Marcos Bagno - Preconceito Linguistico
Marcos Bagno - Preconceito Linguistico
Marcos Bagno - Preconceito Linguistico
Marcos Bagno
Preconceito lingstico
o que , como se faz
CONTRA CAPA
Diz-se que o brasileiro no sabe Portugus e que Portugus
muito difcil. Estes so alguns dos mitos que compem um
preconceito muito presente na cultura brasileira: o lingstico. Tudo
por causa da confuso que se faz entre lngua e gramtica
normativa (que no a lngua, mas s uma descrio parcial dela).
Separe uma coisa da outra com este livro, que um achado.
Revista Nova Escola, maio de 1999.
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Edies Loyola
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escrita da Editora.
ISBN: 85-15-01889-6
48 e 49 edio: junho de 2007
EDIES LOYOLA, So Paulo, Brasil, 1999
Sumrio
Primeiras palavras
foram
acrescentados,
muitos
sofreram
profunda
consciente,
poltica,
declaradamente
parcial.
Peo
MARCOS BAGNO
mbagno@terra.com.br
[pg. 12]
I
A mitologia
do preconceito lingstico
Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma forte
tendncia a lutar contra as mais variadas formas de preconceito, a
mostrar que eles no tm nenhum fundamento racional, nenhuma
justificativa, e que so apenas o resultado da ignorncia, da
intolerncia ou da manipulao ideolgica.
Infelizmente, porm, essa tendncia no tem atingido um tipo
de preconceito muito comum na sociedade brasileira: o preconceito
lingstico. Muito pelo contrrio, o que vemos esse preconceito ser
alimentado diariamente em programas de televiso e de rdio, em
colunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem
ensinar o que certo e o que errado, sem falar, claro, nos
instrumentos tradicionais de ensino da lngua: a gramtica
normativa e os livros didticos.
O preconceito lingstico fica bastante claro numa srie de
afirmaes que j fazem parte da imagem (negativa) que o
brasileiro tem de si mesmo e da lngua falada por aqui. Outras
afirmaes so at bem-intencionadas, mas mesmo assim compem
uma espcie de preconceito positivo, que tambm se afasta da
realidade. Vamos examinar [pg. 13] algumas dessas afirmaes
falaciosas e ver em que medida elas so, na verdade, mitos e
fantasias que qualquer anlise mais rigorosa no demora a
derrubar.
Mito n 1
A lngua portuguesa falada no Brasil
apresenta uma unidade surpreendente
que
se
baseou,
durante
muito
tempo,
nesse
de
usufruir
diversos
servios
que
tm
direito
As referncias bibliogrficas completas de todas as obras citadas ao longo deste livro se encontram no
final do volume.
dos
reconhecimento
da
falantes
[pg.
18]
das
variedades
existncia
de
no-padro.
muitas
normas
essa
realidade
lingstica
marcada
pela
So, de fato, boas novas! Espero que elas desam das altas
esferas governamentais e se propaguem pelas salas de aula de todo
o pas! [pg. 19]
Mito n 2
Brasileiro no sabe portugus /
S em Portugal se fala bem portugus
mundialmente,
propagada
tambm
em
nvel
por
comodidade
por
uma
razo
histrica,
termo portugus brasileiro, por ser mais claro e marcar bem essa
diferena.
Na lngua falada, as diferenas entre o portugus de Portugal e
o portugus do Brasil so to grandes que muitas vezes surgem
dificuldades de compreenso: no vocabulrio, nas construes
sintticas, no uso de certas expresses, sem mencionar, claro, as
tremendas diferenas de pronncia no portugus de Portugal
existem vogais e consoantes que nossos ouvidos brasileiros custam a
reconhecer, porque no fazem parte de nosso sistema fontico3. E
muitos estudos tm mostrado que os sistemas pronominais do
portugus europeu e do portugus brasileiro so totalmente
diferentes.
Por exemplo, os pronomes o/a, de construes como eu o vi e
eu a conheo, esto praticamente extintos [pg. 24] no portugus
falado no Brasil, ao passo que, no de Portugal, continuam firmes e
fortes. Esses pronomes nunca aparecem na fala das crianas
brasileiras nem na dos brasileiros no-alfabetizados e tm baixa
ocorrncia na fala dos indivduos cultos, o que demonstra que so
exclusivos da lngua ensinada na escola, sobretudo da lngua
escrita, no fazendo parte, ento, do repertrio da lngua materna
dos brasileiros. Nossas crianas usam sem problema me e te Ela
me bateu, Eu vou te pegar , mas o/a jamais, que so
substitudos por ele/ ela: Eu vou pegar ele, Eu vi ela. As formas
lo e la peg-lo, v-la , ento, nem pensar. Se as crianas no
usam porque no ouvem os adultos usar, e se os adultos no usam
3
Assistindo um dia desses a televiso portuguesa por cabo, ouvi os verbos uprar e dlibrar. Consegue
adivinhar o que ? Sim, operar e deliberar. Tambm comum os portugueses evitarem hiatos como a
gua introduzindo um [y] e pronunciando aygua. Alm disso, se uma palavra termina em s e a prxima
comea com c, os portugueses fundem essas duas consoantes numa s, pronunciada como o x de xixi:
outros cinco pronunciado otruxincu. So realizaes fonticas totalmente estranhas lngua do
brasileiro.
Eu mesmo uma vez passei por uma situao embaraosa: um amigo meu, francs, me enviou uma fita
cassete com msicas do compositor portugus Jos Afonso (por sinal, maravilhoso) e me pediu para tirar
a letra de uma delas, de que ele gostava muito. Depois de algumas tentativas, acabei desistindo, porque
havia muitas frases inteiras das quais eu no pescava simplesmente nada. Ele, espantado, me perguntou:
Mas ele no canta em portugus? Tive de explicar ao meu amigo que havia grandes diferenas entre o
portugus do Brasil e o de Portugal. Mas eu tive a minha vingana. Pedi a esse mesmo amigo, pouco
depois, que transcrevesse a letra de uma cano gravada por uma cantor canadense, e ele teve a mesma
dificuldade, porque o francs do Canad s vezes pode ser incompreensvel para um falante do francs da
Frana...
neocolonialista,
tambm
afirma
uma
inverdade
empregada,
nas
diferenas
de
aptido
individual
para
como
veculo
de
intercmbio
cultural,
comercial,
continuar
alimentando
essa
fantasia
de
que
os
PEITO;
l, todos dizem
TENHO
PAITO,
e l se diz
TANHO.
Aqui se diz
VERO
e l se diz
V'RO.
lembrou Pedrinho.
Sim, o povo de l troca muito o v pelo B e vice-versa.
Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha
concluiu Narizinho.
ridicularizado
por
Lobato
na
personagem
do
professor
Mito n 3
Portugus muito difcil
disciplina
fascinante
foi
transformada
numa
cincia
transformando
essa
suposta
dificuldade
do
privilegiadas.
Essa
entidade
mstica
sobrenatural
Mito n 4
As pessoas sem instruo falam tudo errado
ETIMOLOGIA
ORIGEM
branco
>
blank
germnico
brando
>
blandu
latim
cravo
>
clavu
latim
dobro
>
duplu
latim
escravo
>
sclavu
latim
fraco
>
flaccu
latim
frouxo
>
fluxu
latim
grude
>
gluten
latim
obrigar
>
obligare
latim
praga
>
plaga
latim
prata
>
plata
provenal
prega
>
plica
latim
com
L,
independentemente
de
terem
ou
no
dificuldades
rotacismo
participou
da
formao
da
lngua
VOC
em vez de
TU,
e s isso quanto no
Mito n5
O lugar onde melhor se fala portugus
no Brasil o Maranho
como
sabemos,
devido
reorganizao
do
sistema
Faltam
argumentos
cientficos
rigorosos,
por
parte
do
O material do Projeto NURC pode ser consultado nos vrios livros publicados com as transcries das
fitas gravadas nas cincos diferentes cidades que compem o projeto (Recife, Salvador, Rio de Janeiro,
So Paulo e Porto Alegre). Alguns desses livros so: CASTILHO & PRETI, A linguagem falada culta na
cidade de So Paulo (So Paulo, T. A. Queiroz/FAPESP, 1987 - vol. 1 - e 1988 - vol. 2); CALLOU &
LOPES, A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, UFRJ, 1992 - vol. 1 -,
1993 - vol. 2 - e 1994 - vol. 3); HILGERT, A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre (UFRS,
1997, vol. 1); MOTA & ROLLEMBERG, A linguagem falada culta na cidade do Salvador (UFBA, 1994,
vol. 1); S, CUNHA, LIMA & OLIVEIRA, A linguagem falada culta na cidade do Recife (UFPE, 1996).
investiga o uso da lngua no Rio de Janeiro nas classes sociais nocultas (isto , pessoas que no cursaram universidade)6. Alm disso,
esse tipo de concordncia se verifica de Norte a Sul do Brasil e
tambm em Portugal, segundo pesquisas recentes da professora
Maria Marta Scherre. Essa mesma pesquisadora defendeu, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma tese de doutorado com
o ttulo Reanlise da concordncia [pg. 50] nominal em portugus,
com 555 pginas, que hoje uma referncia obrigatria para quem
se aventurar a emitir opinies a respeito. Scherre mostra que, ao
contrrio do que pensa Cipro, aqueles fenmenos de concordncia
so, na verdade, altamente explicveis. Portanto no representam
uma mera esquisitice dos paulistanos, muito menos um horror.
Convm salientar que a determinao das normas culta e noculta uma questo de grau de freqncia das variantes (o que os
normativistas considerariam erros ou acertos). Por exemplo, coisas
como os menino tudo ou houveram fatos podem aparecer na fala
de brasileiros cultos.
preciso abandonar essa nsia de tentar atribuir a um nico
local ou a uma nica comunidade de falantes o melhor ou o pior
portugus e passar a respeitar igualmente todas as variedades da
lngua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura. Todas
elas tm o seu valor, so veculos plenos e perfeitos de comunicao
e de relao entre as pessoas que as falam. Se tivermos de
incentivar o uso de uma norma culta, no podemos faz-lo de modo
absoluto, fonte do preconceito. Temos de levar em considerao a
presena de regras variveis em todas as variedades, a culta
inclusive. [pg. 51]
6
A anlise de alguns fenmenos variveis do portugus falado na cidade do Rio de Janeiro, com base no
acervo do Projeto CENSO, se encontra no livro organizado por SILVA & SCHERRE, Padres
sociolingsticos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro/UFRJ, 1996.
Mito n 6
O certo falar assim
porque se escreve assim
lngua, para que todos possam ler e compreender o que est escrito,
mas preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma
msica: cada instrumentista vai interpret-la de um modo todo seu,
particular!
O pintor belga Ren Magritte (1898-1967) tem um quadro
famoso, chamado A traio das imagens, no qual se v a figura de
um cachimbo e embaixo dela a frase escrita: Isto no um
cachimbo.
dois
mil
anos,
os
estudos
gramaticais
se
dedicaram
horror,
felicidade,
histeria,
pavor...
Depois
tente
para
essas
mesmas
regras
da
lngua
literria
insistiu
muito
para
que
seus
alunos
no
isso,
temos
de
desconfiar
desses
livros
que
se
Mito n 7
preciso saber gramtica
para falar e escrever bem
palavras
so:
Gramtica
instrumento
livro
indispensveis
didtico
como
ali
adotado
antnimos,
no
ensinava
coletivos
coisas
anlise
sinttica...
Por que aquela declarao um mito? Porque, como nos diz
Mrio Perini em Sofrendo a gramtica (p. 50), no existe um gro
de evidncia em favor disso; toda a evidncia disponvel em
contrrio. Afinal, se fosse assim, todos os gramticos seriam
grandes escritores (o que est longe de ser verdade), e os bons
escritores seriam especialistas em gramtica. [pg. 62]
no
poema
Aula
de
Portugus
tambm
criador
da
tragdia
grega.
Que
gramtica
eles
como
dissemos,
existe
na
sociedade,
Mito n8
O domnio da norma culta
um instrumento de ascenso social
Este mito, que vem fechar nosso circuito mitolgico, tem muito
que ver com o primeiro, o mito da unidade lingstica do Brasil.
Esses dois mitos so aparentados porque ambos tocam em srias
questes sociais. muito comum encontrar pessoas muito bemintencionadas que dizem que a norma padro conservadora,
tradicional, literria, clssica que tem de ser mesmo ensinada nas
escolas porque ela um instrumento de ascenso social. Seria
ento o caso de dar uma lngua queles que eu chamei de semlngua?
Ora, se o domnio da norma culta fosse realmente um
instrumento de ascenso na sociedade, os professores de portugus
ocupariam o topo da pirmide social, econmica e poltica do pas,
no mesmo? Afinal, supostamente, ningum melhor do que eles
domina a norma culta. S que a verdade est muito longe disso
como bem sabemos ns, professores, a quem so pagos alguns dos
salrios mais obscenos de nossa sociedade. Por outro lado, um
grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo
primrio, mas que seja dono de milhares de cabeas de gado, de
indstrias agrcolas e detentor de grande influncia poltica em sua
regio vai poder falar vontade sua lngua de caipira, com todas
as formas sintticas consideradas erradas pela gramtica [pg. 69]
II
O crculo vicioso
do preconceito lingstico
denominar
Santssima
Trindade
do
preconceito
gramtica
tradicional,
em
sua
vertente
normativo-
na
mentalidade
das
pessoas
que
as
atitudes
vou
os comandos
pormenorizado
de
muitas
dessas
manifestaes
3. Um festival de asneiras
Na mesma linha de conduta preconceituosa se encontra o livro
No erre mais!, de Luiz Antonio Sacconi. A edio que tenho a 23a,
de 1998, o que mostra o amplo sucesso da obra, um verdadeiro bestseller. Trata-se, contudo, de um prato cheio (420 pginas!) para
quem desejar ver, em letra impressa, a perpetuao de todos os
preconceitos que examinamos na primeira parte deste livro.
2
LI, Charles & THOMPSON, Sandra. Chinese, in COMRIE, B. (ed.), The World's Major Languages,
London, Routledge, 1987, pp. 824-825.Traduo minha.
pior
de
tudo
enxurrada
de
expresses
Hoje em dia existem pessoas que fazem curso superior em greves, formam-se no
assunto e mostram-se to competentes [pg. 86] no ofcio, que decidem em nome
de toda a classe que representam: pela continuidade da greve! (p. 10).
Recentemente, todavia, um comentarista de futebol, membro do PT, corintiano,
resolveu dizer, no ar, mais asneiras do que comumente diz sobre aquilo que diz
entender: futebol (p. 13).
Superinteressante, dezembro de 1998, pp. 82 e 84. Essa matria da revista, muito bem
elaborada, apia-se em depoimentos de alguns importantes conhecedores das lnguas
indgenas brasileiras, inclusive aquele considerado o maior deles, o professor Aryon
Rodrigues, da Universidade de Braslia.
GEHRHARDT. Na
4. Beethoven no danado!
Nossa ltima investigao da presena epidmica (para usar
de novo o termo proposto por Arnaldo Niskier) do preconceito
lingstico nos comandos paragramaticais usar como material de
anlise uma coluna de jornal chamada Dicas de Portugus,
assinada por Dad Squarisi.
Vamos reproduzir o texto tal como publicado no Dirio de
Pernambuco de 15/11/98. Essa mesma coluna, porm, j tinha sido
estampada no Correio Braziliense algum tempo antes (22/6/96),
poca em que o presidente Fernando Henrique Cardoso, numa
visita a Portugal, acusou os brasileiros de serem todos caipiras,
declarao infelicssima e desastrosa (caipira no pode ser usado
como ofensa), com a qual, todavia, Squarisi parece concordar
plenamente, j que qualifica o presidente de iluminado. [pg. 94]
A republicao da coluna mais de dois anos depois prova que se
trata de material distribudo por agncia de notcias, com
Portugus ou Caipirs?
Dad Squarisi
Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundo cheinho de jecastatus. direita, esquerda, frente, atrs, s se v uma paisagem.
Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros
desconfiados. Um s um iluminado. Pobre peixinho fora
d'gua! To longe da Europa, mas to perto de paulistas, cariocas,
baianos e maranhenses.
Antes tarde do que nunca. A definio do carter tupiniquim
lanou luz sobre um quebra-cabea que atormenta este pas capiau
desde o sculo passado. Que lngua falamos? A resposta veio das
terras lusitanas.
Falamos o caipirs. Sem nenhum compromisso com a
gramtica portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, ns era, eles era.
Por isso no fazemos concordncia em frases como No se ataca as
causas ou Vende-se carros.
Na lngua de Cames, o verbo est enquadrado na lei da
concordncia. Sujeito no plural? O verbo vai atrs. Sem choro nem
vela. Os sujeitos causas e carros esto no plural. O verbo, vaquinha
de prespio, deveria acompanh-los. Mas se faz de morto. O matuto,
ingnuo, passa batido. Sabe por qu?
O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ao
expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ao) [pg.
95] o outro lado. Passivo, sofre a ao: O outro lado (sujeito)
em
poucos
pargrafos,
autora
conseguiu
reunir
as
palavras
de
contedo
semntico
fortemente
deslumbrados,
tupiniquim,
[pg.
96]
capiau,
no
existem).
Me
ocuparei
aqui
apenas
do
fssemos
aplicar
truque
sugerido
pelas
gramticas
assim, afixada num carro? Como disse Manuel Said Ali, ela s
servir para fazer o leitor duvidar da sanidade mental de quem a
escreveu.
Em outras ocasies, apenas as oraes na voz passiva atingem
o efeito desejado: Animais mortos foram trazidos com a enchente.
Aplicando o truque: Animais mortos se trouxeram com a
enchente... Algum diz isso assim?
Podemos tambm perguntar por que Vende-se esta casa
igual a Esta casa vendida e somente a isso? Por que no dizer
que tambm igual a Esto vendendo esta casa, Algum est
vendendo esta casa etc.?
Alm disso, a substituio de mo nica: Alugam-se salas
igual a Salas so alugadas, mas a substituio no sentido
contrrio no funciona: De que so feitos esses doces? pode ser
substitudo por De que se fazem esses doces? ou por De que esses
doces se fazem? sero essas construes naturais, espontneas,
caractersticas da lngua portuguesa? Me parece que no. [pg. 99]
Se na capa de uma revista sobre telenovelas est escrito
Henrique preso isso equivale a Henrique se prende?
Uma reportagem intitulada O que fazer quando se tem
problemas com o vizinho tambm poderia chamar-se O que fazer
quando so tidos problemas com o vizinho?
Onde est, portanto, a alegada equivalncia?
Um dia desses, meu filho de 9 anos chegou em casa revoltado
porque a professora queria que, numa festa da escola, as meninas
danassem uma msica de Beethoven. Sua reao foi dizer: No se
dana Beethoven! Na mesma hora pensei em como ficaria essa frase
substituda por sua equivalente na voz passiva analtica:
Beethoven no danado! Faz algum sentido para voc? Para mim
Est claro que em (1) temos uma orao na voz ativa em que o
sujeito indeterminado e o objeto de MISTURA--SE GUA. J em (2)
o sujeito passa a ser GUA e a partcula se indica que se trata de um
verbo reflexivo. [pg. 100]
A posio dos elementos no enunciado, quando alterada, altera
tambm a interpretao de seu significado, desviando-se do efeito
pretendido pelo falante. o que acontece com
(3) No se encontra Joo no prdio.
(4) Joo no se encontra no prdio.
o sujeito.
da
orao
MUITA
GENTE.
Em (6)
o sujeito
Teremos
de
incluir
Portugal
entre
as
provncias
da
Caipirolndia?
Por fim, Dad Squarisi apia-se no nome glorioso de Cames (e
glorioso mesmo!) para justificar seus ataques [pg. 103] grosseiros
4
III
A desconstruo
do preconceito lingstico
1. Reconhecimento da crise
De que modo poderemos romper o crculo vicioso do preconceito
lingstico? Como conseguiremos escapar do igap estagnado e
mergulhar nas guas dinmicas e vivificantes do grande rio da
lngua?
Uma
coisa
no
podemos
deixar
de
reconhecer:
existe
como
Etipia
ndia,
exemplos
clssicos
de
Outros termos empregados indistintamente pelos prescritivistas so: norma padro, lngua padro,
lngua culta, padro culto. Todos eles, porm, carecem de uma definio terica rigorosa, sendo usados
basicamente como um sinnimo geral de bom portugus, em contraste com tudo o que no
portugus.
lingstica,
que
se
baseiam
exclusivamente
na
norma
reconhecem
tranqilamente
gramaticalidade,
declaradamente
didtico--pedaggico,
que
sirva
de
2. Mudana de atitude
Enquanto essa gramtica no chega, temos de combater o
preconceito lingstico com as armas de que dispomos. E a primeira
campanha a ser feita, por todos na sociedade, a favor da mudana
de atitude. Cada um de ns, professor ou no, precisa elevar o grau
da prpria auto-estima lingstica: recusar com veemncia os velhos
argumentos que visem menosprezar o saber lingstico individual
de cada um de ns. Temos de nos impor como falantes competentes
de nossa lngua materna. Parar de acreditar que brasileiro no
sabe portugus, que portugus muito difcil, que os habitantes
da zona rural ou das classes sociais mais baixas falam tudo
errado. Acionar nosso senso crtico toda vez que nos depararmos
com um comando paragramatical e saber filtrar as informaes
realmente teis, deixando de lado (e denunciando, de preferncia)
as afirmaes preconceituosas, autoritrias e intolerantes.
Da parte do professor em geral, e do professor de lngua em
particular, essa mudana de atitude deve refletir-se na noaceitao de dogmas, na adoo de uma nova postura (crtica) em
relao a seu prprio objeto de trabalho: a norma culta.
Do ponto de vista terico, esta nova postura pode ser
simbolizada numa simples troca de slaba. Em vez de REPETIR
alguma coisa, o professor deveria REFLETIR sobre [pg. 115] ela.
Diante da velha doutrina gramatical normativa, o professor no
deveria limitar-se a transmiti-la tal e qual ela se encontra
compendiada nos manuais gramaticais ou nos livros didticos.
necessrio lanar dvidas sobre o que est dito ali,
questionar a validade daquelas explicaes, filtr-las, tomando
inclusive como base seu prprio saber lingstico, devidamente
assinando
revistas
especializadas,
filiando-se
da
gramtica
normativa
mais
estrita,
obsesso
Hard em ingls significa duro, rgido, enquanto soft significa macio, malevel. Qual dessas duas
opes de ensino voc acha que nossos alunos escolheriam se tivessem chance?
na
reproduo
dos
velhos
vcios
gramatiqueiros
4. O que erro?
Outro modo interessante de romper com o crculo vicioso do
preconceito lingstico reavaliar a noo de erro. A noo
tradicional (eu diria at folclrica) de erro que permite que pessoas
como Sacconi escrevam livros absurdos como No erre mais! e
vendam milhares de exemplares deles.
Como vimos na primeira parte do livro, o Mito 6 expressa a
prtica milenar de confundir lngua em geral com escrita e, mais
reduzidamente ainda, com ortografia oficial. A tal ponto que uma
elevada porcentagem do que se rotula de erro de portugus , na
verdade, mero desvio da ortografia oficial. O vigor desse mito se
com
ortografia
do
portugus,
tambm
admite
que
ultrapassa
os
limites
tericos
da
suposta
ponto
de
equilbrio
entre
dois
eixos:
da
adequabilidade e o da aceitabilidade.
Quando falamos (ou escrevemos), tendemos a nos adequar
situao de uso da lngua em que nos encontramos: se uma
situao formal, tentaremos usar uma linguagem formal; se uma
situao descontrada, uma linguagem descontrada, e assim por
diante. Essa nossa tentativa de adequao se baseia naquilo que
consideramos ser o grau de aceitabilidade do que estamos dizendo
por parte de nosso interlocutor ou interlocutores. Podemos
representar tudo isso graficamente mais ou menos assim:
6. A parania ortogrfica
A atitude tradicional do professor de portugus, ao receber um
texto produzido por um aluno, procurar imediatamente os erros,
direcionar toda a sua ateno para a localizao e erradicao do
que est incorreto. uma preocupao quase exclusiva com a
forma, pouco importando o que haja ali de contedo. sobretudo
aquilo que chamo de parania ortogrfica: uma obsesso neurtica
para que todas as palavras tragam o acento grfico, que todos os
grega
no
tem
uma
casta
sacerdotal
[pg. 136]
Ver o interessante prefcio de Miriam Lemle ao livro Leitura, ortografia e fonologia, de Myrian
Barbosa da Silva.
4
Este quadro inspira-se no da p. 32 do livro de Myrian Barbosa da Silva, com pequenas alteraes.
Gosto de propor o seguinte desafio s pessoas que ainda se iludem com o mito de que o certo
escrever assim porque se fala assim: voc sabia que a letra s pode representar o som do J em j? Depois
de alguns momentos de reflexo, dou a resposta: na pronncia do Rio de Janeiro, de Belm ou de Lisboa,
numa palavra como MESMO O S tem som de J, e o prprio nome de Lisboa na fala de seus nativos se
pronuncia lijboa. Nessas pronncias, uma frase como AS MESMAS BOAS GAROTAS soa aj mejmaj boaj
garotax, por causa de caractersticas fonticas tpicas do portugus (culto inclusive) falado nesses locais.
Alm disso, na fala no-culta do Rio de Janeiro comum a pronncia mermo ou me'mo para o que se
escreve MESMO. A complexidade da relao letra-som, como se v, muito maior do que as pessoas em
geral pensam, sobretudo quando se leva em conta todas as variedades nacionais, regionais, sociais,
estilsticas etc. da lngua.
acontecem
nas
outras
reas
do
conhecimento,
DEZ CISES
para um ensino de lngua
no (ou menos) preconceituoso
1) Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma lngua
um usurio competente dessa lngua, por isso ele SABE essa lngua.
Entre os 3 e 4 anos de idade, uma criana j domina integralmente
a gramtica de sua lngua. Sendo assim,
[pg. 145]
IV
O preconceito contra a lingstica
e os lingistas
ser
substitudas
por
novas
concepes
mais
Tradicional,
funcionando
como
uma
ideologia
centros
de
pesquisa
de
excelncia
reconhecida
anticientfico
que
envolve,
nos
meios
de
com
professores
despreparados
pessimamente
sobre
lngua
linguagem
algo
que
podemos
Como j comentei esse texto mais atrs (pp. 80-81), vou apenas
chamar a ateno para o seguinte fato: Napoleo Mendes de
Almeida morreu em 1998 (aos 87 anos). Se tivesse escrito esse
verbete
at
1930,
seria
mais
fcil
entender
sua
postura
cincia
lingstica
ainda
no
tinha
se
instalado
tambm
deve
existir, na
mentalidade
de
seus
uma das moas bonita da sala, ou Ele um dos deputados inscrito para falar?
Porque no se quer dizer que ela a nica moa bonita, nem que o deputado o
nico inscrito. Das moas bonitas, ela uma. Dos deputados inscritos para falar,
ele um. Dos que levantaram bandeira, Gilson um. Ento Gilson foi um dos que
levantaram bandeira.
E agora, ao ataque:
Alguns lingistas (alguns), idiotas, diro que a lngua falada no merece reparo,
que a fala sempre boa etc. Esses ociosos no conseguem perceber que os homens
no estavam na mesa de um boteco, batendo papo. Estavam falando para o pas,
sobre um assunto tcnico, usando linguagem teoricamente culta. Quem assiste a
esse tipo de transmisso normalmente acredita nessas pessoas, tem-nas como
modelo. Adolescentes que vo fazer vestibular ouvem o cidado dizendo de que,
de que, de que e acham que isso o mximo. A Fuvest faz uma questo a
respeito, como j fez h dois ou trs anos. E muitos, ingenuamente, erram. E
alguns idiotas, ociosos, dizem que a fala sempre boa, que isso e aquilo. [pg. 160]
nas
mais
diversas
ocasies
contra
projeto,
interessa
defender
portugus
ortodoxo
de
uns
ANEXO
Carta de Marcos Bagno
revista Veja
de
uma
atitude
anticientfica
dogmtica
at
ataques
pessoais
(chamando
os
lingistas
de
doutrina
gramatical
normativo-prescritiva,
cuja
nica forma 'certa' de falar a que se parece com a escrita e o de que a escrita
o espelho da fala e, sendo assim, seria preciso 'consertar' a fala do aluno para
evitar que ele escreva errado. Essas duas crenas produziram uma prtica de
mutilao cultural que, alm de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando
sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de
que a escrita de uma lngua no corresponde inteiramente a nenhum de seus
dialetos, por mais prestgio que um deles tenha em um dado momento histrico.
que
ningum
mais
saiba
diferenciar
sujeito
de
Se
existe,
porm,
uma
grande
resistncia
contra
Referncias
do
portugus
falado.
Campinas,
Editora
da
UNICAMP.
CEGALLA, Domingos P. (1990): Novssima gramtica da lngua
portuguesa. 33a ed., So Paulo, Cia. Editora Nacional.
CIPRO Neto, P. & INFANTE, U. (1997): Gramtica da lngua
portuguesa. So Paulo, Scipione.
CUNHA, C. & CINTRA, L. E L. (1985): Nova gramtica do
portugus contemporneo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
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