Delatores No Tempo Ditadura Militar
Delatores No Tempo Ditadura Militar
Delatores No Tempo Ditadura Militar
. Angelo Priori
Doutor em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (UNESP). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Maringá, PR - BRASIL
lattes.cnpq.br/9430424742681196
angelopriori@uem.br
orcid.org/0000-0002-9155-5428
. Leandro Brunelo
Doutor em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Maringá, PR - BRASIL
lattes.cnpq.br/1444034355199758
lbrunelo@uem.br
orcid.org/0000-0001-5613-4591
Recebido: 23/05/2020
Aprovado: 08/02/2021
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1. Introdução
No filme “O que é isso companheiro?”, de Bruno Barreto (1997), inspirado
no livro homônimo de Fernando Gabeira (2009), existem duas cenas que passam
quase desapercebidas pelos espectadores preocupados com o enredo
cinematográfico. Para relembrar, o filme (uma mescla de ficção e realidade) foi
lançado nos EUA, com o título de Four days in september, e narra o sequestro
do embaixador americano Charles Burke Elbrick, ocorrido no mês de setembro
de 1969, na cidade do Rio de Janeiro, organizado pelo Movimento Revolucionário
8 de Outubro (MR-8) e pela Aliança Libertadora Nacional (ALN), duas organizações
da resistência armada contra a Ditadura Militar no Brasil. O filme foi sucesso de
bilheteria e chegou a concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro naquele
ano. No Brasil, o filme ganhou grande repercussão, proporcionando acalorado
debate tanto entre a crítica especializada quanto entre a intelectualidade e a
esquerda, sobretudo a que tinha sobrevivido à forte repressão da ditadura.1
A outra cena ocorre logo depois (a partir do minuto 53:16”). Júlio (Caio
Junqueira), militante do MR-8, é encarregado pela direção de buscar comida para
1
Não vem ao caso e não é objetivo deste artigo delinear as críticas suscitadas tanto ao livro
quanto ao filme. Para isso, remetemos à coletânea organizada e publicada pela Fundação
Perseu Abramo, logo após o lançamento do filme (REIS FILHO et. al., 1997).
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Para este estudo, buscamos exemplificar alguns casos que podem ser
úteis para a compreensão e a análise do papel dos informantes e dos delatores,
que trabalhavam como linha auxiliar dos órgãos de segurança no Brasil. No caso
do Brasil, encontramos muitas informações, dispersas, é verdade, sobre
delações, na documentação arquivada pelos órgãos de segurança.
2
DOPS é uma sigla usual para identificar a polícia política nos estados. Em alguns estados
chamava-se Departamento de Ordem Política e Social (logo, utiliza-se o DOPS), em outros,
Delegacia de Ordem Política e Social (logo, a DOPS). No Paraná era Delegacia. Porém, para efeito
deste artigo, utilizaremos a sigla DOPS no masculino, já que é o mais usual na historiografia.
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Entre os temas que julgamos que precisam ser mais estudados estão os
da delação espontânea e do papel dos informantes colaboradores ou duplos. A
delação ainda é um tema aberto nas pesquisas historiográficas brasileiras.
Afortunadamente, alguns trabalhos já trazem essas preocupações, mesmo que
diluídas em textos mais abrangentes. É em meio a esse universo que procuramos
delinear o presente estudo.
3
Ressaltamos que o instituto da delação acompanha a história brasileira. Não é o caso aqui de
dar exemplos, mas precisamos indicar que alguns trabalhos extemporâneos à ditadura militar
são importantes para entender a questão da delação em conjunturas autoritárias. São os casos
dos livros de Elizabeth Cancelli (1994) e de Marcos Tarcísio Florindo (2006).
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do estado, para mostrar que as garras da vigilância estavam para além dos
grandes centros; e por fim um caso de estrangeiro, que era bastante recorrente
neste tipo de prática.
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Cláudia Monteiro (2007, p. 102), analisando a experiência dos militantes comunistas entre os
ferroviários de Curitiba, comenta sobre um indivíduo que se identificava com a letra "X", que
recorrentemente escrevia ao DOPS, informando das atividades realizadas pela célula Olga
Benário Prestes, do PCB, naquela cidade, entre os anos 1934-1945. Para a fonte, ver no DEAP, o
Fundo DOPS (Pasta temática 264.29, p. 211-212). Outros casos semelhantes, no mesmo período,
podem ser encontrados nas pastas 832.100, 833.101 e 834.101.
5
Em relação aos informes é pertinente salientar que também eram produzidos a partir de
informações levantadas por agentes da polícia política, infiltrados nos grupos de esquerda. Por
exemplo, no Informe n. 64-E/64, constavam informações de que o PCB pretendia realizar um
atentado contra o comandante do III Exército. O Informe n. 152-E2/65, remetido pelo
comandante da 5ª RM ao delegado do DOPS/PR, destacava que os comunistas usavam o teatro,
as associações de classe e os centros culturais como canais para difundir ideologias exógenas.
Em outro Informe, o de n. 75-E2/66, havia a afirmação de que o PCB furtaria as armas das
Organizações Militares com o propósito único de preparação de guerrilhas (DEAP, Fundo DOPS,
pasta 1465, s/p.). Portanto, a DOPS precisava estar atenta, vigiando e reprimindo os focos e as
ações dos comunistas, e manter o comando da 5ª RM sempre informado (BRUNELO, 2009).
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O Centro Popular de Cultura do Paraná (CPC/PR) é uma das organizações populares que o DOPS
manteve em constante vigilância (DEAP, Fundo DOPS, pasta 212.24).
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Alcina Silveira ou Alcina Chamine da Silveira teve seu primeiro registro no DOPS/PR em
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16/12/1950 e a última anotação em sua ficha foi em 17/12/1971 (DEAP, Fundo DOPS, ficha nominal
41.463).
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José Rodrigues Vieira Netto teve vida longa nas anotações do DOPS. O primeiro registro é de
23/08/1944 e o último datado é de 21/02/1972, já que há uma última anotação sem data,
informando que o mesmo havia “falecido”, conforme suas fichas nominais (DEAP, Fundo DOPS,
fichas nominais 45.992 e 45.994) e pastas individuais (DEAP, Fundo DOPS, pastas individuais
2193.400 e 2194.400). Vieira Netto nasceu em 15 de dezembro de 1912 e faleceu em 05 de maio
de 1973, em decorrência de um câncer no pulmão.
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Embora esses grupos não tenham tido uma ação prática mais eficaz, a
documentação do DOPS (DEAP, Fundo DOPS, pasta 1084.131) demonstra que a
polícia política fazia um constante monitoramento dos G-11 e depois do golpe de
31 de março de 1964, prendeu a maioria das lideranças que o integravam9. Para a
polícia política, esses grupos eram tratados como células comuno-petebistas, o
que de certa forma contribui com a confusão apresentada pelos delatores acima,
confundindo muitas vezes os participantes do Grupo dos Onze com militantes
comunistas.
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Vários integrantes do Grupo dos Onze prestaram depoimentos à Comissão Estadual da Verdade
do Paraná. Alguns desses depoimentos foram publicados por Carla Silva e Alfredo Batista (2016).
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Desde o final do século XIX houve uma intensa imigração de poloneses e ucranianos para o
Estado do Paraná. Esses grupos se radicaram na capital e no seu entorno e, também, na região
dos Campos Gerais. No século XX foram constantemente monitorados pelo DOPS.
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Manteve-se a grafia do original.
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Como ela confessa na delação que fez ao comandante da 5ª Região Militar, Dário Coelho, tem
enviado listas de nomes de comunistas a várias autoridades.
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Na documentação do DOPS não aparece nenhuma informação sobre a sua nacionalidade.
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Acreditamos que o DOPS não tenha dado muita importância para essas
denúncias, pois não há registro de que o tal Bogdan Bogusiak tenha sido
investigado ou preso. Pelo menos, na documentação do DOPS, não localizamos
nenhuma pasta individual ou ficha nominal em seu nome. Em outro documento,
há uma denúncia contra um tal M. Felipedes, de origem grega e tachado de
agente de Moscou, “proprietário da casa de Carnes A Democracia”, que distribuía
o jornal Novos Rumos, era acusado de querer “fundar nesta capital o sindicato
das empregadas domésticas” e de ter se encontrado com “Luis Carlos Prestes
no sindicato do edifício Mauá” (DEAP, Fundo DOPS, pasta 797.94, p. 102). Não foi
possível saber se os dois denunciados eram a mesma pessoa, embora as
informações sejam coincidentes. M. Felipedes também não foi fichado no
DOPS/PR.
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4. As práticas da delação
A narrativa documental das delações que detalhamos no tópico anterior
nos leva a fazer algumas reflexões. A primeira delas é pensar a prática da delação.
Na linguagem jurídica, delatar é diferente de denunciar. Uma denúncia
geralmente é uma peça acusatória que inicia um processo judicial. Atualmente é
apresentada pelo Ministério Público e que leva ao conhecimento do Poder
Judiciário um ato delituoso ou criminoso. No limiar da Ditadura Militar, quando
foram instaurados os primeiros Inquéritos Policiais Militares para julgar casos de
infração aos dispositivos da Lei de Segurança Nacional, a denúncia era realizada
por um promotor militar, que remetia à Justiça Comum, até 27 de outubro de
1965, quando por força do Ato Institucional No 2 (AI-2), os mesmos passaram a
ser remetido para a Justiça Militar (ARNS, 1985, p. 170 e ss.).
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Robert Gellately, no seu livro Apoiando Hitler (2011), mas em outros estudos
também, tem sustentado que as delações tiveram considerável importância nas
ações da Gestapo e no funcionamento do sistema de terror adotado na
Alemanha nazista. Na Espanha franquista, o Estado amparou e impulsionou o
exercício da delação, sobretudo de cidadãos comuns, nas grandes cidades, mas
também nas pequenas localidades rurais, com o objetivo de localizar e de punir
anarquistas, comunistas e guerrilheiros que sobreviveram aos horrores da Guerra
Civil Espanhola. Ángela Cenarro (2002) ressalta que as delações serviram para
azeitar a solidificada máquina repressora do regime, mas também para montar
as bases das futuras acusações e dos processos judiciais instaurados durante e
depois da guerra, contra os chamados “perdedores”, ou seja, os republicanos.
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Na época, o II exército compreendia os Estados de São Paulo e Mato Grosso, integrado pelas
2ª e 9ª Regiões Militares.
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Não é sem sentido que o demônio seja a mais expressiva imagem utilizada
para representar o comunista como um sujeito do mal. “O diabo é vermelho”,
como bem sentenciou Carla Rodeghero. A literatura especializada sobre o
anticomunismo no Brasil tem revelado uma impressionante e infindável lista de
vocábulos e expressões depreciativas contra os comunistas (ASSUNÇÃO, 2006;
IPÓLITO, 2016; MOTTA, 2002; PRIORI; MATHAIS; FIORUCCI, 2017; RODEGHERO,
2003; SILVA, R., 2017). “Madame Felicidade”, a inquieta delatora que vimos acima,
solicitava que a polícia extirpasse a “erva daninha”18 da sociedade (os comunistas)
para semear uma boa sementeira, ou seja, uma nova sociedade inaugurada
através da força de um golpe militar. Portanto, o anticomunismo nos remete à
ideologia do “perigo vermelho” e à disseminação de concepções e de projetos
conservadores de cunho autoritário. A ditadura militar, as prisões, os exílios, as
torturas e os desaparecimentos de pessoas, no pós-março de 1964, foram
resultados, por excelência, dessa cultura política.
18
“Erva daninha” cujo “sentido é atribuído dentro do imaginário social para se referir a algo que
nasce de forma espontânea e indesejada e interfere sempre de maneira negativa onde floresce,
nesse caso: na pátria” (SILVA, R., 2017, p. 89).
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Uma outra chave explicativa é a questão do medo. Em uma das cartas que
vimos acima, a autora expressava o temor de que as autoridades não
cumprissem com o seu destino de limpar a sociedade dos comunistas. Em outra
carta, dizendo-se ameaçado de morte, o vigário de Santa Amélia clamava por
uma limpeza dos comuno petebistas da cidade. Uma terceira manifestava
preocupação com a atuação das forças da repressão, pois segundo o autor,
estava havendo um “amolecimento” e, com isso, os comunistas já estavam
novamente “levantando a cabeça”. Esse temor contra o triunfo dos comunistas
é recorrente na maioria das denúncias.
Mas, como enfatiza Jean Delumeau, "nada é mais difícil de analisar do que
o medo, e a dificuldade aumenta ainda mais quando se trata de passar do
indivíduo ao coletivo" (2009, p. 29). No sentido estrito do termo, o medo individual
é uma “emoção-choque” que provoca uma tomada de consciência de um perigo
e que pode provocar a ameaça da conservação da vida humana, como por
exemplo, o medo de um acidente de avião ou de uma tempestade. E o coletivo?
Delumeau, ao pensar a transformação do individual ao coletivo, pergunta: "o que
se entende por coletivo?" e agrega dois significados. Primeiro: que coletivo pode
designar uma multidão, pensando a multidão das mais diversas formas, sofrendo
as ações de pânico e de medo (como por exemplo o medo do desabastecimento
provocado pela greve dos caminhoneiros em 2018, para ficar em um caso recente
do Brasil). Segundo: que coletivo pode ser um homem qualquer na qualidade de
amostra anônima de um grupo. Nos parece que os casos dos delatores que
estamos analisando se adequam mais a esta segunda característica, pois como
enfatiza, neste caso, Delumeau:
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