Nos EUA, há um contraste clássico entre Wall Street (símbolo das elites financeiras e económicas) e Main Street (as pequenas cidades, os negócios locais e os trabalhadores comuns). Esse contraste foi amplamente explorado na retórica política dos últimos anos. Main Street representa o americano comum, a classe trabalhadora. Wall Street é associada à elite financeira e ao poder dos banqueiros, especialmente após a crise financeira de 2008.
Em muitas campanhas eleitorais, Main Street tornou-se uma metáfora da América esquecida — uma ideia que Trump, com habilidade populista, soube usar contra os Democratas - "Elite ociosa" ou "elite do ócio". Este termo, embora menos usado diretamente assim, corresponde ao ressentimento contra as elites urbanas, académicas e financeiras que são vistas pelos trabalhadores (sobretudo nas regiões da Rust Belt (cintura da ferrugem: Ohio, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia…) como arrogantes. Há uma ideia de que essas elites ganham dinheiro com especulação, não com trabalho real. Os trabalhadores das fábricas e da indústria pesada sentiram-se abandonados.
Durante décadas, o Partido Democrata foi o partido dos trabalhadores industriais, sindicatos, operários, especialmente nas regiões industriais do Midwest: Ohio, Michigan, Wisconsin, Pensilvânia. Era a chamada “Blue Wall”. Contudo, a desindustrialização (décadas 80-2000), impulsionada pela globalização, levou ao encerramento de fábricas, desemprego em massa e abandono de cidades industriais. Os Democratas passaram a concentrar-se em causas sociais, ambientais, minorias, direitos civis, o que embora justo, alienou parte da classe trabalhadora pouco instruída nessa ladainha académica. A crise de 2008 acelerou esse ressentimento: a elite de Wall Street foi salva. A Main Street afundou. Trump capturou esse ressentimento com um discurso anti-sistema, anti-imigração e anti-elite, embora ele próprio seja farinha do mesmo saco. O seu carisma populista suplantou a sua incoerência.
A Europa viu algo muito semelhante, especialmente no pós-crise de 2008 - Partidos como o SPD (Alemanha), PSF (França), PSOE (Espanha), Partido Trabalhista (Reino Unido), embora o PS (Portugal) menos - foram perdendo o vínculo com o operariado tradicional em que as classes médias urbanas, instruídas e progressistas acabaram por ser as mais prejudicadas. Os "gilets jaunes" (França) são o retrato perfeito desta nova classe ressentida nem rica, nem pobre. Os populismos de direita (Le Pen, Salvini, AfD, Chega) e os populistas de esquerda (Podemos, Melenchon, Syriza) ocuparam esse vazio, explorando o tema do abandono, da soberania e do ressentimento. Este ciclo já aconteceu noutras épocas: na transição da República de Weimar para o nazismo, ou na queda do Império Austro-Húngaro. A diferença hoje é a rapidez e escala global, aceleradas pela internet. Estamos a viver um momento de transição, e essas fases geram sempre turbulência.
A deslocação, dos eleitores da classe trabalhadora que votava no PCP, para o CHEGA (populista de direita) não se deveu maioritariamente por razões económicas. As causas têm raízes ontológicas mais profundas. Desde a ausência de um “projeto comum” de futuro que se pudesse identificar. A sua invisibilidade aos olhos das elites políticas esvaziou o seu sentido de existência. Esse vazio existencial é um terreno fértil para teorias da conspiração e cultos identitários. Hoje temos a desagregação das comunidades locais. O colapso de estruturas de mediação locais fragmentou a convivência, agravado pelo boom digital que colocou pessoas nas tais bolhas. E assim, enquanto uns ficaram recolhidos na sua apatia, na sua depressão, outros explodiram com raiva agarrando-se às promessas fantasiosas dos populistas. Num grande número de academias com letra pequena, a ciência e a razão deixou de ser um bastião universal. Tal deriva acionou os motores da radicalização e dos fanatismos tribais.
Como havia escrito Émile Durkheim, uma sociedade que perde o seu sistema de normas e significados mergulha na anomia. E os indivíduos, privados de referências coletivas, caem no desespero, na violência ou na apatia. Byung-Chul Han, no século XXI, aprofunda esse diagnóstico: vivemos numa sociedade da exaustão, onde o imperativo de desempenho substituiu os vínculos sociais e espirituais. A liberdade tornou-se uma prisão invisível. E Christopher Lasch já alertava, nos anos 70, para o surgimento de uma "cultura do narcisismo": indivíduos isolados, ansiosos e desconectados da História, da moral comum e da autoridade simbólica.