A LÓGICA DOS FRAGMENTOS
The Beach Boys - The SMiLE Sessions (2 CD)
Como se, à distância, oculto na sombra dos salões oitocentistas, o velho charlatão de Viena continuasse a exercer a sua influência maligna, o texto de apresentação de Brian Wilson abre em registo aterradoramente psicanalítico: “Sou um perfeccionista. Tal como era o meu pai. Quando ele nos ladrava para que cortássemos a relva do jardim, costumava berrar ‘Façam-no por duas vezes!’ Em miúdos, para que todas as coisas ficassem bem, tinham de ser feitas sempre duas vezes. O que me parece ser ainda relevante em 2011 quando eu e ‘os rapazes’ nos preparamos para publicar‘SMiLE’... pela segunda vez”. O sangue gela: à beira dos 70 anos, no preciso instante em que aquele que foi, provavelmente, o mais mítico "lost album" da história pop aparece, por fim, à luz do dia, sob uma forma tão próxima quanto possível da que, inicialmente, deveria ter, nas cinco primeiras linhas que escreve, Brian não consegue fugir a evocar a figura de Murry Wilson, o paternal facínora, seriíssimo corresponsável pela sua precipitação no abismo sem fundo do desequilíbrio mental, em 1967.
Sim, é verdade que ele próprio se tinha encarregado de refogar as sinapses num sortido rico de químicos, e a obsessiva rivalidade com os Beatles também não contribuía muito para que se pudesse dedicar tranquilamente à criação (reza a lenda que, em Fevereiro de 1967, ao escutar, inesperadamente, "Strawberry Fields Forever" no rádio do carro, teve de parar e comentar, angustiado, “Eles chegaram lá primeiro...”). Mas, ao recordar a regra de “sempre duas vezes”, não só demonstra como o horrendo fantasma continua a atormentá-lo mas ainda o força igualmente a baralhar as contas. Porque, de facto, SMiLE já veio ao mundo em inúmeras encarnações: atabalhoada e confusamente, em Smiley Smile (1967); na proposta de alinhamento de Mark Linett (1988) que, inadvertidamente, caiu na rua; disperso e desgarrado, na caixa de 5 CD, Good Vibrations: Thirty Years Of The Beach Boys (1993); num sem fim de "bootlegs" (nomeadamente, os da Sea Of Tunes); e, em 2004, na configuração definitiva que lhe deram o próprio Brian Wilson e a sua equipa de “assessores” – isto é, Darian Sahanaja, Van Dyke Parks e os Wondermints.
É, justamente, esse último alinhamento de temas, tornado canónico há oito anos, que regressa, agora, neste projecto de exumação dos melhores espécimes das fitas originais. O que não deverá ter sido tarefa ligeira se tivermos em conta que foi necessário escutar a totalidade das cerca de 50 sessões de estúdio – não incluindo as 17 dedicadas a "Good Vibrations" – registadas no United Western Recorders (o mesmo de Pet Sounds) e nos Gold Star Studios, de Los Angeles (o preferido de Phil Spector), para identificar e recuperar as peças avulsas, e descobrir o espaço que cada uma deveria ocupar no puzzle. Afinal, não mais do que a duplicação do modus operandi de há 40 anos: como Wilson, então, confessava, “estou farto da estrutura da canção pop, prefiro compor por fragmentos”. E se, acerca do cinema, se pode afirmar (algo abusivamente, é certo) que a sua essência é a montagem, no que respeita a SMiLE disso não resta nenhuma dúvida.
Espécie de imenso painel sonoro do espaço e do tempo americanos – viaja da Plymouth Rock ao Grand Coulee Dam, à Califórnia e ao Havai, agregando referências tradicionais (folk branco e nativo, "barbershop quartets", sujidade honky tonk), jazz, eruditas, rock, doo wop –, algures entre um Copland lisérgico e um Gershwin em calção de banho, aplicava à extensão de um álbum inteiro o mesmo procedimento que havia sido utilizado em "Good Vibrations": 30 minutos de miniaturas vocais e instrumentais vagamente relacionadas entre si, laboriosamente recortadas e coladas (o autêntico e primordial "cut + paste": fita magnética analógica e lâmina) segundo uma lógica de quase-cadavre exquis que, no processo, descobria a sua própria lógica.
Não é, realmente, improvável enlouquecer durante um tal empreendimento e Brian Wilson, poucas semanas antes da publicação do infinitamente inferior Sgt. Pepper’s, em pânico, interrompeu a gravidez de SMiLE, mergulhou no poço e aí se deixou ficar durante décadas. No "booklet" da actual edição (a última?), vemo-lo, de olhar fixo e ausente, observando a areia que se escoa de uma ampulheta. Seja lá o que for o "full dimensional stereo", a dimensão tempo foi, inexoravelmente, um dos insubstituíveis escultores do que, hoje, nos chega às mãos. Já conhecíamos praticamente tudo mas nunca o havíamos escutado assim. O segundo CD de documentação de estúdio (a secção final do primeiro também permite espreitar os bastidores) alimenta estudiosos e ilumina os recantos do laboratório em actividade. Mas o que apetecia mesmo saborear era o 5º disco da edição "deluxe", integralmente preenchido com 24 takes de "Good Vibrations": imagina-se algo como o hipnótico e gradual crescimento de um cristal de gelo, em movimento só um pouco acelerado.
(2012)