Nelson Rodriques - O Anjo Negro PDF
Nelson Rodriques - O Anjo Negro PDF
Nelson Rodriques - O Anjo Negro PDF
Nelson Rodrigues
Personagens
Ismael
Virgnia
Elias
Ana Maria
Tia
4 Primas
4 Coveiros
Hortnsia
Coro das dez Senhoras negras descalas
Cenrio
Casa de Ismael sem nenhum carter realista
No andar trreo, um velrio em torno de um pequeno caixo de seda branca com
quatro crios finos e longos acesos
Presentes as senhoras negras cuja funo por vezes proftica. Tm sempre tristes
pressgios. Rezam o tempo todo Ave Marias e Padre Nossos
De p, rgido e velando, est Ismael, o Grande negro. Veste terno branco de
panam engomado e sapatos pretos de verniz
Em cima, de p e de costas para a platia, Virgnia, a esposa branca. Veste luto
fechado. No quarto em que est, duas camas: uma de casal e arrumada, a outra de
solteira, mas com um p quebrado e metade do lenol para fora, o travesseiro no
cho
Longa e sinuosa escada une os dois andares
A casa no tem teto para que a noite possua seus moradores.
Circulando-a, grandes muros de pedra e hera que crescem medida em que cresce
a solido do casal
A ao se passa em qualquer tempo e lugar.
PRIMEIRO ATO
CENA 1
Senhora 1 - (doce) - Um menino to forte e lindo!
Senhora 2 - (pattica) - De repente morreu!
Senhora 1 - (doce) - Moreninho, moreninho!
Senhora 3 - Moreno no, no era moreno!
Senhora 2 - Mulatinho disfarado!
Senhora 3 - (polmica) - Preto!
Senhora 1 - (polmica) - Moreno!
Senhora 2 - (polmica) - Mulato!
Senhora 4 - (em pnico) - Meu Deus do cu, tenho medo de preto, tenho medo!
Senhora 1 - (enamorada) - Menino to meigo, educado, triste!
Senhora 4 - (encantada) - Sabia que ia morrer, chamou a morte!
Senhora 2 - (na sua dor) - o terceiro que morre, aqui nenhum se cria!
Senhora 1 - (num lamento) - Nenhum se cria!
Senhora 3 - Trs j morreram, com a mesma idade. M vontade de Deus!
Senhora 4 - Dos anjos, m vontade dos anjos!
Senhora 3 - Ou o ventre da me que no presta!
Senhora 1 - (acusadora) - Ou o ventre da me que no presta!
Senhora 2 - (num lamento) - Deus gosta de criana, mata as criancinhas!
Todas - Ave Maria, cheia de graa...(perde-se a orao num murmrio
ininteligvel) Padre nosso que estais no cu...(perde-se o resto da mesma forma)
Senhora 3 - (assustada) - Se afogou num tanque to raso!
Senhora 4 - Ningum viu!
Senhora 1 - Foi suicdio?
Senhora 3 - (gritando) - Criana no se mata, criana no se mata!
Senhora 2 - (doce) - Seria bonito um anjinho se matar!
Senhora 4 - O negro desejou a branca!
Senhora 1 - (gritando) - Oh, Deus mata todos os desejos!
Senhora 3 - (num lamento) - A branca tambm desejou o negro!
Todas - Maldita seja a vida, maldito seja o amor! (Cessam todas as vozes)
CENA 2
(Ismael vem olhar o rosto do filho. Em cima, no quarto, Virgnia ajoelha-se. Na
parte de fora da casa surge um jovem homem maltrapilho de cabelos claros e
anelados cujo rosto exprime uma doura quase feminina. Caminha com um bordo
porque cego. Aparecem simultaneamente quatro negros descalos e nus da cintura
para cima que se espantam com a presena do estranho)
Negro 1 - (com humor) - Pulou o muro, ceguinho?
Elias - O porto estava aberto.
Negro 2 - Est se arriscando, companheiro. O homem no gosta de branco aqui.
filho da sua me, porque era filho de uma mulher branca com um homem branco.
Hoje no tenho mais medo, talvez ele volte amanh...(Ismael no responde, est de
costas para o irmo que lhe suplica) Eu fico a em qualquer canto, como um bicho,
quieto, calado, no incomodo ningum, juro! (Ismael continua mudo. Elias fala
para si mesmo com tristeza e doura)
No preciso conversar com ningum, no preciso ver ningum. Falo sozinho, rio,
acho graa comigo mesmo. to bom quando no tem nenhuma pessoa por perto!
(Nesta altura, Ismael est longe do irmo, que continua falando e gesticulando na
direo errada. Ismael apanha um relho e bate com ele num mvel)
Ismael - Sabe o que isso? (Elias volta-se instintivamente na direo certa. Seu
rosto exprime terror)
Elias - Sei, aquele chicote curto e tranado que meu pai te deu.
Ismael - Quer que eu use ele na tua carne?
Elias - Num cego no se bate, voc no teria essa coragem!
Ismael - Deixa a minha casa!
Elias - Vou, mas cedo ou tarde prestars conta a Deus! (caminha penosamente para
a porta)
Ismael - Elias.
Ismael - (volta-se deslumbrado) - Me chamou?
Elias - (ainda assim, duro) - Em inteno de meu filho que morreu te deixarei ficar
aqui, mas s at amanh, nem mais um dia. Nos fundos tem um quarto: fica l e
no saia!
Elias - No sairei.
Ismael - gua, comida, tudo levaro para voc. Outra coisa: tenho uma mulher.
Nem sonhe em falar com ela. como se ela fosse do cu e voc da terra, da terra
no, da lama.
Elias - Queres que eu jure?
Ismael - No interessa.
Elias - (doce) - Tambm posso ajudar a carregar o caixo do teu filho. Seguro na
ala.
Ismael - No quero que toque no caixo de meu filho! (Ismael sobe a escada e
entra no quarto. Em baixo no velrio se faz mais ntido o rumor das preces)
CENA 4
Ismael - (parado bem atraz de Virgnia) - Desde ontem voc est nessa posio.
Virgnia - J me ajoelhei muitas vezes.
Ismael - Mas no se deitou nem dormiu.
Virgnia - Meus olhos esto queimando.
Ismael - Febre.
Virgnia - Esta noite em claro.
Ismael - Nosso filho est sozinho.
Virgnia - Senti que voc no estava mais na sala. (volta-se para o marido) Desde
ontem que eu esperava. Esperava o qu, meu Deus?
fugindo. Fugindo do desejo dos outros homens. Se mandei abrir janelas muito altas,
muito, foi para isso, para que voc esquecesse, para que a memria morresse em
voc para sempre. (com uma paixo absoluta) Virgnia, olha para mim, assim! Eu
fiz tudo isso para que s existisse eu. Compreende agora? No existe rosto nenhum,
nenhum rosto branco, s o meu que preto...
Virgnia - (dolorosa) - Se no fosse Hortnsia que s vezes fala comigo eu no
saberia que existe algum alm de ns...Voc traz o quadro?
Ismael - No!
Virgnia - (crescentemente agressiva) - Voc tem medo de que o Cristo do retrato
olhe para mim? (Ismael est de costas) E se fosse um Cristo cego, tinha
importncia? Mas no h Cristo cego...
Ismael - No deixo, no quero. (espantado) Esse Cristo no, claro, de traos finos...
Virgnia - (suplicante) - Deixa eu passear no jardim ento, como antes. De noite.
Preciso ver as estrelas. Posso ir com voc!
Ismael - No h mais estrelas.
Virgnia - (sem ouvi-lo) - Ainda agora me lembrei que elas existem, ou existiram.
H muito tempo que no pensava nelas. Eram lindas, no eram?
Ismael - Teu lugar aqui. Por que fala em tudo menos no filho que est l
embaixo? Por que no pensa nele?
Virgnia - (com encanto) - Ele deve estar assim (faz o gesto) com as duas
mazinhas unidas como duas irms, duas gmeas...
Ismael - Depois de morto voc no quis ver ele, no viu nosso filho uma nica vez!
Virgnia - (com medo) - Se eu visse ele agora no me esqueceria nunca!
Ismael - O caixo j vai sair. Voc no chora? No tem uma lgrima?
Virgnia - No consigo. Quero, mas no consigo.
Ismael - Porque ele preto. Preto. (encaminha-se para a porta. Virgnia senta-se na
cama de casal. Ismael sai e fecha a porta pelo lado de fora. Ela grita assustada)
Virgnia - (correndo para a porta) - Voc me fecha aqui?
Ismael - preciso.
Virgnia - (suplicante) - Por que? Voc sempre me deixou andar pela casa. (doce)
To bom
ver outras paredes, as paredes da sala, do corredor, ver mesas e cadeiras e no
s estas duas camas e lenis...(veemnte) Minha nica alegria era mudar de
ambiente, passar de uma sala para outra, subir e descer a escada. (desesperada)
Por que voc me prende, Ismael, por que?
Ismael - Direi depois.
Virgnia - Espera. (rancor) Eu no quero ter mais filho, filho nenhum, ouviu?
Ismael - Quem pode querer sou eu. E eu quero outro filho, Virgnia!
Virgnia - (desesperada) - No meu!
Ismael - Teu, sim! Um filho que no morra como os outros, porque o prximo no
h de morrer, esse eu juro, Virgnia!
Virgnia - Mas no compreende que no pode ser. Que no posso ter filhos assim?
Estou cansada de ver crianas morrendo! (muda de tom, voz surda) A morte me d
nuseas, j me enjoa o estmago! (num arranco) Ter filho para morrer!
Ismael- Eu virei.
Virgnia - No, Ismael, no! Respeite este dia! (espantada) No quero ficar grvida
de um no dia em que enterram o outro! como se o que morreu voltasse para o
meu ventre e fosse apodrecer dentro de mim! (suplicante) Sim? No hoje. (se
olham)
Por que me olha assim? (voz baixa) Leio nos teus olhos o desejo. Mas no
conseguirs nada de mim, no hoje, nem que eu me mate. E me matarei na tua
frente, Ismael! (cai de joelhos com o rosto entre as mos)
CENA 5
(Os quatro coveiros contornam a casa e aparecem na porta da sala enquanto Ismael
desceu. Pegam o caixozinho e comeam a sair, Ismael frente. Virgnia que
erguera-se e acompanha sem ver todos os movimentos de baixo pega
repentinamente um sininho agitando-o freneticamente. Subitamente pra, como se
o cansao a vencesse. Neste ponto o Coro recomea a falar.
Senhora 1 - (lamento) - A me nem beijou o filho morto!
Senhora 2 - S moas virgens deveriam segurar as alas.
Senhora 5 - No beijou o filho porque ele preto!
Senhora 4 - To bonito e virgem!
Senhora 3 - louro o irmo branco do marido negro.
Senhora 6 - Tem quadris to tenros!
Senhora 7 - Nunca a mulher devia deixar de ser virgem!
Senhora 8 - Mesmo casando, mesmo tendo filho. Oh Deus, malditas as brancas
que desprezam preto! (ouve-se novamente o murmrio de ladainha enquanto dedos
prticos contam rosrios. Virgnia volta a agitar o sininho com furor de louca.
CENA 6
(Hortnsia, uma preta gorda de meia idade surge nervosa. Chega porta de
Virgnia)
Virgnia - (subitamente serena) - Quase no vinha, custou tanto!
Hortnsia - Eu estava l fora...
Virgnia - J saiu?
Hortnsia - O enterro?
Virgnia - .
Hortnsia - J, D. Virgnia. Ainda agorinha.
Virgnia - (para si mesma) - Ento Ismael s volta de noite. Graas a Deus, vou ter
umas horas de descanso! to bom quando ele no est! (mudando de tom) Abre!
Hortnsia - Me desculpe, D. Virgnia, mas no posso, o doutor deu ordem de no
abrir.
Virgnia - (num lamento) - Por que me trancam aqui dentro, por que?
Hortnsia - No sei no, D. Virgnia, mas penso que por causa do irmo do
doutor...
Virgnia - Quem?
Hortnsia - O que chegou de manh.
Virgnia - Irmo? Mas que espcie de irmo?
Hortnsia - Branco...
Virgnia - (deslumbramento) - Branco?
Hortnsia - Cego, no enxerga...
Virgnia - (euforia) - Ele cego, ? (para si mesma) No v...(veemente) Preciso
falar com esse homem, Hortnsia!
Hortnsia - (em pnico) - Tenha juizo, D. Virgnia!
Virgnia - Abre isso j, anda!
Hortnsia - O doutro no quer, ele recomendou!
Virgnia - (possessa) - Negra ordinria, preta! (subitamente doce) Abre, Hortnsia,
sim?
Hortnsia - No posso, D. Virgnia!
Virgnia - (suplicante) - Hortnsia, voc se lembra do que eu fiz aquela vez por sua
filha?
Voc disse que ela tinha dado um mau passo, tinha-se perdido. No foi?
Hortnsia - Foi, sim, nunca neguei. Lhe fiquei muito agradecida.
Virgnia - (persuasiva) - Te dei dinheiro para tirar tua filha da vida, voc mandou o
dinheiro, ela que no quis voltar, preferiu ficar onde estava. No verdade?
Hortnsia - .
Virgnia - Ento, abre a porta. No quero mais nada, s isso.
Hortnsia - Me perdoe, D. Virgnia...
Virgnia - (excitada) - Te dou dinheiro, muito dinheiro! Todo o dinheiro que eu
tenho, que junto. Voc poder sair daqui, no voltar nunca mais! (como uma
possessa vai at um canto e apanha um monto de dinheiro)
Hortnsia - A senhora est me perdendo, D. Virgnia!
Virgnia - Abre! (Hortnsia abre, depois apanha o dinheiro que cara no cho)
Graas a Deus! Agora v dizer a esse homem que eu quero falar com ele, depressa!
(Hortnsia vai. Virgnia num gesto instintivo arruma os cabelos olhando-se um
momento no espelho. reflete em voz alta, espantada) Eu falando num Cristo cego e
o irmo j estava a...(sai e comea a descer a escada, mas pra porque v Elias
chegando)
CENA 7
Elias - Se ele aparecer ou souber, me mata... (Virgnia desce lentamente a escada,
deslumbrada. Quando chega embaixo, Elias instintivamente volta-se na direo
dela. Inquieta-se com o silncio prolongado)
Elias - a senhora?
Virgnia - Sim, sou eu.
Elias - Mandou-me chamar?
Virgnia - Mandei. Sente-se!
(espantada) Hoje ainda no vieram, mas viro, tenho certeza, viro sempre...
Elias - (espantado) - Por sua causa a noiva se matou...Por que voc no morreu, a
mulher que possuda (baixa a voz) assim no devia viver...
Virgnia - (com medo) - Morrer no, no posso morrer (fantica), nunca!
(desesperada) Se eu morresse, ele no me enterraria, tenho certeza. Deixaria meu
corpo na Cama, esperando que eu apesar de morta continuasse tendo filhos (lenta),
filhos pretos...
Elias - Morta no tem filhos...
Virgnia - Talvez...(desorientada) quem sabe? No sei, no compreendo mais nada.
Elias - Se voc quisesse eu poderia salv-la!
Virgnia - Como?
Elias - (segurando-a) Fugindo!
Virgnia - No posso. Se eu fugisse a transpirao dele no me largaria, est
entranhada na minha carne, na minha alma. Nunca poderei me libertar, nem a morte
seria uma fuga!
Elias - Maldito seja o negro!
Virgnia - (doce) - Voc pode me salvar, mas no assim, de uma outra maneira. Se
fizer o que eu espero agradecerei de joelhos, beijarei no cho a marca dos teus
passos.
Elias - (transportado) - Fao o que voc quiser, tudo!
Virgnia - Sei, sinto isso em voc. (acaricia-o no rosto e cabelos. caem os dois de
joelhos, um diante do outro)
Elias - Voc est quase louca.
Virgnia - Se j no estou.
Elias - Quer o qu de mim?
Virgnia - Um beijo. (beijam-se apaixonadamente aps o qu Elias ergue-se
trazendo consigo o corpo da amante. ela ento desprende-se e afasta-se dele, fica de
costas. depois volta-se novamente. com rancor) J tive trs filhos, nenhum dos trs
brancos. por isso que eles morrem, porque so pretos.
Elias - E se fossem brancos, viveriam?
Virgnia - Ah, se fossem brancos, sim! Juro que sim. Se no vier desta vez um
filho branco outro que darei morte. (pausa) Vem...(Virgnia sobe a escada
trazendo Elias pela mo. No quarto abraam-se e beijam-se. A luz cai em
resistncia at blecaute)
CENA 8 a
(quando voltam as luzes, esto entrando na sala a tia e as quatro primas de Virgnia.
a Tia um tipo de mulher em quem morreu toda doura e suas filhas solteironas
arrastando pela vida uma no-desejada virgindade. uma delas muda na sua
obsesso sexual. no quarto, Virgnia arruma os cabelos com um certo cansao
amoroso. Elias, meigo como nunca. a cama de casal est revolvida como a de
solteira, metade do lenol para fora. o Coro coloca-se em volta do tanque em que o
menino foi afogado. mexem nos rosrios e fazem suas preces. noite contra todos
os relgios, porque l fora ainda h sol)
Prima1 - (num tom de lamento) - Noutras casas ainda tem sol, mas aqui j noite.
Tia - Ouviram?
Primas - No.
Tia - Vozes.
Primas - Onde?
Tia - L em cima
Primas - (entre si) - Vozes l em cima.
Tia - Duas vozes.
Primas - No tem ningum em casa, me, esto no cemitrio.
Tia - (incerta) - Pensei ter ouvido.
Prima2 - Chegamos atrazadas.
Prima3 - Depois do velrio.
Prima1 - Esta casa maldita.
Prima3 - Nenhuma flor no cho.
Primas - Num velrio sobra sempre uma flor.
Prima2 - Sempre.
Prima1 - Uma flor fica boiando no assoalho.
Tia - Pensei ter escutado vozes, de homem e de mulher. (dvida) So meus
nervos...
CENA 8 b
(Elias quer abraar Virgnia que se despreende com violncia)
Virgnia - Agora v.
Elias - cedo.
Virgnia - Tarde.
Elias - Voc no mais a mesma, mudou, sinto que mudou.
Virgnia - Ele pode chegar, entrar aqui.
Elias - Ento por que me chamou? No devia ter-me chamado. Eu ia embora,
nunca mais voltaria. (meigo) mostre as mos...(maquinalmente ela oferece suas
mos. o cego beija uma e a outra, mas a moa continua fria)
Virgnia - (impaciente) - Voc no pode ficar nesta casa. Nem mais um minuto.
Elias - Est fria, completamente fria.
Virgnia - Tenho medo.
Elias - Eu no.
Virgnia - (dolorosa) - Voc tambm, sinto nas suas mos, na sua boca o
medo...(olha em torno)
Elias - Medo eu tinha antes de conhec-la, mas agora tudo mudou. E se voc
quiser...
Virgnia - (corta) - No quero!
Elias - Eu ficaria aqui mesmo, no quarto, de p, de frente para a porta...
Virgnia - (corta) - Quanta loucura!
Elias -...ele ento chega...
Virgnia - (corta) - E mata voc.
Elias - E me mata.
Virgnia - E pra que, meu Deus, pra que?
Elias - (apaixonadamente) - No posso mais viver sem voc, no quero. Sem voc
que eu no vejo e nunca verei...
Virgnia - (corta) - V, pelo amor que me tem.
Elias - No!
Virgnia - Voc no conhece Ismael, ele capaz de mandar voc embora e matar a
mim!
Elias - A voc no!
Virgnia - E por que no? Nunca vi esse homem sorrir. to frio, to duro. Tem as
mos de pedra. (ansiosa) E voc, gostaria de me ver morta?
Elias - (caindo em abstrao) - Seria to bom que voc morresse. Assim nem ele
nem homem nenhum, ningum mais tocaria em voc...
CENA 8 c
Tia - Que enterro demorado!
Prima3 - Demais!
Prima2 - O cemitrio longe.
Tia - Nem tanto.
Prima2 - sim, mame.
Prima1 - Antes Virgnia no ia ao cemitrio.
Tia - Hoje cismou.
Prima 1 - Ou ser que ela est?
CENA 8 d
Elias - (pleno sonho) -...Voc nunca se imaginou morta? (segura Virgnia pelos
dois braos) Eu mesmo, e no ele, seria capaz de matar voc. Sem dio e sem
maldade. Por amor.Para que ningum mais acariciasse voc, para que voc no
desejasse ningum e ficasse para sempre com a boca em repouso, os seios em
repouso, os quadris quietos, inocentes...(Elias pe-se de joelhos, na sua embriaguez
acaricia Virgnia que se deixa adorar sem um gesto, petrificada) Morrer assim no
te faria mal, juro! Seria um bem, no compreende que seria um bem?
Virgnia - (dolorosa) - Compreendo.
Elias - Voc gostaria...seria uma coisa to meiga como a morte de uma menina no
dia da primeira comunho...
Virgnia - Ismael sonha com uma morte assim...(despreende-se dele)
Elias - Eu que deveria ser o teu assassino, no ele, eu...! (ergue-se e busca
Virgnia com as mos. Encostada na parede, ela no diz palavra, imvel. O cego
passar perto, roa a cunhada, mas no a sente. doce) No fuja, eu no sou assassino,
sinto que no sou, e isso no seria crime. Eu no mataria ningum, a no ser
voc...(pouco a pouco a sua doura transforma-se em excitao, por fim em clera)
Onde que voc est, Virgnia? Eu tambm no te enterraria, ficaria junto do teu
corpo, fiel, o
desejo tranquilo, sem fazer barulho...me deitaria a teu lado...(desorientado) Mas
onde que voc est? Se esconde de mim por que? (rancor) No quer? Prefere esse
negro? (novamente splice) Perdoa. (pausa) Fala, Virgnia! Virgnia! (vira a cabea
para todos os lados perdido em suas trevas)
Virgnia - Vai!
Elias - Escuta!
Virgnia - Vai!
Elias - Voc no pode me expulsar assim depois do que houve...
Virgnia - No houve nada.
Elias - Ainda agora...
Virgnia - Sonho seu!
Elias - Voc se entregou a mim, foi minha!
Virgnia - (outro tom) - Fui sua, mas estava fria, fria de gelo. No percebeu que eu
estava fria?
Elias - Parecia louca.
Virgnia - Simulao!
Elias - Mentira!
Virgnia - to fcil simular! Qualquer mulher finge (absolutamente cruel) Vai,
no te quero ver nunca mais. Se aparecer aqui de novo, se voltar direi a ele,
contarei tudo! (pausa. Elias vai at a porta. De l volta-se e fala)
Elias - Te espero no quarto, no sairei de l, nunca. Mas se no for, se no quiser ir,
ento adeus! (espera retribuio) Adeus. (nada) Ao menos diz "adeus", s isso, no
te peo mais. (Virgnia de costas fica em silncio. Est de rosto levantado e imersa
numa tristeza absoluta)
Virgnia - Adeus.
CENA 9
(Elias desce a escada devagar e a Tia ao v-lo fica estatelada. Depois que ele sai ela
sobe e entra no quarto da sobrinha, no momento em que esta apanha o travesseiro,
que larga instantaneamente. As duas se olham em silncio)
Prima1 - Vamos l em cima?
Prima3 - Mame no vai gostar.
Prima2 - Qu que tem?
Prima 3 - Vamos esperar.
Prima 2 - S espiar.
Prima 1 - Virgnia teve mais sorte do que a gente.
Prima 2 - No acho.
Prima 3 - Eu no queria um marido preto!
Prima2 - Nem eu!
Prima 1 - Eu tambm no.
Prima 4 - (olha assustada para as irms)
Virgnia - Mas ismael no pode saber, tia. preciso que no saiba. Fao o que a
senhora quiser. O que que a senhora quer que eu faa? Diga, farei tudo!
Tia - No quero nada! Chegou a minha vez. (pausa) Vou esperar o teu marido,
Virgnia!
(saem a tia e suas filhas. vo esperar Ismael na sala de baixo. vo falando)
Prima1 - Virgnia tem um amante!
Prima2 - Amante.
Prima3 - Quando o marido souber!
Prima2 - Ser que ele mata?
Prima1 - Claro!
Primas - (para a mudinha) - Virgnia tem um amante! (a mudinha ri e tem medo)
Prima1 - Eu disse primeiro!
Prima2 - Fui eu!
Prima3 - Eu.
Prima1 - No fui eu, mame?
Tia - Tenham modos!
Prima2 - Me lembro muito bem daquela noite. Como Virgnia gritou!
Prima3 - Mame vai dizer, no vai, mame?
Tia - Vou.
Prima1 - (numa alegria de dbil mental) - Que bom!
Tia - S sairei daqui depois de ter dito.
CENA 10
(Ismael chega e vai direto ao quarto)
Ismael - Quem abriu a porta?
Virgnia - Titia. Ela chegou com as primas. No falou com elas ?
Ismael - No.
Virgnia - (doce) - Estava esperando voc. Vamos l fora um pouco, passear ?
Ismael - Hoje no.
Virgnia - Lhe peo.
Ismael - No, meu irmo est a.
Virgnia - Irmo? Ah, sei, aquele que cego. Voc no me disse nada.
Ismael - Chegou de manh.
Virgnia - Ento vamos ficar aqui, melhor. A gente conversa.
Ismael - Estou achando voc diferente.
Virgnia - Eu ?
Ismael - Quase amorosa.
Virgnia - (quase eufrica) - Estou ?
Ismael - H oito anos que estamos casados e voc nunca teve uma palavra de amor,
um gesto ou carcia...
Virgnia - Voc quase no fala comigo.
Ismael - (segurando-a pelos ombros) - Mas agora estou te sentindo diferente, como
se fosse outra.
castigo...Sempre tive dio de ser negro. Desprezei e no devia o meu suor de preto.
S desejei o ventre de mulheres brancas. Odiei minha me porque nasci de cor.
Invejei Elias porque tem o peito claro. Agora estou pagando. Um Cristo negro
marcou minha carne. Tudo porque desprezei a minha cor! (Virgnia, frentica, quer
arrancar o marido de sua abstrao)
Virgnia - Quis um filho que vivesse, que no precisasse morrer!
Ismael - (para a tia) - Pode ir, j! No volta nunca mais, nem voc nem tuas filhas!
(muito digna e sem uma palavra a tia deixa o quarto e desce a escada)
Prima 1 - Tem marido e tem amante!
Tia - Hoje ela paga!
Prima 2 - Vai morrer?
Prima 3 - Direitinho!
Prima 1 - Tomara!
Prima 2 - Aposto!
Prima 3 - Muito cnica!
Tia - Sempre foi!
Prima 1 - Seguro na ala do caixo!
(saem a tia e suas filhas. no quarto, Virgnia est aniquilada na cama. De p, Ismael
parece petrificado)
CENA 11
Senhora1 - gua assassina!
Senhora2 - Que parece inocente!
Senhora3 - Matou uma criana!
Senhora4 - Oh, Deus, fazei vir um filho branco!
Senhora5 - Clarinho!
Senhora 6 - Que no morra como os outros!
Senhora 7 - Ningum diz que este tanque j matou um.
Senhora 8 - Ou mais de um.
Senhora 9 - Ningum diz.
Senhora 10 - Perdoai, meu Deus, esta gua fria e assassina!
Todas - Fazei vir um filho branco! (perdem-se as vozes num sussuro de preces)
CENA 12
Ismael - Te fechei no quarto, mas enquanto enterrava nosso filho voc abriu a porta
e fez entrar aqui um homem que nunca tinha visto.
Virgnia - (sonmbula) - Abri a porta.
Ismael - Ainda agora voc disse que me amava.
Virgnia - Disse.
Ismael - Repete.
Virgnia - Acreditou?
Ismael - Me ama?
Virgnia - Devo responder?
Ismael - Sim ou no?
Virgnia - No, bem sabe que no. Bem sabe que tenho horror de ti, que sempre
tive, que no suporto nada que voc toca!
Ismael - S?
Virgnia - S.
Ismael - E teu amante?
Virgnia - (vacila, mas logo reage) - Fugiu. Eu disse a ele: "Foge! Foge". A essa
hora est longe, bem longe (apaixonadamente), graas a Deus!
Ismael - (num crescendo) - Teu amante est longe, mas o filho ficou, o filho no
fugiu (ri brutalmente) Deixa que teu amante fuja. (corta o riso) O filho est a, ao
alcance da minha mo, quase posso acarici-lo...(acaricia o ventre da esposa)
Compreende?
Virgnia - Sim.
Ismael - No tem medo?
Virgnia - (feroz com a mo no ventre) - Nesse filho voc no toca, nunca! Eu no
deixarei. Ele branco e s meu, meu!
Ismael - Voc no matou meus filhos?
Virgnia - Eu?
Ismael - Voc. Um por um. Pois o teu, o dele, eu matarei tambm (numa alegria de
louco), e no tanque, Virgnia, l emabixo (aponta) . Esperarei os nove meses, ou um
ano, pouco importa. (doce) Voc no sofrer nada. Nem Elias. Mas ele (aponta para
o ventre da mulher)que ainda no tem forma e ainda no carne j est condenado.
(Virgnia alucinada corre para a porta, mas Ismael impede e a arrasta pelo pulso ou
cabelos) Tenho o direito de afogar essa criana. Se voc foi assassina eu tambm
posso ser, no posso?
Virgnia - (agarrando-se a ele) - No, Ismael, no! Eu estava louca quando disse
que tinha horror de ti! As palavras no me obedecem mais, no sei o que penso e
digo. Estou doida, completamente doida. Eu precisava ter um filho que no fosse
teu. No pecado isso. Juro, no pelos filhos que morreram, mas por este que est
aqui. Se voc soubesse, se pudesse imaginar minha inocncia e a de Elias. Quer que
eu te diga? Se ele me possuisse todos os dias eu continuaria pura, minha alma no
seria tocada. Se ele me matasse -pediu para me matar- seria to puro no crime como
no amor. Seu crime no seria cruel, mas assim como um sonho...Eu no sabia nem
podia imaginar que existisse amor inocente e que uma mulher pudesse entregar-se
sem culpa. Compreende que eu me sinta sem culpa, nenhuma? (num xtase e
esquecida do marido) Acho que ele no conhecia o amor, que no conhecia mulher
(rosto a rtosto com Ismael) que fui eu a primeira...a nica.
Ismael - (segurando-a) - Olha para mim: se tivesse sido um desejo...
Virgnia - (corta) - No foi!
Ismael - ...apenas um desejo ou prazer eu perdoaria, esqueceria...
Virgnia - (corta) - Perdoa, esquece, Ismael!
Ismael - ...mas houve mais que um desejo...
Virgnia - (corta) - Muito mais!
Ismael - ...estou vendo em ti que nunca esquecers este homem, ele trouxe um
amor que nenhum outro te daria, nem eu.
Virgnia - No!
Ismael - J que Elias fugiu pagar o filho dele.
Virgnia - No, meu filho no, ele no culpado de nada. Eu no amo Elias. Se o
trouxe aqui foi s por causa do filho, para ter este filho. Teu irmo no me importa!
E nem puro ou inocente. Te disse isso para te enganar, achando que assim
sentirias menos. Mas ele s sabe amar como voc, como qualquer outro, fazendo da
mulher uma prostituta. Fiquei com dio dele, com dio da cama, de tudo!
(mergulha o rosto entre as mos numa crise de lgrimas)
Ismael - Acredito.
Virgnia - Perdoa ento?
Ismael - No.
Virgnia - E se eu te desse uma prova, se te provasse que esse homem no nada
para mim? (muda de tom, lenta) Menti quando disse que ele fugiu. Est l embaixo
no quarto, minha espera...
Ismael - (alegria selvagem) - L embaixo? No fugiu? (Virgnia o observa
fascinada pegar o revlver)
Virgnia - ele quem deve pagar, s ele!
Ismael - No sofrers se ele morrer?
Virgnia - No! Pois se at quero, se fui eu quem disse que ela ainda estava aqui.
Ismael - (iluminado) - Ento vai cham-lo, vai. Diz que eu no cheguei, que passo
a noite fora. Ele puro, tem o corao meigo, no desconfiar de nada, vir
contigo. Quero ver com meus prprios olhos que homem esse que ama como um
anjo e cujo desejo no triste nem vil...Vai.
Virgnia - (com esforo) - Vou, Ismael.
Ismael - Depressa. Espero l embaixo.
(Virgnia vai. Pra no alto da escada. Sua atitude exprime o sofrimento mais
profundo. Desce lentamente como se lutasse atrozm,ente consigo mesma. Enquanto
a tia e suas filhas se pem a falar)
Tia - Ser que ele mata?
Prima1 - Claro!
Prima2 - Daqui no saio enquanto o caso no se decidir.
Tia - Aqui no podemos ficar. E se chegar algum?
Prima3 - Mas ento aqui perto.
Prima1 - Queria ouvir um tiro, um grito...
Prima 2 - Eu tambm.
Tia - Vamos ficar l na fonte.
Prima 3 - timo!
Tia - De l se ouve tudo.
CENA 13
(Saem aTia e suas filhas. Colocam-se compactamente num canto do palco, a fonte.
Aguardam excitadas. Imediatamente aparecem Elias e Virgnia. Ele com uma
expresso de idlio e sonho. Ela como se vivesse o seu calvrio. Ismael que descera
enquanto a tia e primas falavam os espera na sala)
Elias - Viu como foi bom eu ficar? Sabia, tinha certeza de que voc viria. Nem
deitei, fiquei sentado esperando. Mas ele vai passar toda a noite fora?
Virgnia - Mandou avisar.
Elias - Ento posso ficar at amanh, no posso?
Virgnia - (num breve transporte) - Pode sim, a noite toda, at de manh.
Elias - Estou achando voc meio triste.
Virgnia - (numa tristeza maior) - Felicidade!
Elias - Voc deve ter o corpo muito claro.
Virgnia - (angstia) - Muito. (Ismael imvel e de p assiste a tudo. ela senta-se na
poltrona com Elias) Senta aqui comigo (com uma excitao que aumenta) S penso
no nosso filho (olhando e acariciando o rosto de Elias) Imagino como ser quando
crescer...vai ser como voc, igual. Ter a sua voz e a mesma boca, a sua maneira de
beijar, a paixo inocente...
Elias - Ama meu filho como a mim mesmo.
Virgnia - (agarrando-se a ele) - Como a ti mesmo! Voc pode morrer, no pode?
(olha para o marido) to fcil morrer! Mas guarda com voc estas palavras: sinto
que amarei teu filho no com amor de me mas de mulher. (muda de tom olhando
apavorada o marido que permanece impassvel) No, Elias, no! Estou doida! Isso
um delrio (sempre olhando Ismael, baixa a voz), um calmo delrio que me faz
dizer loucuras...
Elias - (agarrando-se tambm a Virgnia que agora parece fria) - Estou novamente
com medo...sinto a morte chegando...(com mais energia) Virgnia, voc prometeu
que amaria nosso filho como se fosse eu!
Virgnia - (violenta) - Cala, no fala, cada palavra pode ser a morte!
Elias - (possudo pelo medo) - O que que voc est escondendo de mim? Por tudo
que sagrado, fala, no minta. Voc est me traindo, desejando a minha
morte...Mas eu no quero morrer agora que conheci voc, que voc minha e no
desse negro...(veemente) Eu no quero que ele ponha as mos em ti, o desejo em
ti...e se voc for dele, se ele te possuir, uma vez que seja, eu te amaldioo por mim
e pelo nosso filho...(numa desesperada ternura) No, perdoa!...eu no te
amaldioaria nunca...nem que voc se entregue a ele e a outros homens...para mim
voc nunca seria uma prostituta. E mesmo que fosses eu te amaria ainda, eu te
amaria mais...
Virgnia - (rpida) - Elias, quero que voc me responda uma coisa, mas no minta,
diga a verdade.
Elias - Direi.
Virgnia - Eu sou a primeira mulher que voc conhece?
Elias - (deslumbrado) - Sim.
(A luz vai caindo em resistncia. Virgnia se desgarra de Elias colando-se parede.
Elias a persegue e sem querer caminha para Ismael. Este com toda a calma ergue o
revolver e atira no rosto do irmo. A luz irrompe num poderoso claro e Elias cai
instantaneamente morto. Virgnia vira o rosto devastado por onde escorre uma
SEGUNDO ATO
CENA 1
(Passaram-se 16 anos e nunca mais fez sol para Ismael e sua famlia. Uma
maldio. Em vez de a um homem, Virgnia deu luz Ana Maria, hoje com quinze
anos. Muito linda, parece viver num sereno deslumbramento. Virgnia ainda uma
linda mulher. Ismael est mais taciturno do que nunca. Transfigura-se, no entanto,
ao falar com a enteada adolescente. As senhoras negras continuam em cena,
comentando fatos, pessoas e sentimentos)
Senhora 1 - Graas a Deus todo-poderoso...
Senhora 2 - H quinze anos nasceu uma filha...
Senhora 3 - Branca.
Senhora 4 - No um menino, uma menina...
Senhora 5 - De peito claro.
Senhora 6 - Porque nasceu nua o pai disse logo: menina!
Senhora 7 - Porque nasceu nua.
Senhora 8 - H dezesseis anos que no faz sol nesta casa...
Senhora 9 - Mas as estrelas fugiram.
Senhora 10 - A menina viveu, hoje mulher.
Todas - Oh, Deus, poupai Ana maria do desejo dos homens e da obscenidade dos
bbados! Poupai Ana Maria dos homens solitrios que por isso desejam mais!
(Perdem-se as vozes num murmrio de prece)
CENA 2
Virgnia - Onde foi?
Ismael - Na fonte.
Virgnia - Essa mulher deve estar louca para andar sozinha de noite num lugar
desses. Ismael -(espanto) - De repente os gritos pararam...
Virgnia - Quem sabe se no foi morta?
Ismael - (angstia) - No teria pena nenhuma.
Virgnia - Ela gritou como eu gritei ali (indica a cama). Exatamente. Lembrei de
mim naquela noite, parecia que estava assistindo. (espanto) Ser possuda assim,
meu Deus!
Ismael - Todos os gritos se parecem.
Virgnia - Por que no acudiu?
acha que eu fui cruel, mas Deus que Deus sabe que no, sabe que fiz isso para que
ela no soubesse nunca que sou negro (riso soluante) Sabe o que eu disse a ela
desde menina? Que os outros homens, todos os outros, que so negros e que eu,
compreende, sou o nico branco da Terra (violento) eu e mais ningum! (baixa a
voz) Compreende esse milagre? milagre, no ? Eu branco e todos os outros no!
Ela quase cega de nascena, mas odeia os negros como se tivesse noo de cor...
Virgnia - Ismael, ela minha filha.
Ismael - Sei. Mas se tivesse nascido um filho, voc no roubaria ele, no seria s
teu?
Virgnia - Mas seria meu filho e Ana Maria no tua filha.
Ismael - Nasceu uma menina, tomo-a para mim, minha!
Virgnia - Eu no quero, no deixo! Ela saber que voc preto, que matou o pai
dela, que colocou cido em seus olhos e que ali (aponta a cama de solteira) quando
eu nem era moa, mas s uma menina, voc fez aquilo. Ela saber que eu gritei
como a mulher de h pouco!
Ismael - Vai falar com Abna Maria.
Virgnia - Mas no contigo.
Ismael - Comigo.
Virgnia - Por que contigo? At hoje eu no fiquei com a minha filha sozinha uma
nica vez. Sempre na tua presena, voc olhando e escutando (acusadora) Voc
roubou o carinho da minha filha, voc no deixou que ela gostasse de mim, fez com
que ela me odiasse (medo) Voc contou a ela que eu matei os teus filhos?
Ismael - Talvez...
Virgnia - (desesperada) - Contou sim, leio nos teus olhos que voc contou.
(dolorosa) Mas no explicou que eu fiz isso s porque eles eram pretos, que era
preciso destruir um por um (mstica), no deixar viva uma criana preta
(suplicante). Voc disse isso, explicou que eram de cor?
Ismael - No.
Virgnia - Se no posso estar sozinha com ela, ento vem, mas no fala. No quero
que note a tua presena, que s testemunha de nossas palavras.
Ismael - Uma coisa voc no pode dizer.
Virgnia - O que?
Ismael - Que sou negro.
Virgnia - No direi.
Ismael - (olha fixamente a esposa. pausa) - No, mudei de idia. Pode dizer. Diga
que sou negro, pode dizer, at melhor que diga.
CENA 3
(Neste momento ouve-se rumores fora de casa. Aparecem os coveiros carregando
um cadver pelas quatro pontas de um lenol. Um deles d um grito melodioso
chamando o doutor)
perto da fonte Todas as noites mandava ela passear por l. At que hoje...Ouviu os
gritos? (espanto e dor) S acho que ele no precisava matar. Para que? Com certeza
teve medo dos gritos, foi por isso que matou, para que ela no gritasse mais.
Ismael - Basta!
Tia - Vou atraz de minha filha. Mas antes, Ismael, quero que tua mulher oua a
minha voz. (avana e grita como uma possessa) Tua filha morrer, Virgnia! (com
doura sem trasnio) Mas no tenha medo, a morte assenta bem na tua filha.
Meninos e mocinhas deveriam morrer sempre, todas as manhs...
Ismael - (grito) - Ana Maria, no! No quero que morra!
Tia - De cada vez que morressem ficariam mais bonitas, os clios grandes...
Ismael - No, no!
Tia - (num crescendo) - E tu, Virgnia, maldita sejas! Quero que s tenhas para o
teu amor um leito de chamas e de dor, que o teu desejo seja uma febre e que ela
incendeie os teus cabelos e os devore, que ao morrer ningum junte e ningum
amarre os teus ps de defunta! (pausa. voz cheia e grave) Maldita, assim na terra
como no cu! (desaparece atraz dos coveiros num passo lento e incerto)
CENA 5
Ismael - Ouviu?
Virgnia - Tudo...Tens medo?
Ismael - Medo?
Virgnia - Por ela.
Ismael - Ana Maria?
Virgnia - Sim, por minha filha.
Ismael - (veemente) - Tua no, minha, s minha.
Virgnia - (medo) - A tia disse que ela vai morrer virgem, mas no se pode guardar
uma mulher...
Ismael - Quer ainda falar com Ana Maria?
Virgnia - Quero.
Ismael - Sozinha?
Virgnia - Sozinha.
Ismael - Vai ento. Eu no irei. Fala, e no meia hora, mas trs dias e trs noites,
que o que preciso para aranjar um lugar onde nenhum desejo possa alcanar
minha filha! Quer dizer, tua filha e filha desse Elias (baixa a voz) que matei e
enterrei no jardim de minha casa...(possesso) Diz tua filha tudo o que quiser,
sobretudo que sou negro!
Virgnia - (tambm em fria) - Direi!
Ismael - Diz que sou o nico negro do mundo, que todos os outros homens,
inclusive o pai dela, so brancos! (rouco) Depois pode partir, eu mando que saia
desta casa, te expulso, no te quero mais aqui! (blecaute)
CENA 6
(apaixonada) Sou tua me, queiras ou no sou tua me, voc nasceu de mim. Toda
me ama os filhos.
Ana Maria - Voc no!
Virgnia - Eu sim. Sente ( faz o gesto) como passo minhas mos pelos teus
cabelos? Como aperto (faz o gesto) tua cabea para que ouas meu corao?
Ana Maria - (desprendo-se com violncia) - H trs noites que voc me atormenta!
Virgnia - impossvel que voc no sinta o carinho de minhas mos. Este homem
te perde como me perdeu a mim, ele far a tua desgraa, juro. Deus sabe que no
minto!
Ana Maria - Voc nunca gostou de mim. Desde que eu nasci voc me odeia. No
foi preciso que meu pai me dissesse isso, desde criana que eu sei, quando voc
aparece sinto frio no corao.
Virgnia - No!
Ana Maria - Quando nasci voc esperava um menino.
Virgnia - (serena) - Ana Maria, voc tudo para mim, tudo. Na minha vida no
existe nada, s voc. Sabe por que desde que voc nasceu eu no te acariciei nunca,
nem te sorri ou disse uma palavra de amor?
Ana Maria - Porque no me suporta.
Virgnia - Porque ele nunca deixou, nunca. Eu no podia acariciar teu rosto e
cheirar, beijar teus cabelos, nem te beijar ou sorrir. No podia estar contigo sem ele.
Nenhuma intimidade houve entre ns duas, nenhum abandono ou confidncia. Ele
no deixava, dizia "no, no!". E nesta casa eu sempre obedeci!
Ana Maria - Menos quando teve um amante. (silncio) Perdeu a voz?
Virgnia - (cabea baixa) - Menos quando tive um amante.
Ana Maria - Ah!
Virgnia - Est vendo como uma me? Voc diz tantas coisas duras, me insulta,
nega o teu amor e eu no me ofendo, sofro mas no desejo a tua
infelicidade.(veemente) Estou aqui para te salvar. Ele mente...
Ana Maria - (corta, fantica) - No importa!
Virgnia - ...quando diz que todos os homens so negros, que no prestam e so
maus. Se voc soubesse como h homens lindos e claros (transportada), homens
cujas carcias fazem a gente gritar. Ele mente quando diz que este teu quarto o
mundo e que tudo o mais est podre. (agarrando-se na filha)Ana Maria, h tantas
coisas fora do teu, do meu quarto, tanta coisa para alm dos muros!
Ana Maria - S o meu quarto existe!
Virgnia - Mentira! O mar, sabe o que o mar? Ou ele nunca te falou do mar? E
nos
barcos? Mas isso no tudo. O que importa so os homens (transfigurada), como
so belos, mais doces do que uma mulher...Olha, enfiar os dedos assim pelos
cabelos de um homem! (faz em si o gesto)
Ana Maria - Como voc fez com o teu amante?
Virgnia - (sem ouvi-la) - Apertar nas mos o rosto de um homem, sentir nas mos
um
rosto vivo!
Ana Maria - Quem sabe se eu no fiz isso com o meu pai?
Virgnia - (sem ouvi-la) - Voc precisa conhecer os homens, Ana Maria, para
poder am-los e depois escolher um, para sempre...(doce) Poderamos ir, ns duas,
a um lugar que conheo, foi uma empregada minha que falou. Ela teve uma filha
que foi pra l e essa filha escrevia contando maravilhas, tanto que nunca mais
voltou. Para esse lugar vinham homens de todas as partes, at da Noroega!
(encantada) Marinheiros de cabelos louros anelados...
Ana Maria - Muito preto?
Virgnia - Preto nenhum. (sedutora) E l no como aqui e em outros lugares onde
a mulher s pode ter um homem.
Ana Maria - Muitos?
Virgnia - Muitos! (arrebatada) Vamos para esse lugar, Ana Maria. Vamos fugir s
ns duas. Eu te guio e ficarei junto, sempre. Chamarei homens claros de cabelos
louros e olhos zuis! Explicarei que voc cega. Depois, se voc quiser, poder
voltar, mas duvido. A filha da minha empregada no voltou, voc tambm no
voltaria.
Ana Maria - E voc?
Virgnia - Eu tambm no. Vamos, agora que Ismael est ocupado l embaixo
fazendo no sei o qu. Vamos! Depois ser tarde.
Ana Maria - No.
Virgnia - (contendo-se) No quer? Desconfia de mim? (agressiva) Eu quero tirar
voc deste quarto apertado como um tmulo! Ficar aqui morrer. Voc est morta.
Ana Maria - Eu amo meu pai.
Virgnia - Mas no desse amor que eu falo!
Ana Maria - desse amor que eu falo!
Virgnia - (espantada, sopro de voz) - No.
Ana Maria - (apaixonada) - Amor igual ao desse lugar dos marinheiros. Ele j me
amou assim, como um marinheiro branco (baixando a voz, enamorada) e de brao
tatuado, como um do livro, o nico branco do livro, tatuado no brao ou no peito,
no sei bem...(desafiando) passaa mo por mim, pelo meu rosto, vai sentir que eu j
fui amada.
Virgnia - (espantada) - Quando?
Ana Maria - Que importncia tem isso?
Virgnia - (agarrando a filha, enrouquecida) - Voc no podia fazer isso! Ele meu
e no teu!
Ana Maria - (exulrtante) - Deixou de ser teu h muito tempo! Quer que eu te diga
desde quando? Desde o dia em que voc se deu a um homem que no era ele. H
dezesseis anos. Voc morreu para ele como mulher, morreu!
Virgnia - Eu devia ter sentido que voc j no era mais pura, que tinha deixado de
ser pura. Foi intil a maldio da minha tia, voc , no uma menina, mas mulher,
como eu.
Ana Maria - Sou.
Virgnia - (veemente) -Mas quero que voc saiba que eu menti quando disse que te
amava, quando disse que voc era tudo para mim e...
Ana Maria - (corta) - Eu sabia!
Virgnia - Voc sempre foi minha inimiga!
PANO
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