Maracanã: quando a cidade era terreiro
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Sobre este e-book
Desdentados, mauricinhos, operários, doutores, macumbeiros e cristãos compõem a rica história da produção do "Maraca" como "encarnação do mito de convívio cordial da cidade do Rio de Janeiro", ao mesmo tempo enganador e afetuoso, nas palavras do autor.
Através de um texto leve e criativo, o imaginário popular e a história social se cruzam em um relato sobre o monumento que forjou o Brasil que conhecemos. Bom observador da fé do brasileiro, Simas promove reflexões com a originalidade intelectual que consagrou suas duas dezenas de livros.
Sem dispensar a qualificada literatura brasileira sobre o futebol, Simas recria o olhar sobre esse fenômeno. Tudo isso com método científico: a "observação participante" nos balcões dos botequins, nos trens do subúrbio, nas filas das bilheterias, nos isopores dos ambulantes e onde mais o futebol se manifestasse para além da arquibancada e da geral.
Uma obra especialmente importante para aquela pessoa que, por algum motivo, não teve a sorte de ser arrebatado pela paixão futebolística.
Irlan Simões
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Se você, leitor ou leitora, espera encontrar neste livro somente a história de um estádio de futebol, irá se surpreender. E por três motivos. O primeiro é que o Maracanã, como o livro nos conta, está longe de ser apenas um estádio. O velho "Maraca" é território, ou melhor, é terreiro. Estamos falando aqui, portanto, de um espaço de intersecção entre o sagrado e o profano, constituído por inúmeras relações, atravessado por dramas existenciais, alimentado por tragédias. O Maracanã é palco e personagem, passarela e estandarte.
O segundo é que a história do Maracanã é, ao mesmo tempo, a história do Rio de Janeiro e a história do Brasil. O autor consegue de forma magistral nos mostrar como o estádio, desde sua construção, fez parte de momentos cruciais da história do país. Basta lembrar que a década de 1950 foi o momento mais emblemático do processo de modernização da sociedade brasileira, ou seja, da integração do país aos marcos do capitalismo industrial. Mas, ao lado dos debates sobre um projeto nacional de desenvolvimento, da efervescência intelectual e artística, da Constituição de 1946, os "anos dourados" também nos apresentaram os problemas da tal modernização. Do Maracanã veio o aviso mais contundente das contradições dessa modernização, e na forma de uma tragédia: a final da Copa de 1950.
Mas o mesmo Maracanã que em seus primórdios sintetizou o ideal da integração de classes e da busca pela "homogeneização social", como dizia Celso Furtado, viu-se atingido pela vaga neoliberal. O que era lugar de encontro e de catarse coletiva, virou arena, que como diz o autor, "é a birosca da esquina gourmetizada em boteco de grife, é o espaço VIP no bloco de carnaval, é o camarote da cervejaria no Sambódromo, onde o que menos interessa é o desfile da escola de samba".
O terceiro motivo pelo qual o livro não é e nem poderia ser a simples história de uma construção é seu autor, Luiz Antonio Simas. Um dos mais destacados pensadores do Brasil. Um homem das encruzilhadas, das ruas, dos terreiros, lugares em que se ensina e em que se aprende, pois são lugares em que caminhos nos são oferecidos. Simas, como é do seu feitio, não nos deixa ficar sentados no estádio; ele nos leva a percorrer as ruas ao redor, as histórias e os múltiplos sentidos que fazem do Maracanã o protagonista deste livro.
Silvio Almeida
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Maracanã - Luiz Antonio Simas
MARACANÃ
QUANDO A CIDADE
ERA TERREIRO
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Marianna Araujo
Vitor Castro
EDIÇÃO E PREPARAÇÃO DO ORIGINAL
Marília Gonçalves
REVISÃO
Natalia von Korsch
CHECAGEM
Cassio Loredano
ILUSTRAÇÃO (CAPA)
Mulambö sobre foto de Ricardo Beliel
DESIGN E DESENVOLVIMENTO
Patrícia Oliveira
ISBN
978-65-86464-49-8
© 2021 MV Serviços e Editora.
Todos os direitos reservados.
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Esse livro vai na intenção e em memória de Gilmar Mascarenhas, mestre na arte de pensar os estádios e as cidades, e Joel Rufino dos Santos, meu professor de Brasil.
ÍNDICE
[ CAPA ]
[ FOLHA DE ROSTO ]
[ CRÉDITOS ]
[ DEDICATÓRIA ]
PRÓLOGO
PREPARANDO O TERREIRO
Bola, tambor e samba
A capoeira de chuteiras
A divindade de um Brasil mestiço
Pequenos papagaios e grandes cavalos
TIRANDO O ESTÁDIO DO PAPEL
As primeiras copas
Projetando o estádio
A ideia de Niemeyer
A Copa vem aí
Ary versus Lacerda: o Maraca na Câmara
A caneta de Mário
ABRINDO A GIRA
O Maracanã e o esqueleto
A marquise do mamute
A inauguração na base do vai da valsa
Rola a bola
Touradas em Madri e outras goleadas
A tragédia
O impacto
A DANÇA DOS ENCANTADOS
O último ato do gênio
O Fla-Flu das multidões
Castor de Andrade e o Pernambuquinho
Gols de placa
O milésimo gol
Maradona e o pé de Exu
O Flamengo do Zico e do Gerdau
O Fluminense do Careca do Talco
O America do saudoso Lamartine
O Vasco do Pai Santana
O Botafogo de Mané ao camburão
A Ditadura e os gigantes
Além do futebol
O Maraca cantado
DESENCANTO
Crise nos campos da rainha
O axé disperso
O fim da geral
O bem tombado
O destombamento
Crime e castigo
FRESTAS NO MURO
[ NOTAS ]
[ REFERÊNCIAS ]
[ AGRADECIMENTOS ]
[ SOBRE O AUTOR ]
[ FOTOS ]
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prólogo
A CAMISA DA SELEÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL — que já foi branca, é amarela e vez por outra azul — pareceu ser em outros tempos, não tão distantes, um exemplo daquilo que o romeno Mircea Eliade, filósofo e mitólogo, chama de hierofania: a percepção da existência do sagrado manifestada em um objeto material. A camisa, uma vez trajada pelos deuses do gramado, parecia virar manto de santo, vestimenta de orixá, cocar de caboclo, capa de Exu, terno de malandro, roupa de marujo; estandartes da aldeia que buscou definir-se a partir das artes de drible e gol. E o Maracanã foi o seu maior terreiro.
O jogador do escrete, quando colocava a camisa, se não era ele próprio percebido como um deus encarnado, virava cavalo do santo. Um mero instrumento do mistério que nos fez povo possível, nas fronteiras da bola. O manto canarinho parecia esconder segredos terríveis para os mortais que o enfrentavam, sucumbidos ao peso de toneladas de histórias.
Ela, a farda verde-amarela — amarrotada, bonita, feia, diferente, moderna, tradicional, mal trajada, rota, suada, intacta — parecia alma que vaga na hora grande, assombração no Recife Velho, dança de pretos mortos na Pedra do Sal, entidade encantada nas esquinas do Brasil, no tronco da jurema e nas vielas brasileiras da Mãe África. A camisa--entidade virava folha de mariô, baobá de tronco forte, bandeira cravada no Humaitá, canário da terra, pomba do Divino, lança de caboclo, verso de Aldir Blanc, lançamento de Didi, bola no peito de Pelé no rumo do gol.
Mas aos poucos o sagrado foi sendo profanado (percebemos?), numa espécie de hierofania às avessas, e o desencanto adentrou o gramado e o país. Não há mais estádio, mas arena. Não há mais o manto, mas o outdoor. Sai o torcedor, entra o cliente. O verde e amarelo do país possível parece ser, ao invés de manto, mortalha.
Era julho de 2014 e a Seleção Brasileira de Futebol acabava de sofrer a derrota mais contundente de uma história iniciada 100 anos antes. A primeira seleção enfrentara — e vencera por 2 x 0, em 21 de julho de 1914 — o clube profissional inglês do Exeter City no Estádio da Guanabara, como então se chamava o campo do Fluminense Futebol Clube, no Rio de Janeiro. Um século depois, entremeada por muitos triunfos e algumas tragédias, a trajetória da seleção ficaria marcada por um dos resultados mais espantosos da história do futebol: 7 x 1 para a seleção da Alemanha.
Jogando a segunda Copa do Mundo em casa, 64 anos depois de perder o título mundial para o Uruguai no Maracanã, a Seleção Brasileira abandonou naquele oito de julho a chance de disputar a final do torneio. Mas não de qualquer forma, senão superando alguns recordes da competição. Ao tomar em seis minutos os quatro gols mais rápidos da história das Copas do Mundo, a equipe transpôs a Suíça e El Salvador, ambas vazadas quatro vezes em sete minutos contra a Áustria, em 1954, e a Hungria, em 1982, respectivamente. E foi, ainda, a única vez que o país-sede tomou a maior goleada de uma Copa.
O jogo contra a Alemanha foi realizado no Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão, em Belo Horizonte. Ao ser batida, a Seleção Brasileira acabou disputando o terceiro lugar da competição contra a Holanda, em Brasília. Perdeu por inapeláveis 3 x 0.
O 7 x 1 transformou o Brasil no primeiro país-sede de uma Copa do Mundo a não disputar nenhum jogo no estádio principal do país, sempre palco da final da competição. No caso, o Maracanã. Dois estádios — ou duas arenas multiuso, conforme a nomenclatura do futebol do século XXI parece preferir — mergulharam em um silêncio de catacumbas naquela tarde de julho. O Mineirão, porque teve jogo. O Maracanã, porque não teve.
No dia do 7 x 1 havia uma roda de samba programada para comemorar a vitória que não veio, perto do Morro do São Carlos, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Assisti ao jogo em um apartamento próximo ao samba programado. Durante a vertigem dos quatro gols da Alemanha em tempo recorde, houve quem preferisse xingar a transmissão da televisão, julgando que cada gol germânico era apenas a reprise de um único tento, que em um looping interminável parecia nos afundar na experiência infinita da derrota. O 7 x 1 nunca acaba.
Assim que o juiz apitou o fim do tormento, a turma da roda de samba parecia não saber exatamente que diabos fazer. De súbito, o cavaco deu o tom, o repique seduziu o tantan, o solista molhou a goela e começou a cantar Conselho
, um samba de Adilson Bispo e Zé Roberto consagrado por Almir Guineto: Deixe de lado esse baixo astral / erga a cabeça, enfrente o mal / que agindo assim será vital para o seu coração
. O samba, logo cantado em coro, parecia soar como um recado que a turma do Estácio mandava para o futebol brasileiro: Tem que lutar, não se abater, só se entregar a quem te merecer
. O Brasil parecia não merecer mais o futebol brasileiro? Ou o nosso futebol, e o país, não mereciam mais o samba do Estácio?
Em outros tempos, o Brasil se pensava possível e talvez, no futuro, bonito como o futebol que jogava e original como um desfile da Mangueira com Cartola e Nelson Cavaquinho na comissão de frente. Ao adentrar os campos nos corpos brasileiros, a camisa era como a veste enfeitiçada de panos coloridos dos Egunguns, ancestrais conduzidos por Oyá, senhora dos ventos, a dona dos nove espaços dos gramados onde forjamos maneiras de sonhar um país.
Laroiê, Exu! Rogar não custa: tem como conceder, zombeteiro, ao bando de carolas que te acham o demônio e tomaram os gramados, desencantaram a camisa e parecem ter tomado o país, o poder e a ginga do teu jogo de malandro, dono dos dribles mais desconcertantes? Era você, meu compadre, que parecia baixar nos gramados no corpo do teu cavalo Manoel, o passarinho Garrincha, e dava a volta ao mundo com a bola no pé, como Mangangá bailava na roda de capoeira ao toque de São Bento Grande.
Por isso, este livro, feito gira, começa com uma evocação que é reza e ebó para despachar o carrego e reencantar a aldeia. Bate no chão teu ixan sagrado! Bate o bastão que chama os ancestrais. Traz todos eles, Iansã, arrepia o vento dos Egunguns bailando com mil bolas nos pés. Chama os meninos descalços da pracinha de Bangu; chama Friedenreich; chama Leônidas da Silva; chama Preguinho; chama Fausto; chama Jaguaré; chama Domingos da Guia; chama Danilo; chama Ademir Queixada; chama Zizinho; chama Barbosa; chama Friaça; chama Castilho; chama Vavá; chama Didi; chama Heleno de Freitas; chama Obdúlio Varela; chama Gigghia; chama Belinni; chama Orlando Peçanha; chama Nilton Santos; chama Mané Garrincha; chama Almir Pernambuquinho; chama Washington e Assis; chama Jayme de Almeida; chama Dulce Rosalina; chama Pai Santana; chama os operários que construíram o estádio; chama as lavadeiras da favela do Esqueleto; chama todas as almas dos corpos que bailaram nos gramados; chama as almas de geraldinos e arquibaldos.
Chama o Maracanã: chama, chama, chama...
1
preparando
o terreiro
O BRASIL ESTÁ MORTO
(O Globo, Rio de Janeiro); Aqui jaz o sonho
(A Tarde, Salvador); Luto, vergonha, humilhação, apagão
(Jornal do Comércio, Recife); Humilhação histórica
(Folha de S. Paulo, São Paulo); A Derrota das derrotas
(Gazeta do Povo, Curitiba); Humilhação
(O Liberal, Belém); Massacre
(A Gazeta, Vitória); Um vexame para a eternidade
(Correio Braziliense, Brasília); Humilhação em casa
(O Estado de S. Paulo, São Paulo); Vexame
(O Estado do Maranhão, São Luís); Humilhante
(Folha de Londrina, Londrina); Vexame para sempre
(Amazônia, Manaus). Os jornais do dia seguinte ao 7 x 1, em todo o país, retratavam a derrota em manchetes que dimensionavam o acontecimento no campo da catástrofe, do vexame histórico, da humilhação, do inacreditável e da morte.
Alguns preferiram louvar a memória dos derrotados na final da Copa do Mundo de 1950, numa espécie de ajuste de contas com o passado. O Diário de Pernambuco afirmou: Barbosa, descanse em paz
. Abaixo da manchete, esclareceu: Moacir Barbosa Nascimento, goleiro do Brasil na Copa de 1950, morreu no dia 7 de abril de 2000 carregando para o seu túmulo uma injusta culpa pela derrota contra o Uruguai no Maracanã. Uma decepção que, pensava-se, jamais seria repetida. Infelizmente, aconteceu. A derrota de ontem envergonhou a nação, mas redimiu Barbosa
. O jornal Extra, do Rio de Janeiro, trouxe na capa do caderno de esportes: Parabéns aos vice-campeões de 1950, que sempre foram acusados de dar o maior vexame do futebol brasileiro. Ontem, conhecemos o que é vexame de verdade
. O jornal O Dia, também do Rio de Janeiro, preferiu mandar o técnico Luiz Felipe Scolari para o quinto dos infernos.
Não vai ter capa
. O Meia Hora, popular jornal carioca, publicou em letras brancas garrafais sobre um fundo preto uma das capas mais imaginativas daquele dia. A manchete fazia referência ao Não vai ter Copa
, grito de resistência de diversos movimentos sociais contrários à realização do certame no Brasil, acentuado após os múltiplos protestos e mobilizações que marcaram o país em 2013. No futebol, o grito era dimensionado por uma série de bandeiras e denúncias: a dinheirama gasta na organização; o caderno de encargos da Federação Internacional de Futebol (Fifa); as remoções urbanas friamente justificadas pelas necessidades do torneio; a destruição de estádios ao arrepio do patrimônio histórico; a construção de arenas assépticas que apontavam para a elitização da frequência aos jogos.
As imagens dessas capas, invariavelmente, flertavam com a dor e a catástrofe. Retratavam rostos desesperados pintados de verde e amarelo nas arquibancadas, crianças abrindo o berreiro, ruas desertas e jogadores aos prantos, com seus corpos esparramados de bruços no gramado, as camisas amarelas mais parecendo mortalhas de defuntos depois de uma inapelável derrota numa batalha de infantaria. Ainda no calor da tragédia, dentro de campo, o zagueiro David Luiz deu a primeira declaração sobre o jogo, pedindo, entre lágrimas, desculpas ao povo brasileiro: Eu só queria poder dar uma alegria ao meu povo. Eu só queria ver meu povo sorrir. Todos sabem como era importante pra mim ver o Brasil inteiro feliz pelo menos por causa de futebol. Desculpa
.
As manchetes de jornais, mesclando a dor, o luto e a humilhação nacional, e o pedido de desculpas do zagueiro da seleção a um genérico povo brasileiro — tratado como um ente homogêneo empenhado em torcer pelo triunfo da seleção e encontrar no título mundial a alegria em dias conturbados — pareciam ecoar a máxima de Benedict Anderson sobre comunidades e nacionalismos: As comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas
(Anderson, 2008, p. 33).
No Brasil, o futebol ocupou um lugar de centralidade na produção da identidade nacional e na invenção daquilo que caracterizaria um projetado ‘ser brasileiro’. A fala envergonhada de David Luiz, após o jogo dimensionado como uma tragédia nacional mesclada à humilhação sem precedentes, ecoa a percepção de que a invenção do ‘ser brasileiro’ tem no amor pelo futebol um de seus elementos característicos mais evidentes.
O sentimento de pertencer a determinado território amalgamado a um Estado — elemento fundante dos nacionalismos — é historicamente produzido e reproduzido de maneira dinâmica: alterado, inventado e reinventado, ainda que pareça eterno, natural e dotado de fixidez. Na construção desta ideia, no Brasil, o futebol percorre uma trajetória cruzada ao percurso do samba e da umbanda.
Assim como o esporte, o gênero musical também começou a ser visto como um componente daquilo que nos definiria, no terreno fértil do imaginário e suas projeções simbólicas, como ‘povo’. O samba, em suas diversas vertentes, é uma manifestação musical e coreográfica oriunda das culturas afro-brasileiras. A enzima que gerou o samba bebe na célula rítmica dos tambores ancestrais centro-africanos, do Congo e de Angola. Aquela que cruza o mar em virtude da tragédia da diáspora preta e, nas encruzilhadas do Novo Mundo, se reelabora como um empreendimento inventivo de construção da vida no precário. A poderosa manifestação cultural gestada pelos descendentes de africanos foi elevada à condição de símbolo nacional. Talvez em virtude da sua força e originalidade, talvez como estratégia cordial de dominação e domesticação produzidas pelas elites brasileiras. Ou quem sabe como o resultado do cruzamento entre as duas coisas (Fry, 1982, p. 52).
Bola, tambor e samba
CURIOSAMENTE, O FUTEBOL FEZ ENTRE NÓS o caminho inverso ao do samba, até que se encontraram nas encruzilhadas brasileiras. O samba surgiu entre as camadas mais pobres de descendentes de africanos e chegou às camadas médias e elites, especialmente com o advento do rádio e do disco, na primeira metade do século XX. O futebol no Brasil é um jogo inicialmente praticado pelas elites que vai se popularizando com o tempo. Os diversos mitos de origem do futebol entre nós — a consagrada versão do esporte introduzido por Charles Miller; o jogo difundido em Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro; a difusão do esporte pela região da Bacia Platina; o jogo trazido pelo alemão Hans Nobiling; a brincadeira praticada nos colégios de padres de São Paulo etc. — concordam sobre o caráter predominantemente elitista do esporte na virada do século XIX para o século XX.
Trazido da Inglaterra, introduzido como lazer de jovens das camadas dominantes e nas fábricas por trabalhadores ingleses, foi se popularizando, reencantado pelos subalternizados, ganhando múltiplas dimensões e significados. Cooptou e foi cooptado pelo poder público, impactado pela velocidade da popularização do esporte, e por segmentos da intelectualidade, especialmente a partir da década de 1930. Aquela geração de intelectuais e homens públicos estava empenhada em imaginar a solução da identidade brasileira a partir do idealizado caráter mestiço do povo e da cultura que ele produz. O futebol e o samba caíam como uma luva nesse projeto.
É emblemático observar a curiosa relação entre as trajetórias de Noel Rosa, o Poeta da Vila, e Leônidas da Silva, o Diamante Negro. Noel nasceu em 1910 e cresceu como um menino branco de Vila Isabel, bairro carioca de classe média. Chegou a estudar no Colégio São Bento, um dos mais tradicionais do Rio de Janeiro, cursou medicina durante um ano e mandou o jaleco branco às favas quando se apaixonou pela música que saía das esquinas, terreiros e botequins do bairro do Estácio. Era a turma de Ismael Silva, Bide, Brancura, Baiaco, Marçal, Mano Rubem, Edgard, Getúlio Marinho, Tancredo Silva e outros. Leônidas, nascido em 1913, foi um menino negro de São Cristóvão, bairro chique nos tempos do Império que perdeu prestígio com a proclamação da República. Adotado pela família da casa em que a mãe trabalhava como empregada doméstica, apaixonou-se ainda garoto por um esporte que engatinhava no Brasil: o futebol.
Quando nasceram, seria plausível imaginar um futuro Noel Rosa jogando futebol, quem sabe marcando gols de bicicleta na Copa do Mundo de 1938, e um Leônidas da Silva sambista, quem sabe cantando "Conversa de