A Rainha De Copas Não Bebe Chá
()
Sobre este e-book
Leia mais títulos de Susana De Sousa
A Cauda Do Pavão Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Rainha Das Estrelas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Maçã Dourada Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Relacionado a A Rainha De Copas Não Bebe Chá
Ebooks relacionados
Audaz Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSegredos Do Porão Ao Sótão Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNévoa: A história de um guardião de fantasmas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDiário de Uma Extinção - Segundo Contato Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAçúcar queimado Nota: 4 de 5 estrelas4/5Valquíria: a princesa vampira 2 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPequenos Contos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNetochka Nezvanova Nota: 5 de 5 estrelas5/5No Fundo Falso Da Gaveta Da Velha Cômoda Nota: 0 de 5 estrelas0 notasProteção à Testemunha: Romance Policial Nota: 3 de 5 estrelas3/5Novo Tom Para A Poesia E Alguns Contos Da Vida Real Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHerança Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Avó Simone Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Caixa E Outros Contos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAmor Assassino Nota: 1 de 5 estrelas1/5A Feiticeira: As Odisseias de Animândia, #2 Nota: 5 de 5 estrelas5/5Escuridão: Trilogia Arcanjo, #1 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPor Lugares Sombrios Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAos que habitam a escuridão e outras histórias Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAté que a morte nos ampare Nota: 5 de 5 estrelas5/5A Janela Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAlicia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHiatos E Pontos De Vista Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO som dos anéis de Saturno Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEncantada Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO homem da areia: edição ilustrada Nota: 5 de 5 estrelas5/5Luzia divulga o segredo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDavi E O Elmo De Hades Nota: 0 de 5 estrelas0 notasMuito mais que um Estágio Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Segredo Livro 2 A descoberta Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Mistérios para você
Sherlock Holmes: Obra completa Nota: 0 de 5 estrelas0 notasArsène Lupin: O ladrão de Casaca Nota: 4 de 5 estrelas4/5Macumba Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCrime na Quinta das Lágrimas: O sangue volta a manchar as águas da fonte Nota: 5 de 5 estrelas5/5A morte do adivinho Nota: 5 de 5 estrelas5/5Coleção Especial Sherlock Holmes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAs aventuras de Sherlock Holmes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAs sete mortes de Evelyn Hardcastle Nota: 4 de 5 estrelas4/5Arsène Lupin e a mulher de dois sorrisos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBoas meninas se afogam em silêncio Nota: 5 de 5 estrelas5/5As sobreviventes Nota: 4 de 5 estrelas4/5A inocência do Padre Brown Nota: 4 de 5 estrelas4/5Sherlock Holmes: Volume 1: Um estudo em vermelho | O sinal dos quatro | As aventuras de Sherlock Holmes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHistórias Curtas De Terror Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSherlock Holmes - Um estudo em vermelho Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm corpo na banheira Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHistórias de Miss Marple: Uma homenagem a Agatha Christie Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Jogo do Assassino (Clube do crime) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSangue Frio Nota: 5 de 5 estrelas5/5A enfermeira (Vol. 13 Rizzoli & Isles) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Casa Perfeita (Um Thriller Psicológico de Jessie Hunt—Livro 3) Nota: 4 de 5 estrelas4/5As asas da borboleta Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO mistério da cruz egípcia (Clube do crime) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEu não sei quem você é Nota: 4 de 5 estrelas4/5Tinha Que Ser Com Você Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSem Pistas (um Mistério de Riley Paige –Livro 1) Nota: 4 de 5 estrelas4/5A sociedade oculta de Londres | da mesma autora de A pequena loja de venenos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasArsène Lupin e a Ilha dos Trinta Caixões Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA janela de Overton Nota: 3 de 5 estrelas3/5
Categorias relacionadas
Avaliações de A Rainha De Copas Não Bebe Chá
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
A Rainha De Copas Não Bebe Chá - Susana De Sousa
I - Que estranho…
Aqui devia ter sido plantada uma roseira de rosas vermelhas
¹
Depois do estrondo, vi-me no alto das escadas a olhar para um líquido avermelhado que saía da cabeça da minha mãe. Durante alguns segundos, todas as possibilidades me atravessaram a mente (vinho derramado, um lenço de cetim vermelho, tinta a escapulir-se da cornucópia escarlate do tapete que veio da Turquia) até notar a extrema imobilidade da sua cabeça, a posição absurda do seu corpo tombado no chão, com o braço direito dobrado a apontar para cima e o esquerdo estendido para baixo. Estava vestida com uma camisa bege, muito fina, quase transparente, que tinha recebido do meu tio no Natal, e uma saia de camurça de um verde acastanhado — a cor dos seus olhos, e também dos meus. O fio de prata com um pendente em forma de meia-lua estava desviado para a direita e dobrado, com a lua em quarto crescente, muito branca e cintilante, pousada na sua pele clara.
Tinha uma perna cruzada sobre a outra, como se a parte de baixo do corpo procurasse a elegância que faltava à parte de cima. De onde estava, não lhe conseguia ver os pés, mas era como se os visse, sabia que calçava as sabrinas beges. Comprei-as com ela. Lembro-me que me disse que davam com tudo, mas que o mais provável seria não sair com elas à rua, porque sabia que, mal o fizesse, seria impossível livrá-las da sujidade. Era assim, a minha mãe, sempre obcecada com a limpeza.
— Sapatos brancos, nunca, Alice. Só quando te casares, e mesmo assim terás de levar um par para trocar depois da igreja.
Também era conservadora nesse aspeto. Falava muitas vezes nessa história de casamento. Queria muito ver-me mascarada de noiva. Mas não veria. Aquela papa vermelho escura que lhe cobria grande parte do rosto, era sangue. Era a vida da minha mãe esborratada no tapete árabe. De profundo mau gosto
, lembro-me de ter pensado, mas esse teria sido o pensamento dela. Uma morte limpa, pelo menos. Uma morte decente. Dêem-me isso.
teria ela dito, se pudesse.
Mas não, já não podia. Já não podia dizer nada.
Fiquei a olhar para baixo, imóvel, como se não fosse eu ali. Outro ser tinha tomado o meu lugar. Não podia ser eu a ver aquilo. Eu não teria aguentado. Aquele momento esticou-se de forma medonha, e acabou por determinar a minha vida em muitos aspetos. Ao mesmo tempo, foi tão curto, um bater de asas de uma borboleta, tudo tão pequeno e simples como se eu estivesse a observar através de um microscópio uma ínfima célula morta. Tão pequenina, sem importância. De facto, não era eu. Ali, não era eu. Lá em baixo, não era eu. A minha mãe não era eu. Não era a minha mãe. Ali, morta.
De uma coisa estive certa, desde que me debrucei lá de cima e apreendi a imagem do seu corpo inerte: que ela estava morta e que não havia retorno. A sensação de algo definitivo ficou-me colada à pele. Durante muito tempo beliscava-me, magoava-me propositadamente, quando alguma coisa evocava aquele dia. Algo de culpa misturado com impotência, não sei bem qual das duas era mais forte. Tentava não pensar muito nisso, eram apenas sensações. O álcool ajudava-me a não sentir. Claro que quando aquilo
aconteceu, eu nunca tinha tocado numa gota de álcool. A minha mãe jamais o permitiria. Nem quando o meu pai quis celebrar connosco a promoção para o cargo de diretor do hotel. Apareceu em casa com uma garrafa de Moet Chandon. Tirou um copo de licor para mim, não mais do que um dedal. E ela: não, Alice, só quando tiveres dezoito anos
. E serviram-me um sumo de laranja de pacote, superadocicado, no dedal. Alegremente, fingi que era espumante. Naquela época eu era uma miúda alegre. Podem não acreditar, mas era verdade. Estava sempre satisfeita. As minhas amigas ficavam abismadas com o meu bom humor quando era forçada a vir para casa antes das sete nas tardes de matiné na discoteca Silverscreen, ou perante a interdição de frequentar a casa da Marlene, só porque os seus pais eram divorciados. E por nunca poder ir dormir a casa de ninguém, embora não fizesse mal levar uma amiga de vez em quando lá para casa. Mas nenhuma aguentava tanto descalcem os sapatos para não sujar
ou às nove quero as luzes apagadas
. Não me diziam diretamente, mas eu sentia os seus olhares. Todas as mães eram mais liberais do que a minha.
Aposto que nunca te falou de sexo.
Eu ria-me. Sabia tudo pela minha tia Clara, irmã mais nova do meu pai. Às escondidas da minha mãe, iniciou-me num universo que eu apenas podia intuir. Mas algo da minha mãe ficou em mim, preso e retorcido, um nó que levou anos a desatar. A morte não levou tudo. Não senhora, nunca leva o que está guardado no mais fundo das nossas células. Informação altamente confidencial, acessível apenas ao nosso poderosíssimo Inconsciente. Prisão de alta segurança, nível máximo.
Congelei dentro de mim aquela imagem da minha mãe prostrada no tapete turco. Depois, deixei o tapete levitar, subindo suavemente em direção ao cimo das escadas, até ficar ao nível dos meus olhos. Girou cento e oitenta graus, para que eu pudesse ver o seu rosto. O buraco escavado pela bala na sua face. Um túnel de sangue e osso e talvez pedaços de cérebro naquele rosto perfeito. Mesmo morta, continuava a ser linda. Aí, pude dizer-lhe algumas palavras, embora não me recorde quais foram. Talvez esta parte já tenha sido um sonho. Como devem imaginar, sonhei com isto frequentemente. Os terapeutas dizem todos que é normal, que só faz bem. Ajuda a libertar não sei o quê.
Mas ainda não tinha acabado.
Isto era apenas o início.
O tapete novamente lá em baixo, ela rodeada de flores geométricas como uma Ofélia — apetecia-me desprender-lhe os cabelos do rosto e espalhá-los em cascatas de ouro em seu redor — e, subitamente, um movimento muito leve, quase impercetível, no espelho da entrada. Foi só então que o vi, de pé, enraivecido, a erguer o braço na minha direção, a arma preta a apontar diretamente aos meus olhos. Acho que gritei Pai!
, horrorizada (não tenho a certeza, posso ter só pensado). Mas era o seu reflexo no espelho. Ele estava por baixo de mim, aos pés dela. Ele tinha disparado a bala que a matara.
Os seus olhos demoraram apenas uns instantes em mim. Começaram a fitar qualquer coisa para lá de mim, muito para lá do espelho. Qualquer coisa que o pareceu sossegar. Lentamente, como em slow motion, ou pelo menos assim me pareceu, afastou a arma de mim, ou seja, do espelho, e aproximou-a da têmpora. Eu estava petrificada. Hoje percebo que podia ter corrido pelas escadas abaixo a tempo de evitar este segundo tiro. Percebo isso e não me consigo perdoar. Apesar de também não o perdoar por ter matado a minha mãe.
Um poço muito fundo
Ao chegar à clínica, a estrada formava um túnel acobreado, árvores semidespidas dispostas em arcos triunfais. No leitor de cassetes, o meu tio Pedro tinha introduzido uma coletânea de árias cantadas pela Callas. Aquela voz quente e vibrante acompanhou-nos durante os quarenta e cinco minutos que levámos desde a igreja até à clínica. As lágrimas escorriam soltas pelo rosto do meu tio. Eu, que há instantes parecera anestesiada, talvez pelo efeito dos comprimidos que a minha tia Clara me obrigou a engolir, talvez por estar ainda em choque, só no carro me entreguei ao ato desafiante de chorar.
Devias ter vergonha! Uma rapariga crescida como tu, a chorar dessa maneira.
²
Ninguém pareceu compreender muito bem a minha reivindicação de ir à clínica.
— Para quê? — perguntavam.
— Porque era o que ela teria querido — apetecia-me responder, mas fiquei calada.
Só o meu tio me compreendeu. Pegou nas chaves do carro e fez-me sinal. Eu não conseguia estar dentro da igreja, com aqueles rostos desconhecidos a olharem para mim como se fosse um animal exposto no zoo. Todos a pensarem no meu sofrimento, na minha desgraça. Todos a conjeturarem as razões daquilo que o meu pai fez. A minha única avó viva, a mãe do meu pai, parecia uma folha frágil, de uma antiguidade tocante. Discutíamos muito quando eu era criança e, invariavelmente, ela punha um ponto final nas discussões dizendo: Eu sou mais velha do que tu, e por isso devo saber mais
³. Estaria suficientemente lúcida para perceber que um dos caixões, ambos fechados, guardava o corpo do seu filho? A sua educação católica dir-lhe-ia que não havia lugar no paraíso para um assassino suicida? A minha tia Clara girava como um catavento entre mim e ela, procurando amparar-nos a ambas, talvez para não sucumbir ela própria à dor. Quando o meu tio Pedro chegou, ela fugiu dele e encolheu-se junto à minha avó.
A chegada do meu tio mudou o próprio ar que se respirava na igreja. Foi como se um anjo exterminador tivesse entrado, com uma espada de fogo. Ninguém se atrevia a encará-lo. Os seus olhos inflamados dardejavam um ódio frio, cru. Era, além de mim e do meu tio Guilherme, o único parente da minha mãe, e também o mais próximo. O tio Guilherme vivia na Austrália. Já não tinha vindo ao funeral da minha avó Emília, por isso também não esperei que aparecesse do outro lado do globo. Os meus primos só cá tinham vindo duas vezes e o mais velho parece-me que já ia fazer doze anos. Por isso, sinto que o único parente que me restava do lado materno era o meu tio Pedro Branco.
Assim que me viu, abraçou-me, mas eu senti os seus olhos cravados nos caixões, como pregos a empurrar a madeira mais para dentro, despedaçando-a, até penetrar nos próprios corpos.
— Tio, tenho de ir à clínica. Tenho de vê-la.
A tia Clara murmurou o meu nome baixinho. Demasiado envergonhada para se levantar, carregando a culpa do meu pai em cima do seu corpo franzino. Ela, que sempre tinha sido uma jovem enérgica, definhava como as flores amontoadas à volta dos caixões. O seu ex-marido estava postado entre nós, com a mão no ombro do meu primo Lucas, como se não o quisesse deixar chegar perto de mim.
— Temos tempo, não temos? Até ao funeral? — perguntei.
O meu tio conduziu-me suavemente para fora. A luz da manhã pareceu-me surreal. Era como se eu não tivesse mais direito ao dia. Sentia-me envolvida numa mortalha. Os meus movimentos eram mais lentos, a minha voz pastosa. Até os pensamentos andavam um pouco à tona, flutuantes.
Seria eu a mesma pessoa quando me levantei esta manhã?
⁴
Ele parou uns instantes a olhar para o mar. Sereno como um lago, quase se confundia com o céu. A beleza era desconcertante. Eu não queria ver. Apetecia-me fechar os olhos para sempre. A ideia de me suicidar estava acocorada num recanto da minha mente, expetante. Eu sabia que se caminhasse em frente e descesse a escadaria da praia, nada me deteria. Areia sob os pés e depois água. Eles, à minha espera no fundo do mar, os três juntos como deveríamos estar, para sempre.
Algumas das minhas amigas estavam lá fora. Eu sabia que lhes custava suportar o interior da igreja. Provavelmente tinham sido obrigadas pelos pais a aparecer. Havia um grupo de funcionários do hotel, alguns vizinhos e muitas pessoas que eu não conhecia. Formavam um grupo esquisito, como animais maldispostos e desconfortáveis. Sentia-me constantemente observada. Mas a partir do momento em que me viram com o meu tio, ninguém se aproximou. Para eles, ele era um estranho, um estrangeiro. Tudo nele era distinto, elegante e subtil. A forma como caminhava, olhando as pessoas nos olhos, com dignidade. O fato feito à medida, cinza escuro; os sapatos pretos de estilo Oxford; o cabelo louro puxado para trás com um pouco de gel. O rosto, tão parecido ao da minha mãe, que me magoava observá-lo.
— Vinha a ouvir a Callas. Mas se quiseres ponho outra coisa.
— Não. É o que a mãe te deu no Natal. Podemos ouvir.
Mas arrependi-me. Eu, que ainda não tinha derramado uma lágrima naquele dia, desatei a chorar assim que a diva me soprou o seu "mon coeur s’ ouvre a toi voix". Ambos chorámos durante a maior parte da viagem, sem conseguirmos parar o fluxo de emoções que vinha balançando na música.
Na véspera, foi o meu tio que me encontrou na cave, encolhida no canto onde a minha mãe guardava as roupas que já não usava, mas que protelava distribuir pelos pobres. A Dinah estava deitada no meu colo, a tremer em silêncio. Da janela estreita, uma tira de luz muito fina incidia no centro da divisão, onde uma poça de água negra faiscava lugubremente. De vez em quando, uma gota caía do teto e a poça engolia-a.
São as lágrimas da casa
, pensei. A casa toda chora. Há de chorar para a eternidade.
Não sei durante quanto tempo lá estive. Lembro-me de ouvir o som da porta da rua a ser arrombada – hoje sei que foi o Joaquim, que mora duas casas abaixo; o som de passos; exclamações de horror; sirenes; portas a bater. Penso que terei ouvido alguém gritar o meu nome.
— Alice! Alice!
Não me lembro de ter descido as escadas. Tive de passar pela sala, de contornar o tapete, de atravessar em frente ao espelho, até chegar à escada estreita que conduz à cave. Tive de ver. Certamente. Mas não me lembro.
No escuro, aninhada no volume mole e ligeiramente bafiento das roupas, com a Dinah a aquecer-me, sentia-me de alguma forma segura. A luz é que me feriu. Entrou no meu espaço, reclamou a minha atenção e trouxe-me de volta ao horror. O rosto do meu tio também espelhava esse horror. Ele foi o único que não disse que tudo ia ficar bem. Que tinha de ser forte. Que Deus os quis levar para junto dele. Tretas!
Entre mim e ele, não havia nada a dizer. As palavras não podiam trazer consolo, nem compreensão. Nada de nada.
Na altura não achei estranho vê-lo ali. O meu tio vivia em Lisboa, e só ia ao Algarve em ocasiões especiais. Trabalhava com empresas de aviação, para as quais concebia programas de voo informáticos. Viajava muito, nunca tinha casado e acumulara uma pequena fortuna. Quando íamos a Lisboa, geralmente apenas eu e a minha mãe, em períodos de férias nos quais o meu pai não podia deixar o hotel, ficávamos na casa dele, no Bairro Alto. Ele levava-nos ao cinema, a exposições de pintura e à ópera. A minha mãe não gostava da praia, e em Albufeira não havia mais nada para fazer no verão a não ser praia e piscina.
— Talvez queiras ir sozinha.
O meu tio ficou dentro do carro, a ouvir a cassete de início. Entrei na receção e pelo modo como me olharam percebi que já sabiam. Uma das enfermeiras saiu de trás do balcão. Já a tinha visto algumas vezes. Era das mais antigas, uma nórdica com ar de valquíria, o rosto afogueado e olhos vivazes, uma rudeza nos gestos. Ainda bem que não era uma das sonsas. Não me sentia com paciência para mais lamentos e condolências.
Eu podia ter ido sozinha, mas de algum modo agradou-me ter aquela criatura branca a abrir-me caminho por entre os corredores compridos, as bocas metálicas dos elevadores e os pacientes em cadeiras de rodas com rostos ausentes. Fantasmas, todos eles. Como que aprisionados no sonho de algum louco.
Chegámos ao quarto. Na penumbra, aquele aposento contrastava com o dia brilhante lá fora, como se existisse nalguma dimensão para lá do espaço e do tempo. E, de uma maneira demasiado real, assim era. Apenas o cheiro e o ruído das máquinas denunciavam aquele lugar. A minha mãe tinha decorado o quarto com os seus tecidos de flores minúsculas, rosa claro e cereja; com almofadas bordadas; com livros que ia substituindo à medida que os anos passavam. Um ramo de margaridas alaranjadas vicejava junto à cabeceira. Ainda frescas. Teriam o quê, dois, três dias? Quando é que ela tinha vindo cá, que não me apercebi?
Senti-me culpada. Quantas vezes a minha mãe me dizia para vir, só com um olhar? Sem exigir nada de mim... Fazia-me uma declaração, e esperava retorno. Ansiava por isso. Afinal, era a minha irmã, ali adormecida. Como uma personagem de um conto.
A pele dela era macia e clara, quase transparente. Os cabelos não eram louros como os meus, mas de um castanho quase preto, como os do meu pai. Não me lembro da cor dos olhos, por isso gosto de imaginar que eram violeta. As orelhas, pequenas, conchas perfeitas, acolhiam os desastres de Sofia, as tiradas inteligentíssimas da Mafalda, as viagens de Gulliver, as aventuras de Peter Pan e, mais tarde, as agruras de Anne Frank e as demandas arturianas, com a mesma impassibilidade com que recebiam os meus relatos do dia a dia na escola ou os poemas que escrevia para ela.
Às vezes invejava-a. Não me perguntem como, é difícil explicar. Tinha pena, sempre tive pena da sua vida interrompida, mas ao mesmo tempo era como se ela estivesse preservada em éter, acarinhada e amada numa espécie de casulo que a tornava, aos meus, olhos, imortal.
A minha mãe tinha para com ela uma paciência infinita. Sei que de cada vez que a visitávamos esperava encontrá-la desperta. Sim, acreditava nisso piamente. Já o meu pai, não tenho a certeza, mas creio que o ouvi dizer que seria melhor para ela se desligássemos as máquinas.
Eu achava reconfortante o ruído de fundo mecânico. Uma toada precisa, como uma voz que nos garante que está tudo bem, ela continua ali, ela continua viva.
A minha mãe gostava de escovar os seus longos cabelos. Cantava-lhe canções de embalar, como se ela precisasse de adormecer. Uma vez perguntei-lhe se um príncipe a poderia acordar, e ela cometeu o erro de dizer que sim. Na minha visita seguinte, eu trazia uma caixinha com um sapo (ou talvez fosse uma rã, nunca soube distinguir), e vinha preparada para largá-lo em cima da minha irmã, na esperança de um beijo mágico. Mas ainda no carro, a minha mãe perguntou-me o que era aquilo, e como eu não lhe disse, e a caixa se mexia sozinha, ela levantou a tampa, e o susto que apanhou foi tão grande que quase se despistou naquelas estradas curvilíneas e apertadas.
Ainda hoje penso no sapo à solta pela serra, e gosto de imaginar que de noite ele se transforma num príncipe e que vem visitá-la.
Talvez ele lhe tenha dado a notícia e eu hoje não precise de contar.
Sentei-me no lugar que a minha mãe geralmente ocupava. À medida que os meus olhos se acostumavam à penumbra, comecei a vê-la com mais clareza, duma forma que nunca a tinha visto. Pareceu-me uma estranha. Talvez fosse ainda o efeito daqueles comprimidos. Ou do choque. Não sei. Sei que fiquei durante algum tempo ali, a olhar para ela sem saber o que fazer, o que dizer.
Resolvi pegar no livro pousado na mesa de cabeceira. Não o reconheci como sendo um dos nossos. A capa, de couro verde com entalhes dourados, tinha uma aura de floresta élfica, misteriosa. Era um livro antigo e tinha sido muito manuseado. Na capa estava apenas escrito Shakespeare
e na lombada, em letras já semiapagadas, "A Midsummer Night’s Dream".
Abri o livro onde tinha sido marcado com um pedaço de papel.
OBERON
Ill met by moonlight, proud Titania.
TITANIA
What, jealous Oberon? — Fairies, skip hence.
I have forsworn his bed and company.
OBERON
Tarry, rash wanton. Am not I thy lord?
O meu conhecimento de inglês não era na altura suficiente para perceber aquilo, e penso que o da minha mãe também não seria. Por que motivo então teria trazido aquele livro? E donde o trouxera?
Folheei-o ao acaso até que deparei com um pequeno cartão de biblioteca. L.A.G. – Travessa do Sacramento, n.º 1 – 1200 Lisboa
. Havia vários nomes na requisição, e o último era o dela. A data, à frente, era de há uma semana. Mas há pelo menos três