Arte e Sociedade: Pinceladas Num Tema Insólito

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ISSN 1678-7730 N 78 FPOLIS, MARO DE 2006.

ARTE & SOCIEDADE:


PINCELADAS NUM TEMA INSLITO
Dora Maria Dutra Bay
Editor
Profa. Dra. Luzinete Simes Minella

Conselho Editorial
Prof. Dr. Rafael Raffaelli
Prof. Dr. Hctor Ricardo Leis
Profa. Dra. Jlia Silvia Guivant
Prof. Dr. Luiz Fernando Scheibe
Profa. Dra. Miriam Grossi
Prof. Dr. Selvino Jos Assmann

Editores Assistentes
Cludia Hausman Silveira
Jos Elizer Mikosz
Silmara Cimbalista

Secretria Executiva
Liana Bergmann

ARTE & SOCIEDADE: PINCELADAS NUM TEMA INSLITO


ART & SOCIETY: BRUSH STROKES ON A POLEMICAL SUBJECT

Dora Maria Dutra Bay1


RESUMO:
Este artigo trata da inter-relao existente entre a arte e a sociedade, abordando-a como
indissocivel, originria da relao do homem com seu ambiente natural e entendendo a
arte como um agente fundador e unificador nas sociedades. O texto ressaltar o aspecto
interdisciplinar do tema, enfocando as proposies apresentadas por Karl Marx, Sigmund
Freud, Michel Foucault e Umberto Galimberti.
Palavras-chave: arte, artista, sociedade.

ABSTRACT:
This article deals with the relationship between art and society, approaching it as
inseparable, originated from the relation between mankind and its natural environment, and
understanding art as a founding and unifying agent in societies. The text emphasizes the
interdisciplinary aspect, focusing the proposals presented by Karl Marx, Sigmund Freud,
Michel Foucault and Umberto Galimberti.
Keywords: art, artist, society.

Doutoranda do Programa Interdisciplinar em Cincias Humanas, CFH/UFSC

A arte um motor da sociedade e no, simplesmente seu plido reflexo.


Catherine Millet

Ao ressaltar o relevante papel da criao artstica como motor do social, e no de um mero


reflexo, a crtica da revista internacional Art Press, prontamente nos aponta para um
entendimento mais alargado e contemporneo da inter-relao entre arte e sociedade.
Igualmente o aparente distanciamento existente entre o binmio, que na verdade, encobre
um profundo, indissocivel e intrincado entrelaamento, tambm cai por terra rompendo
limites e supostas contradies. No entanto, a dificuldade de caracterizao do campo de
estudos, curiosamente j anunciado no ttulo de inmeros trabalhos, como problemas de
sociologia da arte, parece ainda persistir como um tema inslito, um terreno escorregadio.
De forma que adentrar neste universo uma tarefa desmesurada, o que nos fora a
delimitar o estudo, da as pinceladas. Assim que o presente ensaio no pretende esgotar um
tema to abrangente e complexo, mas lanar sobre ele um olhar interdisciplinar ampliado.

Pinceladas iniciais
Desde h longo tempo a relao entre a arte e a sociedade tem instigado pensadores de
diversas reas do conhecimento. As pesquisas apontam o enciclopedista Denis Diderot
como marco inicial, o primeiro a destacar o carter social da arte, identificando nela um
potencial instrumento para reformas sociais, antecipando Karl Marx, e inaugurando o dilogo
entre arte e sociedade. Mais adiante, empenhados em compreender as estruturas do
fenmeno artstico, Hippolyte Taine, Charles Lalo, Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, Arnold
Hauser, Pierre Francastel, Roger Bastide, Pitirim Sorokin, Michel de Certeau, e pensadores
de linha mais marxistas como Georgy Lukcs, Ernest Fischer, Jean Duvignaud, Walter
Benjamin, Theodor Adorno e Nestor Gara Canclini, dentre outros, criaram teorias
extrapolando o enfoque puramente social ou abrangendo os aspectos estticos,
psicolgicos, psicanalticos, histricos e filosficos da arte.

Os estudos desta inter-relao afloraram principalmente nos campos da Sociologia da Arte,


da Esttica Sociolgica, da Filosofia da Arte e da Histria Social da Arte. O trao comum a
todas as abordagens a constatao, j vislumbrada por Plato, de que arte e sociedade
so conceitos indissociveis, uma vez que ambos se originam da relao do homem com
seu ambiente natural. Igualmente consenso entre autores que a arte representa um fator
fundador, unificador, e agente nas sociedades, desde as mais simples s mais complexas;
fato que pode ser constatado ao longo da histria, quando fica evidente que, no s no

houve sociedade sem arte, mas tambm que em cada contexto especfico a arte sempre
teve um significado social preponderante.

O porqu desta presena marcante tem sido objeto de incessantes investigaes sobre a
natureza da criao artstica, os fatores internos e externos envolvidos e a funo do artista
na sociedade. As inmeras respostas variam desde a funo da arte como substituta da
vida, mantenedora de equilbrio com o meio, caminho para o alcance da totalidade, anseio
de unio da individualidade com o social; passam pela busca da verdade permanente
expressa na arte, de algo que tenha significao transcendente, para alm da simples
descrio do real; e alcanam o entendimento de que o homem necessita da arte, incluindo
a a inerente parcela mito-mgica, para conhecer e transformar o mundo, ou seja, a arte
como imprescindvel meio de conhecimento e transformao.

M. C. Escher. Encontro. 1944. Litografia, 34x40,5 cm.

No entanto ainda persiste uma certa dificuldade no tocante a integrao da arte nas cincias
sociais - o que pode ser potencializado como um ganho, ao possibilitar abordagens
transdisciplinares - porque as diferentes proposies existentes tendem a privilegiar um
determinado enfoque, como o histrico, o psicolgico, o filosfico ou o esttico, descuidando
da interao e articulao entre eles.

A sociologia da arte como disciplina fruto do Positivismo e nasceu em intensa oposio ao


Romantismo, embora permaneam nela alguns resqucios romnticos, como por exemplo, a
noo de que a arte reflete e revela, no mais o esprito do tempo, mas sim o contexto
histrico. Ao examinar a relao da obra com o meio procurando no fenmeno artstico uma
origem ancorada na funo social, a sociologia v a arte essencialmente como uma maneira
de comunicao entre os indivduos e seus grupos. Sua proposio fundadora de que a
arte e a realidade so em si uma mesma coisa, no havendo distanciamento entre ambas.
Enfocando predominantemente as relaes inter-humanas derivadas da arte como fator de
convivncia, a sociologia negligencia a questo da esttica, fator relevante, uma vez que
intrnseco arte.

Ao rever o tema, fica evidente que as mais diversificadas teorias sociolgicas sobre a
origem da obra de arte decorreram do ponto de vista particular de cada autor. Como
exemplo, em Marx a obra de arte advm do trabalho; em mile Durkheim, da religio e
elementos mgicos; para Johan Huizinga, est ligada ao instinto do jogo; e segundo
Hippolyte Taine origina-se da imbricao entre fatores raciais, pessoais e ambientais.

Este ensaio no pretende exaurir o assunto, de forma que delimito a abordagem,


restringindo-a a quatro autores, num recorte de carter intencionalmente voltado para o
enfoque interdisciplinar. Tendo em vista tal opo, abordo as proposies apresentadas por
pensadores no especialistas em Sociologia da Arte, mas que tratam da arte e sua insero
na sociedade, desenvolvendo idias singulares, tanto prximas quanto conflitantes, com a
as quais encontro certas afinidades. So eles: Karl Marx (1818-1883), Sigmund Freud
(1856-1939), Michel Foucault (1926-1984) e Umberto Galimberti (1942).

Arte e sociedade, um binmio indissocivel!

As idias de Karl Marx sobre arte e sociedade, tm como cenrio o Materialismo Dialtico.
Retiradas de comentrios expressos em textos diversos, alguns reunidos no livro Sobre
Literatura e Arte, uma vez que o autor no se dedicou notadamente ao assunto, so hoje
vistas com certas restries, ou mesmo como anacrnicas. Afirmava ele que a arte e a
literatura somente poderiam ser estudadas diretamente no contexto da histria, do trabalho
e da indstria, pois o modo de produo seria decisivo para a vida social e intelectual.
Assim, a estrutura econmica da sociedade e a organizao da produo e das classes

sociais dela participantes, seriam fatores determinantes para a cultura, que por sua vez
pertenceria a superestrutura, abarcando a arte.

Candido Portinari. Caf, 1934, leo sobre tela, 130 x 195 cm

Desta forma, entendeu a arte como reflexo da realidade social e tambm como uma forma
de conhecimento capaz de interagir nela, com o poder de modific-la. Atribuindo a arte um
carter libertador, via a possibilidade de ela exercer tal funo atravs da representao
formal e realista dos contedos da luta de classes. No entanto, Marx no ousou aplicar
literalmente o mtodo dialtico no estudo da arte, pois embora a tomasse como um reflexo
da realidade, relegada condio secundria da superestrutura, admitia sua capacidade de
expressar a beleza, entendendo que o artista necessitava conceber a obra antes de realizala. Marx observou que em certos perodos havia uma defasagem entre o desenvolvimento
artstico e o da produo material, entrando em jogo outros fatores como natureza e raa.
Citou o exemplo dos gregos, que considerava crianas normais, mas com alto grau de
desenvolvimento artstico:
...a dificuldade no est na idia de que a arte e a epopia gregas estejam
ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade est em
compreender por que ainda hoje nos proporcionam um prazer artstico e
valem, em certos aspectos, como norma e modelo insuperveis.(Marx, 79,
pg.35)

Para ele a arte, mesmo condicionada histrica e socialmente, poderia mostrar um momento
de humanidade. Este poder da arte de se sobrepor ao momento histrico que faz com que

ela continue permanentemente a extasiar, a valer como modelo e norma insuperveis, nas
suas prprias palavras. Uma concepo um tanto quanto idealista no contexto de seu
pensamento que via no realismo da representao o compromisso da arte para com a
sociedade e as idias do socialismo.

Numa viso conceitual extremamente diferenciada, fundada na psicanlise, Sigmund Freud


(1856-1939) escreveu inmeros artigos especficos sobre a criao artstica e seu lugar na
sociedade, tais como Uma Recordao da Infncia de Leonardo da Vinci, O Moises de
Michelangelo, Escritores Criativos e Devaneio, O Delrio e o Sonho em Gradiva, Poesia e
Verdade, e Dostoievski e o Parricdio. A partir deles possvel identificar duas vertentes
principais em sua abordagem a propsito do tema. Uma que se centraliza na figura do
artista, mostrando que a obra apresenta relao direta com sua histria pessoal,
principalmente a da infncia, e outra que entende a arte conduzida por um processo de
simbolizao, exatamente o mesmo que age no inconsciente individual e determina a
cultura.

Seus estudos psicanalticos sobre alguns artistas o levaram a asseverar que o artista no
seria um neurtico, mas que, ao contrrio, ao criar realizaria tambm um processo de
adequao realidade circundante, ao conscientemente transformar seus impulsos
inconscientes. Observa-se que nesta afirmao j se delineia o papel social da arte como
mediadora, como fator de adaptao do indivduo sociedade.

Para Freud a arte teria o poder de liberar o artista de suas fantasias, permitindo-lhe
exorcizar os fantasmas interiores, canalizando-os para a obra, num processo catrtico e
teraputico. Desta maneira entendeu que o ponto inicial de criao era a prpria vida do
artista, a qual determinaria a temtica, o estilo e toda forma plstica, de tal maneira que a
obra poderia ser vista como um substituto das fantasias geradas pelo seu inconsciente.

Um conceito chave no entendimento da idia freudiana de arte o de sublimao, o


mecanismo de derivao das pulses sexuais em direo a objetivos de outra ordem; tal
processo, ao qual o autor atribui a possibilidade de realizao da cultura, viabilizaria tambm
o processo de criao da obra de arte. O artista seria para ele um tipo de pessoa propensa
sublimao, correlacionada estrutura de personalidade fundamentalmente narcisista, a
qual descobre na arte a forma de realizar suas fantasias de poder e de criao. Igualmente

o narcisismo teria a funo de tentar ultrapassar a condio mortal do artista, atendendo


necessidade humana de busca de imortalidade. Percebe-se assim a arte constituindo-se
como um elemento intermedirio entre a realidade e a imaginao, entre o interno e o
externo, o individual e o social:
A arte uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graas iluso
artstica, os smbolos e os substitutos so capazes de provocar emoes
reais. Assim, a arte constitui um meio-caminho entre a realidade que frustra
os desejos e o mundo dos desejos realizados da imaginao uma regio
em que, por assim dizer, os esforos de onipotncia do homem primitivo
ainda se acham em pleno vigor. (Freud, apud Raffaelli, 1996, pg. 11)

Salvador Dal. Metamorfose de Narciso. 1937, leo s/tela, 50,8x78,3 cm.

Segundo Freud o processo pelo qual o artista passa ao criar e realizar a obra desencadeia
uma espcie de eco no espectador que provocaria um caminho inverso, indo da obra at o
contedo inconsciente que motivou o artista. Assim haveria uma identificao entre os
desejos reprimidos do artista e os desejos equivalentes do espectador, de sorte que tal
identificao seria o fator desencadeante do prazer esttico. Resultado da possibilidade de
experimentar desejos e realizar fantasias reprimidas na realidade social, o prazer esttico
estaria no mesmo nvel do prazer sexual, realizando um deslocamento do impulso sexual
em direo apreciao da beleza; em suma, encontrar-se-ia fatalmente atrelado libido.

Caracterizada desta forma, a arte estaria destinada a carregar para sempre a cruz da
sublimao. (Raffaelli, op.cit., pg.11)

Marc Chagall. O Violinista. 1923. leo s/tela, 145x108 cm.

O segundo ponto da explicao de Freud para a arte, de que a obra artstica traz em sua
gnese um valor simblico, apresenta-se atualmente mais significativo, sob o ponto de vista
da investigao sobre a origem de arte, do que sua teoria que enfatiza mecanismos
inconscientes do criador e do receptor. Os simbolismos dos sonhos tm estreita
correspondncia com simbolismos expressos nas criaes artsticas, que nada mais so do
que suas transformaes. No entanto, como as representaes nos sonhos constituem-se
basicamente em imagens visuais, Freud via os sonhos como um complexo sistema de
escritura, correlacionada s escritas pictogrficas e aos hierglifos, nos quais alguns
elementos servem como marcadores que apontam para determinados significados somente
identificveis num certo contexto. Para ele isto foi um indcio de que a lgica dos sonhos no

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estaria ancorada no logos consciente, mas que, do mesmo modo que a escritura artstica,
seria regida por regras prprias, sendo impossvel tentar traduz-las em outra linguagem.

Pode-se dizer que Freud considerou a obra de arte um todo analisvel em si mesmo, no
qual a modificao em um simples elemento desencadeia a constituio de um outro e
diverso conjunto. Tal constatao propiciou o desenvolvimento de abordagens posteriores
sobre a criao e interpretao da obra de arte, como as de Gaston Bachelard (potica da
imagem), Gilbert Durand (mitocrtica), Hans Robert Jauss (esttica da recepo), Wolfgang
Iser (efeito esttico), dentre outros. Convertendo contedos psquicos como fantasias e
sonhos, ou sublimando as foras da libido, o que se extrai da teoria freudiana que a arte
em relao ao social tem funo mediadora, de promover a adaptao do indivduo e
garantir o equilbrio das sociedades.

No intuito de fundar uma histria dos distintos modos de subjetivao dos seres humanos,
uma demonstrao de seu pensamento multifacetado e da ruptura epistemolgica que
promoveu, Michael Foucault, deixou em sua obra algumas opinies importantes sobre arte.
Embora este tema no tenha sido seu principal objeto de estudos, possvel encontrar, de
forma esparsa e basicamente nas Conferncias, algumas idias e conceitos sobre arte e
sua insero na sociedade.

Foucault valorizou a relao entre a sociedade e a arte, sobretudo pela possibilidade de


ruptura e de desconstruo que ela pode desencadear atravs da experincia e da vivncia,
para o criador e para o pblico receptor. Situou a arte ao lado da loucura, num parentesco
mgico entre a insanidade e a genialidade, apontando a genialidade como a anttese no
formulada das vises institucionais da loucura e de suas relaes latentes com o crime, com
a misria material e espiritual, e com as doenas incurveis em geral. Para ele, o conjunto
oculto e desequilibrado de carncias que se manifestam sob as diversas formas de loucura,
no passariam de uma conscincia trgica vigilante.

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Pablo Picasso. Msicos com mscara, 1921. leo s/tela, 200,7x 222,9 cm.

Esta mesma conscincia trgica abafada, mas sempre de viglia, irromperia no artista,
possibilitando atravs da obra ultrapassar a razo, e ir alm das promessas da dialtica.
Foucault entendeu a arte na sociedade moderna como portadora de um discurso trgico,
uma experincia at certo ponto negativa e radical, que provocaria alteraes,
deslocamentos e transposies; da ento a contigidade com a loucura, e a aparente
ausncia de sentido. Para ele, ao re-inventar um outro dilogo a arte estaria expressando o
homem moderno em sua experincia trgica.

A arte ao cumprir o papel de viglia e contestao, apontaria os limites e a interao entre o


real e o possvel, entre a palavra e a imagem, isto , entre o homem e seu simblico, entre a
continuidade e a ruptura. Pode-se inferir que Foucault percebeu o artista como agente
desencadeador de mudanas, polemizador e crtico da ordem presente na medida em que
constri significaes novas, entre o real e o possvel. Assim enquanto intelectual e produtor
de cultura, seria ele capaz de mobilizar e desestabilizar, apontando ou desencadeando
novos caminhos para reflexo; da a probabilidade de v-lo como um intelectual especfico
foucaultiano.

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Diego Velazques. As Meninas, 1656. leo s/tela, 318x276 cm.

Em suas anlises de obras de arte, destacadamente na que realizou sobre a pintura As


Meninas, de Diego Velazques, Foucault destacou o jogo existente entre o visvel e o
invisvel.

Levantou a questo do reflexo, do espelho, da presena do espelho, que da

mesma forma que a obra, mostraria o invisvel, o que ela deixa entrever e o que oculta. Este
jogo entre o sugerido e o manifesto na criao artstica um fio condutor do pensamento de
Foucault sobre a arte, uma vez que aparece em vrios de seus estudos. Entendeu ele que o
artista se colocaria na borda entre o que plenamente visvel e a invisibilidade, ele reina no
limiar dessas duas visibilidades incompatveis. (Foucault, 2002, pg 4.)

Na obra de arte a essncia revelada seria a invisibilidade profunda do que se v, e ao


mesmo tempo, solidria com a visibilidade de quem v, do fruidor participante. A obra
procuraria auto-representar-se atravs dos elementos que a compem, tornando-se ento

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apresentao da prpria representao, bem mais que a simples semelhana explcita,


acena a uma similitude presente, mas no dita:
, talvez, por meio desta linguagem nebulosa, annima, sempre meticulosa
e repetitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco,
acender suas luzes. (Foucault, op. Cit., pg. 12.)

Desde um outro e igualmente polmico ponto de vista, o filsofo italiano contemporneo


Umberto Galimberti aborda a arte e a imbricao dela na sociedade a partir da
impossibilidade da existncia de uma sem a outra. Este co-pertencer para ele essencial,
uma vez que afastar o homem da expresso espiritual propiciada pela arte, equivaleria a
limit-lo a condio animal; da mesma forma a arte em sua materialidade no existiria sem o
homem, estaria restrita ao domnio do esprito. Deste modo vinculados e pertencentes
terra, arte e homem encontrar-se-iam prisioneiros de um destino perecvel muito embora
ambos tendam para o eterno. Assim a arte seria um enobrecimento da condio humana e
concretizaria a tenso do homem para alm da espessura opaca e escura da matria,
atravs de uma entrega debilidade e efemeridade da mesma matria que viabiliza sua
comunicao. Diz ele:
O homem no tem nenhum valor se no consegue exprimir algo que
transcenda sua vida biolgica, e a arte uma forma desse transcender.
Mas tambm a arte no tem nenhum valor se no reflete o ultrapassar do
homem, a sua superao da condio animal. (Galimberti, 2003, pg. 186)

Ao estudar os vestgios do sagrado na civilizao ocidental atual, o autor considera a arte


uma de suas ltimas pegadas. Para ele, a dimenso do sagrado, embora parea no mais
estar entre ns numa poca em que a tcnica dessacralizou tudo o que nos rodeia,
continuaria a existir fora e dentro de ns, no inconsciente ou na loucura. Esta regio
misteriosa, que tudo o que antecede a razo, as regras e a organizao civil, pertence ao
domnio do sagrado o qual age dentro de ns, que desprovidos de rito e sacrifcios para nos
defendermos, nos encontramos expostos diretamente a ele. Os resultados seriam as
angstias e ansiedades, por vezes loucuras, violncias e outras sociopatias, para as quais
nem mais a psicanlise tem sido suficiente.

Galimberti acredita que se faz necessrio a reconstruo de liturgias, cantos, danas e


outras situaes em que a comunidade se recolha, pois se continuarmos esquecendo ou
ignorando o sagrado, no mais teremos humanidade; do mesmo modo que se nos
deixarmos tomar totalmente por ele, chegaremos a devastao. imperativo termos ento

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uma relao ambivalente para com o sagrado se quisermos evitar a dissoluo da


personalidade e a acelerao das doenas sociais, na relao do indivduo com a
coletividade. No entender dele a arte seria uma possvel alternativa, pois:

Esttica composio do dado e daquilo que o transcende, mas para que


uma inteligncia possa transcender necessrio que uma paixo a dirija. E
cultivar uma paixo, movendo as delicadssimas teclas da sensibilidade,
tarefa tipicamente esttica e ao mesmo tempo religiosa.O que se cria a
harmonia que emana da composio de uma lacerao, algo que tambm
Kant, a pesar de atento s exigncias da razo matemtica, soube indicar
como configurao do belo, ou melhor, do sublime. (Galimberti, op. Cit.,
pg. 194).

Marcelo Grassmann. A Morte da Donzela, 1993. Gravura em metal, 145x108 cm.

O que o autor prope um retorno ao sagrado, na forma de seus rastros, na mobilizao


dos afetos e na construo de uma teoria da sensibilidade. Inclui nesta urgente retomada as
manifestaes e as vivncias artsticas, linguagens simblicas, como forma de experincia
do sublime e aproximao ao sagrado. novamente a arte compreendida como fator de
equilbrio social e psquico do indivduo, interligada s questes da tica e da tcnica na
sociedade contempornea, na qual predomina a ausncia de sentido.

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Pinceladas Finais
Ao concluir este estudo, alm de retomar e ampliar os conhecimentos sobre o binmio arte
sociedade, reafirmando sua relao direta com a vida, tornaram-se evidentes algumas
constataes. A primeira diz respeito quela irnica afirmao conhecida no meio
acadmico, segundo a qual toda a histria da filosofia ocidental no passaria de anotaes
ao p da pgina de Plato. possvel tomar de emprstimo a expresso e dizer que todo
estudo sobre arte tem um p em Plato, sejam abordagens scio-histricas ou estticofilosficas. De um modo geral, e no somente nos autores aqui tratados, encontramos a
forte idia da arte como reflexo, ou espelho, tanto do mundo externo, quanto do interno,
noo que todos eles remetem a Plato. Nos limites da abordagem deste texto, e no intuito
de concluir, destaco o que foi mencionado pelos autores estudados.

Em Marx observamos expresses como a capacidade da arte de extasiar, de expressar


beleza, a despeito da luta de classes e dos modos de produo; a criao de um momento
de humanidade que ela ocasiona, apesar do momento histrico; o fato de valer como
modelo ou norma insupervel - no caso da arte grega - no obstante produto da histria,
todas referncias platnicas.

Tambm Freud ao enfatizar o papel dos sonhos e fantasias na constituio do psiquismo


relacionando-os com a arte, alude ao plano das idias platnico; o mesmo acontecendo
quando fala do simblico, da arte como fator de interligao entre a realidade e a
imaginao; a noo de inconsciente igualmente acena para o conceito de alma j
levantada por Plato.

Em Foucault encontra-se a questo da loucura e da genialidade, a despeito da ontologia e


da genealogia; do visvel e do invisvel, do dito e do no-dito, do reflexo de algo encoberto
ou oculto, no obstante a microfsica do poder; da representao e da apresentao na arte,
todas imagems e metforas que remetem s concepes platnicas.

O mesmo acontece com Galimberti, que demonstra igualmente influencia de Heidegger,


quando, por exemplo, se refere poro animal e espiritual do homem, ao momento que
antecede a razo; ao afirmar que a arte e o homem tendem para o eterno, que necessitam
do sagrado e de sentido simblico, novamente aluses plenas de referncias ao mesmo e
cultuado filsofo.

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Outra constatao alude extrema preocupao aparente nos estudos iniciais de cunho
sociolgico sobre a arte: um jogo de foras entre a predominncia ou antecedncia de
fatores sociais condicionantes na arte, ou dos individuais, internos, determinantes da obra.
No fundo uma disputa na qual entram em conta as conceituaes partidrias da autonomia
da arte em contraposio s do engajamento da arte.

Sady R. Pereira. S/ttulo, 2003. leo s/painel, 170x230 cm.

Na medida em que os autores se aproximam da contemporaneidade, esta preocupao vai


cedendo lugar compreenso de que os dois fatores so indissociveis e interagem. Que a
ligao entre a arte e a sociedade um caminho de mo dupla, ou de mltiplas entradas, e
v-la somente pelo aspecto social determinista seria negar a individualidade e comprometer
a singularidade da criao artstica. Por outro lado, verifica-se que mesmo nos perodos em
que a arte mais pareceu abstrair-se do mundo circundante, nos momentos em que o artista
foi

um

declarado

transgressor,

nos

tempos

extremos

dos

experimentalismos

aparentemente aleatrios, ela sofreu influencia e dialogou com o meio social; pois afinal, o
artista estaria se abstraindo, transgredindo ou alienando-se de que, seno da sociedade?

Certamente esta inseparabilidade constitui-se num dos motivos que nos ltimos anos vem
ocasionando a reviso das abordagens sociolgicas da arte, redirecionando-as para campos
mais abertos, como por exemplo, os estudos culturais, as estticas do cotidiano e dos meios

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de comunicao de massas. Atualmente a consistncia reconhecvel destes campos de


estudos tem por base a constatao de que a arte instaura um complexo conceito de
sociabilidade na medida em que se comunica com todos, mas diferentemente com cada um,
confirmando a universalidade por meio da individualidade, ao mesmo tempo em que realiza
o comunitrio pela via da singularidade.

Cildo Meireles. Desvio para o Vermelho, 1968. Instalao.

Finalizando, uma vez mais percebo a impossibilidade de abarcara o fenmeno artstico


desde um s ponto de vista, seja ele oriundo da psicologia, da histria, da sociologia, da
filosofia ou da esttica. Somente um entendimento de envergadura interdisciplinar capaz
de abordar a arte uma vez que ela conjuga o entrelaamento de diversos saberes e
interfaces de campos de estudo e conhecimento.

Bibliografia
BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. 1970, So Paulo: Companhia Editora Nacional.
BAY, Dora M. D. Foucault: A Arte entre a Razo e o Desatino. 2003. Anais do Seminrio
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_______________________.A Socializao da Arte Teoria e Prtica na Amrica Latina.


1984, So Paulo: Editora Cultrix.
FOUCAULT, Michael. As Palavras e as Coisas. 2002, So Paulo: Martins Fontes.
__________________. Esttica: literatura e pintura, msica e cinema. Coleo Ditos e
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FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. 1990, So Paulo: Martins Fontes.

FREUD, Sigmund. Edio Eletrnica Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de


Sigmund Freud. S/d. So Paulo: Imago/Z - Movie Studio. DC-ROM.
GALIMBERTI, Umberto. Rastros do Sagrado. 2003, So Paulo: Paulus.

GIOVANE, Sergio. Historia de la Esttica. 1990, Madrid: Editorial Tecnos.

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Artigo entregue em: 10 de Fevereiro de 2006.

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