Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas €10,99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

As Flores do Jacarandá
As Flores do Jacarandá
As Flores do Jacarandá
E-book191 páginas2 horas

As Flores do Jacarandá

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

As Flores do Jacarandá é uma coletânea de vinte contos que narram histórias com desfechos improváveis, ocorridas em Portugal entre o ano de 1935 e a atualidade. O que dizer do pequeno Vítor, que foi atropelado no Barreiro em 1962? Ou do galante Heitor, que desapareceu no Seixal em 1983? Ou, ainda, da turma de Guga, que quis pregar uma partida à professora de português em 2010, numa escola da Marinha Grande? Os seus destinos serão desvendados ao longo dos contos que protagonizam, tendo como pano de fundo a sociedade portuguesa ao longo dos anos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de dez. de 2024
ISBN9789895794447
As Flores do Jacarandá

Relacionado a As Flores do Jacarandá

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Categorias relacionadas

Avaliações de As Flores do Jacarandá

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    As Flores do Jacarandá - Beatriz Gouveia Santos

    Agradecimentos

    Agradeço a todos aqueles que tornaram este livro possível, através das histórias que tiveram a oportunidade e o prazer de contar.

    Em cima do burro

    Parte incerta, 1935

    O jacarandá foi plantado no ano de 1935 em parte incerta. Apenas posso adiantar que foi em Portugal e que à volta nada havia, mas o local específico ficará sujeito à imaginação de cada um. No continente ou nas ilhas, no litoral ou no interior, mais a norte ou mais a sul, isso ficará à escolha de quem lê, dependente dos seus gostos, conhecimentos e vivências mais queridas. No quinto ano da década de 1930 e num lugar ermo e lusitano, cujo nome é oculto, alguém se lembrou de plantar um jacarandá.

    E também em parte incerta de Portugal, em dia e em mês incerto do mesmo ano, duas irmãs – Laura, mais velha, e Olinda, mais nova – tinham ido comprar cerejas a uma mercearia de nome incógnito utilizando como meio de transporte um burro de nome não incógnito – o pequeno Napoleão, que de parecido ao Bonaparte só tinha mesmo o facto de ser minúsculo.

    Era início de tarde e o sol ia lá no alto do céu, de um azul majestoso, queimando as peles nuas e delicadas de quem por debaixo dele passava. O calor era ardente, Laura pensou nas cerejas com medo de que se estragassem. Iriam ser a sobremesa de toda a família, dos pais e dos cinco irmãos, não podiam chegar a casa assim, meladas, disformes e dilaceradas pela brasa. Tinham de chegar frescas e suculentas, doces, para deliciar os habitantes do lar depois de uma refeição de parco e insípido alimento, como eram quase todas. Eram pobres e só comiam bem em dias de festa. As cerejas estavam num cestinho velho em cima do burro, atadas com um pano branco e sujo da cozinha, instáveis.

    Por mera coincidência ou por súbita infelicidade, algo aconteceu assim que as duas irmãs se cruzaram com o jacarandá, que lá estava, no meio do inóspito, estático e imóvel, parecendo imune ao leve vento que soprava naquele início de tarde. Napoleão, num acesso de teimosia proveniente da sua irracionalidade mais animalesca, parou, abruptamente, e deitou-se no solo. Assim, sem mais nem menos, sem tirar nem pôr, de forma repentina, tudo porque estava cansado e não lhe apetecia andar mais. Não fez nada que um ser humano não faria. Só não nos estatelamos no meio do chão quando estamos exaustos porque receamos que alguém nos veja e pense que somos loucos. Não corresponde ao padrão social.

    As garotas assustaram-se. Pensaram que tinha dado um piripaque ao bicho, ele que, apesar de pequenote, já tinha alguma idade. Mas nada acontecera. O burrico era apenas preguiçoso e obstinado.

    Com a sua queda voluntária sobre o chão daquela vasta planície, caíram também as cerejas. Felizmente para Laura, não todas, mas ainda umas quantas. Cerca de metade. A porção distribuída a cada membro da família seria substancialmente menor mas, para quem é desfavorecido, pouco é sempre melhor que nada.

    E caíram mesmo junto ao tronco do jacarandá, tão junto que quem o visse ali com os frutos ao pé pensaria que se tratasse de uma cerejeira. Isto se fosse alguém que não entendesse de botânica, digo.

    Napoleão, em mais um acesso instintivo e estando cheio de fome, afiambrou-se às cerejas. Comeu-as sofregamente, como se aquilo fosse a sua primeira refeição em quinze dias. E a sofreguidão era tanta que acabou a dar marradas no tronco. Uma marrada, duas marradas, e a árvore começou a mexer-se. Mais umas marradas e uma das suas flores caiu, a sua primeira flor. Caía em cima daquele burro desnorteado e desajeitado a primeira flor daquele jovem jacarandá. As raparigas olhavam-na com um trágico maravilhamento. Iam chegar tarde a casa, com metade das cerejas e um burro lambuzado e talvez doente das tripas, mas a flor do jacarandá era linda. Estava um calor de queimar os poros e à volta não se via qualquer vestígio de civilização, mas a flor do jacarandá era linda. Roxa, graciosa, bela.

    E, tal como ela, muitas outras flores se soltaram daquela árvore. Algumas foram parar a pisos desertos e decompuseram-se sem qualquer história para contar. Mas outras voaram, levadas pela aragem. Algumas para perto, outras para longe, nunca, porém, saindo desta nossa ocidental praia lusitana. Algumas caíram em parapeitos de casas, de escolas, de locais de trabalho e de locais de convívio. Outras caíram em ruas lotadas, às vezes prendendo-se nos sapatos dos transeuntes e infiltrando-se nas suas vidas. Sempre presentes, mas nunca participantes. Porque nas histórias que viram e ouviram, nas histórias deste livro, foram sempre omniscientes mas nunca os seus protagonistas se aperceberam delas.

    Contudo, estavam lá. Ao longo dos anos e por Portugal inteiro. Estavam lá as flores do jacarandá.

    Uma alma penada dentro do forno

    Valhelhas, 1942

    Numa segunda-feira nublada, daquelas em que o dia está tão sombrio que faz desaparecer as sombras, Jaime não teve vontade de ir à escola. A bem dizer, nunca tinha, mas desta vez o caso era particularmente grave. O professor, homem firme, cristão, e com um amor cego à disciplina, tinha mandado vários e difíceis trabalhos de casa para o fim de semana e ele, moço travesso, imaturo e com um amor cego ao descanso, não tinha realizado a tarefa de os fazer. Não por esquecimento mas por desejo de ócio. Apetecera-lhe ficar o sábado e o domingo inteiros a brincar na lama do descampado das redondezas com os amigos, descalço e despreocupado, alegre e com os pensamentos bem afastados de tudo o que tivesse a ver com esforços intelectuais. Além disso, o céu cinzento da manhã, aquele maciço engarrafamento de nuvens, fazia-o repudiar ainda mais a ideia de passar a manhã numa sala igualmente cinzenta com pessoas de semblantes igualmente cinzentos.

    Por isso, fingiu estar doente. Inventou uma enxaqueca, o tipo de dor que ninguém lhe poderia desmentir. Só sabe dela quem a sente e é fácil de fingir, basta cobrir a testa, fechar os olhos e começar com queixumes desesperados. Passados já quinze minutos da sua hora habitual de se levantar, a sua mãe, Dona Graça, mulher rígida e determinada, apareceu-lhe no quarto aos berros, histérica e impaciente, a dizer que lhe batia se chegasse atrasado – e as tareias que ela dava eram tudo menos desejáveis.

    — Mas estou doente, mãe! – replicou o moço, com uma voz de sofrimento forçada e com um latente medo interior.

    — Doente com o quê? – a mulher não acreditava no filho, a sua intuição de progenitora experiente dizia-lhe que aquilo era apenas um capricho de miúdo molengo.

    — Dói-me a cabeça e acho que estou com febre. – falou da febre para dar consistência à mentira e depressa se arrependeu, a febre não era fácil de encenar.

    A mãe levou-lhe mão à testa para ver se aquilo realmente se verificava. Como esperado, apercebeu-se da mentirola. A testa de Jaime estava a uma temperatura normalíssima e nada no rapaz indiciava o mínimo sintoma de febre, apenas sintomas de preguicite aguda.

    — Não estás com a testa quente, menino. Podes perfeitamente ir à escola. Agora vá, toca a levantar. – ordenou Dona Graça, em tom de generala e não saindo do quarto até ver o filho sair da cama. Ficou especada junto à parede, de braços cruzados, numa atitude inquiridora. Fazia lembrar aquelas estátuas pavorosas de inspiração soviética, ainda há algumas por esse Portugal fora.

    O miúdo, porém, achou que conseguia convencê-la. O que ela tinha de intimidante, ele tinha de teimoso. Ainda tinha esperança de que a história da dor de cabeça resultasse.

    — Também estou com dor de cabeça!

    Dona Graça soltou um suspiro profundo. O seu rosto ruborizava-se.

    — Isso já passa, dor de cabeça não impede ninguém de ir às aulas. – bem sabia que não era assim, ela própria já tivera enxaquecas e sabia a angústia que era, mas também sabia que o filho era mandrião e mentiroso.

    Jaime lá se levantou, lânguido e a contragosto, e foi fazer as tarefas da manhã sob a pressão do olhar severo da mãe, que inspecionava todos os seus movimentos. Sair de casa foi um alívio e melhor ainda foi virar a esquina, deixando de a ver junto à porta, na mesma posição de estátua soviética com que se encostara à parede do quarto.

    Ainda pensou dirigir-se à escola para ir ter o seu dia de aulas rotineiro, mas a falta de vontade e o medo de um sermão falaram mais alto. Não queria ir, isso estava decidido. Só lhe faltava um sítio onde se esconder. Não podia passar a manhã a passear pela aldeia porque a mãe, juntadeira de ovos, essa profissão que entretanto já desapareceu, podia aparecer em qualquer lado e vê-lo a esquivar-se à escola, o que a faria explodir de raiva e dar-lhe uma valente carga de porrada, mesmo à frente de todos os transeuntes. Pensou em vários lugares que pudessem ocultar o seu pequeno delito, mas todos tinham algum problema. Primeiro pensou num arbusto, havia muitos pela zona, mas eram todos demasiado expostos. Depois pensou em embrenhar-se no mato que ficava ali perto, mas tinha medo dos lobos – havia quem dissesse que comiam pessoas, só deixando os sapatos (esse rumor existia em Valhelhas e noutros sítios, mas talvez os lobos fossem apenas bodes expiatórios para assassinatos reais). Chegou mesmo a pensar em entrar à socapa na casa de algum magnata da terra que estivesse ausente e lá ficar durante aquele bocado, usufruindo de todas aquelas coisas que só os ricos tinham acesso e que a ele lhe pareciam tão distantes. Mas, se faltar à escola já era errado, então fazê-lo ao mesmo tempo que invadia a casa de alguém era mais errado ainda. E, apesar de jovem e preguiçoso, Jaime sabia distinguir o bem do mal.

    Lembrou-se do local ideal para passar a sua manhã ao ver uma senhora singela passar com um saco de pão na mão. Perguntou a si próprio como é que não tinha tido logo aquela brilhante ideia, foi como se o universo lhe estivesse a enviar um sinal. Como se Deus apoiasse a sua decisão de faltar à escola.

    À saída da aldeia, havia um conjunto de fornos de lenha que, tanto quanto ele sabia, não costumavam ser utilizados. Tinham todos uma portinhola preta que, quando fechada, impedia qualquer pessoa de ver o que se passava lá dentro. Não eram muito espaçosos mas tinham o tamanho suficiente para guardar uma criança franzina como ele. E deviam ser quentes, um bom abrigo para um dia ventoso como o que estava.

    Entusiasmadíssimo por ter finalmente encontrado a solução perfeita, lá foi em direção aos fornos, achando-se um génio por ter tido aquele pensamento mirabolante. Eles lá estavam, quietos como sempre os via, velhos, feitos de tijolos mal amanhados e com as portinhas negras entreabertas.

    Jaime certificou-se de que não havia vivalma por perto e entrou no seu esconderijo. Fechou a porta e deitou-se com as pernas dobradas, em posição fetal. Estava cansado, não por ter andado muito, o caminho fora curto, mas por ter dormido pouco. Usando a maleta da escola como almofada, não tardou a adormecer sobre aquele solo sujo e ferrugento que não lhe causava impressão. Uma manhã bem passada.

    Acordou sem saber que horas eram, pois naquele tempo ter relógio era coisa de ricos, mas decidido a voltar para casa com a desculpa de que tinha saído mais cedo, caso fosse realmente mais cedo.

    E, de facto, saiu do forno, mas não com a tranquilidade com que esperava fazê-lo. Esperava sair lentamente, depois de se espreguiçar, esfregar os olhos e bocejar. No entanto, umas vozes penetrantes e inusitadas fizeram-no reconsiderar a sua ação. Eram duas vozes esganiçadas, femininas e cacofónicas.

    Pensando que eram apenas duas mulherzitas que por ali passavam e que depressa se iriam embora, Jaime permaneceu dentro do forno à espera que se afastassem. Mas as vozes não cessavam. Ao início falavam de assuntos triviais, do que fora o jantar do dia anterior, de como ia a família, de rumores que se ouviam pela aldeia, até um certo comentário ativar no rapaz um terror que nunca tinha sentido. Um pânico que quase o fez desmaiar. O primeiro contacto com o receio de uma morte iminente.

    — Agora chega de conversa, tenho de ir ali acender o forno para coser o pão. – dissera uma das vozes.

    Jaime teve apenas uma fração de segundo para pensar no que ia fazer. Não podia estar dentro do forno quando este se acendesse, isso era certo, não tinha qualquer intenção de ser assado e esturricado como um frango malcozinhado, mas também não podia sair calmamente com os olhares das mulheres a caírem sobre si.

    Num breve instinto de sobrevivência, abriu a portinhola negra de rompante e fugiu a sete pés do local onde se encontrava. Em poucos segundos, aprendera duas coisas acerca das quais não fazia ideia – que aqueles fornos ainda funcionavam e que era capaz de correr mais rápido do que uma gazela que foge de um leão. Ouviu um grito estridente vindo de uma das mulheres mas, depois disso, por um breve período de tempo, mais nada.

    Quando finalmente estava longe o suficiente e recuperara o resto da sua consciência, deu por si junto ao tanque onde as lavadeiras costumavam ir, o que era bastante conveniente porque tinha ficado com

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1