Imunidade
Salto aquela parte em que é
preciso lavar as mãos antes
do acto. Entro directamente
na parte das bactérias em
que o sujo é belo e a vida
não admite lavagens.
Maria F. Roldão
súmula poética
antónio barahona da fonseca
ed. averno
um resumo da (mais recente) matéria dada por um dos nossos poetas mais singulares.
les choses
georges perec
ed. juilliard
foi editada recentemente uma tradução portuguesa, mas quis reler o original destas “coisas”. novela-maravilha, sem enredo, sem moral, sem diálogos, quase até sem personagens (jérôme e sylvie não têm qualquer espessura), em que os objectos (e a sua posse, claro!) desempenham um papel central. sub-titulado como “uma história dos anos sessenta”, não é uma crítica à falsa felicidade do consumismo, está na verdade muito para além disso. perec disse um dia: “acho que há uma ligação entre as coisas do mundo moderno e um tipo de felicidade, mas os que pensam que estava a condenar a sociedade de consumo não perceberam nada do meu livro”.
lembro-me
joe brainard + georges perec
ed. cutelo
logo após “les choses”, mergulhei no “je me souviens”, uma espécie de autobiografia fragmentária e confessional (inspirada no “i remember” de brainard, que aproveitei para reler) - estando as duas obras aqui emparelhadas em mais uma bela edição da cutelo.
decidi falar de pássaros
vv. aa.
ed. língua morta
compilados por joão vasco rodrigues (que interpõe textos seus subordinados ao mesmo tema), aqui estão reunidos muitos poemas em que aves e pássaros são protagonistas. podia ser uma recolha leve e etérea, mas resulta ser muito mais do que isso.
museu do romance da eterna
macedonio fernández
ed. antítese
este romance seminal da literatura argentina foi escrito no princípio do século xx, mas só viu uma primeira edição póstuma em 1967, quinze anos após a morte do autor. é impossível não o ver como antecedente da “rayuela” de cortázar, por exemplo. a história desenrola-se a partir de uma série (quase interminável) de prólogos, que precedem e anunciam uma história que nunca mais chega, porque macedonio percebera que o romance moderno se faz de desvios, possibilidades, digressões (ah, o borgesiano jardim dos caminhos que se bifurcam...). depois, temos a história de um homem viúvo que vai instalar-se numa estância campestre chamada “o romance” e...
ao puxar a culatra do longo silêncio
antónio amaral tavares
ed. do lado esquerdo
belíssima surpresa, a de um livro de um poeta amadurecido pela voz que emana da ausência de ruídos, do silêncio marinho que vem escrito no coração dos peixes, do silêncio de argila dos mortos. o poeta diz-nos que o silêncio não é fácil de encontrar, que o silêncio de deus é famoso, e letal o silêncio das serpentes, que pode ser ensurdecedor o silêncio das pedras e cheios de barulho os bolsos do silêncio. o poeta sabe que todo o poema é imperfeito (a morte nele convive com as palavras) e que não há vida para lá do poema, mas intui que é o medo do silêncio que conduz às margens da beleza. porque vale a pena puxar a culatra: o silêncio - mais que a cantiga - é uma arma.
tokyo express
seicho matsumoto
ed. penguin
um clássico (japonês) da literatura policial.
it never rains
roger mcgough
ed. penguin
quem julga que a poesia não pode ser divertida devia ser castigado com leitura obrigatória de roger mcgough. aqui há pérolas como: “ * writer’s block * - the excitement i felt / as i started the poem / disappeared on reaching / the end of the fourth line. ”
the wind-up bird chronicle
haruki murakami
ed. vintage
antecessora de “1Q84” e de uma peculiar espécie de realismo mágico japonês, esta foi a novela em três partes que definitivamente pôs murakami no mapa. várias histórias que se cruzam, entre o tempo presente e o passado durante a guerra da manchúria, enquanto o pássaro de corda faz andar o tempo.
the vegetarian
han kang
ed. granta
novela-maravilha, tão bela quanto terrível, alegórica e sombria, quase kafkiana, que nos conta uma história de obsessão e desejo e a luta de uma mulher contra uma violência (externa e interna) que a impede de ser vegetariana - e depois vegetal... bastaria este livro para ter ganho todos os prémios (booker, nobel) que na verdade ganhou.
os imbecis
vv. aa.
ed. e-primatur
contos, histórias e poemas de algumas escritoras russas, injustamente esquecidas pelos cânones da literatura.
o ouriço e a raposa
isaiah berlin
ed. guerra & paz
partindo de um fragmento do poeta grego arquíloco - “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante” - sob o nosso olhar é tecido um ensaio sobre a postura de tólstoi perante a história (ele, que era uma raposa a pensar que era ouriço... ou vice-versa?) e, entre outros, o dilema humano entre o monotismo e o pluralismo. brilhante.
the collected stories of… (volume three)
philip k. dick
ed. gollancz
este terceiro volume dos contos de dick contém pérolas como “sales pitch” (o triunfo da publicidade sobre a vontade?) e o famoso & cinematográfico “minority report” (custa a acreditar que foi publicado em 1956...)
manual de instruções para a morte
séneca
ed. v. s. editor
abrir o ano com as reflexões de lúcio aneu séneca, um estóico que nos ensinou que a morte é apenas uma parte da vida e que a devemos abraçar serenamente após uma vida plenamente vivida. excelente recolha de trechos das “cartas a lucílio” e das “consolações”, subordinados à ideia de que a inevitável morte apenas nos diz que devemos viver bem e não muito.
the shapeless unease
samantha harvey
ed. vintage
muito mais do que o diário de uma insónia prolongada...
los nombres que te he dado
josé mateos
ed. vandalia
cada vez gosto mais de poetas que o são sem o serem, que o mostram sem o quererem. este é um deles, e esta recolha da sua poesia ao longo dos últimos 40 anos valida a primeira frase. mateos é um daqueles que sabe que a linguagem nunca é suficiente para dizer o que sentem, e o que quer confessar jamais poderá ser dito com palavras. e que por isso escreve.
the collected stories of… (volume two)
philip k. dick
ed. gollancz
segundo capítulo de uma maratona distópica...
Estes poemas, disse ela
Estes poemas, estes poemas,
estes poemas, disse ela, são poemas
sem amor neles. Estes são os poemas de um homem
que abandonaria mulher e filho porque
faziam barulho no escritório. Estes são os poemas
de um homem que assassinaria a sua mãe para reclamar
a herança. Estes são os poemas de um homem
como Platão, disse ela, significando algo que eu não
compreendi mas que mesmo assim
me ofendeu. Estes são os poemas de um homem
que preferiria dormir consigo do que com mulheres,
disse ela. Estes são os poemas de um homem
com olhos como canivetes, mãos como as mãos de um
carteirista, poemas tecidos de água e lógica
e fome, sem nenhum fio de amor neles. Estes poemas
são tão cruéis quanto o canto dos pássaros, tão sem sentido
quanto folhas de olmo, os quais, se amarem, amam apenas
o amplo céu azul e o ar e a ideia
das folhas de olmo. O amor próprio é um fim, disse ela,
e não um princípio. Amar significa o amor
da coisa cantada, não da canção ou do canto.
Estes poemas, disse ela... Tu és, disse ele,
bela. Isso não é amor, disse ela com razão.
Robert Bringhurst
mortes fabulosas dos antigos
dino baldi
ed. cavalo de ferro
colectânea - vertida para português são e escorreito! (parabéns à editora) - de relatos de muitas mortes de inúmeras personagens, reais e mitológicas, povos, exércitos, cidades e outras entidades do mundo antigo, de um tempo em que a morte não era apenas o fim da vida e sim uma parte viva da vida. muitíssimo interessante.
revenge
yoko ogawa
ed. vintage
recolha de contos, alguns interligados (e quase todos muito bem conseguidos), que são uma boa introdução ao universo mágico e trágico de ogawa.
orbital
samantha harvey
ed. vintage
6 astronautas em missões científicas vivem confinados numa estação orbital. um deles recebe a notícia da morte da mãe e, naquele estranho mundo aparentemente imóvel mas à volta da terra a quase 30000 km/h, onde em 24 horas se experimentam dezasseis dias e dezasseis noites, a consciência de ser e observar um planeta azul à distância induz uma reflexão filosófica em todos eles... quase poético, ganhou o booker prize deste ano.
the grand equation
tom whlen
ed. black scat books
mais uma colecção-maravilha de micro-contos-feitos-poemas-em-prosa.
the city and its uncertain walls
haruki murakami
ed. harvill secker
a última novela de murakami é na verdade o retomar da primeira, que nunca tinha visto a forma de livro e que apenas aparecera numa revista. é a estreia da temática dos universos paralelos: a namorada de um rapaz desaparece misteriosamente, o que despoleta uma demanda que o conduz a uma cidade imaginária e a um emprego numa biblioteca onde por fim os dois mundos coalescem.
kafka
nishioka kyodai
ed. pushkin press
nishioka kyodai é um famoso duo irmã-irmão que desenham manga. neste livrinho-maravilha ilustram à sua maneira, em algo que é muito mais do que uma novela gráfica, nove contos famosos de kafka. algumas destas adaptações são pequenas obras-primas.
bonecas
tom whalen
ed. cutelo
mais um livrinho-maravilha da cutelo, com poemas em prosa e micro-ficções, sempre em torno do universo das bonecas. magnético, divertido, por vezes assustador - tudo o que a literatura deve ser.
a corneta acústica
leonora carrington
ed. antígona
durante algum tempo (algures no milénio passado) leonora carrington era para mim apenas uma pintora surrealista. depois dei com este livro, que li numa velha edição da penguin, e pouco a pouco fui entrando na atmosfera do seu universo peculiar. esta é a história de uma idosa a quem uma amiga oferece uma corneta acústica, o que lhe permite ouvir a família a discutir planos para a sua transferência para uma espécie de asilo. porém, já internada, fica a perceber que nada ali é o que parece - e as suas experiências, que têm algo de autobiográfico, são um bom cartão de visita para o que é mais nuclear na sua obra. muito recomendável.
poesia quase toda
zbigniew herbert
ed. cavalo de ferro
toda a gente devia ser obrigada a ler este livro.
all the beauty in the world
patrick bringley
ed. vintage
devastado pela morte precoce do seu irmão de apenas 26 anos, o autor deixa o emprego e, angustiado perante a dureza e fealdade do mundo que o rodeia, procura refúgio junto de algo belo - e torna-se guarda no metropolitan museum of art, aquele museu clássico ni central park de nova-iorque. e este seu relato-memória dos vários anos em que ali trabalhou, repleto de curiosidades e histórias reais, constitui um excelente testemunho do que a arte pode fazer pela vida - mesmo quando a vida parece nada fazer pela arte.
um artista da fome
franz kafka
ed. e-primatur
reunião de histórias e fragmentos escritos durante os dois últimos anos de vida do autor. destaca-se naturalmente o conto “um artista da fome”, provavelmente um dos melhores alguma vez escritos e saúda-se a inclusão como preâmbulo da célebre carta escrita em julho de 1922 a max brod, e que termina com a definição de escritor segundo kafka: o bode expiatório da humanidade, que permite aos seres humanos o prazer sem culpa, quase sem culpa, de um pecado.
a kiss for the absolute
shuzo takiguchi
ed. princeton univ. press
recolha de poemas de quem introduziu o surrealismo nas letras japonesas.