20.7.25

Imigração: assumir esta reforma estrutural

13:01


Em política não podemos andar sempre à defesa. O que fazemos de positivo tem muitas vezes a oposição dos que se limitam a andar à boleia das perceções, mesmo que as perceções sejam fruto da manipulação dos demagogos. Este texto é sobre Portugal e a imigração. E a atitude afirmativa que o PS deve prosseguir.

José António Vieira da Silva, várias vezes ministro em áreas sociais e dirigente nacional do PS, deu (19/07) uma entrevista ao Negócios e à Antena 1 (programa Conversa Capital), onde faz afirmações que merecem cuidada atenção. Destacarei, aqui, um dos aspetos cruciais do seu pronunciamento.

José António Vieira da Silva vê, quanto ao crescimento da imigração em Portugal, dois caminhos: diabolizar os problemas ou encarar o fenómeno como uma oportunidade.

A referência à diabolização dos problemas que podem resultar do crescimento (acentuado) da imigração é, apenas, ser realista. É evidente que, se andamos há décadas a falar da “crise do Estado-Providência”, e, mesmo assim, ainda dele não desistimos, é porque temos consciência das suas dificuldades e sabemos que elas residem em dinâmicas profundas que tornam mais fáceis (no imediatismo) as receitas do capitalismo selvagem do que as receitas da coesão social.

Se temos dificuldades nos serviços públicos essenciais, como a saúde e a educação, e temos uma enorme crise na habitação, está bem de ver que um influxo rápido e substantivo de residentes no território nacional constitui um desafio de grandeza significativa, desafio ao qual temos de responder e que não tem resposta fácil. Nem sempre fomos capazes de ver a tempo o significado desse aumento populacional, nem sempre fomos suficientemente rápidos a responder – e confiámos demais no “espírito acolhedor” dos portugueses.

Quando escrevo “nem sempre fomos capazes…”, o sujeito é Portugal, no seu conjunto – mas não exclui o PS e os seus governos. É que nem sempre há respostas ótimas e céleres para grandes problemas – e só os demagogos esquecem isso. Lembram-se da pandemia, lembram-se do choque de inflação causado pela guerra na Ucrânia – dois fenómenos brutais que a antiga presidente do PSD, Manuela Ferreira Leite, afirmou terem sido “bênçãos caídas do céu para os governos do PS”? Tamanha crueldade não é só fruto de corações secos; é pura falta de noção da responsabilidade cívica e política. De qualquer modo, apesar desses irresponsáveis, que só pensam em explorar eleitoralmente as dificuldades do país para mero proveito próprio imediato, é verdade que um aumento significativo da população residente traz novas questões a resolver e exige novas respostas.

Esse é o ponto: há problemas e precisamos ser mais eficientes a resolvê-los. É isso que devemos fazer. Outros escolhem “diabolizar” os problemas – e, mesmo, diabolizar as pessoas que trabalham entre nós e por nós. A escolha da extrema-direita sempre foi diabolizar. Problemas e pessoas. No Portugal de hoje, a escolha de um partido central do regime democrático, que ainda se designa “social-democrata”, é, agora, fazer o mesmo caminho da extrema-direita. O sucesso que a extrema-direita alcança ao enredar o PSD nessa armadilha estimula-a, aliás, a tentar estender a sua rede a outros sectores. E por aí avançam os que optam pela diabolização. Funciona na refrega mediática, pelo menos no imediato. Pode, até, dar uns votos. Mas não resolve problema nenhum e é irresponsável face ao real interesse nacional.

É aí que entra o outro ramo da alternativa: encarar a imigração como oportunidade. José António Vieira da Silva diz o mais visível quando se refere aos bloqueios no mercado de trabalho, e aos danos em setores de atividade como a agricultura, como consequências das restrições à imigração que a AD introduz com a muleta do CH. Mas poderíamos citar, também, embora a mais longo prazo, a demografia: não estamos a ter filhos na quantidade que o país precisa para continuar a ter a população necessária para se desenvolver social e economicamente – e a imigração é um extraordinário contributo para reverter essa situação.

Vieira da Silva diz isto de forma muito poderosa quando, lembrando aos esquecidos que entre 2014 e 2024 o número de trabalhadores dependentes a descontar para a Segurança Social cresceu mais um milhão de pessoas, em parte graças à imigração, afirma que, com o seu contributo para o emprego e para o crescimento económico, esta é "a segunda maior mudança estrutural", a seguir ao aumento das qualificações. A direita já teve o seu tempo de desprezar a importância do aumento das qualificações (quando dizia que havia doutores a mais e que isso não acrescentava nada de decisivo à economia); agora, está no tempo de desprezar a possibilidade da viragem estrutural que nos pode retirar da decadência demográfica.

O ponto é este: a questão da imigração é uma questão de humanidade, mas não é só. Alguns terão dificuldade em entender o alcance do artigo primeiro da Constituição da República Portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Mas, mesmo os que têm dificuldade em acompanhar o significado dessa definição de Portugal, poderiam, pensando um pouco mais em tempos longos e um pouco menos em interesses eleitorais imediatos, compreender que o progresso da comunidade nacional precisa dos imigrantes.

Em vez de andarmos em guerrilhas defensivas a tentar paliativos para a popularidade do discurso racista e xenófobo da extrema-direita, devíamos assumir, com frontalidade, que Portugal precisa dos imigrantes, precisa de muitos imigrantes, precisa dos trabalhadores imigrantes para que a economia não estiole. Portugal precisa dos homens e das mulheres que trabalham nos nossos campos, nos nossos serviços, nas nossas casas. Portugal precisa dos homens e das mulheres jovens que nos procuram para melhorar o seu futuro – e que também melhoram o nosso presente e o nosso futuro. Portugal precisa dos filhos dos imigrantes para vencermos o desafio demográfico. Portugal enriquece culturalmente com essa gente com tantas línguas diferentes, com tantas gastronomias diferentes, com tantas músicas diferentes. Portugal não pode ser um vulgar imitador de Trump, violentando aqueles que, connosco, podem fazer uma terra melhor para todos – como tantos portugueses fizemos em outros países, no passado.

Dará trabalho concretizar as políticas para que isto seja uma realidade. Nem todas as respostas são evidentes e podemos não acertar sempre à primeira com a melhor maneira de fazer as coisas. Mas vamos fazer o que seja preciso fazer para que a imigração concretize as suas potencialidades para dar um novo alento ao progresso social e económico de Portugal.

Vamos afastar-nos do caminho dos que escolheram diabolizar. Vamos trilhar o caminho desta grande reforma estrutural, social, económica, demográfica e cultural. Portugal precisa dos imigrantes. Quem diaboliza os imigrantes e os problemas que estão por resolver no seu acolhimento, esses é que fazem mal a Portugal. Vamos continuar a trabalhar para concretizar esta reforma estrutural, em vez de acompanhar os que só pensam na sobrevivência política imediata e esquecem os interesses reais de Portugal e dos portugueses.

E mais: cá estaremos para pedir responsabilidades pela violência na sociedade que resulte do discurso de ódio promovido pela extrema-direita e protegido por quem lhes devia fazer frente. 



Porfírio Silva, 20 de julho de 2025
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18.7.25

Um risco existencial ameaça o PS

17:03


Intróito. Há momentos em que seria mais cómodo estar calado. É nesses momentos que é preciso falar. Ir ao que dói. Alertar para os perigos. Deixarmos de tratar com paninhos de lã o que ameaça o essencial. Por isso escrevo hoje.

 

***


1. Quando, em 1969, as tropas do Pacto de Varsóvia, sob o comando da União Soviética, invadiram a Checoslováquia para impedir o “socialismo de rosto humano”, o processo de reformas democratizantes que tinha sido lançado pelo Partido Comunista daquele país, essa invasão abalou politicamente a esquerda, em especial os comunistas ocidentais. Por muitas razões políticas que separassem os observadores de esquerda daqueles acontecimentos, a rutura provocada foi uma rutura emocional: havia quem tolerasse a invasão de “um país socialista” por outro “país socialista” e engolisse as “explicações” ortodoxas – e havia quem não encontrasse maneira de tolerar tal ato de violência em nome do “socialismo real”. Foi um trauma para os comunistas ocidentais e mudou muita coisa na história desse movimento. Aconteceu aí um choque de emoções políticas que as razões não conseguiram conter.

O que interessa isto agora? Vejamos. 



2. Em parte, os partidos políticos são tribos.

Quer dizer: a política não é só (e às vezes não é fundamentalmente) uma questão de argumento e uma questão de razão. Muitas pessoas não serão capazes de explicar detalhadamente porque são de direita ou porque são de esquerda. Mas são, afirmam-se, identificam-se como de esquerda ou de direita. Sentem-se de direita ou de esquerda. (Sim, “sentem-se”, para escândalo dos hiper-racionalistas.) 

Isto não ignora que ser apoiante da democracia como sistema político incorpora um sólido fundamento na razão, na adesão raciocinada. A adesão a uma democracia constitucional está escorada num longo percurso de construção racional, de procura, de dissecação de alternativas. Tudo isso existe. Mas nada disso vive sem o cimento, sem a base das emoções democráticas. As pessoas não são de direita ou de esquerda por causa de terem absorvido cursos de filosofia política. As pessoas são de direita ou de esquerda porque têm certas emoções, certas paixões. Essas emoções podem ter sido formadas por hábito familiar, por educação, por impacto de um acontecimento da vida que criou uma certa dor ou uma certa raiva ou uma certa atenção especial a determinados fenómenos, por admiração (ou por detestação) da ação de certa pessoa ou certo grupo, … Por isto ou por aquilo, há no mundo coisas que a certas pessoas repugnam, outras coisas que as entristecem, causas que as entusiasmam, situações que as mobilizam e outras situações que as deixam impassíveis. Havendo sobreposições (o mundo não é a preto e branco), as pessoas de esquerda e as pessoas de direita sentem certos fenómenos no mundo de modo diferente.
 
Tanto as pessoas de direita como as pessoas de esquerda têm, às vezes, a convicção de que são puramente racionais e se determinam apenas pelos argumentos. Mas isso não existe. Partidos profundamente democráticos e plurais (como é o PS) resistem bem a diferenças de opinião sobre políticas públicas. No PS sempre houve 7 opiniões diferentes sobre qualquer assunto em que sejamos chamados a decidir. Isso, no PS, nunca foi verdadeiramente crítico. Já tivemos várias eleições presidenciais em que se apresentava mais do que um candidato socialista ou apoiado por socialistas. Isso não matou o PS. Já tivemos o grupo parlamentar profundamente divido sobre questões essenciais da revisão constitucional. E isso foi absorvido. Já tivemos dirigentes destacados que saíram, formaram outros partidos, concorreram a eleições contra o PS, e depois voltaram. Isso não matou o PS. Já tivemos momentos de enorme tensão interna, acusações de falta de democracia e de falta de lealdade, e alguns desses momentos tiveram de ser resolvidos com acordos escritos entre maioria e minoria. E tudo sarou. Há argumentos para tudo, bendita seja a liberdade! Hoje as opiniões agrupam-se de um certo modo, para a semana agrupar-se-ão de modo diferente. Não costuma haver fações, correntes organizadas, embora já tenham existido sótãos. Mas até isso foi digerido. Não é por argumentações intensas que um partido tão plural como o PS se perde. Pelo contrário: reforça-se. 

(É verdade que alguns só gostam dessa liberdade quando é para serem os próprios a dela fazer uso, ficando muito incomodados quando estão em maioria e detestam que os que discordam digam qualquer coisa. Mas isso são apenas destroços de um grande navio de pluralismo.)

Em partidos monolíticos, onde todos têm de fazer de conta que concordam com tudo e a divergência é percepcionada como uma fraqueza, a diferença de opinião prejudica. Pelo contrário, a diferença de opinião não mata partidos democráticos. Plano muito diferente: a diferença de emoções pode matar qualquer agremiação política.


3. Quando, dentro de um partido, as emoções dividem, esse partido está em risco existencial. A própria viabilidade do coletivo estará em causa se, perante alguma opção séria, deixarmos o terreno das diferenças de opinião e passarmos ao terreno das diferenças de emoção. Quando uns olharem para uma situação real e a sentirem como humanamente insuportável, enquanto outros a consideram apenas um problema a resolver com as ferramentas da gestão legal, temos uma brecha perigosa perante nós. Sentirmo-nos violentados na nossa sensibilidade por qualquer coisa que outros consideram apenas um assunto a ser gerido pelas ferramentas legais que estejam mais à mão, já não é somente uma matéria de debate racional. Sem deixar também de ser isso, passou a ser um choque de emoções. Aí, estaremos noutro patamar. E o patamar das emoções democráticas é indispensável à democracia. 


Um coletivo partidário afetado por um choque de emoções, que o divida, é um coletivo partidário em risco existencial. Lembro sempre (faço-o há alguns anos, dentro do meu partido e na praça pública) que os partidos também morrem. Os partidos podem morrer por variadas razões. Algumas dizem respeito apenas ao ecossistema: alguém passa a representar melhor os que eram representados por esse partido. Mas, as razões mais dolorosas para um partido morrer verificam-se quando a sua degenerescência vem de dentro. Quando as emoções de uns deixam de jogar com as emoções de outros. 


Atentemos: a existência de um choque de emoções não significa que as razões estejam todas de um lado e o outro lado não tenha razão nenhuma. Raramente, num confronto, um lado tem todas as razões e o outro lado não tem razões nenhumas. Só que isso conta pouco como primeiro patamar de um choque de emoções. O choque de razões pode ser dirimido racionalmente. O choque de emoções pode ser impossível de sanar ou, pelo menos, custar muito suor e lágrimas – e muito tempo – para ser sanado. Podemos fazer marcha atrás num confronto de razões: amainar, arredondar, compor, articular, negociar. Não há, de imediato, nada que remedeie um choque de emoções.


Exemplo prático. Vemos crianças a dormir ao relento por efeito de uma ação de uma autoridade pública. As razões trocadas acerca da situação podem não estar exclusivamente, todas, em qualquer dos lados que se posicionam face à situação. Um debate racional acerca da situação podia ser viável. Só que é impossível juntar no mesmo barco os que se arrepiam por essa situação ter sido causada, os que veem essas crianças como o primordial problema do que está em causa, e os que encontram uma imensa lista de justificações para a ação que causou essa situação. O debate racional acerca da situação podia ser gerível; o choque de emoções básicas envolvidas não é gerível.


O choque de emoções básicas, tal como o tenho vindo a refletir aqui, tem todo o potencial para destruir por dentro uma agremiação política, um coletivo partidário. Este choque de emoções básicas nunca antes tinha acontecido no PS. Está a acontecer agora.



4. O processo da destruição por dentro pode ser travado? Pode. Mas essa travagem só é viável se compreendermos que esse risco existe e assumirmos a tarefa de o travar. Contudo, essa cura necessária nunca chegará a acontecer se prevalecer a lógica das tropas de choque.

As tropas de choque são os ativistas organizados de uma posição que querem que, em lugar do debate, haja combate. Num debate, usamos argumentos e deixamos que se sedimente uma conclusão, a qual, provavelmente, será uma mistura das diferentes posições de partida. Num combate, há sempre um lado (pelo menos um lado) que quer a destruição do outro. Na prática, dentro de um partido aberto, normalmente esperamos ter tranquilidade de espírito para poder dar livremente a nossa opinião. Só que, quando entram em campo as tropas de choque, quem quer que tenha a veleidade de dizer algo que não agrade ao sector que tem essas tropas de choque… terá de contar com um bombardeamento! Sabemos como funciona o exército dos soldadinhos do partido protofascista português: atacam com ferocidade qualquer voz discordante nas “redes sociais”, que são pouco sociais, mas são, mesmo, redes. Infelizmente, a técnica de usar as redes “sociais” para tentar vilipendiar quem não concorde com A ou com B… está bastante espalhada para além do partido protofascista português. Há, hoje, práticas organizadas de perseguição política a quem não suporte certo tipo de comportamentos. Essas práticas vão desde os ataques nas redes sociais até à tentativa de vetar nomes para o exercício de funções de representação política do partido. O objetivo é amedrontar os temerosos: "vejam o que pode acontecer se discordarem de mim!" Objetivamente, estas são práticas antidemocráticas, versões moles de um estalinismo que sabemos ter existido noutros tempos e/ou noutras formações políticas, uma espécie de estalinismo paroquial que deveria parecer abjeto a um militante de um partido democrático. Mas que existe, hoje, onde devia ser impensável.

5. Há algo de inevitável nisto? Não há. Pode ser travado? Pode. O que precisamos é de ter consciência do que está a acontecer e ser capaz de encontrar uma saída para a deriva.

Por isso alerto, outra vez: os partidos também morrem.

E, depois de morrer, ressuscitar não é garantido e, de qualquer modo, dá um imenso trabalho.



Porfírio Silva, 18 de Julho de 2025
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14.7.25

A democracia não é um mercado

23:30


Em 2002, nas eleições de 17 de março, o PS teve uma das suas derrotas tangenciais: Ferro Rodrigues, numa situação de partida muito desfavorável, acabou por perder para Durão Barroso por cerca de 130 mil votos.

(Nota à margem: O país perceberia, depois, que Durão Barroso não estava nada interessado na governação do país e abalaria para "mais altos voos" abandonando o seu mandato de primeiro-ministro. Antes de abalar, Barroso encheu-se de vaidade por um daqueles momentos em que a direita tem sempre todas as certezas do mundo, faz todos os atropelos em nome dessas certezas, e depois sacode a água do capote quando as supostas certezas se revelam um embuste monumental. Falo do episódio da invasão do Iraque, em que Barroso, acompanhando o inefável Blair, mandou às malvas o direito internacional, viu - provavelmente numa manhã de nevoeiro - as "provas" das armas de destruição maciça que nunca ninguém encontrou, mesmo depois de estar no terreno, e só não nos enterrou mais naquela guerra porque o Presidente Jorge Sampaio travou a fundo. Mas a vergonha estava feita.)

Ora, depois dessa derrota tangencial, Ferro Rodrigues promoveu uma atualização da Declaração de Princípios do PS (e, também, dos Estatutos, mas não é disso que me ocupo aqui), o que propiciou uns largos meses de debates públicos, incluindo artigos na imprensa, de vários camaradas. (Estudo, também, esse processo no meu livro História das Declarações de Princípios do Partido Socialista.)

Um dos artigos que deixaram marca nesse debate é da autoria de Carlos Zorrinho, que escreve na qualidade de Secretário Nacional do PS, e é publicado no Público a 17 de abril desse ano. O título é sugestivo: "Virar o país à esquerda".

A tese de Carlos Zorrinho é basicamente a seguinte: tanto a pretensão de afirmar o PS ao centro para nos "ajustarmos aos tempos" (expressão minha, não dele) como a ideia de uma “clara e frontal viragem à esquerda” são estratégias erradas para levar o partido de novo ao poder. A razão para estarem erradas é que essas estratégias, quer uma quer outra, assentam no raciocínio de que os partidos correm atrás de “nichos de mercado eleitoral”, enquanto, a seu ver “o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam”. Assim, o que importa ao PS é “conquistar o centro não ideológico para as vantagens das suas políticas e das suas propostas”, que compatibilizam políticas sociais ousadas com responsabilidade orçamental. Isto seria, então, “virar o país à esquerda” – coisa que distingue de “virar o PS à esquerda”.

O raciocínio desenvolvido por Zorrinho nesse artigo de 2002 volta a ser muito atual. Estando o PS, nessa altura, num debate claramente ideológico (revisão da Declaração de Princípios), muitos camaradas lamentavam que se arriscava descaracterizar o PS (porque se correria o risco de "virar à direita") e outros queriam mesmo "virar ao centro" para ser agradável ao que pensavam que o eleitorado queria. Ora, com clareza, Zorrinho explicava que correr atrás do que se pensava ser a "procura eleitoral" e ajustar a nossa "oferta política" a esse "mercado dos votos" era uma atitude estranha à nossa função e à seriedade do nosso compromisso político. Escrevia o meu camarada, nessa altura: "Sem prejuízo dos necessários processos de modernização, o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam. O esquecimento recorrente desta ideia simples tem contribuído mais para o desprestígio da política do que muitos outros fenómenos de desgaste, mais mediáticos, mas também mais voláteis e ocasionais." 

Isto é muito atual porque, sendo certo que a posição atual do PS exige reflexão acerca dos caminhos a seguir, há quem julgue que vale tudo para recuperar votos. Vale tudo por recuperar votos poderia, até, passar por dar pão aos piores instintos que vão contra as nossas emoções democráticas: humanismo, consideração pelos mais vulneráveis (mesmo quando não tenham razão em certas conjunturas concretas), ver no Outro um Igual que é Diferente mas tem tanta dignidade como nós, não tentar resolver problemas sociais esmagando os que já estão na mó de baixo, ... Enfim, atitudes que os socialistas tendem a tomar espontaneamente, mesmo sem excessiva racionalização e sem excessivas considerações táticas. São "emoções democráticas" que, creio, nos honram. 

Se entramos numa "mercearia eleitoral" e começamos a fazer aquilo que parece que o eleitorado gosta, mesmo quando há eleitorado que gosta de coisas detestáveis, estamos a vender a alma em troco de uma via rápida para ganhar uns votos. Essa via rápida pode até dar algum resultado no imediato, mas torna-nos dispensáveis a prazo: se nós prescindimos da nossa diferença, se abandonamos aquilo que consolidou o nosso papel específico na sociedade portuguesa, não tarda deixará de haver motivo para sermos escolhidos. A única alternativa decente é fazer como escrevia Carlos Zorrinho: trabalhar nas nossas propostas e convencer as pessoas de que elas são as necessárias. A solução não será, em caso nenhum, deixarmos de ser quem somos e irmos na onda. A não ser que a escolha seja sermos engolidos pela onda. 

Porque, repito Carlos Zorrinho, "o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam" e "o esquecimento recorrente desta ideia simples tem contribuído mais para o desprestígio da política do que muitos outros fenómenos de desgaste, mais mediáticos".



Porfírio Silva, 14 de Julho de 2025

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9.7.25

"Sempre que um homem sonha"




No passado sábado (5 de julho 2025) deixei de ser Diretor do Acção Socialista, um dos órgãos informativos do PS. (Continuo a ser Diretor da revista de reflexão política Portugal Socialista.)
Para a edição de ontem do Acção Socialista digital diário, o novo Diretor, Pedro Cegonho, propôs-me que escrevesse um "Editorial Convidado" (ali, o editorial costuma estar reservado ao diretor - daí o "convidado").
Aceitei e aproveitei para clarificar, um pouco, o meu entendimento do que deve a imprensa partidária de um partido profundamente plural como é o PS.
Deixo aqui, para registo, esse texto. No fim, o link para a publicação original.


***

"SEMPRE QUE UM HOMEM SONHA" (Editorial Convidado)


A crença central de um revolucionário é a possibilidade de mudar o mundo da noite para o dia, com um golpe de asa decidido e decisivo. Às vezes é preciso que seja assim, quando a obstinação dos reacionários (dos que puxam para trás) insiste em travar o processo da liberdade, seja das liberdades ditas formais (sem as quais não há liberdade de espécie nenhuma), seja das liberdades concretas no mundo das pessoas comuns. Foi o que fez o povo português com o 25 de Abril. Contudo, a crença central de um socialista democrático é que as transformações profundas e duradouras, sustentáveis, orientadas para melhorar estruturalmente a vida de quem vive do seu trabalho, são processos incrementais, passo a passo, de procura contínua de respostas, corrigindo quando necessário, fazendo e aprendendo com o fazer.

Essa via “melhorista” – a estratégia de acumular melhorias incrementais – requer diálogo democrático, ação e interação, pluralidade de vozes, procura de respostas sem certezas absolutas (porque estas dificultam a construção coletiva de um caminho), capacidade para ouvir. É nesse elemento de democracia e de pluralismo que o Partido Socialista se afirma como força de transformação progressista da sociedade portuguesa. Somos assim, fomos criados assim (nem a decisão de fundar o Partido em 1973 foi unânime!) e é aí que vamos, uma e outra vez, buscar forças para recomeçar percursos e construir novos avanços, novas vitórias.

Os órgãos de imprensa do Partido são uma peça dessa forma de ser PS. Falando, neste caso, especificamente, do Ação Socialista: a sua missão, além de lhe competir espelhar a orientação oficial traçada pelos órgãos próprios de decisão política, inclui também a necessidade de expressar a riqueza institucional deste Partido, que (felizmente) não é monolítico.

Por isso, durante o meu mandato como diretor (um período complexo, com umas eleições europeias, duas eleições legislativas, crise política, eleições internas), procurámos criar espaço de expressão dessa nossa riqueza institucional. Além de refletirmos diariamente a atividade dos Grupos Parlamentares do PS na Assembleia da República, na Assembleia Legislativa Regional dos Açores (e, em geral, do PS/Açores) e na Assembleia Legislativa Regional da Madeira (e, em geral, do PS/Madeira), tivemos a participação regular (semanal) da Associação Nacional de Autarcas do PS, do Jovem Socialista, da nossa Delegação no Parlamento Europeu, da Tendência Sindical Socialista (que engloba a Tendência Sindical Socialista da UGT e a Corrente Sindical Socialista da CGTP) e das Mulheres Socialistas (MS-ID). Por ocasião das eleições internas (Federações), demos voz às diferentes candidaturas, incluindo nas estruturas onde havia disputa. Procurámos, também, alargar a atenção do Ação Socialista à ação dos nossos camaradas ativos na Diáspora (embora, aí, não tenhamos feito tanto caminho como desejámos).

Além dessa diversidade assente na riqueza institucional do PS (em cada uma das rubricas acima mencionadas, de estruturas dos socialistas, nunca interferi editorialmente no respetivo conteúdo), tenho a honra de poder afirmar que nunca recusei qualquer texto de opinião que me tenha sido proposto para publicação, por qualquer camarada, em qualquer tema. Quem compreenda a natureza plural do PS, compreende a importância de que o órgão central de imprensa traduza essa realidade profunda e constitutiva do nosso modo de ser partido.

Os partidos enraizados na vida de um povo são partidos com história e que trazem consigo as aprendizagens passadas. Os partidos com futuro são coletivos vivos, em movimento, em mudança. O PS é tudo isso: um partido enraizado, com memória, que não esquece nem oblitera os seus valores fundacionais, e um partido sempre a caminho de novos futuros. O Ação Socialista faz parte desse caminho. É, assim, com naturalidade, que muda, agora (no passado sábado, 5 de julho) de diretor. Desejo ao novo diretor, camarada Pedro Cegonho, o que estou certo acontecerá: que vá mais longe do que eu consegui fazer. E agradeço-lhe a oportunidade deste último editorial, que, pela minha parte, marca a normalidade de um passo que se segue a outro: é assim que se faz caminho. Caminhando e sonhando: “sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança”. Só que nós, socialistas, acreditamos que sonhamos melhor quando sonhamos acompanhados: sempre que muitos homens e muitas mulheres sonham, o mundo pula e avança!


(Publicação original aqui: "Sempre que um homem sonha".)



Porfírio Silva, 9 de julho de 2025
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7.7.25

Mini-podcast 4 - Entre a Democracia e a Oligarquia

09:07




O texto discutido neste episódio do mini-podcast pode ser lido aqui: Entre a Democracia e a Oligarquia.


Porfírio Silva, 7 de julho de 2025
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