This review may contain spoilers.
Lucas Vasconcelos Silva’s review published on Letterboxd:
to meio sem saber articular o que eu achei desse filme. achei sim o epilogo meio morno, achei a primeira metade muito instigante e achei a segunda parte arrebatadora.
edit:
o brutalista é um filme que discute como processamos trauma e como esse trauma pode ser instrumentalizado por terceiros para alcançar objetivos escusos. o filme é estelar ao nos dar uma primeira parte cheia de esperança - assim como imagino ser a vida de quem emigra pós-holocausto: poder começar do zero, mesmo com todas as dificuldades impostas em ser imigrante pobre num outro país, deve te encher de vida, ainda mais depois de ter sobrevivido ao horror do genocídio.
o problema é que esse sopro de esperança é um pouco ilusório. ser imigrante é duro. há dificuldade em comunicação, há perseguição, há injustiça, há vício em drogas e há pobreza.
para uns poucos, para aqueles cujo trabalho tenha algum valor especial - como é o caso do Laszlo Toth - há uma certa valorização. alguma hora alguém deu moral pra um magnata americano por ter um escritório *salgadíssimo* em casa, o que faz ele começar a abanar o rabo para o Laszlo. o lado negativo é que o apreço pelo design do arquiteto brutalista vem mais de fora pra dentro, como se esse americano quisesse sentar na mesa dos intelectuais e poder falar "ah sou moderno também" - mais do que realmente dar valor para a expressão artística de um artista talentosíssimo.
laszlo rapidamente é convidado para construir um grande complexo comunitário na propriedade desse milionário - o que obviamente tem um preço. ele passa a ser visto como um objeto do magnata, um boneco pelo qual o legado desse sujeito vai se purificar e se modernizar. obviamente, toda a ideologia americana capitalista, colonial e predatória sai da toca. o ricaço tem uma postura colonizatória, sempre querendo ouvir o que laszlo tem a dizer mas sempre impondo a ele sua cultura e valores nocivos.
tudo isso se intensifica com a chegada da esposa e sobrinha de laszlo aos estados unidos. a esposa, paralizada por conta da osteoporose, anseia reviver seu casamento, brutalmente interrompido pela perseguição e pela guerra. a sobrinha, calada por aparentemente falar pouco inglês, não parece ter agência - sendo renegada ao plano de fundo constantemente.
no entanto, por óbvio, os americanos não as enxergam assim. mesmo sob uma fachada de cordialidade há uma intenção de dominação. a esposa passa pelo mesmo processo de laszlo - a ela é oferecido um trabalho em nova iorque como jornalista. a sobrinha, por sua vez, é encarada pelo filho do magnata como um corpo a ser conquistado. fica implícito que ela foi sexualmente abusada por esse sujeito.
eventualmente laszlo toma um puxão de orelha por fazer as paredes do complexo muito altas e os cômodos muito estreitos. um arquiteto americano, cuja experiência é a de construir templos do capitalismo como shoppings e afins, vende a ideia ao magnata que as paredes precisam ser menores e mais espaçadas umas das outras. laszlo, em resposta, clama que "tudo que é feio e cruel, mas especialmente feio, é culpa sua", enquanto paga pela manutenção de seu projeto original com sua própria remuneração.
há um acidente e laszlo é demitido, visto que o projeto fica embargado. é nessa hora que surge uma alternativa a essa vida de dominação que a família vive: a sobrinha de laszlo, noiva de um rapaz, está se mudando para israel, onde há a promessa de autorrealização, trabalho e sossego. laszlo é relutante. "se eu não for, significa que sou menos judeu?", pergunta. ele e a ainda debilitada esposa ficam. a sobrinha vai embora - embalada na promessa dessa novidade.
depois desse momento no filme, fica clara a sedução da ideia de israel para o casal. não consigo imaginar o quão difícil deve ser negar a emigração para um lugar onde você supostamente não será mais perseguido, explorado e dominado. onde há a possibilidade de ser construída uma família - destroçada pelo horror do nazismo, como o filme deixa muito claro na foto que fica na intermissão.
essa ideia idealizada de israel segue com laszlo e sua esposa ao longo do resto do filme, enquanto laszlo volta ao trabalho na construção do magnata. ele é levado à itália para escolher mármores, onde fica bêbado, drogado e é estuprado por seu contratante, numa cena absolutamente grotesca, mas escura e emocionalmente distante. para o magnata, foi mais um passo na colonização desse homem.
o filme é composto por planos simples, sem muito floreio. conversa muito com a ideia do brutalismo em si - que segundo minha tia, arquiteta, é um pensamento pós-guerra para simplificar e agilizar a reconstrução da arquitetura danificada pela ação da guerra e para conseguir uma imagem de robustez. o filme é o que é, esteticamente claro e objetivo, assim como um prédio brutalista.
eventualmente o vício em drogas de laszlo - deixado um pouco em segundo plano pela narrativa, mas sempre presente - chega em sua esposa, num episódio de crise de dor. ela tem uma overdose e, no hospital, diz a ele que vai se mudar para israel. o filme termina depois de uma cena em que ela confronta o milionário, o chamando de estuprador.
o que nos faz chegar no epílogo. há uma exposição em veneza na qual as obras de laszlo serão evidenciadas. no entanto, ele já não pode falar mais - está enfermo numa cadeira de rodas. quem fala em nome dele é sua sobrinha.
originalmente, achei esse epílogo morno. pensei nele durante a noite toda e cheguei à conclusão que ele é brutal. a sobrinha, sionista, toma para si a interpretação da obra que laszlo, no meio de seu trauma, construiu para o magnata. não sabemos, enquanto audiência, se aquela obra teve a interpretação compartilhada por laszlo à sua sobrinha. em nome da dor dele, ela expõe ao mundo seus traumas. e foi aí que eu cliquei.
o brutalista é um filme que mostra como interesses econômicos podem instrumentalizar trauma para conseguir seus objetivos - e faz isso se apropriando de elementos estéticos. a expressão artística de laszlo, sim, é indissociável de seu trauma, sendo ao mesmo tempo uma tentativa de expurgá-lo (construções brutalistas são notoriamente robustas e buscavam revitalizar uma europa destruída pela guerra) e um veículo de expressá-lo (laszlo deixa claro o seu desejo de revolução ao magnata, lutando contra tudo que o oprime).
porém, laszlo enquanto ser humano é jogado numa situação em que ele, carregado de cicatrizes do holocausto, se encontra entre a cruz e a espada. ou fica nos estados unidos sendo explorado pelos americanos que não o querem lá, mas sim apenas sua visão estética, ou vai para israel, em nome da fé, da memória e de seu trauma, brutalmente colonizar outro povo enquanto ainda segue interesses americanos. eventualmente, laszlo escolhe israel, o que significa que seu trauma vai ser repaginado, revisitado e instrumentalizado para justificar mais colonização.
vi muita gente chamar esse filme de sionista - eu tive a impressão exatamente oposta. para mim, israel nesse filme é uma promessa vazia de mudança. laszlo para sempre terá seu trauma do genocídio acompanhado pelo trauma da colonização, não sendo visto enquanto sujeito, mas enquanto objeto, corpo e estética a ser dominado.