O documento discute a representação da sensualidade e sexualidade na arte ao longo da história. Aponta que erotismo e nudez foram reprimidos pelas religiões monoteístas, mas ainda assim estiveram presentes na arte por meio de símbolos. No século XX, o corpo sensual assumiu maior protagonismo com performances e happenings. Atualmente, a pornografia encontra veículo nas mídias digitais.
O documento discute a representação da sensualidade e sexualidade na arte ao longo da história. Aponta que erotismo e nudez foram reprimidos pelas religiões monoteístas, mas ainda assim estiveram presentes na arte por meio de símbolos. No século XX, o corpo sensual assumiu maior protagonismo com performances e happenings. Atualmente, a pornografia encontra veículo nas mídias digitais.
O documento discute a representação da sensualidade e sexualidade na arte ao longo da história. Aponta que erotismo e nudez foram reprimidos pelas religiões monoteístas, mas ainda assim estiveram presentes na arte por meio de símbolos. No século XX, o corpo sensual assumiu maior protagonismo com performances e happenings. Atualmente, a pornografia encontra veículo nas mídias digitais.
O documento discute a representação da sensualidade e sexualidade na arte ao longo da história. Aponta que erotismo e nudez foram reprimidos pelas religiões monoteístas, mas ainda assim estiveram presentes na arte por meio de símbolos. No século XX, o corpo sensual assumiu maior protagonismo com performances e happenings. Atualmente, a pornografia encontra veículo nas mídias digitais.
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19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas
Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
460 APONTAMENTOS PARA UMA CARTOGRAFIA DA HISTRIA DA ARTE PORNO- ERTICA
Afonso Medeiros Universidade Federal do Par
RESUMO:
Como resultado parcial da pesquisa desenvolvida pelo autor nos ltimos trs anos, este ensaio organiza alguns apontamentos com o intuito de esboar uma cartografia da histria da arte porno-ertica. Erotismo e pornografia so conceitos diferenciados que, no entanto, so complementares quando se verificam as representaes do corpo e da sexualidade nas relaes internas e externas no campo da arte.
PALAVRAS-CHAVE: Arte; erotismo; pornografia; arte porno-ertica.
SOMMAIRE:
Comme un rsultat partiel de la recherche dveloppe par l'auteur au cours des trois dernires annes, cette tude se propose a organizer certains manuscrits avec le but d'elaborer une cartographie de histoire de l'art porno-rotique. rotisme et pornographie sont des concepts diffrents, cependant, sont complmentaires quand se verifient les representations du corps et de la sexualit dans les relations internes et externes dans le domaine de l'art.
MOTS-CLS: Art, rotisme, pornographie, art porno-rotique
Preliminares Vou direto ao assunto: a expresso e exposio da sensualidade ou da carnalidade, para sermos bem explcitos ainda objeto de represso em todos os campos, inclusive no campo da arte. Mesmo considerando-se a massiva exposio do corpo nas mdias, particularmente do feminino, e o protagonismo do corpo e de suas prteses na arte contempornea, os modos de produo e veiculao das imagens sensuais obedecem a regras bem determinadas, liberando-se a sensualidade implcita e interditando-se a explcita permite-se o erotismo, censura- se a pornografia. A excitao que a imagem sensual provoca ainda considerada uma experincia exclusiva da ordem do privado e sua exposio pblica regida pela norma do atentado ao pudor, sempre vigilante e introjetado. Gianni Vattimo, em entrevista revista Cult (n 126, pp. 14 e 15), expe o tamanho da ferida: 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
461 Por isso era to central [para os movimentos polticos de 1968] a revoluo sexual; a descoberta (Marcuse!) de que a represso sexual era um aspecto da opresso social e econmica. [...] Vale dizer que eu estou consciente de que os problemas acerca da orientao sexual esto profundamente ligados estrutura de classes. [...] E provo um certo ressentimento por ter sido obrigado a viver minha primeira experincia ertica e de namoro como um excludo. [...] Esta uma questo muito difcil [a do auxilio da filosofia na compreenso da sexualidade na contemporaneidade], porque no conseguimos considerar objetivamente pois estamos imersos na situao problemtica que se deveria resolver na resposta. [...] Quem pode dizer, filsofo ou no, que tenha resolvido, de modo satisfatrio, o problema da sensualidade? E, por outro lado, ser verdade que no haveria ningum que preferisse no ser atormentado por esse espinho? A filosofia talvez nos ajude a entender que a sexualidade, com todas as suas implicaes, um aspecto, talvez, antes, o aspecto essencial da nossa finitude. O fato de eu, como filsofo, nunca ter me preocupado a fundo com este problema (de resto, como tantos filsofos meus mestres, inclusive Martin Heidegger) s um sinal de que eu perteno a um mundo ainda caracterizado pela represso. Essas afirmaes do filsofo italiano constituem, por si s, um roteiro de indagaes ainda pertinentes e, provavelmente, mais do que nunca atuais , sobre a representao da sensualidade e da sexualidade. Esse espinho que, segundo Vattimo, a todos atormenta, tambm incomoda o campo da arte. A exemplo da filosofia, as teorias da arte ainda no responderam satisfatoriamente ao problema da manifestao do desejo e da seduo, talvez porque no tenhamos nesse campo, por motivos que s a censura explica, uma histria da representao do corpo e da sensualidade a bibliografia estranhamente escassa sobre o assunto uma prova contundente disso. Nunca demais afirmar que, de todos os tipos de discursos relativos sensualidade e sexualidade, o visual certamente o mais censurado. O corpo tem sido, desde sempre, um tema e um assunto privilegiados na histria das artes visuais. Das pinturas parietais arte digital, a imagem do corpo parece exercer um fascnio que no d sinais de esgotamento e tem atravessado culturas, estilos, escolas, tendncias e movimentos variados nos tempos e nos espaos. A sobrevivncia desse fascnio ainda mais contundente quando lembramos que o corpo e sua representao, muitas vezes, foram negados no s pelas religies monotestas, mas tambm pela filosofia ocidental que, a rigor, jamais se preocupou com a carnalidade do corpo, embora o tenha considerado sob diversos aspectos (cf. Cardim, 2009). Em muitas culturas, particularmente nas pantestas, no havia uma interdio nudez corporal e, at mesmo, ao que hoje caracterizar-se-ia como imagem 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
462 pornogrfica os murais de Pompia, a cermica grega e a escultura indiana so exemplos bem conhecidos. Por um outro lado, no foram poucas as culturas que encobriram o corpo com uma burca ou um hbito. Estou me referindo, claro, representao do corpo nu. Na cultura ocidental de influncia europia, essa interdio instala-se com a ascenso das religies monotestas. Quando as burcas e hbitos eram a regra e no a exceo, a imagem do corpo nu persistiu, mesmo que travestido na pele do mito, do heri ou do santo, e no raramente causou escndalos (Donatello, Michelangelo, Caravaggio, David etc.). Alis, o recurso ao mito, ao heri e ao santo foi uma forma de driblar a interdio ao nu e expor o corpo, mesmo que de maneira muitas vezes idealizada e contribuindo diretamente para a sublimao do corpreo e da sexualidade. Com Goya, Coubert e Manet (dentre outros), abandona-se paulatinamente a idealizao e se instaura uma representao do corpo mais humana e realista mais carnal, poder-se-ia dizer. Por um outro lado, ao longo desse trajeto que vai do Renascimento ao sculo XIX, muitos artistas produziram obras de carter claramente obsceno, mas essa produo foi convenientemente relegada s bordas da histria e esquecida pelos historiadores da arte at recentemente. Conforme as histrias cannicas da arte, a representao do humano explicita-se no trabalho, na poltica, na religio, na mitologia, na histria, na cincia e na natureza, mas no se encontra uma s imagem que explicite o exerccio da sexualidade humana. A crer nesse discurso e nesse imaginrio privilegiado pela histria da arte, o ser humano no deseja o outro, no provoca a seduo, no fornica, no faz sexo, no goza... Enfim, no tem corpo. Com o advento da fotografia, a representao do nu ainda travestiu-se de artstico, de cientfico ou de mitolgico, mas logo se escancararam todos os pudores em relao ao corpo e, desde ento, a histria da sensualidade na arte e, por extenso, do desejo e da seduo tornou-se mais que pura tendncia ou gnero artstico. Os modernismos do sculo XX promoveram a deformao e a fragmentao do corpo, enquanto sua segunda metade, a par da pretensa liberao de todas as formas de represso, sobretudo as sexuais instaladas no epicentro de Maio de 68, viu o corpo sensual e sexualizado assumir a cena em happenings, performances e 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
463 mais uma diversidade de experimentaes, no sem as devidas polmicas. o momento da bacanal da modernidade, conforme definio de Jean Baudrillard (1990, p. 9): A orgia o momento explosivo da modernidade, o da liberao em todos os domnios. Liberao poltica, liberao sexual, liberao das foras produtivas, liberao das foras destrutivas, liberao da mulher, da criana, das pulsaes inconscientes, liberao da arte. Assuno de todos os modelos de representao e de todos os modelos de anti-representao. O erotismo musealizou-se (museus em Paris e no Rio, por exemplo), tornou-se tema de concorridas exposies e provocou debates calorosos em congressos e similares em todo o mundo. Nesse brevssimo retrospecto, temos mais ou menos palmilhada uma histria da assuno do corpo e, qui, de seu desaparecimento (ou ocultao), pelo menos na arte ocidental. A pornografia manifestou-se particularmente nas tcnicas da reprodutibilidade (gravura, fotografia e vdeo cf. Medeiros, 2008) e em consonncia com essa trajetria a representao da sexualidade encontrou nas mdias digitais seu mais perfeito veculo, prprio para o deleite privado, annimo e despessoalizado. Discutindo o corpo na perspectiva que se apresenta desde a modernidade, Le Breton (2003) observa a passagem do corpo rascunho ao corpo acessrio na contemporaneidade, rearranjado e reparado at tornar-se mero suporte da pessoa. E vale dizer que isso no perpetrado somente pelo biopoder da cincia e da tecnocincia (como aponta Le Breton), mas tambm pelo alcance dos paradigmas estticos sobre o corpo e a sexualidade que a arte construiu e continua construindo. Na verdade, o corpo e a sexualidade vm sendo despessoalizados h sculos e a arte, ao idealizar ambos, est profundamente imbricada nessa questo. Um texto de apresentao num site de fotografias e desenhos porno-erticos (http://galleries.adult-empire.com) reitera essa percepo: [...] only here you have a chance to fulfill all of you dirtiest fantasies. It is better than real men, because here you will find only the most beautiful guys in the world [...] and wild sex! [...]. Na abordagem do corpo e da sexualidade, a arte tem tido a mesma postura que a citao acima expressa, qual seja, a de idealizar o corpo e seus sabores, 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
464 atiando a fantasia e a imaginao, criando simulacros e uma verdadeira mitologia em torno do corpo. O que me espanta que raros historiadores da arte se do conta disso. Arte x erotismo x pornografia A despeito da onipresena da representao do corpo na arte, a discusso sobre a manifestao implcita ou explicita do desejo e da seduo no acompanha essa proeminncia. Se o erotismo tem sido um tema/discusso mais ou menos recorrente na arte, o mesmo no acontece com a pornografia tanto em abordagens histricas quanto filosficas, sociolgicas, psicolgicas ou educacionais aplicadas arte. A simples meno da palavra pornografia acarreta estranhamento e, no campo das artes visuais, resume-se tudo ao termo erotismo (cf. Medeiros, 2008). A crer nas definies sobre a representao do corpo, do desejo e da seduo que a arte suscitou, o pornografismo simplesmente no existe para a quase totalidade dos historiadores, filsofos, socilogos, educadores e crticos de arte. O fato que a representao da nudez ainda causa escndalos, principalmente quando um signo explcito da sexualidade e a questo , certamente, delicada, pois provoca paixes intensas e a manifestao de preconceitos h muito arraigados h quem negue a confluncia entre arte e erotismo. Concordando com Jacques Derrida e com muitos pensadores contemporneos, o pensamento ocidental erigiu leis duais e opositivas em nome de uma suposta homogeneidade da lgica cientfica. Essas leis claramente acarretam a excluso de algumas das mais importantes caractersticas do pensamento e, consequentemente, do conhecimento, qual sejam, a complexidade, a mediao e a diferena. Aplicadas ao campo da arte e, mais especificamente, s histrias da arte, erotismo e pornografismo so modos de representao incompatveis e observa-se nitidamente uma preferncia daquele em detrimento deste, evitando-se assim, justamente, a complexidade, a mediao e a diferena. O processo de desconstruo defendido por Derrida e seguidores no pretende, a partir da constatao de que essas leis so insuficientes para dar conta dos processos de pensamento, a remoo dos paradoxos que elas contm, mas, antes, procura revelar o terreno filosfico como o local da inveno e da criatividade. Isto tambm vale para a empreitada que proponho a partir deste ensaio: uma reviso 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
465 dos dualismos e oposies expressos na interpretao que a histria da arte faz da sensualidade corprea no s para explicitar esse jogo dual e opositivo, mas para incitar a revelao da complexidade, da mediao e da diferena intrnsecas ao tema. Investigar as formas de representao do desejo e da seduo, explicitando o pornografismo tambm como expresso e valor a serem considerados, parece causar constrangimento, principalmente atravs de um silncio obsequioso. Desconfio que encarar a expresso do desejo e da seduo em todas as suas manifestaes sem um entrave moralista comumente percebido como uma questo que deve ser confinada aos estudos de gnero, como uma espcie de diletantismo alheio histria da arte enquanto campo de conhecimento. Diante desse cenrio e do evidente pudor que o tema suscita, resta-me a provocao: quem nunca se interessou ou se deleitou com imagens pornogrficas, que atire a primeira pedra! Desde j, devo esclarecer que se trata de investigar a imagem literalmente excitante, aquela que provoca a libido do expectador. Por esse motivo, e para no incorrer em afronta lei, aviso que este trabalho desaconselhvel para menores de dezoito anos. A crer nas concluses temporrias que tenho retirado do percurso investigativo, as fronteiras entre erotismo e pornografia so liquidas, tnues, rarefeitas... Por essa razo, assumo neste ensaio o termo porno-erotismo (assim mesmo, com um hfem caracterizando elos e diferenas) para deixar claro que para alm do dualismo opositivo verificveis nas operacionalizaes dos termos ertico e pornogrfico, deve-se perceber as mediaes, as diferenas e a complexidade do pensamento que constri o conhecimento sobre o corpo e a sensualidade e o termo conhecimento aqui se refere no s ao discurso verbal, mas tambm e sobretudo ao discurso visual ou, melhor dizendo, construo do discurso verbal a partir do visual. Por esses motivos, preferi Apontamentos para uma cartografia da histria da arte porno-ertica como titulo deste ensaio. Apontamentos para uma cartografia porque se trata de um roteiro, ainda que claudicante, com questes que possam subsidiar a confeco de mapas que nos permitam, num terceiro passo, uma reviso 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
466 da histria da arte a partir do ponto de vista das representaes do corpo e da sexualidade. Algum poderia conjecturar que seria menos pretensioso uma histria do porno-erotismo na arte, mas isso me obrigaria a uma abordagem de um assunto (o porno-erotismo) dentro de uma histria (a da arte) cujas fronteiras j esto dadas e que, todos sabem, est eivada de preconceitos e etnocentrismos, me impedindo de experimentar enquadramentos diversos. Por um outro lado, considerando-se que a histria da arte uma cincia da interpretao dos fenmenos ditos artsticos, ela sempre passvel de reviso e novos enquadramentos como, alis, Hans Belting e Arthur Danto vm defendendo pelo menos desde os anos 80 do sculo passado. Em sntese, uma Histria da Arte Porno-ertica obriga no s a uma reviso da trajetria das representaes do corpo e da sexualidade na arte, mas impe tambm, a partir dessa questo, um questionamento dos pressupostos da disciplina ou, pelo menos, de alguns deles. Uma questo de juzos de gosto e de valor Se admitirmos, com Giulio Argan (1994, p. 14), que a histria da arte no tanto um histria de coisas como uma histria de juzos de valor e que, com Lionello Venturi (2007), a obra de arte depende do gosto do artista ou de um grupo de artistas, teremos que considerar que valor e gosto so inextricveis como, alis, Venturi concebia as relaes entre histria e critica de arte. Assim, deduzimos que a histria da arte , basicamente, uma histria de juzos de valor e de juzos de gosto, encarnados em determinado tipo de produo cultural (de dado indivduo e/ou de dada coletividade). O valor de obra de arte foi atribudo e aplicado, inclusive retrospectivamente, a produtos e processos de povos e culturas que certamente no tinham essa inteno, ou seja, a atribuio do valor artstico da obra arbitrrio na medida em que no basta, para essa atribuio, a inteno do produtor da obra. Essa constatao refora as percepes de Argan e Venturi sobre valores e gostos embutidos no conceito de obra de arte. Se essa premissa no estiver equivocada, teremos que admitir que a histria e a crtica de arte se configuram como um espao onde conceitos e preconceitos se cruzam incessantemente provocando vrios nveis de complexidade e mediao entre o artstico e o no artstico e que, portanto, o objeto dessas disciplinas no necessariamente a ontologia da obra de arte, mas os fluxos e refluxos dos valores e dos gostos permeados por conceitos e preconceitos relativos s concepes de arte. Meyer Schapiro, sempre entrelaando 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
467 histria e crtica de arte, outro autor que reitera a impossibilidade de isolamento dessas disciplinas em relao ao processo histrico. Talvez, mais do que qualquer outro pressuposto, esta a base sobre a qual a histria e a critica da arte porno- ertica tem que ser erigida. Dentro desse arcabouo, um dos conceitos que permeiam a histria da representao do desejo e da seduo na arte , certamente, a dicotomia entre erotismo e pornografia. A pornografia comumente caracterizada como representao explcita da sexualidade, exposio nua e crua, carnalidade sem amor, fsica, vulgar, grotesca. O erotismo, por contraste, abordado como representao sugerida da sexualidade, amor sem carnalidade, metfora, metafsica, transcendental, sublime a separao explcita entre erotismo e pornografia na arte est embutida na escolha das imagens que permeiam todas as histrias cannicas da arte, pelo menos nas abordagens at o sculo XIX e com exceo de A origem do mundo (1866) de Gustave Coubert. Assim percebida, essa dicotomia aponta no s para a gangorra de valores e gostos perceptvel ao longo da histria da arte e da critica, mas tem profundas implicaes filosficas e estticas. Nas ltimas dcadas, o termo erotismo tornou-se to elstico no campo da arte a ponto de abarcar a produo claramente pornogrfica de muitos artistas de anteontem, de ontem e de hoje. No se trata de reiterar, pura e simplesmente, essa dicotomia. O que estou querendo dizer, primeiramente, que h uma interdio (ou resistncia), mesmo que velada, quanto ao uso do termo pornografia entre historiadores, crticos, socilogos, antroplogos, educadores e psiclogos da arte. Essa resistncia aparece tambm na fala de muitos artistas. O vdeo, o cinema, a ilustrao, as histrias em quadrinhos, a gravura e a fotografia tm uma vertente/produo claramente caracterizada como pornogrfica. Por que essa caracterizao, com rarssimas excees, tambm no recai sobre a pintura ou a escultura? Porque, em grande medida, a pintura e a escultura ainda veiculam valores cannicos na histria da arte, alm de continuarem sendo, a despeito dos procedimentos da arte contempornea, as protagonistas dessa mesma histria, as que oferecem o enquadramento para todas as outras artes visuais. Caracterizar como pornografia significa automaticamente um veto ao status de transcendncia da obra de arte? Eis o fulcro dessa questo. 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
468 A questo dos valores atribudos ao que ertico em contraposio ao que pornogrfico provavelmente envolve uma clara delimitao de mercados e circuitos. Se um produto (filme, pintura, fotografia etc.) ertico-pornogrfico for produzido no circuito/mercado da arte, ele ser considerado obra de arte. Se o produto, desde sua gnese, for produzido no circuito/mercado porn, dificilmente ele atingir o status de obra de arte. Ou seja, as caractersticas (potencialidades) estticas do pornografismo so rechaadas a priori. Nessa delimitao de valores, sub-repticiamente tambm se instala um bom gosto pr-erotismo e um mau gosto pr-pornografia. A despeito das apropriaes ou referncias que muitos artistas contemporneos fazem em relao indstria pornogrfica, essas relaes raramente so problematizadas ou explicitadas. O que Koons, Currin, Araki, Bacon e Murakami (dentre muitos outros) fazem ou fizeram em algum momento de suas carreiras pornografismo ou alta pornografia como prefere Calvin Tomkins (2009) referindo-se a Koons ; representao nua e crua da sexualidade humana. No meramente erotismo, pelo menos no no sentido comum do termo. Ou ser que a imagem pornogrfica, ao assumir o valor de obra de arte atravs da apropriao produzida pelo artista, recebe automaticamente o carimbo transcendental de erotismo? Se, como vimos muito rapidamente, o pornografismo atravessa tanto o campo da arte como o campo mais vasto da cultura visual, porque, ento, a produo da indstria pornogrfica tem sido negligenciada por historiadores e crticos de arte? Tendo influenciado tantos artistas, por que a imagem pornogrfica no discutida, pelo menos como referncia e apropriao? E tem mais: Por que a produo com caractersticas porno-erticas de tantos perodos e artistas Giulio Romano, Rembrandt e Picasso, para ficarmos em poucos e conhecidssimos exemplos no so expostas nas histrias cannicas da arte? Tudo isso no nos interpela, no nos exige um olhar mais demorado e atento? Vimos que a histria da arte no pode se debruar sobre a obra de arte somente em termos ontolgicos ou hermenuticos. De fato, muitos historiadores, para abordar a arte como um valor entre valores, recorrem comumente ao sistema mais geral de valores de determinada poca ou cultura e, assim, por exemplo, no deixam de assinalar a importncia da retomada dos estudos clssicos para a arte da 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
469 renascena, o cisma cristo para a arte barroca, os avanos da cincia para a arte impressionista, a influncia de culturas primitivas na arte modernista ou a esttica do consumo, a liberao dos costumes e a indstria cultural para a arte contempornea. Pois bem! Por que, ento, paira sobre a pornografia, enquanto valor cultural que tem atravessado a arte h milnios (como valor presente na contemporaneidade ou de modo retrospectivo) um silncio constrangedor? As respostas so mltiplas e pretendo indicar alguns caminhos para elas ao longo deste ensaio. Se a obra de arte um valor, necessariamente cambiante nos tempos e nos espaos; se ela depende de um juzo de gosto tanto do artista quanto do espectador (na contemporaneidade, melhor seria chamar este ltimo de figurante) ento, a histria da arte no pode ser meramente uma histria de objetos, de tcnicas ou de estilos, mas tambm a histria das relaes entre valores extrnsecos e intrnsecos arte (aqui, porno-erotismo na arte e fora dela), uma histria relacionada s mentalidades estticas ou, como prefere Nicolas Bourriaud (2009, p. 39), A histria da arte pode ser lida como a histria dos sucessivos campos relacionais externos, que mudam de acordo com prticas determinadas por sua prpria evoluo interna: a histria da produo das relaes com o mundo, intermediadas por uma classe de objetos e prticas especficas. Em outras palavras, o campo dos valores intrnsecos arte afeta e afetado pelo campo dos valores extrnsecos a ela; os valores e os gostos do campo no- artstico so constantemente reelaborados e reapresentados pelo campo artstico e dessas correlaes no escapam nem o artista, nem o atravessador e nem o espectador. Trata-se, portanto, de mediaes. Para Deleuze e Guattari (1997, p. 260) A filosofia, a cincia e a arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos. [...] O artista traz do caos variedades, que no constituem mais uma reproduo do sensvel no rgo, mas erigem um ser do sensvel, um ser da sensao, sobre um plano de composio, anorgnica, capaz de restituir o infinito. No foram poucos os artistas que foram ao caos do universo porno-ertico para de l trazerem variedades e talvez no exista um ser de sensao to profundo quanto a expresso da sexualidade que, para Vattimo , antes, o aspecto essencial da nossa finitude. Entre a sexualidade como aspecto essencial da nossa finitude e sua expresso artstica como tentativa de restituio do infinito, instala- 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
470 se um paradoxo no equacionavel com a simples oposio entre erotismo e pornografismo repito que so muito poucos os tericos da arte que reconhecem esse paradoxo na representao da sexualidade. Sob esse ponto de vista, h que se fazer um exerccio paciente e corajoso de percepo do fenmeno artstico (autores e produes) na indstria pornogrfica, excluda e amordaada pela indstria acadmica da arte. Mas j que os tericos e acadmicos da arte parecem no dar muita importncia ao assunto (dada a escassez de bibliografia especfica), h que se lanar mo, sem pudores, de obras escritas por profissionais de outras reas, particularmente historiadores, filsofos, antroplogos e psicanalistas. No campo profundamente endgentico da pesquisa em arte no Brasil, isso no deixa de ser um procedimento temerrio. O que deve e o que no deve ser essa histria da arte porno-ertica Antes de qualquer coisa, uma histria da arte que tenha como esqueleto o corpo e a sexualidade no pode ser etnocntrica e monosexual como a maioria das histrias cannicas da arte como, alis, nenhuma histria que se pretenda geral pode ser. As histrias da arte, salvo honrosas excees, ainda esto impregnadas de um modelo que claramente excludente e sua recepo acrtica tem causado a sobrevivncia de vises hegemnicas. Tratar do corpo e da sexualidade exige um alargamento do olhar e, portanto, revises de paradigmas hegemnicos. No ser, necessariamente, uma histria cronologicamente encadeada, um corte exclusivamente diacrnico. Pouco importa que o percurso escolhido seja indutivo (das particularidades para o geral) ou dedutivo (do geral para as singularidades) ou a alternao de ambos; o que importa a observao de dois tipos de relaes: 1) as sincrnicas, observveis nas relaes entre imagens num dado momento e/ou dado contexto; e 2) as diacrnicas, perceptveis nas relaes entre imagens distantes no tempo e no contexto. Uma histria que integre e contextualize diversos tipos de manifestaes estticas sem descurar das diferenas temporais e contextuais mais do que desejvel... necessria! A histria da arte porno-ertica no pode ter por base nica e exclusivamente a imagem musealizada, cannica, j carimbada com o valor de obra de arte. Visto 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
471 que a complexidade da representao porno-ertica tem sido negligenciada pela maioria dos historiadores da arte, h que se perscrutar a cultura visual e a histria da imagem como um todo no s para encontrar nelas exemplos que se enquadrem no cannico, mas, ao contrrio, buscar na histria da imagem valores que confrontam e desconstroem o prprio cnone. Nessa perspectiva, no poder utilizar somente os enquadramentos que a histria da arte utiliza, pelo menos nas histrias at a Pop Arte no sentido que Hans Belting exps em O fim da histria da arte (1983/2006). Quase tudo o que explicitamente sexual est excludo das histrias da arte e isso mais um motivo para palmilhar a cultura visual. O campo mais amplo da cultura visual tem que ser considerado, pois a partir deste arcabouo que a histria da arte pode reelaborar seus modelos e paradigmas, estabelecendo interaes e intercursos com o vasto mundo considerado no artstico. Em sntese, no ser uma histria simplesmente subordinada histria oficial da arte. Mesmo considerando que a imagem porno-ertica mantm algumas conexes com certos enquadramentos da histria da arte classicismo, simbolismo, expressionismo etc. sua histria no ser abordada meramente como um gnero, movimento ou estilo da histria da arte, dado que esses enquadramentos tornaram- se dbeis no s para a arte e para a visualidade contemporneas, mas porque no do conta das complexidades, mediaes e diferenas que permeiam a representao da sensualidade. Num certo sentido ser um atravessamento, tal como as histrias da fotografia, da pintura, da beleza, da feira etc. transcendem as fronteiras estabelecidas pela histria da arte. Nesse sentido, a perspectiva de Venturi, Schapiro, Pedrosa e Greenberg, por exemplo, que no dissociavam a histria da crtica, uma perspectiva pertinente. A histria da arte porno-ertica no ser s uma histria do gosto esttico sobre o corpo e a sensualidade, mas tambm uma histria dos arqutipos e esteretipos sexuais socialmente formatados. Nesse sentido, filosofia, antropologia, sociologia e psicologia so disciplinas que oferecem importantes subsdios. Alm disso, os estudos de gnero e a teoria queer para ficarmos em dois exemplos tm que ser resgatados de seus guetos e infectar as teorias consagradas sobre o tema. Os juzos de valor e de gosto temor maior da crtica de arte na contemporaneidade tm que ser percebidos, expostos, analisados e reavaliados. 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
472 Beleza, feira, bizarro, sujo, limpo, perverso, sujeito, objeto, prazer e sofrimento so alguns dos conceitos comumente utilizados em relao ao porno- erotismo e enquanto tais devem-se verificar seus modos de construo, desconstruo e reconstruo. Uma histria da arte porno-ertica poder subsidiar uma filosofia do corpo no caminho da sensualidade, da carnalidade, do prazer, do desejo e da seduo filosofia esta a ser criada, visto que a filosofia, com raras excees, desconsiderou o corpo e seus apetites. Presumivelmente, o porno-erotismo no ascende condio de representao artstica por ser considerado um tema nada nobre, bvio, no metafrico... Ento, a histria da arte porno-ertica ser a revelao da esttica da obviedade, da carnalidade e no da espiritualidade, da excluso e no da regra, do fsico e no do metafsico, da imanncia e no da transcendncia, da finitude e no da infinitude, do prosaico e no do romanesco... Ser, enfim, uma histria da poeticidade do banal. O roteiro Encarnando as afirmaes, dvidas e sugestes que expressei at aqui, segiro um roteiro, ainda parcial, para o estabelecimento daquela cartografia aludida no ttulo deste ensaio. 01. A histria da arte diante da esfinge contempornea: decifra-me ou devoro-te! 02. O imprio dos sentidos: o corpo, a excitao da imagem e a condio de voyeur. 03. A imagem sensual como discurso sobre a sexualidade. 04. O corpo e a sexualidade na convergncia da arte com a cultura visual prevaricaes. 05. O corpo e a sensualidade entre o sagrado e o profano: pontes e abismos: 05.1. O corpreo como elo entre humanidade e deidade; 05.2. O corpo e a sensualidade humanas disfarados no mito e no santo. 06. A imanncia (fsica) da pornografia e a transcendncia (metafsica) do erotismo. 07. Bom gosto e mal gosto nas estticas da sensualidade. 08. Realismos e idealismos nas estticas da sensualidade: sublimao, fetiche e perverso. 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
473 09. Amantes, cortess e gueixas como modelos de beleza e sensualidade: a persistncia dos modelos de vida fcil. 10. O estilhaamento do corpo na modernidade: peitos, vaginas, bundas e pnis como cones sexuais e a objetivao/desidentificao do prazer. 11. A diluio de fronteiras entre erotismo e pornografismo na contemporaneidade: O corpo assume a cena; O corpo como suporte de si mesmo; O corpo como suporte da pessoa. 12. Representaes visuais da monosexualidade, da bisexualidade e da transexualidade: Arqutipos e esteretipos do feminino; Arqutipos e esteretipos do masculino; Arqutipos e esteretipos do hbrido; Masculinidade e esttica gay; Feminilidade e esttica lesbian. No fosse a escassez de espao neste ensaio e o parco tempo destinado comunicao do mesmo, acrescentaria ainda uma lista de artistas que expressam a questo em suas obras e uma bibliografia pertinente, ambas extensas, mas no exaustivas. Pelo visto, a histria da arte porno-ertica ainda est por ser escrita e a tarefa delicada e gigantesca. Para que essa histria seja contada, necessrio desnudarmo-nos dos preconceitos e dos esquemas cristalizados de pensamento; necessrio no ter medo da excitao e do prazer que ela, certamente, provocar. Por enquanto, limito-me a propor um roteiro para o delineamento de um mapa que, por sua vez, subsidiar essa histria. Desenhar um mapa uma forma de percorrer com os dedos a imensido dos espaos que o olhar no abarca. Estabelecer uma cartografia, portanto, sugerir uma expanso do olhar a partir da economia sgnica que o mapa proporciona. Aqui, proponho um roteiro para a cartografia da arte porno-ertica. Quem se habilita? 19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
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Jos Afonso Medeiros Souza Professor associado do Instituto de Cincias da Arte da Universidade Federal do Par. Graduou-se em Educao Artstica (Artes Plsticas) pela UFPA e realizou seus estudos de ps-graduao na Universidade de Shizuoka, Japo (especializao em Histria da Arte e mestrado em Arte-Educao), e na PUC/SP (doutorado em Comunicao e Semitica) este ltimo sob orientao de Philadelpho Menezes e Lucia Santaella. Foi presidente da Associao de Arte-Educadores do Estado do Par (1989-1991) e vice-presidente da Federao de Arte-Educadores do Brasil (1990-1992). Membro da ANPAP desde 1999, atualmente exerce a funo de diretor-geral do Instituto de Cincias da Arte da UFPA.