Marcos Bagno - Preconceito Linguistico

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MARCOS BAGNO, tradutor, escritor e lingista, Doutor em Filologia e

Lngua Portuguesa pela Universidade de So Paulo (USP). Professor de


Lingstica do Instituto de Letras da Universidade de Braslia, publicou A
lngua dc Eullia: novela sociolingstica (Ed. Contexto, 1997; em 13 ed.);
Preconceito lingstico: o que , como se faz (Ed. Loyola, 1999; em 15 ed.);
Dramtica da lngua portuguesa (Ed. Loyola, 2000; em 2 ed.); Portugus ou
brasileiro? Um convite pesquisa (Parbola Ed., 2001; em 2 ed.); Lngua
materna: letramento, variao e ensino (Parbola Ed., 2002). Alm desses
ttulos, autor de duas dezenas de obras literrias. Recebeu em 1988 o
Prmio Nestl de Literatura Brasileira e, em 1989, o Prmio Carlos
Drummond de Andrade de Poesia, entre outros. Selecionou e traduziu os
artigos reunidos em Norma lingstica (Ed. Loyola, 2001). Traduziu Histria
concisa da lingstica, de Barbara Weedwood (Parbola Ed., 2002), alm de
dezenas de obras cientficas, filosficas e literrias de autores como Balzac,
Voltaire, H. G. Wells, Sartre, Oscar Wilde, etc. Vem se dedicando
investigao das implicaes socioculturais do conceito de norma, sobretudo
no que diz respeito ao ensino de portugus nas escolas brasileiras.
Obras do Autor:
A inveno das horas (contos), Ed. Scipione, 1988 (IV Prmio Bienal Nestl
de Literatura Brasileira)
O papel roxo da ma (infantil), Ed. L, 1989 (Prmio Joo de Barro de
Literatura Infantil)
Um cu azul para Clementina (infantil), Ed. L, 1991
Frevo, amor & graviola (juvenil), Ed. Atual, 1991
Amor, amora (juvenil), Ed. Bagao, 1992
Os nomes do amor (juvenil) (co-autoria com Stela Maris Rezende), Editora
Moderna, 1993
A vingana da cobra (juvenil), Ed. tica, 1995
Dia de branco (juvenil), Ed. L, 1995
Miguel, o cravo & a rosa (infantil), Ed. L, 1995
Rua da Soledade (contos), Ed. L, 1995 (Prmio Estado do Paran 1989)
A barca de Zo (infantil), Ed. Formato, 1995
Mirablia (contos), Editora Didtica Paulista, 1996
Uma vitria diferente (juvenil) Ed. L, 1997
Unhas de ferro (juvenil), Ed. L, 1997
A Lngua de Eullia (novela sociolingstica), Ed. Contexto, 1997
Pesquisa na escola o que , como se faz, Ed. Loyola, 1998
Machado de Assis para principiantes, Ed. Atica, 1998
Preconceito lingustico o que , como se faz, Ed. Loyola, 1999
Minimirim e o planeta que encolheu (infantil), Ed. lcone, 2000
O Processo de Independncia do Brasil, Ed. Atica, 2000
Dramtica da lngua portuguesa, Ed. Loyola, 2000
Portugus ou brasileiro? Um convite pesquisa, Parbola Editorial, 2001
Norma lingstica, Ed. Loyola, 2001
Lngua materna: letramento, variao e ensino, Parbola Editorial, 2002
O espelho dos nomes (juvenil) tica, 2002

Marcos Bagno

Preconceito lingstico
o que , como se faz

CONTRA CAPA
Diz-se que o brasileiro no sabe Portugus e que Portugus
muito difcil. Estes so alguns dos mitos que compem um
preconceito muito presente na cultura brasileira: o lingstico. Tudo
por causa da confuso que se faz entre lngua e gramtica
normativa (que no a lngua, mas s uma descrio parcial dela).
Separe uma coisa da outra com este livro, que um achado.
Revista Nova Escola, maio de 1999.

Eu gostaria que algum j tivesse escrito um livro como este sobre


a lngua inglesa.
Prof. Gregory Guy, Universidade de York (Canad)

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escrita da Editora.
ISBN: 85-15-01889-6
48 e 49 edio: junho de 2007
EDIES LOYOLA, So Paulo, Brasil, 1999

Sedule curavi humanas actiones non ridere,


non lugere, neque detestare, sed intellegere.
SPINOZA

(Tenho-me esforado por no rir das aes humanas,


por no deplor-las nem odi-las, mas por entend-las)

Sumrio

PRIMEIRAS PALAVRAS .................................................................... 9


I. A MITOLOGIA DO PRECONCEITO LINGSTICO ........................... 13
Mito n 1
A lngua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade
surpreendente ............................................................................. 15
Mito n 2
Brasileiro no sabe portugus / S em Portugal se fala bem
portugus ..................................................................................... 20
Mito n 3
Portugus muito difcil ........................................................... 35
Mito n 4
As pessoas sem instruo falam tudo errado ........................... 40
Mito n 5
O lugar onde melhor se fala portugus no Brasil o Maranho
........................................................................................................ 46
Mito n 6
O certo falar assim porque se escreve assim ......................... 52
Mito n 7
preciso saber gramtica para falar e escrever bem .............. 62
Mito n 8
O domnio da norma culta um instrumento de ascenso social
........................................................................................................ 69
II. O CRCULO VICIOSO DO PRECONCEITO LINGSTICO .............. 73
1. Os trs elementos que so quatro ............................................ 73
2. Sob o imprio de Napoleo ....................................................... 79
3. Um festival de asneiras ............................................................ 83
4. Beethoven no danado ......................................................... 94

III. A DESCONSTRUO DO PRECONCEITO LINGSTICO ........... 105


1. Reconhecimento da crise ........................................................ 105
2. Mudana de atitude ................................................................ 115
3. O que ensinar portugus ..................................................... 118
4. O que erro ............................................................................ 122
5. Ento vale tudo ....................................................................... 129
6. A parania ortogrfica ........................................................... 131
7. Subvertendo o preconceito lingstico ................................... 139
IV. O PRECONCEITO CONTRA A LINGSTICA E OS LINGISTAS
.................................................................................................................. 147

1. Uma religio mais velha que o cristianismo ...................... 147


2. Portugus ortodoxo? Que lngua essa? ............................... 154
3. Devaneios de idiotas e ociosos ............................................... 157
4. A quem interessa calar os lingistas? ................................... 161
ANEXO CARTA DE MARCOS BAGNO REVISTA VEJA ............. 167
REFERNCIAS ................................................................................. 185

Nota da digitalizadora: A numerao de pginas aqui refere-se a edio original, a


paginao original, que encontra-se inserida entre colchetes no texto.
Entende-se que o texto que est antes da numerao entre colchetes o que pertence aquela
pgina e o texto que est aps a numerao pertence a pgina seguinte
.

Primeiras palavras

Existe uma regra de ouro da Lingstica que diz: s existe


lngua se houver seres humanos que a falem. E o velho e bom
Aristteles nos ensina que o ser humano um animal poltico.
Usando essas duas afirmaes como os termos de um silogismo
(mais um presente que ganhamos de Aristteles), chegamos
concluso de que tratar da lngua tratar de um tema poltico, j
que tambm tratar de seres humanos. Por isso, o leitor e a leitora
no devero se espantar com o tom marcadamente politizado de
muitas de minhas afirmaes. proposital; alis, inevitvel.
Temos de fazer um grande esforo para no incorrer no erro milenar
dos gramticos tradicionalistas de estudar a lngua como uma coisa
morta, sem levar em considerao as pessoas vivas que a falam.
O preconceito lingstico est ligado, em boa medida,
confuso que foi criada, no curso da histria, entre lngua e
gramtica normativa. Nossa tarefa mais urgente desfazer essa
confuso. Uma receita de bolo no um bolo, o molde de um vestido
no um vestido, um mapa-mndi no o mundo... Tambm a
gramtica no a lngua.
A lngua um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a
gramtica normativa a tentativa de descrever [pg. 09] apenas
uma parcela mais visvel dele, a chamada norma culta. Essa
descrio, claro, tem seu valor e seus mritos, mas parcial (no
sentido literal e figurado do termo) e no pode ser autoritariamente
aplicada a todo o resto da lngua afinal, a ponta do iceberg que

emerge representa apenas um quinto do seu volume total. Mas


essa aplicao autoritria, intolerante e repressiva que impera na
ideologia geradora do preconceito lingstico.
Voc sabe o que um igap? Na Amaznia, igap um trecho
de mata inundada, uma grande poa de gua estagnada s margens
de um rio, sobretudo depois da cheia. Parece-me uma boa imagem
para a gramtica normativa. Enquanto a lngua um rio caudaloso,
longo e largo, que nunca se detm em seu curso, a gramtica
normativa apenas um igap, uma grande poa de gua parada,
um charco, um brejo, um terreno alagadio, margem da lngua.
Enquanto a gua do rio/lngua, por estar em movimento, se renova
incessantemente, a gua do igap/gramtica normativa envelhece e
s se renovar quando vier a prxima cheia. Meu objetivo
atualmente, junto com muitos outros lingistas e pesquisadores,
acelerar ao mximo essa prxima cheia...
Este livro traz os primeiros resultados, sempre provisrios, das
reflexes que venho fazendo sobre o tema do preconceito lingstico.
Ele rene as principais concluses a que cheguei, concluses que
pude compartilhar e discutir com as pessoas que me ouviram falar
nas diversas palestras que dei ao longo de 1998.
Essas palestras, e o livro que delas nasceu, s foram possveis
graas ao esforo e ao carinho das seguintes [pg. 10] pessoas:
ngela Paiva Dionsio, Ariovaldo Guireli, Ataliba de Castilho,
Cludia Maia Ricardo, Doris da Cunha, sio Macedo Ribeiro,
Irand Antunes, Jos Lus Falotico Corra, Judith Hoffnagel,
Loureno Chacon, Lucila Nogueira, Maral Aquino, Marcos
Marcionilo Maria Amlia Almeida, Maria Marta Scherre, Maria da
Piedade S, Margia Viana, Rosely Falotico Corra e Sonia
Alexandre.

Esta segunda edio traz mudanas bastante significativas em


comparao com a primeira: alguns trechos foram eliminados,
outros

foram

acrescentados,

muitos

sofreram

profunda

reformulao. Isso se deve minha vontade de manter o livro


sempre atualizado com a evoluo de minha prpria maneira de ver
as coisas e sintonizado com as crticas, sugestes e comentrios que
o trabalho recebeu da parte de leitores e leitoras atentos e dispostos
a colaborar na divulgao destas idias.
Agradeo muito especialmente a Manoel Luiz Gonalves
Corra, que me ajudou a preparar esta reedio, alertando-me para
determinadas inconsistncias tericas e conceituais, nascidas de
uma tentativa de simplificar (talvez demais) os conceitos da
Lingstica para torn-los acessveis a um pblico mais amplo.
claro que ainda sobram falhas e imperfeies de minha inteira
(ir)responsabilidade e por isso convido os que desejarem
participar desta luta que se engajem nela enviando-me suas
opinies.
A capa deste livro tem uma histria que merece ser contada. As
pessoas ali fotografadas so minha sogra, Alice Francisca, meu
sogro, Jos Alexandre, e meu cunhado [pg. 11] mais novo, Sstenes,
cerca de vinte anos atrs. Como este um livro que trata de
discriminao e excluso, decidi homenagear meus sogros que so,
como costumo dizer, um prato cheio para alguns dos preconceitos
mais vigorosos da nossa sociedade: negros, nordestinos, pobres,
analfabetos. Alice Francisca tambm carrega o estigma de ser
mulher numa cultura entranhadamente machista. Aprender a
amar estas pessoas pelo que elas so, deixando de lado todos os
rtulos discriminadores que tentam classific-las em categorias
supostamente inferiores s que eu e pessoas de minha extrao

social ocupamos, tem sido uma lio fundamental para toda a


minha vida pessoal e profissional.
com este amor que me defendo das acusaes que s vezes
recebo de ser autor de um livro demaggico. No demagogia:
opo

consciente,

poltica,

declaradamente

parcial.

Peo

simplesmente aos leitores e leitoras que meditem sobre esta


situao que tanto me angustia: homenagear com um livro pessoas
que jamais podero l-lo. Isso explica, decerto, a grande dose de
indignao que em certos momentos passa frente da reflexo
cientfica serena e me faz assumir o tom apaixonado de quem no
tolera nenhum tipo de intolerncia, principalmente quando fruto
de uma viso de mundo estreita, inspirada em mitos e supersties
que tm como nico objetivo perpetuar os mecanismos de excluso
social.

MARCOS BAGNO
mbagno@terra.com.br
[pg. 12]

I
A mitologia
do preconceito lingstico

Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma forte
tendncia a lutar contra as mais variadas formas de preconceito, a
mostrar que eles no tm nenhum fundamento racional, nenhuma
justificativa, e que so apenas o resultado da ignorncia, da
intolerncia ou da manipulao ideolgica.
Infelizmente, porm, essa tendncia no tem atingido um tipo
de preconceito muito comum na sociedade brasileira: o preconceito
lingstico. Muito pelo contrrio, o que vemos esse preconceito ser
alimentado diariamente em programas de televiso e de rdio, em
colunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem
ensinar o que certo e o que errado, sem falar, claro, nos
instrumentos tradicionais de ensino da lngua: a gramtica
normativa e os livros didticos.
O preconceito lingstico fica bastante claro numa srie de
afirmaes que j fazem parte da imagem (negativa) que o
brasileiro tem de si mesmo e da lngua falada por aqui. Outras
afirmaes so at bem-intencionadas, mas mesmo assim compem
uma espcie de preconceito positivo, que tambm se afasta da
realidade. Vamos examinar [pg. 13] algumas dessas afirmaes
falaciosas e ver em que medida elas so, na verdade, mitos e
fantasias que qualquer anlise mais rigorosa no demora a
derrubar.

Estou convidando voc, a partir de agora, a fazer junto comigo


um pequeno passeio pela mitologia do preconceito lingstico.
Quando o passeio acabar, isto , quando tivermos terminado de
examinar os principais mitos, vamos tentar refletir juntos para
encontrar os meios mais adequados de combater esse preconceito no
nosso dia-a-dia, na nossa atividade pedaggica de professores em
geral e, particularmente, de professores de lngua portuguesa. [pg.
14]

Mito n 1
A lngua portuguesa falada no Brasil
apresenta uma unidade surpreendente

Este o maior e o mais srio dos mitos que compem a


mitologia do preconceito lingstico no Brasil. Ele est to
arraigado em nossa cultura que at mesmo intelectuais de renome,
pessoas de viso crtica e geralmente boas observadoras dos
fenmenos sociais brasileiros, se deixam enganar por ele. o caso,
por exemplo, de Darcy Ribeiro, que em seu ltimo grande estudo
sobre o povo brasileiro escreveu:
de assinalar que, apesar de feitos pela fuso de matrizes to diferenciadas, os
brasileiros so, hoje, um dos povos mais homogneos lingstica e culturalmente e
tambm um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma lngua,
sem dialetos [grifo meu, Folha de S. Paulo, 5/2/95].

Existe tambm toda uma longa tradio de estudos filolgicos e


gramaticais

que

se

baseou,

durante

muito

tempo,

nesse

(pre)conceito irreal da unidade lingstica do Brasil.


Esse mito muito prejudicial educao porque, ao no
reconhecer a verdadeira diversidade do portugus falado no Brasil,
a escola tenta impor sua norma lingstica como se ela fosse, de
fato, a lngua comum a todos os 160 milhes de brasileiros,
independentemente de sua idade, de sua origem geogrfica, de sua
situao socioeconmica, de seu grau de escolarizao etc. [pg. 15]
Ora, a verdade que no Brasil, embora a lngua falada pela
grande maioria da populao seja o portugus, esse portugus
apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, no s

por causa da grande extenso territorial do pas que gera as


diferenas regionais, bastante conhecidas e tambm vtimas,
algumas delas, de muito preconceito , mas principalmente por
causa da trgica injustia social que faz do Brasil o segundo pas
com a pior distribuio de renda em todo o mundo. So essas graves
diferenas de status social que explicam a existncia, em nosso pas,
de um verdadeiro abismo lingstico entre os falantes das
variedades no-padro do portugus brasileiro que so a maioria
de nossa populao e os falantes da (suposta) variedade culta, em
geral mal definida, que a lngua ensinada na escola.
Como a educao ainda privilgio de muito pouca gente em
nosso pas, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece
margem do domnio de uma norma culta. Assim, da mesma forma
como existem milhes de brasileiros sem terra, sem escola, sem
teto, sem trabalho, sem sade, tambm existem milhes de
brasileiros sem lngua. Afinal, se formos acreditar no mito da lngua
nica, existem milhes de pessoas neste pas que no tm acesso a
essa lngua, que a norma literria, culta, empregada pelos
escritores e jornalistas, pelas instituies oficiais, pelos rgos do
poder so os sem-lngua. claro que eles tambm falam
portugus, uma variedade de portugus no-padro, com sua
gramtica particular, que no entanto no reconhecida como
vlida, que desprestigiada, ridicularizada, [pg. 16] alvo de
chacota e de escrnio por parte dos falantes do portugus-padro ou
mesmo daqueles que, no falando o portugus-padro, o tomam
como referncia ideal por isso podemos cham-los de sem-lngua.
O que muitos estudos empreendidos por diversos pesquisadores
tm mostrado que os falantes das variedades lingsticas
desprestigiadas tm srias dificuldades em compreender as

mensagens enviadas para eles pelo poder pblico, que se serve


exclusivamente da lngua-padro. Como diz Maurizzio Gnerre1 em
seu livro Linguagem, escrita e poder, a Constituio afirma que
todos os indivduos so iguais perante a lei, mas essa mesma lei
redigida numa lngua que s uma parcela pequena de brasileiros
consegue entender. A discriminao social comea, portanto, j no
texto da Constituio. claro que Gnerre no est querendo dizer
que a Constituio deveria ser escrita em lngua no-padro, mas
sim que todos os brasileiros a que ela se refere deveriam ter acesso
mais amplo e democrtico a essa espcie de lngua oficial que,
restringindo seu carter veicular a uma parte da populao, exclui
necessariamente uma outra, talvez a maior.
Muitas vezes, os falantes das variedades desprestigiadas
deixam

de

usufruir

diversos

servios

que

tm

direito

simplesmente por no compreenderem a linguagem empregada


pelos rgos pblicos. Um estudo bastante revelador dessa situao
foi empreendido por Stella Maris Bortoni-Ricardo na periferia de
Braslia e publicado no [pg. 17] artigo Problemas de comunicao
interdialetal. Diante do que descobriu, a autora pode afirmar:
A idia de que somos um pas privilegiado, pois do ponto de vista lingstico tudo
nos une e nada nos separa, parece-me, contudo, ser apenas mais um dos grandes
mitos arraigados em nossa cultura. Um mito, por sinal, de conseqncias danosas,
pois na medida em que no se reconhecem os problemas de comunicao entre
falantes de diferentes variedades da lngua, nada se faz tambm para resolv-los.

A mesma autora alerta para que no se confunda a idia de


monolingismo com a de homogeneidade lingstica. O fato de
no Brasil o portugus ser a lngua da imensa maioria da populao
1

As referncias bibliogrficas completas de todas as obras citadas ao longo deste livro se encontram no
final do volume.

no implica, automaticamente, que esse portugus seja um bloco


compacto, coeso e homogneo. Na verdade, como costumo dizer, o
que habitualmente chamamos de portugus um grande balaio de
gatos, onde h gatos dos mais diversos tipos: machos, fmeas,
brancos, pretos, malhados, grandes, pequenos, adultos, idosos,
recm-nascidos, gordos, magros, bem-nutridos, famintos etc. Cada
um desses gatos uma variedade do portugus brasileiro, com sua
gramtica especfica, coerente, lgica e funcional.
preciso, portanto, que a escola e todas as demais instituies
voltadas para a educao e a cultura abandonem esse mito da
unidade do portugus no Brasil e passem a reconhecer a
verdadeira diversidade lingstica de nosso pas para melhor
planejarem suas polticas de ao junto populao amplamente
marginalizada

dos

reconhecimento

da

falantes
[pg.

18]

das

variedades

existncia

de

no-padro.
muitas

normas

lingsticas diferentes fundamental para que o ensino em nossas


escolas seja conseqente com o fato comprovado de que a norma
lingstica ensinada em sala de aula , em muitas situaes, uma
verdadeira lngua estrangeira para o aluno que chega escola
proveniente de ambientes sociais onde a norma lingstica
empregada no quotidiano uma variedade de portugus nopadro.
Felizmente,

essa

realidade

lingstica

marcada

pela

diversidade j reconhecida pelas instituies oficiais encarregadas


de planejar a educao no Brasil. Assim, nos Parmetros
curriculares nacionais, publicados pelo Ministrio da Educao e do
Desporto em 1998, podemos ler que

A variao constitutiva das lnguas humanas, ocorrendo em todos os nveis. Ela


sempre existiu e sempre existir, independentemente de qualquer ao normativa.
Assim, quando se fala em Lngua Portuguesa est se falando de uma unidade
que se constitui de muitas variedades. [...] A imagem de uma lngua nica, mais
prxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente s prescries
normativas da gramtica escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difuso
da mdia sobre o que se deve e o que no se deve falar e escrever, no se
sustenta na anlise emprica dos usos da lngua2.

So, de fato, boas novas! Espero que elas desam das altas
esferas governamentais e se propaguem pelas salas de aula de todo
o pas! [pg. 19]

Parmetros curriculares nacionais, Lngua Portuguesa, 5a a 8a sries, p. 29.

Mito n 2
Brasileiro no sabe portugus /
S em Portugal se fala bem portugus

Essas duas opinies to habituais, corriqueiras, comuns, e que


na realidade so duas faces de uma mesma moeda enferrujada,
refletem o complexo de inferioridade, o sentimento de sermos at
hoje uma colnia dependente de um pas mais antigo e mais
civilizado.
Podemos encontrar essa concepo expressa no livro Lngua
viva, de Srgio Nogueira Duarte, que uma coletnea de suas
colunas sobre lngua portuguesa publicadas no Jornal do Brasil. Ali
a gente l, na pgina 65:
Sempre me perguntam onde se fala o melhor portugus. S pode ser em Portugal!
J viajei muito pelo Brasil e j estive em todas as regies. Sinceramente, no sei
onde se fala melhor. Cada regio tem suas qualidades e seus vcios de linguagem.
[grifo meu]

Por isso no consigo concordar com o ttulo do livro que est


longe de analisar a verdadeira lngua viva usada em nosso pas ,
nem com o subttulo: uma anlise simples e bem-humorada da
linguagem do brasileiro. Seria mais acertado dizer que se trata de
uma anlise preconceituosa e desinformada da lngua falada e
escrita por aqui. Mas no podemos culpar o autor, que antes uma
vtima do que propriamente um responsvel por esse preconceito:
ele est apenas exprimindo uma ideologia impregnada em nossa
cultura h muito tempo. [pg. 20]

a mesma concepo torpe segundo a qual o Brasil um pas


subdesenvolvido porque sua populao no uma raa pura, mas
sim o resultado de uma mistura negativa de raas, sendo que
duas delas, a negra e a indgena, so inferiores do branco
europeu, por isso nosso povinho s pode ser o que . Ora, h muito
tempo a cincia destruiu o mito da raa pura, que um conceito
absurdo, sem nenhuma possibilidade de verificao na realidade de
nenhum povo, por mais isolado que seja.
Assim, uma raa que no pura no poderia falar uma lngua
pura. No difcil encontrar intelectuais renomados que
lamentem a corrupo do portugus falado no Brasil, lngua de
matutos, de caipiras infelizes, arremedo tosco da lngua de
Cames. o que escreve, por exemplo, Arnaldo Niskier, presidente
da Academia Brasileira de Letras, num artigo publicado na Folha
de S. Paulo (15/1/98):
[...] pode-se registrar o fato, facilmente comprovvel, de que nunca se escreveu e
falou to mal o idioma de Ruy Barbosa.
[...] A classe dita culta mostra-se displicente em relao lngua nacional, e a
indigncia vocabular tomou conta da juventude e dos no to jovens assim, quase
como se aqueles se orgulhassem de sua prpria ignorncia e estes quisessem voltar
atrs no tempo.

Para mostrar o quanto declaraes desse tipo se baseiam mais


em posturas preconceituosas perpetuadas ao longo dos sculos
pela desinformao ou m informao do que em anlises
cientficas acuradas dos fatos lingsticos, vamos ler o seguinte
trecho do fillogo Cndido de Figueiredo: [pg. 21]
Quanto mais progressiva a civilizao de um povo, mais sujeita a sua lngua a
deturpaes e vcios, sob a variada influncia das relaes internacionais, dos novos

inventos, das travancas da ignorncia, e at dos caprichos da moda. [...] Sbios e


romancistas, poetas e prosadores, e nomeadamente a imprensa peridica, parece
haverem conspirado para dar curso s mais extraordinrias invenes e enxertos de
linguagem.

Ora, essas palavras foram escritas em 1903 num livro chamado


O que se no deve dizer (sim, o ttulo esse mesmo!).
surpreendente como elas tm o mesmo tom de queixa e censura das
palavras de Niskier, escritas noventa e cinco anos depois! Niskier
tambm faz, neste artigo, uma referncia queixosa ao pouco apreo
que devotamos ao gosto pela leitura. Nosso ndice per capita mal
alcana dois livros por habitante; na Frana, por exemplo, oscila em
torno de oito, e passa a elogiar os hbitos culturais dos franceses,
que valorizam mais a leitura do que os brasileiros. Esqueceu-se,
porm, de dizer que a Frana ocupa a 11 posio no quadro do IDH
(ndice de Desenvolvimento Humano), estabelecido pela ONU para
avaliar a qualidade de vida nos 175 pases do mundo. O Brasil, que
em 1996 ocupava a 58a posio, caiu, em 1999, para a 79a, devido
sensvel piora das condies sociais dos brasileiros como um todo.
Diante de tamanha diferena, um ndice per capita de dois livros
por ano, num pas com 60 milhes de analfabetos plenos e
analfabetos funcionais (nmero igual ao da populao total da
Frana), mesmo espantoso...
E da mesma forma como Niskier lamenta a invaso dos
anglicismos, Figueiredo diz que o enxerto da francesia [pg. 22]
frutificou com [...] exuberncia, classificando de malria o uso de
palavras estrangeiras. E se quisssemos recuar ainda mais no
tempo, no teramos dificuldades em encontrar outros autores
vociferando contra a runa da lngua portuguesa e profetizando o
fim dela.

Felizmente, nenhuma dessas profecias se concretizou. Os


galicismos, na passagem do sculo XIX para o XX, e os anglicismos,
na virada do terceiro milnio, no tm a fora destruidora to
temida pelos puristas e conservadores. A lngua portuguesa, nesses
noventa e cinco anos, se manteve muito bem, obrigada, falada e
escrita por cada vez mais gente, produziu uma literatura
reconhecida

mundialmente,

propagada

tambm

em

nvel

internacional pelo grande prestgio de que goza a msica popular


brasileira entre tantas outras provas de sua vitalidade. E a
avalanche (ai, um galicismo!) de palavras estrangeiras tem de ser
analisada sob a perspectiva da dependncia poltico-econmica (e
conseqentemente cultural) do Brasil (e de Portugal) para com os
centros mundiais de poder. No adianta bradar contra a invaso
de palavras na lngua portuguesa sem analisar essa dependncia.
querer eliminar os efeitos sem atacar as verdadeiras causas.
E essa histria de dizer que brasileiro no sabe portugus e
que s em Portugal se fala bem portugus? Trata-se de uma
grande bobagem, infelizmente transmitida de gerao a gerao
pelo ensino tradicional da gramtica na escola.
O brasileiro sabe portugus, sim. O que acontece que nosso
portugus diferente do portugus falado em [pg. 23] Portugal.
Quando dizemos que no Brasil se fala portugus, usamos esse nome
simplesmente

por

comodidade

por

uma

razo

histrica,

justamente a de termos sido uma colnia de Portugal. Do ponto de


vista lingstico, porm, a lngua falada no Brasil j tem uma
gramtica isto , tem regras de funcionamento que cada vez
mais se diferencia da gramtica da lngua falada em Portugal. Por
isso os lingistas (os cientistas da linguagem) preferem usar o

termo portugus brasileiro, por ser mais claro e marcar bem essa
diferena.
Na lngua falada, as diferenas entre o portugus de Portugal e
o portugus do Brasil so to grandes que muitas vezes surgem
dificuldades de compreenso: no vocabulrio, nas construes
sintticas, no uso de certas expresses, sem mencionar, claro, as
tremendas diferenas de pronncia no portugus de Portugal
existem vogais e consoantes que nossos ouvidos brasileiros custam a
reconhecer, porque no fazem parte de nosso sistema fontico3. E
muitos estudos tm mostrado que os sistemas pronominais do
portugus europeu e do portugus brasileiro so totalmente
diferentes.
Por exemplo, os pronomes o/a, de construes como eu o vi e
eu a conheo, esto praticamente extintos [pg. 24] no portugus
falado no Brasil, ao passo que, no de Portugal, continuam firmes e
fortes. Esses pronomes nunca aparecem na fala das crianas
brasileiras nem na dos brasileiros no-alfabetizados e tm baixa
ocorrncia na fala dos indivduos cultos, o que demonstra que so
exclusivos da lngua ensinada na escola, sobretudo da lngua
escrita, no fazendo parte, ento, do repertrio da lngua materna
dos brasileiros. Nossas crianas usam sem problema me e te Ela
me bateu, Eu vou te pegar , mas o/a jamais, que so
substitudos por ele/ ela: Eu vou pegar ele, Eu vi ela. As formas
lo e la peg-lo, v-la , ento, nem pensar. Se as crianas no
usam porque no ouvem os adultos usar, e se os adultos no usam
3

Assistindo um dia desses a televiso portuguesa por cabo, ouvi os verbos uprar e dlibrar. Consegue
adivinhar o que ? Sim, operar e deliberar. Tambm comum os portugueses evitarem hiatos como a
gua introduzindo um [y] e pronunciando aygua. Alm disso, se uma palavra termina em s e a prxima
comea com c, os portugueses fundem essas duas consoantes numa s, pronunciada como o x de xixi:
outros cinco pronunciado otruxincu. So realizaes fonticas totalmente estranhas lngua do
brasileiro.

porque no precisam desses pronomes. E mesmo na lngua dos


adultos escolarizados, esses pronomes s aparecem como um
recurso estilstico, em situaes de uso mais formais, quando o
falante quer deixar claro que domina as regras impostas pela
gramtica escolar. A gramtica escolar, no entanto, desconhece essa
transformao por que a lngua est passando e insiste em
considerar erradas construes como Eu conheo ele, Voc viu
ela chegar etc.
O nico nvel em que ainda possvel uma compreenso quase
total entre brasileiros e portugueses o da lngua escrita formal,
porque a ortografia praticamente a mesma, com poucas
diferenas. Mas um mesmo texto lido em voz alta por um brasileiro
e por um portugus vai soar completamente diferente, ou melhor,
difrent! Alis, faa voc mesmo a experincia: tente tirar a letra de
uma msica cantada por um cantor ou uma cantora da terrinha e
veja [pg. 25] como difcil!4 E por incrvel que parea, um dos
principais obstculos para a difuso no Brasil do cinema feito em
Portugal justamente... a lngua alm das dificuldades de
distribuio, ligadas ao quase monoplio do cinema americano.
Como os brasileiros tm dificuldades em entender o portugus de
Portugal, e como ficaria no mnimo estranho colocar legendas em
filmes portugueses, o resultado que praticamente nunca se v
filme portugus nos cinemas daqui. Temos a impresso de que
Portugal no produz cinema, o que falso: h bons cineastas
4

Eu mesmo uma vez passei por uma situao embaraosa: um amigo meu, francs, me enviou uma fita
cassete com msicas do compositor portugus Jos Afonso (por sinal, maravilhoso) e me pediu para tirar
a letra de uma delas, de que ele gostava muito. Depois de algumas tentativas, acabei desistindo, porque
havia muitas frases inteiras das quais eu no pescava simplesmente nada. Ele, espantado, me perguntou:
Mas ele no canta em portugus? Tive de explicar ao meu amigo que havia grandes diferenas entre o
portugus do Brasil e o de Portugal. Mas eu tive a minha vingana. Pedi a esse mesmo amigo, pouco
depois, que transcrevesse a letra de uma cano gravada por uma cantor canadense, e ele teve a mesma
dificuldade, porque o francs do Canad s vezes pode ser incompreensvel para um falante do francs da
Frana...

portugueses, um dos quais, Manuel d'Oliveira, reconhecido


internacionalmente como um grande diretor.
No que diz respeito ao ensino do portugus no Brasil, o grande
problema que esse ensino at hoje, depois de mais de cento e
setenta anos de independncia poltica, continua com os olhos
voltados para a norma lingstica de Portugal. As regras
gramaticais consideradas certas so aquelas usadas por l, que
servem para a lngua falada l, que retratam bem o funcionamento
da lngua que os [pg. 26] portugueses falam. a concepo que
impera, por exemplo, no livro No erre mais!, de Luiz Antonio
Sacconi, que na pgina 64 explica:
A Lua mais pequena que a Terra
Eis a uma frase corretssima, que muitos imaginam o contrrio. Mais pequeno
expresso legtima, usada por todos os portugueses, que usam menor quando se
trata de idia de qualidade: poeta menor, escritor menor etc. [grifo meu]

Fica implcito, ento, que para considerar uma expresso


legtima basta que ela seja usada por todos os portugueses, como
se eles ditassem a norma lingstica vlida para todos os povos que
falam portugus. Ora, todos sabemos que mais pequeno no
funciona no Brasil, uma expresso rejeitada pela norma culta
brasileira, que usa menor em todas as circunstncias em que h
comparao.
O mesmo esprito guiou a revista poca que, em sua edio de
14 de junho de 1999, estampou uma grande reportagem sobre A
cincia de escrever bem, acerca da redao no vestibular. Entre as
melhores redaes apresentadas naquele ano ao vestibular da
Universidade de So Paulo estava a de Henrique Suguri, 17 anos,
que em determinado momento assim se expressou (p. 81):

O Brasil hoje no europeu, africano, asitico, indgena. Ns somos a mistura


exata de tudo isso, completamente diferentes das nossas origens, nicos. E apesar
disso, estamos indiscutivelmente atrelados aos princpios da nossa matriz. Talvez
o ano 2000 possa servir para abrirmos os olhos e, em vez de comemorarmos os
nossos cinco sculos coloniais, enterrarmos o que sobrou deles. [pg. 27]

Essa belssima declarao de independncia, essa conscincia


da especificidade cultural do povo brasileiro, essa valorizao de
nossa identidade nacional, nica, parece que no foi totalmente
compreendida pelos autores da reportagem. Pois estes, em vez de
aceitar o convite do jovem vestibulando para enterrar o que sobrou
dos cinco sculos de colonizao, fizeram questo de comprovar, ao
contrrio, que ainda estamos indiscutivelmente atrelados aos
princpios da nossa matriz, incluindo a, claro, os princpios
lingsticos. Digo isso porque, na pgina 84 da mesma reportagem,
aparece um quadro chamado Como escrever bem, que tem como
subttulo:Dicas que valem para brasileiros de todas as idades.
Acontece que a primeirssima destas dicas a seguinte:
O uso do gerndio empobrece o texto. Lembre que no existe gerndio no
portugus falado em Portugal.

Ora, se so dicas para brasileiros que querem escrever bem, por


que motivos eles tm de se lembrar do que existe ou no existe no
portugus de Portugal? A dica, alm de deixar mostra sua
inspirao

neocolonialista,

tambm

afirma

uma

inverdade

lingstica: no portugus de Portugal existe, sim, o gerndio. A


ttulo de curiosidade, lembro-me do Fado do cime sucesso na
voz de Amlia Rodrigues, uma das maiores cantoras portuguesas de
todos os tempos , cuja letra a certa altura diz: antes prefiro
morrer / do que contigo viver / sabendo que gostas dela. Esse

sabendo outra coisa no seno um gerndio. (Aproveito para


chamar ateno para o antes [pg. 28] prefiro...do que, indcio de que
os portugueses tambm erram na hora de usar o verbo preferir...)
O que no existe no portugus falado em Portugal a
construo do tipo estou comendo, ela est telefonando, Pedro esteve
trabalhando muito situaes em que os portugueses usam a
preposio a seguida do verbo no infinitivo. Imagine agora se algum
de ns, brasileiros, disser por a frases como estou a comer, ela
est a telefonar,Pedro esteve a trabalhar muito, que so uma das
caractersticas mais marcantes do portugus de Portugal! Como no
me canso de repetir, so simplesmente diferenas de uso e
diferena no deficincia nem inferioridade. Quanto tempo ainda
teremos de esperar para nos darmos conta, de uma vez por todas, de
que somos completamente diferentes das nossas origens, nicos,
como to brilhantemente escreveu Henrique Suguri em sua redao
de vestibular?
Por causa desse preconceito que somos obrigados a ensinar e
aprender que o certo dizer e escrever D--me um beijo e no Me
d um beijo, e que errado dizer e escrever Assisti o filme e
Aluga-se casas, porque l em Portugal no assim que se faz.
O mito de que brasileiro no sabe portugus tambm afeta o
ensino de lnguas estrangeiras. muito comum verificar entre
professores de ingls, francs ou espanhol um grande desnimo
diante das dificuldades de ensinar o idioma estrangeiro. E mais
comum ainda ouvi-los dizer: Os alunos j no sabem portugus,
imagine se vo conseguir aprender outra lngua, fazendo a velha
confuso entre [pg. 29] lngua e gramtica normativa. muito fcil
atribuir aos outros a culpa do nosso prprio fracasso. Assim, em vez
de buscar as causas da dificuldade de ensino na metodologia

empregada,

nas

diferenas

de

aptido

individual

para

aprendizado de lnguas ou na competncia do prprio professor,


muito mais cmodo jogar a culpa no aluno ou na incompetncia
lingstica inata do brasileiro.
curioso como muitos brasileiros assumem esse mesmo
preconceito negativo tambm em relao a outras lnguas,
defendendo sempre a lngua da metrpole contra a lngua da excolnia. o nosso eterno trauma de inferioridade, nosso desejo de
nos aproximarmos, o mximo possvel, do cultuado padro ideal,
que a Europa. Todo santo dia tenho de ouvir algum me dizer que
prefere o ingls britnico, porque acha o ingls americano muito
feio. A essas pessoas eu dou sempre a mesma resposta: aprenda o
ingls britnico se quiser ler Shakespeare; mas se quiser dominar
uma lngua de uso internacional, aceita em todos os cantos do
mundo

como

veculo

de

intercmbio

cultural,

comercial,

diplomtico, tecnolgico, cientfico etc., aprenda o ingls americano.


Se algum de ns disser a um norte-americano que ele no sabe
ingls ou que o ingls falado nos Estados Unidos errado ou
feio, ele decerto vai ficar chocado com nossa ignorncia. Afinal,
existe um argumento mais do que convincente para rebater essa
acusao: o tamanho do pas e a quantidade de falantes de ingls
que ali vivem, alm da importncia dos Estados Unidos no
panorama mundial. [pg. 30]
O mesmo argumento vale para o portugus do Brasil. Nosso
pas 92 vezes e meia maior que Portugal, e nossa populao
quase 15 vezes superior! Quando se trata de lngua, temos de levar
em conta a quantidade: s na cidade de So Paulo vivem mais
falantes de portugus do que em toda a Europa! Alm disso, o papel
do Brasil no cenrio poltico-econmico mundial , de longe, muito

mais importante que o de Portugal. No tem sentido nenhum,


portanto,

continuar

alimentando

essa

fantasia

de

que

os

portugueses so os verdadeiros donos da lngua, enquanto ns a


utilizamos (e mal!) apenas por emprstimo.
Existe, embutida nesse mito, a iluso de que os portugueses
falam e escrevem tudo certo e que seguem rigorosamente as
regras da gramtica ensinada na escola. A professora Irand
Antunes, de quem tive a honra de ser aluno na Universidade
Federal de Pernambuco, me contou que quando estava para
embarcar para Portugal, onde viveria alguns anos preparando seu
doutorado, muitas pessoas no Brasil lhe disseram: Voc vai morar
em Portugal? Ento agora suas filhas vo aprender a falar direito!
No nada disso. Assim como ns aqui cometemos nossos
pecados contra a gramtica normativa, os portugueses tambm
cometem os deles, s que, mais uma vez, diferentes dos nossos. Em
Portugal, por exemplo, o plural de tu no vs, como querem as
gramticas normativas. O plural de tu vocs. Pois bem, na hora de
usar os possessivos, os portugueses usam vosso/vossa, que,
teoricamente, s poderiam ser usados com referncia a vs: Vocs
trouxeram os vossos filhos? E num livro editado [pg. 31] em
Portugal encontrei a seguinte pergunta: No vos sucede sentiremse por vezes um pouco indefinidos? a famosa mistura de
tratamento, que causa tanto arrepio e dor de estmago nos
gramticos conservadores mistura que, em termos cientficos e
no-preconceituosos, deve ser analisada, de fato, como uma
reorganizao do sistema pronominal da lngua, tanto a de l como
a de c.
Ento, no h por que continuar difundindo essa idia mais do
que absurda de que brasileiro no sabe portugus. O brasileiro

sabe o seu portugus, o portugus do Brasil, que a lngua materna


de todos os que nascem e vivem aqui, enquanto os portugueses
sabem o portugus deles. Nenhum dos dois mais certo ou mais
errado, mais feio ou mais bonito: so apenas diferentes um do outro
e atendem s necessidades lingsticas das comunidades que os
usam,necessidades que tambm so... diferentes!
Em seu livro Emlia no Pas da Gramtica, publicado em 1934,
Monteiro Lobato j chamava a ateno para esse tipo de preconceito
(que no entanto continua firme e forte no Brasil de hoje!). Numa
conversa com as crianas do Stio do Pica-pau Amarelo, a velha
Dona Etimologia lhes diz (pp. 100-101):
[...] Uma lngua no pra nunca. Evolui sempre, isto , muda sempre. H certos
gramticos que querem fazer a lngua parar num certo ponto, e acham que erro
dizermos de modo diferente do que diziam os clssicos.
Quem vem a ser clssicos? perguntou a menina [Narizinho].
Os entendidos chamam clssicos aos escritores antigos, como o padre
Antnio Vieira, Frei Lus de Sousa, o padre [pg. 32] Manuel Bernardes e outros.
Para os carranas, quem no escreve como eles est errado. Mas isso curteza de
vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora
seriam os primeiros a mudar, ou a adotar a lngua de hoje, para serem entendidos.
A lngua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova [o Brasil]. Inmeras
palavras que na cidade velha [Portugal] querem dizer uma coisa, aqui dizem outra.
[...] Tambm no modo de pronunciar as palavras existem muitas variaes. Aqui,
todos dizem

PEITO;

l, todos dizem

maneira. Aqui se diz

TENHO

PAITO,

e l se diz

embora escrevam a palavra da mesma

TANHO.

Aqui se diz

VERO

e l se diz

V'RO.

Tambm eles dizem por l

VATATA, VACALHAU, BACA, VESOURO

lembrou Pedrinho.
Sim, o povo de l troca muito o v pelo B e vice-versa.
Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha
concluiu Narizinho.

Por qu? Ambas tm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas


esto certas. O que sucede que uma lngua, sempre que muda de terra, comea a
variar muito mais depressa do que se no tivesse mudado. Os costumes so outros,
a natureza outra as necessidades de expresso tornam-se outras. Tudo junto
fora a lngua que emigra a adaptar-se sua nova ptria.
A lngua desta cidade [Brasil] est ficando um dialeto da lngua velha. Com
o correr dos sculos bem capaz de ficar to diferente da lngua velha como esta
ficou diferente do latim. Vocs vo ver.

Monteiro Lobato, que morreu em 1948, estava muito mais por


dentro das noes da lingstica moderna do que muito autor de
gramtica que est por a hoje, vivo e bulindo, como se diz no
Nordeste... [pg. 33]
espantoso que a figura do gramtico autoritrio e intolerante

ridicularizado

por

Lobato

na

personagem

do

professor

Aldrovando Cantagalo, em seu delicioso conto O colocador de


pronomes, de 1924 (!) tenha voltado cena neste fim de sculo,
sob a roupagem enganosamente moderna da televiso, do
computador e da multimdia. [pg. 34]

Mito n 3
Portugus muito difcil

Essa afirmao preconceituosa prima-irm da idia que


acabamos de derrubar, a de que brasileiro no sabe portugus.
Como o nosso ensino da lngua sempre se baseou na norma
gramatical de Portugal, as regras que aprendemos na escola em boa
parte no correspondem lngua que realmente falamos e
escrevemos no Brasil. Por isso achamos que portugus uma
lngua difcil: porque temos de decorar conceitos e fixar regras que
no significam nada para ns. No dia em que nosso ensino de
portugus se concentrar no uso real, vivo e verdadeiro da lngua
portuguesa do Brasil bem provvel que ningum mais continue a
repetir essa bobagem.
Todo falante nativo de uma lngua sabe essa lngua. Saber uma
lngua, no sentido cientfico do verbo saber, significa conhecer
intuitivamente e empregar com naturalidade as regras bsicas de
funcionamento dela.
Est provado e comprovado que uma criana entre os 3 e 4
anos de idade j domina perfeitamente as regras gramaticais de sua
lngua! O que ela no conhece so sutilezas, sofisticaes e
irregularidades no uso dessas regras, coisas que s a leitura e o
estudo podem lhe dar. Mas nenhuma criana brasileira dessa idade
vai dizer, por exemplo: Uma meninos chegou aqui amanh. Um
estrangeiro, porm, que esteja comeando a aprender portugus,
poder se confundir e falar assim. Por isso aquela piadinha que

muita gente solta quando v uma criancinha estrangeira falando


To pequeno e j fala to bem [pg. 35] ingls [ou outra lngua]
tem seu fundo de verdade: muito pouca gente conseguir falar uma
lngua estrangeira com tanta desenvoltura quanto uma criana de
cinco anos que tem nela sua lngua materna! Por qu? Porque toda
e qualquer lngua fcil para quem nasceu e cresceu rodeado por
ela! Se existisse lngua difcil, ningum no mundo falaria hngaro,
chins ou guarani, e no entanto essas lnguas so faladas por
milhes de pessoas, inclusive criancinhas analfabetas!
Se tanta gente continua a repetir que portugus difcil
porque o ensino tradicional da lngua no Brasil no leva em conta o
uso brasileiro do portugus. Um caso tpico o da regncia verbal. O
professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase:
Assisti ao filme. Quando esse mesmo aluno puser o p fora da sala
de aula, ele vai dizer ao colega: Ainda no assisti o filme do Zorro!
Porque a gramtica brasileira no sente a necessidade daquela
preposio a, que era exigida na norma clssica literria, cem anos
atrs, e que ainda est em vigor no portugus falado em Portugal, a
dez mil quilmetros daqui! um esforo rduo e intil, um
verdadeiro trabalho de Ssifo, tentar impor uma regra que no
encontra justificativa na gramtica intuitiva do falante.
A prova mais visvel disso que aquelas mesmas pessoas que,
por causa da presso policialesca da escola e da gramtica
tradicional, usam a preposio a depois do verbo assistir, tambm
dizem que o jogo foi assistido por vinte mil pessoas. Ora, se o
verbo assistir pede uma preposio porque ele no transitivo
direto, e s os verbos transitivos diretos podem, segundo as
gramticas, assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz assisti
ao [pg. 36] jogo no poderia, teoricamente, dizer o jogo foi

assistido. S que essa esquizofrenia gramatical acontece o tempo


todo. Basta ler jornais como a Folha de S. Paulo e o Estado de S.
Paulo, cujos manuais de redao decretam que o verbo assistir tem
que vir obrigatoriamente seguido da preposio a. Na voz ativa, a
preposio aparece: Vinte mil pagantes assistiram ao jogo, porque
assim manda o manual da redao. Mas na hora de usar a voz
passiva, a gramtica intuitiva brasileira do redator se manifesta, e
a gente encontra milhares de exemplos do tipo o jogo foi assistido
por vinte mil pagantes. Essas pessoas, ento, ficam em cima do
muro: acertam na voz ativa, por causa do patrulhamento
lingstico, mas erram na passiva, porque se deixam levar pelo
uso normal do portugus brasileiro. Tudo isso por causa da
cobrana indevida, por parte do ensino tradicional, de uma norma
gramatical que no corresponde realidade da lngua falada no
Brasil. O professor Sirio Possenti, da UNICAMP, em seu excelente
livro Por que (no) ensinar gramtica na escola, classifica a
regncia assistir a como um arcasmo, uma forma sinttica que j
caiu em desuso, mas continua sendo cobrada injustificadamente
pelo ensino tradicionalista, que se recusa a admitir a extino desse
e de muitos outros dinossauros lingsticos.
Por isso tantas pessoas terminam seus estudos, depois de onze
anos de ensino fundamental e mdio, sentindo-se incompetentes
para redigir o que quer que seja. E no toa: se durante todos
esses anos os professores tivessem chamado a ateno dos alunos
para o que realmente interessante e importante, se tivessem
desenvolvido [pg. 37] as habilidades de expresso dos alunos, em
vez de entupir suas aulas com regras ilgicas e nomenclaturas
incoerentes, as pessoas sentiriam muito mais confiana e prazer no
momento de usar os recursos de seu idioma, que afinal um

instrumento maravilhoso e que pertence a todos! Falaremos disso


na terceira parte deste livro.
Se tantas pessoas inteligentes e cultas continuam achando que
no sabem portugus ou que portugus muito difcil porque
esta

disciplina

fascinante

foi

transformada

numa

cincia

esotrica, numa doutrina cabalstica que somente alguns


iluminados (os gramticos tradicionalistas!) conseguem dominar
completamente. Eles continuam insistindo em nos fazer decorar
coisas que ningum mais usa (fsseis gramaticais!), e a nos
convencer de que s eles podem salvar a lngua portuguesa da
decadncia e da corrupo. Hoje em dia, alis, alguns deles esto
at fazendo sucesso na televiso, no rdio e em outros meios de
comunicao,

transformando

essa

suposta

dificuldade

do

portugus num produto com boa sada comercial. Para o j citado


Arnaldo Niskier, trata-se de uma saudvel epidemia que tomou
conta da imprensa brasileira. Que epidemia, concordo, mas
quanto a ser saudvel, tenho muitas e srias dvidas... livro,
curso em vdeo-cassete, CD-ROM, Manual de Redao do Jornal
Tal, consultrio gramatical por telefone... Eles juram que quem
no souber conjugar o verbo apropinquar-se vai direto para o
inferno! Na segunda parte deste livro tratarei de explicar por que
no considero saudvel essa epidemia. [pg. 38]
No fundo, a idia de que portugus muito difcil serve como
mais um dos instrumentos de manuteno do status quo das classes
sociais

privilegiadas.

Essa

entidade

mstica

sobrenatural

chamada portugus s se revela aos poucos iniciados, aos que


sabem as palavras mgicas exatas para faz-la manifestar-se. Tal
como na ndia antiga, o conhecimento da gramtica reservado a

uma casta sacerdotal, encarregada de preserv-la pura e


intacta, longe do contato infeccioso dos prias.
A propaganda da suposta dificuldade da lngua , como diz
Gnerre no livro j citado,o arame farpado mais poderoso para
bloquear o acesso ao poder (p. 6). Sustentar que portugus muito
difcil cavar uma profunda trincheira entre os poucos que sabem
a lngua e a massa enorme de asnos (termo usado por Luiz
Antonio Sacconi em seu livro No erre mais!) que necessitam,
assim, do auxlio indispensvel daqueles mestres para saltar
com segurana por sobre o abismo da ignorncia.
Em termos mais brandos, a embalagem do CD-ROM Nossa
lngua portuguesa oferece o produto como uma ajuda a evitar as
armadilhas da lngua. Ora, no a lngua que tem armadilhas,
mas sim a gramtica normativa tradicional, que as inventa
precisamente para justificar sua existncia e para nos convencer de
que ela indispensvel.
No seria a hora de acionar a Lei de Defesa do Consumidor
contra essa reserva de mercado? [pg. 39]

Mito n 4
As pessoas sem instruo falam tudo errado

O preconceito lingstico se baseia na crena de que s existe,


como vimos no Mito n 1, uma nica lngua portuguesa digna deste
nome e que seria a lngua ensinada nas escolas, explicada nas
gramticas e catalogada nos dicionrios. Qualquer manifestao
lingstica que escape desse tringulo escola-gramtica-dicionrio
considerada, sob a tica do preconceito lingstico, errada, feia,
estropiada, rudimentar, deficiente, e no raro a gente ouvir que
isso no portugus.
Um exemplo. Na viso preconceituosa dos fenmenos da
lngua, a transformao de I em R nos encontros consonantais como
em Crudia, chicrete, praca, broco, pranta tremendamente
estigmatizada e s vezes considerada at como um sinal do
atraso mental das pessoas que falam assim. Ora, estudando
cientificamente a questo, fcil descobrir que no estamos diante
de um trao de atraso mental dos falantes ignorantes do
portugus, mas simplesmente de um fenmeno fontico que
contribuiu para a formao da prpria lngua portuguesa padro.
Basta olharmos para o seguinte quadro: [pg. 40]
PORTUGUS PADRO

ETIMOLOGIA

ORIGEM

branco

>

blank

germnico

brando

>

blandu

latim

cravo

>

clavu

latim

dobro

>

duplu

latim

escravo

>

sclavu

latim

fraco

>

flaccu

latim

frouxo

>

fluxu

latim

grude

>

gluten

latim

obrigar

>

obligare

latim

praga

>

plaga

latim

prata

>

plata

provenal

prega

>

plica

latim

Como fcil notar, todas as palavras do portugus--padro


listadas acima tinham, na sua origem, um I bem ntido que se
transformou em R. E agora? Se fssemos pensar que as pessoas que
dizem Crudia, chicrete e pranta tm algum defeito ou atraso
mental, seramos forados a admitir que toda a populao da
provncia romana da Lusitnia tambm tinha esse mesmo problema
na poca em que a lngua portuguesa estava se formando. E que o
grande Lus de Cames tambm sofria desse mesmo mal, j que ele
escreveu ingrs, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que
considerada at hoje o maior monumento literrio do portugus
clssico, o poema Os Lusadas. E isso, craro, seria no mnimo
absurdo.
Existem, evidentemente, falantes da norma culta urbana,
pessoas escolarizadas, que tm problemas para [pg. 41] pronunciar
os encontros consonantais com L. Nesses casos, sim, trata-se
realmente de uma dificuldade fsica que pode ser resolvida com uma
terapia fonoaudiolgica. No dessas pessoas que estamos tratando
aqui, mas dos brasileiros falantes das variedades no-padro, em
cujo sistema fontico simplesmente no existe encontro consonantal

com

L,

independentemente

de

terem

ou

no

dificuldades

articulatrias. Quando, na escola, se depararem com os encontros


consonantais com L, preciso que o professor tenha conscincia de
que se trata de um aspecto fontico estrangeiro para eles, do
mesmo tipo dos que encontramos, por exemplo, nos cursos de ingls,
quando nos esforamos para pronunciar bem o TH de throw ou o I de
live. preciso separar bem os dois aspectos do fenmeno.
Se dizer Crudia, praca, pranta considerado errado, e, por
outro lado, dizer frouxo, escravo, branco, praga considerado
certo, isso se deve simplesmente a uma questo que no
lingstica, mas social e poltica as' pessoas que dizem Crudia,
praca, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada,
marginalizada, que no tem acesso educao formal e aos bens
culturais da elite, e por isso a lngua que elas falam sofre o mesmo
preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua lngua
considerada feia,pobre,carente, quando na verdade apenas
diferente da lngua ensinada na escola.
Ora, do ponto de vista exclusivamente lingstico, o fenmeno
que existe no portugus no-padro o mesmo que aconteceu na
histria do portugus-padro, e [pg. 42] tem at um nome tcnico:
rotacismo.

rotacismo

participou

da

formao

da

lngua

portuguesa padro, como j vimos em branco, escravo, praga, fraco


etc., mas ele continua vivo e atuante no portugus no-padro, como
em broco, chicrete, pranta, Crudia, porque essa variedade nopadro deixa que as tendncias normais e inerentes lngua se
manifestem livremente. Assim, o problema no est naquilo que se
fala, mas em quem fala o qu. Neste caso, o preconceito lingstico
decorrncia de um preconceito social. Este tipo especfico de
preconceito o que abordei em meu livro A lngua de Eullia.

Minha herona literria predileta, a boneca Emlia, de


Monteiro Lobato, no quis saber desse tipo de preconceito. Ao
visitar, no Pas da Gramtica, a priso onde Dona Sintaxe
mantinha enjaulados os vcios de linguagem, revoltou-se ao ver
atrs das grades o Provincianismo, isto , os vcios da fala rural,
do caipira (p. 120):
Emlia no achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou
que ele tambm estava trabalhando na evoluo da lngua e soltou-o.
V passear, seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser
lei um dia. Foi voc quem inventou o

VOC

em vez de

TU,

e s isso quanto no

vale? Estamos livres da complicao antiga do Tuturututu.

Como se v, do mesmo modo como existe o preconceito contra a


fala de determinadas classes sociais, tambm existe o preconceito
contra a fala caracterstica de certas regies. um verdadeiro
acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala
nordestina retratada [pg. 43] nas novelas de televiso,
principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem
nordestina , sem exceo, um tipo grotesco, rstico, atrasado,
criado para provocar o riso, o escrnio e o deboche dos demais
personagens e do espectador. No plano lingstico, atores nonordestinos expressam-se num arremedo de lngua que no falada
em lugar nenhum do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo
dizer que aquela deve ser a lngua do Nordeste de Marte! Mas ns
sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de
marginalizao e excluso.
Para mostrar que a fala nordestina nada tem de engraada
ou ridcula, vamos fazer uma pequena comparao. Na pronncia
normal do Sudeste, a consoante que escrevemos T pronunciada [t]

(como em tcheco) toda vez que seguida de um [i]. Esse fenmeno


fontico se chama palatalizao. Por causa dele, ns, sudestinos,
pronunciamos [titia] a palavra escrita TITIA. E todo mundo acha
isso perfeitamente normal, ningum tem vontade de rir quando um
carioca, mineiro ou capixaba fala assim.
Quando, porm, um falante do Sudeste ouve um falante da
zona rural nordestina pronunciar a palavra escrita OITO como
[oytu], ele acha isso muito engraado, ridculo ou errado. Ora,
do ponto de vista meramente lingstico, o fenmeno o mesmo
palatalizao , s que o elemento provocador dessa palatalizao,
o [y], est antes do [t] e no depois dele.
Ento, se o fenmeno o mesmo, por que na boca de um ele
normal e na boca de outro ele engraado, [pg. 44] feio ou
errado? Porque o que est em jogo aqui no a lngua, mas a
pessoa que fala essa lngua e a regio geogrfica onde essa pessoa
vive. Se o Nordeste atrasado, pobre, subdesenvolvido ou (na
melhor das hipteses) pitoresco, ento, naturalmente, as pessoas
que l nasceram e a lngua que elas falam tambm devem ser
consideradas assim...
Ora, faa-me o favor, Rede Globo! [pg. 45]

Mito n5
O lugar onde melhor se fala portugus
no Brasil o Maranho

No sei quem foi a primeira pessoa que proferiu essa grande


bobagem, mas a realidade que at hoje ela continua sendo
repetida por muita gente por a, inclusive gente culta, que no sabe
que isso apenas um mito sem nenhuma fundamentao cientfica.
De onde ser que veio essa idia? Esse mito nasceu, mais uma vez,
da velha posio de subservincia em relao ao portugus de
Portugal.
sabido que no Maranho ainda se usa com grande
regularidade o pronome tu, seguido das formas verbais clssicas,
com a terminao em -s caracterstica da segunda pessoa: tu vais, tu
queres, tu dizes, tu comias, tu cantavas etc. Na maior parte do
Brasil,

como

sabemos,

devido

reorganizao

do

sistema

pronominal de que j falei, o pronome tu foi substitudo por voc.


Alis, nas palavras da boneca Emlia, o tu j est velho coroco e o
que ele deve fazer, na opinio dela, ir arrumando a trouxa e
pondo-se ao fresco, e mudar-se de vez para o bairro das palavras
arcaicas. De fato, o pronome tu est em vias de extino na fala do
brasileiro, e quando ainda usado, como por exemplo em alguns
falares caractersticos de certas camadas sociais do Rio de Janeiro,
o verbo assume a forma da terceira pessoa: tu vai, tu fica, tu quer,
tu deixa disso etc., que caracteriza tambm a fala informal de
algumas outras regies. Em Pernambuco, por [pg. 46] exemplo,

muito comum a interjeio interrogativa tu acha? para indicar


surpresa ou indignao.
Ora, somente por esse arcasmo, por essa conservao de um
nico aspecto da linguagem clssica literria, que coincide com a
lngua falada em Portugal ainda hoje, que se perpetua o mito de
que o Maranho o lugar onde melhor se fala o portugus no
Brasil.
Acontece, porm, que os defensores desse mito no se do conta
de que, ao utilizarem o critrio prescritivista de correo para
sustent-lo, se esquecem de que os mesmos maranhenses que dizem
tu s, tu vais, tu foste, tu quiseste, tambm dizem: Esse um bom
livro para ti ler, em vez da forma correta, Esse um bom livro
para tu leres. Ou seja, eles atribuem ao pronome ti a mesma funo
de sujeito que em amplas regies do Brasil, nas mais diversas
camadas sociais (cultas inclusive), atribuda ao pronome mim
quando antecedido da preposio para e seguido de verbo no
infinitivo: Para mim fazer isso vou precisar da sua ajuda uma
construo sinttica que deixa tanta gente de cabelo em p.
O que acontece com o portugus do Maranho em relao ao
portugus do resto do pas o mesmo que acontece com o portugus
de Portugal em relao ao portugus do Brasil: no existe nenhuma
variedade nacional, regional ou local que seja intrinsecamente
melhor, mais pura, mais bonita, mais correta que outra.
Toda variedade lingstica atende s necessidades da comunidade
de seres humanos que a empregam. Quando deixar de atender, ela
inevitavelmente sofrer transformaes para [pg. 47] se adequar s
novas necessidades. Toda variedade lingstica tambm o
resultado de um processo histrico prprio, com suas vicissitudes e
peripcias particulares. Se o portugus de So Lus do Maranho e

de Belm do Par, assim como o de Florianpolis, conservou o


pronome tu com as conjugaes verbais lusitanas, porque nessas
regies aconteceu, no perodo colonial, uma forte imigrao de
aorianos, cujo dialeto especfico influenciou a variedade de
portugus brasileiro falado naqueles locais. O mesmo acontece com
algumas caractersticas italianizantes do portugus da cidade de
So Paulo, onde grande a presena dos imigrantes italianos e seus
descendentes, ou com castelhanismos evidentes na fala dos
gachos, que mantm estreitos contatos culturais com seus vizinhos
argentinos e uruguaios.
Numa entrevista revista Veja (10/9/97), Pasquale Cipro Neto
disse que pura lenda a idia de que o Maranho o lugar do
Brasil onde melhor se fala portugus. Ponto para ele. Infelizmente,
continuando a tratar do assunto, no hesitou em afirmar que no
cmputo geral, o carioca o que se expressa melhor sob a tica da
norma culta e que
a So Paulo que fala 'dois pastel' e acabou as ficha' um horror. No acredito que
o fato de ser uma cidade com grande nmero de imigrantes seja uma explicao
suficiente para esse portugus esquisito dos paulistanos. Na verdade, inexplicvel.

Faltam

argumentos

cientficos

rigorosos,

por

parte

do

entrevistado, que nos expliquem como chegou ao cmputo [pg. 48]


geral que lhe permitiu atribuir ao carioca uma expresso melhor
sob a tica da norma culta, nem com que critrios metodolgicos
chegou concluso de que o portugus paulistano esquisito. O
uso de expresses to generalizadoras como o carioca (de que
classe social, de que faixa etria, com que nvel de instruo?) ou a
So Paulo que fala (quase vinte milhes de habitantes, duas vezes
a populao de Portugal!) acaba reforando indiretamente (devido

influncia inegvel de quem as formulou como formador de opinio)


a idia de que o falar carioca melhor e digno de maior prestgio
que os demais falares brasileiros idia que, no passado, levou at
a se querer impor a pronncia carioca como a oficial no teatro, no
canto lrico e nas salas de aula do Brasil inteiro!
As pesquisas sociolingsticas que se baseiam em coleta de
dados por meio de gravaes da fala espontnea, viva, dos usurios
nativos da lngua confirmam uma suposio bvia: as pessoas
das classes cultas de qualquer lugar dominam melhor a norma
culta do que as pessoas das classes no-cultas de qualquer lugar.
Falantes cultos do Rio de Janeiro, do Recife, de Porto Alegre, de So
Paulo, de Catol do Rocha ou de Guaratinguet se expressaro
igualmente bem sob a tica da norma culta. Basta consultar, por
exemplo, o enorme acervo de centenas de horas de gravao da fala
urbana culta recolhido pelos pesquisadores do Projeto NURC5 para
confirmar que, [pg. 49] apesar das inevitveis variaes regionais,
existe uma norma urbana culta geral brasileira. Muitos aspectos
dessa norma urbana culta esto descritos nos seis volumes da
Gramtica do portugus falado, uma grande obra coletiva publicada
pela Editora da UNICAMP, resultado do trabalho de investigao e
anlise de dezenas de lingistas das mais diversas regies do pas.
De igual modo, fenmenos de concordncia do tipo dois pastel
e acabou as ficha so facilmente encontrveis na fala carioca,
como podemos ouvir nas fitas gravadas do Projeto CENSO, que
5

O material do Projeto NURC pode ser consultado nos vrios livros publicados com as transcries das
fitas gravadas nas cincos diferentes cidades que compem o projeto (Recife, Salvador, Rio de Janeiro,
So Paulo e Porto Alegre). Alguns desses livros so: CASTILHO & PRETI, A linguagem falada culta na
cidade de So Paulo (So Paulo, T. A. Queiroz/FAPESP, 1987 - vol. 1 - e 1988 - vol. 2); CALLOU &
LOPES, A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, UFRJ, 1992 - vol. 1 -,
1993 - vol. 2 - e 1994 - vol. 3); HILGERT, A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre (UFRS,
1997, vol. 1); MOTA & ROLLEMBERG, A linguagem falada culta na cidade do Salvador (UFBA, 1994,
vol. 1); S, CUNHA, LIMA & OLIVEIRA, A linguagem falada culta na cidade do Recife (UFPE, 1996).

investiga o uso da lngua no Rio de Janeiro nas classes sociais nocultas (isto , pessoas que no cursaram universidade)6. Alm disso,
esse tipo de concordncia se verifica de Norte a Sul do Brasil e
tambm em Portugal, segundo pesquisas recentes da professora
Maria Marta Scherre. Essa mesma pesquisadora defendeu, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma tese de doutorado com
o ttulo Reanlise da concordncia [pg. 50] nominal em portugus,
com 555 pginas, que hoje uma referncia obrigatria para quem
se aventurar a emitir opinies a respeito. Scherre mostra que, ao
contrrio do que pensa Cipro, aqueles fenmenos de concordncia
so, na verdade, altamente explicveis. Portanto no representam
uma mera esquisitice dos paulistanos, muito menos um horror.
Convm salientar que a determinao das normas culta e noculta uma questo de grau de freqncia das variantes (o que os
normativistas considerariam erros ou acertos). Por exemplo, coisas
como os menino tudo ou houveram fatos podem aparecer na fala
de brasileiros cultos.
preciso abandonar essa nsia de tentar atribuir a um nico
local ou a uma nica comunidade de falantes o melhor ou o pior
portugus e passar a respeitar igualmente todas as variedades da
lngua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura. Todas
elas tm o seu valor, so veculos plenos e perfeitos de comunicao
e de relao entre as pessoas que as falam. Se tivermos de
incentivar o uso de uma norma culta, no podemos faz-lo de modo
absoluto, fonte do preconceito. Temos de levar em considerao a
presena de regras variveis em todas as variedades, a culta
inclusive. [pg. 51]
6

A anlise de alguns fenmenos variveis do portugus falado na cidade do Rio de Janeiro, com base no
acervo do Projeto CENSO, se encontra no livro organizado por SILVA & SCHERRE, Padres
sociolingsticos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro/UFRJ, 1996.

Mito n 6
O certo falar assim
porque se escreve assim

Diante de uma tabuleta escrita COLGIO provvel que um


pernambucano, lendo-a em voz alta, diga Clgio, que um carioca
diga CUlgio, que um paulistano diga Clgio. E agora? Quem est
certo? Ora, todos esto igualmente certos. O que acontece que em
toda lngua do mundo existe um fenmeno chamado variao, isto ,
nenhuma lngua falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim
como nem todas as pessoas falam a prpria lngua de modo idntico.
Infelizmente, existe uma tendncia (mais um preconceito!)
muito forte no ensino da lngua de querer obrigar o aluno a
pronunciar do jeito que se escreve, como se essa fosse a nica
maneira certa de falar portugus. (Imagine se algum fosse falar
ingls ou francs do jeito que se escreve!) Muitas gramticas e livros
didticos chegam ao cmulo de aconselhar o professor a corrigir
quem fala muleque, bjo, minino, bisro, como se isso pudesse
anular o fenmeno da variao, to natural e to antigo na histria
das lnguas. Essa supervalorizao da lngua escrita combinada
com o desprezo da lngua falada um preconceito que data de antes
de Cristo!
claro que preciso ensinar a escrever de acordo com a
ortografia oficial, mas no se pode fazer isso tentando criar uma
lngua falada artificial e reprovando como erradas as pronncias
que so resultado natural das [pg. 52] foras internas que

governam o idioma. Seria mais justo e democrtico dizer ao aluno


que ele pode dizer BUnito ou BOnito, mas que s pode escrever
BONITO,

porque necessria uma ortografia nica para toda a

lngua, para que todos possam ler e compreender o que est escrito,
mas preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma
msica: cada instrumentista vai interpret-la de um modo todo seu,
particular!
O pintor belga Ren Magritte (1898-1967) tem um quadro
famoso, chamado A traio das imagens, no qual se v a figura de
um cachimbo e embaixo dela a frase escrita: Isto no um
cachimbo.

Em que esse exemplo pode servir nossa discusso? Isso no


um cachimbo de verdade, mas simplesmente a representao
grfica, pictrica de um cachimbo. O mesmo acontece com a escrita
alfabtica, em sua regulamentao ortogrfica oficial. Ela no a
fala: uma tentativa [pg. 53] de representao grfica, pictrica e

convencional da lngua falada. (Falarei mais detidamente da


parania ortogrfica na terceira parte deste livro.)
Quando digo que a escrita uma tentativa de representao
porque sabemos que no existe nenhuma ortografia em nenhuma
lngua do mundo que consiga reproduzir a fala com fidelidade.
Algumas ortografias, como a do espanhol, tm regras mais
generalizveis, mais simples e mais coerentes, que facilitam o ato
de ler e escrever. Mesmo assim, no castelha-no-padro da Espanha,
pode sempre haver dvidas: Z ou C? B ou V? G ou J?
Outras lnguas, como o ingls, tm mais excees do que
regras, e preciso aprender a escrever (e a pronunciar)
praticamente cada palavra, pois a generalizao das regras
ortogrficas tem boa chance de falhar: para um falante de
portugus, estranho imaginar que as palavras jail e gaol tenham
a mesma pronncia! Outras, ainda, como o chins, no buscam
reproduzir a lngua falada, e optam pela escrita ideogrfica.
Esta relao complicada entre lngua falada e lngua escrita
precisa ser profundamente reexaminada no ensino. Durante mais
de

dois

mil

anos,

os

estudos

gramaticais

se

dedicaram

exclusivamente lngua escrita literria, formal. Foi somente no


comeo do sculo XX, com o nascimento da cincia lingstica, que a
lngua falada passou a ser considerada como o verdadeiro objeto de
estudo cientfico. Afinal, a lngua falada a lngua tal como foi
aprendida pelo falante em seu contato com a famlia e com a
comunidade, [pg. 54] logo nos primeiros anos de vida. o
instrumento bsico de sobrevivncia. Um grito de socorro tem muito
mais eficcia do que essa mesma mensagem escrita.
A lngua escrita, por seu lado, totalmente artificial, exige
treinamento, memorizao, exerccio, e obedece a regras fixas, de

tendncia conservadora, alm de ser uma representao no


exaustiva da lngua falada.
Faa voc mesmo o teste: pegue uma palavra bem simples
fogo, por exemplo e pronuncie-a com todas as inflexes e tons de
voz que conseguir: espanto, medo, alegria, tristeza, saudade, ira,
remorso,

horror,

felicidade,

histeria,

pavor...

Depois

tente

reproduzir por escrito essas mesmas inflexes e tons de voz.


impossvel. O mximo que a lngua escrita oferece so os sinais de
exclamao e de interrogao! A mera forma escrita no capaz de
traduzir as inflexes e as intenes pretendidas pelo falante. Por
isso, os autores de textos teatrais indicam, entre parnteses, a
emoo, sensao ou sentimento que o ator deve expressar numa
dada fala.
A importncia da lngua falada para o estudo cientfico est
principalmente no fato de ser nessa lngua falada que ocorrem as
mudanas e as variaes que incessantemente vo transformando a
lngua. Quem quiser, por exemplo, conhecer o estado atual da
lngua portuguesa do Brasil precisar investigar empiricamente a
lngua falada (como fazem os pesquisadores dos projetos NURC e
CENSO, que j citei, entre outros). Afinal, a escola, as gramticas
normativas e os livros didticos at hoje afirmam que os pronomessujeitos de segunda pessoa so [pg. 55] tu e vs, que o pronome voc
simplesmente uma forma de tratamento, que a mesclise (darvo-lo-ei, di-lo-amos, amar-nos-emos) ainda uma opo para a
colocao dos pronomes oblquos, ou que o futuro do subjuntivo do
verbo ver vir. Essa, porm, j no a realidade de boa parte da
lngua escrita no Brasil, que dir da lngua falada!
Do ponto de vista da histria de cada indivduo, o aprendizado
da lngua falada sempre precede o aprendizado da lngua escrita,

quando ele acontece. Basta citar os bilhes de pessoas que nascem,


crescem, vivem e morrem sem jamais aprender a ler e a escrever! E
no entanto ningum pode negar que so falantes perfeitamente
competentes de suas lnguas maternas.
Do ponto de vista da histria da humanidade a mesma coisa.
A espcie humana tem, pelo menos, um milho de anos. Ora, as
primeiras formas de escrita, conforme a classificao tradicional dos
historiadores, surgiram h apenas nove mil anos. A humanidade,
portanto, passou 990.000 anos apenas falando!
Quando o estudo da gramtica surgiu, no entanto, na
Antigidade clssica, seu objetivo declarado era investigar as
regras da lngua escrita

para

poder preservar as formas

consideradas mais corretas e elegantes da lngua literria. Alis,


a palavra gramtica, em grego, significa exatamente a arte de
escrever.
Infelizmente,

essas

mesmas

regras

da

lngua

literria

comearam a ser cobradas da lngua falada, o que um disparate


cientfico sem tamanho! [pg. 56]
H cientistas que se dedicam especificamente a estudar as
diferenas, semelhanas, inter-relaes e interaes que existem
entre as duas modalidades. O ensino tradicional da lngua, no
entanto, quer que as pessoas falem sempre do mesmo modo como os
grandes escritores escreveram suas obras. A gramtica tradicional
despreza totalmente os fenmenos da lngua oral, e quer impor a
ferro e fogo a lngua literria como a nica forma legtima de falar e
escrever, como a nica manifestao lingstica que merece ser
estudada.

Veja-se, por exemplo, o caso da Nova gramtica do portugus


contemporneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra. Ao definirem o
objetivo de seu trabalho, os autores declaram, no prefcio:
Trata-se de uma tentativa de descrio do portugus atual na sua forma culta, isto
, da lngua como a tm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos
do Romantismo para c. [grifo meu]

Essa obra, portanto, s pode ser consultada por quem tiver


dvidas no momento de escrever um texto literrio, j que, segundo
os prprios autores, no sero abordados fenmenos caractersticos
de outras normas escritas, como a jornalstica ou a da produo
cientfica, muito menos os fenmenos tpicos da lngua falada.
A gramtica de Celso Cunha e Lindley Cintra louvvel pela
honestidade com que declara seu objeto de estudo (embora, por
diversas razes que no cabe aqui enumerar, eles no cumpram o
que prometem no prefcio [pg. 57] e acabem tratando de fatos da
lngua oral ao lado de fenmenos caractersticos da escrita).
A maioria das outras obras desse gnero, porm, no faz assim:
seus autores assumem a norma literria como a nica digna de ser
estudada, ensinada e praticada, e acham isso to natural que nem
se do ao trabalho de defini-la como seu objeto de estudo. Fica
evidente que para eles s essa norma literria conservadora merece
o ttulo de lngua portuguesa. O que dito ali vale para todas as
variedades do portugus, em qualquer lugar do mundo, em
qualquer momento histrico, em qualquer classe social, em
qualquer faixa etria. Portanto, no uma gramtica, uma
panacia...

Essa nfase no texto literrio tem produzido uma viso


redutora da lngua, identificando-a freqentemente apenas com a
regulamentao ortogrfica.
Como se no bastasse, os autores de compndios gramaticais,
inclusive os mais recentes, no fazem a distino bsica, elementar,
entre ortografia e fontica, isto , entre as regras da lngua escrita e
os fenmenos da lngua oral. Alis, por mais incrvel que parea,
muitos deles classificam a ortografia como uma das subdivises da
fontica! o mesmo que querer incluir os ursinhos de pelcia na
classe dos mamferos carnvoros!
Gramtico muito mais criterioso e atento o rinoceronte
Quindim personagem do Stio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro
Lobato , que levando as crianas do stio a passear pelo Pas da
Gramtica,

insistiu

muito

para

que

seus

alunos

no

confundissem letra e som (p. 6): [pg. 58]


Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu com eles numa regio onde o ar
chiava de modo estranho.
Que zumbido ser este? indagou a menina [Narizinho]. Parece que
andam voando por aqui milhes de vespas invisveis.
que j entramos em terras do Pas da Gramtica explicou o
rinoceronte. Estes zumbidos so os Sons Orais, que voam soltos no espao.
No comece a falar difcil que ns ficamos na mesma observou
Emlia. Sons Orais, que pedantismo esse?
Som Oral quer dizer som produzido pela boca. A, E, I, O, U so Sons
Orais, como dizem os senhores gramticos.
Pois diga logo que so letras! gritou Emlia.
Mas no so letras! protestou o rinoceronte. Quando voc diz A ou
O, voc est produzindo um som, no est escrevendo uma letra. Letras so
sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro h os Sons
Orais; depois que aparecem as letras, para marcar esses sons orais. Entendeu?

O ar continuava num zunzum cada vez maior. Os meninos pararam, muito


atentos, a ouvir.
Estou percebendo muitos sons que conheo disse Pedrinho, com a mo
em concha ao ouvido.
Todos os sons que andam zumbindo por aqui so velhos conhecidos seus,
Pedrinho.
Querem ver que o tal alfabeto? lembrou Narizinho. E mesmo!...
Estou distinguindo todas as letras do alfabeto...
No, menina; voc est apenas distinguindo todos os sons das letras do
alfabeto corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual de dona Benta. Se
voc escrever cada um desses sons, ento, sim; ento surgem as letras do alfabeto.
[pg. 59]

Esse livro de Monteiro Lobato foi publicado em 1934. Mas as


lies do rinoceronte Quindim ainda precisam ser lembradas e
relembradas, pois a literatura gramatical perpetua at hoje a
confuso entre letra e fonema.
assim que procedem, por exemplo, Pasquale Cipro Neto e
Ulisses Infante em sua Gramtica da lngua portuguesa, publicada
no final de 1997. Por isso a gente no deve se surpreender quando
esses autores explicam que a letra x representa o fonema // depois
de um ditongo, e do como exemplo de palavras com ditongo:
ameixa, caixa, peixe, eixo, frouxo, trouxa, baixo, sem fazer a menor
meno ao fenmeno de monotongao que j atingiu essas palavras
na lngua falada no Brasil, inclusive em sua norma culta urbana,
resultando nas pronncias amxa, caxa, pxe, xo, frxo e
baxo. O termo ditongo (dois sons), que se aplica a um fenmeno
fontico, no cabe nesses exemplos, que retratam simplesmente a
conveno ortogrfica que ainda conserva, na escrita, as duas letras
vogais antes do X. O que acontece que esses monotongos podem
vir a se ditongar em situaes bem especficas, tal como a reduo

da velocidade da fala com finalidade de dar nfase ao enunciado.


Pensemos, por exemplo, no uso das palavras louco e loucura quando
usadas de modo afetado para indicar coisas surpreendentes ou
muito boas: Foi uma louuucura!
Os mesmos autores dizem que na palavra QUAL existe um
ditongo crescente, quando qualquer brasileiro de ouvido mais
afinado vai reconhecer a, na verdade, um tritongo. muito
restrita, no portugus do Brasil, a pronncia [pg. 60] /l/ ou // para o
L

que aparece em final de slaba. Na grande maioria dos falares

brasileiros, esse L se pronncia como a semivogal /w/.


o velho preconceito grafocntrico, isto , a anlise de toda a
lngua do ponto de vista restrito da escrita, que impede o
reconhecimento da verdadeira realidade lingstica.
Por

isso,

temos

de

desconfiar

desses

livros

que

se

autodenominam Gramtica da lngua portuguesa sem especificar


seu objeto de estudo. A lngua portuguesa que eles abordam uma
variedade especfica, dentre as muitas existentes, que tem de ser
designada com todos os seus qualificativos: Gramtica da lngua
portuguesa escrita, literria, formal, antiga. Todos os demais
fenmenos vivos da lngua falada e de outras modalidades da lngua
escrita so deixados de fora desses livros. [pg. 61]

Mito n 7
preciso saber gramtica
para falar e escrever bem

difcil encontrar algum que no concorde com a declarao


acima. Ela vive na ponta da lngua da grande maioria dos
professores de portugus e est formulada em muitos compndios
gramaticais, como a j citada Gramtica de Cipro e Infante, cujas
primeirssimas

palavras

so:

Gramtica

instrumento

fundamental para o domnio do padro culto da lngua.


muito comum, tambm, os pais de alunos cobrarem dos
professores o ensino dos pontos de gramtica tais como eles
prprios os aprenderam em seu tempo de escola. E no faltam casos
de pais que protestaram veementemente contra professores e
escolas que, tentando adotar uma prtica de ensino da lngua
menos conservadora, no seguiam rigorosamente o que est nas
gramticas. Conheo gente que tirou seus filhos de uma escola
porque

livro

indispensveis

didtico
como

ali

adotado

antnimos,

no

ensinava

coletivos

coisas
anlise

sinttica...
Por que aquela declarao um mito? Porque, como nos diz
Mrio Perini em Sofrendo a gramtica (p. 50), no existe um gro
de evidncia em favor disso; toda a evidncia disponvel em
contrrio. Afinal, se fosse assim, todos os gramticos seriam
grandes escritores (o que est longe de ser verdade), e os bons
escritores seriam especialistas em gramtica. [pg. 62]

Ora, os escritores so os primeiros a dizer que gramtica no


com eles! Rubem Braga, indiscutivelmente um dos grandes de nossa
literatura, escreveu uma crnica deliciosa a esse respeito chamada
Nascer no Cairo, ser fmea de cupim.
Carlos Drummond de Andrade (preciso de adjetivos para
qualific-lo?),

no

poema

Aula

de

Portugus

tambm

testemunho de sua perturbao diante do mistrio das figuras de


gramtica, esquipticas, que compem o amazonas de minha
ignorncia. Drummond ignorante?
E o que dizer de Machado de Assis que, ao abrir a gramtica de
um sobrinho, se espantou com sua prpria ignorncia por no ter
entendido nada? Esse e outros casos so citados por Celso Pedro
Luft em Lngua e liberdade (pp. 23-25). E esse mesmo autor nos diz
(p. 21):
Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurana
na linguagem, gera averso ao estudo do idioma, medo expresso livre e
autntica de si mesmo.

Mrio Perini, no livro que citamos acima, chama a ateno


para a propaganda enganosa contida no mito de que preciso
ensinar gramtica para aprimorar o desempenho lingstico dos
alunos:
Quando justificamos o ensino de gramtica dizendo que para que os alunos
venham a escrever (ou ler, ou falar) melhor, estamos prometendo uma mercadoria
que no podemos entregar. Os alunos percebem isso com bastante clareza, embora
talvez no o possam explicitar; e esse um dos fatores do descrdito da disciplina
entre eles. [pg. 63]

E Sirio Possenti, j citado, lembra-nos que as primeiras


gramticas do Ocidente, as gregas, s foram elaboradas no sculo II

a. C, mas que muito antes disso j existira na Grcia uma literatura


ampla e diversificada, que exerce influncia at hoje em toda a
cultura ocidental. A Ilada e a Odissia j eram conhecidas no
sculo VI a. C, Plato escreveu seus fascinantes Dilogos entre os
sculos V e IV a. C, na mesma poca do grande dramaturgo Esquilo,
verdadeiro

criador

da

tragdia

grega.

Que

gramtica

eles

consultaram? Nenhuma. Como puderam ento escrever e falar to


bem sua lngua?
O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inverso da
realidade histrica. As gramticas foram escritas precisamente
para descrever e fixar como regras e padres as manifestaes
lingsticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados
dignos de admirao, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramtica
normativa decorrncia da lngua, subordinada a ela, dependente
dela. Como a gramtica, porm, passou a ser um instrumento de
poder e de controle, surgiu essa concepo de que os falantes e
escritores da lngua que precisam da gramtica, como se ela fosse
uma espcie de fonte mstica invisvel da qual emana a lngua
bonita, correta e pura. A lngua passou a ser subordinada e
dependente da gramtica. O que no est na gramtica normativa
no portugus. E os compndios gramaticais se transformaram
em livros sagrados, cujos dogmas e cnones tm de ser obedecidos
risca para no se cometer nenhuma heresia. [pg. 64]
O resultado dessa inverso dos fatos histricos visvel, por
exemplo, na Gramtica de Cipro e Infante que, na p. 16, afirma:
A Gramtica normativa estabelece a norma culta, ou seja, o padro lingstico que
socialmente considerado modelar [...] As lnguas que tm forma escrita, como
o caso do portugus, necessitam da Gramtica normativa para que se garanta a
existncia de um padro lingstico uniforme [...].

Ora, no a gramtica normativa que estabelece a norma


culta. A norma culta simplesmente existe como tal. A tarefa de uma
gramtica seria, isso sim, definir, identificar e localizar os falantes
cultos, coletar a lngua usada por eles e descrever essa lngua de
forma clara, objetiva e com critrios tericos e metodolgicos
coerentes. Sem isso no podemos confiar em gramticas como a de
Domingos Paschoal Cegalla, que afirma simplesmente:
Este livro pretende ser uma Gramtica Normativa da Lngua Portuguesa do Brasil,
conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na poca atual [Novssima
gramtica da lngua portuguesa, p. xix].

Mas quem so essas pessoas cultas na poca atual? Com que


critrios o autor as classificou de cultas? Com que metodologia
precisa identificou o modo como elas falam e escrevem? Pois
disso precisamente que mais necessitamos hoje no Brasil: da
descrio detalhada e realista da norma culta objetiva, com base em
coletas confiveis que se utilizem dos recursos tecnolgicos mais
avanados, para que ela sirva de base ao ensino/aprendizagem [pg.
65] na escola, e no mais uma norma fictcia que se inspira num
ideal lingstico inatingvel, baseado no uso literrio, artstico,
particular e exclusivo dos grandes escritores. Afinal, um instrutor
de auto-escola quer formar bons motoristas, e no campees
internacionais de Frmula 1. Um professor de portugus quer
formar bons usurios da lngua escrita e falada, e no provveis
candidatos ao Prmio Nobel de literatura!
Por outro lado, no a gramtica normativa que vai garantir
a existncia de um padro lingstico uniforme. Esse padro
lingstico (que pode chegar a certo grau de uniformidade, mas
nunca ser totalmente uniforme, pois usado por seres humanos

que nunca ho de ser criaturas fsica, psicolgica e socialmente


idnticas),

como

dissemos,

existe

na

sociedade,

independentemente de haver ou no livros que o descrevam.


As plantas s existem porque os livros de botnica as
descrevem? claro que no. Os continentes s passaram a existir
depois que os primeiros cartgrafos desenharam seus mapas? Difcil
acreditar. A Terra s passou a ser esfrica depois que as primeiras
fotografias tiradas do espao mostraram-na assim? No. Sem os
livros de receitas no haveria culinria? Eu sei muito bem que no:
a melhor cozinheira que conheo, capaz de preparar centenas de
pratos diferentes, os mais sofisticados, uma pernambucana de
quase oitenta anos, cem por cento analfabeta.
Esse mito est ligado milenar confuso que se faz entre
lngua e gramtica normativa. Mas preciso desfaz-la. [pg. 66]
No h por que confundir o todo com a parte. Lembra-se do que eu
falei na abertura do livro sobre a gramtica normativa ser um
igap? Acho que vale a pena repetir aqui. Na Amaznia, igap
uma grande poa de gua estagnada s margens de um rio,
sobretudo depois da cheia. Acho uma boa metfora para a
gramtica normativa. Como eu disse, enquanto a lngua um rio
caudaloso, longo e largo, que nunca se detm em seu curso, a
gramtica normativa apenas um igap, uma grande poa de gua
parada, um charco, um brejo, um terreno alagadio, margem da
lngua. Enquanto a gua do rio/lngua, por estar em movimento, se
renova incessantemente, a gua do igap/gramtica normativa
envelhece e s se renovar quando vier a prxima cheia.

a mesma coisa que nos explica, em termos cientficos, Luiz


Carlos Cagliari em Alfabetizao & lingstica7:
A gramtica normativa foi num primeiro momento uma gramtica descritiva de
um dialeto de uma lngua. Depois a sociedade fez dela um corpo de leis para reger
o uso da linguagem. Por sua prpria natureza, uma gramtica normativa est condenada ao fracasso, j que a linguagem um fenmeno dinmico e as lnguas
mudam com o tempo; e, para continuar sendo a expresso do poder social
demonstrado por um dialeto, a gramtica normativa deveria mudar.

Se no o ensino/estudo da gramtica que vai garantir a


formao de bons usurios da lngua, o que vai garanti-la? Existe
muito debate a respeito entre os lingistas [pg. 67] e os pedagogos.
O certo que eles so praticamente unnimes em combater aquele
mito. H lugar para a gramtica na escola? Parece que sim. Mas
tambm parece ser. um lugar bastante diferente do que lhe era
atribudo na prtica tradicional de ensino da lngua. Na terceira
parte deste livro, tentarei expor algumas opinies a respeito.
De todo modo, algumas pessoas muito competentes j
explicaram tudo isso melhor do que eu seria capaz. Por isso, ao
leitor e leitora interessados nesse tema recomendo a leitura, entre
outros, dos j citados Sofrendo a gramtica, de Mrio Perini, Por
que (no) ensinar gramtica na escola, de Srio Possenti, e Lngua e
liberdade, de Celso Pedro Luft, e tambm Linguagem, lngua e fala,
de Ernani Terra; Contradies no ensino de portugus, de Rosa
Virgnia Mattos e Silva, e Gramtica na escola, de Maria Helena de
Moura Neves. Esses livros nos ajudam a compreender melhor os
mecanismos de excluso que agem por trs da imposio das
normas gramaticais conservadoras no ensino da lngua e de que

Citado por Ernani Terra, Linguagem, lngua e fala, p. 46.

modo poderamos, em nossa prtica pedaggica, tentar desmontlos. [pg. 68]

Mito n8
O domnio da norma culta
um instrumento de ascenso social

Este mito, que vem fechar nosso circuito mitolgico, tem muito
que ver com o primeiro, o mito da unidade lingstica do Brasil.
Esses dois mitos so aparentados porque ambos tocam em srias
questes sociais. muito comum encontrar pessoas muito bemintencionadas que dizem que a norma padro conservadora,
tradicional, literria, clssica que tem de ser mesmo ensinada nas
escolas porque ela um instrumento de ascenso social. Seria
ento o caso de dar uma lngua queles que eu chamei de semlngua?
Ora, se o domnio da norma culta fosse realmente um
instrumento de ascenso na sociedade, os professores de portugus
ocupariam o topo da pirmide social, econmica e poltica do pas,
no mesmo? Afinal, supostamente, ningum melhor do que eles
domina a norma culta. S que a verdade est muito longe disso
como bem sabemos ns, professores, a quem so pagos alguns dos
salrios mais obscenos de nossa sociedade. Por outro lado, um
grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo
primrio, mas que seja dono de milhares de cabeas de gado, de
indstrias agrcolas e detentor de grande influncia poltica em sua
regio vai poder falar vontade sua lngua de caipira, com todas
as formas sintticas consideradas erradas pela gramtica [pg. 69]

tradicional, porque ningum vai se atrever a corrigir seu modo de


falar.
O que estou tentando dizer que o domnio da norma culta de
nada vai adiantar a uma pessoa que no tenha todos os dentes, que
no tenha casa decente para morar, gua encanada, luz eltrica e
rede de esgoto. O domnio da norma culta de nada vai servir a uma
pessoa que no tenha acesso s tecnologias modernas, aos avanos
da medicina, aos empregos bem remunerados, participao ativa e
consciente nas decises polticas que afetam sua vida e a de seus
concidados. O domnio da norma culta de nada vai adiantar a uma
pessoa que no tenha seus direitos de cidado reconhecidos
plenamente, a uma pessoa que viva numa zona rural onde um
punhado de senhores feudais controlam extenses gigantescas de
terra frtil, enquanto milhes de famlias de lavradores sem-terra
no tm o que comer.
Achar que basta ensinar a norma culta a uma criana pobre
para que ela suba na vida o mesmo que achar que preciso
aumentar o nmero de policiais na rua e de vagas nas
penitencirias para resolver o problema da violncia urbana.
A violncia urbana est intimamente ligada a uma situao
social de profunda injustia, que d ao Brasil, como eu j disse, o
triste segundo lugar entre os pases com a pior distribuio de
renda de todo o mundo, perdendo apenas para Botswana, um pas
africano desrtico, muito menor e muito menos desenvolvido.
preciso garantir, sim, a todos os brasileiros o reconhecimento
(sem o tradicional julgamento de valor) da [pg. 70] variao
lingstica, porque o mero domnio da norma culta no uma
frmula mgica que, de um momento para outro, vai resolver todos
os problemas de um indivduo carente. preciso favorecer esse

reconhecimento, mas tambm garantir o acesso educao em seu


sentido mais amplo, aos bens culturais, sade e habitao, ao
transporte de boa qualidade, vida digna de cidado merecedor de
todo respeito.
Como fcil perceber, o que est em jogo no a simples
transformao de um indivduo, que vai deixar de ser um semlngua padro para tornar-se um falante da variedade culta. O que
est em jogo a transformao da sociedade como um todo, pois
enquanto vivermos numa estrutura social cuja existncia mesma
exige desigualdades sociais profundas, toda tentativa de promover a
ascenso social dos marginalizados , seno hipcrita e cnica,
pelo menos de uma boa inteno paternalista e ingnua.
Por isso eu me pergunto: ser que doando a lngua padro a
um indivduo das classes subalternas ele vai, automaticamente,
tornar-se um patro? No mera coincidncia etimolgica o fato de
padro e patro serem duas formas divergentes de uma mesma
origem comum: o latim patronu-, que tem tambm a mesma raiz de
paternalismo e patriarcalismo.
Valer mesmo a pena promover a ascenso social para que
algum se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos, tal
como ela se apresenta hoje? Basta pensar um pouco nos indivduos
que detm o poder no Brasil: no so (quando so) apenas falantes
da norma culta, mas so sobretudo, em sua grande maioria,
homens, [pg. 71] brancos, heterossexuais, nascidos/criados na
poro Sul-Sudeste do pas ou oriundos das oligarquias feudais do
Nordeste.
Como eu j tinha avisado na abertura do livro, falar da lngua
falar de poltica, e em nenhum momento esta reflexo poltica pode
estar ausente de nossas posturas tericas e de nossas atitudes

prticas de cidado, de professor e de cientista. Do contrrio,


estaremos apenas contribuindo para a manuteno do crculo
vicioso do preconceito lingstico e do irmo gmeo dele, o crculo
vicioso da injustia social. [pg. 72]

II
O crculo vicioso
do preconceito lingstico

1. Os trs elementos que so quatro


Os mitos que acabamos de examinar so transmitidos e
perpetuados em nossa sociedade, cada um deles em grau maior ou
menor, por um mecanismo que podemos chamar de crculo vicioso
do preconceito lingstico. Esse crculo vicioso se forma pela unio
de trs elementos que, sem desrespeitar meus amigos telogos,
costumo

denominar

Santssima

Trindade

do

preconceito

lingstico. Esses trs elementos so a gramtica tradicional, os


mtodos tradicionais de ensino e os livros didticos:

Como que se forma esse crculo? Assim: a gramtica


tradicional inspira a prtica de ensino, que por sua [pg. 73] vez
provoca o surgimento da indstria do livro didtico, cujos autores
fechando o crculo recorrem gramtica tradicional como fonte
de concepes e teorias sobre a lngua.

gramtica

tradicional,

em

sua

vertente

normativo-

prescritivista, continua firme e forte, como fcil verificar nos


compndios gramaticais mais recentes. As prticas de ensino
variam muito de regio para regio, de escola para escola, e at de
professor para professor, de acordo com as concepes pedaggicas
adotadas. A tendncia atual, mencionada no incio deste livro,
crtica dos preconceitos e ao exerccio da tolerncia tem tornado o
ambiente escolar bastante mais respirvel e democrtico do que,
por exemplo, na poca em que estudei, em plena ditadura militar.
Como j vimos, a mais alta instncia educacional do pas, o
Ministrio da Educao, tem feito esforos louvveis para provocar
uma reflexo sobre os temas relativos tica e cidadania plena do
indivduo, para estimular uma postura menos dogmtica e mais
flexvel, por parte, pelo menos, das escolas pblicas. Os j citados
Parmetros curriculares nacionais reconhecem que existe
muito preconceito decorrente do valor atribudo s variedades padro e ao estigma
associado s variedades no-padro, consideradas inferiores ou erradas pela
gramtica. Essas diferenas no so imediatamente reconhecidas e, quando so,
so objeto de avaliao negativa.
Para cumprir bem a funo de ensinar a escrita e a lngua padro, a escola
precisa livrar-se de vrios mitos: o de que [pg. 74] existe uma forma correta de
falar, o de que a fala de uma regio melhor do que a de outras, o de que a fala
correta a que se aproxima da lngua escrita, o de que o brasileiro fala mal o
portugus, o de que o portugus uma lngua difcil, o de que preciso
consertar a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.
Essas crenas insustentveis produziram uma prtica de mutilao cultural
[...]1

Ministrio da Educao e do Desporto (1998): Parmetros curriculares nacionais, Lngua Portuguesa,


5 a 8a sries, p. 31.

Temos ainda de esperar para ver em que medida esses esforos


se refletiro na prtica quotidiana, efetiva, dos professores em sala
de aula. Acompanhando esse movimento, muitas editoras vm
tentando produzir um material didtico mais compatvel com as
novas concepes pedaggicas, e o sistema oficial de avaliao dos
livros didticos, apesar de muito criticado, tem contribudo para
uma reviso das formas tradicionais de elaborao desse tipo de
livro.
Mas os preconceitos, como bem sabemos, impregnam-se de tal
maneira

na

mentalidade

das

pessoas

que

as

atitudes

preconceituosas se tornam parte integrante do nosso prprio modo


de ser e de estar no mundo. necessrio um trabalho lento,
contnuo e profundo de conscientizao para que se comece a
desmascarar os mecanismos perversos que compem a mitologia do
preconceito. E o tipo mais trgico de preconceito no aquele que
exercido por uma pessoa em relao a outra, mas o preconceito [pg.
75] que uma pessoa exerce contra si mesma. Infelizmente, ainda
existem muitas mulheres que se consideram inferiores aos
homens; existem negros que acreditam que seu lugar mesmo de
subservincia em relao aos brancos; existem homossexuais
convictos de que sofrem de uma doena que pode, inclusive, ser
curada...
Do mesmo modo, muitos brasileiros acreditam que no sabem
portugus, que portugus muito difcil ou que a lngua falada
aqui toda errada. E ao contrrio dos demais preconceitos, que
vm sendo atacados com algum sucesso com diversos mtodos de
combate, o preconceito lingstico prossegue sua marcha. Se j
existe uma mudana de atitude nos livros didticos e na pedagogia

oficial, por que o crculo vicioso do preconceito lingstico continua


girando?
Intrigado com isso, comecei a prestar ateno minha volta e
cheguei concluso de que o crculo vicioso no estava completo.
Descobri que, assim como os Trs Mosqueteiros de Alexandre
Dumas so quatro, tambm existe um quarto elemento oculto
dentro daquele crculo. Como este quarto elemento no to
compactamente institucionalizado quanto os demais, a gente deixa
de perceb-lo.
Mas, afinal, que quarto elemento esse? aquilo que resolvi
chamar de comandos paragramaticais. todo esse arsenal de
livros, manuais de redao de empresas jornalsticas, programas de
rdio e de televiso, colunas de jornal e de revista, CD-ROMS,
consultrios gramaticais [pg. 76] por telefone e por a afora... a
saudvel epidemia a que se refere Arnaldo Niskier no artigo que
citei ao falar do Mito n 2, epidemia que, para mim, nada tem de
saudvel, e

vou

explicar por qu. O que

os comandos

paragramaticais poderiam representar de utilidade para quem tem


dvidas na hora de falar ou de escrever acaba se perdendo por trs
da espessa neblina de preconceito que envolve essas manifestaes
da (multi)mdia. Assim, tudo o que elas fazem de concreto
perpetuar as velhas noes de que brasileiro no sabe portugus e
de que portugus muito difcil.
uma pena que seja assim. Todo esse formidvel poder de
influncia dos meios de comunicao e dos recursos da informtica
poderia ser de grande utilidade se fosse usado precisamente na
direo oposta: na destruio dos velhos mitos, na elevao da autoestima lingstica dos brasileiros, na divulgao do que h de
realmente fascinante no estudo da lngua. Mas no assim. Toda

vez que algum se pe a falar da situao lingstica do Brasil,


para repetir as mesmas queixas e lamrias de cem anos atrs ou
mais.
Um exemplo. Na entrevista de Pasquale Cipro Neto revista
Veja, que citamos na primeira parte deste livro, o texto que
antecede a entrevista propriamente dita repisa aqueles mesmos
chaves bolorentos:
[...] professor de portugus um idioma que, de to maltratado no dia-a-dia dos
brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhes que o tm como
lngua materna. [pg. 77]

E a primeira pergunta, como era de prever diante de uma


abertura to pessimista, s podia ser: Por que o portugus to
mal falado e to mal escrito no Brasil? E o entrevistado parte logo
para a explicao das causas visveis dessa situao, sem
contestar em momento algum a afirmao, fcil de negar, contida
na pergunta. E da mesma forma como Cndido de Figueiredo, em
1903, e Arnaldo Niskier, em 1998, ele investe contra os
estrangeirismos declarando que
o sujeito que usa um termo em ingls no lugar do equivalente em portugus , na
minha opinio, um idiota.

Ora, se ele mesmo reconhece que o uso de estrangeirismos a


face mais irritante de um pas colonizado culturalmente como o
nosso, injusto chamar de idiota a pessoa que , de fato, uma
vtima dessa colonizao cultural. Se nosso comrcio est repleto de
nomes em ingls porque os comerciantes e os industriais sabem
que isso atrai mais o pblico, que qualquer produto com aparncia
de estrangeiro tem maior aceitao por parte do consumidor.

Quanto aos comandos paragramaticais, no faltam exemplos


do preconceito lingstico que os orienta. Como o espao de que
disponho neste livro muito pequeno, no ser possvel fazer um
exame

pormenorizado

de

muitas

dessas

manifestaes

preconceituosas, por isso me limitarei a algumas mais gritantes,


que merecem ser denunciadas. [pg. 78]

2. Sob o imprio de Napoleo


O mais respeitado e renomado propagador do preconceito
lingstico por meio de comandos paragramaticais no Brasil foi,
durante longas dcadas, o professor Napoleo Mendes de Almeida,
at falecer no comeo de 1998, aos 87 anos. Ele nunca escondeu sua
intolerncia e seu autoritarismo em suas colunas de jornal, e fcil
verific-lo nas mais de 600 pginas de seu Dicionrio de questes
vernculas. Como ele foi (e ainda ) aclamado por muitos como um
defensor intransigente da lngua, parece-me oportuno mostrar de
que maneira ele exerceu essa sua defesa.
O verbete VERNCULO do citado Dicionrio comea assim:
Os delinqentes da lngua portuguesa fazem do princpio histrico quem faz a
lngua o povo verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua
gramtica, de seu vocabulrio, esquecidos de que a falta de escola que ocasiona
a transformao, a deteriorao, o apodrecimento de uma lngua. Cozinheiras,
babs, engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos que devem figurar,
segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres de nossa sintaxe e legtimos
defensores do nosso vocabulrio.

Basta esse pargrafo para demonstrar que, alm do preconceito


lingstico, est a manifestado um profundo preconceito social. Em
outras passagens do livro, ele fala novamente de lngua de
cozinheiras e de infelizes caipiras. [pg. 79]

Para Napoleo Mendes de Almeida, a literatura brasileira


morreu em 1908, junto com Machado de Assis. Toda a vasta
produo do Modernismo e dos perodos seguintes merecedora de
seu mais profundo desprezo:
Escritor o que tem forma e contedo; aquela ter quem conhecer o idioma; este,
quem tiver erudio e, principalmente, cultura. Se somente a forma, temos o
frvolo; se somente o contedo, temos o tcnico; se as duas coisas, temos o
escritor; se nenhuma delas, teremos o... modernista.

Recusa-se a escrever o nome de Carlos Drummond de Andrade,


a quem nega o ttulo de poeta e escritor por ter usado o verbo ter no
lugar de haver no clebre poema No meio do caminho, pecado
suficiente para conden-lo ao inferno dos gramticos!
As explicaes de Napoleo se baseiam exclusivamente em
comparaes com o latim e o grego, e freqentemente atribuem a
origem dos supostos erros da sintaxe dos brasileiros imitao
servil do francs ou do ingls, desconsiderando sistematicamente
todas as contribuies da cincia lingstica moderna. Alis, no
verbete LINGSTICA, ele deixa transparecer sua desinformao
acerca do que realmente essa cincia:
A lingstica no estuda idioma nem gramtica nenhuma, a lingstica estuda a
fala, explica fatos naturais de articulao, de formas de expresso oral do ser
humano; como estudo da estrutura das lnguas em geral, no vai alm da fontica.
Enganam-se os pais, enganam-se os filhos quando pensam estar a escola, a
faculdade ensinando gramtica, ensinando a lngua da terra porque no programa
consta lingstica. O objeto da lingstica [pg. 80] a lngua no sentido da fala,
de dom de expressar o homem por palavras o pensamento; um estudo sem
utilidade especfica para este ou aquele idioma. [...] um dos grandes enganos de
certas faculdades de letras fazer alunos acreditar que esto a aprender a lngua de

sua terra com explanaes de estrutura da fala do homem. a lingstica um dos


estorvos do aprendizado da lngua portuguesa em escolas brasileiras.

Para ele, estudar lingstica fixar inteis, pretensiosas e


ridculas bizantinices. Fica evidente por essas palavras que o
professor Napoleo jamais ps os ps numa boa universidade depois
que o ensino da lingstica foi institudo nos cursos de letras do
Brasil. E que tampouco leu um nico sequer dos muitssimos livros
intitulados Introduo lingstica para saber qual o verdadeiro
objeto de estudo dessa cincia. Acreditar que a lingstica no vai
alm da fontica de uma ingenuidade imperdovel em algum
que julgava ter autoridade suficiente para policiar a lngua dos
jornalistas e dos escritores, para decretar o que certo e errado
no portugus brasileiro, para afirmar, sem papas na lngua, no
verbete VERNCULO, que
portugus estropiado que no Brasil se fala, lngua de gria, lngua sem peias
sintticas, lngua de flexo arbitrria, lngua do 'deix v', do 'mande ele', do 'j te
disse que voc', do no lhe conheo', do 'fiz ele estudar', do 'vi os meninos sarem'.

Esse seu total desconhecimento da lingstica que lhe


permite fazer conjecturas sem nenhum fundamento cientfico ou de
qualquer outra natureza como: [pg. 81]
A gramtica, no que diz respeito funo da palavra, internacional. O que
sujeito em portugus sujeito em chins; o que objeto direto em nosso idioma
objeto direto em qualquer outro, e o mesmo se diga de todas as funes sintticas
e de todas as classes de palavras.

Essa gramtica internacional pura fico, fruto da


ignorncia lingstica do autor. Para comprovar isso, e usando o

exemplo que ele mesmo sugeriu o chins basta um breve


exame da literatura cientfica especializada:
[em chins] no existe nenhuma morfologia de casos que assinale diferenas entre
relaes gramaticais como sujeito, objeto direto ou objeto indireto, nem existe
qualquer concordncia ou flexo verbal para indicar o que sujeito e o que
objeto. No chins, de fato, h poucas razes gramaticais para se postular relaes
gramaticais, embora haja, claro, meios de distinguir quem fez o qu a quem, tal
como existem em todas as lnguas2.

Alm disso, o mesmo estudo diz que em chins no h nada que


se possa classificar de adjetivos, desmentindo, portanto, o que
Napoleo pensa acerca da internacionalidade das classes de
palavras.
No caso de Napoleo Mendes de Almeida, a carga de
preconceito lingstico j no a neblina espessa a que me referi
mais acima: uma verdadeira parede de rocha impermevel e
intransponvel, que impede o acesso a [pg. 82] qualquer eventual
utilidade que suas explicaes possam ter. Seu Dicionrio de
questes vernculas, da perspectiva da tica mais elementar,
desrespeita os direitos lingsticos dos cidados brasileiros.

3. Um festival de asneiras
Na mesma linha de conduta preconceituosa se encontra o livro
No erre mais!, de Luiz Antonio Sacconi. A edio que tenho a 23a,
de 1998, o que mostra o amplo sucesso da obra, um verdadeiro bestseller. Trata-se, contudo, de um prato cheio (420 pginas!) para
quem desejar ver, em letra impressa, a perpetuao de todos os
preconceitos que examinamos na primeira parte deste livro.
2

LI, Charles & THOMPSON, Sandra. Chinese, in COMRIE, B. (ed.), The World's Major Languages,
London, Routledge, 1987, pp. 824-825.Traduo minha.

Quais so os problemas de No erre mais!?. Para comear, o


livro no tem o mais remoto critrio de organizao: os supostos
erros so encadeados caoticamente, um aps o outro, sem
nenhuma distribuio baseada em tipos de erros (ortogrficos,
fonticos, sintticos, morfolgicos) nem na mais elementar ordem
alfabtica de assunto.
Em seguida, tenta ensinar coisas perfeitamente inteis, como a
pronncia correta do nome ingls do modelo de um carro que, por
sinal, j deixou de ser fabricado (Monza Classic SE) e tambm das
siglas FNM e DKW (igualmente extintas), a grafia correta do
apelido da apresentadora de televiso Xuxa (que, segundo ele,
deveria se escrever Chucha), ou a conjugao do verbo apropinquar-se, que ningum em s conscincia usa no Brasil, a menos que
queira provocar risos ou passar por pedante... [pg. 83]
Alm disso, corrige erros cometidos por uma nica pessoa, em
determinada ocasio, em determinado momento, que no tm,
portanto, a freqncia de uma regra varivel (o que os
prescritivistas chamam de erro comum), mas lapsos cometidos por
algum, o que no justifica sua incluso num livro desse tipo.
Mas

pior

de

tudo

enxurrada

de

expresses

preconceituosas que inundam o livro de ponta a ponta. Apesar de


Sacconi atribu-las sua ndole espirituosa e dizer que isso nada
tem que ver com desprezo ou menosprezo aos ignorantes, o uso
mesmo do termo ignorantes j constitui um sinal desse desprezo
ou menosprezo. Porque, lendo o livro, o leitor descobre que todos os
brasileiros, com exceo do autor, so ignorantes no que diz
respeito lngua: a cada pgina surge uma invectiva contra uma
entidade amorfa e indefinida chamada povo, contra os jornalistas
em bloco, contra os autores de dicionrios, contra a Academia

Brasileira de Letras, contra escritores clssicos, contra outros


gramticos, contra especialistas nas mais diversas cincias e
tcnicas... Fica claro, ento, que a norma culta uma flor nica,
que s germina no jardim da casa dele. Afinal, se todos os mapas e
livros de geografia trazem a forma Antrtida, que autoridade tem
Sacconi para dizer que isso lamentvel e que a forma certa
Antrtica?
Vamos examinar apenas as primeiras cem pginas de No erre
mais! (ir alm disso seria maltratar demais o estmago do leitor).
Nelas aparecem doze palavras derivadas [pg. 84] de asno
(asinino,asneira,asnice) para se referir queles mesmos
ignorantes mencionados no texto de abertura do livro. Sendo ao
todo 420 pginas, podemos imaginar quantas mais no aparecero!
(Lngua de jacu outra das expresses favoritas dele.)
Sacconi se revela, desse modo, um discpulo fiel e imitador
perfeito de Cndido de Figueiredo, que em O que se no deve dizer
(de 1903!) declara:
Em geral, os espritos fortes... na asneira julgam microscpicas as questes de
letras, e at as questes de palavras (vol. 1, p. 17).

Os jornalistas so o alvo preferido das tiradas preconceituosas


do autor de No erre mais!:
[...] essa mesma imprensa, para no fugir sua regra maior, que ignorar a
coerncia, pe os ps pelas mos (p. 30).
Essa gente que escreve em jornais uma gracinha! (p. 40).
Alguns de nossos jornais e jornalistas se tornaram um problema a mais para todos
os professores de Portugus. At quando? (p. 45).

[...] excrescncias comuns na boca e na pena de certos jornalistas versados em


esporte. (p. 52).
H jornalistas que, de fato, inventam a toda a hora, aprontam com todo o mundo...
(p. 54).
Os jornalistas usam: o aumento do funcionalismo, o aumento da gasolina, o
aumento da carne. o mais puro aumento da incompetncia... (p. 68). [pg. 85]
Os brasileiros, por exemplo, vivem mal e parcamente num pas onde os jornalistas
escrevem muito mal e parcamente... (p. 77).
Pra quem no sabe, redao de jornal um lugar aonde s deveria ir gente que
conhecesse um pouquinho a lngua. S um pouquinho... (p. 78).
Essa gente ainda vai um dia inventar uma nova lngua, inteligvel s para si
mesmos (p. 82).
No vamos aumentar o diapaso de crticas que temos feito a alguns jornalistas...
(p. 86).
A qualidade de nossos jornais piora ( preciso acrescentar ainda mais?) (p. 94)

No bastasse esse ataque aos jornalistas, Sacconi no hesita


em ofender preconceituosamente outros segmentos sociais. Para ele,
a regncia namorar com coisa de italianos (p. 7). Para ele, a
forma peozada s pode existir na fala, pois o correto na escrita
peonada, e aconselha os pees a que tenham o bom-senso de trocar
essa forma pela outra quando escrevem. Se que escrevem... (p. 8),
mostrando que, na sua opinio, todo peo necessariamente
analfabeto. O mesmo acontece em relao aos erros supostamente
cometidos por caminhoneiros: Camioneiros, contudo, incansveis
trabalhadores, merecem todo o perdo deste mundo... (p. 21).
Seu iderio poltico tambm fica manifesto em declaraes do
tipo:

Hoje em dia existem pessoas que fazem curso superior em greves, formam-se no
assunto e mostram-se to competentes [pg. 86] no ofcio, que decidem em nome
de toda a classe que representam: pela continuidade da greve! (p. 10).
Recentemente, todavia, um comentarista de futebol, membro do PT, corintiano,
resolveu dizer, no ar, mais asneiras do que comumente diz sobre aquilo que diz
entender: futebol (p. 13).

H declaraes preconceituosas para quase todos os segmentos


da sociedade:
Costumo dizer que algarismo romano como vizinho: devemos evit-lo tanto
quanto possvel (p. 65).
Leu-se, porm, num jornal: Martins quase um octogenrio. Certamente, quem
escreveu isso estaria bem para l disso... (p. 68).
So os [dicionrios] que j passam dos setecentos anos, seno a obra, o seu autor...
(p. 68).
Na Bahia, porm, na sempre formidvel Bahia, as pessoas se acordam. O mais
interessante que se acordam e vo direto praia... (p. 73).

Sacconi aceita a crena primitiva e ingnua de que a palavra e


o objeto a que ela se refere so uma e a mesma coisa: se a forma da
palavra est errada, o objeto no existe. Falando do nome
Antrtida (p. 15) ele diz: Eis a uma regio do globo que, em
verdade, no existe. Ao comentar o deslize de um reprter de
televiso que pronunciou ibero em lugar de ibro ao referir-se a
um festival de rock, Sacconi afirma: Esse festival, garantimos, no
existiu. E ao condenar o uso do artigo a diante do nome da cidade
de Franca (conforme tradio [pg. 87] antiga entre os l nascidos)
na frase Moro na Franca, ele rebate: No mora.

Numa atitude totalmente oposta de um cientista da


linguagem cuja tarefa principal seria a descrio dos fatos da
lngua ou de um professor que se esforaria em justificar,
com explicaes razoveis, a preferncia por esta ou aquela forma
de uso da lngua ele, aps decretar o que certo ou errado,
reafirma nosso Mito n 3:
No perca nenhum tempo em perguntar por qu, caro leitor: basta no esquecer
que estamos estudando a lngua portuguesa. Com certeza... (p. 14).

Ou seja, a lngua portuguesa difcil e cheia de mistrios


inexplicveis, como reza a mitologia do preconceito lingstico.
Do ponto de vista das concepes lingsticas do autor, o livro
tambm um desastre. Condena usos que j esto h muito
consagrados na norma culta real (e no na fictcia, que s ele
conhece), abonados nos mais diversos dicionrios e na obra de
muitos escritores de reconhecido talento. Tenta impor formas
arcaicas, que causariam estranheza a qualquer falante bem
instrudo, e abolir construes que so perfeitamente aceitveis,
resultantes das inevitveis transformaes por que a lngua passa.
Sua desinformao acerca das noes bsicas de lingstica,
sobretudo de sociolingstica e de histria da lngua, levam-no a
atribuir obsessivamente Bahia e a uma suposta influncia
africana uma srie de variantes do [pg. 88] portugus do Brasil
que se encontram documentadas nas mais diversas regies do pas,
inclusive naquelas em que a presena negra foi ou mnima. O que
ele diz a respeito das lnguas indgenas carece igualmente de toda
fundamentao cientfica:

Alguns preferem usar taio, no lugar de talho, transformando o lh em i, fato comum


em certas regies do Pas, mormente naquelas que receberam influncia do
elemento africano (p. 32).
Em algumas regies do Brasil (na Bahia, principalmente), o d dos gerndios no
soa. Dizem, ento: correno, andano, cano, em vez de correndo, andando, caindo.
Trata-se de um caso tpico de influncia africana, que a Bahia recebeu
enormemente. Tambm ao elemento negro devemos o fato de pronunciarmos
muitas vezes:
a) os infinitivos sem o r final (cas, vend, menti);
b) apenas o el tnico final (pap, an, coron);
c) tamm (em vez de tambm), ful (em vez de flor), sinh, sinh (em vez de
senhor, senhora) fed (em vez de fedor), etc.;
d) mui (em vez de mulher), paiao (em vez de palhao) (p. 38).
Ocorre que, nas regies banhadas pelo legendrio rio Tiet, utilizado pelos
bandeirantes, as pessoas realmente trocam o l pelo r (arto, iguar, tarco, etc.), por
influncia da lngua dos indgenas, que no conheciam o som l, mas apenas o
som r brando, de caro, barato. Os bandeirantes, preocupados em se aproximar
dos ndios (e das suas riquezas), faziam o que podiam para serem compreensveis,
para serem amveis, gentis. Assim, toda palavra que tinha l sofria a natural
modificao [...] Comeou, ento, dessa forma, o hbito de trocar o l por r,
fenmeno conhecido pelo nome de rotacismo, muito comum [pg. 89] nas cidades
paulistas de Tatu, Piracicaba, Tiet, Laranjal, Porto Feliz, Itu, Salto, Capivari, etc.
(p. 98).

A vocalizao do fonema //, que representamos graficamente


com o LH, um fenmeno que se verificou na histria do francs e
que est amplamente representado em diferentes variedades do
castelhano faladas na Espanha e em pases da Amrica Central e do
Sul. No me consta que essas lnguas tenham recebido influncia
negra nem muito menos baiana. Alm disso, esse fenmeno no
acontece apenas em certas regies do Pas: ele est presente em
todas as variedades no-padro do portugus brasileiro, do

Amazonas ao Rio Grande do Sul. Ele tem explicaes fonticas e


sociolingsticas muito mais complexas do que a mera influncia
africana.
Quanto assimilao do tipo -nd- > -nn- > -n-, sobretudo nos
gerndios, ela se verifica tambm no dialeto napolitano, falado
numa regio (o sul da Itlia) onde, at que os historiadores me
desmintam, no houve escravido de negros africanos nem
colonizao baiana. Ela existe amplamente documentada, mais uma
vez, em todas as variedades no-padro do portugus brasileiro e
at mesmo na fala descontrada de muitas pessoas das camadas
urbanas cultas. Trata-se, novamente, de um fenmeno fontico
muito natural, que um rpido exame da histria da lngua esclarece
sem dificuldades.
Por seu turno, a explicao dada pelo autor ao fenmeno do
rotacismo um verdadeiro disparate cientfico. Primeiro, porque os
bandeirantes simplesmente no falavam [pg. 90] portugus: a
lngua que a grande maioria deles empregava era o que ento se
chamava lngua geral, lngua braslica ou nheengatu, uma lngua
de base tupi que funcionava como instrumento de comunicao
entre as diferentes naes indgenas em todo o litoral brasileiro e
parte do interior. No sculo XVII, em cada cinco habitantes da
cidade de So Paulo, apenas dois conheciam o portugus. O
bandeirante paulista convocado para destruir o quilombo de
Palmares, Domingos Jorge Velho, foi descrito pelo bispo de
Pernambuco como um brbaro que nem falar sabe, e as
autoridades pernambucanas que o contrataram tinham de usar um
intrprete para se comunicar com ele, que s falava a lngua geral.
Como nos explicam os historiadores, os bandeirantes, em sua
maioria, eram mamelucos, isto , filhos de pai portugus e me

ndia, desconheciam totalmente a lngua paterna e s falavam a


materna:
Nos primeiros dois sculos aps a chegada de Cabral, o que se falava por estas
bandas era o tupi mesmo. O idioma dos colonizadores s conseguiu se impor no
litoral no sculo XVII e, no interior, no XVIII. Em So Paulo, at o comeo do
sculo passado, era possvel escutar alguns caipiras contando casos em lngua
indgena. No Par, os caboclos conversavam em nheengatu at os anos 40. [...] Era
o idioma do povo,enquanto o portugus ficava para os governantes e para os
negcios com a metrpole.
[...] Derivado do dialeto de So Vicente, o tupi de So Paulo se desenvolveu e se
espalhou no sculo XVIII, graas ao isolamento geogrfico da cidade e atividade
pouco crist dos [pg. 91] mamelucos paulistas: as bandeiras, expedies ao serto
em busca de escravos ndios.3

Por isso, os bandeirantes no precisavam fazer o que podiam


para serem compreensveis, para serem amveis, gentis. Muito
pelo contrrio, o que a histria nos conta que os bandeirantes
eram de uma crueldade desumana para com os ndios, a quem
buscavam escravizar a toda fora, despojando-os de suas terras, de
suas riquezas e, muitas vezes, de suas vidas. Conta-se de uma
expedio bandeirante que capturou, no serto, 500 ndios para
escraviz-los, mas que desses s 50 chegaram a So Paulo, por
causa dos esforos dos bandeirantes para serem amveis, gentis.
Segundo, o rotacismo que se verifica em alto > arto tambm
aconteceu na lngua portuguesa padro, em seu perodo de
formao. Assim, do rabe AL-MAKHAZAN deriva o portugus
armazm. O que acontece, de fato, que as consoantes /l/ e /r/ so,

Superinteressante, dezembro de 1998, pp. 82 e 84. Essa matria da revista, muito bem
elaborada, apia-se em depoimentos de alguns importantes conhecedores das lnguas
indgenas brasileiras, inclusive aquele considerado o maior deles, o professor Aryon
Rodrigues, da Universidade de Braslia.

do ponto de vista articulatrio, parentas muito prximas, o que faz


com que, na histria de muitas lnguas (e no s do portugus das
regies banhadas pelo legendrio rio Tiet) elas se substituam
uma outra indiferentemente. So as chamadas consoantes
lquidas, que tambm tm muito parentesco com as vogais (o que
faz tambm com que, em algumas variedades, [pg. 92] sejam
substitudas por vogais, como o caso do L. de final de slaba que
em quase todo o Brasil pronunciado como um /w/).
Assim, o nome prprio Guilherme nos veio de um germnico
WILHELM,

enquanto nosso Geraldo veio do tambm germnico

GEHRHARDT. Na

lngua culta coexistem as formas aluguel e aluguer,

e nosso papel se originou do provenal papr (e este do grego


papyros). No portugus medieval ao lado de flor havia a forma frol,
cujo plural, fres, sobreviveu como nome de famlia. A cidade do
norte da frica que em francs se chama Alger (do rabe al-jazird)
em portugus Argel, donde o nome do pas, Arglia (em francs,
Algrie). E a nossa palavra poro deriva do latim planu-: deve ter
ocorrido primeiro o rotacism pl- > pr- e depois a quebra do grupo
consonantal com a introduo de uma vogai o, exatamente como
acontece na forma dialetal brasileira ful. E tudo isso uns bons
sculos antes da descoberta da Bahia!
A troca de /r/ por /l/ se chama lambdacismo. Ela ocorre, no
portugus no-padro, em variantes como calvo, celveja, galfo. O
que as pesquisas dos sociolingistas e dos foneticistas nos explicam
que tanto o rotacismo quanto o lambdacismo ocorrem em ambientes fonticos especficos, isto , diante de determinadas consoantes
(quem diz calvo, por exemplo, no diz calta, mas sim carta) ou de
acordo com a posio do fonema na palavra.

A vocalizao do //, a assimilao -nd- > -nn- > -n- e o


rotacismo so fenmenos que caracterizam as variedades [pg. 93]
no-padro (sobretudo rurais) do portugus do Brasil e que, por
isso, recebem uma forte carga de estigmatizao, isto , sofrem um
grande preconceito por parte dos falantes das variedades urbanas.
Tentei explic-los cientificamente e (espero) sem preconceitos no
meu livro A lngua de Eullia.
Como fcil concluir, o livro No erre mais! est repleto de
erros erros de descrio dos fenmenos lingsticos e, sobretudo,
erros de conduta: preconceituosa e nada tica. Podemos dizer,
portanto, usando as palavras do prprio Sacconi (p. 63), que se trata
de um verdadeiro festival de asneiras.

4. Beethoven no danado!
Nossa ltima investigao da presena epidmica (para usar
de novo o termo proposto por Arnaldo Niskier) do preconceito
lingstico nos comandos paragramaticais usar como material de
anlise uma coluna de jornal chamada Dicas de Portugus,
assinada por Dad Squarisi.
Vamos reproduzir o texto tal como publicado no Dirio de
Pernambuco de 15/11/98. Essa mesma coluna, porm, j tinha sido
estampada no Correio Braziliense algum tempo antes (22/6/96),
poca em que o presidente Fernando Henrique Cardoso, numa
visita a Portugal, acusou os brasileiros de serem todos caipiras,
declarao infelicssima e desastrosa (caipira no pode ser usado
como ofensa), com a qual, todavia, Squarisi parece concordar
plenamente, j que qualifica o presidente de iluminado. [pg. 94]
A republicao da coluna mais de dois anos depois prova que se
trata de material distribudo por agncia de notcias, com

possibilidade de j ter sido ou de ainda vir a ser publicado em


outros jornais uma perspectiva que, confesso, me d arrepios. Por
qu? Leia voc mesmo e descubra:

Portugus ou Caipirs?
Dad Squarisi
Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundo cheinho de jecastatus. direita, esquerda, frente, atrs, s se v uma paisagem.
Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros
desconfiados. Um s um iluminado. Pobre peixinho fora
d'gua! To longe da Europa, mas to perto de paulistas, cariocas,
baianos e maranhenses.
Antes tarde do que nunca. A definio do carter tupiniquim
lanou luz sobre um quebra-cabea que atormenta este pas capiau
desde o sculo passado. Que lngua falamos? A resposta veio das
terras lusitanas.
Falamos o caipirs. Sem nenhum compromisso com a
gramtica portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, ns era, eles era.
Por isso no fazemos concordncia em frases como No se ataca as
causas ou Vende-se carros.
Na lngua de Cames, o verbo est enquadrado na lei da
concordncia. Sujeito no plural? O verbo vai atrs. Sem choro nem
vela. Os sujeitos causas e carros esto no plural. O verbo, vaquinha
de prespio, deveria acompanh-los. Mas se faz de morto. O matuto,
ingnuo, passa batido. Sabe por qu?
O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ao
expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ao) [pg.
95] o outro lado. Passivo, sofre a ao: O outro lado (sujeito)

desconhecido (ao) pelos caipiras. Reparou? O sujeito o outro


lado no pratica a ao.
H duas formas de construir a voz passiva:
a. com o verbo ser (passiva analtica): A cultura caipira
estudada por ensastas. Os carros so vendidos pela concessionria.
b. com o pronome se (passiva sinttica): estuda-se a cultura
caipira. Vendem-se carros. No caso, no aparece o agente. Mas o
sujeito est l. Passivo, mas firme.
Dica: use o truque dos tabarus cuidadosos: troque a passiva
sinttica pela analtica. E faa a concordncia com o sujeito. Vendese casas ou vendem-se casas? Casas so vendidas (logo: Vendem-se
casas). No se ataca ou no se atacam as causas? As causas no so
atacadas (no se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A
luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos?
Acordos foram firmados (firmaram-se acordos).
Na dvida, no bobeie. Recorra ao truque. S assim voc chega
l e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolndia.

O que mais me impressionou nesse texto foi seu poder de


sntese:

em

poucos

pargrafos,

autora

conseguiu

reunir

praticamente todos os chaves ranosos que compem o preconceito


lingstico. Os preconceitos sociais e tnicos tambm foram
contemplados.
O preconceito se manifesta j no ttulo: Portugus ou
caipirs? A partir da, como milho de pipoca em leo quente,
pululam

as

palavras

de

contedo

semntico

fortemente

preconceituoso: mundo, jecas-tatus, caipiras, caipiras e mais


caipiras,

deslumbrados,

tupiniquim,

[pg.

96]

capiau,

caipirs, matuto, tabarus, Caipirolndia. ou no um


poderoso trabalho de sntese? Dispensa comentrios.
Isso quanto forma. Quanto ao contedo gramatical abordado
pela autora, encontramos, mais uma vez, a atitude preconceituosa
da pessoa que, conhecendo uma nica variedade da lngua, se
arroga o direito de ofender, desprezar e ridicularizar os falantes das
outras dezenas (seno centenas) de variedades. Mas j sabemos que
o preconceito fruto da ignorncia, e o que Squarisi faz questo de
afirmar em seu texto seu absoluto desconhecimento da
complexidade dos fenmenos lingsticos. Temerosa de se aventurar
na corrente vertiginosa do rio que a lngua, ela prefere continuar
presa gua estagnada e malcheirosa de seu igap...
A questo da partcula se em enunciados do tipo Vende-se casas
vem sendo investigada h muito tempo nos estudos gramaticais e
lingsticos brasileiros. O que todos os estudiosos concluem que,
na lngua falada no Brasil, no portugus brasileiro, ocorreu uma
reanlise sinttica nesse tipo de enunciado, isto , o falante
brasileiro no considera mais esses enunciados como oraes
passivas sintticas.
O que a gramtica normativa insiste em classificar como
sujeito a gramtica intuitiva do brasileiro interpreta como objeto
direto. Respeitados fillogos e lingistas da primeira metade do
sculo XX, como Manuel Said Ali, Antenor Nascentes e Joaquim
Mattoso Camara Jr., reconheceram o fenmeno. Muitas pesquisas
cientficas, baseadas [pg. 97] em coleta de dados da lngua real, em
levantamentos estatsticos rigorosos e em teorias lingsticas
consistentes, mostram que a imensa maioria dos brasileiros de
todas as classes sociais, cultos ou no, na lngua falada e na lngua
escrita usam verbos no singular nos enunciados em que aparece o

se com um verbo transitivo e um substantivo no plural: Vende-se


casas, Aluga-se salas, Joga-se bzios, Avia-se receitas...
Mas no porque somos caipiras, jecas-tatus, matutos ou
tabarus. porque a lngua muda com o tempo, segue seu curso,
transforma-se. Afinal, se no fosse desse modo, ainda estaramos
falando latim... Na verdade, falamos latim, um latim que sofreu
tantas transformaes que deixou de ser latim e passou a ser
portugus. Da mesma forma, o portugus do Brasil queiram os
gramticos ou no tambm est se transformando, e um dia,
daqui a alguns sculos, ser uma lngua diferente da falada em
Portugal mais diferente do que j ...
Em meu livro A lngua de Eullia, tratei com bastante detalhe
das questes relativas s assim chamadas oraes passivas
sintticas (que na minha opinio e na de muitos lingistas
simplesmente

no

existem).

Me

ocuparei

aqui

apenas

do

esfarrapado truque, com o qual a autora da coluna Portugus ou


caipirs? acredita, ingenuamente, resolver todos os problemas da
fala dos caipiras, caipiras e mais caipiras.
Falar construir um texto, num dado momento, num
determinado lugar, dentro de um contexto de fala definido, visando
um determinado efeito. Quando o falante usa [pg. 98] uma frase
com a partcula se, ele quer se valer dos recursos que esse tipo de
construo sinttica lhe oferece para chegar ao efeito que visa
provocar naquele determinado contexto. Trocar essa frase por outra
trocar, tambm, ao mesmo tempo, o efeito visado.
H situaes em que s as oraes com se funcionam. Imagine
um carro em cujo vidro traseiro lemos um cartaz escrito: Vende-se.
Se

fssemos

aplicar

truque

sugerido

pelas

gramticas

normativas teramos: vendido. Que efeito pode ter uma frase

assim, afixada num carro? Como disse Manuel Said Ali, ela s
servir para fazer o leitor duvidar da sanidade mental de quem a
escreveu.
Em outras ocasies, apenas as oraes na voz passiva atingem
o efeito desejado: Animais mortos foram trazidos com a enchente.
Aplicando o truque: Animais mortos se trouxeram com a
enchente... Algum diz isso assim?
Podemos tambm perguntar por que Vende-se esta casa
igual a Esta casa vendida e somente a isso? Por que no dizer
que tambm igual a Esto vendendo esta casa, Algum est
vendendo esta casa etc.?
Alm disso, a substituio de mo nica: Alugam-se salas
igual a Salas so alugadas, mas a substituio no sentido
contrrio no funciona: De que so feitos esses doces? pode ser
substitudo por De que se fazem esses doces? ou por De que esses
doces se fazem? sero essas construes naturais, espontneas,
caractersticas da lngua portuguesa? Me parece que no. [pg. 99]
Se na capa de uma revista sobre telenovelas est escrito
Henrique preso isso equivale a Henrique se prende?
Uma reportagem intitulada O que fazer quando se tem
problemas com o vizinho tambm poderia chamar-se O que fazer
quando so tidos problemas com o vizinho?
Onde est, portanto, a alegada equivalncia?
Um dia desses, meu filho de 9 anos chegou em casa revoltado
porque a professora queria que, numa festa da escola, as meninas
danassem uma msica de Beethoven. Sua reao foi dizer: No se
dana Beethoven! Na mesma hora pensei em como ficaria essa frase
substituda por sua equivalente na voz passiva analtica:
Beethoven no danado! Faz algum sentido para voc? Para mim

tambm no, mas talvez ns sejamos demasiado capiaus para


atingir o nvel de iluminao a que s a professora Squarisi e o
presidente Fernando Henrique Cardoso tm acesso.
O truque tambm falha porque, na obteno do efeito
desejado, a colocao dos termos na orao importantssima:
(1) Com este mtodo, mistura-se a gua com a areia.
(2) Com este mtodo, a gua mistura-se com a areia.

Est claro que em (1) temos uma orao na voz ativa em que o
sujeito indeterminado e o objeto de MISTURA--SE GUA. J em (2)
o sujeito passa a ser GUA e a partcula se indica que se trata de um
verbo reflexivo. [pg. 100]
A posio dos elementos no enunciado, quando alterada, altera
tambm a interpretao de seu significado, desviando-se do efeito
pretendido pelo falante. o que acontece com
(3) No se encontra Joo no prdio.
(4) Joo no se encontra no prdio.

Em (3) JOO o objeto do verbo ENCONTRA, ao passo que em (4)


JOO

o sujeito.

Compare-se ainda esses trs enunciados:


(5) Muita gente demitiu-se da Ford.
(6) Demitiu-se muita gente da Ford.
(7) Muita gente foi demitida da Ford.

Em (5) est claro que a demisso foi voluntria porque o sujeito


evidente

da

orao

MUITA

GENTE.

Em (6)

o sujeito

indeterminado, e essa indeterminao est indicada pela partcula


se, sendo MUITA GENTE O objeto da demisso. As oraes (5) e (6)
podem ser perfeitamente classificadas de ativas. J em (7) temos,

sim, uma verdadeira orao na voz passiva em que o sujeito, MUITA


GENTE,

sofre a ao praticada: demitir. Se no lugar de MUITA GENTE

tivssemos MUITOS OPERRIOS e quisssemos fazer a mesma


anlise, obteramos:
(8) Muitos operrios demitiram-se da Ford.
(9) Demitiu-se muitos operrios da Ford.
(10) Muitos operrios foram demitidos da Ford.

A frase (9) no teria o mesmo efeito se o verbo estivesse no


plural: Demitiram-se muitos operrios da Ford [pg. 101] seria
simplesmente a mesma frase (8) com o sujeito colocado depois do
verbo, ao contrrio da ordem natural do portugus, que a do
sujeito antes do verbo. Se a inteno do falante dizer que muitos
operrios perderam, a contragosto, seus empregos, o verbo tem de
ser conjugado no singular porque os operrios, neste caso, so o
objeto da demisso, sofreram com essa ao, no a praticaram.
Minhas explicaes levam em conta, como fcil perceber, trs
critrios de anlise dos enunciados lingsticos:
1) o sinttico a colocao dos termos na orao;
2) o semntico o significado que cada tipo de enunciado assume segundo a
posio ocupada pelos termos na orao;
3) o pragmtico o efeito visado pelo falante ao escolher enunciar uma orao
na voz ativa, passiva ou reflexiva.

A anlise de Dad Squarisi bem mais pobre, pois s leva em


conta o critrio sinttico, reduzindo-o a um jogo de supostas
equivalncias. a atitude comum do gramtico tradicionalista, que
encara a lngua como um objeto descontextualizado, inerte,
congelado, morto, fora do tempo, fora do espao, independente das
pessoas que a falam. Para ela e para outros membros dos comandos

para-gramaticais, defensores intransigentes da norma oculta, no


h diferena nenhuma entre No se dana Beethoven e Beethoven
no danado, diferena que uma criana de 9 anos conhecedora,
como todas as crianas de sua idade, das regras constitutivas de sua
lngua materna [pg. 102] soube reconhecer intuitivamente no
momento de enunciar sua reao, alcanando em cheio o efeito
desejado.
A autora da coluna diz que no temos nenhum compromisso
com a gramtica portuguesa. Talvez ela no saiba e se soubesse
decerto ficaria muito triste , mas nem mesmo os portugueses tm
esse compromisso. Lendo anncios publicados no jornal lisboeta
Dirio de Notcias de 22/07/97, a lingista Maria Marta Scherre4
verificou que ali havia alternncia entre verbos no plural e no
singular, embora todos os substantivos estivessem no plural:
Vendem-se lotes de prdios c/ licenas a pagamento
Vende-se magnficas instalaes loja com armazm
Vendem-se andares novos
Vende-se lotes de terreno
Vende-se andares no lumiar
Aluga-se escritrios Laranjeiras
Compra-se dois espaos de garagem
Procura-se reas at 150 m2

Teremos

de

incluir

Portugal

entre

as

provncias

da

Caipirolndia?
Por fim, Dad Squarisi apia-se no nome glorioso de Cames (e
glorioso mesmo!) para justificar seus ataques [pg. 103] grosseiros
4

A professora Scherre analisou detalhadamente o preconceito contido nessa e em outras colunas


assinadas por Dad Squarisi no texto Preconceito lingstico: doa-se lindos filhotes de poodle, a ser
publicado brevemente em obra coletiva organizada pelo professor Dermeval da Hora, da Universidade
Federal da Paraba. Agradeo a ela a gentileza de ter-me possibilitado ler seu excelente ensaio antes de
entreg-lo publicao.

contra quem no se enquadra na lei da concordncia. Ora, n'Os


Lusadas encontra-se os seguintes versos:
E como por toda frica se soa, / lhe diz, os grandes feitos que fizeram (canto II,
103).

Seria o caso de incluir Cames entre os jecas-tatus? Afinal,


pelas regras sintticas da lngua da professora Squarisi, os
GRANDES FEITOS

o sujeito de SE SOA, e por isso o verbo deveria

estar no plural... S que no est.


Parece incrvel que, depois de tanto tempo em vigor na lngua
falada no Brasil, esta regra de uso do pronome SE ainda seja
rejeitada pelos gramticos prescritivistas. Eles continuam agindo
como o professor Aldrovando Cantagalo, do conto O colocador de
pronomes de Monteiro Lobato, publicado em 1924. Ao ver uma
placa com os dizeres Ferra-se cavalos, o histrico gramtico tentou
explicar ao ferreiro que o verbo deveria estar no plural porque o
sujeito da frase era cavalos. E foi obrigado a receber esta aula
perfeita de sintaxe brasileira:
V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu no sou
plural. Aquele SE da tabuleta refere-se c a este seu criado.

Algum j viu um cavalo pr ferradura em si mesmo? Talvez o


professor Aldrovando Cantagalo em seus delrios normativistas, que
ainda acometem muita gente hoje em dia! [pg. 104]

III
A desconstruo
do preconceito lingstico

1. Reconhecimento da crise
De que modo poderemos romper o crculo vicioso do preconceito
lingstico? Como conseguiremos escapar do igap estagnado e
mergulhar nas guas dinmicas e vivificantes do grande rio da
lngua?
Uma

coisa

no

podemos

deixar

de

reconhecer:

existe

atualmente uma crise no ensino da lngua portuguesa. Muitos


professores, alertados em debates e conferncias ou pela leitura de
bons textos cientficos, j no recorrem to exclusivamente
gramtica normativa como nica fonte de explicao para os
fenmenos lingsticos. Por outro lado, sentem falta de outros
instrumentos didticos que possam, seno substituir, ao menos
complementar criticamente os compndios gramaticais tradicionais.
Muita gente acredita e defende que a norma culta que deve
constituir o objeto de ensino/aprendizagem em sala de aula. Mas o
que e onde est essa norma culta?
No difcil perceber que a norma culta por diversas razes
de ordem poltica, econmica, social, cultural algo reservado a
poucas pessoas no Brasil. Vimos isso no Mito n 1 e no n 8. o
mesmo que acontece com a alimentao, [pg. 105] a sade, a
educao, a habitao, o transporte, o acesso s novas tecnologias
etc. Uns poucos privilegiados se locomovem em carros importados,

enquanto a grande maioria usa um transporte pblico deficiente,


precrio e, se no bastasse, caro demais conheo pessoas
humildes que vo a p para o trabalho, despertando no meio da
madrugada e caminhando durante horas da periferia at os bairros
centrais, porque seu salrio no lhes permite tomar nibus, trem
nem metr.
Podemos identificar trs problemas bsicos a esse respeito.
Primeiro, e mais bvio, a quantidade injustificvel de
analfabetos que existe neste pas. Estatsticas oficiais, do IBGE,
falam de 18 a 20 milhes de analfabetos com mais de 15 anos de
idade duas vezes a populao de Portugal! Some-se a isso os
milhes de crianas em idade escolar que no freqentam nenhuma
escola. Temos tambm um alto ndice de analfabetos funcionais, isto
, pessoas que freqentaram a escola por um perodo insuficiente
para desenvolver plenamente as habilidades de leitura e redao. A
mdia nacional de educao da fora de trabalho de 3,9 anos de
escola: seriam, no total, 45 milhes de analfabetos funcionais ou
semi-analfabetos. Analfabetos plenos e analfabetos funcionais
seriam, ao todo, mais de 60 milhes de brasileiros: duas vezes a
populao da Argentina!
Numa lista de 175 pases elaborada pela ONU, o Brasil ocupa o
93 lugar em ndice de escolarizao, ficando atrs at mesmo de
pases

como

Etipia

ndia,

exemplos

clssicos

de

subdesenvolvimento crnico. S que o Brasil [pg. 106] uma das


dez maiores economias do planeta! Ocupamos tambm o 80 lugar
em investimentos na educao. E ningum pode alegar que isso se
deve ao tamanho do pas ou da populao: a China, bem maior que o
Brasil e com uma populao de 1,2 bilho de habitantes, tem 6 % de
analfabetos, enquanto o Brasil tem 18,4 %, segundo o Banco

Mundial. E na China esses analfabetos vivem em reas muito


remotas, nas montanhas ou nos desertos, enquanto os nossos esto
na periferia das grandes cidades e at mesmo trabalhando dentro
de nossas casas. Tudo isso num pas cuja Constituio diz que a
educao dever do Estado.
A norma culta, como vimos, est tradicionalmente muito
vinculada norma literria, lngua escrita. Com tantos
analfabetos, lamentar a decadncia ou a corrupo da norma
culta no Brasil , no mnimo, uma atitude cnica.
Segundo, por razes histricas e culturais, a maioria das
pessoas plenamente alfabetizadas no cultivam nem desenvolvem
suas habilidades lingsticas no nvel da norma culta. Ler e,
sobretudo, escrever no fazem parte da cultura das nossas classes
sociais alfabetizadas. Isso se prende aos velhos preconceitos de que
brasileiro no sabe portugus e de que portugus difcil,
veiculados pelas prticas tradicionais de ensino. Esse ensino
tradicional, como eu j disse, em vez de incentivar o uso das
habilidades lingsticas do indivduo, deixando-o expressar-se
livremente para somente depois corrigir sua fala ou sua escrita, age
exatamente ao contrrio: interrompe o fluxo natural da expresso e
da comunicao com a atitude corretiva (e muitas vezes punitiva),
cuja conseqncia [pg. 107] inevitvel a criao de um sentimento
de incapacidade, de incompetncia.
Em minha experincia de tradutor profissional, j me deparei
algumas vezes com situaes que poderamos classificar de
surrealistas. Pessoas que fizeram doutorado no exterior me
procuram para que eu traduza para o portugus teses escritas
originalmente em ingls ou francs. Quando pergunto pessoa por
que ela mesma no faz a traduo, a resposta que eu recebo

chocante: porque eu no sei portugus. Como possvel? Uma


pessoa que escreveu uma tese de 500 ou 600 pginas num idioma
estrangeiro, e que obteve assim o seu grau de doutor, de Ph.D., em
sua especialidade cientfica, tem receios de escrever em sua prpria
lngua materna? Existe algum problema a, e eu no posso aceitar a
explicao dada por tantos professores de que os alunos que so
preguiosos e no conseguem aprender, ou, pior ainda, que
portugus muito difcil. O problema certamente est no modo
como se ensina portugus e naquilo que ensinado sob o rtulo de
lngua portuguesa.
Terceiro, o dilema relativo norma culta se prende ao fato de
que esse termo usado pela tradio gramatical conservadora para
designar uma modalidade de lngua que, como j vimos na primeira
parte deste livro, no corresponde lngua efetivamente usada
pelas pessoas cultas do Brasil nos dias de hoje, mas sim a um ideal
lingstico inspirado no portugus de Portugal, nas opes
estilsticas dos grandes escritores do passado, nas regras sintticas
que mais se aproximem dos modelos da gramtica latina, ou
simplesmente no gosto pessoal do gramtico [pg. 108] para
Napoleo Mendes de Almeida, por exemplo, o certo dizer eu odio
e no EU ODEIO...1
Dentro desse conceito de norma culta, a proibio de comear
um perodo com pronome oblquo (Me empreste seu livro)
justificada com a afirmao de que em Portugal (!) ningum fala
assim. De igual modo, a recusa dos gramticos conservadores em
aceitar que em frases como Vende-se casas o pronome se
1

Outros termos empregados indistintamente pelos prescritivistas so: norma padro, lngua padro,
lngua culta, padro culto. Todos eles, porm, carecem de uma definio terica rigorosa, sendo usados
basicamente como um sinnimo geral de bom portugus, em contraste com tudo o que no
portugus.

desempenha uma funo semelhante de sujeito se baseia no fato


de que, em latim (!!), o pronome se nunca exercia essa funo. Dizer
ou escrever eu prefiro mais X do que Y um pecado, na opinio
deles, porque o prefixo prae- em latim (!!!) funcionava para formar
superlativos analticos, contendo em si mesmo a idia de muito ou
mais do que... Alm disso, errado dizer outra alternativa
porque alter em latim (!!!!) j significava outro. Mas desde quando
ns falamos latim no Brasil?
A distncia entre norma culta real e norma culta ideal pode ser
medida em afirmaes como esta, de Rocha Lima, em sua
Gramtica normativa da lngua portuguesa (p. 15):
Em extensas faixas do Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, a consoante /l/,
quando em final de slaba, apresenta uma pronncia relaxada, que a aproxima da
semivogal /w/. Este [pg. 109] fato faz que desapaream oposies como as de mal
e mau, alto e auto, servil e serviu oposies que a lngua culta procura
cuidadosamente observar [grifo meu].

Basta ouvir os locutores de rdio, os apresentadores de


telejornal e os professores universitrios trs profisses que
exigem educao de nvel superior e, portanto, domnio da norma
culta para verificar que a afirmao de Rocha Lima no se baseia
na realidade empiricamente analisvel. provvel que nenhum
falante da lngua culta se preocupe, hoje em dia, em fazer a
distino entre as palavras por ele citadas. No acervo de gravaes
da lngua urbana culta coletado pelo Projeto NURC, a que j me
referi no Mito n 5, no se percebe essa suposta preocupao em
distinguir as duas pronncias. A pronncia do L como /l/ e no
como /w/ s se verifica na fala de pessoas bastante idosas ou de

falantes de variedades bem especficas de portugus, como a gacha


(e, mesmo assim, no de modo geral).
Essa mesma idealizao da norma culta como um padro
lingstico 100% puro como uma pedra preciosa sem nenhuma
jaa, como uma pepita de ouro livre de toda ganga se verifica, por
exemplo, num texto publicado por Pasquale Cipro Neto em sua
pgina na revista Cult (n 11, junho de 1998, p. 44). Para ele, os
usos no-normativos de onde constituem uma praga. E o uso feito
por Chico Buarque, numa cano, de onde no lugar de quando
indica que o poeta-compositor caiu na esparrela.
Lemos no texto de Cipro que a diferena entre onde e aonde
tambm deixa muita gente de cabelo em p. [pg. 110] Depois de
explicar o uso correto de cada uma das duas formas, ele diz que
mesmo em escritores renomados se v o emprego de onde e aonde
sem critrio, e cita o exemplo do poema A onda de Manuel
Bandeira, que escreveu: Aonde anda a onda. E chama a ateno
para o fato de que em termos de lngua culta, para cada 99
ocorrncias corretas de onde, h uma de aonde. Diante dessa
estatstica (que ele cita sem indicar a fonte de seus dados nem a
metodologia empregada para colet-los), a lgica nos leva a concluir
que o problema ento no est na falta de critrio dos falantes da
norma culta, mas sim na concepo que o autor do texto tem de
lngua culta. Afinal, se Chico Buarque, Manuel Bandeira e
Machado de Assis (que no poema Nini, parte III, estrofe 2,
escreveu:Mas aonde te vais agora, / Onde vais, esposo meu?) no
servem como exemplos de usurios da lngua culta, quem servir?
Em seu livro Com todas as letras (que tem o sugestivo subttulo
de o portugus simplificado, que nos remete logo ao Mito 3), o
jornalista Eduardo Martins tenta ensinar o uso correto do verbo

pedir. Depois de ler as explicaes dadas ali, na pgina 16, passei a


aplicar um teste para controlar se o que ele chama de norma culta
realmente merece esse nome. Assim, toda vez que vou dar uma
palestra em congressos e seminrios ou conversar com professores
de portugus, escrevo o seguinte enunciado na lousa e pergunto o
que h de errado com ele:
Joo est doente, por isso me pediu para vir aqui no lugar dele. [pg. 111]

Deixo que as pessoas reflitam e dem suas opinies. Cada uma


arrisca uma hiptese, mas ningum detecta o erro denunciado por
Martins em seu livro. E voc, j descobriu qual ? Pois saiba, caro
leitor, cara leitora, que a construo pedir para s pode ser
empregada quando o sentido o de pedir permisso, licena ou
autorizao. Segundo o autor de Com todas as letras, se a idia de
permisso ou licena no estiver implcita ou subentendida, o
certo usar pedir que + subjuntivo: Joo est doente, por isso me
pediu que viesse aqui no lugar dele. E ele abre suas explicaes
afirmando:
A locuo pedir para um dos melhores exemplos do abismo existente entre a
linguagem coloquial e a norma culta do idioma.

E eu me vejo obrigado a reagir dizendo: Nada disso, senhor


jornalista! A locuo pedir para um exemplo do abismo que
existe, sim, mas entre a verdadeira norma culta usada pelas
pessoas cultas do Brasil e aquilo que ele e outros no-especialistas
em

lingstica,

que

se

baseiam

exclusivamente

na

norma

gramatical mais conservadora e prescritiva, chamam de norma


culta. O que Martins rotula de linguagem coloquial (termo, alis,
que quase sempre empregado com sentido pejorativo) , na

verdade, uma manifestao da norma culta objetiva, real,


empiricamente coletvel e analisvel. E a prova maior disso que
os falantes cultos (professores de portugus!) a quem ofereo meu
teste

reconhecem

tranqilamente

gramaticalidade,

aceitabilidade de construes como a do enunciado que escrevo na


lousa. Como possvel, [pg. 112] ento, falar de erro se a
construo no causa estranheza a falantes cultos e perfeitamente
assimilada do ponto de vista semntico e pragmtico, se no h
nenhuma ambigidade em sua interpretao (que o argumento
quase sempre apresentado pelos prescritivistas, que normalmente
analisam a lngua sem levar em conta o contexto da enunciao)?
De onde vem esse abismo entre o conceito sociolingstico de
norma culta e a noo vaga (e preconceituosa) de lngua culta
exibida pelos comandos paragramaticais? Como tantos especialistas
de verdade vm insistindo em mostrar, esse abismo nasce da recusa
dos defensores da gramtica tradicional de acompanhar os avanos
da cincia da linguagem. Consultando, por exemplo, a bibliografia
do livro Com todas as letras, de Eduardo Martins, lanado no incio
de 1999, verifica-se que dos 26 ttulos consultados por ele nenhum
de obra cientfica especializada: 10 so comandos paragramaticais
em forma de livros que listam no-sei-quantos-mil erros de
portugus (entre os quais o Manual de Redao e Estilo do jornal O
Estado de S. Paulo, de autoria do mesmo Martins); 11 so
dicionrios de lngua e/ou de regncias verbais e nominais (obras
escritas moda antiga e no segundo os critrios da lexicografia
contempornea), e 5 so gramticas normativas. Como todo
comando para-gramatical digno do nome, este tambm se
caracteriza por sua inflexvel endogamia: para conservar a pureza

de sua lngua, s aceita manter relaes com indivduos de sua


prpria casta. [pg. 113]
Como reconhece o prprio Ministrio da Educao, no
documento j citado,
no se pode mais insistir na idia de que o modelo de correo estabelecido pela
gramtica tradicional seja o nvel padro de lngua ou que corresponda variedade
lingstica de prestgio (p. 31).

Para separar o ideal do real, como eu j disse, necessrio


empreender a identificao e a descrio da verdadeira lngua
falada e escrita pelas classes cultas do Brasil. uma tarefa que tem
de ser feita, e que est sendo feita. Infelizmente, os resultados j
obtidos na execuo dessa tarefa so de acesso difcil maioria das
pessoas porque se encontram expostos em livros e teses escritos em
linguagem extremamente tcnica como de fato exige o rigor
cientfico , e recorrem, em suas anlises e interpretaes, a
diferentes modelos tericos, todos eles muito sofisticados e de difcil
compreenso para o leitor comum no familiarizado com eles.
preciso escrever uma gramtica da norma culta brasileira
em termos simples (mas no simplistas), claros e precisos, com um
objetivo

declaradamente

didtico--pedaggico,

que

sirva

de

ferramenta til e prtica para professores, alunos e falantes em


geral. Sem essa gramtica que nos descreva e explique a lngua
efetivamente falada pelas classes cultas, continuaremos merc das
gramticas normativas tradicionais, que chamam erradamente de
norma culta uma modalidade de lngua que no culta, mas sim
cultuada: no a norma culta como ela , mas a norma [pg. 114]
culta como deveria ser, segundo as concepes antiquadas dos
perpetuadores do crculo vicioso do preconceito lingstico.

2. Mudana de atitude
Enquanto essa gramtica no chega, temos de combater o
preconceito lingstico com as armas de que dispomos. E a primeira
campanha a ser feita, por todos na sociedade, a favor da mudana
de atitude. Cada um de ns, professor ou no, precisa elevar o grau
da prpria auto-estima lingstica: recusar com veemncia os velhos
argumentos que visem menosprezar o saber lingstico individual
de cada um de ns. Temos de nos impor como falantes competentes
de nossa lngua materna. Parar de acreditar que brasileiro no
sabe portugus, que portugus muito difcil, que os habitantes
da zona rural ou das classes sociais mais baixas falam tudo
errado. Acionar nosso senso crtico toda vez que nos depararmos
com um comando paragramatical e saber filtrar as informaes
realmente teis, deixando de lado (e denunciando, de preferncia)
as afirmaes preconceituosas, autoritrias e intolerantes.
Da parte do professor em geral, e do professor de lngua em
particular, essa mudana de atitude deve refletir-se na noaceitao de dogmas, na adoo de uma nova postura (crtica) em
relao a seu prprio objeto de trabalho: a norma culta.
Do ponto de vista terico, esta nova postura pode ser
simbolizada numa simples troca de slaba. Em vez de REPETIR
alguma coisa, o professor deveria REFLETIR sobre [pg. 115] ela.
Diante da velha doutrina gramatical normativa, o professor no
deveria limitar-se a transmiti-la tal e qual ela se encontra
compendiada nos manuais gramaticais ou nos livros didticos.
necessrio lanar dvidas sobre o que est dito ali,
questionar a validade daquelas explicaes, filtr-las, tomando
inclusive como base seu prprio saber lingstico, devidamente

valorizado: Eu no falo assim, no escrevo assim; meus colegas


tambm no; escritores que tenho lido no seguem essa regra
ser que ela pertence de fato norma culta?
Posta a dvida, passa-se investigao, ao levantamento de
hipteses, busca de explicaes que esclaream o fenmeno que
provocou o questionamento. Se milhes de brasileiros de norte a sul,
de leste a oeste, em todas as regies e em todas as classes sociais
falam e escrevem Aluga-se salas ou se h flutuao no uso de onde e
aonde, o problema, evidentemente, no est nesses milhes de
pessoas, mas na explicao insuficiente (errada, at, nesses casos)
dada a esses fenmenos pela gramtica tradicional.
Nessa nova postura de reflexo, indispensvel que o professor
procure, tanto quanto possvel, estar sempre a par dos avanos das
cincias da linguagem e da educao: lendo literatura cientfica
atualizada,

assinando

revistas

especializadas,

filiando-se

associaes profissionais, freqentando cursos em universidades,


aderindo a projetos de pesquisa, participando de congressos,
levantando suas dvidas e inquietaes em debates e mesasredondas... [pg. 116]
Do ponto de vista prtico, a nova postura pode ser
representada na eliminao de uma nica slaba tambm. Em vez
de REPRODUZIR a tradio gramatical, o professor deve PRODUZIR
seu prprio conhecimento da gramtica, transformando-se num
pesquisador em tempo integral, num orientador de pesquisas a
serem empreendidas em sala de aula, junto com seus alunos. Parar
de querer entregar regras (mal descritas) j prontas, e comear a
descobrir mtodos inteligentes e prazerosos para que os prprios
aprendizes deduzam essas regras em textos vivos, coerentes, bem
construdos, interessantes, tanto de lngua escrita como de lngua

falada. Tentei dar uma contribuio inicial a esse processo na


segunda parte do meu livro Pesquisa na escola: o que , como se faz.
A gramtica tradicional tenta nos mostrar a lngua como um
pacote fechado, um embrulho pronto e acabado. Mas no assim. A
lngua viva, dinmica, est em constante movimento toda
lngua viva uma lngua em decomposio e em recomposio, em
permanente transformao. uma fnix que de tempos em tempos
renasce das prprias cinzas. uma roseira que, quanto mais a
gente vai podando, flores mais bonitas vai dando. E o professor
tambm deve preferir ser uma metamorfose ambulante, do que ter
aquela velha opinio formada sobre tudo, como cantava Raul
Seixas (contrariando, nesses mesmos versos, a velha opinio
formada de que o verbo preferir no pode ser usado com a
construo do que...).
Tudo muda no universo, e a lngua tambm. A comparao da
lngua a um rio me faz lembrar do filsofo grego [pg. 117] Herclito
que disse que ningum se banha duas vezes no mesmo rio: na
segunda vez, j no a mesma pessoa, j no o mesmo rio.
No precisamos ter medo disso quando formos dar aula de
portugus. Um professor de qumica, fsica, biologia ou histria sabe
perfeitamente que muito do que ele est ensinando hoje pode vir a
ser reformulado ou at negado amanh por alguma nova
descoberta, por algum novo avano tecnolgico que permitir ver
coisas que antes no se via. Toda cincia, para merecer esse nome,
tem que ser, como se diz em ingls, work in progress, um trabalho
em andamento, uma construo ininterrupta, uma obra aberta. E
a lingstica (dentro da qual se inclui a gramtica) uma cincia
assim. Por isso,

no h razo para que o professor de gramtica seja dispensado da formao


cientfica que se exige de um professor de biologia ou de psicologia. [...]
definitivamente necessrio comear a conceber a gramtica como uma disciplina
viva, em reviso e elaborao constante.

Essas palavras de Mrio Perini em sua Gramtica descritiva


do portugus (pp. 16 e 17) sintetizam o que eu disse mais acima a
respeito de uma nova postura terica e prtica por parte do
professor de lngua portuguesa.

3. O que ensinar portugus?


Para romper o crculo vicioso do preconceito lingstico no
ponto em que temos mais poder para atac-lo a prtica de ensino
, precisamos rever toda uma srie [pg. 118] de velhas opinies
formadas que ainda dominam nossa maneira de ver nosso prprio
trabalho.
Logo de incio, convm fazer a pergunta: o que ensinar
portugus? Que objetivo pretendemos alcanar com nossa prtica
em sala de aula?
Os mtodos tradicionais de ensino da lngua no Brasil visam,
por incrvel que parea, a formao de professores de portugus! O
ensino

da

gramtica

normativa

mais

estrita,

obsesso

terminolgica, a parania classificatria, o apego nomenclatura


nada disso serve para formar um bom usurio da lngua em sua
modalidade culta. Esforar-se para que o aluno conhea de cor o
nome de todas as classes de palavras, saiba identificar os termos da
orao, classifique as oraes segundo seus tipos, decore as
definies tradicionais de sujeito, objeto, verbo, conjuno etc.
nada disso garantia de que esse aluno se tornar um usurio
competente da lngua culta.

Quando algum se matricula numa auto-escola, espera que o


instrutor lhe ensine tudo o que for necessrio para se tornar um
bom motorista, no ? Imagine, porm, se o instrutor passar onze
anos abrindo a tampa do motor e explicando o nome de cada pea,
de cada parafuso, de cada correia, de cada fio; explicando de que
modo uma parte se encaixa na outra, o lugar que cada uma deve
ocupar dentro do compartimento do motor para permitir o
funcionamento do carro e assim por diante... Esse aluno tem
alguma chance de se tornar um bom motorista? Acho difcil.
Quando muito, estar se candidatando a um emprego de mecnico
de automveis... Mas quantas pessoas existem por a, dirigindo
tranqilamente seus [pg. 119] carros, tirando o mximo proveito
deles, sem ter a menor idia do que acontece dentro do motor?
Hoje em dia, cada vez mais pessoas esto usando um
computador. A retumbante maioria delas consegue fazer um bom
uso de sua mquina conhecendo apenas os programas, os softwares.
O hardware, isto , a parte mecnica do computador, a estrutura
fsica das placas, dos chips, das conexes etc., fica para os
especialistas, os tcnicos.
E ento? O que pretendemos formar com nosso ensino:
motoristas da lngua ou mecnicos da gramtica? Devemos insistir
nos componentes hard ou devemos dar preferncia ao bom manejo
dos soft?2
Ns, sim, professores, temos que conhecer profundamente o
hardware da lngua, a mecnica do idioma, porque ns somos os
instrutores, os especialistas, os tcnicos. Mas no os nossos alunos.
Precisamos, portanto, redirecionar todos os nossos esforos, volt2

Hard em ingls significa duro, rgido, enquanto soft significa macio, malevel. Qual dessas duas
opes de ensino voc acha que nossos alunos escolheriam se tivessem chance?

los para a descoberta de novas maneiras que nos permitam fazer de


nossos alunos bons motoristas da lngua, bons usurios de seus
programas.
Por isso que Srio Possenti, depois de exibir argumentos com
os quais concordo integralmente, diz nas pginas 53-54 de Por que
(no) ensinar gramtica na escola:
Todas as sugestes feitas nos textos anteriores s faro sentido se os professores
estiverem convencidos ou puderem ser convencidos de que o domnio
efetivo e ativo de uma lngua [pg. 120] dispensa o domnio de uma
metalinguagem tcnica. Em outras palavras, se ficar claro que conhecer uma
lngua uma coisa e conhecer sua gramtica outra. Que saber uma lngua uma
coisa e saber analis-la outra. Que saber usar suas regras uma coisa e saber
explicitamente quais so as regras outra. Que se pode falar e escrever numa
lngua sem saber nada sobre ela, por um lado, e que, por outro lado,
perfeitamente possvel saber muito sobre uma lngua sem saber dizer uma frase
nessa lngua em situaes reais.

Quando digo coisas assim em pblico, algumas pessoas


levantam a objeo de que o ensino da nomenclatura tradicional,
das definies, das classificaes, da anlise sinttica necessrio
porque so essas coisas que sero cobradas ao aluno no momento de
fazer um concurso ou de prestar o vestibular. Se assim, cabe a
ns, professores, pressionar pelos meios de que dispomos
associaes profissionais, sindicatos, cartas imprensa para que
as provas de concursos sejam elaboradas de outra maneira,
trocando as velhas concepes de lngua por novas. No temos de
nos conformar passivamente com uma situao absurda e
prosseguir

na

reproduo

dos

velhos

vcios

gramatiqueiros

simplesmente porque haver uma cobrana futura ao aluno.

Quanto ao vestibular Deus seja mil vezes louvado! , ele


est desaparecendo. Diversas universidades pblicas e privadas
esto encontrando novos meios de seleo e admisso de alunos aos
cursos superiores. Afinal, poucas instituies houve no Brasil to
obtusas, nefastas, injustas, antidemocrticas e perniciosas quanto o
vestibular. Nunca consegui entender por que uma pessoa [pg. 121]
que quer estudar Direito precisa fazer prova de fsica, qumica,
biologia e matemtica, se o que ela aprendeu dessas matrias j foi
avaliado na concluso do 2 grau.
Com o fim do vestibular, desaparecer tambm assim
esperamos ardentemente toda a indstria que se formou em
torno dele: os nefandos cursinhos onde ningum aprende nada,
onde no h nenhuma produo de conhecimento mas apenas
reproduo de informaes desconexas, onde centenas de alunos se
apinham numa sala, onde tudo o que se faz entupir a cabea do
aluno com truques e macetes que em nada contribuem para a
sua verdadeira formao intelectual e humanstica.

4. O que erro?
Outro modo interessante de romper com o crculo vicioso do
preconceito lingstico reavaliar a noo de erro. A noo
tradicional (eu diria at folclrica) de erro que permite que pessoas
como Sacconi escrevam livros absurdos como No erre mais! e
vendam milhares de exemplares deles.
Como vimos na primeira parte do livro, o Mito 6 expressa a
prtica milenar de confundir lngua em geral com escrita e, mais
reduzidamente ainda, com ortografia oficial. A tal ponto que uma
elevada porcentagem do que se rotula de erro de portugus , na
verdade, mero desvio da ortografia oficial. O vigor desse mito se

depreende, por exemplo, num exerccio de pesquisa sugerido por um


livro didtico de publicao recente (Carvalho & Ribeiro, 1998: 125).
Aps apresentar o poema [pg. 122] Erro de portugus, de Oswald
de Andrade, os autores pedem ao aluno:
1. Procure localizar erros de portugus em cartazes, placas, ou at mesmo na fala
de pessoas que voc conhece. Transcreva-os em seu caderno.

Ora, em cartazes e placas no aparecem erros de portugus e,


sim, erros de ortografia. Escrever, digamos, LOGINHA DE
ARTEZANATO

onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO

em nada vai prejudicar a inteno do autor da placa: informar que


ali se vende objetos de artesanato. Neste caso, nem mesmo a
realizao fontica da placa certa e da placa errada vai
apresentar diferena. O fato tambm de haver erro na placa no
significa de forma nenhuma que os objetos ali vendidos sejam de
qualidade inferior, errados ou feios.
Se mais acima escrevi lei porque se trata exatamente disso.
A ortografia oficial fruto de um gesto poltico, determinada por
decreto, resultado de negociaes e presses de toda ordem
(geopolticas, econmicas, ideolgicas). No incio do sculo XX o
certo era escrever: EM NICTHEROY ELLE POUDE ESTUDAR SCIENCIAS
NATURAES, CHIMICA E PHYSICA.

Se hoje o certo escrever: EM

NITERI ELE PDE ESTUDAR CINCIAS NATURAIS, QUMICA E FSICA,

isso no altera a sintaxe nem a semntica do enunciado: o que


mudou foi s a ortografia.
O exerccio proposto por Carvalho & Ribeiro, alm de confundir
portugus

com

ortografia

do

portugus,

tambm

admite

implicitamente a existncia de erros na [pg. 123] fala de pessoas


que voc conhece. O problema aqui ainda mais grave porque, do

ponto de vista cientfico, simplesmente no existe erro de portugus.


Todo falante nativo de uma lngua um falante plenamente
competente dessa lngua, capaz de discernir intuitivamente a
gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado, isto , se
um enunciado obedece ou no s regras de funcionamento da
lngua.
Ningum comete erros ao falar sua prpria lngua materna,
assim como ningum comete erros ao andar ou ao respirar. S se
erra naquilo que aprendido, naquilo que constitui um saber
secundrio, obtido por meio de treinamento, prtica e memorizao:
erra-se ao tocar piano, erra-se ao dar um comando ao computador,
erra-se ao falar/escrever uma lngua estrangeira. A lngua materna
no um saber desse tipo: ela adquirida pela criana desde o
tero, absorvida junto com o leite materno. Por isso qualquer
criana entre os 3 e 4 anos de idade (se no menos) j domina
plenamente a gramtica de sua lngua. O resultado disso , como
diz Perini (1997:11), que nosso conhecimento da lngua ao mesmo
tempo altamente complexo, incrivelmente exato e extremamente
seguro.
E o mesmo autor prossegue, afirmando (p. 13) que
qualquer falante de portugus possui um conhecimento implcito altamente
elaborado da lngua, muito embora no seja capaz de explicitar esse
conhecimento. E [...] esse conhecimento no fruto de instruo recebida na
escola, mas foi adquirido de maneira to natural e espontnea quanto a nossa
habilidade de andar. Mesmo pessoas que nunca estudaram [pg. 124] gramtica
chegam a um conhecimento implcito perfeitamente adequado da lngua. So
como pessoas que no conhecem a anatomia e a fisiologia das pernas, mas que
andam, danam, nadam e pedalam sem problemas.

Assim, podemos at dizer que existem erros de portugus, s


que nenhum falante nativo da lngua os comete! Por exemplo,
seriam errados os enunciados abaixo (o asterisco indica construo
agramatical):
(1) *Aquela garoto me xingou
(2) *Eu nos vimos ontem na escola
(3) *Jlia chegou semana que vem
(4) *No duvido que ele no queira no vir aqui
(5) *Que o livro que a moa que Lus que trabalha comigo me apresentou
escreveu bom no nego.

Esses enunciados, precisamente por serem agramaticais, isto ,


por no respeitarem as regras de funcionamento da nossa lngua,
no aparecem na fala espontnea e natural de falantes nativos do
portugus do Brasil, mesmo que sejam crianas pequenas que ainda
no freqentam escola ou adultos totalmente iletrados.
O que est em jogo aqui, evidentemente, a noo de erro e seu
estreito vnculo com o que tradicionalmente chamado de
portugus. Como j mostrei, existe, no nvel da lngua escrita, a
confuso entre portugus e ortografia oficial da lngua portuguesa.
No nvel da lngua falada, os termos que se confundem, ou que so
tomados como equivalentes, so portugus, gramtica normativa e
variedade padro. [pg. 125]
Em relao lngua escrita, seria pedagogicamente proveitoso
substituir a noo de erro pela de tentativa de acerto. Afinal, a
lngua escrita uma tentativa de analisar a lngua falada, e essa
anlise ser feita, pelo usurio da escrita no momento de grafar sua
mensagem, de acordo com seu perfil sociolingstico. Uma pessoa
com poucos anos de escolarizao, pouco habituada prtica da
leitura e da escrita, tendo como quadro de referncia apenas uma

suposta equivalncia unvoca entre som e letra, far uma anlise


dotada de reduzido instrumental terico, empregando como
ferramenta bsica a analogia. Assim, quem escreveu CHCARA em
vez de XCARA no fez isso porque quis errar, mas sim porque quis
acertar. Se existe CHINELO, CHICOTE, CHIQUEIRO, CHICLETE, por
analogia se chega possibilidade de tambm haver CHCARA.
importante notar que os erros de ortografia so constantes: troca
de J por G, de S por Z, de CH por X e assim por diante justamente
por serem casos em que necessrio fazer uma anlise da relao
fala-escrita

que

ultrapassa

os

limites

tericos

da

suposta

equivalncia som-letra. Dificilmente algum vai tentar escrever


XCARA

usando um J, um G, um S no lugar do X oficial, porque

faltam dados de experincia para uma analogia razovel. Por outro


lado, uma pessoa que tenha freqentado a escola por muitos anos,
que leia e escreva assiduamente, que se tenha familiarizado com o
uso do dicionrio, que tenha sido despertada para a existncia das
regularidades e irregularidades da lngua escrita, saber que a
simples analogia no ser suficiente como guia no momento de
escrever outros quadros de referncia tero de ser acessados: a
cultura [pg. 126] erudita, a etimologia das palavras, as reformas
ortogrficas, os critrios de normativizao da ortografia etc.
Quanto lngua falada, fica bvio que o rtulo de erro
aplicado a toda e qualquer manifestao lingstica (fontica,
morfolgica e sinttica, principalmente) que se diferencie das regras
prescritas pela gramtica normativa, que se apresenta como
codificao da lngua culta, embora na verdade seja a codificao
de um padro idealizado, que no coincide com a verdadeira
variedade culta objetiva. Dentro dessa conceituao, so igualmente
errados os enunciados abaixo

(6) A Joana uma menina que ela sabe o que faz


(7) *A Joana que ela sabe uma menina o que faz,

muito embora (6) seja perfeitamente inteligvel, decodificvel,


interpretvel e, portanto, gramatical, aceitvel, enquanto (7)
claramente agramatical e, por conseguinte, no ocorre na fala
normal de nenhum brasileiro. No entanto, (6) considerado to
errado quanto (7) porque nenhum dos dois enunciados se
enquadra nas prescries da gramtica normativa (e de seus
autoproclamados defensores, os comandos paragramaticais). O
enunciado (6), porm, tem uma sintaxe, uma semntica e uma
pragmtica que qualquer falante nativo do portugus do Brasil (sem
preocupaes normativistas) aceita com tranqilidade, e a prova
disso que enunciados desse tipo so proferidos aos milhes
diariamente em todos os cantos do pas, por pessoas de todas as
classes sociais, inclusive as consideradas cultas. ( certo que
construes [pg. 127] desse tipo no aparecem em textos cultos
escritos, mas preciso distinguir as variedades cultas faladas das
variedades cultas escritas, coisa que os prescritivistas em geral no
fazem.) Trata-se, aqui, de uma regramaticalizao do pronome que,
de toda uma complexa perda de casos gramaticais, fenmeno que
vem sendo estudado h bastante tempo, tendo sido j tema de
muitos ensaios, dissertaes e teses cientficas. Mas a prova
oferecida pelo uso intenso de construes sintticas como a de (6)
no convence os defensores da gramtica normativa e os membros
dos comandos paragramaticais, que no conseguiriam sobreviver
sem a noo de erro.
preciso ter sempre em mente que tudo aquilo que
considerado erro ou desvio pela gramtica tradicional tem uma

explicao lgica, cientfica, perfeitamente demonstrvel. S por


isso que os agentes dos comandos paragramaticais podem falar de
erros comuns. Os gramticos conservadores no se do conta de
que o prprio adjetivo comum usado por eles mostra que se trata
de um fenmeno amplo de variao, de uma transformao que est
se processando nos mecanismos de funcionamento geral da lngua.
Em sua cegueira dogmtica, eles falam de vcio comum, erro
vulgar, praga, corrupo muito difundida, sem perceber que
esto, na verdade, reconhecendo que aquilo que eles consideram
certo que deve apresentar algum problema, alguma disfuno,
alguma impossibilidade de uso que impede que a maioria das
pessoas obedea quela regra. A nica explicao inaceitvel
(embora seja a preferida dos conservadores) a de que essas
pessoas so asnos, ignorantes ou idiotas. [pg. 128]
A nova postura terica e prtica consiste em procurar conhecer
as regras que esto levando os falantes da lngua a usar X onde se
esperaria Y, identificar essas regras, descrev-las, pesquisar
explicaes cientficas para elas, e, se possvel, apresent-las a seus
alunos. Foi o que tentei fazer em meu livro A lngua de Eullia, e
foi tambm o que fiz neste livro ao contestar a explicao paleozica
de Dad Squarisi para a alta freqncia de Vende-se casas em lugar
de Vendem-se casas.
O bom professor age como o filsofo Spinoza, que escreveu:
Tenho-me esforado por no rir das aes humanas, por no deplor-las nem odilas, mas por entend-las.

Pessoas como Napoleo Mendes de Almeida, Luiz Antonio


Sacconi e Dad Squarisi agem exatamente ao contrrio de Spinoza.
Sacconi, ao recorrer a um humor de gosto duvidoso, chega mesmo a

escrever, preto no branco:Eu, porm, odeio gente que s diz


asneiras... (p. 43). De um verdadeiro professor devemos sempre
esperar compaixo, solidariedade, empatia, nunca o dio muito
menos o riso deplorador.

5. Ento vale tudo?


Algumas pessoas me dizem que a eliminao da noo de erro
dar a entender que, em termos de lngua, vale tudo. No bem
assim. Na verdade, em termos de lngua, tudo vale alguma coisa,
mas esse valor vai depender de uma srie de fatores. Falar gria
vale? Claro que [pg. 129] vale: no lugar certo, no contexto
adequado, com as pessoas certas. E usar palavro? A mesma coisa.
Uma das principais tarefas do professor de lngua
conscientizar seu aluno de que a lngua como um grande guardaroupa, onde possvel encontrar todo tipo de vestimenta. Ningum
vai s de mai fazer compras num shopping-center, nem vai entrar
na praia, num dia de sol quente, usando terno de l, chapu de
feltro e luvas...
Usar a lngua, tanto na modalidade oral como na escrita,
encontrar

ponto

de

equilbrio

entre

dois

eixos:

da

adequabilidade e o da aceitabilidade.
Quando falamos (ou escrevemos), tendemos a nos adequar
situao de uso da lngua em que nos encontramos: se uma
situao formal, tentaremos usar uma linguagem formal; se uma
situao descontrada, uma linguagem descontrada, e assim por
diante. Essa nossa tentativa de adequao se baseia naquilo que
consideramos ser o grau de aceitabilidade do que estamos dizendo
por parte de nosso interlocutor ou interlocutores. Podemos
representar tudo isso graficamente mais ou menos assim:

totalmente inadequado, por exemplo, fazer uma palestra


num congresso cientfico usando gria, expresses [pg. 130]
marcadamente regionais, palavres etc. A platia dificilmente
aceitar isso. claro que se o objetivo do palestrante for
precisamente chocar seus ouvintes, aquela linguagem ser muito
adequada... No adequado que um agrnomo se dirija a um
lavrador analfabeto usando uma terminologia altamente tcnica e
especializada, a menos que queira no se fazer entender. Como
sempre, tudo vai depender de quem diz o qu, a quem, como,
quando, onde, por qu e visando que efeito...

6. A parania ortogrfica
A atitude tradicional do professor de portugus, ao receber um
texto produzido por um aluno, procurar imediatamente os erros,
direcionar toda a sua ateno para a localizao e erradicao do
que est incorreto. uma preocupao quase exclusiva com a
forma, pouco importando o que haja ali de contedo. sobretudo
aquilo que chamo de parania ortogrfica: uma obsesso neurtica
para que todas as palavras tragam o acento grfico, que todos os

tenham sua cedilha, que todos os J e G estejam nos lugares certos...


e assim por diante. Alis, uma porcentagem enorme do que todo
mundo chama de erro de portugus diz respeito a meras
incorrees ortogrficas.
Ora, saber ortografia no tem nada a ver com saber a lngua.
So dois tipos diferentes de conhecimento. A ortografia no faz
parte da gramtica da lngua, isto , das regras de funcionamento
da lngua. Como vimos no Mito n 6, muitas pessoas nascem,
crescem, vivem e morrem sem jamais aprender a ler e a escrever,
sendo, no entanto, conhecedores perfeitos da gramtica de sua
lngua. [pg. 131]
A ortografia oficial fruto de um decreto, de um ato
institucional por parte do governo, e fica muitas vezes sujeita aos
gostos pessoais ou s interpretaes dos fenmenos lingsticos por
parte dos fillogos que ajudam a estabelec-la. Por isso, na virada
do sculo XIX para o XX se escrevia ELLE; na primeira metade do
sculo XX se escreveu LE e agora, no limiar do sculo XXI, se
escreve ELE.
Por isso, a lei nos manda escrever HUMO OU HMUS, mas MIDO
e UMIDADE, embora sejam todas palavras da mesma famlia (em
Portugal todas essas palavras tm H).
Por isso tambm temos de escrever ESTRANHO e ESTRANGEIRO,
com s, embora sejam palavras formadas com base no prefixo EXTRA, presente em EXTRAORDINRIO, EXTRAVAGANTE, EXTRAPOLAR etc.
(em espanhol se escreve EXTRNEO e EXTRANJERO).
Por isso o adjetivo EXTENSO e o substantivo EXTENSO
apresentam um x, mas o verbo ESTENDER (v l saber por qu!) se
escreve com um s. E o adjetivo MACIO se escreve com c embora seja
derivado de MASSA, com SS.

Se os legisladores da lngua podem ser to incoerentes no


momento de definir a ortografia oficial, no h por que estranhar
(ou extranhar) que as pessoas em geral tambm se confundam. Mas
no o que pensam Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante, que na
p. 33 de sua Gramtica, escrevem:
No admissvel que com um alfabeto to restrito (apenas 23 letras!) se cometam
tantos erros ortogrficos pelo Brasil afora. Estude com cuidado este captulo para
integrar o grupo de cidados que sabem grafar corretamente as palavras da lngua
portuguesa. [pg. 132]

Essa Gramtica filia-se tradio que atribui ao domnio da


escrita um elemento de distino social, que na verdade um
elemento de dominao por parte dos letrados sobre os iletrados.
Existe um mito ingnuo de que a linguagem humana tem a
finalidade de comunicar, de transmitir idias mito que as
modernas correntes da lingstica vm tratando de demolir,
provando que a linguagem muitas vezes um poderoso instrumento
de ocultao da verdade, de manipulao do outro, de controle, de
intimidao, de opresso, de emudecimento. Ao lado dele, tambm
existe o mito de que a escrita tem o objetivo de difundir as idias.
No entanto, uma simples investigao histrica mostra que, em
muitos casos, a escrita funcionou, e ainda funciona, com a
finalidade oposta: ocultar o saber, reserv-lo a uns poucos para
garantir o poder queles que a ela tm acesso.
Como nos informa Leda Tfouni em seu livro Adultos no
alfabetizados: o avesso do avesso, a escrita na ndia esteve
profundamente ligada aos textos sagrados, a que s tinham acesso
os sacerdotes, os iniciados, os que passavam por um longo
processo de preparao: no fundo, a garantia de que poderiam ler

aqueles textos guardando-os em segredo. De fato, a clebre


gramtica de Panini (sculo V a. C), que esmiua toda a estrutura
da lngua snscrita clssica, tinha um objetivo especfico: permitir a
leitura correta e a interpretao exata dos textos sagrados. Era,
portanto, a filologia a servio da casta sacerdotal. Convm lembrar
que foi necessria a Reforma protestante, no sculo [pg. 133] XVI,
para que a Igreja catlica romana permitisse a popularizao da
Bblia, tolerando que as Escrituras fossem lidas e estudadas em
outras lnguas vivas e no somente em latim. A primeira traduo
da Bblia para o portugus, por exemplo, s aconteceu em 1719, por
obra de um protestante, Joo Ferreira de Almeida.
Na China, o sistema ideogrfico de escrita exerceu durante
sculos a funo de assegurar o poder aos burocratas e aos
religiosos. Realmente, a grande quantidade de ideogramas,
juntamente com o alto grau de sofisticao de seus desenhos, eram
obstculos para que as pessoas do povo pudessem aprender a ler e
escrever. Pesquisadores citados por Tfouni relatam que apesar de os
chineses conhecerem a escrita alfabtica desde o sculo II d.C, eles
se recusaram a aceit-la at a poca atual, provavelmente porque
seu cdigo antigo, mais complexo e pouqussimo prtico, h sculos
se estabelecera como o meio de expresso de uma vasta produo
literria, alm de estar inextricavelmente ligado s instituies
religiosas e de ser aceito como marca distintiva das classes
educadas (grifos de Tfouni).
A mesma autora (p. 12) atribui introduo da escrita
alfabtica na Grcia, no sculo V-VI a.C, todo um processo de
radicais transformaes culturais, polticas e sociais:

O aparecimento, entre outras coisas, do pensamento lgico-emprico e filosfico, a


formalizao da Histria e da Lgica enquanto disciplinas intelectuais, e a prpria
democracia grega tm ntima relao com a expanso e solidificao da escrita
fontica na Grcia e na Jnia. [pg. 134]

Por qu? Porque, ao contrrio de outras civilizaes suas


contemporneas,

grega

no

tem

uma

casta

sacerdotal

monopolizadora dos livros sagrados. A prpria escrita no um


segredo dos governantes e escribas, mas de domnio pblico e
comum, possibilitando, agora sim, a ampla difuso e discusso de
idias.
Assim, se por um lado a escrita pode ser apontada como uma
das causas fundamentais do surgimento de civilizaes modernas e
do desenvolvimento cientfico, tecnolgico e psicossocial das
sociedades em que foi adotada, por outro, no convm negligenciar
fatores como as relaes de poder e dominao que governam a
utilizao restrita ou generalizada de um cdigo escrito.
Ao convidar o leitor a fazer parte do grupo de cidados que
sabem grafar corretamente as palavras da lngua portuguesa,
Cipro e Infante afirmam, implicitamente, que esse conhecimento
no amplo e generalizado (nem poderia ser: 60 milhes de
analfabetos!), mas sim restrito a um grupo de cidados.
Outra idia ingnua dos autores achar inadmissvel o
nmero de erros de ortografia cometidos pelo Brasil afora j que
nosso alfabeto tem apenas 23 letras! Ora, o alfabeto tem 23 letras,
sim, mas elas podem se juntar em centenas (seno milhares) de
combinaes diferentes, criando a riqueza inumervel das palavras
da lngua portuguesa. E essas combinaes possveis nada tm de
coerentes: nosso sistema ortogrfico, como explica Miriam Lemle, ,
ao mesmo tempo, um sistema de representao fonmica, um

sistema de representao [pg. 135] morfofonmica, um sistema com


memria etimolgica e um sistema que privilegia uma variedade
dialetal em detrimento de outra3.
Para termos uma idia das complexas combinaes possveis
entre as letras de nosso alfabeto e os sons que elas podem
representar, vamos ver as relaes que existem entre os fonemas
[k], [s], [] (este o som da letra x em xixi) e [z] e suas possveis
representaes ortogrficas4

[pg. 136]

Ver o interessante prefcio de Miriam Lemle ao livro Leitura, ortografia e fonologia, de Myrian
Barbosa da Silva.
4
Este quadro inspira-se no da p. 32 do livro de Myrian Barbosa da Silva, com pequenas alteraes.

Contando o nmero de flechas, identificamos ao todo 21


relaes entre realizao fontica e representao grfica. Mas se
fssemos levar em conta toda as diversidades de pronncia que
existem no universo da lngua portuguesa, no Brasil e fora dele,
certamente encontraramos muitas mais5. Vamos dar exemplos s
das 21 relaes do nosso esquema:
1. QU [ku]: obliqe
2. QU [kw]: quase
3. QU [k]: quero
4. C [k]: casa
5. C [s]: cu
6. S [s]: sol
7. S []: festa (na pronncia carioca, paraense, lisboeta, entre outras)
8. S [z]: rosa
9. Z [z]: azul
10. Z []: raiz (nas mesmas pronncias citadas em 7)
11. X [s]: prximo
12. X [ks]: fixo [pg. 137]
13. X [z]: exame
14. X []: xcara
15. [s]: ao
16. SS [s]: osso
17. XC [s]: exceto
18. XS [s]: exsudar
19. SC [s]: descer
20. S [s]: cresa
5

Gosto de propor o seguinte desafio s pessoas que ainda se iludem com o mito de que o certo
escrever assim porque se fala assim: voc sabia que a letra s pode representar o som do J em j? Depois
de alguns momentos de reflexo, dou a resposta: na pronncia do Rio de Janeiro, de Belm ou de Lisboa,
numa palavra como MESMO O S tem som de J, e o prprio nome de Lisboa na fala de seus nativos se
pronuncia lijboa. Nessas pronncias, uma frase como AS MESMAS BOAS GAROTAS soa aj mejmaj boaj
garotax, por causa de caractersticas fonticas tpicas do portugus (culto inclusive) falado nesses locais.
Alm disso, na fala no-culta do Rio de Janeiro comum a pronncia mermo ou me'mo para o que se
escreve MESMO. A complexidade da relao letra-som, como se v, muito maior do que as pessoas em
geral pensam, sobretudo quando se leva em conta todas as variedades nacionais, regionais, sociais,
estilsticas etc. da lngua.

21. CH []: chave

Parece complicado? E ! Diante de uma situao dessas, que


apenas uma das muitas sries de inter-relaes entre letra e som
que existem na lngua portuguesa, no nos parece nem um pouco
inadmissvel a existncia de dvidas e hesitaes por parte dos
brasileiros, inclusive dos bem alfabetizados, no momento de
escrever.
Vamos abandonar, portanto, a idia (preconceituosa) de que
quem escreve tudo errado um ignorante da lngua. O
aprendizado da ortografia se faz pelo contato ntimo e freqente
com textos bem escritos, e no com regras mal elaboradas ou com
exerccios pouco esclarecedores.
Ao recebermos um texto escrito por algum (ou ao ouvir algum
falar), vamos procurar ver, antes de tudo, o que ele/ela est
querendo comunicar, para s depois nos preocuparmos com os
detalhes de como ele/ela est se comunicando. Vamos fazer a ns
mesmos as seguintes perguntas:
Esse texto (ou esse discurso) coerente?
Traz idias originais? [pg. 138]
Ofende algum princpio tico?
preconceituoso?
Reproduz idias autoritrias ou intolerantes?
Mostra um esprito crtico e/ou criativo?
Demonstra um senso esttico?
Comunica que sentimentos?
Ensina-me alguma coisa?
Desperta minhas emoes? Quais?
...

E assim por diante. Isso que educar: dar voz ao outro,


reconhecer seu direito palavra, encoraj-lo a manifestar-se... Sem

isso, no de admirar que a atividade de redao seja to


problemtica na escola.
Eu confesso que sinto muito maior prazer ao ler (ou ouvir) um
texto cheio de erros de portugus mas com idias originais,
inovadoras, coerentes, bem expressas , um texto isento de
preconceitos e de idias ranosas, do que ao ler um texto com todas
as vrgulas no lugar, com todas as regncias cultas respeitadas,
todas as concordncias verbais e nominais, mas repleto de intolerncia, de deboche, de sarcasmo, de concepes degradantes e por a
afora.

7. Subvertendo o preconceito lingstico


Por mais que isso nos entristea ou irrite, preciso reconhecer
que o preconceito lingstico est a, firme e forte. No podemos ter
a iluso de querer acabar com ele de uma hora para outra, porque
isso s ser possvel [pg. 139] quando houver uma transformao
radical do tipo de sociedade em que estamos inseridos, que uma
sociedade que, para existir, precisa da discriminao de tudo o que
diferente, da excluso da maioria em benefcio de uma pequena
minoria, da existncia de mecanismos de controle, dominao e
marginalizao. Apesar disso, acredito tambm que podemos
praticar alguns pequenos atos subversivos, uma pequena guerrilha
contra o preconceito, sobretudo porque ns, professores, somos
muito importantes como formadores de opinio. E quais so estes
pequenos atos de sabotagem contra o preconceito?
Primeiro, formando-nos e informando-nos. No me canso de
insistir: preciso que cada professor de lngua assuma uma posio
de cientista e investigador, de produtor de seu prprio conhecimento

lingstico terico e prtico, e abandone a velha atitude repetidora e


reprodutora de uma doutrina gramatical contraditria e incoerente.
Segundo, fazendo a crtica ativa da nossa prtica diria em
sala de aula. Por questo de sobrevivncia (s vezes at
sobrevivncia fsica mesmo!), talvez tenhamos de continuar
ensinando aquelas coisas que nos so cobradas pela sociedade, pela
direo das escolas, pelos pais dos nossos alunos. Mas podemos
ensinar essas coisas criticando-as ao mesmo tempo e deixando bem
claro que aquilo ali no tudo o que se pode saber a respeito da
lngua, que h um milho de outras coisas muito mais [pg. 140]
interessantes e gostosas para descobrir no universo da linguagem.
Terceiro, diante das cobranas de pais, diretores ou donos de
escola, mostrar que as cincias todas evoluem, e que a cincia da
linguagem tambm evolui. Que as mentalidades mudam, que as
posturas do prprio Ministrio da Educao hoje so outras. No se
pode negar que os Parmetros Curriculares Nacionais representam
um grande avano para a renovao do ensino da lngua
portuguesa. Vamos tentar adquirir, copiar, ter sempre mo esses
Parmetros para nos defender das pessoas que nos cobram um
ensino moda antiga: Olha aqui, , o Ministrio da Educao t
dizendo que a gente deve ensinar de uma maneira diferente, nova,
atualizada. Ou voc quer que seu filho continue aprendendo coisas
que no servem mais para nada?.
H algumas boas comparaes que nos ajudam a argumentar
melhor. Quando eu estava na escola, o certo em astronomia era que
somente o planeta Saturno tinha anis. Hoje, graas s inovaes
tecnolgicas, j sabemos que Urano e Netuno tambm tm anis. A
cada ano so descobertas dezenas de espcies novas de animais e
plantas (no mesmo ritmo, infelizmente, das que so extintas para

sempre). Recentemente, encontrou-se o fssil de um dinossauro


carnvoro maior e mais forte que o tiranossauro, considerado
durante muito tempo o maior predador que jamais existiu. Os
achados dos arquelogos a todo momento nos fazem rever e
reformular nossas idias sobre [pg. 141] a histria dos povos
antigos. Os mapas com as divises polticas da Europa de dez anos
atrs j no tm nenhuma utilidade prtica hoje em dia, a no ser
para o pesquisador investigar o que mudou de l para c. Se tantas
mudanas

acontecem

nas

outras

reas

do

conhecimento,

decorrentes das transformaes do universo, da natureza e da


sociedade, sendo acolhidas como naturais e inevitveis, por que s o
estudo-ensino da lngua estaria isento de crtica e reformulao?
Quarto, assumir uma nova postura, usando como matria de
reflexo as seguintes noes, que chamei de DEZ CISES, porque
representam de fato uma ciso, um corte do cordo umbilical que
sempre nos prendeu s velhas doutrinas gramaticais (o smbolo de
infinito no final da lista um convite a quem quiser acrescentar
outras cises):

DEZ CISES
para um ensino de lngua
no (ou menos) preconceituoso
1) Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma lngua
um usurio competente dessa lngua, por isso ele SABE essa lngua.
Entre os 3 e 4 anos de idade, uma criana j domina integralmente
a gramtica de sua lngua. Sendo assim,

2) aceitar a idia de que no existe erro de portugus. Existem


diferenas de uso ou alternativas de uso em relao regra nica
proposta pela gramtica normativa. [pg. 142]
3) No confundir erro de portugus (que, afinal, no existe) com
simples erro de ortografia. A ortografia artificial, ao contrrio da
lngua, que natural. A ortografia uma deciso poltica, imposta
por decreto, por isso ela pode mudar, e muda, de uma poca para
outra. Em 1899 as pessoas estudavam psychologia e histria do
Egypto; em 1999 elas estudam psicologia e histria do Egito.
Lnguas que no tm escrita nem por isso deixam de ter sua
gramtica.
4) Reconhecer que tudo o que a Gramtica Tradicional chama
de erro na verdade um fenmeno que tem uma explicao
cientfica perfeitamente demonstrvel. Se milhes de pessoas
(cultas inclusive) esto optando por um uso que difere da regra
prescrita nas gramticas normativas porque h alguma regra
nova sobrepondo-se antiga. Assim, o problema est com a regra
tradicional, e no com as pessoas, que so falantes nativos e
perfeitamente competentes de sua lngua. Nada por acaso.
5) Conscientizar-se de que toda lngua muda e varia. O que
hoje visto como certo j foi erro no passado. O que hoje
considerado erro pode vir a ser perfeitamente aceito como certo
no futuro da lngua. Um exemplo: no portugus medieval existia um
verbo leixar (que aparece at na Carta de Pero Vaz de Caminha ao
rei D. Manuel I). Com o tempo, esse verbo foi sendo pronunciado
deixar, porque [d] e [l] so consoantes aparentadas, o que permitiu
a troca de uma pela outra. Hoje quem pronunciar leixar vai estar

cometendo um erro (vai ser acusado de desleixo), muito embora


essa forma seja mais prxima da origem [pg. 143] latina, laxare
(compare-se, por exemplo, o francs laisser e o italiano lasciare). Por
isso bom evitar classificar algum fenmeno gramatical de erro:
ele pode ser, na verdade, um indcio do que ser a lngua no futuro.
6) Dar-se conta de que a lngua portuguesa no vai nem bem,
nem mal. Ela simplesmente VAI, isto , segue seu rumo, prossegue
em sua evoluo, em sua transformao, que no pode ser detida (a
no ser com a eliminao fsica de todos os seus falantes).
7) Respeitar a variedade lingstica de toda e qualquer pessoa,
pois isso equivale a respeitar a integridade fsica e espiritual dessa
pessoa como ser humano, porque
8) a lngua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres
humanos Ns somos a lngua que falamos. A lngua que falamos
molda nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo
molda a lngua que falamos. Para os falantes de portugus, por
exemplo, a diferena entre ser e estar fundamental: eu estou infeliz
radicalmente diferente, para ns, de eu sou infeliz. Ora, lnguas
como o ingls, o francs e o alemo tm um nico verbo para
exprimir as duas coisas. Outras, como o russo, no tm verbo
nenhum, dizendo algo assim como: Eu - infeliz (o russo, na escrita,
usa mesmo um travesso onde ns inserimos um verbo de ligao).
Assim,
9) uma vez que a lngua est em tudo e tudo est na lngua, o
professor de portugus professor de TUDO. (Algum j me disse
que talvez por isso o professor de portugus devesse receber um

salrio igual soma dos salrios de todos os outros professores!)


[pg. 144]
10) Ensinar bem ensinar para o bem. Ensinar para o bem
significa respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o
que ele j sabe do mundo, da vida, reconhecer na lngua que ele fala
a sua prpria identidade como ser humano. Ensinar para o bem
acrescentar e no suprimir, elevar e no rebaixar a auto-estima do
indivduo. Somente assim, no incio de cada ano letivo este
indivduo poder comemorar a volta s aulas, em vez de lamentar a
volta s jaulas!

[pg. 145]

IV
O preconceito contra a lingstica
e os lingistas

1. Uma religio mais velha que o cristianismo


O ensino de lngua na escola a nica disciplina em que existe
uma disputa entre duas perspectivas distintas, dois modos
diferentes de encarar o fenmeno da linguagem: a doutrina
gramatical tradicional, surgida no mundo helenstico no sculo III
a.C, e a lingstica moderna, que se firmou como cincia autnoma
no final do sculo XIX e incio do XX. Qualquer pessoa bem
informada acharia no mnimo estranho se um professor de biologia
ensinasse a seus alunos que as moscas nascem da carne podre, ou
se um professor de cincias dissesse que a Terra plana e o Sol gira
em torno dela, ou ainda se um professor de qumica afirmasse que a
mistura dos quatro elementos (ar, gua, terra e fogo) pode
resultar em ouro! So idias mais do que ultrapassadas e que
comearam

ser

substitudas

por

novas

concepes

mais

verossmeis a partir do perodo da histria do conhecimento


ocidental conhecido como o nascimento da cincia moderna (sculo
XVI em diante). Ningum se espanta, porm, quando um professor
de lngua ensina que os substantivos [pg. 147] so palavras que
representam os seres em geral, ou que sujeito o ser do qual se
diz alguma coisa, ou que verbo a palavra que exprime ao ou
movimento. So afirmaes to imprecisas e incoerentes (para no
dizer francamente falsas) quanto a de que as avestruzes enterram a

cabea na areia ou que apontar para as estrelas faz nascer verruga


nos dedos! E no entanto elas continuam sendo estampadas nos
manuais de gramtica, nos livros didticos, nas apostilas, e
cobradas em testes, exames e provas de vestibular!
A doutrina gramatical tradicional, mais velha que a religio
crist, passou inclume pela grande revoluo cientfica que abalou
os fundamentos do conhecimento e do pensamento ocidental a
partir do sculo XVI. Basta examinar o que acontece na escola.
muito comum o ensino das outras disciplinas fazer uma abordagem
crtica dos saberes do passado, mostrando de que maneira a
evoluo da sociedade, da cincia e da tecnologia levou o ser
humano a abandonar velhas crenas e supersties. Em livros
didticos de biologia, fsica, qumica, histria, geografia etc.,
freqente encontrar afirmaes do tipo: Durante muito tempo se
acreditou que [...], mas os avanos da pesquisa e do conhecimento
revelaram que [...]. Quem no se lembra de algum professor
contando a histria de Coprnico, Galileu, Newton, Darwin, Pasteur
e outros que revolucionaram o conhecimento humano? Isso s no
acontece nas aulas de lngua! Os termos e conceitos da Gramtica
Tradicional estabelecidos h mais de 2.300 anos! continuam a
ser repassados praticamente [pg. 148] intactos de uma gerao de
alunos para outra, como se desde aquela poca remota no tivesse
acontecido nada na cincia da linguagem. O ensino tradicional
opera assim uma imobilizao do tempo, um apagamento das
condies sociais e histricas que permitiram o surgimento e a
permanncia da Gramtica Tradicional.
A Gramtica Tradicional permanece viva e forte porque, ao
longo da histria, ela deixou de ser apenas uma tentativa de
explicao filosfica para os fenmenos da linguagem humana e foi

transformada em mais um dos muitos elementos de dominao de


uma parcela da sociedade sobre as demais. Assim como, no curso do
tempo, tem se falado da Famlia, da Ptria, da Lei, da F etc. como
entidades sacrossantas, como valores perenes e imutveis, tambm
a Lngua foi elevada a essa categoria abstrata, devendo, portanto,
ser preservada em sua pureza, defendida dos ataques dos
barbarismos, conservada como um patrimnio que no pode
sofrer runa e corrupo. Nessa concepo nada cientfica, lngua
no toda e qualquer manifestao oral e/ou escrita de qualquer ser
humano, de qualquer falante nativo do idioma: a Lngua, com
artigo definido e inicial maiscula, somente aquele ideal de
pureza e virtude, falado e escrito, claro, pelos puros e virtuosos
que esto no topo da pirmide social e que, por isso, merecem
exercer seu domnio sobre as demais camadas da populao. A
lngua deixou de ser fato concreto para se transformar em valor
abstrato.
Querer cobrar, hoje em dia, a observncia dos mesmos padres
lingsticos do passado querer preservar, [pg. 149] ao mesmo
tempo, idias, mentalidades e estruturas sociais do passado. A
Gramtica

Tradicional,

funcionando

como

uma

ideologia

lingstica, foi e ainda , como toda ideologia, o lugar das certezas,


uma doutrina slida e compacta, com uma nica resposta correta
para todas as dvidas. Por isso, o que no est abonado na
gramtica normativa erro ou simplesmente no portugus, e
se alguma palavra no se encontra no dicionrio porque
simplesmente ela no existe! A lingstica moderna, ao encarar a
lngua como um objeto passvel de ser analisado e interpretado
segundo mtodos e critrios cientficos, devolveu a lngua ao seu
lugar de fato social, abalando as noes antigas que apresentavam a

lngua como um valor ideolgico. Assim, a lingstica, como toda


cincia, o lugar das surpresas, das descobertas, do novo, da
substituio de paradigmas, da reformulao crtica das teorias.
Ora, o novo assusta, o novo subverte as certezas, compromete
as estruturas de poder e dominao h muito vigentes. No por
acaso que, mesmo entre profissionais que deveriam ter a lingstica
como seu corpo terico e prtico de referncia, a doutrina
gramatical tradicional ainda encontre um apoio e uma defesa quase
irracionais. o que se v, hoje em dia, na imprensa e na mdia
brasileira, com os comandos paragramaticais analisados neste livro,
essa enxurrada de programas de televiso e de rdio, colunas de
jornal e revista que tentam preservar as noes mais conservadoras
do certo e do errado, desprezando o saber acumulado por mais
de um sculo [pg. 150] de cincia lingstica moderna, que tem no
Brasil

centros

de

pesquisa

de

excelncia

reconhecida

internacionalmente. Isso para no falar tambm dos grupos de


pessoas que dizem promover ridculos movimentos de defesa da
lngua portuguesa, como se fosse necessrio defender a lngua de
seus prprios falantes nativos, a quem ela pertence de fato e de
direito. A matria de capa da revista Veja de 7/11/2001 (Falar e
escrever bem) e a estria de Pasquale Cipro Neto no programa
Fantstico da Rede Globo no mesmo ano so exemplos perfeitos do
obscurantismo

anticientfico

que

envolve,

nos

meios

de

comunicao, tudo o que diz respeito lngua e ao ensino da lngua.


A participao de Pasquale no Fantstico faz regredir em pelo
menos 25 anos os grandes avanos j obtidos pela Lingstica na
renovao do ensino de lngua na escola brasileira.
O grande problema est na confuso que reina na mentalidade
das pessoas que atribuem uma crise lngua, quando, de fato, a

crise existe na escola, no sistema educacional brasileiro,


classificado entre os piores do mundo, apesar de nosso pas ser o
mais rico e industrializado do Hemisfrio Sul, alm de ser a dcima
economia capitalista do planeta. A lngua no est em crise, muito
pelo contrrio: nunca em toda a sua histria o portugus foi to
falado, to escrito, to impresso e to difundido mundo afora pelos
mais diferentes meios de comunicao. E a participao do Brasil,
com seus 170 milhes de falantes nativos, de longe a mais
relevante [pg. 151] e a mais importante. Crise existe, sim, na
escola pblica brasileira, de todos os nveis, desde o pr-primrio
at a universidade, sobretudo depois que o duplo governo presidido
por Fernando Henrique Cardoso passou a empregar todos os
esforos possveis para demolir, sistematicamente, o j cambaleante
e sucateado sistema de ensino pblico do Brasil (como tem feito,
alis, com todo o patrimnio pblico dos brasileiros). essa escola
arruinada,

com

professores

despreparados

pessimamente

remunerados, que no oferece aos alunos as mnimas condies de


letramento necessrias para o pleno exerccio da cidadania. Tentar
atribuir as deficincias dos brasileiros no uso mais formal da lngua
aos prprios brasileiros que no tm amor ao idioma ou, pior
ainda, ao prprio idioma, no querer ver a realidade, lanar a
culpa sobre quem, de fato, a vtima maior deste processo perverso.
Desse modo, achar que a lngua est em crise e que para
superar essa crise necessrio sustentar a doutrina gramatical
sem submet-la a uma crtica serena e bem-fundada , a meu ver,
uma atitude que s pode ter duas explicaes: a ignorncia
cientfica (a pessoa nunca ouviu falar de lingstica) ou a
desonestidade intelectual (tendo entrado em contato com a cincia
lingstica, finge que no a conhece) pior ainda quando essa

atitude se sustenta num indisfarado e indisfarvel preconceito


social. No podemos aceitar nenhuma dessas explicaes para
justificar o trabalho daqueles que se proclamam especialistas em
questes de linguagem. Que um leigo continue a repetir os mitos
preconceituosos e as idias [pg. 152] infundadas que circulam na
sociedade

sobre

lngua

linguagem

algo

que

podemos

compreender e explicar com base numa anlise sociolgica e


histrica. Mas que assim proceda um autoproclamado especialista
que, ainda por cima, se atribui o papel de julgar e condenar o
comportamento lingstico de seus semelhantes... algo que no
podemos aceitar e que devemos, sim, denunciar e combater.
Pelas mesmas razes que levaram transformao da
Gramtica Tradicional num instrumento de dominao e excluso
social que a atividade dos lingistas brasileiros vem sofrendo
ataques grosseiros por parte de auto-intitulados filsofos que
representam, na verdade, a reao mais conservadora (e muitas
vezes com acentos claramente fascistas) contra qualquer tentativa
de democratizao do saber e da sociedade. a mesma ira que leva
os fundamentalistas (pseudo)cristos a querer impedir o ensino da
teoria evolucionista de Darwin em escolas norte-americanas. Assim
como esses fundamentalistas, para defender seu ponto de vista
obscurantista, acusam Darwin de afirmar que o homem descende
do macaco (coisa que ele jamais escreveu em nenhuma de suas
obras: sua teoria a de que os humanos e os demais primatas
descendem de um ancestral comum), tambm os atuais detratores
da cincia lingstica acusam os estudiosos da linguagem de
defenderem o no-ensino das formas padronizadas do portugus,
numa tentativa de transformar toda uma argumentao detalhada

e sofisticada em duas ou trs afirmaes toscas e propositadamente


deturpadas. [pg. 153]

2. Portugus ortodoxo? Que lngua essa?


fcil mostrar de que modo essa oposio cincia lingstica
est viva e ativa no Brasil nos dias de hoje. Para comear, vamos
invocar novamente o espectro daquele que se tornou uma espcie de
arqutipo folclrico do gramtico autoritrio, conservador e
intolerante: Napoleo Mendes de Almeida. Tudo o que ele escreveu
constitui um material suculento e abundante para diversos tipos de
investigao sobre idias no-cientficas: como j vimos na segunda
parte deste livro, dos textos de Napoleo gotejam preconceitos
sociais, raciais, lingsticos entre outros; ao mesmo tempo, pululam
neles as afirmaes mais estapafrdias possveis sobre lngua,
gramtica e ensino. Vamos repetir aqui o que ele escreveu no
Dicionrio de Questes Vernculas, no verbete lingstica:
Para fixar inteis, pretensiosas e ridculas bizantinices, perde o estudante o tempo
que deveria dedicar ao conhecimento efetivo da lngua. [...] Que adorno cultural
representa um diploma de lingstica a quem escreve, ou deixa meia dzia de
vezes passar num mesmo artigo de jornal, os mais tolos erros de gramtica?
[...] Enganam-se os pais, enganam-se os filhos quando pensam estar a escola, a
faculdade ensinando gramtica, ensinando a lngua da terra porque no programa
consta 'lingstica'. O objeto da lingstica a lngua no sentido da fala, de dom de
expressar o homem por palavras o pensamento; um estudo sem utilidade
especfica para este ou aquele idioma. [...] a lingstica um dos estorvos do
aprendizado da lngua portuguesa em escolas brasileiras. [pg. 154]

Como j comentei esse texto mais atrs (pp. 80-81), vou apenas
chamar a ateno para o seguinte fato: Napoleo Mendes de
Almeida morreu em 1998 (aos 87 anos). Se tivesse escrito esse

verbete

at

1930,

seria

mais

fcil

entender

sua

postura

anticientfica, analisando-a dentro do contexto das idias e das


concepes de lngua e linguagem que vigoravam naquela poca, em
que

cincia

lingstica

ainda

no

tinha

se

instalado

definitivamente nos grandes centros de ensino e de pesquisa. Mas,


em 1998, muita gua j tinha passado debaixo da ponte cientfica,
os estudos da linguagem j tinham enfrentado diversas revolues
epistemolgicas, amplamente divulgadas nos meios acadmicos e
at nas escolas fundamental e mdia. No h nada que possa
justificar esse conceito to mesquinho e tacanho, essa idia tola de
que a lingstica s estuda os sons da fala...
Volto a falar de Napoleo Mendes de Almeida porque sua
morte mereceu um artigo assinado por Pasquale Cipro Neto na
Folha de S. Paulo, jornal onde Pasquale consultor de portugus.
Nesse artigo, depois de falar do estilo rebuscado e barroco de
Napoleo, Pasquale escreveu o seguinte (27/4/1998):
Talvez por isso, os lingistas autoproclamados de vanguarda o tm como
conservador e consideram intil o estudo de sua obra. Meticuloso, Napoleo era
essencialmente gramtico e como tal deve ser encarado. Muita gente o admira e
respeita, sobretudo por seu curso de portugus e latim por correspondncia. [pg.
155]

E conclui o artigo com estas palavras:


Uma coisa, porm, incontestvel: quem quiser estudar o portugus ortodoxo
para prestar concurso pblico, advogar, exercer a magistratura ou carreira
diplomtica certamente precisar consultar a obra de Napoleo.

muito interessante aqui o uso da expresso portugus


ortodoxo. Como se sabe, a noo de ortodoxia foi inventada
pouco depois da instituio do cristianismo como religio oficial do

imprio romano para definir os dogmas oficiais da Igreja, as


nicas maneiras certas e admissveis de acreditar em Deus, em
Cristo, na Virgem Maria, na Santssima Trindade etc. Quem se desviasse desses dogmas era acusado de heresia e condenado s mais
diversas punies, como o exlio, a priso, a tortura e a morte na
fogueira. O conceito de ortodoxia se relaciona com uma srie de
outras noes do mesmo campo semntico: dogma, intolerncia,
inflexibilidade, pecado, penitncia, castigo, excomunho e outras
aparentadas. Ao erro do hertico corresponde a infalibilidade do
ortodoxo. Se possvel falar em portugus ortodoxo porque
certamente

tambm

deve

existir, na

mentalidade

de

seus

defensores e em oposio a ele, um portugus hertico, um


portugus pecador, que merece castigo e excomunho... E ns
sabemos que precisamente essa mentalidade de perseguio,
acusao e condenao que est por trs, at hoje, da ao dos
defensores intransigentes dessa nebulosa ortodoxia gramatical.
[pg. 156]

3. Devaneios de idiotas e ociosos


Mas o que ser, afinal, o portugus ortodoxo de Pasquale
Cipro Neto? No muito difcil descobrir, basta ler com ateno as
coisas que ele escreve. Analisando, por exemplo, a fala do poltico
Francisco Rossi, candidato ao governo de So Paulo em 1998,
Pasquale escreveu, na mesma Folha de S. Paulo (21/8/1998):
Referindo-se a Gilson Menezes, Rossi disse que o prefeito de Diadema foi um
dos que levantou bandeira. Alguns lingistas perdem seu precioso tempo em
devaneios com que tentam explicar por que o falante brasileiro prefere o singular
nesses casos. Dizem que essa opo ocorre porque o que se quer colocar em
evidncia o elemento de que se fala. Balela. Por que no se aceita que se diga Ela

uma das moas bonita da sala, ou Ele um dos deputados inscrito para falar?
Porque no se quer dizer que ela a nica moa bonita, nem que o deputado o
nico inscrito. Das moas bonitas, ela uma. Dos deputados inscritos para falar,
ele um. Dos que levantaram bandeira, Gilson um. Ento Gilson foi um dos que
levantaram bandeira.

Temos aqui uma das muitas ocasies em que Pasquale,


sistematicamente, s menciona os lingistas para lanar sobre eles
as mais diversas acusaes. Nesse texto, temos a associao de
lingistas com devaneios e balela. Mas sempre assim. Quem
consultar, por exemplo, o cd-rom que rene todas as edies do
jornal Folha de S. Paulo entre os anos de 1994 e 2000, vai ver que
nas colunas assinadas por Pasquale, a palavra lingista vem
sempre [pg. 157] acompanhada de alguma nota depreciativa.
Tambm na revista Cult, onde escreve regularmente, Pasquale j
chamou os lingistas de deslumbrados.
Sobre o fato gramatical que ele analisa, detectando erro
comum na fala de Francisco Rossi, muito instrutivo ler o que o
fillogo e gramtico Evanildo Bechara afirmou numa entrevista ao
jornal UERJ em questo (n 72, fevereiro/abril de 2001). Para
justificar a suposta necessidade de elaborao de uma gramtica
normativa com a chancela da Academia Brasileira de Letras,
Bechara declarou:
Vejamos um exemplo: a expresso um dos que. A lngua permite que voc diga:
Carlos um dos alunos que trabalha; ou um dos alunos que trabalham. H
professores que consideram mais lgica a concordncia do verbo no plural. Outros
acham que a concordncia deve ser no singular. Mas a lngua admite as duas
possibilidades. O que no se pode fazer optar por uma forma e considerar a outra
errada, como muitas vezes fazem as bancas examinadoras.

Evanildo Bechara , sem a menor possibilidade de dvida, o


mais importante gramtico brasileiro vivo. Apesar de sua inegvel
competncia como estudioso da lngua, suas posturas polticas e
pedaggicas no tm nada de revolucionrias, e o simples fato de
pertencer Academia Brasileira de Letras exemplo de sua filiao
a um iderio conservador e elitista ele j declarou, por exemplo,
que a funo da escola levar os alunos a falar melhor e com os
melhores porque na sua opinio existe uma necessidade da
vigncia da hierarquizao e da [pg. 158] normatividade,
esquecendo-se de que a hierarquizao s pode parecer necessria
para os que ocupam, evidentemente, o topo da hierarquia e se
consideram, naturalmente, os melhores...1 Ora, Pasquale Cipro
Neto consegue ser mais conservador e elitista ainda do que
Bechara. Para o gramtico profissional, a lngua admite as duas
possibilidades. Para o colunista da Folha, a admisso dessas
possibilidades representa devaneios e balela. Agora fica mais
fcil entender o que Pasquale chama de portugus ortodoxo: um
conceito de lngua certa que mais certa ainda do que a lngua dos
gramticos profissionais, da prpria Academia Brasileira de Letras.
Em outra coluna (28/5/1998) ele fala de lingistas defensores
do vale-tudo, numa absoluta distoro do verdadeiro papel do
lingista como investigador de todos os fenmenos da lngua, e no
s como caador de erros e juiz do uso.
Vejamos um ltimo exemplo dessa concepo obscurantista que
Pasquale Cipro Neto divulga da lingstica e dos lingistas, e que
em nada difere da opinio de Napoleo Mendes de Almeida. A nica
diferena entre os dois que Napoleo nunca escondeu suas
1

Evanildo Bechara, A sobrevivncia da lngua culta, in Academia Brasileira de Letras na Imprensa


1999, Rio de Janeiro, ABL, 1999, pp. 63-70.

posies retrgradas, tendo-as assumido com toda franqueza e


nitidez ao longo de sua vida, ao passo que Cipro Neto tenta dar
verniz moderno sua atividade, posando de progressista. O
abismo entre seu discurso e sua prtica, no [pg. 159] entanto,
amplo, largo e fundo. Numa coluna publicada em 20/11/1997,
comentando a fala de representantes do governo numa entrevista
na televiso, Pasquale escreveu:
Quem assistiu entrevista coletiva concedida pela equipe econmica no ltimo dia
10 deve ter tido congesto de de que. Um dos membros da equipe, cujo nome
melhor no citar, abusou do direito de usar a bendita expresso: O governo
considera de que; No nos parece de que esse caso; Penso de que no ser
etc.
Santo Deus! De onde o homem, graduadssimo, professor, tirou tanto de? Os
verbos considerar, pensar e parecer pedem a preposio de? bvio que no.
Algum pensa algo, algum considera algo, algo parece a algum. Onde est o de?
Perguntem ao homem.
Nada de de que: No nos parece que, Penso que, O governo considera
que.

E agora, ao ataque:
Alguns lingistas (alguns), idiotas, diro que a lngua falada no merece reparo,
que a fala sempre boa etc. Esses ociosos no conseguem perceber que os homens
no estavam na mesa de um boteco, batendo papo. Estavam falando para o pas,
sobre um assunto tcnico, usando linguagem teoricamente culta. Quem assiste a
esse tipo de transmisso normalmente acredita nessas pessoas, tem-nas como
modelo. Adolescentes que vo fazer vestibular ouvem o cidado dizendo de que,
de que, de que e acham que isso o mximo. A Fuvest faz uma questo a
respeito, como j fez h dois ou trs anos. E muitos, ingenuamente, erram. E
alguns idiotas, ociosos, dizem que a fala sempre boa, que isso e aquilo. [pg. 160]

Esse tipo de afirmao to chocante, reveladora de um


tamanho desconhecimento, de uma ignorncia to manifesta, que

leva mesmo a pensar que Pasquale no acredita no que escreve.


Que deve haver alguma razo secreta para ele publicar coisas que
depem to abertamente contra sua prpria inteligncia! Afinal, o
fenmeno do dequesmo j tem merecido, nos ltimos quinze anos
pelo menos, a ateno de diversos pesquisadores, j foi tema de
dissertaes e de teses, de artigos publicados em livros e revistas
cientficas... (alm disso, tambm ocorre no espanhol culto falado na
Amrica Latina, no sendo, portanto, inveno de brasileiro
burro...). Ser que custava tanto assim ele procurar ler, informarse sobre o fenmeno? E quem so afinal esses lingistas idiotas e
ociosos que dizem que a lngua falada no merece reparo, que a
fala sempre boa etc.? Pasquale nunca d nome aos bois. Por isso,
apesar de sempre escrever alguns lingistas, ele nunca diz quem,
onde e quando. Assim, fica fcil deduzir que esse alguns um
mero disfarce para seu preconceito contra todos os lingistas.

4. A quem interessa calar os lingistas?


Finalmente, vamos ver um caso interessante de preconceito
contra os lingistas, no por discriminao explcita, como no caso
de Pasquale Cipro Neto, mas por absoluta desconsiderao, por
omisso.
Em seu to debatido projeto de lei (de 1999) sobre a promoo,
a proteo, a defesa e o uso da lngua portuguesa, [pg. 161] o
deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP), embora tratando de assuntos
que dizem respeito ao campo de investigao da lingstica terica e
aplicada, em nenhum momento faz referncia aos cientistas da
linguagem, s pessoas que se dedicam profissionalmente ao estudo
da lngua. Dos pouqussimos autores citados na justificativa do
projeto, nenhum lingista. Um Machado de Assis por sinal,

numa citao que o deputado, parece, no soube ler corretamente,


porque nela Machado desmente, em poucas linhas, cada uma das
idias contidas no projeto. Dois outros so jornalistas que
publicaram, na poca da redao do projeto, artigos em que se
queixavam do atual estado de crise da lngua.
E a Academia Brasileira de Letras? Seu esprito elitista,
conservador e feudal o deputado no critica: muito pelo contrrio,
Aldo Rebelo escreve que Academia Brasileira de Letras
continuar cabendo o seu tradicional papel de centro maior de
cultivo da lngua portuguesa no Brasil e que Academia
Brasileira de Letras incumbe, por tradio, o papel de guardi dos
elementos constitutivos da lngua portuguesa usada no Brasil
afirmaes que no significam rigorosamente coisa nenhuma,
fazendo a gente at se perguntar se esse projeto de lei mesmo
para ser levado a srio ou se no passa de uma pea de prosa
surrealista... A Academia Brasileira de Letras nem de longe pode
ser chamada de centro maior de cultivo da lngua portuguesa no
Brasil: afinal, por que atribuir essa qualidade a um reduzido grupo
de 40 indivduos (dos quais, para piorar, somente um nmero
nfimo composto de [pg. 162] verdadeiros escritores), quando o
portugus do Brasil falado (ou seja, de fato cultivado) por mais
de 170 milhes de pessoas? Alm disso, os elementos constitutivos
de uma lngua pertencem ao grupo social que fala essa lngua,
pertencem a seus falantes nativos, e no precisam de guardies...
alis, novamente, os nmeros voltam a gritar: podem 40 senhores e
senhoras defender a lngua contra o suposto ataque de seus 170
milhes de falantes? Somente uma ideologia ultraconservadora,
colonialista e elitista ao extremo que pode justificar a pretenso

de defender o portugus contra os seres humanos que tm ele como


sua prpria lngua materna!
O nico autor citado no projeto de Aldo Rebelo que tem alguma
coisa a ver com o estudo e o ensino da lngua , novamente,
Napoleo Mendes de Almeida. No entanto, muito divertido ver
que, no texto, Napoleo apresentado como um dos nossos maiores
lingistas. Ora, conhecendo a opinio de Napoleo sobre a lingstica, s podemos rir da piada (involuntria?) do deputado. Chamar
Napoleo de lingista um desrespeito sua memria, uma vez
que para ele a lingstica era um estorvo e uma coleo de
bizantinices.
Fechamos assim mais um crculo preconceituoso que comea
em Napoleo, com seus ataques contra a lingstica, passa por
Pasquale Cipro Neto, que elogia Napoleo e segue suas concepes
obscurantistas sobre a cincia da linguagem, e termina com Aldo
Rebelo, que novamente recorre a Napoleo para justificar seu
projeto insustentvel de uma lei impraticvel. [pg. 163]
muito curiosa a situao desse projeto de lei do deputado
Aldo Rebelo. A retumbante maioria dos lingistas tem se
manifestado

nas

mais

diversas

ocasies

contra

projeto,

denunciando seus equvocos lingsticos, polticos, histricos,


sociolgicos etc. A indignao dos lingistas profissionais se
concretizou at na forma de um livro coletivo Estrangeirismos:
guerras em torno da lngua (So Paulo, Parbola Editorial, 2001),
organizado por Carlos Alberto Faraco. Mas ningum d ouvido aos
lingistas. O projeto continua sua marcha vitoriosa pelo Congresso
Nacional, e tudo indica que vir a ser aprovado para se tornar mais
uma lei que ningum vai cumprir, at porque seu cumprimento
invivel.

o caso de perguntar: se um deputado sem formao em


medicina inventasse um projeto de lei que tivesse relao com a
prtica cirrgica e se todos os mdicos do pas se manifestassem
contra o projeto, ser que ele conseguiria ser aprovado? Por que
toda e qualquer pessoa se acha no direito de dar palpites
infundados e preconceituosos sobre as questes que dizem respeito
lngua? Por que os profissionais de outras reas conseguem se
fazer ouvir, mas os lingistas permanecem no ouvidos? Ser que
os lingistas, apesar de se dedicarem ao estudo da lngua, no
falam? Ser que no se do conta de seu papel social e poltico, ou,
mesmo conscientes desse papel, h outras foras que no nos
deixam falar? A quem interessa manter calados os estudiosos da
linguagem? Por que o discurso gramatical tradicional, j to
amplamente criticado pelos cientistas da linguagem com base em
teorias [pg. 164] e mtodos consistentes e coerentes, ainda tem
tanto vigor e obtm tanta defesa? Que ameaa ao tipo de sociedade
em que vivemos representa a democratizao do saber lingstico, a
divulgao ampla das descobertas deste campo cientfico, a
liberao da voz de tantos milhes de pessoas condenadas ao
silncio por no saber portugus ou por falar tudo errado? A
quem

interessa

defender

portugus

ortodoxo

de

uns

pouqussimos melhores contra a suposta heresia gramatical de


muitos milhes de outros?
Espero que a discusso feita neste livro ajude voc a encontrar
suas prprias respostas para perguntas to inquietantes. [pg. 165]

ANEXO
Carta de Marcos Bagno
revista Veja

Em seu nmero 1725 (novembro de 2001), a revista Veja publicou


uma extensa reportagem, anunciada na capa, com o ttulo Falar e
escrever bem, eis a questo. O texto, assinado por Joo Gabriel de
Lima, deixou a comunidade dos educadores e lingistas estarrecida
por causa da quantidade de absurdos, distores e acusaes
grosseiras que continha. Em reao a isso, Marcos Bagno escreveu e
enviou uma longa carta ao editor da revista, no para ser

publicada, mas para marcar a posio dos pesquisadores


comprometidos com o avano da cincia brasileira diante de
atitudes to assumidamente obscurantistas e retrgradas.
So Paulo, 4 de novembro de 2001.
Sr. Editor,
Em 1990, o lingista e educador britnico Michael Stubbs
escrevia que toda a rea da lngua na educao est impregnada
de supersties, mitos e esteretipos, muitos dos quais tm persistido
por sculos e, s vezes, com distores deliberadas dos fatos
lingsticos e pedaggicos por parte da mdia. triste constatar
que essas palavras, publicadas h mais de uma dcada, se [pg. 167]
aplicam com preciso impressionante ao que ainda ocorre hoje em
dia no Brasil. Afinal, de que outro modo qualificar a reportagem de
capa do nmero 1725 de VEJA seno como uma srie de distores
deliberadas dos fatos lingsticos e pedaggicos por parte da
mdia?
O texto assinado pelo Sr. Joo Gabriel de Lima demonstra o
quanto nossos meios de comunicao de massa se encontram,

perdoe-me o lugar-comum, na contramo da Histria quando o


assunto lngua. H um absoluto despreparo de jornalistas e
comunicadores para tratar do tema (um exemplo gritante disso veio
a pblico em outra edio recente de VEJA, a de nmero 1710, com a
reportagem Todo mundo fala assim).
Se falo de contramo porque passados mais de cem anos de
surgimento, crescimento e afirmao da Lingstica moderna como
cincia autnoma , a mdia continua a dar as costas
investigao cientfica da linguagem, preferindo consagrar-se
divulgao e sustentao das supersties, mitos e esteretipos que
circulam na sociedade ocidental h mais de dois mil anos. Isso
ainda mais surpreendente quando se verifica que, na abordagem de
outros campos cientficos, os meios de comunicao se mostram
muito mais cuidadosos e atenciosos para com os especialistas da
rea. Quando o assunto lngua, porm, o espao maior
invariavelmente ocupado por alguns oportunistas que, apoderandose inteligentemente dessas supersties, mitos e esteretipos,
conseguem transformar esse folclore lingstico em bens de
consumo que lhes rendem muito lucro financeiro, alm [pg. 168] de
fama e destaque na mdia. Basta comparar o espao dedicado, no
ltimo nmero de VEJA, ao Prof. Luiz Antnio Marcuschi
(reconhecido hoje no Brasil como um dos nomes mais importantes
da cincia lingstica entre ns) e aos atuais pregadores da tradio
gramatical que infestam o cotidiano dos brasileiros com suas
quinquilharias multimiditicas sobre o que certo e errado na
lngua.
Seria espantoso ver uma matria de VEJA em que aparecessem
zologos falando mal da Biologia, ou engenheiros criticando a
Fsica, ou cirurgies maldizendo da Medicina. No entanto, ningum
se espanta (e muitos at aplaudem) quando o Sr. Joo Gabriel de
Lima, fazendo eco aos detratores da Lingstica (como o Sr.
Pasquale Cipro Neto), fala da existncia de certa corrente
relativista e escreve absurdos como trata-se de um raciocnio torto,

baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que


popular inclusive a ignorncia, como se ela fosse atributo, e no
problema, do povo'. O que esses acadmicos preconizam que os
ignorantes continuem a s-lo. Seria muito fcil retrucar que
estamos aqui diante de um direitismo de meia-pataca que acredita
na existncia de uma ignorncia popular, mas, como cientista,
prefiro recorrer a outro tipo de argumento, baseado na reflexo
terica serena e na experincia conjunta de muitas pessoas que h
anos se dedicam ao estudo e ao ensino da lngua portuguesa no
Brasil.
Segundo a reportagem, as crticas que o Sr. Pasquale Cipro
Neto recebe dessa corrente relativista deixam-no [pg. 169]
irritado. Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale o
fato de que, apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do
que ele diz ou escreve levado a srio nos centros de pesquisa
cientfica sobre a linguagem, sediados nas mais importantes
universidades do Brasil centros de pesquisa lingstica, diga-se
de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns
dos melhores do mundo. Muito pelo contrrio, se o nome do Sr.
Pasquale mencionado nas nossas universidades, sempre como
exemplo

de

uma

atitude

anticientfica

dogmtica

at

obscurantista no que diz respeito lngua e seu ensino (em vrios


de seus artigos em jornais e revistas ele j chamou os lingistas de
idiotas,ociosos, defensores do vale-tudo e deslumbrados).
Se o Sr. Pasquale se irrita com os cientistas da linguagem,
porque sabe que no tem como responder s crticas que recebe por
parte dos pesquisadores, dos tericos e dos educadores empenhados
num conhecimento maior e melhor da realidade lingstica do nosso
pas. Digo isso com base na experincia de j ter participado de trs
debates junto com o Sr. Pasquale e ter conhecido sua estratgia de
nunca responder com argumentos consistentes s crticas a ele
dirigidas, preferindo sempre retrucar com arrogncia, prepotncia,
grosserias

ataques

pessoais

(chamando

os

lingistas

de

ortodoxos seja isso l o que for e de bichos-grilos) ou


fazendo-se de vtima de alguma perseguio (num desses encontros
ele declarou sentir-se como um boi de piranha). [pg. 170]
A razo para essa falta de argumentos consistentes muito
simples: o Sr. Pasquale no tem formao cientfica para tratar dos
assuntos de que trata. Suas opinies se baseiam exclusivamente na
arcaica

doutrina

gramatical

normativo-prescritiva,

cuja

inconsistncia terica e cujos problemas epistemolgicos graves vm


sendo demonstrados e criticados pela Lingstica moderna desde
pelo menos o final do sculo XIX. As concepes do Sr. Pasquale de
certo e de errado esto em franca oposio, no s com as teorias
cientficas mais atuais, mas at mesmo com a postura investigativa
dos gramticos profissionais de slida formao filolgica (coisa que
ele definitivamente no ), para no mencionar as diretrizes
pedaggicas das instncias superiores da Educao nacional. O
documento do Ministrio da Educao chamado Parmetros
Curriculares Nacionais, por exemplo, bem explcito em seu
volume dedicado ao ensino da lngua portuguesa:
A imagem de uma lngua nica, mais prxima da modalidade escrita da
linguagem, subjacente s prescries normativas da gramtica escolar, dos
manuais e mesmo dos programas de difuso da mdia sobre 'o que se deve e o que
no se deve falar e escrever', no se sustenta na anlise emprica dos usos da
lngua.

E este mesmo documento enftico ao afirmar que:


h muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que atribudo aos
diferentes modos de falar: muito comum se considerarem as variedades
lingsticas de menor prestgio [pg. 171] como inferiores ou erradas. O problema
do preconceito disseminado na sociedade em relao s falas dialetais deve ser
enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de
educao para o respeito diferena. Para isso, e tambm para poder ensinar
Lngua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma

nica forma 'certa' de falar a que se parece com a escrita e o de que a escrita
o espelho da fala e, sendo assim, seria preciso 'consertar' a fala do aluno para
evitar que ele escreva errado. Essas duas crenas produziram uma prtica de
mutilao cultural que, alm de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando
sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de
que a escrita de uma lngua no corresponde inteiramente a nenhum de seus
dialetos, por mais prestgio que um deles tenha em um dado momento histrico.

provvel, no entanto, que o Sr. Pasquale Cipro Neto e o Sr.


Joo Gabriel de Lima acreditem que os Parmetros Curriculares
Nacionais sejam obra de membros daquela corrente relativista
que conseguiram se infiltrar no Ministrio da Educao e se
apoderar da redao do documento oficial. Vamos, ento, deixar de
lado as propostas oficiais de ensino e lanar um olhar sobre a
prpria prtica normativo-prescritiva de pessoas como o Sr.
Pasquale assim ficar mais fcil descobrir por que ele no
encontra argumentos para reagir s crticas bem-fundadas dos
lingistas e educadores srios e por que s consegue fazer sucesso
entre os leigos e os que se recusam (certamente por motivaes
ideolgicas) a aceitar uma concepo de lngua mais democrtica.
[pg. 172]
Consultando a gramtica que Pasquale Cipro Neto assina em
parceria com Ulisses Infante (Gramtica da Lngua Portuguesa,
Editora Scipione, So Paulo, 1998), encontra-se, s pp. 521-522, a
seguinte explicao para o uso supostamente correto do verbo
custar:
Custar, no sentido de ser custoso, ser penoso, ser difcil tem como sujeito
uma orao subordinada substantiva reduzida. Observe:
Ainda me custa aceitar sua ausncia.
Custou-nos encontrar sua casa.
Custou-lhe entender a regncia do verbo custar.

No Brasil, na linguagem cotidiana, so comuns construes como Zico custou a


chutar ou Custei para entender o problema [...]
Na lngua culta, essas construes em que custar apresenta um sujeito indicativo
de pessoa so rejeitadas. Em seu lugar, devem-se utilizar construes em que surja
objeto indireto de pessoa: Custou a Zico chutar (= Custou-lhe chutar).

Quero chamar a ateno, aqui, para a seguinte afirmao dos


autores: Na lngua culta, essas construes [...] so rejeitadas.
Aqui est um exemplo claro e ntido de uma concepo abstrata da
lngua, tratada como uma espcie de entidade viva, de sujeito
animado, capaz de rejeitar alguma coisa. Ora, que lngua culta
essa que supostamente rejeita essas construes? Ser a lngua dos
nossos grandes escritores, que sempre serviu de material para o
trabalho dos gramticos normativistas? Basta investigar para
descobrir que no , porque os exemplos de [pg. 173] uso do verbo
custar com sujeito so mais do que abundantes na nossa melhor
literatura:
(1) Seixas custou a conter-se (Jos de Alencar)
(2) ... as moas custavam a se separar (Clarice Lispector)
(3) Renato custou a acordar (Carlos Drummond de Andrade)
(4) Felicidade, custas a vir e, quando vens, no te demoras
(Ceclia Meireles)
Ser que Alencar, Clarice Lispector, Drummond e Ceclia
Meireles no so bons exemplos de usurios da lngua culta? Se
no na literatura, quem sabe, ento, se recorrermos imprensa
contempornea? Ser que l que mora a famosa lngua culta que
rejeita essas construes? Ora, consultando o jornal onde o prprio
Pasquale Cipro Neto escreve (Folha de S. Paulo) e onde presta
servios de consultor de portugus (seja isso l o que for),
encontramos:

(5) Quem foi ao show de Maria Bethnia, anteontem noite,


depois de assistir o sbrio concerto de Joo Gilberto, custou
a crer que estivesse na mesma cidade (22/6/1998, pp. 5-10).
(6) O tcnico colombiano, Hernn Daro Gmez, [...] custou a
admitir a superioridade rival (16/6/ 1998, pp. 4-14).
(7) O nome Kubitschek era complicado de pronunciar, custou a
ser assimilado pela fontica eleitoral (21/11/1997, pp. 4-3).
[pg. 174]
Se lembrarmos que Jos de Alencar morreu em 1877, fica
muitssimo claro que essa construo est viva e presente na nossa
lngua h muito mais de um sculo! Os autores da gramtica esto
proferindo uma inverdade ao dizer que essa construo tpica do
Brasil quotidiano. Os Srs. Pasquale e Ulisses, em vez de se curvar
realidade concreta dos fatos, tentam nos convencer de que a opo
que eles preferem, s porque a tradicional, que deve ser
considerada a melhor. uma atitude essencialmente dogmtica,
que se recusa a empreender a pesquisa emprica mnima necessria
para afirmaes sobre o que existe e o que no existe na lngua.
Alm disso, essa atitude ainda mais conservadora do que a
posio assumida por gramticos de geraes anteriores deles,
como Celso Pedro Luft e Domingos Paschoal Cegalla, que
reconhecem a vitria da construo eu custo a crer que...
Esse apenas um pequeno exemplo de como fcil, para um
pesquisador munido de instrumental terico consistente e de
metodologia cientfica adequada, desautorizar uma a uma, e de
modo convincente, as afirmaes presentes no trabalho do Sr.
Pasquale Cipro Neto e de outros atuais defensores da doutrina
gramatical tradicional mais normativa e mais prescritiva possvel.
Por causa de tudo isso que a estria do Sr. Pasquale no programa
Fantstico da Rede Globo representa, para a grande maioria dos
cientistas da linguagem e dos educadores conscientes, mais um
exemplo de como o nosso trabalho ainda est no comeo, apesar de

tudo o que j temos dito e feito. O quadro do Sr. Pasquale no


Fantstico faz regredir [pg. 175] em pelo menos 25 anos os grandes
avanos j obtidos pela Lingstica na renovao do ensino de
lngua na escola brasileira. No consigo, portanto, deixar de repetir
o chavo: ele se encontra na contramo da Histria.
Como j enfatizei acima, pessoas como o Sr. Pasquale s
conseguem fazer sucesso entre os leigos, porque dizem exatamente o
que as pessoas desejam ouvir: os mitos, as supersties e as crenas
infundadas que, h mais de dois mil anos, guiam o senso comum
ocidental no que diz respeito lngua. Refiro-me ao senso comum
ocidental porque essa situao de embate entre uma cincia
lingstica moderna e uma doutrina gramatical arcaica tambm se
verifica em outros pases basta ler os livros Language Myths,
publicado na Inglaterra sob organizao de L. Bauer e P. Trudgill, e
o Catalogue des ides reues sur le langage, publicado na Frana por
Marina Yaguello. por isso que escrevi, acima, que nossa luta
ainda est no comeo. uma pena que no possamos contar com a
ajuda dos meios de comunicao para dissipar todos esses mitos e
preconceitos, que impedem a formao, no Brasil em particular, de
uma auto-estima lingstica, uma vez que tudo o que os brasileiros
ouvem e lem so os mesmos chaves, repetidos h sculos, de que
brasileiro no sabe portugus e que a lngua que falamos
portugus estropiado. (O pesquisador canadense Christophe
Hopper localizou lamrias e queixas sobre a runa e a
decadncia do francs em textos publicados em 1933, 1905, 1730 e
1689, o que prova a [pg. 176] antiguidade desse discurso alarmista
e preconceituoso sobre o fenmeno da mudana das lnguas ao longo
do tempo!)
Outro fato lamentvel, na reportagem de VEJA, que seu autor
no tenha prestado o grande favor sociedade de identificar quem
so os membros dessa certa corrente relativista, para que todos,
pblico leitor em geral e lingistas profissionais em particular,
pudssemos nos precaver contra o suposto raciocnio torto de um

esquerdismo de meia-pataca dos que acreditam que ensinar a


norma-padro no seria til para as classes sociais desfavorecidas.
Minha curiosidade ficou especialmente aguada porque, como
pesquisador dedicado h muitos anos ao estudo das relaes entre
lngua, ensino de lngua e fenmenos sociais, at hoje no encontrei
uma nica obra assinada por lingista de formao ou por
educador profissional que negasse a importncia do ensino da
norma-padro na escola brasileira, que pregasse a idia torpe de
que no se deve ensinar as formas prestigiosas da lngua, ou que
preconizam que os ignorantes continuem a s-lo, para citar as
palavras infelizes da reportagem de VEJA.
Entre os membros da comunidade acadmico-cientfica que no
se intimidam diante da presso esmagadora das supersties,
mitos e esteretipos sobre a lngua podemos citar a Profa. Magda
Soares (reconhecida como uma das mais importantes educadoras
brasileiras de todos os tempos) e o Prof. Srio Possenti (que nunca
teve papas na lngua para denunciar e demolir cientificamente os
absurdos proferidos por gente como Pasquale Cipro [pg. 177] Neto).
Ora, j em 1986, Magda Soares, em seu livro (um clssico da
educao brasileira) Linguagem e Escola (Editora tica), escrevia,
sem hesitao (p. 78):
Um ensino de lngua materna comprometido com a luta contra as desigualdades
sociais e econmicas reconhece, no quadro dessas relaes entre a escola e a
sociedade, o direito que tm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de
prestgio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a
domin-lo, no para que se adaptem s exigncias de uma sociedade que divide e
discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participao poltica e a luta contra as desigualdades sociais.

Tambm em seu muito divulgado livro Por que (no) ensinar


gramtica na escola (Ed. Mercado de Letras, 1996), Srio Possenti
faz questo de enfatizar (pp. 17-18):

O PAPEL DA ESCOLA ENSINAR LNGUA PADRO


[...] adoto sem qualquer dvida o princpio (quase evidente) de que o objetivo da
escola ensinar o portugus padro, ou, talvez mais exatamente, o de criar
condies para que ele seja aprendido. Qualquer outra hiptese um equvoco
poltico e ideolgico.

E eu mesmo, que no tenho hesitado em combater abertamente


a manuteno das concepes arcaicas e preconceituosas de lngua,
escrevi em meu mais recente livro publicado (Portugus ou
Brasileiro? Um convite pesquisa, Parbola Editorial, 2001):
[...] como responder a pergunta (invariavelmente presente na fala dos professores
de lngua): qual o objeto de ensino nas [pg. 178] aulas de portugus? O que
devemos ensinar a nossos alunos em sala de aula?
Uma resposta concisa e rpida seria: devemos ensinar a norma-padro. J que s
se pode ensinar algo que o aprendiz ainda no conhece, cabe escola ensinar a
norma-padro, que no lngua materna de ningum, que nem sequer lngua,
nem dialeto, nem variedade, como enfatizei acima. Ensinar o padro se justificaria
pelo fato dele ter valores que no podem ser negados em sua estreita associao
com a escrita, ele o repositrio dos conhecimentos acumulados ao longo da
histria. Esses conhecimentos, assim armazenados, constituiriam a cultura mais
valorizada e prestigiada, de que todos os falantes devem se apoderar para se
integrar de pleno direito na produo/conduo/transformao da sociedade de que
fazem parte.

Tenho, portanto, a conscincia muito tranqila (como decerto


tambm a tm Magda Soares, Srio Possenti e, de fato, a maioria
dos lingistas e educadores brasileiros comprometidos com a
democratizao de nossa sociedade) de no fazer parte daquela
corrente relativista e de no poder ser acusado de ter um
raciocnio torto. Por isso, volto a lamentar que o Sr. Joo Gabriel
de Lima no tenha dado nome aos bois, para que, juntos,
pudssemos combater esse suposto esquerdismo de meia-pataca.
No nomear seus adversrios no plano intelectual, no entanto,

prtica corrente de pessoas como Pasquale Cipro Neto que, embora


alegando referir-se a alguns lingistas, nunca se d ao trabalho de
dizer quem so os idiotas, ociosos e deslumbrados a que se
refere. [pg. 179]
A grande diferena entre os lingistas e educadores que
defendem o ensino da norma-padro e os apregoa-dores da doutrina
gramatical arcaica est no fato de que j se sabe hoje em dia que,
para aprender as formas mais padronizadas e prestigiosas da
lngua, no necessrio conhecer a nomenclatura gramatical
tradicional, as definies tradicionais, nem praticar a velha e
mecnica anlise lexical e muito menos a torturante anlise
sinttica. Em seu depoimento a VEJA, O Sr. Pasquale Cipro Neto
lamenta

que

ningum

mais

saiba

diferenciar

sujeito

de

predicado, nem mesmo os professores. Ora, todo um longo


trabalho de investigao terica e de pesquisa em sala de aula no
Brasil e no resto do mundo , trabalho que se faz h pelo menos
trinta anos, j deixou muito claro que no decorando as pginas
da gramtica normativa que uma pessoa ser capaz de falar, ler e
escrever adequadamente s diversas situaes. O j citado M.
Stubbs escrevia, em 1987, que
Muita gente lamenta o fim do ensino da gramtica formal (anlise sinttica e
coisas assim), alegando que ele ajudava as crianas a escrever melhor, com mais
preciso e assim por diante. [...] duvidoso que aquele ensino jamais tenha
ajudado muita gente a escrever melhor, e ntido que ele afugentou um grande
nmero de pessoas. A relao entre anlise e compreenso, e entre compreenso
consciente e produo de linguagem efetiva, difcil de demonstrar.

E o pedagogo canadense Gilles Gagn, em 1983, j dizia:


O uso da lngua procede da inteno para a conveno [...] ao passo que a escola
procede infelizmente ao contrrio, isto [pg. 180] , das convenes lingsticas
para as intenes de comunicao; intenes, alm disso, quase sempre artificiais
e impostas ou sugeridas pelo mestre.

E aquele que considerado hoje, inclusive internacionalmente,


como o nome mais importante da pesquisa cientfica sobre o
portugus brasileiro contemporneo o Prof. Ataliba T. de
Castilho, da USP, atual presidente da Associao de Lingstica e
Filologia da Amrica Latina e coordenador do grande Projeto da
Gramtica do Portugus Falado (projeto apresentado de maneira
distorcida e preconceituosa no nmero 1710 de VEJA) escreve
com toda clareza em seu livro A lngua falada e o ensino de
portugus (Ed. Contexto, 1998):
[...] os recortes lingsticos devem ilustrar as variedades socioculturais da Lngua
Portuguesa, sem discriminaes contra a fala verncula do aluno, isto , de sua
fala familiar. A escola o primeiro contato do cidado com o Estado, e seria bom
que ela no se assemelhasse a um bicho estranho, a um lugar onde se cuida de
coisas fora da realidade cotidiana. Com o tempo o aluno entender que para cada
situao se requer uma variedade lingstica, e ser assim iniciado no padro
culto, caso j no o tenha trazido de casa.

Desse modo, prossegue o autor,


a gramtica deixar de ser vista pelos alunos como a disciplina do certo e do
errado, reassumindo sua verdadeira dimenso, que a de esquadrinhar atravs dos
materiais lingsticos o funcionamento da mente humana. [pg. 181]

Afinal, o que aconteceu, ao longo dos sculos, segundo Castilho,


foi que
a gramtica, que no era uma disciplina autnoma, assumiu na escola uma vida
prpria, desgarrada de suas origens, e concentrada apenas na sentena, na palavra
e no som, obscurecendo-se sua argumentao e empobrecendo-se seu alcance.

Se

existe,

porm,

uma

grande

resistncia

contra

redimensionamento do lugar do ensino da gramtica na escola


porque todos sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento
mecnico da doutrina gramatical se transformou num instrumento

de discriminao e de excluso social. Saber portugus, na


verdade, sempre significou saber gramtica, isto , ser capaz de
identificar por meio de uma terminologia falha e incoerente o
sujeito e o predicado de uma frase, pouco importando o que essa
frase queria dizer, os efeitos de sentido que podia provocar etc.
Transformada num saber esotrico, reservado a uns poucos
iluminados, a gramtica passou a ser reverenciada como algo
misterioso e inacessvel da surgiu a necessidade de mestres e
guias, capazes de levar o ignorante a atravessar o abismo que
separa os que sabem dos que no sabem portugus...
Em concluso, Sr. Editor, gostaria de lhe pedir que, uma vez
que to amplo espao foi concedido aos defensores da idia medieval
de que os brasileiros no sabem falar bem, caberia agora a VEJA
conceder igual espao aos verdadeiros especialistas, s pessoas que
dedicam toda sua energia, toda sua inteligncia, toda sua vida,
enfim, ao [pg. 182] estudo dos fenmenos da linguagem humana e
proposio de novos mtodos de ensino, capazes de dar voz aos que,
por fora de tantas estruturas sociais injustas, sempre foram
mantidos no silncio. Talvez assim VEJA possa se livrar do risco de
ser acusada de promover distores deliberadas dos fatos
lingsticos e pedaggicos.
Atenciosamente,
MARCOS BAGNO
[pg. 183]

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