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Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista
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E-book280 páginas4 horas

Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista

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Sobre este e-book

Obra maiúscula de um dos grandes sociólogos brasileiros em atividade Segundo a Organização Internacional do Trabalho, hoje ainda há 27,6 milhões de trabalhadores, no mundo inteiro, sob diferentes formas de escravidão. Destes, quase quatro milhões estão nas Américas. Neste livro, o autor se propõe a desvendar e explicar essa anomalia social e moral no contexto brasileiro, com base na informação empírica já abundante sobre o tema da continuidade disfarçada da escravidão no período pós-escravista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de dez. de 2023
ISBN9786557145104
Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista

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    Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista - José de Souza Martins

    Capa_14x21-1.jpg

    Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista

    FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador

    Mário Sérgio Vasconcelos

    Diretor-Presidente / Publisher

    Jézio Hernani Bomfim Gutierre

    Superintendente Administrativo e Financeiro

    William de Souza Agostinho

    Conselho Editorial Acadêmico

    Luís Antônio Francisco de Souza

    Marcelo dos Santos Pereira

    Patricia Porchat Pereira da Silva Knudsen

    Paulo Celso Moura

    Ricardo D’Elia Matheus

    Sandra Aparecida Ferreira

    Tatiana Noronha de Souza

    Trajano Sardenberg

    Valéria dos Santos Guimarães

    Editores-Adjuntos

    Anderson Nobara

    Leandro Rodrigues

    JOSÉ DE SOUZA MARTINS

    Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista

    © 2023 Editora Unesp

    Direitos de publicação reservados à:

    Fundação Editora da Unesp (FEU)

    Praça da Sé, 108

    01001-900 – São Paulo – SP

    Tel.: (0xx11) 3242-7171

    Fax: (0xx11) 3242-7172

    www.editoraunesp.com.br

    www.livrariaunesp.com.br

    atendimento.editora@unesp.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410

    M386c

    Martins, José de Souza

    Capitalismo e escravidão no Brasil pós-escravista [recurso eletrônico] / José de Souza Martins. – São Paulo: Editora Unesp Digital, 2023.

    Inclui bibliografia.

    ISBN: 978-65-5714-510-4 (Ebook)

    1. Sociologia do trabalho. 2. Brasil. 3. Escravidão. 4. Capitalismo. 5. Brasil pós-escravista. I. Título.

    2023-3030

    CDD 306.360981      

    CDU 316.334.22(81)

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Sociologia do trabalho 306.360981

          2. Sociologia do trabalho 316.334.22(81)

    Editora afiliada:

    Em memória de Dom Pedro Casaldáliga, bispo-prelado de São Félix do Araguaia (MT), que, em sua primeira Carta Pastoral, de 1971, deu à coerção e sujeição dos trabalhadores na abertura de novas fazendas, na expansão da fronteira econômica, na Amazônia, o nome correto do que é o trabalho de quem vive sob a violência da injustiça: escravidão.

    Para a Dra. Rachel Cunha e os servidores do Grupo Móvel de Fiscalização que, no Ministério do Trabalho, no governo FHC, a partir de 1995, sob risco de suas próprias vidas, cora­josamente asseguraram a eficácia do combate ao trabalho forçado no Brasil.

    Para o Professor Fernando Henrique Cardoso que, Presidente, em 1995, criou e apoiou pessoalmente o Gertraf – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, das ações de combate à persistente escravidão entre nós, e legou ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva, pronto e acabado, o Plano de Erradicação do Trabalho Infantil e Escravo, preparado durante 2002.

    Sumário

    Introdução: A conquista do Outro

    Capítulo I – Por uma teoria da escravidão contemporânea

    O drama e o método

    Origens capitalistas da escravidão atual

    O escravo como renda capitalizada

    Capítulo II – O sujeito sociológico da escravidão

    Capítulo III – Escravidão: um problema de sociologia do conhecimento

    Capítulo IV – Desenvolvimento desigual e anomalias do trabalho livre

    Capítulo V – Contradições do cativeiro de ontem e de hoje

    Capítulo VI – Trabalho cativo no capitalismo em transe

    Capítulo VII – A terceira abolição da escravatura

    Capítulo VIII – Escravidão contemporânea: o que sobra e o que falta

    Referências bibliográficas

    Sobre o autor

    Introdução: A conquista do Outro

    O tema da chamada escravidão contemporânea, no Brasil, não significa a mesma coisa em diferentes bocas e em diferentes escritos. Nem mesmo significa sempre propriamente escravidão. E nem sempre é apresentado em perspectiva propriamente científica. Mesmo em estudos acadêmicos, são muitas as incertezas conceituais e são frequentes as tentações do mero denuncismo em si, sem penetrar nas causas, fatores, consequências sociais e funções econômicas de sua ocorrência e persistência no capitalismo subdesenvolvido.

    Diferentemente do que pode pressupor o senso comum, mesmo de pessoas e instituições empenhadas, por ímpeto de justiça, em combatê-la, a escravidão contemporânea não é expressão casual de uma maldade, de uma esperteza de quem a pratica, de um desconhecimento do que ela propriamente é – um crime.

    Apesar de eventuais incertezas e vacilações na sua definição, desde os anos 1970, pelo menos, em diferentes lugares do mundo organizações humanitárias e os Estados têm se empenhado em combater a escravidão e punir sua prática. Também aqui no Brasil. Aqui tem sido forte a tendência com o objetivo de, com justiça, submeter cada vez mais as empresas e os autores do crime de escravização aos rigores da lei.

    Isso apesar de termos ainda uma disseminada e indevida certeza de impunidade e de reiterados casos de ações baseadas no equívoco de suporem os autores que a violência privada de jagunços e pistoleiros, recrutados como aparato repressivo na situação de trabalho, vale também na resistência aos agentes da lei. Casos de assassinatos de militantes da causa antiescravista e até mesmo de funcionários das agências oficiais de repressão ao trabalho forçado não têm sido raros. Apesar de o Brasil ser signatário, desde os anos 1920, de convenções internacionais que obrigam os Estados nacionais à proibição da escravidão e a combatê-la, porque se trata de crime, muitos ainda acham que o proprietário de terra pode legitimamente ser, também, proprietário de gente.

    Ainda agora, em 2023, dois fazendeiros do sul do Pará foram condenados a cinco anos de prisão pela submissão de 85 trabalhadores a trabalho análogo ao de escravidão. A ocorrência é de 2002, mas o crime de escravização é imprescritível. O processo vinha se arrastando desde que dois menores de idade conseguiram fugir da fazenda em que eram escravizados e denunciaram a irregularidade às autoridades. O processo chegou a desaparecer, mas foi reconstituído. Foi a julgamento agora em consequência de uma sentença de condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O juiz federal substituto da Comarca de Redenção, no sul do Pará, sentenciou os fazendeiros no dia 27 de junho de 2023.¹

    A importância dessa condenação é enorme. A escravidão praticada no Brasil tem peculiaridades que a diferenciam de outras variantes da escravização de seres humanos na atualidade: a de que ela é, em primeiro lugar, expressão de contradições do subcapitalismo que temos. Ela está praticamente inscrita na estrutura lógica desse capitalismo. O restante é dela decorrente e dela componente, como a maldade necessária à sujeição de um ser humano, como se fosse um animal, indício de atraso social e de falta de identificação de quem dela se vale com a condição humana. Mas sobretudo indício de um complexo de degradações sociais necessárias à naturalização do cativeiro para que ele cumpra a função iníqua que o motiva.

    Na trama de suas relações e de suas causas não há propriamente escolha. Os fatores econômicos se comunicam, seus custos e seus ganhos impõem-se à trama inteira. A própria vítima dela participa não por conivência e impotência, mas por estratégia de sobrevivência em nome da sua diferença social, enquanto alternativa social e histórica. Em nome de um possível que da contradição resulta, que tem visibilidade para ela, mas não tem para quem a explora e oprime. E não tem necessariamente para quem presume defendê-la e em seu nome reivindicar justiça e direitos.

    Nesse sentido, este livro não é apenas nem principalmente um livro sobre a atualidade da escravidão. Trata-se de um estudo sobre o modo como o capital organiza empreendimentos econômicos em áreas de condições sociais, econômicas e ambientais de quase ausência do Estado, em face das quais não tem sido incomum o recrutamento de trabalhadores, já de antemão previsto, mas não revelado, que trabalharão como escravos.

    Na verdade, essa escravidão é opção inevitável da vítima pela alternativa degradante e não capitalista de trabalho. É para resistir à ameaça e aos efeitos socialmente corrosivos da expansão do capitalismo sobre territórios e comunidades camponesas, de populações originárias, indígenas, caipiras e sertanejas.

    Trabalho que, mesmo quando não acarreta ganho, no endividamento do trabalhador, que acaba trabalhando de graça, diminui na família, na entressafra, o número de bocas para a comida insuficiente.² E, se houver algum ganho, mesmo aquém do valor criado pelo trabalho cativo em relação ao saldo recebido, será um benefício com base na ideologia camponesa do trabalho de sobrevivência contra a ideologia capitalista do trabalho lucrativo. Essa é a contradição cuja causa a sociologia pode decifrar.

    O trabalho escravo é a dolorosa expressão do verdadeiro conflito histórico entre os desvalidos e o capital, um dos conflitos estruturais do capitalismo brasileiro na disputa da terra de trabalho, a terra de sobrevivência, contra a terra de negócio e rentismo, de usurpação, a de um capitalismo subdesenvolvido. É a questão agrária como questão do trabalho que dá sentido a esse conflito e a esse drama. Os autores de digressões sobre a escravidão contemporânea omitem-se em relação a essa contradição, sociologicamente explicativa. A do assalto indireto do capital ao mundo camponês, assalto através das mediações de ocultamentos sociais para viabilizar os resultados econômicos de sua reprodução ampliada.

    As regiões e as comunidades dessas populações têm sido com frequência os lugares de aliciamento de camponeses para o trabalho sob escravidão por dívida. Não se trata, pois, de uma referência geográfica, mas de uma mediação social datada, pré-capitalista, cujo atraso histórico interessa ao capital, mas cuja resistência e sobrevivência interessa sobretudo à vítima – o camponês e as populações originárias. Esse atraso lhes é, na verdade, um capital cultural e político, que só se desperdiça porque lhe faltam as mediações políticas e partidárias. O atraso, na verdade, é dos partidos na falta de reconhecimento e compreensão do significado e da função política dos grupos humanos deixados à margem da história por uma opção equivocada em favor de uma concepção de progresso socialmente excludente.

    Variam as motivações, muitas vezes extracientíficas, dos estudiosos, que, ao revelar e denunciar ocorrências, desprezam, porque as desconhecem ou minimizam, as contradições explicativas e reveladoras da realidade social problemática. As que sociologicamente compreendem o visível e o não visível, o falso e o verdadeiro. Os fatores revelados e os fatores ocultos do processo histórico. Os fatores de reiteração e os de transformação da realidade, os que criam socialmente o novo e, ao mesmo tempo, recriam o que parece ser o já existente, como interpreta e explica Henri Lefebvre.³ Os que estão presentes na estruturação das condições sociais do cativeiro, isto é, na disputa e dominação do capital pelos lugares e situações comunitários e tradicionais da sociabilidade e da autonomia camponesas e da economia da produção direta de meios de vida, paralelamente à de excedentes comercializáveis. Os das populações excluídas e originárias.

    Ou, então, os que desvendam e expõem as invisibilidades próprias do capitalismo num país subdesenvolvido, como o nosso, e expõem as vulnerabilidades do voluntarismo dos que se dedicam a questioná-lo e a combatê-lo, prisioneiros do superficial e aparente. O que é tão característico da moda política de hoje, mas divorciado das revelações da ciência e das duras verdades e incertezas das contradições sociais. A incômoda constatação científica de Marx, de que os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem....⁴ E menos ainda como os outros querem fazê-la em nome de todos sem legitimamente representá-los.

    Esse desencontro é o cerne explicativo de toda a sociologia marxiana. É um questionamento que define o perfil deste livro na linha da tradição do pensamento sociológico crítico, ou seja, dialético, o de ampliação e aprofundamento do conhecimento sobre a realidade social além do mero agora. O desvendamento e o questionamento da alienação social, que acoberta a realidade, enquanto falsa premissa de ciência que há na militância desinformada e superficial.

    A questão da escravidão contemporânea é, na sociologia, questão de urgência e é também questão de enfrentamento do poder de minimização dos problemas sociais, cada vez mais intenso da pós-modernidade. Esta é a sociedade da ocultação das verdades profundas e causais da história e da sua própria historicidade.

    Muitos querem, altruisticamente, combater a iniquidade de relações de trabalho antissociais e anti-humanas. Outros querem, de modo não tão altruístico, combater as interpretações que podem estar em desacordo com suas opiniões de senso comum, seus interesses e conveniências partidários e ideológicos, seu exibicionismo político.

    Um livro como este é uma proposta de desembaralhar, na perspectiva da ciência, essa diversidade opinativa, e desse modo criar as condições para uma interpretação objetiva e crítica da grave questão, no sentido marxiano de conhecimento explicativo, sociológico, de diferentes modalidades de conhecimento: das representações, das ilusões de classe, dos instrumentos ideológicos.⁵ Único modo de situá-la no marco da possibilidade de sua superação, e iluminar o caminho desse ser solitário, invisível e difuso que intui no dramático da vida o desafio da transformação social libertadora como obra de correção e de superação das injustiças que negam a todos o direito à sua humanização. Se há um único escravo numa sociedade como esta, todos nós estamos atados à sua situação, porque a sociedade é relacional. Somos sujeitos do mesmo sistema de relacionamentos e de minimização da condição humana.

    Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.

    De uma análise assim, não resulta receita legítima de militância e ativismo indeterminados e desconectados da estrutura social profunda que dá sentido aos movimentos sociais. Resulta a referência para o que Hans Freyer definiu e Florestan Fernandes explicou: a sociologia como consciência científica da realidade social,⁶ caso em que o ativismo não é nem pode ser teatro, para que possa ser práxis socialmente transformadora.

    ***

    Os capítulos deste livro foram escritos com independência uns dos outros, por motivações tópicas, em épocas diferentes, a partir de uma mesma e demorada observação sociológica. O volume tem, porém, uma unidade interpretativa e de revisão crítica de análises que dela carecem porque, no meu modo de ver, estão distantes de uma problematização científica de investigação do grave problema social do trabalho escravo, apesar dos esforços já feitos por vários pesquisadores, devidamente citados nos lugares adequados.

    A unidade do livro está exposta no Capítulo I, e é a da opção por um método de explicação que corresponda à natureza social do problema de investigação. Que é a de uma realidade que por ser social é cambiante, que se transforma mais depressa do que a competência do senso comum para compreendê-la.

    Em relação ao método e ao conjunto do texto, há compreensivelmente alguma reiteração de referências a esse núcleo explicativo do livro, nos diferentes capítulos. O que se deve ao requisito de clareza do próprio fluxo expositivo do texto, mas sobretudo à necessidade de explorar os detalhes da interpretação correspondente ao respectivo tópico e suas conexões com a linha teórica da obra.


    1 Cf. Justiça Federal da 1a Região, Pará, Processo Número 0000001-41.2020.4.01.3905. Só no primeiro semestre de 2023, de 1o de janeiro a 14 de junho de 2023, o Ministério do Trabalho resgatou 1.443 pessoas em condições análogas à de escravidão. Nadine Nascimento e Pedro Nascimento, 135 anos após a Lei Áurea, trabalho análogo à escravidão tem ápice em 12 anos, in: Novoemfolha, caderno especial da Folha de S.Paulo, ano 103, n.34.424, São Paulo, 3 jul. 2023, p.1. Sobre a persistência oscilatória do trabalho escravo no Brasil, cf. Carolina Motoki, Brígida Rocha dos Santos, Waldeci Campos de Souza, De 1995 a 2022: o trabalho escravo contemporâneo a partir dos dados sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra, in: Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no Campo Brasil 2022, p.151-60.

    2 A sociabilidade dessa situação social, histórica e sociologicamente, peculiar e diversa é definida por Antonio Candido na conexão entre economia dos mínimos vitais e comunidade dos mínimos sociais do mundo caipira. Cf. Antonio Candido, Os parceiros do Rio Bonito.

    3 Cf. Lefebvre, Sociologia de Marx, p.17-41; Martins, A sociologia como aventura.

    4 Cf. Marx, O 18 brumário de Luís Bonaparte, in: Marx; Engels, Obras escolhidas, v.I, p.203.

    5 Cf. Lefebvre, La violencia y el fin de la historia, p.87. Perspectiva que se enriquece, de modo mais abrangente, com a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (Ideología y Utopía: introducción a la sociología del conocimiento) e da sociologia do conhecimento de senso comum de Peter Berger e Thomas Luckmann (The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge).

    6 Cf. Freyer, La sociología ciencia de la realidad, p.110 e 342; Florestan Fernandes, A sociologia numa era de revolução social, p.95 e 309.

    Capítulo I

    Por uma teoria da escravidão contemporânea

    O drama e o método

    Nesta proposta de compreensão e explicação sociológicas da ocorrência da chamada escravidão contemporânea no Brasil, retorno a constatações teóricas que fiz a partir de um seminário de estudo, que organizei e coordenei na Universidade de São Paulo, de 1975 a 1993, sucessivamente, sobre o método dialético na obra de Karl Marx e na obra de Henri Lefebvre.¹

    Isso porque um tema como o da escravidão contemporânea não é qualquer tema, que possa ser abordado a partir de qualquer premissa por meio de qualquer método. Escravidão é tema referido a um momento do processo histórico, da historicidade da sociedade, como ela se recria sob as tensões da transformação social e ao mesmo tempo não se recria apenas. O método é o método dialético. Não é o método de Althusser nem o de Jacob Gorender – estruturalista, um, e conceitualista e classificatório, o outro, cada qual a seu modo.² Métodos de enquadramento interpretativo mais do que de explicação.

    A questão de pesquisa e interpretação em Marx e em Lefebvre contém a premissa fundamental da distinção entre método de investigação e método de explicação.³ A pesquisa, também na perspectiva dialética marxiana, não se confunde com catação de dados e seu revestimento por conceitos da investigação divorciados entre si e mais divorciados ainda da explicação científica. Nem dispensa a pesquisa sociológica e sua interpretação a mediação da sociologia do conhecimento, em que as ideias são situadas, em vez de saírem do mero senso comum do pesquisador, conforme ensina a sociologia de Fernando Henrique Cardoso.⁴

    Na verdadeira dialética o método ressalta o processo social, o que é ele no marco do vir a ser. O trânsito e a transição. Isso só é possível através da datação das evidências da realidade e da busca das conexões que têm sentido na totalidade subjacente e historicamente significativa. A datação, isto é, as condições e fatores emergentes da gênese de uma nova realidade historicamente determinada. E até mesmo a gênese peculiar de cada desencontrado momento do todo. A questão da escravidão se situa nesses pressupostos.

    Trabalhei numa fábrica, na adolescência, em que, desde a preparação da matéria-prima até o encaixotamento do produto e sua distribuição ao mercado, havia cinco momentos e cinco datações, isto é, níveis diferenciais de desenvolvimento tecnológico e das forças produtivas, cinco diferentes composições orgânicas do capital. Nos cinco anos em que trabalhei nessa fábrica, testemunhei diretamente uma verdadeira revolução tecnológica em dois desses momentos, enquanto os outros três permaneceram no mesmo nível de complexidade anterior. O desencontro que se estabeleceu no interior do processo de trabalho desencadeou tensões sociais e desidentificação de classe social entre os setores.

    É significativo que um aspecto essencial do método marxiano tenha sido ignorado pelos autores marxistas latino-americanos, especialmente pelos brasileiros: a explicação científica da realidade social, isto é, do processo social, não se propõe ao pesquisador quando seu momento crítico ainda não se definiu, quando a totalidade dialética, no essencial, ainda está em processo de totalização.

    Foi assim que Marx justificou a não publicação do tomo II de O capital, provisoriamente concluído, cujo formato final, porém, estava na dependência do desfecho da crise industrial inglesa, que repercutia nos Estados Unidos, na América do Sul, na Áustria, na Alemanha.

    Ao retornar ao problema da função da crise na definição de uma totalidade de referência na pesquisa sociológica, um século depois de O capital, quando o mundo capitalista já era outro, Lefebvre conclui que, em Marx, crise significa o fim de uma sociedade, o começo de uma outra sociedade; e o momento crítico, aquele da ação, aquele de transição.⁷ E acrescenta: A palavra ‘crise’ deixou de designar o momento em que não podem mais se re-produzir as relações capitalistas de produção, onde definha não a produção de coisas, mas a re-produção das relações constitutivas da sociedade existente.⁸ A realidade do momento de crise como momento de função metodológica reveladora de perecimento social e nele e com ele de nascimento de uma nova realidade social.

    A situação social que nasce tem, no que perece, e em sua função de referência na resistência dos desvalidos, sua dimensão renovadora de utopia, na metamorfose que inverte o lugar das realidades no processo histórico. O que não tinha sentido é que o tem.⁹ Essa referência metodológica essencial exige que a pesquisa e estudo de temas como o da escravidão contemporânea leve em conta o grupo de referência dos que padecem a adversidade desumanizante

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