O golpe
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O golpe - Robson Pinheiro
2016.)
Vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.
APOCALIPSE 13:1
A besta que viste foi e já não é, e há de subir do abismo, e irá à perdição; e os que habitam na terra (cujos nomes não estão escritos no livro da vida, desde a fundação do mundo) se admirarão, vendo a besta que era e já não é, ainda que é.
APOCALIPSE 17:8
enha, Ângelo! — falou Pai João, convidando-me a voltar a um antigo local onde eu estivera antes com a equipe dos guardiões. — Ranieri nos aguarda, pois quer que veja algo que pode lançar luz sobre diversos acontecimentos. Porém, não iremos somente os três. Lower, o escritor que também faz parte da equipe, nos acompanhará, assim como Júlio Verne e dois guardiões.
Parece algo muito sério
— pensei, contudo, sem me pronunciar.
— O que veremos talvez ajude você e seus leitores a esclarecerem fatos pretéritos e até mesmo futuros, tendo em vista o que se passa atualmente no mundo, além de elucidar determinados aspectos relacionados à forma como você escreve os livros.
— Por que Lower vai conosco? Ele não está justamente em meio a uma imersão nos assuntos de espiritualidade, buscando entender os lances que lhe ocorreram?
— Exatamente por isso, Ângelo. Tal é a razão pela qual ele precisa revisitar certas memórias que o atormentam desde muito tempo, tanto quanto a alguns outros escritores e médiuns.
Encontramos Ranieri junto com Verne num dos meus locais prediletos na cidade de Aruanda.¹ Era um dos parques mais belos que já havia visto, repleto de flores e árvores de diversas cores e espécies, algumas das quais já extintas na Terra. Artistas caminhavam por ali, conversando sobre seus projetos para a próxima encarnação; grupos de espíritos bailavam sobre o local, deslizando sobre a atmosfera sutil da metrópole espiritual. O ar se mostrava deveras rarefeito, embora respirássemos sem dificuldade. Logo apareceu Lower, acompanhado dos dois guardiões citados. Em seguida, tomamos lugar numa nave pequena, envolta em potentes campos de força. Era o suficiente para nos conduzir em segurança até as regiões inóspitas que visitaríamos. Cumprimentei Lower e, enquanto conversávamos amenidades sobre o trabalho que eu desenvolvia com os encarnados, ele explicava:
— Durante muito tempo de minha vida, como você sabe, Ângelo, tive pesadelos intensos e recorrentes.
— Sim! Foi esse um dos motivos por que você me pediu, no passado, para participar da equipe de mais de 140 escritores, quase todos desencarnados, da qual faz parte hoje. Tanto os outros como você me escolheram como uma espécie de porta-voz e editor da turma.
— Isso mesmo. Porém, recentemente, pedi aos administradores da metrópole onde vivo para regressar ao ambiente que tanto me perseguiu ao longo dos anos, a respeito do qual me expressei em um dos meus contos. Foi a maneira como encontrei para me livrar das impressões de sonhos e pesadelos, tal como fizeram nossos amigos Vale Owen, W. Voltz e outros mais.² Comigo, no entanto, o incômodo persiste, portanto, eu queria muito revisitar o lugar. É como se houvesse algo relacionado àquelas memórias e imagens, algo indecifrável, que não consigo elaborar. Durante anos evitei retornar ao local, pois temo que as lembranças estejam deturpadas pela minha interpretação. Então soube que outros espíritos, alguns escritores, têm visitado o tal ambiente por causa da mesma inquietação. Não sei se, no meu caso, o desconforto é ainda maior, mas…
— E quanto aos orientadores desencarnados? Eles não lhe deram nenhuma dica a respeito, quem sabe sobre o significado dessas imagens e paisagens? Hoje sei que não são fantasias suas, pois Pai João e eu estivemos lá, juntamente com Ranieri e a equipe de Jamar.³
— Claro! Eu mesmo dei as coordenadas a Júlio Verne e a um dos guardiões a fim de facilitar a localização da caverna. De todo modo, a única orientação que recebi foi procurar o pessoal aqui, de Aruanda, e verificar a possibilidade de voltar ao local, junto com o velho João Cobú, caso possa me auxiliar. Precisava contar com sua ajuda também, pois você mergulhou mais fundo nas questões relativas à espiritualidade e sabe bem como esse assunto sempre me soou difícil e incompreensível. Talvez seja realmente a hora de rever locais aonde fui, segundo vocês dizem, em desdobramento e que, mais tarde, retratei em meus escritos.
— Que, aliás, são muito tensos e intensos, não é verdade?
— Em demasia, na verdade, Ângelo. Foi esse um dos motivos que me levaram a me juntar ao grupo de escritores e pedir para que você, na medida do possível, revisitasse os temas abordados por mim e desse a visão espiritual, portanto, mais real dos acontecimentos, retirando o acréscimo fruto da minha interpretação, muito dramática e recheada de figuras de linguagem que descambaram para o horror.
— Sabe o que concluí, Lower? Nenhum texto ficcional, seja romance, conto, novela ou outro gênero que se conceba, está de todo apartado de certas verdades. Creio sinceramente que você foi um médium; aliás, é um médium ainda deste lado da vida. Visitou, por meio de sonhos e do desdobramento, a realidade tal qual ela é. No entanto, como era um médium sem conhecimento de espiritualidade e nenhuma noção de espiritualismo, acabou dando sua própria interpretação aos fatos observados fora do corpo, sem qualquer pretensão além da ficção. Enfim, é um processo mais ou menos comum a toda criação artística.
"Quanto à nossa excursão, faremos o possível para lhe ajudar, até porque eu mesmo tenho muito a aprender com essas experiências. Pai João me convidou para revisitar determinado local, e agora sei do que se trata após conversar com você. O tempo que passei naquele ambiente, de fato, foi curto. Contudo, fico a imaginar o que o velho quer que eu entenda. De todo modo, as indicações que você nos deu foram essenciais para desvendarmos os mistérios envolvendo os donos do poder nas regiões sombrias do submundo. Sem sua contribuição, talvez restasse uma grande lacuna na história dos daimons."
Lower se acomodou, pensativo, num dos assentos da nave dos guardiões, enquanto Pai João olhava para mim, dando a entender que eu devia deixar nosso amigo acordar naturalmente para a realidade dos fatos. A experiência noturna vivida por ele no passado foi análoga à de outros escritores e alguns médiuns: mesmo local, mesmo contexto, ainda que em épocas diferentes. De qualquer modo, cada qual deve despertar para o contexto espiritual de tudo que o envolve no momento apropriado. Até mesmo eu ignorava que aquela nova visita aos lugares onde havíamos vivenciado certas histórias estaria associada a questões tão nevrálgicas e dramáticas no cenário internacional contemporâneo, notadamente no Brasil. À altura da partida, Pai João provavelmente já sabia muito mais do que deixava transparecer.
Enquanto deslizávamos pela atmosfera psíquica do planeta, adentrando domínios sombrios sob a tutela dos guardiões, Ranieri⁴ falou, ao passo que Verne permanecia em silêncio absoluto, como era do feitio dele.
— Como bem sabe, Ângelo, a maior parte de minha produção mediúnica foi realizada por meio do desdobramento, faculdade que Kardec chamou de sonambulismo.⁵ Visitava lugares e presenciava cenas na dimensão extrafísica, sob a condução de Verne, e, de volta à vigília, relatava as experiências em forma de texto. O que distingue dos seus escritos atuais, Ângelo, os livros produzidos por intermédio de minhas habilidades psíquicas são as figuras de linguagem que empreguei. Na minha época de encarnado, deparava com bastante rigidez mental do movimento espírita, que, de tão ortodoxo, incitou Verne a me recomendar tal estratégia. Depois de conversar longamente com Chico sobre minhas experiências fora do corpo, ele também me aconselhou a adotar a linguagem figurada, pois avaliávamos que, na ocasião, o leitor espírita médio ainda não estava maduro o suficiente para encontrar descrições objetivas da realidade.
— De certa forma, Ranieri, você preparou o caminho para que, décadas mais tarde, eu pudesse escrever sobre os mesmos fatos com uma linguagem mais direta. Também devem ser consideradas as características distintas dos médiuns dos quais Verne e eu nos utilizamos. Um deles, você, estava muito comprometido com o movimento espírita, cujas convenções lhe cerceavam bastante. Tendo em vista a falta de abertura mental à época, a opção pela linguagem simbólica parece-me, sinceramente, ter sido a mais apropriada. No meu caso, escrevo em parceria com alguém que conseguiu romper com certo igrejismo vigente e que não se interessa por transitar no movimento ortodoxo, embora atue no âmbito do espiritismo, isto é, da filosofia espírita. Isso me favorece tremendamente, pois assim posso me exprimir de modo mais livre, sem me preocupar com o que poderiam dizer, pensar ou divulgar no meio espiritista.
— Sim, hoje noto isso com clareza. Ainda bem que podemos nos unir, tanto médiuns desencarnados e alguns encarnados como diversos escritores deste nosso mundo, para falar, sem rodeios, aos que se encontram na carne. Verne, pelo que sei, está estreando na psicografia também.
Olhei cismado para o antigo autor francês, acomodado a alguns metros de mim e de Ranieri, na expectativa de que ele desse algum sinal de vida, mas nada. Permanecia mergulhado em pensamentos e parecia mesmo alheio a nós. Talvez estivesse conversando, por via telepática, com o velho João Cobú; talvez… Quem sabe apenas não quisesse se envolver.
— Não se preocupe, meu caro — falou Ranieri. — Verne é assim mesmo, de poucas palavras e dado a meditações profundas.
— E por acaso não sei?!
Aproximamo-nos da região extrafísica que era nosso destino. Pai João sabia muito bem o que deveríamos observar. Os dois guardiões, Dimitri e Antero, permaneciam calados, sobretudo porque estavam em contato ininterrupto com a equipe que ficara a cargo de vigiar o ambiente para o qual nos dirigíamos.
Desde nossa primeira visita, quando Lower nos informara acerca da localização da caverna ou do espaço dimensional onde se ocultava um dos senhores do abismo, Jamar destacara uma equipe de guardiões, em caráter permanente, incumbindo-a de montar equipamentos a fim de monitorar os estranhos fenômenos que ocorriam naquele lugar. Porém, eles não tinham resposta para tudo, muito pelo contrário. Faltava-lhes entender quais energias e equipamentos sustentavam aquele local, pois, com certeza, já há milênios era utilizado por um dos mais altos na hierarquia das sombras. No entanto, embora estivesse sob vigilância desde então, a área não era cercada, tampouco havia impedimento para que espíritos ali se apresentassem, desencarnados ou não. Tanto assim que, mesmo após ali comparecermos e desbaratarmos certos mistérios envolvendo o número 1 dos dragões, continuavam indo parar ali diversos médiuns, que acabavam por descrever o local de maneira análoga à forma como fizeram Lower e os que o precederam.
Era uma região inóspita. À medida que nos aproximávamos, cenas e imagens ligadas àquele local começavam a ser percebidas por todos nós. Havia algo ali que precisava ser desvendado oportunamente. Entretanto, aquele não era o momento adequado. Precisávamos descobrir outra coisa.
Ao desembarcarmos da pequena nave dos guardiões, percebemos que havia um contingente de mais de cinquenta entidades de prontidão no local, portando diversos armamentos elétricos e de pulsos magnéticos. Porém, não tivemos muito tempo para observar os detalhes envolvendo aquela guarnição nem os artefatos montados por eles para estudar o local. Como se uma força poderosa agisse sobre nossos corpos espirituais, fomos imediatamente conduzidos para dentro da caverna, como se esta fosse uma espécie de apêndice energético, uma bolha dentro do espaço-tempo. Para minha surpresa — mas não de Pai João nem de Ranieri ou Verne —, ali estava a diabólica entidade novamente.
— Mas… — balbuciou Lower, enquanto eu me achava completamente incrédulo diante do que via.
— Como pode a entidade estar aqui, neste ambiente — indaguei —, passado tanto tempo desde que o visitamos, se os maiorais foram destituídos do poder, isto é, não gozam mais do prestígio e da influência de outrora? Todos sabemos que estão em prisões eternas nas regiões do abismo, aguardando o último juízo para que sejam expatriados. Não entendo…
Lower parecia entrar num estado mental incomum ao rever as cenas que o incomodaram durante anos, mesmo depois de tudo que escrevera a respeito. Pai João o acolheu, colocando o braço direito sobre seu ombro, acalmando-o.
A entidade parecia imponente como sempre. O ambiente, como outrora, apresentava a atmosfera carregada de partículas eletromagnéticas incomuns. Acima de nós, não conseguia divisar o céu. Não sei se havia um céu naquela dimensão sombria. Havia alguma coisa leitosa no teto, como se não fosse o teto de uma caverna. Talvez por isso eu soubesse que a tal caverna, na realidade, era uma bolha energética incrustada em algum espaço dimensional.
Era apenas um céu diferente aquilo que víamos? A substância leitosa parecia ter vida própria, pois se mexia constantemente, movimentava-se, como se fossem nuvens inflando e se esvaziando, feitas de um material estranho a tudo o que era conhecido pelos homens da Terra. Depois de algum tempo lidando com esse tipo de ambiente, com a realidade de dimensões diferentes, eu ainda me impressionava.
Olhei atentamente e notei que Lower estava com as emoções à flor da pele. Não era para menos: como da primeira vez em que ali estive, o lugar permanecia deveras assustador. O amigo escritor, no entanto, vivia uma verdadeira catarse, como se eclodissem todas as sensações que sentira, de modo mais ou menos consciente, em seus pesadelos e tormentos recorrentes.
Eis que deparávamos com ele outra vez. Um ser ou um demônio, no verdadeiro sentido da palavra. Agora, porém, eu sabia se tratar de um ser advindo das estrelas, o que, na época do primeiro contato, eu não suspeitava por mim mesmo. Alto, mas de uma palidez que eu nunca vira em ninguém. Esbanjava elegância, diferentemente da ideia que se faz de um demônio. De olhos vivos, trazia cabelos cor de fogo, que desciam como cobras em torno do corpo esguio, até abaixo dos joelhos, e denotavam vida própria. Os cabelos apresentavam alguma mudança, mas somente depois eu pude perceber a realidade do que ocorrera ao longo de tanto tempo desde que estivéramos ali juntamente com os guardiões. Algo se transformara