Para Além Da "Guerra Suja
Para Além Da "Guerra Suja
Para Além Da "Guerra Suja
Autora:
Silvania Rubert
Doutoranda em Histria pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
silrubert@bol.com.br
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suplantou, em qualquer tempo, o delegado Cludio Guerra, da Polcia Civil do Esprito Santo,
na arte de matar (GUERRA, 2012, p.13). Cludio Guerra, um dos mais sanguinrios policiais da
ditadura civil-militar brasileira, hoje pastor da religio Evanglica, cumpre pena de priso
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recolhido em uma instituio para idosos, e desenvolve algumas atividades sociais sob a
superviso da Justia. Atuou no DOI-CODI, rgo subordinado ao Exrcito, de inteligncia e
represso do governo brasileiro durante o regime militar, que visava o combate direto contra
os chamados inimigos internos que representavam uma ameaa segurana nacional.
Para Rogrio Medeiros, Guerra um ardiloso e implacvel matador (p.13), atributos
estes que fizeram o regime militar logo recrut-lo para ser o autor de muitos de seus crimes.
Dentro deste jogo, ele foi importante pea, matou sem deixar rastros, imps maior percia aos
crimes, fato desejvel pela ditadura que no queria deixar rastros, pois tinha de legitimar-se
no poder, e a imprensa, mesmo sob censura, ainda encontrava pequenas aberturas para
denunciar os crimes. Segundo consta no livro, Guerra e Fleury foram recrutados pelos
desempenhos frente dos esquadres da morte do Esprito Santo e de So Paulo nos 1970, e
j por aquela poca eram tidos como os mais sanguinrios matadores para os que se
encontraram em atividades poltica de esquerda no Brasil. (GUERRA, 2012, p. 25).
Imps racionalidade ao processo de execues. Diferentemente do delegado Srgio
Paranhos Fleury que no agia com tanta discrio, trouxe a ideia de que os agentes da
represso atuassem em regies diferentes das suas de origem, a fim de eliminar ou diminuir
bastante o risco de serem identificados.
De todas as informaes trazias pode-se dizer que a de maior impacto foi sobre as
incineraes de combatentes assassinados pela ditadura. O ex-delegado deu uma lista de dez
presos polticos mortos pela tortura e incinerados na Usina Cambahyba, na cidade de Campos,
estado do Rio de Janeiro. Muitos foram mortos no centro de tortura e assassinatos conhecido
como Casa da Morte, situado na cidade Petrpolis, RJ. Algumas das vtimas, segundo o
relato, foram Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, David Capistrano, Ana Rosa Kucinski,
Joo Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, Wilson Silva, Joo Massena Melo, Eduardo Coleia
Filho, Jos Roman e Luiz Igncio Maranho Filho. Porm, ele no sabe precisar quantas
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pessoas tiveram seus corpos l incinerados. A usina, poca, era do ex-deputado federal e ex-
matou Arroyo e Fleury, Pomar (GUERRA, 2012, p.66). Pejota seria Paulo Jorge, tenente da
Polcia Militar do Esprito Santo, atirador de elite. Na pgina seguinte, o autor tambm
comenta sobre as brigas que existiam entre os rgos repressores e pessoas ligadas a eles.
Nessa poca, havia uma desavena entre o delgado Fleury, o Exrcito e o SNI. Fleury era
municiado de informaes pelo Cenimar, rgo da Marinha ao qual era mais ligado. Ainda
sobre as disputas entre os integrantes da represso, Guerra (2012, p.94) diz: A meu ver, no
havia uma fora dominante na comunidade. Na verdade, existiam muitas redes de informao
dentro dela, e os cimes e a disputa pelo poder dificultavam muitas vezes a comunicao
entre essas redes.
Alm da represso institucionalizada, grupos paraestatais foram criados. Os
esquadres da morte (nome dado aos grupos que agiam ilegalmente no combate aos
opositores ao regime, e formados, em sua maioria, por civis) criavam suas prprias leis no
combate aos militantes de esquerda no Brasil. Esse tipo de atitude era, inclusive, indicada
pelos militares. Exemplo disso foi a Poltica de Segurana Interna, criada pelo ento
presidente ditador Arthur da Costa e Silva. Segundo Guerra (2012 p.114), o documento
estabeleceu, entre outras coisas, que caberia aos comandantes militares de rea do Exrcito a
responsabilidade pelo planejamento e execuo das medidas para conter a subverso e o
terrorismo. No tardou para ficar visvel que os repressores agiam fora da lei e tambm fora
da cadeia de comando militar, ganhando cada vez mais autonomia e poder. As teses criadas
pelos rgos estatais sempre objetivavam justificar os crimes polticos, mostrando que as
aes no deveriam ter limites, a fim de que se banisse totalmente a ameaa comunista do
territrio brasileiro.
Somava-se a estrutura acima citada o apoio financeiro de alguns empresrios
brasileiros. O ex-delegado Cludio Guerra cita, inclusive, um restaurante chamado Angu do
Gomes, que chama de restaurante da conspirao: o restaurante, inaugurado em 1977
pelo portugus Baslio Pinto Moreira e por Joo Gomes, era associado a uma sauna e foi
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Irmandade Santa Cruz dos Militares, a Scuderie Le Cocp, o jogo do bicho, artistas, coronis e
prostitutas. Essa relao mascarou vrios crimes e aes violentas contra a
redemocratizao do Brasil (GUERRA, 2012, p.118). J a sauna que existia junto ao
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carregavam o explosivo detonou-o antes da hora prevista. At o cuidado de utilizar os
mesmos tipos de explosivos que os cubanos usavam eles tiveram.
O objetivo era convencer os adeptos da abertura de que se fazia necessria uma nova
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feriu-se gravemente. Segundo Guerra (2012, p.79), um erro primrio dos militares que
onda de represso, a fim de paralisar o processo de abertura poltica que havia se iniciado em
1974 quando o general Geisel entregou o governo a seu sucessor: um presidente civil. Em
1999 foi reaberto o inqurito policial sobre o caso, e se concluiu que havia provas para
incriminar Freddie Perdigo, mas ele morreu em 1997.
Segundo o depoimento de Guerra, a bomba explodiu antes por impercia do capito
Wilson, que no era especialista em explosivos, e estacionou o carro embaixo de fios de alta
tenso, cuja carga eltrica provocou a exploso da bomba. O acontecido no s atrapalhou os
planos de seus organizadores, como tambm representou um retrocesso nas pretenses de
formar uma opinio contrria abertura poltica. Para concluir esta parte, cita-se a fala de
Guerra (2012, p.171): Existia um sentimento de impunidade entre ns, porque fizemos a coisa
ostensivamente, sem preocupaes com eventuais testemunhas.
Sem dvida o tema das incineraes merece destaque, um negativo destaque, diga-se.
Ao mesmo tempo em que Cludio Guerra assume vrios crimes, exime-se de outros, dizendo,
por exemplo, que apenas levou os corpos para serem incinerados na usina, mas no os
matou. Afirma, tambm, que os fornos eram usados por outros agentes da represso, o que
torna imprecisos os dados sobre o nmero de incineraes, bem como a identificao dos
mortos.
Outra questo que surge no decorrer da leitura de para onde foram todas essas
pessoas envolvidas com tantos crimes? O autor cria uma ponte entre o fim (ou pelo menos
grande diminuio) das perseguies e o advento de organizaes criminosas, mas no
necessariamente de cunho poltico, como ocorria durante a ditadura civil-militar no Brasil, ao
dizer que: a decadncia dos aparelhos de combate ao comunismo coincide com o
crescimento de organizaes criminosas ligadas ao trfico de drogas, formao de milcias e
principalmente o jogo do bicho. O know-how conquistado com o aparato do Estado agora
serviria ao submundo do crime organizado (GUERRA, 2012, p.194). O prprio Cludio Guerra
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Janeiro, e diz que ganhava muito bem. Sendo assim, vemos a mais uma, dentre tantas,
sequela do regime ditatorial no Brasil: a criao de grupos e faces criminosas, que podem
estar atuando, ainda hoje, em outras frentes, embebidas no ideal de impunidade.
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