
de Martim Afonso de Souza ao surgimento da própria História de São Paulo, na medida em
que os debates promovidos pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo ocorrem em
associação à expansão do Museu Paulista, promovida por Afonso d’Escragnolle Taunay, que
faz uma série de encomendas de pinturas históricas a vários artistas, como Benedito Cali-
xto, por exemplo. Farias 25 ainda salienta a participação ativa de Calixto dentro do IHGSP,
contribuindo cientificamente para a construção da narrativa histórica de São Paulo. Aliás,
esse processo ocorre em conjunto com o IHGSP e o Museu Paulista, apesar de haver telas
pertencentes, à Prefeitura Municipal de São Vicente, à Câmara Municipal de Santos, ao
Clube Atlético Paulistano e ao Palácio São Joaquim, localizado na cidade do Rio de Janeiro
e que representam Martim Afonso de Souza. Tal volume de encomendas e destinos poderia
indicar a circulação e divulgação da construção da narrativa histórica, além do esforço de
um revisionismo historiográfico calcado na criação imagética da figura de Martim Afonso de
Souza, nesse momento.
Outro ponto a ser destacado se refere à datação do conjunto iconográfico calixtiano,
que compreende um arco temporal iniciado em 1881 e concluído em 1912, fato que de-
monstra o interesse do artista em pesquisar o tema da representação de Martim Afonso de
Souza dentro do espaço paulista, seja nos momentos históricos relativos ao desembarque e
fundação de vilas, seja em seu retrato ou nas ruínas do que teria sido sua casa 26. Desperta
107
a atenção o modo pelo qual Calixto se dedica ao tema ressaltando não só sua importância
histórica, como também sua figura necessária para a formação do paulista.
Observando o conjunto de pinturas calixtianas referentes à representação de Martim
Afonso de Souza destaca-se a placidez e teatralidade 27 de sua postura tanto diante da na-
tureza, quanto diante dos indígenas presentes nas pinturas, fato corroborado, igualmente
pela calmaria da própria natureza, através de dias claros e ensolarados. Trata-se de uma
intepretação na qual a presença do donatário se pauta pela sua inserção em um espaço
geográfico historicamente marcado pelo posicionamento de sua figura no espaço de manei-
ra teatral e sem qualquer forma de conflito, tal qual Paulo César Garcez Marins 28 aponta,
e como se pode observar em “Martim Afonso no Porto de Piaçaguera” e “Fundação de São
Vicente”, por exemplo. Já em “Retrato de Martim Afonso de Souza”, percebe-se que o do-
natário surge hieraticamente em pé, com o braço direito dobrado, enquanto o esquerdo se
apoia sobre sua mesa de trabalho. Propõe-se que Calixto o retrate como comandante da
Nação em seu gabinete de trabalho. Aqui, salienta-se, ainda, certa desproporção da cabeça

23  Ibid: p. 122.


24  Ibid.
25  Ibid: p. 122.
26  Hoje, no local existe o Museu Casa de Martim Afonso, localizado no município de São Vicente, litoral de São Paulo.
ESTEVES, Edria & GONZALEZ, Manoel. Casa Martim Afonso: Edificação Histórica, Sítio Arqueológico e Acervo em um
Único Espaço Físico a Serviço da Comunidade. In: UNISANTA Humanitas pp.45 -53; vol.1 ano 2 (2013).
27 Ruth Sprung Tarasantchi destaca a teatralidade nas pinturas históricas como forma de aumentar o grau de realismo
nas representações. Assim, para obter tal objetivo, os artistas usam acessórios de época, além de estudarem roupas e
gravuras antigas. TARASANTCHI, Ruth Sprung. Oscar Pereira da Silva. São Paulo: Empresa das Artes, 2006, pp. 71-72.
28 MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas com pose de reis: a representação de bandeirantes e a tradição da retra-
tística monárquica européia. In: Revista do IEB, n. 44 pp. 77-104, São Paulo, fev. 2007.
KARIN PHILIPPOV

de Martim Afonso em relação ao corpo, além da presença da característica de seus retra-


tos históricos, constituída pelo cenho franzido, como se observa em “Retrato de Domingos
Jorge Velho” (1903) 29 e “Retrato de José Bonifácio, o Patriarca da Independência” (1902) 30,
bem como em seus autorretratos, como o pertencente à coleção do Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand, pintado em 1923. Tal característica poderia ser uma forma de
demonstrar concentração e seriedade do personagem em questão, a despeito da idade do
representado.
No que tange ao debate historiográfico acerca da geografia artística de Benedito
Calixto deve-se propor sua inserção em uma fronteira tênue entre a historiografia artística
brasileira e europeia, fronteira essa calcada em um panorama ampliado, no qual a paisa-
gem histórica se impõe como busca de uma verdade histórica criada a partir de uma ficção.
Assim, dentro do amplo debate entre centro e periferia proposto por Carlo Ginzburg, 31
propõe-se uma abertura para uma discussão acerca da geografia artística de Benedito Ca-
lixto, como forma de posicionamento e estabelecimento de um fronteira artística, histórica,
geográfica e arqueológica, transcendendo a questão da geografia artística proposta por
Thomas DaCosta Kaufmann, 32 que se faz através de uma pesquisa epistemológica sobre a
arte produzida nas periferias europeias, entre outros tópicos analisados pelo autor. Entre-
tanto, a questão da fronteira calixtiana deve ser problematizada sob o ponto de vista de sua
inserção na História de São Paulo, mediante o resgate da figura de Martim Afonso de Souza,
tanto através da pintura, quanto através de “Capitanias Paulistas”, a fim de indagar acerca
da tipologia imagética e epistemológica que Calixto apresenta. Ou seja, quais recuos histó-
ricos são realizados em prol das transformações históricas que compreendem a História de
São Paulo nesse momento de virada do século XIX para o XX, no qual a Primeira República
se instala.

108
Portanto, o resgate da figura de Martim Afonso de Souza e sua consequente eleva-
ção à condição de grande fundador do Brasil e de São Paulo revelam muito sobre o tipo de
construção histórica de São Paulo, que é realizada tanto pelos abastados cafeicultores, atra-
vés da reconstrução arquitetônica da cidade de São Paulo, como pela intelectualidade, que
corrobora na criação de pesquisas científicas sobre a presença do primeiro donatário em
território nacional e conforme se observa no referido ciclo de pinturas de Benedito Calixto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

ALVES, Caleb Faria. A Fundação de Santos na Ótica de Benedito Calixto. In: REVISTA USP,
São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999.
BENEDITO CALIXTO. http://www.novomilenio.inf.br/santos/calixtnm.htm. Acesso: 01 fev.
2019.
CALIXTO, Benedito. Capitanias Paulistas. II Edição. São Paulo: Casa Duprat e Casa Mayença
(Reunidas), 1927.
ESTEVES, Edria & GONZALEZ, Manoel. Casa Martim Afonso: Edificação Histórica, Sítio Ar-

29  Óleo sobre tela, 100 x 140 cm, Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
30  Óleo sobre tela, 70 x 100 cm, Acervo da Prefeitura de São Vicente.
31  GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Tradução Antonio Narino. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 1991.
32  KAUFAMANN, Thomas DaCosta. Toward a Geography of Art. Chicago, Illinois: University of Chicago Press, 2004.
BENEDITO CALIXTO ATRAVÉS DE SUAS PESQUISAS GEOGRÁFICO-HISTÓRICAS

queológico e Acervo em um Único Espaço Físico a Serviço da Comunidade. In: UNISANTA

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Humanitas p.45 -53; vol.1 ano 2 (2013).
GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Tradução Antonio Narino. Lisboa: Di-
fel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Disponível em: https://www.ihgb.org.br/ihgb/his-
torico/fundacao-instituto.html. Acesso em: 21 fev. 2019.
JOÃO CAPISTRANO DE ABREU. Disponível em: https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/JCA-
breu.html. Acesso em: 21 fev. 2019.
KAUFAMANN, Thomas DaCosta. Toward a Geography of Art. Chicago, Illinois: University of
Chicago Press, 2004.
MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas com pose de reis: a representação de bandeirantes
e a tradição da retratística monárquica européia. In: Revista do IEB, n. 44 p. 77-104, São
Paulo, fev. 2007.
MARTIM AFONSO DE SOUSA - biografia resumida, realizações, quem foi. Disponível em: ht-
tps://www.historiadobrasil.net/resumos/martim_afonso_sousa.htm. Acesso: 16 mar. 2019.
OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (org.). O Museu Paulista e a Gestão de Afonso Taunay:
escrita da história e historiografia, séculos XIX e XX. SP: Museu Paulista da USP, 2017.
RETRATO DE MARTIM AFONSO DE SOUSA 1-03292-0000-0000. Disponível em: http://
acervo.mp.usp.br/IconografiaV2.aspx#. Acesso: 13 mar. 2019.
SÉRIE VICENTINA: moedas dos 400 anos de colonização do Brasil. Disponível em: https://
collectgram.com/blog/serie-vicentina-moedas-dos-400-anos-de-colonizacao-do-brasil/.
Acesso: 13 mar. 2019.
SOUZA, Marli Nunes de (coord.) Benedito Calixto 150 anos. CD-ROM. Santos: Fundação
109
Pinacoteca Benedito Calixto, 2004.
TARASANTCHI, Ruth Sprung. Oscar Pereira da Silva. São Paulo: Empresa das Artes, 2006.
TEIXEIRA, Milton. Benedito Calixto Imortalidade. Santos, SP: Editora da UNICEB, 1982.
11
NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS PINTURAS DA
ESCOLA DE ARTE DE BEURON NO MOSTEIRO
DE SÃO PAULO

KLENCY KAKAZU DE BRITO YANG*

* Mestre em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo - (EFLCH-UNIFESP), Pedagoga
pela Universidade Braz Cubas (UBC) e Pesquisadora Independente.
KLENCY KAKAZU DE BRITO YANG

as figuras simples e formas, os números mais simples e básicos, medidas, tons musicais e

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


cores são os mais nobres e melhores, artisticamente os mais preciosos [...] o mais apto para
expressar o sagrado (Peter Lenz).1

A
arte religiosa dos séculos XIX e XX nos apresentou alguns grupos de artistas que
procuraram aliar a sua técnica a um estilo de trabalho que proporcionasse uma
produção que fosse menos autoral e mais coletiva. O arquiteto e escultor Peter Lenz
(1832–1927), egresso da Escola de Belas Artes de Munique, procurou primeiro nos
Nazarenos, e depois, nos Beuronenses, a possibilidade desta arte religiosa.
A Escola de Arte de Beuron foi fundada dentro dos muros do Mosteiro Beneditino de
Beuron, no sul da Alemanha, e seguiu a sua Teoria Estética. Neste local, circularam artistas
que se interessavam pelos seus conceitos, incluindo os Nabis Maurice Denis (1870–1943),
Paul Sérusier (1864–1927) e Jan Verkade (1868–1946). Este último, entrou para a Ordem
Religiosa, adotando o nome de Willibrord Verkade.
Durante a ornamentação da cripta do Mosteiro de Monte Cassino (1898-1913), por
ocasião do Jubileu de 14 séculos do nascimento do Patriarca da Ordem, São Bento, Verkade
e Adelbert Gresnicht (1877–1956) debutaram como artistas de Beuron. Após este trabalho
italiano, Gresnicht seguiu para o Brasil, em São Paulo (1914-22), depois, Estados Unidos
(1923-26) e China (1927-32), sempre como artista de Beuron.
Acreditamos que Gresnicht e Verkade desenvolveram trabalhos artísticos sob a te-
mática e conteúdo beuronenses, no entanto, a sua forma foi autoral. Assim, consideramos
que a produção paulistana possui proximidade com o pintor Jacob Wüger (1829-92), amigo
do Nazareno Johann Friedrich Overbeck (1789-1869) e de Peter Lenz. Ele, Wüger, produziu
111
uma Arte Beuronense “moderada”, sendo considerado como aquele que melhor interpre-
tava a Teoria Lenziana.2 Sobre a produção beuronense no Brasil, gostaríamos de expor que
existem novos dados que provocam questionamentos sobre a equipe que trabalhou em São
Paulo.

A ESCOLA DE ARTE DE BEURON, PETER LENZ E O CÂNONE

Peter Lenz nasceu em Haigerloch, no principado de Hoherzollern-Sigmaringen, sul


da Alemanha. Seu pai era marceneiro e trabalhava em igrejas neogóticas, a família não era
católica. Peter recebeu treinamento em desenho arquitetônico e após a morte de seu pai,
entrou para Academia de Belas Artes de Munique, onde estudou escultura (1852).3
No período em que esteve em Munique participou do grupo de estudos do professor
Peter von Cornelius (1783-1867), onde conheceu seu amigo, Jakob Wüger. Cornelius me-
diou uma bolsa de estudos na Itália junto ao Governo da Prússia para estes alunos.4

1  LENZ, D., 2002, pg.16. (tradução nossa).


2  Cfr. YANG, 2017.
3  Cfr. KRINS, 2002.
4  Id.
NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS PINTURAS DA ESCOLA DE ARTE DE BEURON NO MOSTEIRO DE SÃO PAULO

Anos antes de ser professor, Cornelius esteve para Roma (1811) e participou do grupo
dos Nazarenos e atuou na pintura do Casa Barthold (1816). Em 1819, retornou para Alema-
nha e realizou as pinturas da Gliptoteca (1819-1830).5 Entre 1819 e 24, tornou-se diretor da
Academia de Arte de Düsseldorf, e em 1925, assumiu a Academia de Munique.
A Irmandade de São Lucas se formou a partir de um grupo de artistas egressos de
Viena que se estabeleceram no Mosteiro de Santo Isidoro em Roma. Estes jovens artistas
buscavam a espiritualidade na arte e a produção coletiva. Tornaram-se conhecidos por “na-
zarenos”, pois a aparência deles remetia a de Jesus de Nazaré.6
Em 1862, Lenz e Wüger ganharam as bolsas de estudos do Governo da Prússia para
a Itália, por intercessão do mestre Cornelius. Estes jovens encontraram um ambiente de
religiosidade: “Quando ele (Lenz) chegou em Roma, no entanto, foi menos a arte e mais a
personalidade do Papa Pio IX que o cativou imediatamente”7, o Estado Papal renascia na
personalidade deste Papa, que havia decretado a Infalibilidade Papal e os dogmas da Ima-
culada Concepção de Maria, bem como a Encíclica Quanta Cura (1864) que condenava os
conceitos progressivos-liberais.8 Os jovens se uniram aos Nazarenos.
Lenz explicou que havia sido treinado para ser escultor em Munique, e que o que
mais conhecia era a arquitetura, refletiu que até poucos meses atrás ele era um carpintei-
ro junto ao seu pai, concluiu que “ele era realmente como alguém que não mais sentia o
chão sólido sobre os pés”9, estava angustiado. Para suprir este mal-estar, ele se refugiou na
biblioteca do Consulado da Prússia, buscando respostas para sua arte nos vasos gregos e
depois, na Arte Egípcia.
Lenz sentia que a produção artística do Renascimento era controlada e sem acidentes,
parecia “ser arranjada para um efeito extremo, com formas e dobras unidas inarticulada-
mente, sem sentimentos”10, em oposição, ele apontava para a Arte Antiga afirmando que

112
“aqui, ao contrário, todas as medidas seguem de um modelo padrão do corpo, que também
governa, com a unidade da vontade, todas as linhas e formas do drapeado”.11
Para o professor Hubert Krins, o escultor buscava o princípio criativo e a técnica na
produção da Arte Antiga, como quem resgatava a gramática para uma linguagem a muito
esquecida.12 O professor concluiu que Lenz havia encontrado o seu objetivo: “A antiga Arte
Cristã precisa nascer de novo para renovar a vida. No seu espírito, não na sua forma”.13
A Teoria Estética para a Arte Sacra foi desenvolvida quando ele realizava o seu rela-
tório final para o Governo da Prússia. Ao concluir, seguiu para a região de seu nascimento,
onde a renovação religiosa ocorria com a fundação de um mosteiro que se propunha a re-
novar a fé pela liturgia e pelo canto gregoriano.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

5  Cfr. BROOKE, 2002.


6  Cfr. YANG, 2017.
7  KRINS, Op. cit.: p. 6.
8  Id.
9  LENZ, 2002, p.14.
10  Id.
11  LENZ, 2002, p.14.
12  Cfr. KRINS, 2002
13  LENZ apud KRINS; Op. cit.: p. 8.
KLENCY KAKAZU DE BRITO YANG

O Mosteiro de Beuron foi fundado em 1863 por dois jovens beneditinos, Mauro

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


(1825-1890) e Plácido (1828-1908) Wolter.14 Os irmãos desejavam o retorno da fé católi-
ca na Alemanha e obtiveram o apoio da Princesa Katarina von Hoherzollern-Sigmaringen
(1817-1893) que cedeu a propriedade de sua família para a fundação do cenóbio. Em
1868, Lenz recebeu o apoio da Princesa para a construção de uma capela votiva, a Capela
de São Mauro.
Lenz permaneceu em contato com Wüger que estava em Roma, discutiram sobre a
possibilidade da fundação de um mosteiro de artistas. Porém, a ideia não vingou junto ao
líder do grupo, Friedrich Johann Overbeck (1789-1869).15
O cânone desenvolvido por Lenz seguia padrões geométricos. Segundo Lenz:

se inscrevermos, por exemplo, uma série ascendente de polígonos em um círculo, nós ime-
diatamente descobriremos um octógono [...] é fácil para o olho rastreá-lo, para compreen-
der e distinguir as figuras, não apenas pela forma, mas também pela sua natureza – pela
alma desta figura...16

Para Lenz, as figuras, as formas, as medidas, as cores simples e básicas eram as mais
nobres e puras, as que melhor representavam o sagrado. Ele afirmava que:

a raiz [está] nos números simples e medidas, permane-


cendo o básico em toda arte; e medir, contar e pesar con-
tinuam sendo as mais importantes atividades na arte. O
objetivo de toda arte elevada é a transmutação, a aplicação
113
da geometria, aritmética, formas básicas simbólicas da na-
tureza a serviço das grandes ideias.17

A Teoria Lenziana buscava na matemática, nas for-


mas e formatos básicos uma arte que permitisse o contato
do fiel com a divindade. Para o teórico, a arte dos povos
antigos tinha esta propriedade, porque estes povos esta-
vam mais próximos do Pecado Original. Na figura 1, temos
o estudo de um rosto realizado por Lenz, em que se per-
cebe esta construção geométrica em busca da “alma” da
imagem. Segundo o teórico: “Do triângulo equilátero (in-
serido) no círculo da cabeça e nas subdivisões a diante, a
posição para olhos, nariz e boca são desenvolvidas”.18 Este 1. Cânone, s.d. Desiderius (Peter) Lenz.
estudo geométrico proporcionava um desenho simétrico e Desenho. Acervo da Arquiabadia de St.
Martin – Beuron, Alemanha. In: LENZ,
frontal, em que as linhas e os traços eram evidentes. 2002, pág. 70.

14  Os monges beneditinos europeus recebiam o tratamento de Dom (Dominus) antes dos seus nomes, e OSB (Ordo
Sancti Benedicti) após ele. Neste texto retiramos o tratamento mantendo os nomes usados.
15  Cfr. METKEN, 1977.
16  LENZ, Op. cit.: p. 16 (tradução e negrito nossos).
17  Id. (tradução e negrito nossos).
18  LENZ, Op. cit.: p. 72.
NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS PINTURAS DA ESCOLA DE ARTE DE BEURON NO MOSTEIRO DE SÃO PAULO

Os cânones lenzianos possuíam a frontalidade, a simetria compositiva e as linhas e


os traços claros e evidentes do desenho, estas peculiaridades formavam uma imagem que
poderia ser identificada pelo observador, a exemplo desta face humana.
Na figura 2, o tema da Pietà foi pintado pelos artistas de Beuron na igreja de São Ga-
briel em Praga (1895-6), trabalho realizado sob supervisão de Peter Lenz. Este é um dos te-
mas que o teórico de Beuron se debruçou para um estudo aprofundado. Segundo análise do
professor Hubert Krins, esta iconografia rompeu com a tradição romana da Pietà, pois Lenz
apresentou uma Maria que não abraçava o corpo inerte do seu filho morto, expressando a
dor materna diante da perda; e sim, uma Maria que o oferecia em sacrifício ao observador
da imagem, tendo os anjos como testemunhas.19
Nesta produção era possível observar o predomínio das linhas e traços, que desta-
cados confirmavam a vocação da imagem para a representação gráfica e o desenho, esta
imagem não buscava reproduzir a Natureza; existia uma simetria rígida, quase espelho e
os personagens eram frontais e estáticos. A representação de Maria remetia a uma figura
feminina egípcia, tanto na sua apresentação como nas suas vestes, sendo que a vegetação
lateral dialogava com esta questão.

114
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

2. Pietà, c.1895-6. Desiderius (Peter) Lenz et al. Pintura mural. Abadia de St. Gabriel, Praga, República Tcheca. In:
LENZ, 2002, pág. 45.

Quanto ao primeiro trabalho de Lenz, a Capela de São Mauro, não obteve a recep-
ção que ele esperava. Sua pintura foi considerada oriental demais para o modelo de imagi-
nária da Santa Sé. Após o término deste trabalho, Jacob Wüger entrou para o Mosteiro com
o nome de Gabriel, e Lenz seguiu para Berlim, prosseguindo com seus estudos. Em 1878,
quatro anos depois, ele retornou ao Mosteiro de Beuron e entrou para a casa com o nome
de Desiderius Lenz.

19  Cfr. KRINS, Op. Cit.: p. 7.


KLENCY KAKAZU DE BRITO YANG

O MOSTEIRO DE SÃO PAULO E ADELBERT GRESNICHT

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Charles Louis Gresnicht nasceu em Utrecht (Holanda) em 1877. De uma família re-
ligiosa, aos quinze anos se tornou oblato do Mosteiro de Maredsous (Bélgica) e no ano
seguinte foi enviado ao Mosteiro de Beuron para desenvolver suas habilidades artísticas.
Iniciou a sua aprendizagem em modelagem e se dedicou ao estudo da Teoria Estética de
Lenz. 20
Gresnicht apontou que Lenz preconizava uma arte oficial para a igreja, baseada em
regras muito rígidas e impraticáveis.21 O cânone lenziano seguia uma elaboração geométri-
ca rígida em sua produção, que possuía dimensões distintas do seu uso prático, estas ima-
gens precisavam ser ampliadas (e ajustadas) aos locais a que eram destinadas.
Em Beuron, Gresnicht conheceu o holandês Johannes Sixtus Gerhardus Verkade, Jan
Verkade, de Zaandam. Este jovem havia estudado em Paris e participado do grupo dos Na-
bis, sendo próximo a Maurice Denis, Paul Sérusier e Paul Gauguin (1848-1903).
Em 1895, trabalharam na ornamentação da igreja de Saint-Gabriel em Praga, onde
Gresnicht realizou seus primeiros afrescos sob supervisão do mestre. No ano seguinte, re-
tornou a Maredsous e iniciou seu noviciado com o nome de Adelbert.22
Entre 1808 a 1913, os monges-artistas trabalharam na ornamentação da cripta e do
refeitório do Mosteiro de Monte Cassino como parte da comemoração do Jubileu de 14 sé-
culos de nascimento do Patriarca da Ordem. Neste trabalho, Adelbert Gresnicht e Willibrord
Verkade debutaram como artistas de Beuron. Denis e Sérusier estiveram em vista. Entre os
dois grupos haviam afinidades teóricas que eram compartilhadas, que não se estenderam à
produção técnica.23
115
Miguel Kruse (1864-1929), o abade de São Paulo, visitou Monte Cassino. Ele havia
concluído a construção de sua igreja e convidou Gresnicht para fazer o seu programa artís-
tico do local.
Heinrich Kruse nasceu em Stukenbrock, Westfalia. Ficou órfão ainda criança e dese-
java seguir a vida religiosa, porém, isso não foi possível na sua terra natal devido ao Kul-
turkampf de Otto von Bismarck (1815-98) que havia fechado os mosteiros. Ele entrou para a
Igreja nos Estados Unidos e serviu no Equador, construindo uma carreira de êxito. No entan-
to, quando soube da Restauração da Ordem Beneditina realizada em Olinda pelos monges
de Beuron, resolveu se juntar a eles.24
A Restauração da Congregação Beneditina do Brasil realizada pela Congregação
de Beuron iniciou-se pelo Mosteiro de Olinda, em 1895. Os mosteiros brasileiros estavam
vazios, com poucos monges e idosos, o Abade Geral Domingos da Transfiguração Machado
solicitou ajuda ao Papa Leão XIII, que incumbiu os monges de Beuron desta empreitada.25
Beuron trabalhava pela Restauração Católica na Alemanha através da arte, pelo can-
to gregoriano e pelas artes plásticas, o local seguiu o modelo do Mosteiro de Solesmes, na
França. Kruse entrou para o Mosteiro de Olinda e adotou o nome de Miguel (1897).26

20  Cfr. STANDAERT, 2011.


21  Id.
22  Id.
23  Cfr. YANG, 2017
24  Cfr. SCHERER, 1963.
25  Id.
26  Id.
NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS PINTURAS DA ESCOLA DE ARTE DE BEURON NO MOSTEIRO DE SÃO PAULO

Miguel Kruse assumiu o Mosteiro de São Paulo após a morte do monge brasileiro
Pedro da Ascenção Moreira, em 15 de julho de 1900.27 Recebeu a difícil missão de preservar
os bens e a cultura beneditinos que estavam ameaçados.
Um de seus empreendimentos foi a construção de um complexo religioso, que abar-
cou a igreja, o mosteiro e a escola. O projeto foi realizado pelo arquiteto e professor da
Universidade de Munique, Richard Berndl (1875-1955). Com a igreja concluída, Gresnicht
foi convidado a realizar o trabalho artístico.
Em 1914, desembarcou em São Paulo com dois ajudantes. Pretendiam retornar após
os estudos preliminares, porém, com o início da Primeira Guerra Mundial, a equipe per-
maneceu no país. Embora exista a informação de que a igreja do Mosteiro de São Paulo
foi executada por Gresnicht e seu ajudante Clement Frischauf (1869-1944), ponderamos a
possibilidade de que Lukas Reicht, do Mosteiro de Seckau, possa ter ajudado fortuitamente.
Segundo a declaração do monge beneditino e historiador Joaquim G. de Luna havia
dois ajudantes: “Para a decoração da Igreja veio do Mosteiro de Maredsous (Bélgica) D.
Adalberto Gresnicht, formado em pintura pela Escola de Beuron, o qual auxiliado por dois
irmãos conversos executou as obras de pintura do templo”.28
O historiador Hubert Krins, que trabalhou como responsável do arquivo da Arquia-
badia de St. Martin/Beuron, informou: “Entre estes devem ser mencionados Padre Adelbert
Gresnicht, Irmão Clement Freischauf e Irmão Lukas Reicht. Em 1914 eles realizaram a deco-
ração pictórica de São Bento em São Paulo”.29
O Professor Krins nos forneceu a lista de registro de artistas da Escola de Arte de
Beuron pertencente ao acervo da Arquiabadia de St. Martin, em que temos os registros dos
monges que estiveram em São Paulo. No documento pelo Mosteiro de Seckau: Clement
Frischauf, sob o número 31 e Lucas Reicht como número 41; e do Mosteiro de Maredsous,

116
Adelbert Gresnicht como número 38.30 Esta listagem consta 68 nomes de religiosos egressos
dos diferentes mosteiros da Congregação de Beuron.
O pintor Lukas Reicht esteve no Mosteiro de São Bento da Bahia realizando seis telas
que se encontram no Refeitório e na Sala Capitular desta casa. Não há informações precisas
sobre seu percurso em nosso país e nem qual foi sua contribuição nas obras de São Paulo.
O arquivista do Mosteiro de São Paulo, João Baptista Barbosa Neto, informou que
pelas Crônicas do Mosteiro 1899-192931 se pode verificar algumas passagens em que o
religioso foi mencionado, porém nada consta sobre o seu trabalho, em especial na igreja.
Segundo o religioso, no dia 23 de fevereiro de 1915, se anunciou a chegada de Rei-
cht em São Paulo, e no dia 23 de setembro do mesmo ano, sua partida para o Sorocaba;
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

a última anotação nas Crônicas foi no dia 16 de abril de 1917, que tratou do retorno do
artista para Sorocaba. Os estudos, para elucidar os dados e lacunas presentes nas Crônicas
do Mosteiro de São Paulo sobre o artista beuronense Lukas Reicht, permanecem em anda-
mento.

27  Cfr. LUNA, 1947.


28  LUNA, 1947, p. 139. Grifos nossos.
29  KRINS, 2007, p. 444. Grifos nossos.
30  ARQUIVO ST. MARTIN, s.d.
31  CRÔNICAS DO MOSTEIRO DE SÃO PAULO, 1899-1929.
KLENCY KAKAZU DE BRITO YANG

A PINTURA DE SÃO BENTO E DE SANTA ESCOLÁSTICA

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


A representação de São Bento e de sua irmã Santa Escolástica fazem parte do reper-
tório visual e biográfico da Ordem Beneditina, os dois religiosos estão sepultados no Mostei-
ro de Monte Cassino, na Itália. Em vida eram muito próximos, compartilhando a mesma fé.
Na figura 3, temos a pintura destes irmãos que se encontra no teto da igreja de São
Paulo. As pinturas do teto realizadas por Gresnicht são consideradas tradicionais e apresen-
tam como temas: retratos de santos, pessoas da Igreja, biografia do Patriarca e os relacio-
nados à Ordem Religiosa.
A figura porta São Bento ao lado de Santa Escolástica, ambos se apresentam com suas
vestes monásticas e separados pela pomba que representa o Espírito Santo. No ângulo em
que eles se encontram sentados, eles discretamente se voltam para o centro da esfera em
que estão inseridos. Ao centro da imagem temos o livro de São Bento, a Regra Beneditina,
logo abaixo do Espírito Santo. O medalhão possui inscrições em latim que fazem referência
aos irmãos gêmeos que na Terra serviram a Glória de Deus. Existem arabescos orgânicos
e flores que ladeiam o medalhão. Embora a imagem seja simétrica, ela não é um espelho.
A pintura foi considerada uma obra beuronense exemplar dentro da igreja paulista-
na, uma referência às pinturas antigas e à representação da Escola de Beuron produzida por
Gresnicht.32
A figura 4, trata-se da pin-
tura parietal da Igreja de São Ga-
briel em Praga (1895-99), reali-
zada por Peter Lenz e sua equipe,
117
incluindo Gresnicht. A pintura
segue o mesmo tema que Gres-
nicht desenvolveu para São Pau-
lo, porém, com visível alteração
da paleta. Na figura 3, as cores
são frias e na figura 4, quentes,
Gresnicht optou por tons terrosos
e verdes para
sua obra e Lenz optou pelos tons
vermelhos, amarelos, azuis e
verdes. Existe uma simetria que
pode ser considerada um espe-
lho e esta é reforçada pelo gra-
fismo que emoldura os irmãos
sentados em seus tronos. São
Bento segura a cruz e a Regra, 3. São Bento e Santa Escolástica, 1914-22. Adelbert Gresnicht. Pin-
tura mural. Basílica de Nossa Senhora da As-sunção – São Paulo, Brasil.
e Santa Escolástica a Pomba (Es- Fotografia colorida. Acervo da autora, 09 nov. 2018.
pírito Santo) e o seu “coração”,
uma possível referência à Fé e à
Disciplina, enquanto sua irmã: à Fé e o Amor. Os irmãos estão separados por uma palmeira
que divide a pintura em dois eixos equilibrados. Há a frontalidade da imagem e a presença
do traço no desenho e as cores são expressivas complementando a composição da imagem.

32  Informação verbal do restaurador João Rossi.


NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS PINTURAS DA ESCOLA DE ARTE DE BEURON NO MOSTEIRO DE SÃO PAULO

Na figura 3, se percebe o leve


movimento provocado pelo planejamen-
to dos tecidos de ambos os santos, pela
posição das pernas de São Bento e pela
ligeira inclinação de Santa Escolástica.
Também, existe uma leve profundidade
onde as linhas convergem para a repre-
sentação do Espírito Santo, se tornando
pontos de fuga e focal.
Lenz prezava pela simetria, qua-
se espelho; a frontalidade e as linhas
acentuadas, provocando a valorização
do desenho; a apresentação de orna-
mentos geométricos e fitomórficos; e a
valorização da cor. Ele desprezava a re-
presentação mimética da Natureza e da 4. São Bento e Santa Escolástica, 1895-99. Desiderius (Pe-
perspectiva na construção das composi- ter) Lenz et al. Pintura mural. Abadia de St. Gabriel, Praga,
ções. Por estas questões a representação República Tcheca. Fotografia colorida. Acervo de Hubert Krins,
s.d.
gresnichtiniana se distância da Teoria
lenziana.
Gresnicht se explicou sobre sua produção autoral e o distanciamento da Teoria ates-
tando que ele se considerava um artista beuronense “moderado”.33 Em sua biografia, se jus-
tificou afirmando que Lenz aplicava a Teoria por escrito e que seus alunos faziam os esboços
dela, acrescentou que as plantas e desenhos eram estabelecidos em escala muito baixa, por

118
volta de 3 a 4 centímetros e precisavam ser ampliados para dois metros34, o que provocava
ajustes corriqueiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As pinturas da Basílica de Nossa Senhora de Assunção, no Mosteiro de São Bento em


São Paulo, foram realizadas pelos artistas de Beuron, Adelbert Gresnicht e por seus ajudan-
tes: Clement Freischauf, e talvez, Lukas Reicht.
Todos os três artistas eram egressos da Escola de Arte de Beuron. As pinturas de São
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Paulo são beuronenses e possuem um certo distanciamento da Teoria de Arte desenvolvida


por Lenz, portanto, assumindo um estilo próprio.
Quanto ao uso da Teoria de Lenz, existia um distanciamento entre os croquis lenzia-
nos e a execução das obras nos devidos locais, o que esclarece o distanciamento entre teoria
e prática.
O fato de Gresnicht se considerar um artista moderado, aponta para a análise que
sua obra possua proximidade com a arte Nazarena, que possui certa afinidade com Lenz e
Wüger, pois ambos estiveram neste círculo.

33  Cfr.STANDAERT, 2011.


34  Id.
KLENCY KAKAZU DE BRITO YANG

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


ARQUIVO DE ST. MARTIN. Kunstschule zu Kunstarchiv Beuron. Fotográfica colorida, s.d. Acer-
vo pessoal de Hubert Krins, fev. 2019.
BROOKS, P. Notas Gerais. In: LENZ, D. The Aesthetic of Beuron and other writings. London:
Francis Boutle Publishers, 2002.
GALLERIA NAZIONALE D’ARTE MODERNA. I Nazareni a Roma. Roma: De Luca Editore, 1981.
KRINS, H. Introdução. In: LENZ, D. The Aesthetic of Beuron and other writings. London: Fran-
cis Boutle Publishers, 2002.
KRINS, H. La Scuola d’arti di Beuron. In: CASSANELLI, R. et al. Benedetto: léredità artistica.
Roma: Jaca Books, 2007.
LENZ, D. The Aesthetic of Beuron and other writings. London: Francis Boutle Publishers, 2002.
LUNA, J. Os monges beneditinos no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1947.
METKEN, G. Die Nazarener. Städen. Städelschen Kunstinstitut. Frankfurt, 1977, pp. 323-325.
SCHERER, Michael Emílio. D. Miguel Kruse: Abade do Mosteiro de São Paulo 1864-1929. Mu-
nique: Academia Beneditina Bávara (Mosteiro de São Bonifácio), 1963.
STANDAERT, F. L’école de Beuron: um essai de renouveau de l’art Chrétien à la fin du XIXc siè-
cle. Belgium: Éditions de Maredsous, 2011.
YANG, K. A Pintura beuronense na Basílica do Mosteiro Beneditino de São Paulo: 1914-1922.
Lisboa: Novas Edições Acadêmicas, 2017.

119
12
O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS
FRONTEIRAS NA HISTÓRIA DA ARTE

ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI*

* Professora de História da Arte na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(EBA – UFRJ).
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

O IMPRESSIONISMO NO BRASIL

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Q
uando se fala em Impressionismo, de imediato pensamos em Claude Monet, Ed-
gar Degas, Auguste Renoir, Alfred Sisley e demais pintores que se organizaram
em grupo e realizaram uma série de exposições coletivas em Paris nas décadas
de 1870 e 1880. Suas pinceladas aparentes, as cores claras, a pintura ao ar livre,
a percepção dos efeitos da luz natural e os temas da vida cotidiana se tornaram marcas do
movimento. De início sofrendo incompreensão por parte do público, ao final do século os
impressionistas receberam destaque em mostras oficiais de arte na França, como foi o caso
da Exposição Universal de 1900, na qual tiveram uma sala especial.
Desde a década de 1890, suas obras inspiraram artistas das mais diversas orienta-
ções, tanto franceses quanto de outras nacionalidades.1 Pintores brasileiros também clarea-
ram suas paletas, buscaram assuntos da vida cotidiana e adotaram a pincelada impressio-
nista. Quem foram esses artistas? O que sabiam sobre o Impressionismo francês?
Para responder a essas perguntas, é importante investigar como se deu a recepção do
Impressionismo nos periódicos nacionais no final do século XIX e início do XX. Nesse sentido,
realizamos junto com estudantes da Escola de Belas Artes da UFRJ uma pesquisa nas revis-
tas e jornais brasileiros de 1874 a 1929, procurando a palavra “impressionismo”. O acervo
consultado está disponível on-line na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.2

O IMPRESSIONISMO NA IMPRENSA BRASILEIRA ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX 121


Em 16 de novembro de 1878, o diário carioca Gazeta de Notícias publicou um ar-
tigo do escritor português Ramalho Ortigão (1836-1915) intitulado “Notas de Viagem. Os
Impressionistas”. Era a primeira vez que as palavras “impressionismo” e “impressionistas”
apareciam em um jornal brasileiro. O escritor se encontrava na França desde julho daquele
ano, e de lá enviara para a Gazeta, a cada mês, duas ou três crônicas com as notícias pari-
sienses. A crônica de novembro começava com sua declaração sobre a necessidade de falar
da “influência dos impressionistas.” Se não o fizesse, dizia ele, suas notas sobre a atualidade
da pintura em Paris ficariam incompletas.3 Àquela altura os impressionistas haviam realizado
três exposições coletivas (em 1874, 1876 e 1877). Diante de suas telas, o público se indig-
nava, “burgueses pacíficos, acompanhados de suas mulheres e de suas filhas”, rangiam os
dentes e pediam “a restauração da forca”, dizia o irônico Ramalho Ortigão.4
Citando o crítico francês Théodore Duret (1838-1927), o escritor apresentava uma
boa definição sobre a pintura impressionista, ao mesmo tempo em que explicava a reação
do público. Enquanto os artistas pintavam “do natural” e “exatamente, precisamente, rigoro-
samente aquilo que vêem,”5 o público esperava ver nos quadros aquilo que já conhecia. Não

1  Cfr. BONNET, 2019.


2  Disponível em bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Agradeço aos estudantes que me auxiliaram nessa pesquisa: em especial Rayane Ribeiro, da Universidade do Esta-
do do Rio de Janeiro; e também Beatriz Rosa Cavalcanti, Camila Lopes, Carolina Alves, Claudia Cardoso, Cristiano
Nogueira, Isabela Carneiro, Julio Reis, Natália Nicolich e Tássia Rocha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3  Ramalho Ortigão. “Notas de Viagem. Os Impressionistas”. Gazeta de Notícias, 16 de novembro de 1878, p.1.
4  Ibid: p. 1.
5  Ibid: p. 1.
O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS FRONTEIRAS NA HISTÓRIA DA ARTE

encontrando os procedimentos já vistos, tinha dificuldades para entender a nova pintura.


Não havia ilustrações nesse artigo de 1878. Assim, os leitores brasileiros tinham que
imaginar como seriam esses quadros nos quais os impressionistas pintaram “as cores que
procedem do contato direto dos raios luminosos, as que procedem dos reflexos comunicados
pela aproximação d’objectos diversamente coloridos, as cores primitivas, as cores compó-
sitas, as cores complementares, etc.”6 Os impressionistas, dizia Ramalho Ortigão, tinham
“olhos muito privilegiados por uma educação especial,” capazes de perceber que “ao ar li-
vre, certos reflexos, do arvoredo, das estradas brancas, da areia fulva, dão às cousas um tom
geral, que umas vezes é roxo, outras azul, outras cor de lilás.” Enfatizando a visão apurada
dos pintores, Ramalho Ortigão a contrapunha à falta de sensibilidade dos demais: “Quem
nota que o azul fica mais azul quando se aproxima da cor de laranja? [...] O público não tem
nunca essa delicada percepção ótica.”7
Vemos que o escritor estava bem informado quanto às recentes descobertas científicas
sobre o contraste simultâneo das cores complementares empregadas pelos impressionistas.
Seus artigos – incluindo a matéria sobre os impressionistas – devem ter agradado os leito-
res do jornal, pois foram reunidos no livro Notas de Viagem: Paris e a Exposição Universal
(1878-1879), publicado pela Gazeta de Notícias em 1879.
Nos anos seguintes, durante as décadas de 1880 e 1890, as menções ao Impressio-
nismo em jornais brasileiros foram raríssimas. Quando ocorreram, se resumiam a pequenos
comentários críticos sobre uma ou outra pintura vista em exposição, e em observações sobre
algum artista nacional que se aproximara da estética do Impressionismo, sempre com o in-
tuito de preveni-lo quanto aos perigos da novidade francesa.
A Gazeta Litteraria, por exemplo, publicou em junho de 1884 uma crítica à exposição
que Firmino Monteiro (1855-

122
1888) acabara de apresen-
tar no Rio de Janeiro, poucos
meses após retornar de via-
gem à Europa. No artigo, o
autor anônimo afirmava que
a temporada em Paris, onde
o pintor “assistiu exposições,
observou de perto obras dos
grandes mestres dos tempos
passados e das notabilida-
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

des de hoje”, o fizera admi-


rar a pintura de artistas “que
pintam com os dedos e dese-
nham por intuição, servindo- 1. Firmino Monteiro, Paisagem de Niterói, c. 1884. Óleo sobre tela, 41 x
-se do pincel como da faca”. 64.5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
A largueza e a liberdade de
fazer desses artistas, comple-
tava, “chamou-lhe a atenção e conduziu-o ao impressionismo, que [...] é tanto pantheon
como pode ser pelourinho.”8 Assim o crítico expressava sua desconfiança em relação ao

6  Ibid: p. 1.
7  Ibid: p. 1.
8  Anônimo. “Movimento Artístico”. Gazeta Litteraria, 13 de junho de 1884.
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

Impressionismo.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Firmino Monteiro era carioca, negro, de origem humilde, e morreu aos 33 anos de
idade. Não sabemos que tendências abraçaria se tivesse vivido mais. Porém, aos olhos de
hoje, nenhuma de suas pinturas não se identifica como impressionista. Possivelmente, o
crítico assim considerou algumas das telas em que Firmino usou cores claras e pintura es-
patulada, como Paisagem de Niterói, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes no Rio de
Janeiro.
A identificação do Impressionismo com o uso de cores claras se nota em outra crítica,
dessa vez elogiosa, datada de 1901, publicada na Gazeta de Notícias. Trata-se de maté-
ria sobre uma exposição que atraíra grande público ao ateliê de Antonio Parreiras (1860-
1937). Entre outras telas, A Prece foi elogiada e comentada como uma das obras “em que
o artista se afasta sensivelmente do seu feitio antigo, fazendo pintura larga e simples, com
boas tendências para o impressionismo. [...] A luz é clara, o horizonte foge e os tons claros
e leves dão à paisagem um efeito magnífico de verdade e graça.”9

123

2. Antonio Parreiras. A Prece, 1900. Óleo sobre tela, 240 x 400 cm. Museu Antonio Parreiras.

Essa tela de grandes dimensões, na qual se vê a comovente figura de um camponês


que está de pé diante de uma cruz de madeira à beira da estrada, não seria hoje em dia
classificada como impressionista. Supõe-se que foram as cores claras da pintura que leva-
ram o crítico a falar das “tendências para o impressionismo” nesse quadro de Parreiras.
Na verdade, no final do século XIX, observou-se um clareamento generalizado das
paletas por parte de artistas que assim adotavam algo do Impressionismo, sem no entanto

9  R. de C. “Cousas d’arte”. Gazeta de Notícias, 20 de abril de 1901.


O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS FRONTEIRAS NA HISTÓRIA DA ARTE

abandonar o desenho preciso e a nitidez dos contornos.10 Isso se deu tanto na França quanto
em outros países, e foi também o caso de Parreiras nessa tela de 1900. A associação dessas
obras de Firmino Monteiro e Antonio Parreiras ao Impressionismo é hoje discutível. Como
nesses dois casos, há muitas outras críticas nos jornais da época que ao classificar certas pin-
turas como impressionistas expõem a diferença de ponto de vista dos brasileiros de outrora
em relação aos de hoje. Nisso se percebe claramente que eram raros os que tinham visto
quadros impressionistas até o início do século XX.
Até então, o contato com o Impressionismo francês no Brasil se dava apenas através
de textos descritivos ou críticos sobre o movimento. Nas coleções públicas nacionais não
havia exemplares dessas pinturas. Somente em 1922, a Escola Nacional de Belas Artes, no
Rio de Janeiro, recebeu uma doação importante para sua pinacoteca, oferecimento da viú-
va do Barão de São Joaquim, na qual havia pinturas de impressionistas como Alfred Sisley
(1839-1899) e Armand Guillaumin (1841-1927), de pintores que participaram das exposi-
ções impressionistas como Albert Lebourg (1849-1928), de precursores do movimento como
Eugène Boudin (1824-1898), Félix Ziem (1821-1911) e Jongkind (1819-1891), assim como
de pintores da Escola de Barbizon como Henri Harpignies (1819-1916) e Charles Jacque
(1813-1894), conforme noticiava O Paiz em março de 1923.11
Para avançar em nossa análise, vale a pena apresentar uma visão panorâmica da
pesquisa realizada na hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital (BNDigital). O acervo de
periódicos aí disponíveis é muito amplo. Atualmente, para o período que vai de 1870 a
1929, a hemeroteca tem digitalizados mais de 3800 títulos de jornais e revistas, o que cons-
titui uma amostra representativa do universo de publicações.
Como foi dito, o primeiro periódico brasileiro a mencionar o Impressionismo foi pu-
blicado em 1878. A partir desse ano, cobrimos um período de seis décadas, sendo o último

124
jornal datado de 1929. O interesse de incluir os jornais até 1929 é poder averiguar como a
arte moderna, que entra em cena no início da década de 1920, influenciou a visão sobre o
Impressionismo entre os brasileiros. Vejamos, portanto, alguns dados coletados.
O material estudado foi organizado em duas tabelas. A primeira mostra simplesmen-
te o número de artigos que mencionam o Impressionismo em cada década.

TABELA 1 – Número de artigos que mencionam o Impressionismo em cada década

Décadas 1870 1880 1890 1900 1910 1920 TOTAL


Quantidade de artigos 1 4 1 6 14 21 47
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Há um total de 47 artigos de jornais que fazem menção ao Impressionismo nesse


período. Não são muitos. Mas se observa que a partir da década de 1910 a quantidade de
artigos aumentou significativamente. O número continuou crescendo na década de 1920,
porém com menor intensidade.
O aumento quantitativo reflete a aceitação que o impressionismo alcançou na déca-
da de 1910. “Renoir, Monet, Sisley, Pissarro, os mestres do impressionismo, os revolucioná-
rios de outrora, são hoje tão clássicos e tão estudados como o podem ser Velasquez, Ticiano

10  Cfr. BONNET, 2019.


11  Anônimo. “Uma galeria de arte e A ‘Sala de S. Joaquim’ na Escola de Bellas Artes.” O Paiz, 25 de março de 1923.
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

e Tintoretto.”12 Assim se referia aos impressionistas o catalão Alfons Maseras (1884-1939),

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


escrevendo para os leitores do jornal brasileiro O Paiz, em 1912. “Hoje, as telas dos im-
pressionistas [...] são admiradas em todos os museus do mundo, e os que as estudam têm
como dignos de serem imitados a sua técnica e os seus processos,”13 reforçava Maseras. De
malditos, os impressionistas passavam a ser modelos para os artistas em formação.
De que modo essa mudança afetou a apreciação dos brasileiros sobre o Impressionis-
mo? Vejamos uma segunda tabela que quantifica as apreciações favoráveis, as posições de
meio-termo, e as que expressavam desconfiança em relação ao Impressionismo, ao longo
das décadas.

TABELA 2 – As apreciações sobre o Impressionismo na imprensa brasileira

Décadas e apreciações 1870 1880 1890 1900 1910 1920 TOTAL


Favoráveis 1 2 9 14 26
Meio-termo 1 2 1 3 7
Desconfiança 3 1 2 4 4 14

Nota-se que antes de 1900, apenas o artigo assinado pelo português Ramalho Orti-
gão, em 1878, foi favorável aos impressionistas. Dos cinco artigos das décadas de 1880 e

125
1890, há quatro que desconfiam da validade do Impressionismo, e apenas um não é inteira-
mente contrário ao movimento. Este último foi publicado na Gazeta de Notícias em fevereiro
de 1884, por um crítico que se assinava L. S. e comentava as pinturas de Nicolau Facchinetti
(1824-1900), artista conhecido por suas paisagens extremamente detalhadas. L. S. afirmava
haver “nas suas minúcias alguma cousa que se rebela contra o que é verdadeiramente arte”,
pois um artista não deveria copiar detalhadamente tudo que se vê na natureza. Porém,
acrescentava que cair no extremo oposto era fazer impressionismo, o que seria um exagero.
Para ele, “entre o impressionismo e a meticulosa reproducção de cada uma das partículas
de um todo, há um meio termo apreciável.”14
Esse posicionamento em que se aconselha aos artistas um meio-termo continua a
aparecer nos jornais ao longo das décadas seguintes. Contudo, a partir de 1900, a posição
favorável à pintura impressionista começa a crescer. Na década de 1910, o número de críti-
cas positivas é duas vezes maior que o de críticas negativas. Essa tendência se firma na déca-
da de 1920, quando os artigos que elogiam o Impressionismo correspondem a 2/3 do total.
Não surpreende que as críticas favoráveis ao Impressionismo superem as negativas
a partir da década de 1910, pois os brasileiros passaram a aceitar essa pintura que já era
respeitada na Europa.
O que é curioso, no entanto, é o que se dá em relação às manifestações desfavorá-
veis. A quantidade de artigos contrários ao movimento permanece estável, mas a motivação
das críticas negativas mudou no decorrer das décadas.
No final do século XIX e na década de 1900, a desconfiança decorria da novidade do
Impressionismo. Falava-se dos exageros da nova pintura, e dos perigos de se descuidar do
desenho.

12  A. Maseras. “A pintura moderna. Do Impressionismo ao Futurismo”. O Paiz, 11 de maio de 1912.


13  Ibid: p. 1.
14  L.S. “Bellas Artes I”. Gazeta de Notícias, 6 de fevereiro de 1884.
O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS FRONTEIRAS NA HISTÓRIA DA ARTE

Ainda se observam críticas que temem os excessos do Impressionismo na década de


1910, mas passa a ser feita uma diferenciação entre os impressionistas de primeira hora,
autênticos, e seus seguidores no século XX que não seriam sinceros, querendo somente
parecer originais. Esses últimos fariam um “Impressionismo acadêmico”, uma arte exclusi-
vamente técnica, sem significação espiritual.15
Na década de 1920, aparecem comparações entre a pintura moderna de Tarsila do
Amaral e a “pintura mofina, de remanescentes do impressionismo.”16 Domesticado pelos
mestres da Escola Nacional de Belas Artes, esse seria um Impressionismo falso e tardio que
passava a ocupar a retaguarda artística. Artistas que reconheciam a importância do cubis-
mo, passavam a entender o Impressionismo como uma fase superada da pintura.17
De todo modo, como sinalizamos, durante essa década em que os modernistas já
atuavam na cena artística, os jornais publicaram muitas críticas elogiosas aos adeptos do
Impressionismo. Isso nos leva a novas perguntas: Que opiniões os artistas brasileiros mani-
festaram sobre os impressionistas? De que modo a aproximação que tiveram com o Impres-
sionismo aparece em suas obras?

OS IMPRESSIONISTAS BRASILEIROS

Quem foram os impressionistas brasileiros? Uma pergunta tão simples tem uma res-
posta bastante complexa.
Tomemos como ponto de partida a lista dos pintores que foram associados ao Im-
pressionismo nos artigos veiculados na imprensa entre 1878 e 1929.18 Essa lista soma um
total de onze nomes (vide tabelas 3, 4 e 5). Posteriormente, alguns caíram no esquecimento.

126
Por outro lado, há artistas que embora não tenham sido mencionados como impressionistas
naquele momento, foram incluídos em exposições que trataram do tema nos anos seguin-
tes.19 Em 1974, por exemplo, o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro,
comemorou o centenário do Impressionismo com uma exposição na qual, além de telas de
europeus, foram expostas obras de 19 brasileiros.20 Desses 19, apenas 7 coincidem com os
mencionados nos jornais estudados. O mesmo acontece quando verificamos uma exposição
mais recente, realizada em 2017 no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), intitu-
lada “O Impressionismo e o Brasil”.21 O curador Felipe Chaimovich selecionou obras de 10
pintores brasileiros, sendo que 6 constavam em nossa lista inicial. Essa primeira comparação
deixa evidente que não há consenso.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Quando cruzamos os dados dessas três instâncias (os periódicos e as duas exposi-
ções), a lista dos pintores impressionistas brasileiros soma 24 nomes. No entanto, desse
total, 13 são citados apenas em uma das três ocasiões (tabela 3). Outros 6 só aparecem em

15  T. M. “Artes e Artistas. Belas Artes”. O Paiz, nº 12.829. Rio de Janeiro, 25 de novembro de 1919, p. 5.
16  Anônimo. “Exposição Tarsila do Amaral”. Movimento Brasileiro, Agosto de 1929.
17  Angyone Costa. “Na intimidade dos nossos artistas”, entrevista com Henrique Cavalleiro. O Jornal, 26 de setembro
de 1926.
18  Nessa lista de artistas brasileiros estão incluídos aqueles de origem estrangeira que fixaram residência e atuaram
no Brasil.
19  Várias exposições trataram do Impressionismo no Brasil, mas para nosso argumento basta analisar as duas que
selecionamos e foram organizadas por importantes museus nacionais.
20  Cfr. MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, 1974.
21  Cfr. MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO, 2017.
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

duas instâncias (tabela 4). Por fim, apenas 5 aparecem tanto nos jornais quanto nas duas

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


exposições (tabela 5). São eles: Antônio Parreiras (1860-1937), Eliseu Visconti (1866-1944),
Navarro da Costa (1883-1931) e o casal Georgina de Albuquerque (1885-1962) e Lucílio
de Albuquerque (1877-1939). Os cinco são mencionados como impressionistas desde o
momento em que alcançaram reconhecimento artístico até os dias atuais. Vejamos então se
e como eles se manifestaram sobre os impressionistas, e de que modo a aproximação com
o Impressionismo aparece em suas obras.
Uma fonte importante sobre o que pensavam os artistas brasileiros é o livro “A inquie-
tação das abelhas” que reuniu uma série de 34 entrevistas publicadas na imprensa ao longo
de 1926. Navarro da Costa, embora mencionado na introdução, não consta entre os entre-
vistados pois estava fora do país. Porém, os demais pintores em foco – Parreiras, Visconti,
Georgina e Lucílio – foram entrevistados por Angyone Costa (1888-1954).
Ao entrevistar Visconti, Angyone comenta que observou num canto do ateliê “duas
telas de técnica diferente”, e pergunta ao pintor a qual escola se filiava. “Sou ‘presentista’.
A arte não pode parar,” respondeu Visconti. Inventando uma nova palavra – presentista
– explicava que assim se definia por ser “um pintor que pinta o presente, a moda da sua
época.”22
Nessa entrevista, Visconti não fez referência ao Impressionismo. Mais que isso, nota-
-se que não se filiava a escola alguma. Sua atitude reverbera na declaração que seu discí-
pulo Manoel Santiago (1897-1987) lhe escreveu quatro anos mais tarde: “Pinto sem ideias
preconcebidas de impressionismo, ou outra qualquer escola e nem de cousas sabidas.”23
Sublinhando a palavra “sabidas”, Santiago reforçava a ideia de que seu trabalho não era a
aplicação de uma teoria. Ambos os pintores desconfiavam da filiação a escolas, pois consi-
127
deravam que filiar-se a um movimento prejudicava a espontaneidade dos artistas.
Há ainda outro episódio que nos ajuda a entender a relação de Visconti com o Im-
pressionismo. Trata-se de outra carta, dessa vez escrita em março de 1936 pelo crítico de
arte Fléxa Ribeiro (1884-1971) que lhe informava estar preparando um artigo sobre o Im-
pressionismo no Brasil a ser publicado na revista Illustração Brasileira no mês seguinte. Fléxa
Ribeiro pedia que Visconti entregasse ao portador “um trabalho seu, dessa técnica” para ser
reproduzido em cores na revista.24 De fato, em abril de 1936, o artigo “A Revolução plás-
tica na arte brasileira” foi publicado. Nele o crítico enaltecia a arte de Visconti que “desde
1900, introduz, entre nós, as manifestações impressionistas.”25 A tela Os Garotos da Ladeira
ilustrava a matéria, com a indicação de que pertencia à coleção do pintor. Assim, vemos
que Visconti atendeu ao pedido de Fléxa Ribeiro e escolheu um de seus quadros “da técnica
impressionista” para ilustrar o artigo. Ou seja, embora não se filiasse ao Impressionismo, o
pintor reconhecia como impressionistas alguns de seus trabalhos.
Cores claras e pinceladas justapostas dão leveza a essa pintura em que se vê um
grupo de crianças subindo alegremente a ladeira indicada pela diagonal do muro de pedras
que divide o quadro em duas áreas. As figuras ocupam a parte inferior da tela, enquanto nos
dois terços superiores vemos a exuberância das folhas de bananeiras. Um menino encarapi-

22  Cfr. Angyone Costa, 1927, p. 81-82.


23  Manoel Santiago. Carta a Eliseu Visconti. Cauterets, França, 26 de agosto 1930. Arquivo do Museu Nacional de
Belas Artes, Rio de Janeiro.
24  Fléxa Ribeiro. Carta a Eliseu Visconti. Rio de Janeiro, 5 de março de 1936. Arquivo do Museu Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro.
25  Fléxa Ribeiro, “A Revolução plastica na arte brasileira”, Revista Illustração Brasileira, Abril de 1936.
O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS FRONTEIRAS NA HISTÓRIA DA ARTE

tado em cima do muro, e outras duas crianças, seguram redes para caçar borboletas. Uma
mulher no primeiro plano parece olhar para o pintor e carrega uma lata que veio encher
com água da bica. Esse detalhe registra as condições de vida da comunidade pobre do alto
da ladeira. O caráter geral, no entanto, não é de denúncia, embora se saiba que o primeiro
título desse quadro foi Os Deserdados.26
É interessante comparar esse trabalho de Visconti com o quadro Canto do Rio pintado
no mesmo período por Georgina de Albuquerque.27 Dezenove anos mais moça que Vis-
conti, Georgina poderia ter sido sua aluna. Talvez essa diferença de gerações explique seu
posicionamento tão diverso do dele. Quando Angyone Costa lhe perguntou: “E a arte que
a senhora faz, D. Georgina, que caráter tem?” A pintora respondeu: “Impressionista, que
é uma feição moderna, alguma cousa de novo na pintura. Foge inteiramente aos cânones
preestabelecidos. É tudo quanto há de mais movimentado, mais ensolado, menos calculado
e medido.”28

128
3. Eliseu Visconti, Garotos da La-
deira, c. 1928. Óleo sobre tela, 57
x 81 cm. Coleção privada, Rio de Ja-
neiro [P560].

Canto do Rio é construído a partir de manchas de cor e pinceladas soltas. Vemos duas
moças conversando, sentadas em torno de uma mesinha ao ar livre, tomando um refresco à
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

beira mar. Ao fundo se recorta o relevo das montanhas do Rio de Janeiro: o Pão de Açúcar
à esquerda e o Corcovado à direita, ainda sem a estátua do Cristo Redentor que seria ali
instalada apenas em 1931. A cena foi pintada em Niterói, nas proximidades da residência-
-ateliê de Georgina e de seu marido Lucílio de Albuquerque.
No relato a Angyone Costa, Georgina descreve como se deixava inspirar em suas
caminhadas: “Vou pela praia, encantada com a paisagem; deparo-me com uma criança,
paro, enterneço e me desinteresso pelo ambiente em redor. A minha sensibilidade é presa

26  Cfr. https://eliseuvisconti.com.br/obra/p560/


27  Agradeço a Thais Canfild por compartilhar comigo informações sobre Georgina de Albuquerque, pintora que ela
tem estudado sob minha orientação, preparando sua dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais (EBA-UFRJ).
28  Cfr. Angyone Costa, 1927, p. 88.
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

da graça, do movimento, da vibração infantil.”29

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


4. Georgina de Albuquerque,
Canto do Rio, c. 1926. Óleo sobre
tela, 76.5 x 105 cm. Museu Antônio
Parreiras, Niterói.

Georgina registrava o cotidiano que presenciava, tal qual Visconti que, em Garotos
da Ladeira, pintou uma cena que via se repetir diariamente na Ladeira dos Tabajaras, onde
129
morava. No entanto, se os dois artistas observavam o seu entorno, também é evidente que
a maneira como pintaram essas telas é devedora dos impressionistas franceses.
Mas vejamos o que se passou
com os outros dois entrevistados, An-
tônio Parreiras e Lucílio de Albuquer-
que. Curiosamente, Angyone Cos-
ta não lhes perguntou a que escola
se filiaram. Tampouco esses artistas
mencionaram o Impressionismo nessa
ou em outras oportunidades. Porém,
como Visconti e Georgina, usaram co-
res claras e pinceladas aparentes em
suas telas. Esse é o caso, por exemplo,
de Vieux parc, pintado em Paris por
Antônio Parreiras, ou de Trecho do Rio
de Janeiro de Lucílio de Albuquerque.
Aí reconhecemos o contato de
ambos com as pinturas impressionis-
tas. Mas nota-se uma grande dife-
rença quando comparamos as duas 5. Antonio Parreiras. Vieux parc, Paris, 1914. Óleo sobre tela,
obras entre si. Enquanto Parreiras nos 88.5 x 116.5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro
[658].
faz penetrar no misterioso bosque eu-

29  Ibid: p. 88.


O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS FRONTEIRAS NA HISTÓRIA DA ARTE

ropeu, Lucílio nos convida a alçar


voo na clara paisagem tropical,
cada um expressando sua indivi-
dualidade.
Resta tratar da pintura de
Navarro da Costa e sua classifica-
ção como impressionista. Vejamos
o quadro “Porto de Leixões” rea-
lizado em Portugal, provavelmen-
te na década de 1910. É um bom
exemplo das cores vibrantes e da
fatura larga que tanto agradaram
seus contemporâneos.
Navarro da Costa foi exal-
tado pela vivacidade de seus tra-
balhos. O escritor Julio Dantas
(1876-1962) chegou a dizer que
“poucas vezes a palavra ‘impres- 6. Lucílio de Albuquerque. Trecho do Rio de Janeiro, 1927. Óleo
sionismo’ […] se tem ajustado me- sobre tela, 133 x 160.5 cm. Museu do Ingá, Niterói [004229].
lhor ao processo dum pintor” como
no caso desse “intérprete maravilhoso do mar, capaz de fixar […] efeitos de luz e de côr que
variam a cada momento.”30 É curiosa, no entanto, uma declaração de Navarro da Costa
publicada em 1924 no jornal D. Quixote: “Tenho para mim que Baptista da Costa é o ‘lea-
der’ da paisagem nacional.”31 Ora, Baptista da Costa (1865-1926), então diretor da Escola

130
Nacional de Belas Artes, foi um pin-
tor muito distante do Impressionismo,
admirado por seu desenho acurado
na reprodução da natureza.
Na verdade, observando os
quadros de Navarro da Costa, per-
cebemos como seu desenho é mar-
cado, embora construído com áreas
de cor. Comentadores mais recentes
compreendem suas obras como de-
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

vedoras não apenas do Impressionis-


mo, mas também do Fauvismo. Essas
interpretações variadas indicam o ca-
ráter fluido da definição do Impres-
sionismo no Brasil.
Como vimos, não houve cons-
tância na seleção de pintores classifi-
7. Navarro da Costa, Porto de Leixões, 1914-31. Óleo sobre cados como impressionistas. As mu-
tela, 81 x 100 cm. Pinacoteca de São Paulo, São Paulo. danças de nomes, com alguns que
entram e outros que saem da lista,

30  Julio Dantas, “Um pintor brasileiro”, Correio da manhã, 7 de abril de 1918.
31  Anônimo, “Bellas-Artes”, D. Quixote, 3 de dezembro de 1924.
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

decorrem em primeiro lugar do fato desses brasileiros não terem criado um grupo à parte.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Afinal, participaram das exposições oficiais, exatamente como os demais artistas. Em segun-
do lugar, se devem ao ecletismo dos pintores que frequentemente mudavam de maneira.
Tais fatos levam muitos historiadores a afirmarem que não existiu Impressionismo no Brasil,
mas apenas seus reflexos.32
Recentemente, porém, outra perspectiva tem motivado os estudiosos que buscam
numa história da arte global formas de interpretar a arte dos países ditos “periféricos”.33 A
partir dessa perspectiva, abandona-se a ideia de que haja um modelo perfeito produzido na
Europa que sirva como pedra de toque para avaliar as obras de artistas que atuaram em
outras partes do mundo. No lugar de “modelo” a ser seguido, a ideia é do intercâmbio, do
contato que modifica, da convivência de diversas maneiras permeáveis que se comunicam.
As observações feitas até aqui nos fazem refletir sobre as diferenças entre teoria e
prática, questão fundamental para a história da arte. Se tentarmos encaixar a prática dos
artistas brasileiros na teoria mais aceita sobre o Impressionismo, ela não se encaixa. Mas
se pensarmos que o Impressionismo que existiu na prática difere da teoria estrita, ou ainda,
se pensarmos que não existe apenas uma teoria válida, mas várias ideias circulantes sobre
o Impressionismo, então podemos considerar que existiu Impressionismo no Brasil. Não se
pode negar que há pinturas brasileiras que só puderam existir porque o Impressionismo
francês atravessou fronteiras. O que os artistas fizeram a partir desse contato está aí para
contar histórias.

TABELA 3 – Impressionistas brasileiros mencionados em uma lista


131
Artistas Periódicos MNBA MAM-SP
1878 - 1929 Exposição Exposição

(1974) (2017)
1 Armando Vianna (Rio de Janeiro, 1897-1991) sim
2 Arthur Timótheo da Costa (Rio de Janeiro, 1882-1922) sim
3 Belmiro de Almeida (Serro, Minas Gerais, 1858 – Paris, 1935) sim
4 Carlos Oswald (Florença, 1882 – Petrópolis, RJ, 1971) sim
5 Edgard Parreiras (Niterói, 1885-1960) sim
6 Gastão Formenti (Guaratinguetá, SP, 1894 – Rio de Janeiro, 1974) sim
7 Gustavo Dall’ara (Rovigo, Itália, 1865 - Rio de Janeiro, 1923) sim
8 Guttmamm Bicho (Petrópolis, 1888 – Rio de Janeiro, 1955) sim
9 Manoel Santiago (Manaus, 1897 – Rio de Janeiro, 1987) sim
10 Paula da Fonseca (Rio de Janeiro, 1889-1961) sim
11 Pedro Bruno (Rio de Janeiro, 1888-1949) sim
12 Presciliano da Silva (Salvador, 1883 – Rio de Janeiro, 1965) sim
13 Príncipe Gagarin (Rússia, 1885 – Rio de Janeiro, 1980) sim

32  Cfr. COLI, 2017. Cfr. BRANCATO, 2018. Agradeço a João Victor Brancato com quem pude trocar ideias enquanto
preparava esse estudo, me ajudando a pensar sobre as formas de abordar o tema.
33  Cfr. Anjos, 2005.
O IMPRESSIONISMO NO BRASIL E AS FRONTEIRAS NA HISTÓRIA DA ARTE

TABELA 4 – Impressionistas brasileiros mencionados em duas listas

Artistas Periódicos MNBA MAM-SP


1878 - 1929 Exposição Exposição

(1974) (2017)
1 Antônio Garcia Bento (Campos dos Goytacazes, 1897- Rio de Ja- sim sim
neiro,1929)
2 Georg Grimm (Kempten, Alemanha, 1846 - Palermo, Itália, 1887) sim sim
3 Giovanni Battista Castagneto (Genova, Itália, 1851 – Rio de Ja- sim sim
neiro, 1900)
4 Henrique Cavalleiro (Rio de Janeiro, 1892-1975) sim sim
5 João Timótheo da Costa (Rio de Janeiro, 1879-1932) sim sim
6 Marques Junior (Rio de Janeiro, 1887-1960) sim sim

TABELA 5 – Impressionistas brasileiros mencionados nas três listas

Artistas Periódicos MNBA MAM-SP


1878 - 1929 Exposição Exposição

(1974) (2017)
1 Antônio Parreiras (Niterói, 1860 – 1937) sim sim sim
2 Eliseu Visconti (Salerno, Itália, 1866 – Rio de Janeiro, 1944) sim sim sim
3 Georgina de Albuquerque (Taubaté, 1885 – Rio de Janeiro, sim sim sim
1962)
4 Lucílio de Albuquerque (Piauí, 1877 – Rio de Janeiro, 1939) sim sim sim

132 5 Mário Navarro da Costa (Rio de Janeiro, 1883 – Florença,


1931)
sim sim sim

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, M. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.


BONNET, A. L’Institutionnalisation de l’indépendance. In: FAIZAND DE MAUPEOU, Félice;
MAINGON, Claire (Org.). Face à l’Impressionnisme. Réception d’un mouvement, 1900-1950.
Mont-Saint-Aignan: Presses Universitaires de Rouen et du Havre (PURH), 2019, pp. 75-88.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

BRANCATO, J.V.R. Crítica de arte e modernidade no Rio de Janeiro: Intertextualidade na im-


prensa carioca dos anos 20 a partir de Adalberto Mattos (1888-1966). Dissertação de Mestra-
do. Juiz de Fora: UFJF, 2018.
COSTA, A. A Inquietação das abelhas. (O que pensam e o que dizem os nossos pintores, es-
culptores, architectos e gravadores, sobre as artes plasticas no Brasil). Rio de Janeiro: Pimenta
de Mello & Cia, 1927.
COLI, J. Brasil e o impressionismo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 25 de junho de 2017. Dis-
ponível em http://www1.folha.uol.com.br.
MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO. O Impressionismo e o Brasil. São Paulo: MAM-
-SP, 16 mai a 27 ago 2017.
MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Reflexos do impressionismo. Exposição comemorativa
do 1° centenário do impressionismo (1874-1974). Rio de Janeiro: MNBA, 10 out a 3 nov
ANA MARIA TAVARES CAVALCANTI

1974.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


PEDROSA, M. Visconti Diante das Modernas Gerações. In: ARANTES, Otília (Org.). Acadêmi-
cos e Modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1998,
p. 41-114.

133
13
PIETRO MARIA BARDI ENTRE A ARTE E OS
LIVROS

MARIA LUIZA ZANATTA DE SOUZA*

* Arquiteta e doutora em História e Teoria da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU USP, pesquisadora
de Pós-doutorado pelo Programa de Pós-graduação em História da Arte da Universidade Federal de
São Paulo (EFLCH - UNIFESP) com patrocínio da CAPES (PNPD-2019).
MARIA LUIZA ZANATTA DE SOUZA

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


1. Pietro Maria Bardi e os livros. Créditos: Matéria sobre a Exposição Italiani sull’ Oceano, Milão 03/2016. Fonte:
https://blogs.oglobo.globo.com/milao/post/mostra-traz-historia-de-grandes-artistas-italianos-no-brasil.html
135

A
lém de passagens da vida e da trajetória de Pietro Maria Bardi (1900-1999) esta
comunicação tem por objetivo destacar a paixão deste profundo conhecedor das
artes pelos livros. A ideia de enaltecer seu apreço pela literatura artística decorre
do desenvolvimento da pesquisa de pós-doutorado sobre a Coleção de livros
raros do MASP, realizada entre 2014 e 2019. Neste estudo de exemplares pertencentes à
biblioteca do atual Centro de Pesquisa, tivemos a oportunidade de conhecer um pouco mais
a biografia de Bardi, apreciar a história da fundação do museu e da constituição de sua
biblioteca. Além disso, no arquivo documental do Centro de Pesquisa do MASP foi possível
observar a metodologia de trabalho deste jornalista e historiador da arte, sua maneira de
organizar as primeiras exposições do museu, de elaborar e redigir catálogos, artigos para
periódicos, revistas e jornais.
Neste encontro em que se propõe “pensar sobre fronteiras na história da arte do
ponto de vista da geografia, dos territórioqs físicos, da representação e invenção da paisagem,
cabendo refletir ainda, sobre a história da arte diante das fronteiras como divisões políticas,
nacionais, de espaços transponíveis ou intransponíveis: de muros que bloqueiam ou linhas
tênues que aproximam; territórios de fluxos de populações, cenários de migrações, corredores
de pessoas, ideias e objetos”1, parece ser oportuno refletir sobre os esforços de Pietro Maria
Bardi em promover o conhecimento da história da arte desde a sua chegada ao Brasil em
1947 até os seus últimos dias no MASP.
Posto isto, é importante ter em mente que a reunião de um dos maiores acervos ar-

1  Fonte: Premissas do evento XII Jornadas em História da Arte, 21-22 de agosto de 2019, Auditório da Pinacoteca do
Estado de São Paulo.
PIETRO MARIA BARDI ENTRE A ARTE E OS LIVROS

tísticos do pós-guerra em São Paulo ocorreu sob a coordenação deste italiano, natural de
La Spezia e sua rede de relações entre agentes culturais de grande importância no circuito
artístico mundial. Bardi não apenas executou essa tarefa, mas criou o museu-escola com
cursos pioneiros nas áreas do desenho industrial, fotografia, cinema, paisagismo, entre ou-
tras modalidades, e uma revista decisiva de arquitetura e artes visuais, chamada Habitat2.
No entendimento de Pietro Maria Bardi:

[A arte é trabalho, produção, instrumento de vida e de civilização. A cultura é expressão e


trabalho, linguagem e história, imaginação e ação. A forma de expressão, isto é, quando
realizada especificamente, é constante em todas as épocas e lugares, tanto nas grutas de
Altamira quanto nos quadros de Ticiano ou nas figuras de Matisse. No plano histórico da
cultura de expressão, não existem privilégios ou hierarquias, não há lugar para a cristaliza-
ção e as fascinações literárias. Uma Vênus paleolítica contém, as vezes, tanta energia huma-
na quanto a Vênus de Milo. A obra fecunda de inteligência humana nunca se paralisa. Ela
continua e constitui um eterno recomeçar. Desvinculada da ilusão classicista, a arte expõe a
sua verdadeira face e seu significado autentico, humano e popular]3.

BARDI E A “MANIA DE SER JORNALISTA”

Pietro Maria Bardi  (La Spezia,  21


de fevereiro de 1900 — São Paulo, 10 de
outubro  de  1999) foi jornalista, historia-
dor e crítico de arte, marchand, colecio-

136
nador, expositor, negociador de obras de
arte, museólogo e professor (figura 2). Ao
lado de  Assis Chateaubriand foi respon-
sável pela fundação do Museu de Arte de
São Paulo  (MASP) onde ocupou o cargo
de diretor por 45 anos consecutivos. O
início de sua atividade jornalística se deu
perto dos 17 anos de idade, época em
que trabalhou no Giornale di Bergamo. 2. Pietro M. Bardi numa das aulas de história da arte para
monitores do museu. Fonte: Tentori, Francesco, “P.M.Bardi”, São
Em 1924 passou ao jornal Il Secolo, e pos- Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1990; p.189.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

teriormente tornou-se redator do Corriere


della Sera em Milão. Atuou como dirigen-
te cultural de grande autoridade, no início dos anos trinta, período em que desenvolveu a
Galleria d’Arte de Roma (1930-33).
Escrever se tornou uma de suas principais ocupações: editou revistas que promove-
ram a arquitetura moderna e a vanguarda artística na Itália. Quando chegou ao Brasil em
1946, era reconhecidamente um nome de projeção internacional no campo das Artes e da

2  Conforme destacado no 1º Simpósio Internacional Pietro Maria Bardi organizado em setembro de 2011 pela UNI-
FESP com o auxílio da FAPESP, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, o Instituto Moreira Salles https://simposiobardi.wordpress.
com/2011/08/30/fotografias/.
3  In: “Relatório de Pietro Maria Bardi, diretor, no Congresso Internacional dos Museus realizado na cidade do México
em novembro de 1947”. Centro de Pesquisa do MASP, Acervo documental, Exposição didática B – 1947, pasta relatório;
pesquisa de Maria Luiza Zanatta, junho de 2019.
MARIA LUIZA ZANATTA DE SOUZA

Arquitetura. Em uma entrevista ao programa Roda Viva em 3/11/1986, perto de completar

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


seus 87anos, além de resgatar a importância de Assis Chateaubriand, Bardi relata os obs-
táculos que enfrentaram juntos para compor um dos mais importantes acervos de arte da
América Latina. Ele recorda, entre outras coisas, que o início de sua carreira de escritor se
deu quando ainda era jovem e salienta uma de suas últimas publicações:

[De lá para cá, fiz muitas coisas, e a última justamente é esse livro, 40 anos de Masp, que
é uma reportagem sobre todo esse trabalho, que fiz unicamente com o Chateaubriand, até
que o Chateaubriand foi vivo, e depois me botei nos ombros este museu, que ainda hoje
está, de vez em quando publico algum livro, nunca perdi o vício, a mania de ser jornalista...
e na revista Senhor, depois de anos, eu faço cada semana uma página]4.

De acordo com seu biógrafo TENTORI5, Pietro Maria Bardi foi um autodidata que cur-
sou até a 3ª série primária. Seus conhecimentos e sua elevada cultura são associados aos
livros que ele colecionou ao longo da vida. Foram os livros que lhe deram sempre todo o
suporte necessário para executar suas tarefas como jornalista e alimentaram seu interesse e
estudos no campo da estética e das artes, resultando em inúmeras publicações6.
A partir do Belvedere – Giornale d’Arte Bardi teve sua atenção voltada à Arquitetura,
iniciando assim, uma coleção de livros sobre o tema onde certamente situam-se boa parte
das obras raras encontradas atualmente na biblioteca do museu: observam-se tratados de
Arte e Arquitetura pertencentes aos séculos XVI, XVII e XVIII.
Na década de 30 publicou o insigne Rapporto sull’ Architettura e fundou a revista
Quadrante7, tornou-se um colaborador da revista L’Architecture d’Aujourd’hui e represen-
137
tou a Itália, no Congrés International d’ Architecture Moderne, em Atenas 1933. Portanto,
quando chegaram à São Paulo em 1947, Pietro Maria Bardi e a arquiteta Lina Bo Bardi em
meio às obras de Arte traziam uma extensa biblioteca com títulos colecionados e expostos
no Studio d’arte Palma em Roma, em maio de 1945 (figura 4):

“No Studio d’ Arte Palma, exposições e conferências de arte e arquitetura, coleções de livros
e selos raros e um gabinete de restauração exprimiam a tese da unidade fundamental entre
todas as artes”8.

Uma vez instalado no país, Bardi manteve o velho hábito de encomendar ao seu
livreiro florentino livros que julgava interessantes, quer por se tratarem de exemplares ra-
ríssimos ou por apresentarem ligação direta com o acervo do Museu de Arte de São Paulo
Assis Chateaubriand, para que pudessem auxiliá-lo em estudos, pesquisas, avaliações, pu-
blicações de artigos; e, ao longo dos anos, foi transferindo parte dos exemplares de sua casa
ao museu (figura 3).

4  Ver na íntegra a transcrição em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/295/entrevistados/pietro_maria_bar-


di_1986.htm; acesso 27/07/2019.
5  TENTORI, Francesco. P.M. Bardi. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1990, p.187.
6  Na entrevista anteriormente mencionada, fala-se que Bardi publicou até 1992, 50 livros - ver nota 3.
7  Quadrante, revista de arquitetura e cultura editada em Milão entre maio de 1933 e outubro de 1936, fundada e
dirigida por P.M. Bardi e Massimo Bontempeli. Ela se firmou como principal veículo de divulgação da arquitetura racio-
nalista italiana, na qual projetos de Giuseppe Terragni, BBPR, entre outros, foram reproduzidos ao lado dos grandes
arquitetos europeus como Le Corbusier, Walter Gropius e Mies van der Rohe.
8  BARDI, P. M. História do Masp. São Paulo: Editora Instituto Quadrante, 1992, p.50.
PIETRO MARIA BARDI ENTRE A ARTE E OS LIVROS

138 3. Casa de Vidro – Projeto Lina Bo Bardi


(1951). Fonte:https://casasbrasileiras.ordpr
ess.com/2010/09/23/a-casa-de-vidro-lina-
-bo-bardi/

O MUSEU, A BIBLIOTECA E OS LIVROS.


XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Uma das iniciativas realizadas pelo Museu e que constitui a sua característica é o setor di-
dático. Os entendimentos em virtude dos quais o Museu surgiu, sob a inspiração do Sr. Assis
Chateaubriand, diretor dos ‘Diários Associados’, não eram apenas timidamente museoló-
gicos no sentido tradicional: o Museu não deveria constituir um local de mera satisfação da
curiosidade, mas um centro de cultura viva. Cada obra que enriquece o Museu não pode
ser abandonada em seu isolamento casual, mas deve ser situada no conjunto do processo
histórico pelo qual é expressa, moldada e amadurecida, se desejarmos que ela revele todo
o mundo que encerra. Surge assim, a ideia de criar uma seção didática ampla, móvel e
permanente. Tendo sido impossível materializar essa ideia no Brasil, encarregou-se de sua
execução o ‘Studio de Arte Palma’ de Roma9.

9  In: Relatório de Pietro Maria Bardi, diretor, no Congresso Internacional dos Museus realizado na cidade do México
em novembro de 1947. Centro de Pesquisa do MASP, Acervo documental, Exposição didática B – 1947, pasta relató-
MARIA LUIZA ZANATTA DE SOUZA

O referido estúdio italiano ti-

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


nha aproximadamente 600 m2, cerca
de 20 ambientes: entrada, chapela-
ria, dois locais de serviços, presidên-
cia, diretoria, secretaria, 3 salas ex-
positivas, dois depósitos de quadros,
dois gabinetes de restauro, dois la-
boratórios de fotografia, laboratório
de radiografia, marcenaria, sala dos
desenhistas e sala de arquitetura. E
ao que tudo indica, não havia um lo-
cal especifico para a biblioteca, mas
observa-se a presença de livros em
pelo menos duas das salas anterior-
4. Studio d’Arte Palma - Galeria Bardi, década de 1940. Foto:
Desconhecido - Arquivo do Centro de Pesquisa do MASP.
mente descritas (figuras 4 e 5).
E em um artigo para revista
“Arts. Beaux-Arts, Littérature, Spec-
tacles”, encontramos a seguinte de-
scrição do Studio de Bardi:

[Le ‘Studio d’ Arte Palma’ de Rome est


une organization bien singulière. De
grandes salles, de grandes fenêtres,
139
de grandes tables, des appareils de
tout genre, artistes et artisans qui se
penchent sur des tableaux, les rentoi-
lent, les nettoient, les restaurent, les
radiographient, les photographient
et les classifient. Lieu vraiment sur-
prenant qui tient presque autant de
la clinique que de la galerie d’art et
c’est em effet une clinique: celle des
5. Studio d’Arte Palma - Galeria Bardi, década de 1940. Foto: tableaux malate `’ qui l’on redonne
Desconhecido - Arquivo do Centro de Pesquisa do MASP.
vie, santé et fraîcheur. Si ce n’est pas
à base de pénicilline que s’ accom-
plissent ici les miracles, c’est tout de même à l’aide des plus avancés de la physique et de
la chimie. [...] Même les meubles ancien set rares viennent aussi traités à la Palma. [...] La
section du livre est ele aussi une section vive et dynamique. [...] Trois grandes salles sont à
Palma dediées aux expositions. Le programme de celles-ci est des plus vastes et varié]10...

Por sua vez, destaca-se de um catálogo elaborado pelo próprio Studio:

[O Studio d’ Arte Palma adquire livros de arte, com especial atenção às fontes documentais,

rio; pesquisa de Maria Luiza Zanatta, junho de 2019.


10  Galerie d’art nouvelle formule. Trata-se de um artigo datilografado para a revista Arts. Beaux-Arts, Littérature, Spec-
tacles conservado junto ao Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi.
PIETRO MARIA BARDI ENTRE A ARTE E OS LIVROS

tratados gerais e monográficos, dicionários, catálogos. Compra de bibliotecas inteiras, livros


científicos em geral, incunábulos, livros com figuras do século XV e XVI, bibliografias, livros
iluminados]11.

6. Em Roma, no Studio d’Arte


Palma, está-se trabalhando
ativamente na preparação do
material que figurará na pri-
meira Mostra Didática para os
cursos de História da Arte que
o Museu de Arte, organizado
pelos “Diários Associados”,
franqueará ao público de São
Paulo, 1947. Foto: Desconhecido
- Arquivo do Centro de Pesquisa
do Masp.

Portanto, ao lado das atividades expositivas o Studio Palma também oferecia, graças

140
à modernidade de meios técnicos de seus laboratórios, importantes serviços de expertise,
radiografia, diagnostica e restauro de obras de arte mas também reproduções de exempla-
res artísticos e a biblioteca fomentava certas atividades (figura 6)12. De modo geral, isto tudo
representava um convite ao conhecimento da arte antiga, em linha com as posições expres-
sas por Bardi em Stile e a favor de um novo gosto, além da promoção de um colecionismo
e do comercio, tanto da arte contemporânea, como da arte antiga, em que os pressupostos
eram a educação, competência e sobretudo disponibilidade de instrumentos técnicos ade-
quados13.
Com o apoio do Studio de Arte Palma e sob a direção de Bardi foram organizadas
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

11  POZZOLI, Viviana. Especialização a Universidade de Estudos de Milão. Scuola di Specializzazione in Beni Storici
Artistici, 2012, p. 30, nota 72 (exemplar da Biblioteca do Centro de Pesquisa do MASP).
12 Idem, Ibidem, p. 30: “Dentro da perspectiva se deve considerar a possibilidade que no projeto do Studio d’Arte Pal-
ma tenha tido alguma importância a experiência do Istituto Centrale di Restauro, que sob a direção de Cesare Brandi
definem novas e modernas metodologias de restauro sobre bases cientificas, superando definitivamente o tradicional
conceito de restauro empírico em uma ótica multidisciplinar de colaboração entre historiador da arte, arqueólogos
e restauradores, com o suporte indispensável dos laboratórios científicos. A sede do ICR, inaugurada em 1941, foi
apresentada no Stile com a assinatura “L’Antico e noi” em dezembro de 1942, como exemplo de civilidade”.
13  Idem, Ibidem, p.7: “[A reconstrução do perfil do Studio d’Arte Palma permitiu definir a natureza da organização do
mercado artístico e tem colocado em luz seu caráter inédito. Emerge de fato como o projeto de Bardi si diferenciasse
daquele de uma tradicional galeria de arte, ou de outras realidades ativas na cena italiana e internacional, tendo raí-
zes, impostações e objetivos teóricos e comerciais muito diferentes encontrando sentido no tecido cultural e mercantil
do País, aproximando-se como um organismo em condições de sondar os problemas e de criar e organizar a cultura
artística e de promover a arte nacional]”.
MARIA LUIZA ZANATTA DE SOUZA

as chamadas Exposições didáticas

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


(figura 7) 14, cujo principal objetivo
era traçar um panorama da Histó-
ria da Arte e reconstruir, por meio
de uma técnica expositiva eficien-
te, a própria noção da evolução da
criatividade humana. Ele imagina-
va que “o museu deveria funcionar
como um centro dinâmico, onde a
arte e a cultura pudessem atrair as
pessoas para as exposições periódi-
cas e para os cursos de capacitação
promovidos pelo setor educativo (es-
colas) do museu”15.
Em um pronunciamento inti-
tulado “As Mostras didáticas” apre-
7. Detalhes de painéis sobre arte Colonial Brasileira e resumo
sentado no Congresso Internacio- explicativo da arte Contemporânea nas Exposições Didáticas,
nal de Museus na cidade do México, 1947. Foto: Desconhecido - Arquivo do Centro de Pesquisa do MASP.
em 1947, Bardi afirma:

“Para realizar estas mostras faz-se mister, antes de mais nada, encontrar o material neces-
sário. O “Studio de Arte Palma” – através de correspondentes – organizou uma coletânea
orgânica, reunindo cerca de vinte mil reproduções em branco e preto e duas mil em cores,
141
coloridas a mão. [...]. Os melhores resultados serão alcançados no dia em que formos capazes
de nos colocar de um modo diferente. O observador da arte deveria coincidir com o modo de
ver próprio dos artistas e ser apto a colher e expor as relações que ligam uma forma a outra e
um ciclo de formas à outro”16.

Desta maneira, o objetivo das mostras didáticas não deveria limitar-se a uma exibição
de obras primas, cristalizadas no tempo e consagradas como um altar poeirento dentro de
museus, mas ao contrário, seu alvo principal era persuadir os homens da profunda intimi-
dade que unifica as artes à vida cotidiana.

Com um conjunto de iniciativas, múltiplas, variadas e em curso de completo aperfeiçoa-


mento, que o Museu de Arte de São Paulo tenciona estabelecer as bases para uma nova
compreensão ligando o público à arte isto é, ligando a milhões de pessoas que formam o
público e os poucos indivíduos que, por uma condição especial ou particular da natureza
e da sociedade, têm aberto diante de si os caminhos da sensibilidade artística. Já foram

14 POLITANO, Stela. Exposição didática e vitrine das formas e a didática do Museu de Arte de São Paulo. Dissertação de
Mestrado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2010. Disponí-
vel em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279111.
15  “Para completar o caráter didático do Museu de Arte, foi criado o Instituto de Arte Contemporânea. O objetivo de
formar um público para as artes foi plenamente alcançado, tendo concorrido para isso o apoio constante da rede dos
diários Associados”, BARDI, P. M. História do MASP. Op. Cit., p.84.
16  As Mostras Didáticas. In: Relatório de Pietro Maria Bardi, diretor, no Congresso Internacional dos Museus realizado
na cidade do México em novembro de 1947. Centro de Pesquisa do MASP, Acervo documental, Exposição didática B –
1947, pasta relatório 3; grifo nosso.
PIETRO MARIA BARDI ENTRE A ARTE E OS LIVROS

preparados três ciclos de mostras didáticas17 encobrindo-se já em pleno funcionamento o


primeiro período, nas salas especiais do Museu, inaugurado a 2 de Outubro de 1947.

Observa-se que aos poucos, concomitantemente à atividade das mostras didáticas, ia


sendo construída toda a estrutura necessária para completar os dados informativos de cada
estudo. Contando ainda com uma coleção de diapositivos para serem utilizados em confe-
rências e lições que iam sendo confeccionados pela seção de chapas do ‘Studio d’Arte Palma’
de Roma, que possuía material selecionadíssimo e ao mesmo tempo novas coleções conti-
nuamente eram anexadas. E,
paralelamente, ia sendo for-
mada a própria biblioteca do
museu, rica e especializada,
mas de grande importância
para o desenvolvimento das
inúmeras atividades da insti-
tuição. Verificam-se entre as
correspondências de Bardi
e seus colaboradores18, so-
licitações para aquisição de
títulos para a biblioteca no
Brasil.
A biblioteca do MASP
atualmente possui cerca de
68400 exemplares entre li-

142
vros, catálogos, revistas, bo-
letins e raridades; ela nas-
ceu junto com a fundação 8. Sr. Pietro Maria Bardi, diretor do museu de Arte de São Paulo e sua
do museu e sua coleção de esposa, Lina Bo Bardi, 1955. Foto: Desconhecido (Menção Agence Intercon-
obras raras faz parte de um tinentale A.F.P) - Arquivo do Centro de Pesquisa do MASP.
núcleo inicial que foi doado
pelo casal19, Pietro Maria e Lina Bo Bardi, em 1977, (figura 8) por ocasião do 30º aniversário
do museu, sendo uma das mais ricas na área de História da Arte e da Arquitetura existentes
no Brasil, onde se incluem mais de quatrocentos e cinquenta títulos raros.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

17  Estes ciclos são os seguintes:


1. Uma mostra geral e sintética que constitui uma espécie de alfabeto da história da arte; das primeiras manifestações
do espirito figurativo às expressões mais recentes. Acha-se montada em oitenta e quatro painéis, pensados entre
dois cristais, apoiados a uma estrutura facilmente desmontável de tubos de alumínio.
2. Uma mostra especial que abrange o período entre a pré-história e o apogeu da cultura artística mediterrânea, isto
é, Grécia e Helenismo; trata de todos os aspectos da arquitetura, da pintura, escultura, artes decorativas, técnica e
instrumentos, ao lado de motivos de grande alcance histórico (desenvolvimento do conhecimento, da ciência e da
economia) e é feita com citações precisas e incisivas, trata concomitantemente das grandes culturas primitivas e
barbaras que lhe são enxertadas morfologicamente.
3. Uma terceira mostra especial que compreende a Itália pré-romana, Roma, a civilização latina, o advento do Cristia-
nismo, a Idade Média europeia e, ao lado destas as grandes culturas monoteístas, cujas influências convergiram na
formação da Europa: Israel, Pérsia e Islam”.
18 Foram colaboradores e sócios de Bardi no Studio de Arte Palma: o restaurador Mario Modestini; Francesco Monotti
e o antiquário Manlio Goffi.
19  “A biblioteca do Museu, doada por Lina e por mim em 1977, reúne livros raros, centenas de catálogos, fotografias e
outros documentos importantes”; BARDI, P. M. História do MASP. Op. Cit., p.119.
MARIA LUIZA ZANATTA DE SOUZA

Pudemos observar durante a pesquisa

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


que Bardi era, não apenas um grande colecio-
nador, mas também um bibliófilo que costu-
mava fazer anotações às margens dos títulos.
Apesar de seu comprovado interesse pela Ar-
quitetura Moderna - elemento central de seu
ideário e da sua atividade jornalística e cultural,
especialmente durante os anos em que esteve
na Itália - o grande número de tratados artísti-
cos encontrados atualmente no acervo da bib-
lioteca do museu nos fazem refletir sobre uma
genuína atração pelas doutrinas arquitetônicas
(figura 9).
Em nossas pesquisas de mestrado em
2006 e doutorado em 2011 tivemos acesso à
biblioteca do MASP, verificando a existência de
livros raros e importantíssimos no que se refere
à produção, apreciação e a avaliação das obras
de Arte e Arquitetura.
A partir de 2014, desenvolvendo a pes-
quisa de pós-doutorado, passamos a analisar
com maior cuidado um pequeno conjunto de
títulos, previamente selecionados. Buscando
143
confirmar sua autenticidade e relevância para
o estudo da arquitetura e da teoria artística e 9. Pietro Maria Bardi no lançamento da camise-
a “unicidade” das obras em função da presen- ta do MASP, 1989. Foto: Desconhecido - Arquivo do
Centro de Pesquisa do MASP.
ça de anotações marginais, feitas pelos antigos
proprietários (tornando esses livros ainda mais
raros) (figuras 10 e 11).

10. Bardi entre obras do Masp, em 01/10/1987. 11. Bardi admira escultura no Masp, 2/11/1986. Cré-
Créditos de Imagem: Juvenal Pereira, Estadão. Fonte: ditos de Imagem: Juvenal Pereira, Estadão. Fonte: https://
https://acervo.estadao.com.br/noticias/personalida- acervo.estadao.com.br/noticias/personalidades,pietro-
des,pietro-maria-bardi,11588,0.htm -maria-bardi,11588,0.htm
PIETRO MARIA BARDI ENTRE A ARTE E OS LIVROS

Ter acesso ao arquivo documental do Centro de Pesquisa do MASP permitiu ainda a


abertura de novos horizontes, no sentido não apenas de compreender essa fase inicial da
fundação do museu, mas também de conhecer a metodologia de trabalho deste jornalista e
historiador da arte, acompanhando mais de perto seus incansáveis esforços para promover
o entendimento da Arte. Apesar da distância de mais de sete décadas da chegada de Pietro
Maria Bardi ao Brasil, acreditamos ser importante não apenas assinalar sua paixão pelos
livros mas também destacar sua grande contribuição no sentido de enxergar as linhas tênues
que nos aproximam das Fronteiras da Arte.

144
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019
14
O BRASIL NA ESPANHA
EXPOSIÇÕES ARTÍSTICAS COMO PROCESSOS
DE INTERNACIONALIZAÇÃO
PAULO H. DUARTE-FEITOZA*

* Professor de História da Arte e da Imagem na Faculdade de Artes Visuais (FAV)/Universidade Federal


de Goiás (UFG).
PAULO H. DUARTE-FEITOZA

H
á algumas décadas que a disciplina da História da Arte vem sofrendo uma série de
mudanças; desde a inclusão de narrativas mais socioculturais na década dos anos
1970, dentro da chamada Nova História da Arte, até a própria anunciação de seu
fim. É no marco desta crise que uma História das Exposições vem ganhando força
dentro dos estudos da arte contemporânea.
Em 1968 Lawrence Alloway publicou um estudo capital sobre a Bienal de Veneza e,
em 1982, Walter Grasskamp fez o mesmo sobre a documenta de Kassel representando um
dos primeiros estudos sobre a História das Exposições. Embora estes sejam estudos originais
e importantes, é no marco do processo de globalização cultural, e do boom de megaexposi-
ções temporárias que vem acontecendo desde o início do século XXI, que o interesse nestes
estudos aumentou de forma exponencial. Neste marco, o historiador da arte estadunidense
Bruce Altshuler publicou em dois volumes (2008 e 2013) sua Exhibitions that made Art His-
tory que apresentava uma seleção de exposições celebradas no eixo euro-americano desde
1863 até a contemporaneidade.
No entanto, parece haver consenso em que uma abordagem mais metodológica e
sistemática da história das exposições aconteceu de forma recente, há uns 20 anos, com a
publicação da coleção Exhibitions Histories, da editora inglesa Afterall. Em qualquer caso,
cabe afirmar que o fato mais importante é que o estudo historiográfico das exposições ainda
está em lenta e constante construção.
No Brasil, recentemente surgiram publicações que são importantes mencionar: pes-
quisadores como Lisette Lagnado, Mirtes Marins de Oliveira e Fabio Cypriano têm apresen-
tado trabalhos importantes como o recente livro Histórias das exposições / Casos exemplares
(2016); também a publicação Histórias da Arte em Exposições: modos de ver e exibir no Brasil
(2016) organizado por Ana Cavalcanti, Emerson Dionísio de Oliveira, Maria de Fátima Mo-

146
rethy Couto e Marize Malta fruto do colóquio de título homônimo, celebrado em 2014.
A História das Exposições é interessante em tanto que discursos e narrativas, e, neste
sentido, nos interessa como a arte brasileira tem sido explicada através de suas exposições;
por seus atores internos e externos.

***

Entre 2003 e 2014 o Brasil viveu um período de bonança econômica como nunca
imaginara propiciando um contexto muito fértil que foi aproveitado para expandir interna-
cionalmente suas culturas e artes. Financeiramente, os números orçamentários destinados
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

à cultura aumentaram de forma exponencial tanto na esfera municipal, estadual e federal


(Santi, 2015; IBGE, 2014). O Brasil não abandonou o seus estereótipos, mas diversificou sua
imagem e sua presença internacional para impulsar e dar visibilidade a muitos aspectos de
sua cultura além da fórmula MPB, futebol e carnaval. Por outro lado, a lenta e progressiva
inclusão econômica, social e educativa de classes historicamente violentadas e vulneráveis,
transformou radicalmente as formas de explicar os brasis em todas as suas formas culturais.
Neste contexto, contata-se que a recente proliferação de exposições de arte brasileira
pelo mundo é inédita. É possível mapear exposições em todo o continente americano sem
contar as inúmeras exposições realizadas na Europa que culminaram com o Brasil partici-
pando, na Bélgica, como convidado do festival Europalia1 (2011-2012). Durante a última dé-

1  Europalia é um festival internacional que acontece a cada dois anos na Bélgica para celebrar o patrimônio cultural de
um país convidado. Inaugurado em 1969, foi concebido para ser um festival cultural multidisciplinar.
O BRASIL NA ESPANHA

cada, o Brasil apostou por diversificar a sua imagem num contexto completamente diferente

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


ao de começos do século XX. As novas e diversas poéticas inauguradas por esse novo Brasil,
em todas as suas formas, literatura, cinema, teatro, música, artes visuais, etc., conjugaram
uma nova visão do e sobre o Brasil. No entanto, trata-se de visões, de narrativas, que se
constroem dentro do sistema cultural global, onde podem ver-se afetadas pela cultura local
que as apresenta. Tratando de pensar as fronteiras da História da Arte, este texto propõe
discutir algumas exposições inauguradas na Espanha que contribuíram com a internaciona-
lização de seus artistas atravessando a fronteira simbólica do Brasil para o mundo.
A partir da constatação de que a presença internacional da arte brasileira foi inédita
durante as últimas décadas, gostaríamos de pensar algumas exposições realizadas na Es-
panha que representaram uma porta de entrada que auxiliou sua difusão pelo continente
europeu.

***

A arte brasileira viveu nos anos 50 um terremoto de características colossais, susci-


tando uma revolução copernicana nas artes visuais. Aquela necessidade de criação de uma
arte nacional, que condicionou boa parte das produções culturais de começo do s. XX, viu-se
alterada apostando por uma vontade de dialogar diretamente com as questões intrínsecas à
arte moderna e contemporânea internacional. Vale lembrar aqui o impacto que as primeiras
edições da Bienal Internacional de São Paulo causaram ao meio artístico local. De alguma
maneira, as Bienais colocaram os artistas locais em contato com os mais diversos autores da
cena internacional. Por outro lado, estas deslocações de artistas e obras provocaram tam-
147
bém “encontros” que nos levaram a uma estética do glocal.
Desde o início do século XXI houve uma proliferação gigantesca de arte brasileira
na Espanha (Duarte-Feitoza, 2019). Nestas mais diversas mostras, escolhemos discutir aqui
somente algumas delas, por seu discurso, instituição acolhedora ou importância historiográ-
fica. Em primeiro lugar, é importante dizer que a revisão das narrativas dominantes da arte,
a inclusão de artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape e a recente importância
de Tarsila do Amaral na cena internacional supôs uma reestruturação dos relatos globais da
arte moderna e contemporânea. Em segundo lugar, que artistas como Ernesto Neto, Cildo
Meireles, Adriana Varejão, Rosângela Rennó, Beatriz Milhazes, entre outros, são hoje, re-
conhecidos pela crítica de arte internacional e que todos participaram, de uma maneira ou
outra, em mostras na Espanha. Os desdobramentos, finalmente, são múltiplos.
Em 2005, pela primeira vez na Europa, a Fundação Cartier e o Domus Artium 2002
apresentaram na cidade de Salamanca a maior exposição individual de Adriana Varejão,
Cámara de Ecos. A artista apresentou obras com referências à arte barroca, à história colo-
nial do Brasil e à música tradicional brasileira. No mesmo ano, Regina Silveira inaugurava
Lumen, convidada para intervir no Palácio de Cristal do Parque do Retiro de Madri, adscrito
ao Museu Rainha Sofia. Será, porém, em 2007 que acontecerá um dos maiores divisores
d’águas para a eclosão do Brasil no país ibérico. O Institut Valencià d’Art Modern (IVAM)
abriria suas portas ao I Encuentro entre dos mares. Bienal São Paulo-Valencia2. A capital
valenciana, que no ano 2000 havia apresentado a exposição Brasil. De la antropofagia a
Brasilia, e em 2006 havia mostrado a coleção de fotografias do MAM-SP, se transformou na
porta de entrada à Europa da arte brasileira e ibero-americana criando uma ponte entre os

2  Para mais Informação sobre a Bienal: www.encuetroentredosmares.com


PAULO H. DUARTE-FEITOZA

dois continentes. Outro momento importante a ser destacado, é a celebração da feira de


arte ARCOmadrid de 2008 que contou com o Brasil como país convidado e com o apoio do
Governo Federal em uma clara aposta na abertura da arte brasileira ao mercado interna-
cional. ARCO se consolidou, nos últimos anos, como a principal feira de arte contemporâ-
nea do circuito nacional espanhol e uma das principais em nível europeu e internacional.
Em 2008, com a participação do então Ministro da Cultura Gilberto Gil, houve um espaço
reservado ao Brasil que aportou 108 artistas de diversas gerações e movimentos artísticos e
32 galerias. Naquele momento, a então diretora da feira, Lourdes Fernández (2006-2010),
afirmava aos quatro ventos que a América Latina era uma prioridade não só para ela, mas
para o mercado internacional.
Seguindo uma longa tradição de exposições de arte moderna latino-americana, em
2009 inaugurou-se a primeira mostra individual na Espanha e a mais importante dedicada
na Europa à artista brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973). A figura emblemática da pin-
tora nascida em Capivari (São Paulo) já tinha sido exibida ao público espanhol3, porém era a
primeira vez que se mostrava em uma individual. A exposição, realizada na Fundação Juan
March, demonstra o interesse particular por esta artista. Juan Manuel Bonet, antes diretor
do Institut Valencià d’Art Modern (IVAM) e do Museu Rainha Sofia de Madri, foi o comissário
convidado para conceituar a mostra em colaboração com Aracy Amaral e Jorge Schwartz.
A exposição esteve centrada na produção da década de 20. Através de mais de cem
obras, entre pinturas, desenhos e documentos, a intenção era mostrar ao público espanhol
a produção da brasileira junto às conexões vanguardistas da capital francesa e toda a rede
de confluência criada entre brasileiros e outros intelectuais europeus. O esforço da Funda-
ção Juan March foi notável ao constatar uma ampla quantidade de obras procedentes de
museus e coleções particulares, brasileiros e estrangeiros, como o Museu de Grenoble, o

148
Hermitage de São Petersburgo e o Museu Rainha Sofia. As pinturas, obras sobre papel, fo-
tografias, livros, revistas, catálogos, cartazes, documentos, etc., fazem dessa mostra muito
mais que uma monográfica sobre a artista. A inclusão de obras e documentos históricos de
outros intelectuais da época complementa a exposição que termina oferecendo uma visão
não somente sobre a obra de Tarsila, mas também sobre as intenções do modernismo bra-
sileiro inscritas nos discursos de Mário e Oswald de Andrade.
Junto à exposição foram editados três documentos significativos: uma reprodução fa-
c-símile em espanhol do livro Feuilles de route I. Le Formose (1924) de Blaise Cendrars; uma
reprodução fac-símile em espanhol do livro Pau-Brasil (1925) de Oswald de Andrade; e um
catálogo da exposição em espanhol e inglês que, mais do que apresentar temas referentes à
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

exposição em si, traça uma visão mais ampla para poder entender a pintora e o movimento
moderno brasileiro desde uma ótica mais contemporânea.
Assim sendo, a concepção da exposição, de um catálogo e dois livros fac-símiles, pro-
porcionam uma leitura ampla e desdobrada da obra da pintora no contexto do modernismo
brasileiro. Eis um dos maiores acertos desta exposição. Como afirmara Haroldo de Campos
(1969, 35), ao fazer uma “história estrutural” da pintura brasileira, nela caberia um papel
preeminente e pioneiro a Tarsila do Amaral. Passado o tempo, podemos dizer que o autor
não se equivocou. Em nosso entender, tampouco o fez a Fundação Juan March apostando
por esta exposição que, sete anos depois, evidencia sua importância internacional com o Art
Institut of Chicago (AIC) e o Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque inaugurando a
exposição Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil durante a temporada 2017-2018,

3  Em 1997 a Fundação “la Caixa” organizou a mostra Tarsila, Frida, Amelia, itinerante em Madri e Barcelona.
O BRASIL NA ESPANHA

primeira monográfica da artista na América do Norte.

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


Três momentos chave: Bienal São Paulo-Valencia (2007), ARCOmadrid (2008) e Tar-
sila do Amaral (2009) foram, então, um abre-alas às artes visuais brasileiras em diversas
instituições museológicas espanholas de prestígio. Em 2009, enquanto a Fundação March
mostrava Tarsila, o Museu d’Art Contemporani de Barcelona inaugurava uma mostra de
Cildo Meireles que, no ano anterior, havia sido laureado com o Prêmio Velázquez de Artes
Plásticas. A exposição, coproduzida entre a Tate Modern de Londres e o MACBA de Barce-
lona, teve como comissários Vicente Todolí e Guy Brett. A exposição percorria a trajetória
do artista desde 1967 até a contemporaneidade mostrando os seus “grandes ambientes”.
Foram oito instalações, entre as quais destacavam Desvio para o vermelho (1967-1984),
Através (1983-1989) e Volátil (1991). Para a exposição foi editado um catálogo com textos
de diversos autores que tinha a intenção de explicar ao público espanhol a vitalidade da
obra do autor. Coincidindo com a exposição, o Centro de Estudos e Documentação do MA-
CBA apresentou Espacio de lectura 1: Brasil, uma panorâmica documental sobre o país com
documentos do próprio centro mostrando a energia e a importância que o centro espanhol
depositou nas artes visuais brasileiras. Em conjunto, era possível observar com amplitude
uma mostra do melhor da arte do Brasil contemporâneo. Meireles voltaria à Espanha em
2013, ao Museu Rainha Sofia, onde interviria o Palácio de Velázquez no Parque do Retiro.
Em 2010, em Barcelona, a Fundação Antoni Tàpies, que no final dos anos noventa
havia mostrado Lygia Clark e Hélio Oiticica à Europa, apresentava a primeira grande mostra
retrospectiva de Anna Maria Maiolino em contexto europeu. Itinerante no Centro Galego de
Arte Contemporânea e no Malmö Konsthall da Suécia, a mostra foi comissariada por Helena
Tatay. A exposição reunia mais de oitenta obras da artista em seus formatos mais variados.
149
Junto à exposição acompanhava um catálogo, editado pela própria comissária, no qual re-
passava de forma exaustiva a obra da artista desde 1967 até a atualidade, com textos de
Marcio Doctors, Jacob Fabricius, Ivone Margulies, Griselda Pollock, Laurence Rassel e Miguel
von Hafe, assim também como uma entrevista entre a artista e a editora. Poderíamos dizer
que até então Maiolino era uma artista pouco conhecida na Espanha, mas que, a partir des-
ta retrospectiva, começa a preencher algumas lacunas para poder entender a arte brasileira
da segunda metade do século XX em toda a sua complexidade. Neste caso, é importante
lembrar que em 2012 Maiolino foi uma das quatro artistas brasileiras a participar da dO-
CUMENTA (13) de Kassel. Se a retrospectiva da Fundação Antoni Tàpies foi ou não decisiva
para a sua escolha, não podemos afirmar, mas sim sugerir.
Em 2011, a Fundação Juan March começava o ano com a exposição América fría. La
abstracción geométrica en Latinoamérica (1934-1973). Tratava-se de uma mostra complexa
e ambiciosa que queria cartografar a história da abstração geométrica na América Latina
evidenciando a sua renovação e diferença a respeito da abstração geométrica europeia.
Pela primeira vez na Espanha, e na Europa, se apresentava uma mostra tão completa que
nos permitia observar com amplitude a história rigorosa da abstração na América Latina.
Foram quase 300 peças entre pinturas, fotografias, esculturas e arquitetura - algumas nunca
vistas fora de seus países de origem - de mais de 60 artistas da Argentina, Brasil, Colôm-
bia, Cuba, México, Uruguai e Venezuela. Com Osbel Suárez como comissário, a exposição
optava por mostrar uma América latina “fria”, racional e objetiva, diferente dos estereótipos
da nacionalidade, dos trópicos, do primitivismo e do exotismo. Todavia é difícil calcular a im-
portância dessa mostra que também editou um catálogo monumental para a ocasião. Aliás,
mais que um catálogo, devemos qualificá-lo como a monografia mais completa, rigorosa
PAULO H. DUARTE-FEITOZA

e inovadora sobre um momento único do continente que abrange 40 anos de história das
artes visuais latino-americanas.
Menos de dez dias depois do encerramento de América fría na Fundação Juan March,
o Museu Rainha Sofia, em um ato radical de justiça poética, inaugurava Lygia Pape. Espa-
cio imantado, a primeira exposição monográfica dedicada à artista na Europa. Organizada
pelo Museu Rainha Sofia e o Projeto Lygia Pape, a exposição completou a “santa trindade”
do tropicalismo na Europa, tendo as três figuras como porta de entrada a Espanha: Hélio
Oiticica (Fundação Tàpies, 1992), Lygia Clark (Fundação Tàpies, 1997) e Lygia Pape (Rainha
Sofia, 2011). Para entender a expansão da arte latino-americana e da arte brasileira da
segunda metade do século XX na Espanha, é imprescindível citar a figura do historiador Ma-
nuel Borja-Villel. Foi o primeiro diretor da Fundação Antoni Tàpies (1990-1998), levando até
Barcelona Oiticica e Clark como diretor do projeto e comissário. Em 2008 foi o primeiro di-
retor do Museu Rainha Sofia nomeado através de concurso público. Seu projeto foi marcado
pela reorganização da coleção e por programar exposições originais, revisionistas e muito
arriscadas. Nesse contexto, o próprio Borja-Villel junto a Teresa Velázquez comissariaram a
exposição monográfica e retrospectiva de Lygia Pape, itinerante na Serpentine Gallery de
Londres, e, finalmente, na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Também foi neste momento
que o Museu Rainha Sofia inaugurou duas salas dedicadas à arte brasileira.
Neste mesmo ano de 2011, outro museu público, o IVAM, inaugurava Gigante por
la propia naturaleza, comissariada por Rafael Gil Salinas e Wilson Lázaro. A mostra reunia
umas setenta obras com a vontade de mostrar, através de artistas brasileiros ou que residi-
ram no Brasil, a diversidade da arte contemporânea brasileira, assim também como “seus
pensamentos, suas impressões, seus sentimentos e suas palpitações” pelo país. O discurso
expositivo respondia à vontade de discorrer sobre a arte brasileira desde os anos 40 do sé-

150
culo XX até a atualidade. Depois de tantos anos expondo arte brasileira através de monográ-
ficas e coletâneas latino-americanas, era o momento de se esforçar e “explicar”, através de
uma exposição transversal, o Brasil moderno, contemporâneo e global aos espanhóis. Frente
a esta mostra, devemos nos perguntar sobre a dificuldade de oferecer uma síntese repre-
sentativa da arte brasileira contemporânea. Para a exibição, foi editado um catálogo onde
o primeiro texto que encontramos é o do então Ministro da Fazenda Guido Mantega sobre
As perspectivas econômicas do Brasil, seguido do Embaixador e ex-ministro das relações
exteriores Celso Amorim, titulado Uma política exterior do tamanho do Brasil. Não falamos
somente de arte, mas também de política, ou melhor, de geopolítica. Estas exposições não
se explicam sem compreender a ofensiva cultural e diplomática dos Ministérios da Cultura e
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

Relações Exteriores durante os últimos quinze anos.


O ano de 2012 nos obriga voltar à capital espanhola e ao Museu Rainha Sofia. A
crise econômica internacional que já afetara os orçamentos das instituições museológicas,
de forma particular faz com que exposições temporárias comecem a atenuar e a escassear.
Contudo, no começo do ano, o Brasil volta a estar presente em uma mostra coletiva impor-
tante a ser comentada, a começar pelo seu comissariado feito pela Red Conceptualismos del
Sur4, uma plataforma internacional de trabalho, pensamento e tomada de posição coletiva
da América Latina.
Perder la forma humana. Una imagen sísmica de los años ochenta en América Latina,
nos colocava frente a uma imagem dos anos oitenta na América Latina, entre os efeitos as-
sustadores da violência sobre os corpos e as experiências de liberdade e transformação que

4  Red Conceptualismos del Sur; https://redcsur.net/


O BRASIL NA ESPANHA

se deram no período. Entre o “terror e a festa”, a mostra reunia materiais e documentos que

HISTÓRIA DA ARTE: FRONTEIRAS


mostravam, por um lado, as sequelas das desaparições massivas dos períodos ditatoriais, e,
por outro, aquelas formas diversas de resistência que ideavam modos de viver em liberdade
que supunham autênticas revoluções políticas e estéticas. A exposição tinha a particulari-
dade de mostrar aquelas experiências que pressionavam o “Humano” dando lugar a novas
formas de subjetividade e formas de fazer políticas contra-hegemônicas.
A arte geométrica da América Latina que havia iniciado seu percurso espanhol em
2011 com a América fría da Fundação Juan March, completaria seu caminho em 2013, com
uma macroexposição no Museu Rainha Sofia que centraria sua atenção no desenvolvimento
da abstração geométrica no território abrangendo o período 1930-1970, a partir da Cole-
ção Patricia Phelps de Cisneros5. Tratava-se da primeira exposição organizada na Europa
e a mais completa até o momento da importante coleção. O projeto formava parte de um
acordo de colaboração entre a Fundação Cisneros e o Museu Rainha Sofia com o objetivo
de fomentar a importância, o interesse e o conhecimento da história da arte moderna e
contemporânea da América Latina.
Comissariada por Gabriel Pérez-Barreiro, diretor da Coleção Patricia Phelps de Cisne-
ros e Manuel Borja-Villel, diretor do Museu Rainha Sofia, a mostra é um contraponto àquela
da América fría, que fora conceituada de forma cronológica e geográfica. A então mostra do
Rainha Sofia estava centrada na forma em que os diferentes artistas latino-americanos en-
tendiam e interpretavam a geometria. O peso, então, não é de países mas de um continen-
te, centrando o resultado na potência poética e estética de obras individuais, assim também
como de seus respectivos conjuntos. Certamente, esta exposição representou uma aposta e
um diálogo inovador com as narrativas glocais das “modernidades possíveis”.
151
***

A revisão da presença de exposições individuais e coletivas de arte brasileira na Es-


panha durante estes últimos anos, nos revela dois fatos importantes; 1) uma evolução a res-
peito da concepção das narrativas de arte produzidas no Brasil intensificando as narrativas
do glocal, e, 2) instituições públicas e privadas apostaram pelos artistas brasileiros represen-
tando, em diversas ocasiões, em ponto de partida de internacionalização.
Auxiliada através do poder econômico e institucional brasileiro, a arte brasileira des-
pontou no cenário internacional da globalização. Interessante e emocionante é constatar
como a Espanha, um país que, a priori, não possui uma relação histórica tão intensa com o
Brasil como com o país vizinho, Portugal, se interessou e promoveu as artes plásticas brasi-
leiras de forma tão intensa. Vale lembrar que o prêmio espanhol Velázquez de Artes Plás-
ticas, criado em 2002, galardoou dois brasileiros em sua curta história: Cildo Meireles em
2008 e Artur Barrio em 2011.
Desde 2016 com enfraquecimento do Ministério da Cultura até a sua extinção em
2019, a situação da gestão cultural brasileira é complexa. No entanto, é necessário e ur-
gente revisar criticamente a aposta do Brasil e de seu mercado cultural durante os últimos
anos. Como tentamos mostrar, apenas com uma mostra seletiva, esta aposta se traduziu
em grandes mostras monográficas retrospectivas, coletivas e outras de inovação curatorial.
Estas exposições, que respondem a uma aceitação consensual da atual crítica internacio-
nal, devem ir acompanhadas simultaneamente de revisões e análises críticas dos estudos

5  Para mais informação sobre sua coleção, acessar ao site www.coleccioncisneros.org


PAULO H. DUARTE-FEITOZA

históricos, teóricos e estéticos da arte brasileira. Na Espanha, apostou-se muito por narra-
tivas da arte brasileira que se integram facilmente no discurso global da arte. Muitas destas
exposições foram importantes articuladores e disseminadores que facilitaram, auxiliaram e
intensificaram a internacionalização da arte brasileira. Acreditamos que é urgente continuar
analisando e refletindo de forma exaustiva os discursos que se construíram neste frutífero
período.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS, H. Tarsila: uma pintura estrutural. In: VV.AA. Tarsila: 50 anos de pintura. (35-36).
MAC-USP, São Paulo,1969.
CAVALCANTI, Ana; ET AL. (Orgs.). Histórias da Arte em Exposições: Modos de ver e exibir no
Brasil. Rio Books/Fapesp, Rio de Janeiro, 2016.
CYPRIANO, Fabio; OLIVEIRA, Mirtes Marins de (Orgs.). Histórias das exposições / Casos
exemplares. Educ, São Paulo, 2016.
DUARTE-FEITOZA, Paulo H. Una década de arte brasileño en España (2005-2015): un es-
tado de la cuestión. In: Arte, Individuo y Sociedad, 31(4), 2019, pp. 719-734. https://doi.
org/10.5209/aris.59908
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Perfil dos estados e municípios brasilei-
ros: cultura 2014. IBGE, Rio de Janeiro, 2015.
RUBIM, A. A. C. (Org.). Políticas culturais no governo Lula. EDUFBA, Salvador, 2010.
SANTI, A. Evolução dos orçamentos públicos da cultura no Brasil do século XXI. In: VV.AA.
VI Seminário Internacional de Políticas Culturais (88-104). Fundação Casa de Rui Barbosa,

152
Rio de Janeiro, 2015.
SPERANZA, G. Atlas portátil de América Latina. Arte y ficciones errantes. Editorial Anagrama,
Barcelona, 2012.
VV.AA. Cildo Meireles. MACBA/Tate Publishing, Barcelona, 2009.
VV.AA. Tarsila do Amaral. Fundación Juan March, Madri, 2009.
VV.AA. Anna Maria Maiolino. Fundació Antoni Tàpies, Barcelona, 2010.
VV.AA. América fría. La abstracción geométrica en Latinoamérica (1934-1973). Fundación
Juan March, Madri, 2011.
VV.AA. Gigante por la propia naturaleza. IVAM, Valencia, 2011.
VV.AA. Lygia Pape. Espacio imantado. MNCARS, Madri, 2011.
VV.AA. Perder la forma humana. Una imagen sísmica de los años ochenta en América Latina.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE - 2019

MNCARS, Madri, 2012.


VV.AA. La invención concreta. Colección Patricia Phelps de Cisneros. MNCARS/Turner, Madri,
2013.
XII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE

También podría gustarte