René Guénon, Por Olavo de Carvalho
René Guénon, Por Olavo de Carvalho
René Guénon, Por Olavo de Carvalho
REN GUNON
esotricas das mltiplas tradies espirituais, congressos e debates, e pelo menos duas revistas especializadas: tudes Traditionelles, na Frana, e Studies in the Comparative Religion, na Inglaterra.
Retrato de Ren Gunon, executado por Pierre Laffile. Por isso talvez seja mais fcil hoje em dia falar dele, embora, na misria intelectual brasileira, essa facilidade criada pela difuso da sua obra em todo o mundo seja mais do que relativa.
Essa primeira impresso, por desagradvel que seja, parece-me antes til do que prejudicial compreenso dos textos, com a condio, entretanto, de que nenhum dos termos venha mais tarde a ser esquecido, isto , de que movido por uma reao emocional qualquer, o leitor no venha a enfatizar nem a impessoalidade humilde do homem, nem a rigidez dogmtica dos textos, pois so termos que se complementam e se explicam solidariamente. Esquecidos disso, os inimigos de Gunon embriagaram-se em especulaes sobre o seu orgulho intelectual, o que seria legtimo somente no caso de ele alegar a posse pessoal da Verdade e assumir a defesa da sua doutrina, coisa que ele jamais fez. Ren-Marie Joseph Gunon nasceu em Blois, Frana a 15 de novembro de 1886. O nome traz a marca da devoo ancestral Virgem e a S. Jos, e a famlia, constituda de viticultores, era de uma regio que produz alguns dos melhores vinhos da Frana. O personagem, entretanto, terminar a vida no Cairo, casado com a filha de um xeque e tendo adotado todos os costumes muulmanos (inclusive a proibio de tomar vinho), aps ter-se tornado famoso como expositor de doutrinas hindus e ter acabado de editar seu ltimo e grande livro, A Grande Trade, sobre a doutrina taosta.
como um todo a defesa de uma Tradio, de uma Verdade nica que, no plano da doutrina metafsica, estabelece a unidade de todas as manifestaes espirituais particulares, de todas as pocas e culturas. Nesse sentido ele pde, por exemplo, tornar-se muulmano enquanto declarava a superioridade da tradio hindusta (mais prxima, segundo ele, da Tradio primordial), e defender as doutrinas orientais enquanto propunha que, para o Ocidente, s havia um caminho legtimo, o retorno Igreja Catlica.
Aqui no Egito, Gunon resolveu adotar o nome de Abdel-Whed Yahia. Note-se que essa possibilidade de transitar livremente de uma Tradio a outra , hoje como sempre, apangio exclusivo dos grandes Mestres espirituais, que s conseguem faz-lo por ter absorvido integralmente a ortodoxia de cada tradio, nada tendo isso a ver com certas misturas e sincretismos os quais, no sculo passado, propuseram uma religio universal que no era mais do que uma pasta que fundia e descaracterizava todas as tradies particulares, sem lograr com isso nenhuma unidade verdadeira. A vida de Gunon pode ser resumida em poucas linhas. Aps estudos primrios e secundrios brilhantes, perturbados apenas pela sade instvel, fez o curso superior de matemtica, durante o qual aproximou-se de grupos de estudos ocultistas, liderados pelo famoso Papus. No demorou a desligar-se deles, por perceber a inconsistncia de suas doutrinas e a ausncia de qualquer vnculo verdadeiro com uma Tradio inicial. Teve, em seguida, a felicidade de ligar-se a fontes legtimas das tradies espirituais orientais, em particular a hindu, a taosta
e a islmica (sufismo), das quais seus livros representaram e representam, at hoje, a primeira e melhor exposio em lngua ocidental.
privilgio que consagra a vitria do Esprito... esse privilgio ao qual a tradio ocidental deu, de uma vez para sempre, o nome de santidade. Pois talvez no haja outra palavra para caracteriz-lo, seno a de Rama Maharshi, para quem Gunon era the great Sufi. Rmana, a quem ningum negar a condio de santo, usava a linguagem da Tradio, e nesta, o termo sufi no empregado para designar aquele que tenha qualquer ligao em qualquer nvel com uma certa corrente esotrica, mas unicamente aquele que alcanou o supremo grau da realizao espiritual, conhecido na Tradio hindu como a Unio ou a Libertao. No estou canonizando Gunon por conta prpria, mas uma vida que, em recompensa da anulao do indivduo a servio da Verdade, encontra apenas a incompreenso, a perseguio e, para cmulo, a acusao de orgulho, coroa-se de uma certa aura que impe silncio e respeito, mesmo a seus adversrios.
Reunio da Ordem da Estrela do Oriente: Besant, Krishnamurti. Coerente? Talvez a amostra mais contundente da coerncia da obra gunoniana seja o fato de que, no seu primeiro artigo, publicado em 1909 (O Demiurgo), Gunon j tenha definido, de maneira taxativa, tanto sua posio quanto a do adversrio: da at sua morte, em 1951, Gunon permanecer, sem nenhuma alterao doutrinrias o defensor da Unidade contra o esprito de negao e de revolta da parte contra o todo e do relativo contra o Absoluto, o qual esprito, personificado, recebe nas tradies semticas o nome de Shatan, Shaitan ou Sat, termos que querem dizer, precisamente, o Adversrio. Como, num plano de totalidade metafsica, o adversrio no tem nenhuma realidade, mas se revolve apenas numa viso parcial que aspira a ser total, o trabalho do defensor da Unidade consistir precisamente em jamais descer ao nvel de particularidade, que o poria merc do inimigo, mas ater-se ao plano da Doutrina metafsica, e reabsorver nele todos os golpes e ameaas, restituindolhes a fisionomia que de direito lhes pertence: a fisionomia do nada. Assim, por exemplo, ao combater o moralismo sentimental e religioso dos ocidentais que os impede de compreender as doutrinas metafsicas orientais no seu devido plano ele no o ataca: anula-o, mostrando como representa apenas um reflexo longnquo, parcial e limitado das mesmas verdades metafsicas contra as quais esse moralismo se volta.
Foi o que ele fez, ao mostrar aos arautos da civilizao crist ocidental que os preceitos ticos, em nome dos quais pretendiam civilizar o Oriente brbaro, no eram seno o eco histrico distante de velhssimas doutrinas orientais, cujo sentido intelectual se perdera no Ocidente, deixando apenas um rano sentimental substitutivo. Assim ele fez, tambm, com a moderna cincia ocidental, ao mostrar que muitas de suas teorias no passam de velhas verdades metafsicas mal compreendidas e distorcidas pelo tempo. Por exemplo, ao mostrar que o sistema de numerao binria, que seu inventor, Leibniz, pretendia constituir a chave (finalmente descoberta!) dos hexagramas chineses do I Ching no passava de um aspecto secundrio e contingente dentro de um texto sagrado cujas verdadeiras dimenses nem Leibniz nem todos os seus contemporneos ocidentais estavam em condies de imaginar. Tal ele fez tambm ao mostrar como o atual progresso econmico do qual o Ocidente se orgulha, e em nome do qual invade, saqueia e descaracteriza outras civilizaes, no passa de um processo de quantificao crescente, que os antigos textos vdicos j previam, milnios atrs, como o auge da desqualificao e da decadncia. Gunon conhece, compreende e exalta cada tradio em particular, incluindo as religies, e s vezes as expe com uma retido tanto ou mais ortodoxa do que conseguiriam seus representantes oficiais. Mas, to logo o representante de uma religio ou de uma corrente esotrica pretendesse realar sua superioridade perante as demais, Gunon virava o disco, para mostrar a dependncia dessa corrente especfica em relao Tradio primordial. Por isso, entre os representantes tanto das religies quanto das sociedades esotricas, Gunon s obteve o apoio, velado ou declarado, dos homens de inteligncia mais universal, capazes de sobrepor o esprito, que vivifica, letra que mata. Sua obra surge, assim, como um divisor de guas, e por isso foi possvel v-lo, ora discutindo com os representantes do oficialismo religioso (um Maritain, por exemplo), em nome da Tradio, ora reconvertendo cristos, muulmanos ou judeus modernizados, s suas tradies de origem. No Isl, onde terminou seus dias ignorado pela maioria dos representantes da religio oficial, ele hoje reconhecido como um potente renovador dos estudos islmicos. Mas pode-se dizer que os cristos ainda no reconheceram sua imensa dvida para com uma obra capaz, por si s, de dissolver todas as objees do mais empedernido materialista cientfico e devolve-lo Igreja de Cristo, por uma fora intelectual superior a toda confuso dialtica do atesmo moderno.
d) Estudos particularizados sobre os smbolos, que so um meio bsico de transmisso do ensinamento tradicional. Os estudos nesse sentido esto disseminados por toda a obra gunoniana, sobretudo em seus artigos de revistas, muitos dos quais foram reunidos no livroSmbolos da Cincia Sagrada (1962). Muitos dos seus textos participam de vrios desses temas ao mesmo tempo, e a mais notvel sntese de muitos planos de abordagem, a meu ver, O Reino da Quantidade, onde todos os temas se interpenetram em cada captulo, de maneira majestosamente sinfnica, enquanto em A Metafsica Oriental, por exemplo, apura e simples exposio da doutrina oculta, nas entrelinhas de um discurso dos mais sbrios e serenos, as mais explosivas condenaes ao mundo moderno. Quero dizer que essa estruturao apenas uma das muitas possveis para uma obra tremendamente complexa, mas que ela basta para situar o leitor. A obra de Gunon exige, naturalmente, certos cuidados de quem vai abord-la, pois ela reverte de alto a baixo todas as nossas noes sobre a histria, a cultura, os valores e a verdade. Retirando-nos de um mundo de hipteses e teorias vagas, ela nos remete ao corao vivo da Verdade, e por isso, segundo diz meu professor Michel Veber (que estudou sob a orientao pessoal de Gunon), essa obra pode constituir-se, ela mesma, no centro da vida de quem se dispe a estud-la. O QUE H PARA SE LER Em portugus: A Crise do Mundo Moderno (Lisboa, Veja, 1977); O Esoterismo de Dante, seguido de So Bernardo (Lisboa, Veja, 1978); O Rei do Mundo (Lisboa, Mineva, 2 edio, 1978); A Metafsica Oriental, edio comentada por Michel Veber (So Paulo, Escola Jpiter, 1981). Das edies portuguesas, a traduo de O Rei do Mundo deixa a desejar. A nica edio brasileira de A Metafsica Oriental, mas em tiragem reuzida, fora do mercado, s podendo ser obtida diretamente na Escola Jpiter, ao preo de Cr$350. (Pessoas de outros Estados interessadas em adquiri-lo devem remeter cheque de Cr$400, j includas despesas de reembolso postal, em nome de Escola Jpiter Promoes e Comrcio Ltda., Rua Raggio Nbrega, 40, Jardim Paulistano, So Paulo, SP, 01441.) No original francs, as obras de Ren Gunon, editadas em parte pela Gallimard, em parte pelas ditions Veja, podem ser adquiridas nas livrarias Horus, Fretin ou Zipak, em So Paulo.
O AUTOR Olavo de Carvalho traduziu para o portugus a nica obra de Gunon at hoje editada no Brasil (A Metafsica Oriental, So Paulo, Edies Jpiter, 1981). Olavo, jornalista e astrlogo, ainda diretor da Escola Jpiter, onde tambm se realizou, no ms de abril, o primeiro curso sobre a obra de Gunon dado no Brasil, cujo expositor foi Michel Veber, artista plstico e professor de artes marciais, que estudou sob a orientao pessoal do prprio Gunon.
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