Pensar o Sentir de Hoje - Mutações Da Sensibilidade Estética
Pensar o Sentir de Hoje - Mutações Da Sensibilidade Estética
Pensar o Sentir de Hoje - Mutações Da Sensibilidade Estética
M U T A Ç Õ E S DA SENSIBILIDADE E S T É T I C A
* Uma primeira versão deste estudo foi apresentada no Ciclo de conferências "Filosofia e
contemporaneidade: tarefas da Filosofia no limiar do 3" milénio" (Funchal, 7 e 8 de
Abril de 2000), promovido pelo Cine Fórum do Funchal em colaboração com o
Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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Exemplificativas desta orientação são grande parte das actividades experimentais paten-
tes na Exposição "Cyber 99" (Lisboa, Centro Cultural de Belém) e no "Festival
Atlântico 99. Sensibilidade Apocalíptica" (Lisboa, Galeria Zé dos Bois).
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enquanto tal (tarefa mais própria da teoria crítica da arte), mas considera¬
-a na sua validade estética, como objecto que possui a capacidade de
interpelar o sentimento, de despertar a adesão, ou seja, de suscitar o
efeito estético. E n ã o obstante a dificuldade que existe em pensar o nosso
tempo enquanto presente multiforme que parece escapar a toda a con-
ceptualização, a Estética deverá sentir-se solicitada por tais fenómenos,
sob pena de separar com excessivo rigorismo e precipitação a cultura e a
ignorância, a cultura erudita e as subculturas marginais, incorrendo no
preconceito de u m conservadorismo caduco indiferente a uma parte
importante da vida que, fora dela, continua a pulsar.
Poderá a Estética, enquanto doutrina compreensiva do sentir, assimi-
lar estas m u t a ç õ e s da sensibilidade e integrá-las em categorias englo-
bantes, numa perspectiva que, por um lado, esclarece o curso evolutivo
das artes, mas que, por outro lado, e sobretudo, aprofunda o conheci-
mento da natureza humana, o ser do humano, e pode mesmo ajudar a
entender o sentido que os homens imprimem à sua existência?
Serão estas formas de sentir, de gostar, indicadores de uma alteração
enriquecedora das experiências humanas, j á que desvendam modalidades
ainda latentes da sensibilidade, ou pura e simplesmente sintomas de crise
e eventos passageiros que a filosofia poderá ignorar?
Serão as experiências da temporalidade efémera, da realidade vir-
tual, do fascínio pelo monstruoso, pela deformidade, pela crueldade,
ainda experiências estéticas, ainda compreensíveis à luz das categorias
clássicas, ou será que patenteiam uma crise de identidade humana e con-
firmam o seu carácter inteiramente problemático?
E objectivo do presente estudo questionar a Estética filosófica sobre
estes problemas, recorrendo, no leque de categorias que t ê m procurado
lançar luz sobre a actualidade , a algumas das mais consistentes orienta-
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Um panorama dos mais recentes ensaios de categorização estética é oferecido na
colectânea Aisthesis. Wahrnehmung heute oder Perspektiven einer anderen Àsthetik,
Leipzig, Reclam, 1990. Destacaria, deste conjunto, as propostas dc Hannas Bòhringer,
que substitui a separação tradicional entre o claro e o escuro pelo "claro-obscuro" e de
Shuhei Hosokawa, que sintetiza a associação dc velocidade c efémero na noção de
"efeito walkman". Nos restantes textos aqui coligidos surgem diversas versões do tema
da separação c da dissociação como sendo o traço mais decisivo do nosso tempo - o
"sujeito fractal" dc Jean Baudrillard, o "aleatórico" de Daniel Citarles, o "instante" de
Jean-François Lyotard, a "fragmentação e desaparição" de Paul Virilio - além da
"ecologia da destruição" proposta por Walter Sciller.
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Para ver mais claro nesta difícil tarefa, comecemos por recordar os
contornos do gosto clássico, tal como foram estabelecidos por Kant na
Crítica da Faculdade de Julgar, a obra que inaugura a modernidade
estética ao sublinhar a especificidade do sentir e a sua autonomia relati-
vamente à esfera do conhecimento e à moralidade. Prazer (ou desprazer)
são experiências essenciais de cada sujeito que se podem vivenciar inde-
pendentemente da função cognoscitiva ou do valor moral dos objectos
com os quais ele se relaciona. E só no caso de esta independência se veri-
ficar se pode falar de prazer estético, ou seja, do puro prazer vivido em si
mesmo e por si mesmo. Porém, ao defender a autonomia do gosto, Kant
acentua simultaneamente diversas exigências associadas à experiência
estética autêntica: a reflexão, a liberdade e a comunicabilidade.
O sentir estético nasce de uma ligação entre a faculdade de sentir e a
faculdade de reflectir, exprimindo um dinamismo mental das faculdades
do â n i m o pelo qual se distingue de qualquer simples impressão de afecto
obtida como resposta automática à acção de estímulos exteriores. Sentir é
t a m b é m pensar, sendo o prazer esse mesmo movimento interior pelo qual
o sujeito procura compreender o objecto, conferir-lhe sentido, dotá-lo de
inteligibilidade. H á por isso uma fruição serena na atitude contemplativa,
um deleite na atenção demorada que é dedicada ao objecto e que se vai
intensificando, num crescendo, como sensação de pacificação e harmonia
interior - "nós demoramo-nos na contemplação do belo, porque esta
c o n t e m p l a ç ã o se fortalece e reproduz a si própria" .
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"Wir weilen bei der Betrachtung des Schönen, weil diese Betrachtung sich selbst stärkt
und reproduziert [...]." KANT, Kritik der Urteilskraft § 12. Ak. V, 38.
6
"[...] Bewunderung aber ist eine immer wiederkommende Verwunderung, ungeachtet
der Verschwindung dieses Zweifels-" Kritik der Urteilskraft § 62, Ak. V, 277.
84 Adriana Veríssimo Serrão
7
Cf. Kritik der Urteilskraft §§ l i e 14.
8
Kritikder Urteiiskrafl, Einleiíung VII, Ak. V, 191.
9 Cf. Kritikder Urteilskraft, Ak. V, 332.
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1 0
"Der Geschmack ist jederzeit noch barbarisch, wo er die Beimischung der Reize und
Rührungen zum Wohlgefallen bedarf, ja wohl gar diese zum Maßtabe seines Beifalls
macht." Kritik der Urteilskraft § 13, Ak. V. 38.
11 Kritik der Urteilskrafi, Ak. V, 225-226.
1 2
"[...] daß er [der Geschmack] ein Beurteilungsvermögen eines Gegenstandes in Bezie-
hung auf die freie Gesetzmäßigkeit der Einbildungskraft sei. Wenn nun im Geschmacks-
urteile die Einbildungskraft in ihrer Freiheit betrachtet werden muß, so wird sie erstlich
nicht reproduktiv, [...] sondern als produktiv und selbsttätig (als Urheberin
willkürlicher Formen möglicher Anschauungen) angenommen [...]." Kritik der
Urteilskraft, Ak. V, 240.
86 Adriana Veríssimo Serrão
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"Also ist die Erhabenheit in keinem Dinge der Natur, sondern nur in unserm Gemüte
enthalten, sofern wir der Natur in uns, und dadurch auch der Natur [...] außer uns,
überlegen zu sein und bewußt werden können." Kritik der Urteilskraft § 28, Ak. V.
264.
1 6
Kritik der Urteilskraft § 26, V, 253.
17
Kritik der Urteilskraft § 48, V, 312.
88 Adriana Veríssimo Serrão
1 8
"Les tro is moments de l'avant-gardisme sont ici clairement articules: e'est parce que
i'artiste de génie est doué d'une personalité qui le place "en avatit " de son temps - ses
admirateurs, qui forment pourtant deja une élite, ont quelque chose de "compact" -
qu'il est voué a la solitude réservée á l'élite de cette élite." Luc FERRY, Homo
Aeslhelicas. L'invention du goñt á l'áge démocraíkpie, Paris, Grasset, 1990. p. 279.
1 9
" I I nous faut done distinguer, au sein des premieres avant-gardes, entre deux moments
divergents, pour ne pas dire contradictoires: d'un cóté la volonté - élitiste, nistoriciste,
et "ultra-individualiste" - de rompre avec la tradition pour creer du nouveau radical;
mais de I'autre, le projet non moins remarquablc de mener l'esthétique classique á son
terme, de la conduire á ses limites au nom d'un réalisme nouveau [...]." Homo
Aesthelicns, p. 323.
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2 3
O pós-modemismo pode assumir três significações principais: de culminEr do moder-
nismo, de retorno à tradição contra o modernismo e de superação do modernismo; cf.
Homo Aestheticus, pp. 327-336.
2 4
"[...] la rebellion est devenue procédé, la critique rhétorique, la transgression cércmo-
nie." Homo Aestheticus, p. 273.
2 5
"Les ideologies du déclin traduisent mal une observation juste: nous n'habitons plus un
monde a priori commun. Cela ne signifie pas, comme on lc croit d'ordinaire, qu'il n'y
ait plus de lien social, ou que l'atomisation et 1'ère des masses soient l'avenir inelucta-
ble des sociétés modernes. Simplemeni, la cohésion doit désormais résider dans
1'interindividuatité (pour ne pas dire I'intersubjectivite), non plus dans la transccn-
dance d'une réalité cosmique qui échoirait en partage à 1'humanité." Homo Aestheti-
cus, p. 343.
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2 6
"[...] I'authenticite tend a n'etre pas valorisee que lorsqu'elle s'accompagne soit du
courage de la vertu, soit d'une puissance de seduction, done, lorsqu'elle est
I'authenticite d'une richesse interieure dont la manifestation suscite l'assentiment ou
l'admiration d'autrui." Homo Aesiheticus, p. 362.
92 Adriana Veríssimo Serrão
2 7
"Questa è infatti la grande trasformazione cui siamo testimoni e protagonisti: sentirsi
non piú Dio, né anímale, ma una cosa senzieníe." Mario PERNIOLA, // sex appeal
dell 'inorgánico, Torino, Einaudi, 1994, p. 8.
2 8
// sex appeal dell 'inorgánico, p. 3.
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2 9
Sobre a dissociação entre corpo e organicidade, v.: // sex appeal deU'inorganico,
pp. 36-46.
3 0
// sex appeal deU'inorganico, pp. 82 ss.
94 Adriana Veríssimo Serrão
3 1
"La sessualita neutra, non ií dolore, ci fornisce la realta come effetto specialc; fmtanto
che resto nel dolore, é impossibile sottrarsi all'alternativa tra i l dubbio su ció che
sentono realmente gli altri e la certezza privata, incomunicabile, solipsistica di chi dice
tra sé e sé: "so io quello che intendo!" Nella sessualita inorgánica questi problemi
cadono perche un impersonale "si senté" prende il posto delle forme del sentiré
soggettivo." // sex appeal dell'inorgánico, p. 167.
3 2
II sex appeal dell'inorganico, pp. 135 e 182 ss.
3 3
'Terció non é i'arte, ma solo la sessualita puó farci vedere e sentiré la cosa como cosa:
il maestro dell'eccitazione e dell'accendersi della sensazione é i l sex appeal
dell'inorgánico, non resteticitá!" // sex appeal dell'inorganico, p. 167.
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3 4
Cf. Mario PERNIOLA, Del Sentire, Torino, Einaudi, 1991, pp. 3-10.
3 5
"Ma cosa vuol dire farsi sentire? Come intendere questa singolare espressione che
unisce in se stessa la dimensione operativa, quella ricettiva e quella riflessiva? Innan-
zitutto vuol dire operarc su se stesso in modo da uscire dalTimpassibilità metafísica c
dal dualismo tra attività e passività. Vuol dire opporre alia concezione metafísica che
costringe 1'uomo a scegliere tra una padronanza che non conosce la goioa ed una
affetività che resta servile, un'altra possibilita nella quale il fare e i l sentire sono
strettamente congiunti." Del Sentire, pp. 94-95.
3 6
" I I farsi sentire perciò non ha nulla di chiassoso e di provocatório: esso afferma con
semplicità. e con fermezza 1'imprescindibilità di un'esperienza che non è un mero resto,
un resíduo di piü o meno remote sensazioni, ed affetti, ma che si pone in ogni istante
nella sua pienezza, compiutezza, perfezzione." Del Sentire, p. 96.
96 Adriana Veríssimo Serrão
5. A i m a g e m como enriquecimento do m u n d o
3 7
"Das Erscheinen [...] ist eine Wirklichkeit, die alle ästhetischen Objekte miteinander
teilen, wie verschieden sie ansonsten auch sein mögen." Martin SEEL, Ästhetik des
Erscheinens, MünchenAVien, Carl Hanser Verlag, 2000, p. 9.
3 8
"Alle ästhetischen Objekte sind Objekte der Anschauung, aber nicht alle Objekte der
Anschauung sind ästhetische Objekte." Ästhetik des Erscheinens, p. 46.
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3 9
"Eine Voraussetzung der ästhetischen Wahrnehmung ist die Fähigkeit, etwas begrifflich
Bestimmtes wahrzunehmen. Denn nur wer etwas Bestimmtes vernehmen kann, kann
von dieser Bestimmtheit, oder genauer: kann von der Fixierung auf dieses Bestimmen
auch absehen. Die Wahrnehmung von etwas als etwas ist eine Bedingung dafür, etwas
in der unübersehbaren Fülle seiner Aspekte, etwas in seiner unreduzierte Gegenwärtigkeit
wahrnehmen zu können." Ästhetik des Erscheinens, pp. 51-52.
4 0
Cf. Ästhetik des Erscheinens, p. 62.
98 Adriana Veríssimo Serrão
4 1
Sobre a diferença entre representação e apresentação, v.: Ästhetik des Erscheinens,
pp. 271-276.
4 2
Ästhetik des Erscheinens, pp. 258-259.
4 3
Ästhetik des Erscheinens, pp. 284-286.
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4 4
"Daß 'die Welt zum Bild' wird, kann höchstens bedeuten, daß mehr und mehr Dinge
der Welt den Doppelcharakter des Bildes annehmen, Ding in der Welt und Ding über
die Well zu sein, daß also immer mehr Dinge auch Zeichencharakter gewinnen. Nur
weil das Bild in der Welt hineinreicht, kann es weit über sie hinausreichen." Ästhetik
des Erscheinens, pp. 292-293.
4 5
Cf. Ästhetik des Erscheinens, pp. 106, 116.
100 Adriana Veríssimo Serrão
como um elemento, entre outros, do aparecer, mas nunca como sua com-
ponente única.
Interessa-nos ainda colher uma resposta deste autor que nos oriente
no d o m í n i o das tecnologias do mundo do virtual. A este respeito a res-
posta é inequívoca. As chamadas "imagens virtuais" não possuem, em
rigor, o estatuto de imagem. O ciber-espaço e os "espaços de imagem"
(Bildraumé) n ã o s ã o verdadeiros espaços nem verdadeiras imagens, uma
vez que carecem da diferença entre o plano onde se processa o curso
i m a g é t i c o e o real concreto onde se situa o corpo do espectador.
A c o m p a r a ç ã o c o m o cinema permite precisar melhor por que moti-
vo o f e n ó m e n o virtual n ã o é verdadeiramente imagem nem corresponde
às suas propriedades. Por u m lado, o visionamento de um filme implica,
por parte do espectador, a consciência de uma diversidade de espaços
que em nenhum momento se confundem: o espaço exterior da rua, o
e s p a ç o interior da sala de cinema, a representação que se desenrola na
superfície do écran e a realidade referida pelas cenas do filme. Por outro
lado, graças às propriedades inerentes à expressão cinematográfica, toda
a realidade em movimento no espaço fílmico possui autonomia e vai
mudando independentemente do espectador.
N o caso do ciber-espaço, ou das manipulações na Internet, trata-se
de " u m estado espacial produzido através de uma m á q u i n a " e que o
observador pode alterar, se souber coordenar os seus movimentos corpo-
rais com os comandos da máquina (computador e processador) . Dá-se 46
4 6
"Den Begriff des 'Cyberspace' verwende ich hier in dem engen Sinn eines machinell
erzeugten Raumzustands, der seine Ansichten in Koordination mit den leiblichen
Bewegungen der (mit Dantenheim oder Datenanzug) ausgerüsteten Betrachter
verändert." Ästhetik des Erscheinens, p. 287 nota.
4 7
" I m Kino sehen wir einen virtuellen Bewegungsraum, der uns an Bewegungen
teilnehmen läßt, die sich unabhängig von der Position unseres Leibes vollziehen. Im
Cyberspace sehen wir in einem virtuellen Raum, der sich unabhängig von der Position
(nicht aber der Bewegungen) unseres Leibes verändert." Ästhetik des Erscheinens,
p. 292.
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4 8
"Im Bild ist nur, wer sich nicht i m Bild glaubt." Ästhetik des Erscheinens, p. 293.
4 9
Ästhetik des Erscheinens, p. 286.
5 0
Ästhetik des Erscheinens, pp. 135-149.
5 1
Ästhetik des Erscheinens, p. 46.
5 2
"Die ästhetische Lust ist eine Lust des endlichen Daseins am endlichen Dasein."
Ästhetik des Erscheinens, p. 220.
102 Adriana Veríssimo Serrão
RÉSUMÉ