Serviço social e edução infantil: do mal necessário ao direito
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Serviço social e edução infantil - Deise Gonçalves Nunes
1
As primeiras incursões do Serviço Social na área da infância
Entre abandonados
, delinquentes
e degenerados
1.1. Antecedentes
§ 1o — Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor (BRASIL, 1871).
No Brasil, o abandono, a violência e o desamparo de crianças são fenômenos que se constituem historicamente, e estão referidos ao processo de (re)produção de um modo de vida e de trabalho que é socialmente determinado. Durante a predominância da escravidão, as crianças foram submetidas às mais duras condições de vida, apartadas de suas mães, de seus vínculos afetivos, de brincadeiras, jogos infantis. Existem poucos estudos históricos sobre as condições de vida dessas crianças, e alguns foram produzidos a partir de leituras feitas pelos estrangeiros que visitavam o Brasil e deixavam suas impressões nos relatos de viagem. Mott (1979), analisando a literatura produzida por alguns viajantes que estiveram no país entre 1800 e 1850, relata que muitas crianças eram trazidas da África para serem escravizadas, em consequência tanto da baixa reprodução dos escravos no Brasil — os homens eram numericamente muito superiores às mulheres — quanto da alta mortalidade dos filhos dos escravos que aqui nasciam, derivada do baixo valor da vida humana no mercado de escravos. A facilidade em comprar crianças escravas vindas diretamente da África determinava os maus-tratos e o abandono de bebês e recém-nascidos daqui. Alguns trechos extraídos de literatura de viagem destacam as cruéis condições de vida das crianças:
Alguns molequinhos de três a quatro anos voltavam com a sua ração de feijão que os frágeis estômagos mal podiam digerir: por isso quase todos tinham grandes barrigas, cabeças enormes, pernas e braços delgados, todos indícios de raquitismo. Causava dó vê-los e eu nunca pude compreender por que, mesmo por especulação, os negociantes de carne humana não tratavam mais cuidadosamente suas mercadorias (Adele Toussaint-Sanson, 1851 apud LIMA; VENÂNCIO, 1991, p. 32).
Em geral, as crianças pequenas viviam junto às suas mães ou às famílias dos senhores até a idade de cinco ou seis anos. A desigualdade entre as pretas e as brancas logo era demarcada e naturalizada; as crianças negras eram tratadas como brinquedos das crianças brancas, os moleques
, os sacos de pancadas
ou, simplesmente, como animais de estimação das sinhás:
Aonde quer que as senhoras da casa se dirigiam, esses animaizinhos de estimação são colocados nas carruagens... Eles são filhos e filhas da ama de leite da dona da casa... (KIDDER; FLETCHER, 1853 apud LIMA; VENÂNCIO, 1991, p. 33).
Essa desigualdade ia se configurando no cotidiano, dentro da estrutura do espaço privado das casas dos senhores, e se constituía como padrão de sociabilidade inconteste. Materializava-se no trabalho doméstico e produzia relações de poder que reverberavam no espaço público entre senhores e escravos/escravas, homens e mulheres, brancos e negros. As crianças escravas eram usadas nos afazeres domésticos ou em pequenos serviços até atingirem a idade de 12 anos, quando já eram consideradas adultas e possuíam valor mercantil, sobretudo após a proibição do tráfico negreiro (1850). Entravam precocemente no trabalho pesado, tanto na lavoura quanto no engenho. As adolescentes podiam se tornar objeto sexual de senhores, feitores ou sinhozinhos.
A violência interpessoal não se constituía como tal, num contexto em que a violência estrutural não tinha nenhum sentido social e político. Mott (1979), em seu estudo sobre pedofilia e pederastia no Brasil antigo, quase não encontrou registros dos casos de cometimento de violência contra escravos. Um dos que analisou foi o de um padre pedófilo que confessou seus desvios
contra meninas escravas de cerca de seis ou sete anos e sustentou o seu remorso não pela violência cometida, mas por ela ter sido praticada pelo abominável pecado de sodomia
. O seu medo era de sofrer penalidade por ter cometido tal pecado, e não pela corrupção e violência praticadas contra as meninas. Ou seja, como não havia nenhum reconhecimento da humanidade dessas crianças, não havia sequer a suposição do mal praticado contra elas.
Ou, ainda, nos relatos de viagem em que se descrevem os horrores das práticas de tortura contra as crianças escravas; os grilhões — máscaras, colar e correntes de ferro — também eram usados nas crianças escravas.
A casa ao lado da nossa era ocupada por um artífice. De lá, ouviam-se constantemente os mais horríveis gritos e gemidos. Eu entrei na loja um dia e vi que o seleiro tinha dois meninos trabalhando para ele [...] (que) tinha feito um açoite de couro com um azorrague russo, que segurava na mão e se exercitava, dentro de uma sala, com uma criança nua; essa era a causa dos gritos e gemidos que ouvíamos todos os dias e quase o dia todo (WALSH, 1830 apud MOTT, 1979, p. 62).
O silêncio daqueles que experimentavam na carne essas situações irreparáveis de sofrimento reforçava uma forma unilateral de narrativa. Os limites entre a esfera privada e a pública eram frequentemente rompidos, e o poder familiar diluía a ação do poder público. Portanto, embora houvesse leis que procurassem pautar no debate político o tema da escravidão, por exemplo, a controvertida Lei do Ventre Livre, na prática, ela serviu para proteger o espaço privado dos riscos dos excessos, flexibilizando sua execução e permitindo categorizar aqueles que deveriam ser protegidos como seus potenciais transgressores.
A Lei do Ventre Livre construiu, de forma inequívoca, a ideia da culpabilização da mãe pelo abandono de seus filhos e de insubordinação e criminalização dos descendentes de escravos que à lei não se submetiam. Tanto a culpabilização quanto a criminalização foram signos importantes que marcaram discursos e práticas que emergiram no denominado sistema de proteção à infância do século XX
.
O período de transição ao trabalho assalariado foi permeado por uma ordem política e moral em que havia a preservação do poder dos senhores, sobretudo, com relação a castigos e punições. Isso permitiu que as relações de exploração e dominação que se exerciam sobre a mulher e seus filhos pequenos ficassem protegidas e até pudessem transpor os limites domésticos sem riscos de qualquer natureza. O isolamento da mulher nesse contexto propiciou a construção de uma prática integrada a um quadro desolador de desigualdades sociais estruturais de nossa sociedade.
No contexto das relações de violência repactuadas na Lei do Ventre Livre, podemos destacar a associação da ideia de perversão, violência e abandono às mães, numa produção de valores morais invertidos e reproduzidos para legitimar as mais diversas práticas. Com dois dias de parto, por exemplo, em muitas fazendas, as mulheres eram obrigadas a retornar ao trabalho duro, na coleta de cana, sob sol escaldante e, somente no final do dia, podiam amamentar seus filhos.
O processo de subordinação e dependência das crianças com relação aos senhores de suas mães refletia o impacto e os nexos das relações entre o comércio negreiro e o espaço privado de poder dos senhores donos dos escravos. Após a proibição do tráfico, decretado em 1831, mas só efetivado em 1850, aumentaram os cuidados com a preservação das crianças escravas, pois elas poderiam ser comercializadas internamente havendo, inclusive, referência a uma lei que alforriava o escravo que desse dez filhos ao seu senhor (WALSH, 1830 apud MOTT, 1979).
Ao mesmo tempo, cabe registro da construção da ideia de vadiagem associada aos insubmissos, àqueles que fugiam e às mulheres que não concordavam em submeter seus filhos à violência das condições impostas à libertação de seus ventres: a permanência dos filhos com os antigos senhores até a idade de oito anos quando poderiam decidir entre se utilizar de seus serviços até os 21 anos ou entregá-los ao Estado, mediante indenização, paga em títulos de renda, com juros anuais de 6%, durante 30 anos (LIMA; VENÂNCIO, 1996). Cessaria a prestação dos serviços das crianças com menos de oito anos se fosse constatado, por um juízo criminal, que o senhor praticava castigos excessivos
. Se a escrava fosse libertada, poderia ficar com os filhos menores de oito anos e, no caso de venda ou herança, as crianças menores de 12 anos deveriam acompanhar suas mães, transferindo-se para o novo senhor os direitos sobre o seu trabalho e os encargos de criá-las.
A incompletude da Lei do Ventre Livre produziu um aumento do número de crianças sem casa, abandonadas, desamparadas. A produção dessa violência, num contexto em que tal prática era naturalizada, foi cometida dentro dos ditames legais, produzindo e reproduzindo laços e narrativas que se propagaram no tempo e no espaço, rompendo os limites do espaço privado da relação senhor/escravo para dominar o espaço público.
As enunciações logo passaram a ter equivalentes ideológicos mais sofisticados, com manipulações e transbordamentos de sentidos que serviriam a distintas práticas e expressões: enjeitados, abandonados, delinquentes, mães desequilibradas, imorais, violentas. A cada um desses signos destinavam-se práticas institucionais construídas ao longo dos anos seguintes, com a organização do sistema sociojurídico vinculado ao Código de Menores de