Avieiros, hoje
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Sobre este e-book
Esta fusão deu origem a uma cultura ribeirinha com características próprias (barcos, casas, gastronomia e religião), mas muito marginalizada, sobre a qual o neorrealista Alves Redol escreveu em 1942. Hoje, ainda subsistem alguns vestígios desta vivência nas margens do Tejo e na Praia da Vieira. Este livro vai em busca deles, antes que desapareceram.
João Francisco Gomes
João Francisco Gomes é jornalista. Nasceu em Leiria em 1995 e cresceu em Vieira de Leiria. É licenciado em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação Social e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Escreve no Observador desde 2016. Recebeu, em 2017, o Prémio de Jornalismo Dom Manuel Falcão, que distingue trabalhos jornalísticos de temática religiosa. Foi um dos autores de uma série de reportagens de investigação sobre os abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal, publicada em 2019 e distinguida com vários prémios de jornalismo, incluindo o Prémio Gazeta de Multimédia.
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Avieiros, hoje - João Francisco Gomes
Prólogo: Avieiros, hoje
No dia 15 de janeiro de 2019, o diretor do semanário Região de Leiria enviou-me uma mensagem. «Tenho um desafio para te colocar», escreveu-me, convidando-me para um café.
Aceitei de imediato.
Mesmo não sabendo de que se tratava, era impossível não ficar entusiasmado. O Francisco Santos é um jornalista experiente, que em muito tem contribuído para que a imprensa regional de Leiria seja um exemplo a nível nacional, especialmente através da forma como procurou inovar o histórico jornal que dirige. Com quase um século de vida, o Região de Leiria é uma referência fundamental na zona centro e um dos principais responsáveis, a par do Jornal de Leiria, pela existência de uma imprensa regional de qualidade, escrutinadora e rigorosa no distrito de Leiria. As múltiplas distinções, nacionais e internacionais, que o seu jornalismo, design e presença digital têm recebido nos últimos anos comprovam-no de forma excecional. Trata-se, em primeiro lugar, de um enorme privilégio para os leirienses: os jornais regionais constroem comunidades mais esclarecidas e informadas, capazes de refletir simultaneamente sobre os problemas do mundo e do país, a realidade das suas comunidades, e a cultura e tradições próprias de cada lugar.
A responsabilidade de, além de ir ao fim do mundo, ir também ao fim da rua (como a TSF sintetizou o seu jornalismo) é ainda mais relevante num país como Portugal, em que a centralidade da capital tantas vezes oblitera as particularidades de um território com uma profunda diversidade cultural e humana — que, paradoxalmente, é usada com frequência a partir de Lisboa para ilustrar, muitas vezes sem a compreender verdadeiramente, a riqueza do país. Aliás, estou certo de que a elevada qualidade da imprensa regional leiriense, onde o meu pai, o primeiro jornalista a cativar-me para a beleza da profissão, trabalhou nos anos 80 e 90, foi decisiva para a minha própria vida.
Gastei algumas linhas do início deste livro a elogiar o Região de Leiria e a imprensa regional por uma razão simples: as reportagens que compõem este pequeno volume não existiriam se não tivesse sido o rasgo e a aposta decidida do Francisco Santos, um diretor consciente da primordial relevância dos jornais locais e regionais para o estudo e preservação da cultura e da memória histórica que integram o imaginário coletivo da região que servem.
Encontrámo-nos quatro dias depois daquela troca de mensagens, numa tarde chuvosa de sábado, num pequeno café da baixa de Leiria, onde me foi apresentado um desafio que tinha tanto de jornalismo como de autodescoberta: escrever uma revista de quarenta páginas sobre a cultura avieira, para integrar uma coleção de revistas temáticas que o Região de Leiria publica algumas vezes por ano, acerca de múltiplos aspetos da cultura e da história do distrito de Leiria.
Tratava-se de contar a história dos avieiros, é certo, mas o desafio era ir mais longe. Importava perceber o que é feito desta cultura nos dias de hoje. Um dos ângulos que discutimos desde o primeiro momento foi o de fazer uma leitura contemporânea de Avieiros (1942), de Alves Redol, procurando perceber que atualidade têm as histórias incluídas naquela obra, que descreve, com um detalhe por vezes agoniante, a vida sofrida das comunidades de peixeiras e pescadores à beira do Tejo.
As linhas de fundo da história dos avieiros resumem-se de modo simples: entre o final do século XIX e o início do século XX, largas centenas de pescadores da arte xávega¹ da Praia da Vieira rumaram até às margens do rio Tejo em busca de trabalho no inverno, época em que a violência do mar impossibilitava a faina em segurança e, por conseguinte, o sustento das famílias que dependiam exclusivamente da pesca. Ocuparam uma larga extensão das margens do Tejo, desde a zona de Vila Franca de Xira até perto da fronteira com Espanha, embora se tenham concentrado especialmente no Ribatejo. A busca de trabalho no inverno deu origem a um movimento migratório que marcou profundamente a região centro do país. De natureza essencialmente pendular (as famílias passavam o verão na Praia da Vieira e o inverno no Tejo), aquela migração anual deu, gradualmente, origem a uma cultura própria: os avieiros. Uma das principais características desta cultura foi a marginalidade. Quem vive entre um lugar e outro passa sempre a ser de lugar nenhum — e arrisca viver à margem, onde quer que esteja. Muito pobres, os avieiros começaram por viver nos seus pequenos barcos, amarrados nas margens do rio, antes de construírem as primeiras aldeias de lata nas praias; com o tempo, muitos fixaram-se no Ribatejo, casaram e abandonaram a sazonalidade da migração. Hoje, é possível identificar o rasto desta cultura em pequenos detalhes, símbolos de uma inusitada conexão entre o litoral leiriense e o Ribatejo — como os apelidos comuns e as famílias dispersas entre Vieira de Leiria e o Ribatejo, mas também em projetos autárquicos, como a geminação entre os municípios da Marinha Grande e de Salvaterra de