Nas Profundezas de Deus - Calvin Miller
Nas Profundezas de Deus - Calvin Miller
Nas Profundezas de Deus - Calvin Miller
Acredito que sei muito pouco a respeito de buscar as riquezas que se encontram na
profundidade da devoção! Entretanto, muitos têm-me orientado nessa busca. Alguns são
escritores e pensadores, outros, mestres leigos que estavam na mesma busca. Muitos foram
alunos meus. Vieram para o seminário a fim de preparar-se para o ministério e ser ensinados por
professores como eu e, de repente, transformaram-se em mestres que me orientavam nos
momentos silenciosos de oração e no ardor da vida de adoração. Vários colegas — professores,
pastores e ministros leigos — uniram-se a mim no anseio de servir à vontade de Deus e
viajaram pelas mesmas disciplinas espirituais em busca do Senhor.
O principal entre aqueles a quem tanto devo é Deron Spoo. Muitas vezes, me perguntei por que
Deus dá um anseio especial por sua presença a alguns, enquanto parece que outros não têm esse
sentimento. Deron é um amigo muito alegre e sedento das profundezas de Deus. Contagia, com
essa alegria, a todos que conhece. Aguardo com ansiedade o dia em que ele escreverá sobre seu
relacionamento com Cristo. Enquanto isso, seu amor inabalável por Jesus nos serve de
inspiração.
Seria falta minha deixar de homenagear a Steve Laube, meu redator e amigo, que tem um
profundo e bem embasado amor pelo Senhor. Confio em Laube para esclarecimentos sobre esse
assunto e dependo completamente dele para capacitar-me a saber quando o que escrevo é
inteligível ou não. Tenho o mau hábito de achar que outras pessoas devem entender conceitos
com os quais não estão familiarizadas. Ele sempre me orienta a voltar para uma base firme e
explicar melhor o que quero dizer.
Meu agente, Greg Johnson, me telefona pelo menos uma vez por semana para ter certeza de que
estou trabalhando e, quando lhe garanto que sim, ele promete que não vai me perturbar mais, até
a semana seguinte. Greg tem sido um amigo genuíno, que deseja muito que as pessoas — por
motivos que ele entende mais do que eu — entrem em contato com meu pensamento. Sem ele,
eu nunca conseguiria a motivação necessária para dar importância às minhas ideias.
David Shepherd também me mantém pensando e trabalhando. A mente dele pára raras vezes e
sempre desperta a minha para perceber as maravilhas das Escrituras.
Finalmente, tenho um círculo de amigos e colegas professores — Bill Tolar, Wallace Williams,
Fisher Humphries, Bob Smith, Jerry Batson, Denise George — que me incentivam
constantemente. As realizações de um indivíduo são diretamente proporcionais à qualidade de
seus amigos. Somos todos produto daqueles cuja vida nos instrui de modo formal ou informal.
Todos somos devedores àqueles cuja amizade nos proporciona segurança e apreço.
SUMÁRIO
A VIDA DISCIPLINADA
1. Rompendo a escravidão dos desejos 21
2. Rompendo a escravidão do materialismo 30
3. Rompendo a tirania da urgência 37
A VIDA ATENTA
4. Estética: desfrutar a beleza de Deus 45
5. Cristo: o desejo do coração 57
6. Expressão: o lugar do louvor 65
7. Centralização: evitar o fascínio estéril por Deus 72
8. Misticismo: manter contato com o Espírito Santo 83
A VIDA SABIA
9. Chegar às profundezas descobrindo nosso chamado 93
10. A disciplina que produz o caráter piedoso 103
11. Chegar à autocompreensão 113
A VIDA DE CONFISSÃO
12. A confissão e a glória de nossa necessidade 122
13. A confissão e o discipulado livre de culpa 130
14. Princípios de confissão para o crescimento pessoal 140
15. Habitando na eternidade 147
______________________________________________________________________
1
Cit. Anne B. JOHNSON, Catherine of Siena, Huntingdon:
Our Sunday Visitor Publishing House, 1987, p. 167.
2
Autor desconhecido, The way of a pilgrim,
trad. Olga Savin, Boston: Shambhala, 1991, p. 141.
3
Charles Haddon SPURGEON, em Morning and evening, Nashville:
Thomas Nelson, 1994, da leitura do dia 16 de novembro.
Profundeza" não é um local que
Visitamos em nossa busca de Deus;
é o que nos acontece quando o encontramos.
_______________________________________________________________
4
Cit. em Changed by the Master's touch, Springdale: Whitaker House, 1985, p. 54-5.
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
SEDE DE ESPIRITUALIDADE
Conheci uma das minhas melhores amigas no dia em que ela descobriu que lhe restavam
menos de seis meses de vida. Só quando os limites da vida são demarcados claramente é que a
amizade comemora com entendimento todas as suas dádivas. Nossa amizade não conheceu um
só dia de folga nem de frivolidade. Não houve espaço para nenhum jogo de baralho à meia-
noite, nenhuma excursão de esqui ou passeio marítimo. Ninguém deveria viver sem uma
amizade como essa.
Seu nome era Anne e, embora — como ela confessou — seus últimos meses estivessem longe
de ser sombrios, passava os dias "se-lecionando". Tendo em vista a curta duração de vida que
sobrara para Anne; tivemos tempo somente para contemplar e desfrutar os aspectos
absolutamente essenciais do nosso relacionamento. Os ponteiros implacáveis do relógio
avançavam com tanta velocidade que as coisas insignificantes e passageiras não nos
fascinavam.
Anne era bonita. Passara boa parte da vida realçando sua beleza com cosméticos. Sua pele era
branca e fresca, mas os cuidados com a pele perdem a importância quando os aspectos internos
e viscerais do ser humano vão mal. No fundo, onde os cremes e óleos não conseguem penetrar,
o corpo às vezes precisa lidar com juízos severos. Então, as questões profundas da vida exercem
o domínio final sobre todas as coisas superficiais.
Quase todos nós vestimos a fé cristã com um discipulado que não nos assenta bem no corpo,
como um terno barato, que nos deixa desconfortáveis durante a maior parte da vida. Entre os
amigos da igreja, fazemos grande esforço para manter a fama de piedosos. Gostaríamos de
parecer semelhantes a Cristo, mas sem a disciplina necessária para ser realmente como ele.
Lendo dezenas de manuais de auto-ajuda do tipo "preencha as lacunas", conseguimos uma
distinção espiritual da boca para fora, sem tê-la merecido de fato. Continuamos vivendo na
superfície, e a vida mais profunda é só discurso.
Preguei no funeral de Anne e senti-me completamente dominado pela necessidade de contar
mais do que era possível a respeito de seu caminhar com Cristo. No âmago de tudo em que se
transformara, sua vida de amor a Cristo desafiava toda e qualquer forma de comunicação. Como
ocorre com tudo que é profundo.
Na primeira carta de Paulo aos coríntios, no entanto, nossa falsa espiritualidade fica
desmascarada para todos observarem. "Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente
nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam" (ICo 2.9b), diz o apóstolo.
Paulo está falando da eternidade e de tudo que se relaciona com o futuro. Nesse trecho, ele dá
uma visão rápida daquilo que possuiremos quando abrirmos os olhos para nossa primeira visão
do céu. Também há um aspecto imediatista nesse versículo. Não é nenhuma violação do texto
interpretá-lo assim: "Olho nenhum pode ver, ouvido nenhum pode ouvir, mente nenhuma pode
imaginar o que Deus preparou para aqueles que o amam". A espiritualidade é um meio de ter o
céu — pelo menos parte dele — agora1. O caminho a trilhar para a espiritualidade é por demais
real para ser medido somente pelos sentidos. Os olhos, os ouvidos e os dedos têm suas
limitações. São instrumentos frágeis e limitados demais para medir a imensidão da existência
que Deus pretende para nós. É inútil procurar aproximar-se de Deus apenas com os sentidos,
pois isso inevitavelmente entra em colisão com a plenitude divina. É como tentar medir o
volume das águas do Oceano Pacífico com um dedal ou uma xícara.
Que sensatez gloriosa a da descrição que Paulo faz de nossa espiritualidade] Aqueles que a
desfrutam vêem o invisível, ouvem o inaudível e imaginam o inimaginável. A verdadeira
espiritualidade não é extra-sensorial; é ultra-sensorial. Quando o espaço do nosso coração
finalmente se esvazia do próprio eu, nasce um novo tipo de ser, um ser que se emociona diante
da presença de Deus. Ali, no mais íntimo do nosso ser, descobrimos que nosso coração não é
uma câmara, mas a porta de entrada. Basta subir ao portal do coração, pôr a mão no trinco e
entrar para o nosso encontro secreto com Deus. Depois de fechar a porta do lado da realidade,
podemos abri-la do lado divino.
Andar de braços dados com a profundeza de Deus é ficar constantemente atônito com sua
vastidão. Lembro-me de certa ocasião em que sobrevoei o estado de Montana com um
negociante japonês de Tóquio.
— Mora alguém em todo esse espaço vazio? — perguntou.
— Não muita gente — respondi. E o vôo continuou.
— Ninguém? — perguntou.
Acenei com a cabeça. E voamos mais algum tempo.
— Tão enorme, tão belo, tão vasto! — ele exclamou.
Eu sabia o que ele estava querendo dizer. Essas palavras eram-me bem conhecidas: tão enorme,
tão belo, tão vasto. É o que sinto cada vez que me encontro com Deus. Deito-me para dormir,
mas não oro: "Senhor, guarda a minha alma". Em vez disso, busco uma dimensão maior num
ritual de adoração quase todas as noites. Suas bênçãos aglomeram-se em torno de mim numa
leveza maravilhosa da existência. É uma insónia estranha, patrocinada pela mais pura alegria.
Minha mente começa, primeiro, a chapinhar num riacho minúsculo da graça de Deus. Pouco a
pouco, o riacho vai crescendo e ... Glórias ao Altíssimo! Estou num oceano amplo demais para
medir, profundo demais para sondar. Fico delirante e à deriva no mar da existência eterna de
Deus. Porém, é sempre da frágil fortaleza da praia do meu coração que dou o passo decisivo
para dentro desse oceano. Fico perplexo com o fato de, do centro da minha alma de águas rasas,
ter esse acesso imediato ao vasto oceano da presença de Deus.
O coração é uma porta simples; porém, sua estrutura etérea se abre para o majestoso panorama
da realidade. Aparentemente seria o contrário. As nuvens abobadadas acima das escarpadas
montanhas não seriam lugar melhor para procurar a Deus do que os portais terrenos de nossa
alma? Não. A vastidão natural inspira, mas raramente resulta em comunhão íntima com Deus. O
arrebatamento que sentimos ao deparar com as cataratas do Iguaçu tem maior probabilidade de
provocar um brado que uma conversa. As galáxias que pairam nas alturas tendem mais a desviar
nossos olhos do céu e perguntar: "Pai, estás aí?". As melhores respostas não vêm de lugar algum
além de nós. Por quê? Porque Deus se revela melhor de nosso íntimo.
Deus se faz visível aos que o procuram no lugar certo. Portanto, nenhum olho — literalmente
nenhum olho — pode vê-lo! Nenhum ouvido pode ouvi-lo! Mente nenhuma pode imaginá-lo! É
somente nas dimensões mais profundas do nosso íntimo que ele oculta sua vastidão.
O mundo ao nosso redor é o mundo dos relacionamentos "externos". Nele, cultivamos
amizades, conquistamos sucesso — progredimos. Nesse mundo de sobrecargas e preocupações
temos compromissos, sofremos decepções e obrigamos nossa alma, impulsionada pelo ego, a
tentar conquistar o poder. Na superfície de nossa vida, somos dominados pelas coisas frenéticas
e indigestas. Mas em nosso coração a questão é bem diferente.
Em 1 Coríntios 2.10, há uma palavrinha que nos propõe um desafio: "Mas Deus o revelou a nós
por meio do Espírito. O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as coisas mais profundas de
Deus" (grifo do autor).
O apóstolo emprega aqui a palavra bathos no sentido de "profundo". Esse é o conceito que
desejo manter em posição central neste livro.
Profundeza é a habitação de Deus. Profunda é a natureza do oceano. Pense nessa metáfora um
momento e saboreie sua lição adiante.
A profundeza, pois, é onde a supérflua e barulhenta superfície do oceano torna-se quieta e
serena. Nenhum som rompe o silêncio inspirador de temor reverente que existe no coração do
oceano. A maioria dos cristãos, no entanto, passa a vida sendo açoitada com violência pelas
circunstâncias da superfície de sua existência. O estilo de vida vazio marca a natureza
superficial de sua vida. Entretanto, os que sondam as profundezas de Deus descobrem a paz
verdadeira.
A profundeza é a dádiva da disciplina.
Bathos é uma palavra que entendi realmente quando estive no recife da Grande Barreira. Da
mesma forma que todos os outros visitantes do lugar, fiquei de início assombrado pela sensação
estranha de ficar em pé — com a água chegando apenas aos tornozelos — no meio do oceano,
entre 110 e 140 quilômetros da praia. Era uma sensação muito estranha, talvez como a que
Pedro deve ter tido quando andou sobre o mar da Galiléia.
Entretanto, passada minha admiração de ficar com a água pelos tornozelos, lembrei-me do
motivo por que fizera a viagem. Estava com minha mulher e meu filho. Ele viera para fazer
mergulho com garrafa de oxigênio enquanto eu e minha mulher íamos mergulhar com
esnórquel. O esnórquel é mais passatempo do que esporte. Isso porque, enquanto meu filho
mergulhava nas profundas águas cristalinas, afundando-se nas maravilhas das profundezas
misteriosas do oceano, minha mulher e eu, com as máscaras, apenas flutuávamos na superfície,
com o rosto dentro da água.
De certo modo, o que nós e ele víamos tinha a mesma aparência. Mas minha mulher e eu
ficamos com queimaduras nas costas durante nosso estudo superficial do recife, enquanto nosso
filho sondava suas maravilhas.
Houve outras diferenças naquele dia. Nosso filho passara muitos anos aprendendo a mergulhar
nas profundezas, pois descer a lugares profundos requer muitos anos de prática. Não se pode
atingir as profundezas instantaneamente no primeiro mergulho. A pressão nos sínus cranianos e
faciais precisa ser igualada aos poucos, pois chegar a grandes profundidades é perigoso, pode
até ser fatal.
O que me deixa mais atônito é como relatamos essa experiência depois que voltamos do recife
da Grande Barreira. Se me perguntarem se fui até lá, responderei rapidamente que sim. Meu
filho também. No entanto, a verdade é que o conteúdo da nossa experiência foi completamente
diferente. Nós três vamos passar o resto da vida falando com muito entusiasmo daquela
experiência. Mas somente nosso filho conheceu o recife de fato, só ele compreendeu a questão
da profundeza.
Abraham Maslow criou o conceito da pirâmide das prioridades. Segundo ele, apenas poucas
pessoas conseguem realmente se realizar. Poucas se conhecem e vivem a vida de modo pleno.
Poucas vivem uma vida ajustada no pico da pirâmide que ele desenvolveu. Na verdade, segundo
Maslow, o mundo inteiro se compõe de pessoas que não estão no vértice falando a outras que
também não estão sobre experiências do vértice da pirâmide. De alguma maneira, pa-rece-me
que boa parte do cristianismo é uma conversa entre praticantes do esnórquel que falam sobre
experiências de mergulho profundo. Se meras conversas ou grupos de estudo fossem o caminho
para a experiência em profundidade, a igreja mergulharia realmente fundo. Mas são aqueles que
lêem e oram, não os que filosofam e tagarelam, que alcançam vida de poder verdadeiro.
A questão é ir ao fundo. A profundeza revela a realidade de Deus. Mesmo assim, os praticantes
do esnórquel podem empregar a linguagem dos mergulhadores, pois existe certa proximidade
entre as metáforas. Mas elas não são idênticas. É estranho saber que esse estado de realidade
fica tão próximo de nós. É totalmente acessível, porém, bem poucos chegam a conhecê-lo ou a
atravessar seus portões com alguma regularidade. A oração é a entrada que permite vislumbrar
as profundezas.
Por que evitamos os portais de acesso a Deus? O excesso de tarefas é a melhor resposta. Mas às
vezes duvidamos que a oração realmente surte efeito. Às vezes, nosso coração está zangado
com Deus, e nossa resistência a orar é nosso modo de dizer: "Ele vai-se ver comigo. Vou deixar
de orar". Seríamos muito mais sábios se deixássemos de lado nossas crises de mau humor e nos
dirigíssemos diretamen-te às profundezas. 5
O tesouro reside nas profundezas da verdadeira espiritualidade. Não há proveito em nos gabar
da posição que julgamos ocupar em Cristo. A riqueza está em sentirmos sede de ser semelhantes
a ele.
O paradoxo mais estranho talvez seja que as conferências "práticas" sobre espiritualidade
correm o risco de falar mais que a experiência.
Os verdadeiros mergulhadores espirituais são tão apaixonados pelas profundezas que não
perdem muito tempo procurando transformar a
Semeadores da Palavra
____________________________________________
¹A passion for God, Wheaton: Crossway Books, 1994, p. 148.
2
Cit. Woodene Koenig-Bricker, 365 Saints, San Francisco: Harper
San Francisco, 1995, da leitura do dia 3 de setembro.
com que desafiava o povo era, porém, uma bomba neurotizante. Em todo sermão, o fogo caía (e
com uma boa quantidade de enxofre), e pelo menos um dos piores vilões da cidade chorava e
abandonava seu pecado. Com o tempo, acabava sendo o principal dos diáconos severos. Apesar
de todo o melodrama deles, às vezes sinto saudades desses incendiados arautos interioranos.
Todavia, o foco da mensagem deles era sempre a conclamação à desistência. "Pare de beber —
desista do seu ímpio uísque e venha à frente entregar-se", era a exortação típica. "Se Deus
quisesse que você fumasse, teria colocado uma chaminé na sua cabeça", exclamava um desses
evangelistas. Alguns iam à frente e deixavam o cigarro no altar. Todos viam que essas ex-
chaminés ambulantes estavam limpando os pulmões e se aperfeiçoando na fé. Aleluia pelos
freios! Alguns prometeram que nunca mais seriam culpados de "ter na mesma perna um pé
dançarino e um joelho de oração". Alguns abandonaram o baralho e para a glória de Deus
deixaram a canastra para sempre. Outros, no entanto, voltaram a jogar baralho para deleite dos
demônios.
Eu era jovem e amava a Jesus mais do que se imaginava. Queria "abandonar coisas" como os
outros faziam. Mas sempre me sentia culpado por ter tão pouca para abandonar. Queria
conhecer aquela espiritualidade devota e neurótica gerada pela desistência de beber, dançar e
fumar. Para minha tristeza, fui impedido desse conhecimento, pois era grande a ausência de
pecado grave em minha vida. Para um menino de nove anos de idade, eu vivia uma vida
razoavelmente limpa.
Foi quando meu pastor, notando que eu estava sem grandes pecados e muito satisfeito por isso,
começou a condenar o cinema. Graças a Deus! Finalmente havia algo de que eu podia desistir.
Eu adorava os filmes de faroeste: Hopalong Cassidy, Lash LaRue e Gene Autry estavam entre
meus personagens prediletos. Infelizmente, não eram os prediletos de Deus, pois eram astros do
cinema. Deus gostava dos cristãos, mas não dos astros do cinema. O pastor me explicou que
Deus desprezava esses vis sedutores de corações. Além disso, se eu quisesse ter comunhão com
Deus, teria de confessar minha afeição mundana por eles. A praga de Hoppy, Lash e Gene! Eu
ia me livrar dessa trindade infernal de heróis condenáveis. Foi o que fiz — desisti do cinema.
Agora enfim eu era cristão de primeira categoria. Foi difícil esperar a chegada do domingo para
anunciar diante da igreja meu recém-adquirido ascetismo. O domingo foi chegando lentamente.
Quando finalmente chegou, meu delírio espiritual estava no auge. No momento do apelo,
enquanto a congregação cantava "Tal qual estou", fui para a frente da igreja. Visualizava-me
oferecendo Hoppy, Lash e Gene no altar, por amor a Jesus. Os céus ficaram atentos à minha
nova ação gloriosa de abnegação. Os anjos choraram. Os demônios malignos de Hollywood
fugiram, totalmente excluídos da minha vida. Fiquei livre. Agora, quando meu pastor dissesse:
— Você vai querer estar num cinema ímpio quando Jesus voltar? — eu podia gritar:
— Não, pois separei-me do mundo e abandonei a impureza.
De vez em quando, eu ficava intrigado com o alegado grau de degradação dos faroestes da
década de 1940. Mas eu aceitava o juízo daqueles evangelistas, pois sabia que eu não era tão
adulto nem tão sábio quanto eles. Achava que eles andavam tão perto de Jesus que eram capazes
de avaliar a corrupção sutil que eu não enxergava de imediato. Quando, portanto, chegou ao fim
a quinzena de reavivamento, fiquei destituído dos cowboys ímpios de Hollywood e passei a
viver uma vida mais profunda, conforme entendia. Meus amigos não-santificados procuravam
seduzir-me de volta ao pecado, dizendo:
—Você quer assistir aos Cavaleiros da Sálvia Roxa?
De início eu respondia: — Não, obrigado, desisti de tudo isso!
Mesmo assim, o cinema era um atrativo forte. Eu não conseguia resistir! Costumava voltar a
frequentar as sessões de faroeste assim que o reavivamento terminava. Caía das minhas grandes
declarações de fé com a mesma frequência que me apegava a elas. Mas persistia, até sofrer uma
recaída e voltar aos meus velhos hábitos. Minhas intenções firmes eram tão secas quanto
aquelas velhas massas endurecidas de chiclete de hortelã grudadas embaixo das poltronas
daquela sala pagã. Eu nem conseguia curtir os filmes de verdade, pois, afinal, Jesus poderia
voltar, e ali estaria eu, "cavalgando pela salvia roxa" para dentro do abismo — onde todos os
infiéis desviados pereciam por não terem mantido os compromissos assumidos no
reavivamento. Ai de mim! Caíra de novo, e nada mais podia ser feito até o próximo
reavivamento — então quem sabe poderia purificar minha alma e desistir do cinema novamente,
antes de me desviar outra vez e voltar a desistir em seguida.
Passaram-se muitos anos até que me desse conta de que raras vezes me centrava em Jesus, mas,
sim, em todas as coisas que precisava largar. Senti-me culpado do complexo de "quem dera que
o pecado não fosse tão divertido". Muitos cristãos, talvez a maioria, passam a vida pensando:
"Queria mesmo seguir a Jesus, mas também queria me divertir". Não é possível, diziam. Assim
fui levado a acreditar que Jesus e a diversão eram antíteses entre si. As atuais pulseirinhas e os
adesivos de carro "O Que Jesus Faria?"8 podem alimentar essa mesma neurose. Jesus iria ver
Hoppy, Lash e Gene? No final do século XX, quem sabe, mas não em 1948. A estranheza desse
novo OQJF quase sempre me levava a dizer "não". Mas, na realidade, era sempre difícil para
mim — principalmente como jovem — enxergar Jesus no meu mundo. Para mim, era difícil
imaginar, mesmo com todo o esforço mental, Jesus em Enid, Oklahoma, andando pelo fórum
vestido com a longa túnica branca. Como ele poderia evitar os carrapichos nas sandálias? E eu
jamais conseguia imaginar sua auréola luminosa no escuro do cinema local, vendo filmes de
Hoppy, Lash e Gene.
Fiquei preso nessas imagens. No final da adolescência, aprendi a praticar esqui aquático. Foi
dos esquiadores que finalmente obtive uma resposta à pergunta: "Eu gostaria de estar num
cinema em Oklahoma quando Jesus voltasse?". Eu gostava muito de esquiar — era divertido.
Jesus faria esqui aquático? Claro que não. Jesus nunca se divertiu. Gostava muito de reuniões de
oração. Então, o velho reavivamento avultava-se além da corda que me puxava. Jesus estava
dirigindo o barquinho a motor e fazendo sinal de advertência com o dedo para mim, acima das
águas espumantes. "Você quer estar montado nesses esquis quando eu voltar?", dizia.
Eu desconfiava que esquiar devia ser pecado, pois era tão divertido! O que Jesus faria? Oraria e
distribuiria folhetos de reavivamento, não é verdade? Ainda que não achasse ruim divertir-se,
sua auréola e suas sandálias o obrigariam a se comportar, a permanecer firme e controlado e,
claro, profundamente batista. Jesus? Fazer esqui aquático? Claro que não — sua longa túnica
branca seria um empecilho na água.
Então, pela primeira vez concentrei-me não no que Cristo poderia fazer (na verdade, pelo texto
bíblico, parece que se divertia, visto que sempre ia a festas) mas no que ele santificava. Em
outras palavras, pode haver de fato diferença entre o que Jesus realmente faria e aquilo que ele
santificou.
Ele era o carpinteiro que abençoava os pescadores, embora ele próprio talvez não tivesse
nenhuma preferência pela pesca. Quem pode saber se ele teria praticado esqui ou não — ou
mesmo ido ao cinema? Se o conteúdo moral de algo que fazemos não menospreza a santidade, a
presença de Cristo em nossa vida pode realmente santificar essa atividade.
Entretanto, a principal lição que aprendi nessa área é que eu precisava largar mão de largar.
Largar, ou abandonar, implica concen-trar-se num único objetivo: o que deve ou não ser
abandonado. Os que focalizam a atenção em Cristo raramente são obrigados a largar alguma
coisa, pois o desejo de união com Cristo os proíbe de começar algo que depois precisem
abandonar.
O PECADO DE VIVER LONGE DO GRANDE CAPACITADOR
As tolerâncias que nos acabam prendendo em suas malhas de vício são de início bem fracas no
encantamento sobre nós. As pessoas nem sempre começam a beber por desejar ficar bêbadas.
Muitas vezes elas se embriagam por hábito de uma vida vazia. Isso não se aplica somente à
embriaguez, mas também a todos os nossos vícios.
A glutonaria destrói da mesma forma que a inveja irrefreada ou a concupiscência descontrolada.
Mas os sete pecados capitais raramente criam raízes numa vida ocupada e com propósitos.
Todos eles vicejam melhor no solo do vazio humano.
O vazio é a neurose principal que gera muitos vícios menores. Conheci vários pastores que
comprometeram a vida e o ministério com casos ilícitos. Sem exceção, todos confessaram que
________________________________________________________________________
5
OQFJ (O Que Jesus Faria?) Adaptação em português de WWJD, What Would Jesus Do?, campanha que
começou nos Estados Unidos, cujo tema foi inspirado no livro Em seus passos, que faria Jesus? de
Charles M. Sheldon, publicado originalmente em 1896.
não foi o apetite pelo ato ilícito que primeiro os atraiu para o testemunho decaído. Achavam que
a igreja os abandonara e deixara sozinhos, com o espírito vazio e sem ninguém com quem
pudessem falar. O adultério brotou da fraqueza da comunhão deles com Cristo. A infidelidade
crescia à medida que a necessidade deles guerreava com o vazio que tinham por dentro.
O vazio pode nos deixar levianos, a ponto de o preenchermos com a satisfação de qualquer
apetite secundário que aparentemente sacie a fome da nossa alma. Um dos cristãos mais
solitários que já conheci era executivo de uma grande empresa. Ele comandava uma grande rede
de empresas, mas confessava que se sentia sozinho, sentado numa poltrona de couro atrás de
uma grande mesa de vidro. Em casa, a mulher vivia ocupada cuidando dos quatro filhos. Desse
modo, paulatinamente os horários noturnos dele e a fadiga dela fizeram o relacionamento entre
eles fenecer. Ele começou a beber para conseguir dormir e acabou dependente do álcool.
Quando levantei a hipótese de que talvez ele fosse alcoólatra, protestou. Devagar, no entanto,
foi convencido a entrar num programa de desintoxicação que, ao lado dos Alcoólatras
Anónimos, livrou-o para sempre do vício — um dia por vez.
Eu não teria levantado esse caso aqui se não fosse um exemplo claro de alguém que era cristão e
se tornou alcoólatra. O vazio desse homem antecedeu seus vícios. Revi nele a verdade do
provérbio de Jung: "A ausência de espiritualidade é a neurose central dos nossos tempos". A
ausência de espiritualidade é a liberdade perdida que trocamos por nossos vícios. Pascal tinha
razão. Existe em nós um espaço vazio na forma de Deus que somente Deus pode preencher.
Nessa altura, devo perguntar: Você é um cristão em cuja vida ainda existe um vazio não
preenchido? Até os cristãos podem ter vazio existencial. Como chegaram a criar esse vazio?
Pela simples negligência de seu relacionamento com Deus.
Quando Deus preenche nosso vazio interior com o Espírito Santo, a vida funciona. Quando
Deus não o preenche, uma multidão de apetites devoradores destrói nossas melhores intenções.
Pessoas brilhantes que deveriam dominar seus apetites acabam dominadas por algum demónio
pavoroso que a princípio não era bem-vindo na vida delas. Em seguida, o demónio passou a ser
bem-vindo. Depois a presença dele tornou-se habitual. Finalmente era o vício, e não o cristão,
que dominava.
Pense em quantas neuroses inundam a vida de vários viciados.
A mãe de Gilbert Grape (personagem de Aprendiz de sonhador, filme adaptado do romance de
Peter Hedges) permitiu que a glutonaria a destruísse dentro de uma casa cujas vigas mal podiam
sus-tentar-lhe o peso. O livro de Upton Sinclair intitulado Cup of jury [Cálice de fúria] trata do
alcoolismo, bem como The lost weekend [O fim de semana perdido] (de Billy Wilder e outros)
ou Ironweed (filme de Hector Babenco, baseado no livro homónimo) e muitos outros títulos. Os
livros e filmes, assim como a política nacional, contêm histórias que abordam vícios sexuais. A
cobiça irrefreada do poder é o tema de Segredos do poder, Mera coincidência, da série de
filmes O poderoso chefão e de praticamente metade dos filmes e novelas produzidos.
O sexo é um habitante frequente de nossa vida interior. Pode entrar com tanta regularidade em
nossa mente que é capaz de usurpar o lugar dos pensamentos e do tempo que deveríamos
dedicar a Deus. Frederick Buechner referiu-se ao sexo como "o macaco que fica chiando em
nossas costas". Chama-o de "o grande segredo" que mantemos dentro de nós a ponto de
produzir uma patologia espiritual destrutiva. "Suponho que o sexo é o segredo que, em menor
ou maior grau, cada um de nós esconde dos demais [...] o grande segredo aberto que, não
importa o que mais possamos ser, somos corpos, e, como tais, precisamos tocar e ser tocados
[...] Quando pecaram, Adão e Eva procuraram esconder a nudez um do outro e de Deus. Em
maior ou menor grau, nós a escondemos desde então porque, suponho, sabemos que nossa
sexualidade é uma boa dádiva de Deus, e nós, pecadores, podemos usá-la para desumanizar
tanto o próximo quanto a nós mesmos".9
Os filmes e as novelas mais populares são histórias de perdas diante dos apetites. Porém, o
comentário mais triste referente ao cristianismo contemporâneo é que também estamos
envolvidos nesses relatos. Muitos cristãos, seja em editoras ou em igrejas, estão dominados por
um espírito de concorrência ímpia. As megaigrejas apresentam um aspecto altruísta (e até
evangelístico) enquanto o tempo todo guerreiam com as táticas de relações públicas e
publicidade. Embora muitos teólogos e pensadores tenham procurado chamá-las de volta dessa
_______________________________________________
9
Telling secrets, San Francisco: Harper San Francisco, 1991, p. 74-5.
posição, a corrida para ver quem é maior, melhor e mais famosa continua. Usando outros nomes
para santidade fingida, esses cristãos rivais raras vezes deixam de lado a política de intimidação
santa.
Isso tudo se soma a um tipo de impotência, que sempre resulta de se afastar do Grande
Capacitador. Quando não queremos dar lugar à orientação vinda do Cristo que habita em nós,
tudo o que resta é a atribulada e neurotizante programação do nosso difícil discipulado. O triste
de tudo isso é que o verdadeiro discipulado nunca pode ser neurotizante, pois deve seguir o
exemplo do Mestre e desviar-se da turbulência para abraçar a devoção convicta e a adoração
silenciosa.
Para o crente, só existe uma pergunta digna de atenção: Como Deus vê o meu discipulado?
Na época do escândalo que envolvia o presidente Clinton, fiquei apático e entediado com a
opinião pública. Os noticiários e os programas de entrevistas da TV apresentavam pontos de
vista que nada contribuíam para a resolução do problema; eram ura amontoado de fofocas. Os
líderes eclesiásticos e os teólogos também manifestavam suas opiniões e teorias. Raras vezes,
alguém expunha sua opinião do ponto de vista divino. Creio que as pessoas que se mantiveram
mais caladas agiram assim porque viram o problema com os olhos de Deus e avaliaram o
pecado nacional de acordo com o padrão das expectativas divinas.
Não há cultura mais cega que aquela que não quer ver. Não há cristão mais morto que aquele
cuja vitalidade se esgotou por falta de contato com Deus. As instituições (e a maioria delas foi
estabelecida a fim de prestar serviços nobres e sacrificiais a Deus, conforme o entendiam)
acabam degenerando em pouco mais que escadas para a autopromoção egoísta. Denominações
que se formaram para o altruísmo das missões acabam transformando-se em pouco mais que
clubes religiosos empenhados na proteção dos interesses dos membros. Catarina de Siena
escreveu que os líderes eclesiásticos de seus dias viviam presos ao luxo. Não sabiam latim, de
modo que não conseguiam celebrar uma missa sensata. Eram barões do poder sem nada, além
de espiritualidade vazia e pregação débil, que lhes definisse a vida competitiva e sem
compaixão. Seu serviço a Deus era apressado e fingido.10
Talvez a mais relevante de todas as visões pessoais seja a que enxerga com os olhos de Deus.
Saber o que Deus deseja de uma nação, mas não ter capacidade alguma para fazer isso
acontecer, inevitavelmente causa destruição.
O primeiro passo em direção à cura sempre é reconhecer a enfermidade. Israel, nos momentos
de declínio, não considerava ímpios seus próprios caminhos, de modo que a cura não era
possível. Oswald Chambers dizia que devemos sentir a dor dos nossos pecados se realmente
quisermos levá-los a sério. "O indivíduo entra no Reino quando as dores atrozes do
arrependimento colidem com sua dignidade.
Em seguida, o Espírito Santo, que gera essa agonia, começa a formação do Filho de Deus na
vida desse indivíduo".11
As enxurradas de opiniões durante a época do escândalo do presidente Clinton levaram poucos
a perguntar: "Deus tem algo a dizer sobre isso?". Caso tenha, talvez devamos alterar nossa
opinião para concordar com a dele. Talvez seja a maior das hipocrisias empossar presidentes
que prestam juramento com a mão sobre a Bíblia, visto que eles nunca mais a abrem para
promover os objetivos morais de Deus.
Entre os cristãos, não há muita vida nobre, mas às vezes surge um homem ou uma mulher cuja
disciplina inicia o dia perguntando: "Senhor, o que queres que eu faça?". Essa pergunta
preceitua um modo de viver para esse dia, e esse modo de viver define um estilo de vida.
Dietrich Bonhoeffer, perto de morrer, tomou consciência de que sua vida não tinha nenhuma
definição firme, a não ser a que Deus lhe dava. Escreveu primorosamente:
Suportei os dias do infortúnio de modo equânime, sorridente e orgulhoso, como quem está
____________________________________________________________________________________________________________________
11
Tudo para ele, Venda Nova: Betânia, 1988, da leitura do dia 7 de dezembro.
12
The cost of díscipleship, trad, para o inglês R. H. Fuller, New York: Touchstone Books, 1959, p. 20.
acostumado a vencer. Sou eu mesmo, então, aquele a respeito de quem falam outros homens?
Ou sou apenas o que sei a respeito de mim? Inquieto, ansioso e doente. Quem quer que sejamos,
somos de Deus.12
Como dar o devido valor ao fato de que, em última análise, Deus domina nossa vida? Devo
confessar que minha vida está dividida entre meu desejo de ser um escritor importante e meu
anseio de ser apenas uma alma que deseja descobrir o plano de Deus para si — um átimo na
eternidade. A ambição brota em quase todos os corações. Naturalmente, pode servir de
combustível para nossa carreira, mas é por demais intrinsecamente egoísta para ser um guia de
confiança. Somente o ponto de vista do céu nos guiará à obediência jubilosa e livre de erros. Só
uma vida piedosa nos capacitará a enxergar como temos de viver, desejando que tudo seja como
deve ser.
Na densamente povoada Tóquio, existe um acordo geral (na realidade uma lei municipal) para
que ninguém levante arranha-céu nem prédio algum que obstrua a vista do sol de outra pessoa.
Os japoneses acreditam que em algum período do dia todos têm o direito de ver o sol. Há muito
tempo, Deus me deu a convicção de que preciso tentar ajudar as pessoas a preencher o vazio
delas. Acredito que todos têm o direito de "ver o Filho". Desse modo, todos os apetites
puramente humanos perderiam seu poder. Vamos então avançar para o apetite majestoso.
Teremos Jesus no íntimo do nosso coração e não precisaremos usar nenhuma jóia cristã para
contar ao mundo os nossos anseios. As pessoas enxergarão além das nossas jóias, dentro da
nossa vida.
CONCLUSÃO
A diferença entre o que Deus quer para nós e aquilo em que acabamos nos transformando
depende de derrotarmos o domínio dos apetites que nos acorrentam ao modo de vida egoísta e
aos alvos egoístas da vida. Os passos para a liberdade são simples, mas sempre exigentes. Em
primeiro lugar, nosso foco precisa ser a sede do que Deus deseja para nós, em vez de meramente
tentar desistir daquilo que ele não quer. Segundo, devemos concordar em viver mais próximos
do grande Capacitador. Finalmente, devemos viver em espiritualidade abundante para enxergar
o tipo de mundo que Deus quer que exista e nos esforçar para ser o tipo de cristão que Deus
quer que sejamos.
Oswald Chambers achava que quase todos nós não renunciamos deliberadamente a visão de
Deus para nossa vida. Perdemos essa visão por negligência. Quando nascemos de novo, parece
que captamos um vislumbre do nosso valor, tanto para Deus quanto para nós mesmos.
Tornamo-nos desobedientes a essa visão quando começamos a viver como se ela não pudesse
ser alcançada.13 É raro negarmos a visão ou discutirmos o sonho de Deus para nós. "Perdemos
a visão por meio do vazamento espiritual", diz Chambers.14 Isso é lastimável, visto que nunca
conheceremos a felicidade espiritual sem ter aceitado a visão de Deus para nossa vida.
Quando aceitamos essa visão de Deus, oramos. Mas talvez esperemos revelações instantâneas
demais quando oramos. Queremos orar de manhã por um carro de fogo e já ao entardecer ir à
igreja montados nele. É raro orarmos pedindo fogo e ao abrir os olhos ver uma caixa de fósforos
em nossa mão.
Raios e trovões são muito improváveis. É melhor começar de forma modesta e discreta. Não há
necessidade de contar aos nossos amigos e conhecidos. Não há necessidade de planejar jejuns
heróicos nem vigílias que duram a noite inteira [...] a oração não é nem para impressionar os
outros, nem para impressionar Deus. Não deve ser empreendida com mentalidade de sucesso. O
alvo, na oração, é doar-se a si mesmo.15
A questão pode ser resolvida de modo tão simples assim? Sim. Viver a vida segundo Deus é a
única atitude que nos pode satisfazer. Naturalmente, aqueles que enxergam e sabem o que Deus
deseja devem chorar de tempos em tempos. Chorar por causa da inconstância daqueles que
criou é a natureza do nosso Deus vivo e amoroso. Foi por amor que ele enviou seu Filho. O
Calvário não é uma solução muito complexa para o pecado humano, mas custou a Deus tudo
quanto tinha. E o Calvário foi o lugar de Deus chorar. Mudar o mundo é gastar tudo e depois
esperar e chorar.
______________________________________________
13
CHAMBERS, da leitura do dia 24 de janeiro.
14
Ibid., 11 de março. 15Emilie GRIFFIN, Clinging, p. 15.
ROMPENDO A
ESCRAVIDÃO DO MATERIALISMO
Os Pais do Deserto foram para lá a fim de ser "libertos da fartura". Ter fartura não é condição
abominável, mas ser controlado por ela, sim. Deus quer que seu povo viva livre do apego ao
dinheiro. Não deseja que as pessoas fiquem miseráveis por causa da avareza. Muito pelo
contrário. As pessoas mais miseráveis são aquelas possuídas pelo materialismo. Na língua
corrente, "miserável" também é sinónimo de "sovina", "avarento". Logo, "miséria" significa
também "avareza".
Catarina de Siena estava convicta de que a privação é melhor amiga do materialismo do que as
riquezas. Os ricos em geral não têm tanto ardor por seus bens nem pela conservação deles
quanto os necessitados. Estes (talvez porque precisem fazer mais sacrifícios para conseguir
alguma coisa) quase sempre ficam mais apegados a seus pequenos tesouros do que os ricos.
Catarina aconselhava seus amigos prósperos a viver unidos com a vontade de Deus. Ressaltava
também que existe virtude nas posses materiais, pois Deus quer que desfrutemos as suas
dádivas. Mas Catarina também nos recomendou que não amássemos tanto essas dádivas de
modo que, em vez de as possuirmos, passem a nos possuir.
Em Lucas 18, Jesus encontra-se com um jovem rico e importante. O fato de o jovem possuir
muitos bens materiais não era pecado, mas, sim, seu apego a eles.
Barnabé também tinha riquezas, mas "vendeu um campo que possuía, trouxe o dinheiro e o
colocou aos pés dos apóstolos" (At 4.36,37). O que Barnabé fez que o jovem rico e importante
não conseguia fazer? Livrou-se de um grande apego. O jovem importante era escravo da paixão
chamada ter. Além disso, não se exercitara na arte do desprendimento. Os monges antigos
interpretavam o desprendimento como "não permissão aos valores terrenos nem ao
egocentrismo de nos distrair do essencial no nosso relacionamento com Deus e com o
próximo".5
em Deus e começam a acumular bens. Já se foram os dias do primeiro amor, quando lhes era
fácil dar e contribuir.
Você se lembra dos tempos de seu primeiro amor? Francisco de Sales provou do elixir do
primeiro amor e recusou-se a deixar que ele passasse a ser secundário: "Ai de nós! Todos os
dias pedimos a Deus que sua vontade seja feita, mas, quando se trata de praticá-la, temos muita
dificuldade. Oferecemo-nos a Deus tantas e tantas vezes, dizendo-lhe a cada passo: 'Senhor, sou
teu. Toma meu coração!'".8 Foi isso que dissemos quando nos tornamos cristãos. E o que ainda
devemos dizer para demonstrar nossa fé.
Quando Jesus Cristo entra em nossa vida com poder, nasce algo em nós que diz: "Posso fazer
diferença. Posso alcançar o meu mundo. Posso viver para Cristo sacrificando-me por ele". Mas
a velha ambição desmedida permanece conosco e nunca estamos livres de perigo. A qualquer
momento, podemos voltar aos nossos valores antigos e nos tornar compradores compulsivos,
encostados em nosso automóvel predileto. Quando trocamos nossos tesouros espirituais por
bagatelas, o grande sonho que tínhamos de servir a Deus escoa-se pelos poros cintilantes da
nossa cobiça.
A SUBSTÂNCIA DA ESPIRITUALIDADE
Precisamos abandonar o hábito de acumular tesouros e criar o hábito de acumular a copiosidade
da graça de Deus. Precisamos acalentar o que Francois Fénelon chamava de "estado de fé
exposta". A fé exposta tem Deus na mais alta estima, pois todos os demais valores não passam
de nudez e pobreza.
Quando se sentir na sequidão, na obscuridade, na pobreza e quase sem forças na alma,
permaneça humilde debaixo da mão de Deus, em estado de fé exposta, reconheça sua própria
indigência, volte-se para o Deus todo-poderoso e nunca duvide da sua assistência [...] Toda a
sofreguidão desaparece diante da perseverança.9
Paulo diz que nossa vida interior é uma busca muito perseverante — a busca de Cristo.
Em 1 Coríntios 6.12, o apóstolo nos lembra de que, embora tudo nos seja permitido, nem tudo é
bom para nós. Tudo que furta minha visão de Deus não é bom para mim. Não me submeterei ao
poder de nenhum desses obstáculos. Considere o materialismo o principal desses poderes
viciantes.
Submeter-se ao poder do quê? Lembre-se desta lista: "Não se deixem enganar: nem imorais,
nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem
avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus" (ICo
6.9b,10). Qual seria a origem desses vários estados? Como o adúltero torna-se adúltero? Como
o alcoólatra torna-se alcoólatra? Como o imoral torna-se imoral? É possível transformar-se
nesses tipos de pecadores quando se perde o domínio sobre os próprios apetites.
Se todos tivéssemos a maturidade espiritual necessária, conseguiríamos enxergar isso. Quando
Deus nos nega algo, jamais faz isso por sovinice. Ele retém tudo quanto não necessitamos a fim
de que aquilo que deseja para nós fique a nosso alcance. E o que ele quer? Nossa conformidade
com a imagem de seu Filho. Portanto, jamais sejamos culpados de pensar que nossa sede de
coisas materiais chegará a produzir alguma semelhança com Cristo em nossa vida. Não pode ser
assim, pois o próprio Cristo repudiou o vazio do mundo material. Quando morreu na cruz,
completamente destituído de todos os bens, mostrou-nos exatamente até onde temos de ir para
ser tão altruístas quanto ele. O melhor momento para lidar com qualquer tipo de tentação —
apesar do materialismo — é resistir à sedução logo no início. Guardar no coração qualquer
desejo contrário à vocação sincera é dividir nossa atenção entre Jesus e qualquer outro que exija
o primeiro lugar da nossa lealdade.
Um dos companheiros íntimos do materialismo é o ativismo. É um tipo de corre-corre
santificado em que os cristãos concorrem entre si para ser os mais importantes, mediante a
comparação entre suas atividades e a velocidade com que atendem aos vários programas da
comunidade religiosa. A idéia é que quanto mais fizermos por Jesus, mais os anjos ficarão
impressionados. Desse modo, orgu-lhamo-nos de estar em certo lugar na terça-feira e em outro,
_________________________________________________________________________
8
Thy will be done, p. 8.
9
Talking with God, p. 86.
na quarta. Fazemos parte de meia-dúzia de departamentos ou vamos à igreja dia e noite, como
se houvesse algum tipo de vida inerente na velocidade santificada. A vida agitada e o consumo
desenfreado caminham juntos. A agenda cheia de compromissos e o total egoísmo que provém
da gastança desmedida são companheiros íntimos.
O materialismo e o excesso de atividades podem nos fazer alegar que estamos vivendo a "vida
plena". Paulo, depois de nos lembrar de que somos o templo de Deus, diz: "Acaso não sabem
[...] que vocês não são de si mesmos? Vocês foram comprados por alto preço. Portanto,
glorifiquem a Deus com o seu próprio corpo" (ICo 6.19,20). Ora, quando Deus nos resgatou,
tirou-nos desse tipo de vida. Transformou nossas preferências morais e o modo que consi-
deramos o ter e o apressar-se para conseguir a falsa reputação de uma vida sincera.
Teresa de Lisieux disse que a chave para lidar com todos os nossos apetites, quer materiais, quer
não, é imitar a Cristo. Ela criava numa gaiola um pintarroxo desde filhote. Tinha também um
canário que cantava constantemente. O pintarroxo, mais quieto, começou com o passar do
tempo a tentar imitar o canário. Não era fácil, mas ele persistia. "Era encantador observar o
empenho da criaturinha", escreveu. "Obviamente, achava difícil harmonizar seu canto com as
notas vibrantes do seu mestre, mas, para surpresa minha, o canto do pintarroxo acabou ficando
exatamente igual ao do canário".10
Deixar de imitar a Cristo é entristecer o Espírito Santo (v. Ef 4.30). Como fazemos isso? O
segredo para entender isso é lembrar que "entristecer" é uma palavra afetiva. Quando não
vivemos à altura do propósito para o qual Deus nos salvou, o Senhor não fica furioso conosco,
nem procura meios de se vingar de nós. Ao contrário, Deus se aflige por nossa causa.
Não me lembro de termos recebido muitos móveis novos em nossa casa em Oklahoma quando
éramos crianças, mas certamente me lembro de quando adquirimos duas cadeiras novinhas em
folha. Minha mãe deve ter empregado suas últimas economias para comprá-las. Não que não
precisássemos das cadeiras, mas raramente tínhamos dinheiro para móveis. A maior parte de
nossos gastos domésticos era para coisas mais fundamentais. Lembro-me de ter pensado, de
início, como aquelas cadeiras novas pareciam indecentes. Eram lustrosas e belas, reinando como
tronos sobre o restante da nossa mobília. Algum tempo depois, acabaram ficando na varanda da
frente da casa (quando se tem três quartos para nove filhos, passa-se muito tempo na varanda da
frente).
Um amiguinho meu veio do outro lado da rua. Ele também tinha uma coisa novinha em folha —
um canivete! Ainda me lembro de vê-lo pegando o canivete novinho em folha e entalhando
aquelas cadeiras novinhas enquanto conversávamos. Nem por um momento sequer, pensei em
fazê-lo parar. Para mim, parecia mais criativo do que maligno. Mas certamente me lembro de
ter visto a faísca acusatória no rosto de minha mãe quando ela saiu na varanda. Sua expressão
era de cólera e hostilidade francas. Mas os filhos que conhecem bem seus pais também
conseguem olhar além da hostilidade e ver que por trás dela existe uma mágoa profunda. Algo
precioso se estragara. Tive vontade de chorar.
Quando Paulo diz: "Não entristeçam o Espírito Santo de Deus", está dizendo em outras
palavras: "Você, como cristão, não consegue deixar Deus ficar com raiva de você, mas
consegue magoar o coração dele". Para evitar que isso aconteça, Cristo habita em nós. Fomos
comprados. Fomos resgatados no dia que Jesus ficou pendurado na cruz. Foi uma experiência
dolorosa e angustiante. Custou espinhos! Custou sangue! Custou a crucificação total de Jesus
Cristo! Mas ele foi pendurado no madeiro para adquirir, comprar, pagar e escrever "totalmente
pago" para todas as nossas necessidades!
Acho que sei a dor que Jesus deve ter sentido quando levantou os olhos, não tendo cometido
nenhum mal, e exclamou: "Pai, per-doa-os!". Depois, exclamou: "Está acabado!". Não "Eu
estou acabado", mas "A obra está acabada! Paguei o preço do resgate", Cristo clamou à nossa
alma. "Vocês foram comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus com o corpo de
vocês".
Visto que fomos comprados por alto preço, seria muito bom deixar de lado a busca infrutífera
do nosso superficial ganhar e gastar. Quem sabe o domínio de Cristo sobre nós seja muito mais
importante do que nossa posse de qualquer bem material.
_______________________________________________________________
10
Teresa de LlSIEUX, p. 72.
O melhor de tudo é que o domínio de Cristo estabelece o rico senso de espiritualidade —
integridade de vida e de atitude que torna nosso acesso a Deus imediato. Aceitar o senhorio de
Cristo é um passo gigantesco na nossa tentativa de parar de amar os bens materiais e valorizar
nosso amor a Deus.
Em certo sentido, também é um passo na direção de abolir a escravidão do materialismo. Isso
se faz escondendo os tesouros do céu — não os nossos próprios — em nossa vida interior. Com
esse ato tão singelo, ocorre um deslocamento maciço. O apetite de ter substituído pelo apetite
de ser. O coração entregue a Cristo não vai às lojas procurar brinquedos. Ele nos deixa livres
para amá-lo, e o amor ao Senhor desvia a adoração de meros bens materiais. Fomos comprados
pelo seu precioso sangue. As bugigangas que nosso miserável dinheiro consegue comprar
devem ser consideradas insignificantes. Para nós, jamais pode ser "quem tem mais brinquedos
vence", mas "quem foi comprado pelo sangue de Cristo vence" e continuará vencendo para
todo o sempre.
Os tempos mudam, e, para nos
manter em dia, devemos modificar
nossos métodos.'
— MADELEINE SOPHIE BARAT
ROMPENDO A TIRANIA
DA URGÊNCIA
Uma das primeiras máquinas foi o relógio. Primeiro, movido a água, depois por molas e
pêndulos e finalmente a quartzo, continua sendo uma máquina controladora, cujo tíque-taque às
vezes nos deixa neuróticos. O relógio foi inventado para nos permitir administrar o tempo, mas
às vezes acaba nos deixando nervosos.
De todas as dádivas que Deus nos dá, certamente a mais preciosa é o tempo.
Os segundos, os minutos e os anos são todos peças da vida, montadas e prontas para nosso uso
no serviço de Deus. A areia de nossa vida escorre pela nossa ampulheta — rápida, firme,
preciosa. É tão preciosa que, quando a devolvemos a Deus, os anjos se põem a exultar "aleluia!"
Mesmo assim, não podemos dedicar nossa vida inteira a Deus num só momento e ter o assunto
resolvido de uma vez para sempre. Precisamos entregar-lhe nossa vida segundo após segundo.
Portanto, a principal pergunta inicial a fazer ao Cristo que vive em nós não é "Que queres que
eu faça na vida?", mas "Que queres que eu faça
— Qual é a sua profissão, meu amigo?
— Sou sapateiro — veio a resposta entusiasmada. — Todos os dias, pego minha caixa de
ferramentas e circulo pela cidade, consertando os sapatos das pessoas. Elas me dão algumas
moedas, que guardo no bolso. Findo o dia, gasto tudo para comprar minha refeição da noite.
— Você gasta todo o seu dinheiro, todos os dias? — perguntou incrédulo o rei. — Não faz
poupança para o futuro? Como será seu amanhã?
— O amanhã, meu amigo, está nas mãos de Deus — disse o sapateiro, rindo feliz. — Ele
proverá, e eu o louvarei dia após dia.
Antes de partir naquela mesma noite, o rei pediu licença para voltar na noite seguinte.
— Você sempre será bem-vindo, meu amigo — respondeu o sapateiro amigavelmente.
No caminho para casa, o rei elaborou um plano para pôr à prova o humilde sapateiro. Na manhã
seguinte, fez uma proclamação e proibiu o conserto de sapatos sem autorização oficial. Quando
voltou na noite seguinte, viu que o sapateiro estava alegre comendo e bebendo.
— O que você fez hoje, caro amigo? — perguntou o rei, fingindo não estar surpreendido.
— Quando fiquei sabendo que nosso rei gracioso emitiu uma proclamação que
proíbe o conserto de sapatos sem autorização oficial, fui ao poço, tirei água e a
levei à casa das pessoas. Elas me deram algumas moedas, que coloquei no bolso, e
saí para gastar com esses alimentos — contou o sapateiro. — Venha, coma, há
bastante para todos.
— Você gastou tudo? — perguntou o rei. — O que acontecerá se não conseguir tirar água
amanhã? O que fará então?
— O amanhã está nas mãos de Deus! — exclamou o sapateiro. — Ele proverá, e eu, seu
humilde servo, o louvarei todos os dias.
Na manhã seguinte, o rei resolveu pôr seu novo amigo à prova outra vez. Enviou seus arautos
pelo país inteiro para anunciar que era ilegal uma pessoa tirar água para outra. Naquela noite,
voltou para visitar o sapateiro e viu que estava comendo e bebendo e desfrutando a vida, como
antes.
— Fiquei preocupado com você esta manhã quando ouvi a proclamação do rei. O que você fez?
— Quando ouvi o novo edito do nosso bom rei, saí para cortar lenha. Depois de ajuntar um
fardo, levei-o à cidade e vendi. As pessoas me deram algumas moedas, coloquei-as no bolso e,
depois do fim do serviço, gastei tudo em comida. Comamos.
— Você me deixa preocupado — disse o rei. — O que acontecerá se não conseguir cortar lenha
amanhã?
— O amanhã, meu bom amigo, está nas mãos de Deus. Ele proverá.
Cedo na manhã seguinte, os arautos do rei proclamaram que todos os lenhadores deviam
apresentar-se imediatamente ao palácio para servir no exército do rei. O sapateiro que virara
lenhador apresentou-se obedientemente e recebeu treinamento durante o dia todo. Findo o dia,
não recebeu pagamento, mas teve licença para levar sua espada para casa. A caminho do lar,
entrou numa casa de penhores, onde penhorou a lâmina. Em seguida, comprou o alimento,
como de costume. Chegando a casa, pegou um pedaço de madeira e fez dele uma lâmina,
recolocando a nova "espada" na bainha.
Quando o rei chegou naquela noite, o sapateiro lhe contou a história inteira.
— O que acontecerá amanhã se houver uma inspeção de espadas? — perguntou, o rei.
— O amanhã está nas mãos de Deus — respondeu o sapateiro com calma. — Ele
proverá.
Na manhã seguinte, o oficial encarregado tomou o sapateiro pelo braço.
— Hoje você vai servir de algoz. Esse homem foi condenado à morte. Decapite-o.
— Sou homem brando — protestou o sapateiro. — Nunca machuquei ninguém em toda a minha
vida.
— Você cumprirá as nossas ordens! — gritou o oficial. Enquanto caminhavam até o local da
execução, a mente do
sapateiro fervilhava. Com o prisioneiro ajoelhado a sua frente, o sapateiro segurou o punho da
espada numa das mãos, estendeu a outra aos céus e orou em voz bem audível:
— Deus todo-poderoso, somente tu podes julgar os inocentes e os culpados. Se esse prisioneiro
for culpado, que minha espada seja bem afiada, e fortes os meus braços. Se, porém, ele for
inocente, que essa espada seja feita de madeira.
Comovido, o sapateiro desembainhou a espada. Os espectadores ficaram atónitos ao ver que a
espada era de madeira.
O rei, que observava os acontecimentos à distância, correu até seu amigo e revelou-lhe sua
verdadeira identidade.
— A partir de hoje, você virá morar comigo. Você comerá da minha mesa. Eu serei o
hospedeiro, e você será meu convidado. O que você diz disso?
O sapateiro deu um sorriso largo.
— O que digo é que o Senhor proveu, e você e eu juntos o louvaremos dia após dia.6
_____________________________________________________________________________
1
Cit. Richard FOSTER, A spiritual Formation Journal, página sem numeração.
2
Cit. Woodene KOENIG-BRICKER, 365 Saints, da leitura de 28 de dezembro.
3
Imagination, Sisters: Multnomah Press, 1986, p. 151.
Quando o pássaro engaiolado canta,
ele está mesmo engaiolado?
Quando a arte viceja na prisão,
será que o artista esteve alguma
vez aí encarcerado?
_____________________________________________________________________
4
The cost of discipleship, p. 20. [Publicado em português com o título Discipulado (São Leopoldo:
Sinodal, 2002).]
ESTÉTICA: DESFRUTAR
A BELEZA DE DEUS
Poucos têm a capacidade de desfrutar a beleza de Deus. Nem sempre se encontra essa
capacidade na vida dos artistas. O mais provável é que ela resida nos crentes humildes, cuja
alma é atraída pela irresistível admiração diante do nascer do sol. Uma pobre mulher metodista
escreveu no século XVIII:
Não sei se tive momentos mais felizes na minha alma que quando me sentava no trabalho sem
nada diante de mim a não ser uma vela e um pano branco, sem escutar nenhum som senão o da
minha própria respiração, com Deus na alma e o céu nos olhos. Alegro-me por ser exatamente
como sou — uma criatura capaz de amar a Deus e que precisa ser feliz. Levanto-me e olho pela
janela alguns instantes. Contemplo a lua e as estrelas, obra da mão toda-poderosa. Penso na
grandeza do universo e depois me sento de novo, considerando-me uma das criaturas mais
felizes dessa imensidão.5
Deus vive mais livre nos indivíduos cujos olhos se atraem por sua arte. Cristo está no centro das
artes e da devoção. A criatividade é um meio de correspondermos a esse centro, onde as artes
se transformam em louvor. As catedrais são o trono perfeito desse
louvor. Cada vitral é a adoração reluzente de um artista a Deus. Todo hino é testemunha de que
um poeta amou tanto a Cristo que não quis falar dele apenas em prosa.
Os artistas dedicam sua arte a comemorar tudo quanto é essencial em sua alma. Os artistas
cristãos também devem existir para glorificar o foco de sua adoração. Portanto, enquanto todos
os artistas louvam a maravilha da existência, os artistas cristãos também enaltecem a glória de
Cristo. O óleo flui nas telas; o mármore cortado revela a alma; a tinta se derrama nas estrofes; e
Cristo é exaltado. É uma pena que os evangélicos não tenham dedicado tanta atenção às artes,
uma vez que elas sempre foram a alma da igreja. Ainda pior que desconsiderar as artes, alguns
evangélicos se transformaram em mercadores de lixo e trocaram a arte pelas bugigangas dos
"slogans de fé fabricados". Kathleen Norris lamenta:
Vemos, em lojas cristãs de presentes, camisetas que retratam Jesus como um
carinha da turma: em um uniforme de beisebol, sob a frase "Jesus é meu rebatedor
preferido", ou segurando uma guitarra, acompanhado dos dizeres: "Jesus is my
'Rock' and I'm on a 'Roll”.*
" Um pastor que conheço desafiou sua congregação a "ser propagandista do Pai
celestial!". Nunca o ouvi citar outra coisa que se aproximasse de poesia.6
A Confissão de fé de Westminster declara: "O dever principal do homem é glorificar a Deus e
desfrutá-lo para sempre". Existem muitas maneiras de glorificar a Deus, porém, o lixo que leva
o nome de Jesus não contém glória e não passa de tolice sem graça de evangélicos que nunca
viram ó Senhor glorioso e exaltado. A arte é um meio importante de glorificar a Deus. Contudo,
a igreja — principalmente a igreja evangélica — tradicionalmente tem-se comportado de
maneira um tanto esquizofrênica quanto a considerar se as artes são ou não um modo
santificado de prestar louvor a Deus. Em 1.° de janeiro de 1519, na véspera da Reforma suíça,
_____________________________________________________________________________
5
De Mary Tileston, org., Daily strength for daily needs, Springdale: Whitaker House, 1997, p. 21.
*Trocadilho com rock'n'roll. A tradução aproximada seria: "Jesus é minha Rocha [rock) e minha vida é
um sucesso {I'm on a roll).
6
Amazing grace, p. 199.
Zuínglio tornou-se o "sacerdote do povo" na igreja Grossmúnster, em Zurique. Enfurecido
contra o que considerava "ícones pagãos" da igreja, passou como tempestade pelo templo,
rasgando as pinturas, jogando ao chão e esmigalhando as estátuas religiosas. Purificou a igreja
de "imagens, órgãos, vestimentas sacerdotais adornadas e toda a miscelânea de costumes
humanos".7 Doze anos depois, em 1531, Zuínglio foi morto numa guerra por liberdade religiosa.
Entretanto, nessa época ele já havia estabelecido amplamente os sentimentos reformistas contra
as artes religiosas — ou pelo menos contra a idolatria artística. Mas uma grande necessidade no
centro da alma humana invalida seu argumento.
Oculto no mais profundo do ser humano, existe o desejo de desenhar, pintar e esculpir tudo o
que melhor representa nossos valores, o que nos é mais precioso. A passagem impetuosa de
Zuínglio pela catedral teve uma conclusão estranha. Em Zurique, existe uma estátua bem
esculpida do velho demolidor de imagens, segurando a Bíblia numa mão e uma espada na outra.
Se Zuínglio estivesse vivo hoje, essa estátua seria grande demais para ele derrubar. Tudo isso
introduz o problema que tem incomodado a igreja há séculos; primeiro com os reformadores,
depois com os evangélicos.
Os sermões e os santuários evangélicos foram destituídos tanto de artes quanto de interesse. As
conversas religiosas que nos escorrem dos lábios transformaram-se em idolatria da frivolidade.
Nossas muitas palavras produzem embotamento da alma, não passam de ladainha morta de
tédio. Os artistas entram no debate e estranham que nunca nos cansemos de conversar a respeito
de Deus. Thomas Merton declarou que dizer que Deus é amor é semelhante a dizer "coma
Kellogg's" — não tem muito interesse.8 A arte solucionaria parte do problema, mas ela parece
irrelevante para os evangélicos. Os evangélicos lêem a Bíblia de acordo com Zuínglio. "Não
farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa" (Ex 20.4). Arão não fez o
bezerro de ouro e dessa forma levou Israel ao pecado? Até a serpente de bronze de Números 21
se transformou em "Neustã", objeto de adoração, no tempo de 2Reis 18.4. Josué conclamou
Israel a pôr fora os ídolos da Mesopotâmia e do Egito. Habacuque ressaltou que os ídolos eram
mudos diante de quem os fizera (v. 2.19). Qual exatamente é a questão central? O ídolos são
mudos e impotentes como deuses. Entretanto, nem toda estátua é um ídolo; os ídolos não são
arte. A arte é a expressão do nosso louvor — o ídolo é objeto, alvo, desse louvor.
Gosto de pintar. Também amo a Cristo. Quando vi pela primeira vez uma reprodução do quadro
Cristo de João da Cruz, de Salvador Dali, fiquei completamente dominado por sua mensagem
majestosa. Quando mais tarde fiquei sabendo que Dali era ateu (fato que a maioria dos
evangélicos talvez não reconheça), fiquei mal-humorado. Ele pintara a tela para negar a
divindade de Cristo, e eu comprara a reprodução para celebrá-la. O que Dali celebrou? Nada
mais que sua própria filosofia. Mas eu não adorava o quadro. Simplesmente permiti que a
excelência da tela representasse a minha definição de tudo quanto Cristo fez na cruz.
A arte é louvor — louvor supremo — e se manifesta em vários graus de excelência. Quando
Handel foi tocado por Jesus, escreveu "O Messias". Quando o Senhor tocou Fanny Crosby, ela
escreveu "Que segurança!". Quando uma cantora country foi tocada pelo mesmo Senhor, escre-
veu: "Sou uma simples vaqueira de Jesus no curral do Espírito Santo". Qual dessas peças é mais
valiosa? Deixemos de lado todos os institutos de pesquisa de opinião. Em cada um desses casos,
Jesus foi louvado por um artista específico de uma maneira que, para esse indivíduo, era
adoração.
Jesus salva. Proclamamos sua glória. Nasce a arte. Ela só se transforma em idolatria quando
nosso louvor a Deus morre e tudo que resta é a adoração da arte pela arte. Os ídolos nascem
quando os artistas cessam de adorar a Deus e começam a cantar o Te Deum em louvor de seu
próprio gênio. Os ídolos sempre são deuses do ego. Os artistas que não querem oferecer a Deus
a negação de si mesmos começam a adorar seu próprio gênio criativo. Os ídolos são retratos
pessoais do interesse próprio. Existem para assegurar aos adoradores que estes podem fazer o
que querem.
Mas pode o artista realmente viver uma vida de abnegação e pintar, escrever ou esculpir? Essas
atividades não existem para gratificar o pintor, o escritor e o escultor? Algum poeta escreveria
____________________________________________________________________________
7
Holman Bible dictionary, Nashville: Holman Bible Publishers, 1991, p. 870.
8
The spring of contemplation, p. 6.
uma poesia para Deus somente, sem jamais se dispor a deixar outra pessoa lê-la? É claro que
não!
As artes surgem do ego e não se contentam em criar obras que ninguém jamais veja. Todo
artista quer que sua arte seja a celebração pública do seu caso de amor com a vida. O artista
cristão, no entanto, quer mais — quer que Jesus seja honrado pelo que pintou, escreveu ou
esculpiu. O artista cristão vive segundo um foco estético cujos valores são transcendentes e
perpétuos. Quando as pessoas exaltam juntas essa arte, nasce a comunhão. De fato, quando
exaltam juntas as artes cristãs, a própria igreja está adorando, e aí está o reino de Deus.
Por que, então, a maioria dos evangélicos e protestantes tem essa antipatia pelas artes? Porque
para eles as artes parecem atividades triviais diante de todas as coisas onipotentes que Deus
comissionou a igreja para realizar. A igreja, afinal, existe para conclamar o mundo à salvação.
Por que deveríamos dedicar tempo a pintar, esculpir, escrever, cantar, tocar ou fazer
representações dramáticas, enquanto o mundo corre o perigo do fogo do inferno? Certa vez, dei
uma pintura de flores a um amigo, que me disse: "Você sabia que, enquanto se dedicava a essa
obra, muitas pessoas morreram e foram para o inferno?". Lamentei não ter dado a tela para outra
pessoa.
Pode-se esculpir uma estátua de Cristo que nunca se transforme em ídolo. O indivíduo que se
detém para contemplar a escultura faz dela uma obra de arte ou um ídolo. Se a obra leva o
adorador para além de si mesmo, trata-se de arte. Se faz o adorador parar e exige todo o foco da
atenção, trata-se de um ídolo.
A diferença pode achar-se no modo que o adorador enxerga Deus. Os ídolos podem nos intrigar
e até tornar-se objetos de idolatria, mas não causam a idolatria, não transformam o adorador.
Tenho um neto que veio morar conosco aos dez anos de idade. Ele é da Tailândia, onde foi
criado de acordo com os preceitos budistas. Temos procurado, com brandura, levá-lo a Cristo.
Certo dia, depois de uma aula da Escola Bíblica Dominical, ele disse à mãe:
— Mamãe, você sabe por que gosto mais de Jesus do que de Buda? A mãe (minha filha),
confusa com a pergunta, respondeu:
— Não, por quê?
— Porque — continuou —Jesus disse ao mar: "Aquiete-se! Acalme-se!", e o mar lhe obedeceu.
Mas Buda... ora, ele não faz nada além de ficar sentado.
A seu modo, o menino parafraseara Habacuque 2.19, dizendo que os ídolos são realmente
mudos diante dos que os fazem.
Não concordo com o que Doré disse a um de seus alunos (que estava pintando um quadro de
Cristo): "Você não o ama, senão o teria pintado melhor".
Nós que o amamos o pintamos tão bem quanto nossos talentos limitados permitem. Gostaríamos
de poder pintá-lo melhor, mas precisamos pintá-lo, precisamos louvá-lo. Amamos o Senhor
demais para deixar de ser criativos. Por isso, criamos. Se não temos a excelência para pintar
uma obra-prima, ele compreenderá. Fizemos o melhor que podíamos e, se pudéssemos fazer
ainda melhor, faríamos logo, pois nosso amor por ele exige os melhores esforços.
As crianças sempre desenhavam durante meus sermões. Antes, isso me deixava preocupado,
porque achava que desenhavam por tédio. Achava que, se eu conseguisse pregar melhor, elas
desenhariam menos: Entretanto, frequentemente me davam seus desenhos na porta dos fundos,
depois dos cultos. Uma das crianças me desenhou no púlpito e Jesus pairando sobre mim. O
desenho serviria para o Louvre? Não é essa a questão! A menina registrara uma visão de como
queria que Cristo fosse, e conforme eu precisava que fosse.
Quase nunca começo a pregar sem visualizar mentalmente o desenho dela, definindo minha
vida conforme eu gostaria que fosse. A menina teria pintado Jesus melhor se o amasse mais?
Acho que ela o amava de verdade, mas não tinha condições de pintá-lo melhor que aquilo. E,
assim, os anjos cantaram e Cristo foi louvado. A arte falou com glória!
A arte é como fazemos Deus belo, e sua beleza é uma das razões por que o adoramos. O
evangelho sempre tende a lidar com o desespero do pecado da raça humana. Nunca, porém,
devemos permitir que o desespero destrua nossa adoração ao Deus da beleza.
Andando pelo Rijksmuseum, em Amsterdã, senti-me um anão diante das grandes telas de
Rembrandt. Fiquei ainda mais impressionado com a história que o curador do museu contou a
respeito dessas telas enormes na Segunda Guerra Mundial. Quando os holandeses perceberam
que estavam prestes a ser conquistados pelo Terceiro Reich, tiraram as telas pesadas das barras
imensas que as esticavam e as enrolaram como tapetes. Lacraram-nas com cera e começaram a
enviar pinturas esplêndidas como A vigília noturna e Mestres holandeses para todas as partes da
Holanda, numa operação vasta e sigilosa. As telas foram passadas de galerias para celeiros,
silos, moinhos, armazéns, tudo na tentativa de manter a alta cultura holandesa longe das mãos
dos nazistas.
Quando o guia do museu me contou essa história, comecei a perceber quanto as crises políticas
são inimigas da arte. As pinturas e as esculturas raramente vicejam em tempos de guerra.
Podemos pintar posteriormente nossos heróis de guerra, mas as batalhas propriamente ditas
excluem as artes.
O desespero ameaça deixar a cultura destituída das artes.
Se isso, porém, ocorre no âmbito político, é ainda mais comum no sentido espiritual. O
desespero no centro do cristianismo às vezes impede que nos deleitemos em Deus. A teologia
existe para lidar com o desespero. A própria palavra "salvador" significa "libertador" — e nossa
pregação é tão séria quanto as últimas palavras do nosso Salvador: "Vão pelo mundo todo e
preguem o evangelho a todas as pessoas" (Mc 16.15). O desespero raras vezes é amigo das
artes.
No entanto, nossa condição desoladora, depois que somos redimidos, transforma-se rapidamente
em exultação apaixonada e jubilosa. Nosso descontentamento é envolto numa bem-aventurança
tão arrebatadora que precisamos convocar os poetas e pintores para nos ajudar a louvar a Deus.
Ele agiu em nosso favor para nos salvar. Por isso Miriã, chegando ao outro lado do mar
Vermelho, precisou cantar e tocar tamborim, e Paulo, no meio de suas instruções aos coríntios
boêmios, precisou parar e cantar 1 Coríntios 13.
Somente mediante a influência do Espírito Santo, Paulo seria capaz de cantar um hino tão belo
— resultado de uma adoração tão fabulosa. Como Maria de Nazaré cantou o Magnificat?
Na minha opinião, ficou espantada com as imensas exigências de Deus. Então, o Espírito
operou. E a força transbordante da adoração dela derramou-se. A poesia muito além da
capacidade de sua juventude foi brotando do seu íntimo. O mesmo ocorreu com o apóstolo João,
quando escreveu e registrou as doxologias do Apocalipse. O céu inteiro estava ao seu redor. O
êxtase deslumbrante assumiu o controle, e o Espírito cantou sobre a nobreza da vinda de Cristo:
"Digno é o Cordeiro de receber glória!". Poesia excelentíssima! Arte transcendente!
A arte pressupõe o louvor e a exaltação da beleza como a obra da imaginação humana. Mas nem
todos os evangélicos concordam que a imaginação seja algo bom. Alguns a consideram pecado.
Apesar disso, as palavras "imagem" e "imaginação" provêm da mesma raiz, e Gênesis insiste
que somos feitos à imagem de Deus, a imago Dei, a humanidade tal como Deus imaginou que
fôssemos. Por certo, a imaginação é uma das evidências de que somos feitos à imagem de Deus.
Somos, na verdade, a sua arte.
Cheryl Forbes diz:
Não importa qual seja o relacionamento, a imaginação é o ingrediente essencial
para o sucesso ou para o fracasso. Os relacionamentos conjugais ou vicejam, ou
morrem por causa da imaginação, assim como os relacionamentos entre pais e filhos,
entre colegas de trabalho, entre patrões e empregados.9
Pergunta-se por que a imaginação é tão pouco estimada entre os evangélicos. Nosso senso de
urgência impede que parte do mundo vá para o inferno, mas nossa falta de interesse pelas artes
certamente tornou menos interessante nossa ida para o céu. Parece que a arte passa por nós e
não a notamos. Exceto uma explosão de romances acerca do juízo final, os principais génios das
artes são quase todos seculares.
Por quê? Não que aos cristãos falte o génio necessário. É porque não conseguimos enxergar a
arte como o canal sublime de louvor que realmente é.
O conde Leon Tolstoy converteu-se depois de escrever suas melhores obras de ficção. Sua
mulher, Sônia, lastimou-se do fato de ele ter levado tão a sério a conversão. Tolstoy dedicou-se
a publicar folhetos religiosos e peças com fundo político (no interesse de ver os pobres da
Rússia tratados com justiça). Com fervor, libertou seus servos. Doou suas riquezas por causa do
amor a Cristo que acabara de descobrir. Tornou-se sapateiro, fazia suas próprias botas e viveu
_____________________________________________________________________________
9
FORBES, p. 151.
entre os pobres como pobre. Quando morreu, em 1910, alguns diziam que a Rússia tinha dois
czares. Um deles elevou-se às alturas da estima nacional por ter vivido uma vida sacrificial.
Seria uma bela história. Mas seus bons anos de romancista foram todos vividos antes da
conversão. A partir de então, produziu pouca coisa digna da arte. Mesmo assim, quando nos
lembramos dele, não são seus anos religiosos, mas seus anos artísticos que permanecem em
nossa memória. É triste precisar separar os anos de artista dos de vida cristã. Mas, afinal, os
cristãos quase sempre consideram a escrita de um folheto, mesmo sem muita qualidade, melhor
emprego do tempo do que a dedicação à escrita de um grande romance.
O cristianismo poucas vezes viveu em paz com as artes. O sentimento entre os cristãos é de que
as coisas bonitas perdem lugar diante do desafio das coisas urgentes. É hora de enfrentar os
fatos. Tanto a arte quanto a fé têm um foco comum: a vida. Tanto artistas quanto pregadores
procuram examinar a fundo qual a natureza da vida e como deve ser vivida.
Bem-vindo à arte! A graça é agora! Deus é agora! O louvor é agora! A arte é agora!
Pois bem, não podemos justificar a escrita de romances cristãos muito ruins como evidência de
que até os maus artistas estão dando o melhor de si? É claro que sim. O erro de elogiar a arte
inferior encontra-se no fato de impedir o interesse do espectador de penetrar além dos níveis
iniciais da excelência. O mesmo ocorre quando um cantor country escreve: "Jesus, dá-me um
chute de primeira, para dentro das traves do gol da vida". Essa canção talvez seja a melhor que o
artista consiga produzir, mas pode impedir para sempre que o ouvinte chegue até Handel. O
ideal é que a arte nos ajude a crescer na sede de excelência, e não estacionar em níveis ingénuos
de apreciação. Jesus deve ser louvado com as poesias mais delicadas, com as antífonas mais
exaltadas, com as formas mais grandiosas no mármore. Handel ansiava não somente por louvar
a Cristo, mas por fazer isso do auge do gênio humano.
Não foi no domingo na igreja, mas no sábado, no cinema Mecca, que fiquei me perguntando por
que os cristãos criticavam Branca de Neve e O mágico de Oz. Por que, pensava comigo mesmo,
os cristãos não podiam sentir prazer em assistir a Branca de Neve? Conforme já mencionei,
também condenava meus sentimentos em relação a Hopalong Cassidy, Lash LaRue e Gene
Autry. Entretanto, esses filmes desempenhavam na minha vida o que a arte devia desempenhar:
sair por um pouco da vida em Enid, Oklahoma, e do município de Garfield, que, segundo dizia
nosso pastor, estava prestes a "sentir a vara de Deus". Ele dizia também que as pessoas
precisavam desistir do fumo e do rapé, senão o Apocalipse chegaria e Jesus pisaria as uvas da
ira nas campinas planas e límpidas ao redor da igreja. A vaidade seria julgada primeiro.
Portanto, nada de artes! Nada de jóias! Nada de cosméticos! Nenhuma cruz dourada em nossas
construções eclesiásticas austeras, do tipo quacre.
O pior pecado era não haver grandeza de idéias em nossa igreja. Nossa igreja era pequena,
muito pequena, mas do tamanho certo para nossa visão de mundo. Nunca naquela igreja fui
levado a tomar consciência do tamanho do mundo em 1946. Nunca falávamos muito ali na
nossa igrejinha a respeito dos horrores de Auschwitz, na Polônia, mas apenas a respeito dos
abomináveis "pecados de Garfield de aspirar rapé". Acho que na década de 1940 Garfield estava
quase isenta de pecado comparada a Berlim, onde o império maligno, na sua cobiça do poder,
assassinava milhões de pessoas.
Nossa igreja estava presa em tamanha ingenuidade espiritual que nunca falávamos do
Holocausto. Confesso, para vergonha nossa, que isso não era considerado importante num
mundo em que um número muito grande de pessoas continuava fumando e indo ao cinema. Por
que tantas pessoas morriam na Alemanha e na Polônia distantes? Quem poderia dizer? Mas
acreditávamos secretamente que alguns nazistas deviam ter cheirado um pouco de rapé para
deixar Deus tão irado.
Em nossa igreja, tínhamos uma pequena gravura de Jesus. Ele era muito bonito, vestido de
púrpura, orando numa rocha no Getsêmani. Eu não sabia exatamente por que ele orava. Parecia-
me que estava orando pelas almas perdidas de Garfield. Havia muito pecado em nosso
município — muitas pessoas fumavam e jogavam baralho.
Aquele quadrinho não era arte perigosa. Jesus não estava conclamando uma reforma mundial ou
algo assim. Estava simplesmente orando, como nós devíamos estar, para que o reavivamento
chegasse a Garfield. Assim, as pessoas queimariam os baralhos e deixariam de comprar
cerveja.A arte entre os evangélicos ainda parece muito imatura. De alguma forma, falta-lhe
grandeza. Em meio à felicidade que centraliza nossa atenção, parece que a arte é irrelevante.
Somos um grupo feliz. Estonteados pelas guitarras, cantamos e balançamos com os corinhos
eletrônicos (antes, acústicos). Às vezes, falamos do céu, mas nunca do inferno. Sem o desespero
da eternidade, estamos ligados demais àquilo que Jesus pode fazer por nós aqui e agora.
No Museu do Prado, o reverente temor de Trindade, quadro de El Greco, me fez parar. Essa
pintura retrata Deus-Pai recebendo Deus-Filho de volta ao céu depois da crucificação, enquanto
Deus-Espírito Santo paira acima como um pombo. O cenário da pintura é o céu, pois a maioria
dos artistas dessa época acreditava no céu e o celebrava. Hoje, brilham poucas imagens de Deus
como essa. Estamos envolvidos demais no cristianismo do tipo "como fazer". Vegetais falantes
contam a nossos filhos histórias bíblicas sobre bom comportamento. Séries de vídeo instruem
nossos adultos a construir relacionamentos. O céu e o inferno nem são retratados, nem recebem
muita atenção; foram forçados pelas coisas do aqui-e-agora a ficar sentados no cantinho,
esperando até ser chamados.
A arte grandiosa que nos pode libertar está em falta, por algum motivo. A maioria dos
evangélicos se vê obrigada a reconhecer que, se alguém quiser mesmo ver arte e arquitetura
cristãs de fato grandiosas, terá de visitar as catedrais, pois a arte grandiosa não tem atenção nem
importância em nossas igrejas. É menos importante do que esportes e festas. As pessoas com
sensibilidade estética reduzida não conseguem inspirar a adoração mais transcendente. Às
vezes, é difícil dizer se na igreja temos a alegria genuína ou um simples caso de risos altos e
gratuitos. Ao nosso cristianismo falta uma beleza madura. Ele não tem arte que se harmonize
com nosso furacão de louvor rico em calorias. Estamos tontos com a cintilância, famintos de
grandeza.
Mas por que pararíamos para considerar as artes?
Por dois motivos: primeiro, a arte nos situa na condição humana; segundo, é o meio de os
artistas — cristãos — se caracterizarem.
CONCLUSÃO
Costumo dar uma palestra intitulada "Cristo e Prometeu". Na lenda grega, Prometeu é o titã que
furtou o fogo dos deuses do Olimpo e o deu à humanidade. O fogo é o próprio símbolo das
artes. E Prometeu, o do artista. Como castigo, Zeus acorrentou Prometeu a uma rocha onde um
abutre enorme vinha todas as manhãs e lhe arrancava o fígado. O fígado voltava a crescer
durante o dia, e era arrancado novamente na manhã seguinte.
Que artista não conhece a amputação visceral que a arte exige? Tanto a arte quanto a fé
conhecem essa agonia. Que servo de Cristo não anseia por entregar ao Senhor cada vez mais sua
vontade interior? Que poeta não se sente como se suas vísceras estivessem sendo arrancadas
pela necessidade de honrar a Jesus com arte maior do que o artista pode produzir? Desejamos
louvá-lo melhor do que louvamos — com arte muito melhor. Queremos tornar todas as coisas
pertencentes a Deus mais belas do que podemos.
O verdadeiro louvor, de qualquer tipo, é tão apaixonado que nos deixa fracos no final.
Nós amamos muito a Deus para cessar de retratá-lo, mas, nos abominamos porque nosso pouco
talento não consegue torná-lo suficientemente real. Continuamos, porém, nos esforçando!
Precisamos fazer o que conseguimos — tudo quanto for possível; qualquer coisa menos que isso
seria blasfémia.
John Donne, depois de não ter conseguido com várias tentativas obter nenhum emprego
importante na Inglaterra, decidiu que a homilética era melhor que o desemprego e aceitou um
trabalho de pregador. Entretanto, ele se saiu tão bem no ofício que se tornou deão da Catedral de
St. Paul em 1621. Durante os oito anos de seu ministério, três ondas violentas de peste bubônica
varreram a cidade de Londres, sendo que a última matou mais de quarenta mil pessoas. Em
1623, John Donne achou que contraíra a peste. Na verdade, seus médicos tinham total certeza
disso. Enfrentou com coragem a quarentena, mas, visto que rejeitava a justiça de Deus, achou
que ele o isolara com a enfermidade e o deixaria morrer.
Acamado e doente, ficava imaginando se os sinos que escutava estariam anunciando sua morte
iminente, que todos os seus amigos davam como certa. Confessou ter passado uma noite de
inquietude em que escutava amigos e médicos sussurrando no aposento ao lado e entendia que
se tratava de uma confirmação a mais de que estava morrendo. Os sinos de novo... estava
morrendo? Os sinos anunciavam sua morte? Ou tocavam por outra pessoa? Foi assim que
escreveu as linhas, agora famosas:
Nenhum homem é uma ilha: cada um faz parte do continente, parte da terra firme
[...] A morte de todo e qualquer homem me diminui, pois estou envolvido na
humanidade. Por isso, nunca mande saber por quem os sinos dobram; eles dobram
por você.12
O soneto de John Donne na verdade não é tão importante quanto a história do próprio Donne.
Não havia contraído a peste e voltou à pregação (que alguns davam a entender que era quase tão
ruim quanto a peste). Mas é a arte que de fato importa; ela é a alma do louvor. Certa vez, escrevi
estas palavras no meu diário:
____________________________________________________________________________
11
OUT of Africa, New York: Vintage Books, divisão da Random House, 1985, p. 42-3.
Venhamos exaltar a Cristo
com esculturas e estrofes,
caligrafia e bronze,
com óleo ou litografia,
vidro ou mármore,
com ouro derretido ou gelo,
bandeiras e brasões,
ele é Deus!
Digamos assim: Que as obras de nossas mãos
exaltem a Cristo em toda igreja.
Que nossa arte diga: "Prestem atenção em nosso Deus. Ele nunca pode ser enfadonho. Ele
redime e dá vida. Ele é eternamente belo".
_________________________________________________________________________
12
Devotion upon emergent occasions, The world treasury of religious quotations, p. 92.
Os que seguem a Deus com reverência fiel
e ardem no seu amor com devoção digna não
se distraem temerosamente da glória da
bem-aventurança sobrenatural por
nenhum impulso de injustiça.1
— HlLDEQARD DE BlMGEN
1
De Secrets of God, sei. e trad. Sabina Flanagan, Boston: Shambhala, 1996, P. 12.
2
De W. HEYWOOD, org., The little flowers of st. Francis of Assisi, New York: Vintage Books, 1998, p.
14.
3
Ditos dos Pais do Deserto, Take care of the sick, in: Andrew HARVEY, Org, Teachings of the Christian
mystics, Boston: Shambhala, 1998, p. 42.
Exercite o amor por coisas dignas
todos os dias, até que tudo que você ama
seja digno de sua prática.
______________________________________________________________________
4
Meditations, Near to the heart of God, comp. Bernard Bangley, Wheaton: Harold Shaw Publishers, 1998,
da leitura do dia 8 de julho.
CRISTO: O DESEJO
DO CORAÇÃO
Cristo é nosso tudo em tudo. A oração celta, chamada "Peitoral de São Patrício", convida a
importar-nos com Jesus. Devemos ficar tão absorvidos em Jesus que a consciência de sua
proteção e sua presença nos cerque.
Seja Cristo hoje meu forte protetor:
contra o veneno e as queimaduras,
contra o afogamento e as feridas,
com recompensas amplas e sobejantes [...]
Cristo a meu lado, Cristo adiante de mim;
Cristo em minha retaguarda, Cristo dentro de mim;
Cristo embaixo, Cristo em cima;
Cristo à minha direita, Cristo à minha esquerda;
Cristo quando me deito, me sento, me levanto;
Cristo de todos os que me conhecem,
Cristo na língua de todos os que se encontram comigo,
Cristo no olhar de todos os que me vêem,
Cristo nos ouvidos de todos os que me ouvem.5
Essa oração celebra nossa segurança, mas nosso ego está sempre no corre-corre atrás de saúde e
de bens.
"Creiam e sejam abençoados com riquezas!" Essa é a conversa e a sedução dos camelos
religiosos. Prometem: "Orem e fiquem ricos". Onde esses propagandistas conseguiram atrativos
tão irresistíveis para a fé? Parece que tanto o salmo 37 quanto o 23 dizem que crer é o anel
encantado no carrossel da vida. É só crer e estender o pano para coletarmos as moedinhas que
caem do céu. "Você ama a Jesus? Se o ama, as coisas boas da vida lhe são garantidas!", dizem
eles. Se o Senhor for seu pastor, não lhe faltará nada, nunca. Não haverá tempestade nos mares
da sua confiança, pois ele sempre o conduz a águas tranquilas! Você nunca mais terá fome,
porque ele o alimentará em pastagens verdejantes — você pode até cometer glutonaria! Ele lhe
dará todas aquelas coisas materiais que servem de abrigo e segurança na vida.
O MITO DO DINHEIRO
Frequentemente encontro pessoas que tentam intimidar-me com algum falso materialismo.
Certo dia, eu estava dirigindo para o centro da cidade com um amigo, e estávamos muito
atrasados para um compromisso. Em determinado momento, ele disse:
— Você fica no volante, e eu oro para Deus nos dar ura espaço no estacionamento, bem na
frente de onde vamos.
E assim fui dirigindo, e ele orando. Quando chegamos ao local, viramos à direita, e havia uma
vaga em frente à entrada. Quando entramos, perguntei:
— Como você fez isso?
— Meu Pai me ama muito — disse ele.
No ano seguinte, esse meu amigo comprou uma casa boa e espaçosa. Eu ainda estava morando
no "bairro barato", procurando amar mais ao Senhor que aos objetos. É claro que quando lhe
perguntei como conseguiu colocar aquela casa no orçamento, ele disse: "Meu Pai me ama". Em
seguida, comprou um carro novo! Você já adivinhou! Era porque seu Pai o amava! Cada vez
que seu Pai o amava com outra quantia de dinheiro jogada em cima dele, eu ficava cada vez
mais desanimado. Finalmente, percebi que estava indo para a cama no fim do dia, dizendo:
"Deus, o que tu tens contra mim?".
Foi durante esses dias que comecei a perceber que, se olhasse ao redor procurando evidências
materiais neste mundo de que Deus me amava, ficaria quase sempre decepcionado. O amor de
Deus é demonstrado pelo que ele fez por nós eternamente, não pelo que faz em nosso favor no
momento!
O amor e sua irmã, a graça, são os maiores de todos os atributos de Deus. Ele está sempre nos
oferecendo o seu amor em incontáveis formas. Por que chegaríamos a duvidar de que somos
amados? "Quando estiver triste", disse Bonaventure, "olhe para a cruz e veja quanto você é
amado".10 Ele prosseguiu comemorando o fato de que o Calvário é demonstração do amor de
Deus:
O bom Jesus, ó tão doce Jesus, tudo foi somente para nos demonstrar quanto nos amaste. Tu te
entregaste em nosso favor. A mágoa, as lágrimas, as cusparadas, a zombaria, a crueldade e as
ofensas, os chicotes, os pregos, o sangue, sofreste tudo isso por nós. E eu choro. 11
___________________________________________________________________________
9
First apology 15, Eberhard ARNOLD, org., The early Christians, Farmington: Plough Publishing House, 1997, p.
106.
10
Cit. Rawley MYERS, The saints show us Christ, San Francisco: Ignatius Press, 1996, p. 127.
11
Ibid., p. 126.
Francisco de Sales chamava o Calvário de "a colina do amor".12 No entanto, o amor que apenas
existe e se acomoda, a ponto de nada aprender, acaba sendo mero sentimento pegajoso. Somos
conclamados a amar, mas também somos conclamados a estudar e a ler, para que nossa
adoração seja bem informada. Nisso também Bonaventure nos aconselha:
Para crescermos nas coisas do Espírito, o amor deve andar de mãos dadas com a aprendizagem.
Em certa altura, devemos deixar o estudo para trás, enquanto o coração jubiloso corre adiante
para a dádiva que é o próprio Deus. No que se refere à devoção, especular não é suficiente.13
Por outro lado, a devoção nunca poderá ser bem-informada sem a disciplina do estudo.
Certa ocasião, a igreja que eu pastoreava foi arrombada. Que avaliação eu deveria fazer desse
fato? O templo metodista não foi arrombado. Deus amava mais os metodistas? Que justificativa
razoável vou arrumar para isso? Se eu argumentar usando a lógica material, avaliarei
erroneamente o amor de Deus? A verdadeira lição de Salmos 37.4 é que devemos confiar no
Senhor e nos deleitar no Doador, não nas suas dádivas. Se você receber algo de Deus e pensar
somente nisso que ele lhe deu, não vai perceber o propósito da generosidade dele. Se pequenas
coisas, como o oxigénio e os flocos de aveia, fazem-no lembrar da bondade de Deus e entoar
louvores a ele, as bênçãos materiais do Senhor terão um propósito nobre.
Um jovem procurou-me, não faz muito tempo, e disse:
— Dei à minha noiva uma aliança. Ela aceitou o anel e depois rompeu o noivado. Agora não
quer devolver!
— Dê graças a Deus por isso! — respondi.
— Como posso dar graças a Deus? Gastei todo o dinheiro que eu tinha para comprar aquela
aliança! — reagiu.
— Mas considere o caso assim: dê graças a Deus que a moça foi embora. Você não tem mais
nada com que se preocupar. Ela dava mais valor à dádiva que ao doador. Quem gostaria de se
casar com alguém cujo amor é tão indigno?
Mesmo assim, foi-lhe difícil agradecer a Deus. Quando recebemos presentes materiais de Deus,
devemos lutar contra nossa cobiça de querer cada vez mais. Os presentes materiais vistos como
dádivas de Deus são atrativos lamentáveis que nos mantêm servin-do-o apenas para ganhar mais
bens materiais. O salmista estava certo. É importante deleitar-nos no Senhor. Os bens materiais
não são deleites duráveis. Quando Deus não nos dá o que queremos quando desejamos,
precisamos lembrar que Jó definiu um princípio inviolável: "Embora ele me mate, ainda assim
esperarei nele" (13.15). É a palavra de um homem que perdera tudo, que já não tinha família,
nem dinheiro, nem casa, nem nada! Jó tivera um encontro com o dragão do "e se...?" e perdera.
"Continue confiando no Senhor", diz Habacuque, "mesmo quando os bens materiais faltarem".
Mesmo não florescendo a figueira,
e não havendo uvas nas videiras,
mesmo falhando a safra de azeitonas,
não havendo produção de alimento nas lavouras,
nem ovelhas no curral
nem bois nos estábulos,
ainda assim eu exultarei no SENHOR
e me alegrarei
no Deus da minha salvação (He 3.17,18).
Os maiores amantes de Deus são aqueles que amam a Jesus não pelo que lhes têm dado, mas
porque morreu por eles. Esse é o sinal mais valioso da bondade de Deus.
A espiritualidade torna-se mais madura quando chegamos a um conceito de prosperidade que
não se relaciona com o aspecto material. O grande pecado contra Deus é vivermos de maneira
que os outros não nos considerem ricos no sentido espiritual. Viver uma vida espiritual
esfarrapada leva os outros a pensarem que nosso Deus é um pai pobre. Não é preciso possuir
bens materiais para ter contentamento. Paulo escreveu de uma cela de prisão: "Aprendi o
segredo de viver contente em toda e qualquer situação". Paulo estava feliz? Como poderia não
estar? Estava cheio de amor pelo Doador.
É pecado transmitir má impressão de Deus] Quando não refleti-mos nossa vida rica de
_________________________________________________________________
12
Ibid., p. 319.
13
Ibid., p. 104.
discípulos de Cristo, reduzimos Deus à pobreza] Lembro-me de que havia uma mulher em nossa
primeira igreja que andava maltrapilha pelas ruas. Todos na cidade sabiam que ela frequentava
nossa igreja. Também sabiam que era muito rica. Além disso, era incrivelmente sovina. Quando
ia à mercearia, que era a loja principal da cidade, pedia que o vendedor quebrasse para ela um
talo pequeno de salsão, para não precisar comprar o maço inteiro. Com má vontade, ele atendia]
Todos da cidade sabiam que ela era uma batista aproveitadora. Fazia que os outros ba-tistas
invejassem os metodistas pela auto-estima que estes tinham. O testemunho daquela mulher ao
comprar um único talo de salsão deixava os anjos envergonhados e causava certa indignação no
Oni-potente.
O pecado do filho pródigo foi dar má impressão do pai. Quem visse esse moço no chiqueiro
comendo sabugos junto com os porcos acreditaria certamente que o pai não se importava com
ele. Nunca imaginaria que, em determinada casa, numa parede bem rebocada, havia um retrato
caro do jovem porqueiro sujo. Entretanto, o pródigo era amado por um pai que dia e noite sentia
forte compaixão pelo filho perdido. As Escrituras dizem: "Caiu em si". Levantou-se e foi para o
seu pai, que ficou muito alegre em recebê-lo de volta.
Aprenda a lição de Salmos 37.4: "Deleite-se no SENHOR". Demonstre que é um grande prazer
conhecer a Deus! Demonstre que o Pai é rico! Deleite-se em sua plenitude. Salmos 37.11 diz:
"Mas os humildes receberão a terra por herança e desfrutarão pleno bem-estar". A abundância
jamais se mede pelo que alegamos possuir.
Já pensei muito nos ladrões que roubaram nossa igreja. Você sabe o que um ladrão diz com a
vida dele? Uma confissão de pobreza: "Não estou completo. Se tão-somente conseguir furtar
isto, ficarei completo]". O contentamento não provém do que retemos, mas do que nos retém.
Taciano escreveu que nunca conheceremos a paz verdadeira se não renunciarmos nossos bens
mundanos e o corre-corre. "Morra para o mundo renunciando sua agitação e corre-corre. Viva
para Deus lançando fora o velho homem dentro de você, reconhecendo a natureza dele".14 Quem
dera reconhecêssemos que nossa perfeição é medida pela palavra grega teleiosl Em geral, no
Novo Testamento, teleios significa que Deus está operando nosso "acabamento". Quando
comparecerem à presença dele, os mansos não somente herdarão a terra, como também serão
revestidos da sua plenitude.
_________________________________________________________________________________________________________
1
The spring of contemplation, p. 170.
2
Cit. Richard FOSTER, A spiritual formation journal, página sem numeração.
3
Reaviva-nos de Novo, The Baptist hymnal, Nashville: Convention Press, 1975, p. 263.
Permaneça diante da magestade deDeus.
Deixe que o Seu explendor o silencie
Mas, depois de passado o silencio, você não
Não pode calar-se. Pois é tempo para
Antífonas e aleluias jubilosas
Estou-me ajoelhando
Diante do Pai, que me criou,
Diante do Filho, que me resgatou,
Diante do Espírito, que me purificou,
Com amizade e afeição.4
_________________________________________________
4
Carmina GADELICA I, cit. Esther DE WAAL, The Celtic way of prayer, p. 75.
EXPRESSÃO: O LUGAR
DO LOUVOR
A presença de Deus: ele me levantou
e me balançou como a um sino. Vi as árvores
em chama, retini uma centena de orações de louvor.5
Madeleine L'Engle disse certa vez que o louvor é semelhante aos sinos dobrando. Quando os
sinos retinem, o som metálico acorda todos em sua volta para a maravilha de Deus. Mas os
sinos produzem uma única tonalidade, e o volume de sua concentração não tem lugar para
nenhuma variação nem hipocrisia. O louvor a Cristo só é válido quando a mente não está
distraída. "Não tenham Jesus nos lábios e o mundo no coração", disse Inácio de Antioquia.6
Há leveza existencial em nossa celebração de todas as coisas eternas. O louvor é o maravilhoso
patrocinador desse estado elevado do coração. Não é alimento que fornecemos a Deus; é o pão
de Deus que nos alimenta — é a libertação da nossa alma. Quantas vezes fomos à igreja
cansados e esgotados? Talvez até tivemos de nos persuadir a ir à casa do Senhor. Mas, uma vez
ali, começamos a louvar a Deus. Não sentimos a menor disposição de louvar. Dificilmente se
diria que nossa adoração é espontânea. No entanto participamos e aos poucos nossa exaltação
começa a nos inundar com uma vibração calorosa — a vontade renovada de viver.
Apesar de tudo que já dissemos sobre as artes, é nesses momentos que o Cristo das belas artes é
deixado de lado em favor do Cristo da intimidade. Quando estou necessitado, não me mostrem
nenhuma obra de Ruben ou de Rembrandt — nenhum Cristo com vestes douradas, que habita os
salões do Louvre. Prefiro um carpinteiro vestido de pano de saco, que ficará comigo até que
meu silêncio seja preenchido com seu poder todo-suficiente. É quando passo a ter oportunidade
de viver minha vida com propósito. Quando sinto prazer em estar neste mundo, pois adquiro
novo ânimo para a vida.
E por que a vontade renovada de viver? Porque poucos de nós conseguem essa leveza
existencial enquanto estamos aos cuidados deste mundo. Temos a oportunidade de conhecer
Cristo de modo mais eficaz quando estamos sofrendo pressões. Nossas fraquezas sempre são a
porta melhor para Cristo entrar em nossa vida do que nosso autocontrole confiante. No decurso
dos tempos, os cristãos alcançaram melhor esse estado existencial quando eles estavam sofrendo
e havia outra pessoa no comando. Cantavam nas estacas em chamas que os martirizavam. Paulo
e Silas, surrados pelas autoridades dos tribunais locais até ficarem semi-inconscientes, louvaram
a Deus dentro do cárcere em Filipos. Quando, estando sob pressão, os cristãos cantam, seu
cântico alivia o sofrimento.
Dietrich Bonhoeffer escreveu: "Quanto mais velho o mundo se torna, mais ferrenho se torna o
conflito entre Cristo e o anticristo e mais eficientes os esforços do mundo para se ver livre dos
cristãos".7
Jesus é o epicentro da única realidade que importa. Na sensação de ter tocado o Filho de Deus,
grandioso e vivo, é que somos impulsionados a comemorar sua importante realidade. Isso
porque, antes de conhecer a Cristo, não tínhamos nem realidade, nem significado. Quando
_____________________________________________________________________________
5
Annie DlLLARD, Tickets for a prayer wheel, p. 123.
6
Cit. Rawley MYERS, The saints show us Christ, p. 88.
7
The cost of discipleship, p. 266.
Malcolm Muggeridge "redescobriu a Cristo", também se achou incapaz de libertar-se da alegria
do louvor compulsivo.
Muggeridge descobriu que o período que Jesus passou no deserto teve como apogeu a bath qol
ou a "voz alta", exclamando: "Esse é meu Filho amado!". As palavras emocionaram muito a
Jesus. Eram a afirmação de Deus em alta voz — a resposta nítida a Jesus — quanto a sua
natureza e ao motivo de sua vinda à terra. Falando de Jesus, Muggeridge disse:
Ele chegou a Cafarnaum pelo mar da Galiléia. Vejo-o como uma figura solitária, avançando
penosamente até a vista do lago descor-tinar-se diante dele. Sem bagagem, sem dinheiro, sem
perspectivas, sem planos, só aquelas palavras magníficas ainda ecoando-lhe nos ouvidos, e o
senso de exaltação diante do conhecimento de que de fato optara por dar a essas palavras uma
nova e tremenda realidade.8
Não há a menor dúvida da grandeza de Jesus. Mas nosso melhor louvor brota de algo mais. A
ação de graças é o magnífico motivo subjacente. A vitalidade do viver provém de uma fé
dinâmica, e essa fé resulta em celebração. O louvor brota da gratidão.
Gratos por tudo que Deus fez em nosso favor, sentimos uma sutil comoção no centro do
coração. Nossas ações de graças brotam dos sentimentos interiores de gratidão a Deus e a seu
Filho. Jesus é o centro de tudo isso. Ele veio como Deus Emanuel para viver em forma humana,
para experimentar nossa condição. Veio como o Cordeiro morto antes da fundação do mundo a
fim de sofrer a morte em nosso favor. Veio como o que vive eternamente, para triunfar sobre a
morte, a fim de que nós também nos tornemos vencedores na vida.
Não há dúvida de que a reação de todos os que o amam deve ser Aleluia! Esse louvor é a
própria definição de nossa necessidade de render-lhe ações de graças. Os que não querem louvá-
lo podem desviar-se do Cristo do altar interior e conhecer somente o Cristo dos teólogos. Os
teólogos nos prestam o enorme serviço da doutrina e da definição, mas nunca poderão gerar
nossa adoração. A adoração nasce quando as pessoas têm contato direto com Cristo e se sentem
levadas a expressar sua gratidão em profunda ação de graças.
Exaltando seu chamado como ministro, Francisco de Sales escreveu: "Vivo jubiloso e corajoso
[...] Pois se verdadeiramente ele estiver comigo, não me importo para onde vou [...] Ah! Meu
Deus! Como sou grato a esse Salvador, que nos ama, e como eu gostaria, de uma vez por todas,
de apertá-lo e atá-lo no meu peito".9
Oswald Chambers lembra que o louvor não é o único propósito de Deus. De outra forma, Jesus
teria passado ao céu diretamente do monte da Transfiguração.10 Deus tem um propósito para a
nossa vida, e nossa primeira obrigação é obedecer à vontade dele. Quando tivermos honrado a
Deus com nossa obediência, nossa íntima comunhão com o Pai nos inspirará o louvor cuja
glória desfará todas as nossas regras práticas de decoro.
Os galeses têm a palavra gorfoleddu para dizer "regozijo extático". Ela refere-se à exuberância,
ao louvor a Deus por toda a sua obra criadora.
Senhor, seja teu
meu louvor destemido!
O príncipe imaculado! Prepara o meu caminho
para servir e orar no teu santuário somente!
Senhor, seja teu
meu louvor corajoso!
O Pai das almas que anseiam,
Aceita este meu cântico e faze-o teu!"
Dar racionalidade a nossos cânticos contrabalança nosso êxtase com a reflexão. O êxtase
racional é sempre a melhor maneira de louvar a Deus.
Contudo, a agonia e o êxtase de nossa fé encontram-se entre nossa busca de Cristo e o encontro
dele. A busca do Senhor é a agonia da peregrinação cristã, e o encontro é a voz do nosso louvor
espontâneo.
_____________________________________________________________________________
8
Jesus rediscovered, New York: Doubleday, 1969, p. 10.
9
Thy will be dene, p. 227-8.
10
Oswald CHAMBERS, My utmost for his Highest, da leitura do dia 17 de maio.
11
O'LAOGHAIRE, The Celtic monk at prayer, cit. DE WAAL, p. 88
PERDA DA TRANSCENDÊNCIA, PERDA DO LOUVOR
Há uma relação maravilhosa entre o êxtase e a transcendência. Já notei que, quando os
adoradores ficam extáticos, olham para cima e para fora, além do teto da igreja. Não admira que
Catarina de Siena tenha escrito: "O êxtase tem o propósito de aumentar nosso anseio pelo céu: o
poder do amor em êxtase faz o corpo clamar com todas as forças pela união perfeita com o
céu.12
A obra-prima de Agostinho, A cidade de Deus, compara Jerusalém e Babilônia. Entre a cidade
dos homens e a "cidade de Deus" havia muitas diferenças. Babilónia, a cidade secular, era
temporal e estava satisfeita nessa condição. Jerusalém, no entanto, era a cidade transcendente, e
os anseios mais profundos da alma por essa cidade eram transcendentes.
No fim da era industrial, a idéia de transcendência espiritual ficou desgastada. Muitos teólogos
acreditam que a doutrina do inferno começou a desaparecer no fim do século XIX. Mas não
pode haver a mínima dúvida de que estava ausente nos sermões — mesmo nos sermões
evangélicos — no fim do século XX. Os testemunhos secularizados dominavam a teologia
popular. A verdade que transmitiam foi sendo enfraquecida, da transcendência robusta para a
importância do pragmatismo. Infelizmente, o sermão do tipo "prático" criou um cristianismo
"prático" que é o derradeiro e melancólico passo de uma igreja que perdeu sua expressão de
louvor.
A cultura secular está despojando a igreja dos últimos remanescentes celestiais de uma
transcendência em vias de desaparecimento. Em tempos passados, o cristianismo defendia a
realidade verdadeira. Essa realidade nos levava a irromper num louvor além da vivência física e,
portanto, adornado com um rico propósito. Tudo terminava num só tempo no céu ou no inferno.
Mas parece que o mero viver aqui-e-agora passou a ser o alvo inútil da igreja. Eric Hoffer disse
certa vez que a tecnologia é a humanidade martelando nos portões do Éden. É uma tecnologia
ufana que sempre quis recriar o paraíso do qual a raça humana foi banida. Quando a porção do
aqui-e-agora nos satisfaz, a porção celestial perde a razão de ser.
O êxtase precisa retomar seu lugar na vida monótona dos procedimentos da igreja. Precisamos
despertar de novo nossa alma. Estou cansado dos corinhos repetitivos, ou mantras cristãos, dos
nossos cultos; são cânticos que servem para nos entorpecer a mente em vez de engajá-la. São
cansativos também os sermões que celebram nossos bons aspectos espirituais em vez de nos
fazer ver novos panoramas de pensamento e de utilidade.
Queremos mesmo ser espontâneos quando às vezes somos incitados a bater palmas num corinho
de louvor?
Precisamos realmente de cifras e de símbolos para nos avisar quanto tempo devemos nos
demorar no mesmo grupo de palavras da nossa adoração perdida? Já é hora de deixarmos de dar
a impressão de que Deus é tão enfadonho quanto nossas ações de graças insípidas. Donald
McCullough escreve que nossa adoração "foi substituída pelo bocejo da familiaridade. O fogo
consumidor foi domesticado até se transformar numa chama de vela, talvez acompanhada de um
pouco de atmosfera religiosa, mas sem calor, nem luz ofuscante, nem poder de purificação".13
_ Lastimavelmente, chegamos a um louvor tão decadente que Deus parece um velho chato e
tedioso. Prometeu, de Goethe, era alguém que, tendo descoberto sua própria natureza criativa,
não se impressionava mais com Deus. "Fico aqui sentado", disse Prometeu a Deus, "formando o
homem segundo minha imagem, uma raça semelhante a mim, para sofrer, chorar, regozijar-se e
ficar alegre e, assim como eu mesmo, para não ter nenhuma consideração por ti".
Parece que a humanidade pós-moderna está tristemente livre de toda e qualquer necessidade do
Cristo crucificado. A raça humana já se salvou quando comprou sua redenção em Auschwitz,
em Mai Lai, nos Campos de Extermínio da Bósnia, na antiga Estalingrado. O horror de toda
essa cultura desumana propiciou uma teologia humanista em que o homem se tornou seu
próprio salvador. Existem muitos heróis culturais e seculares que morrem como mártires ou
cultuam sua própria glória, mas nunca reconhecem sua necessidade de Cristo e da
transcendência dele. A fraqueza resultante é o humanismo antropocêntrico que fala da boa
vontade humana, da fraternidade e do modo certo de pensar. Essas histórias são nobres, mas não
___________________________________________________________________
12
Mary Ann FATULA, Catherine of Siena's way, p. 113.
13
The trivialization of God, Colorado Springs: NavPress, 1995, p. 13.
são impulsionadas pelos mistérios eternos. Não podem, portanto, inspirar nenhum louvor real.
O século XX foi chamado de "o Século Americano". Geralmente é mencionado como o "triunfo
ianque" daqueles nobres homens e mulheres que procuraram realizar o sonho de um mundo
novo. Repetidas vezes, dedicam-se aplausos humanistas àqueles que edificaram os Estados
Unidos. Essa nação foi levantada em grande parte por pessoas de fé, mas os louvores vão para
os seres humanos. Deus é mencionado raramente.
De certa maneira, as formas de culto evangélico contemporâneas são narrativas desajeitadas
escritas num mundo pré-moderno. Mas depois da marcha vitoriosa da tecnologia, a cultura
ocidental tor-nou-se menos dependente dos livros para fornecer distração, entretenimento e
informação. A televisão está aí! A forma de obtermos informações se transformou. Nunca mais
nos satisfaremos apenas em descobrir algo. Agora, tudo que descobrimos deve vir até nós
coberto pelo brilho do interesse. Depois de 1950, a síntese desse interesse — quer pela
aprendizagem, quer pelo lazer — tinha de se expressar pela palavra "entretenimento".
Neil Postman, em seu criterioso livro, Amusing ourselves to death [Morrendo de tanto divertir-
se], assinala que a era da informática pode ser definida como a era do entretenimento. Essa
geração, mais do que todas as antecedentes, exige que as informações que consome lhe
cheguem de forma divertida. Ainda que as informações sejam substantivas ou extremamente
importantes, não são aceitas se não divertirem aqueles a que instrui. Dificilmente existirá um
grupo de louvor ou grupo teatral que não sinta agora essa exigência imposta na igreja pela
indústria do entretenimento.
Uma vez que a era da informática é também a era do entretenimento, a igreja tem muitas vezes
abandonado sua vocação de serva e acolhido novas companhias de atores do presbitério. O
objetivo principal da igreja no passado talvez tenha sido louvar, mas recentemente parece que
ela tem sido convocada principalmente para prender a atenção. A igreja entra na fila com os
demais mascates, tendo trocado suas doxologias gloriosas por "não há negócio como o negócio
do entretenimento
Parece que acreditamos que somos obrigados a fazer isso. É fundamental para a nossa
metodologia fácil. Todos sabem que é com novidades que se atraem novos membros. Sorrisos e
partidas de futebol são os principais agentes recrutadores da igreja local.
Mas existe um método melhor. Em vez de tentar programar nosso caminho para o sucesso, por
que não deixar que os interessados nos flagrem procurando substância interior? Em vez de
tentarmos fazê-los entrar no Reino mediante sorrisos ou risadas, por que não deixar esses
buscadores seculares entrarem na igreja e nos flagrar no ato de adoração genuína? Deixemos
que vejam esse fenômeno raro, e difícil de esquecer, de crentes que louvam a Deus com júbilo e
sinceridade. Ao experimentar esse mistério maravilhoso, é possível que queiram voltar para a
glória pura de vê-lo novamente.
O louvor é uma razão pequena demais para termos nascido? Lem-bro-me de certo convertido
que me perguntou o que os cristãos fariam durante a vida eterna, que lhe parecia ser algo
tedioso. Quando lhe respondi que vamos passar a eternidade glorificando a Deus, percebi que
ele ficou decepcionado com o "negócio do céu". Mas eu sabia, no íntimo do meu coração, que
para ele o louvor eterno parecia enfadonho porque nunca aprendera a louvar realmente.
No êxtase, existe substância, e é maravilhoso encontrá-la. Habitar na proximidade da luz de
Deus é alegria inefável e gloriosa. O louvor é nossa oferta ao Todo-poderoso. Por tudo que ele
nos tem dado, a gratidão é o único presente que podemos oferecer. O sacrifício dele foi a cruz, o
nosso sacrifício é o sacrifício de louvor.
Nosso louvor deve iniciar e encerrar cada dia. Devemos adormecer à noite na calorosa euforia
de saber que Deus é grande e deve ser louvado grandemente. Os celtas antigos tinham um hino
de louvor para o adormecer e um cântico de louvor para o amanhecer. Quando se deitavam para
a noite de sono, dirigiam-se à grande Trindade, a quem chamavam os Três do meu amor. Em
seguida, eles o louvavam no colchão pela noite que entrava.
Nesta noite me deito conforme convém
na comunhão de Cristo, Filho da virgem dourada,
na comunhão do gracioso Pai da glória,
na comunhão do Espírito de poderosa ajuda.
Nesta noite me deito ao lado de Deus, e nesta noite Deus se deitará ao meu lado, não me deitarei
nesta noite com o pecado, nem o pecado nem sua sombra se deitarão comigo.
Nesta noite me deito ao lado do Espírito Santo, e o Espírito Santo nesta noite se deitará ao meu
lado, nesta noite me deitarei ao lado dos Três do meu amor, e os Três do meu amor se deitarão
ao meu lado.14
CONCLUSÃO
Talvez seja necessário dizer mais uma palavra para finalizar. O louvor dos fiéis não somente
celebra a Jesus, como também celebra seu programa para o mundo. Não somente estamos
louvando a Jesus, mas também ao ideal que ele almeja para qualquer um que o chame de
Senhor. Teresa de Lisieux escreveu:
Eu gostaria de iluminar almas. Gostaria de peregrinar por este mundo e levantar a tua cruz
gloriosa nas terras pagãs. Mas não bastaria ter só um campo de obra missionária. Eu não ficaria
satisfeita enquanto não tivesse pregado o evangelho em todos os cantos do globo terrestre, até
nas ilhas mais remotas.15
O louvor sempre será a evidência animadora de que a igreja está contando a verdade — a
verdade arrebatadora e da qual ninguém pode se furtar.
Nosso louvor diz: "Vi meu Senhor crucificado. O íntimo do meu ser encontrou-se com o triunfo
da Páscoa". Quem poderia manter silêncio depois de ter entrado no túmulo e conhecido seu
vazio glorioso? Quem não testificaria com alegria: "Perdoem-mel Preciso exaltar e louvar com
cânticos antes que as rochas criem língua".
_________________________________________________________________________________________________
14
Carmina GADELICA I, cit. DE WAAL, p. 93.
15
The story of a soul, p. 153.
Fazer petições é declarar o que o coração
deseja, dando nome ao desejo que
expressamos na oração e na súplica.
na Oração do Senhor há sete petições
além da própria oração. 1
— MARTINHO LUTERO
________________________________________________________________
1
Cit. Richard FOSTER, org., Devotional classics, p. 132.
2
Ibid.
3
The spring of contemplation, p. 332.
Crie um círculo de oração.
Não, seja um círculo de oração.
Feche a circunferência de sua comunhão
com Deus em torno do seu
testemunho permanente.
____________________________________________________________________________________________________________
4
Suzanne NOFFKE, Catherine of Siena, Collegeville: The Liturgical Press, 1996, p. 18.
CENTRALIZAÇÃO: EVITAR O FASCÍNIO
ESTÉRIL POR DEUS
O AVANÇO DO MISTÉRIO
Nas profundezas da oração centralizada, encontra-se a quietude. A piedade da boca para fora é
esmagada pela majestade e silencia. Na majestade das últimas coisas, houve silêncio no céu
durante meia hora (v. Ap 8.1). Um teólogo empregou o termo mysterium tre-mendum (mistério
arrasador). No Santo dos Santos é proibido conversa trivial porque o ar fica por demais pesado
com a glória insondável.
Você se lembra de que Pedro pecou por puxar muita conversa na transfiguração? O silêncio das
coisas exaltadas geralmente leva os ingênuos a querer preenchê-lo com palavras. Isso porque
levam uma vida tão superficial que coisas mais profundas os deixam inquietos e faladores.
Devemos ser semelhantes a João naquela primeira Páscoa. Vendo o túmulo vazio, o reverente
temor da majestade não o deixava falar. Esse encontro quieto é o caminho direto para o centro.
Qual é o poder desse mistério? A proximidade de Deus. Qual é o último passo da proximidade?
O centro. Aproximar-se do epicentro do poder faz os prudentes se calarem. Somente os tolos e
os superficiais falam nesse caso. Isso é bom. Por quê? Porque a escuta faz parte da
centralização. A onisciência de Deus nos informa que não sabemos o suficiente e falamos
demais. Como é sábio o antigo provérbio que diz que Deus nos deu dois ouvidos e uma só boca
para escutarmos duas vezes mais do que falamos.
A oração, em seu aspecto mais elevado, é o encontro entre um Deus santo com um filho seu que
tem fome de santidade. Um filho purificado que anseia por valores puros diante do Deus que
satisfaz em primeiro lugar o discípulo faminto. A oração consiste em almas boas pedindo coisas
boas — e o melhor de tudo que é bom é o próprio Jesus.
Já dissemos que a oração pode ser a comunhão do acordo silencioso. Nenhuma palavra é
necessária para expressar a comunhão íntima entre Deus e cada um de nós. Mas a oração é um
diálogo, e Deus prefere que sejamos tagarelas na sua presença a jamais comparecermos diante
dele. Que pai ia querer excluir um filho só porque fala muito? Afinal, a maturidade acabará
ensinando ao filho prudente que o Pai é onisciente. Mesmo assim, embora o filho nunca deva
silenciar o fluxo avassalador de sua conversação imatura, é bom fazer um esforço para diminuir-
lhe a velocidade.
Isso é sempre uma fraqueza em nossa intercessão. Ela entra na sala do trono tão resoluta em
cumprir sua programação que prefere recitar seus pedidos a escutar para saber se Deus
realmente está querendo dizer alguma coisa. Por outro lado, quando vejo na televisão os
praticantes do evangelismo emocional, fica claro que estão arrebatados num inegável êxtase.
Mas, a maior parte é esbanjamento de emoções e um pouco de atletismo.
Nisso se encontra o grande paradoxo da vida centralizada. Escutar com calma é o meio de
entrar, mas às vezes a vida no centro fica esmagadora com a pressão do louvor. O mysterium
tremendum começa a inchar até se romper. Sua vastidão fica grande demais para o recipiente
humano. Então o crente é proibido de ficar sentado quieto, e o silêncio que inicialmente
introduziu o cristão para o centro de Deus cede lugar ao louvor que explode na glorificação
dele.
______________________________________________________________________
18
The spring of contemplation, p. 46.
19
Ibid., p. 18.
É importante, porém, que não glorifiquemos o meio de nossa centralização. É fácil orgulhar-se
para chegar ao centro de Deus não demoram para se esforçar mais em produzir um belo "jornal"
mais da técnica do que da união que queremos que ela realize. Alguns dos que fazem a jornada
(diário, reportagem) do que em se concentrar em Deus. Alguns dos que empregam cadernos de
anotações orgulham-se mais de sua obra escrita do que do tempo que passam com Deus.
Em nossa vida religiosa oficial, existem estruturas que bloqueiam nossa percepção e põem
gestos que servem de substitutos, como um tipo de imagem ou fachada simbólica. São como
uma prescrição ou receita em que se escreve: levante-se às 2 horas da madrugada, nunca escreva
para casa, nunca coma carne, nunca falte no coro [...] Antes de ser proféticos, precisamos ser
seres humanos autênticos que conseguem existir fora de uma estrutura, conseguem criar sua
própria existência...20
Não se deve conceber a centralização como êxtase petrificado. No centro, seremos
provavelmente tocados pela quase insuportável voltagem da presença de Deus. Ela é tão
explosiva que às vezes pode fazer irromper o louvor irrefreável. Sempre existe algo potencial-
mente dinâmico em nosso caminhar com Deus. Assim como os discípulos de Atos 2, não temos
a mínima possibilidade de ficar sentados em silêncio contemplando nosso próprio umbigo.
Nossa interioridade fica pequena demais para conter a imensidão de Deus. Assim como nossos
antepassados do Pentecostes à espera da visitação da glória de Deus, devemos dar espaço para o
vento e o fogo. E quando aparecerem as línguas de fogo, nossa urbanidade quieta pode ser
espatifada por nosso louvor espontâneo, do tipo "preciso expor tudo abertamente". Somos muito
semelhantes àquele cântico espiritual antigo que diz:
— Sente-se, irmão!
— Não posso me sentar!
— Sente-se, irmão!
— Não posso me sentar!
— Sente-se, irmão!
— Não posso me sentar! Acabo cie alcançar o céu e não posso me sentar!
Thomas More disse que sabemos que estamos nas profundezas da presença de Deus quando
notamos em nós mesmos uma santa tolice.21 Se a televisão religiosa a cabo nos parece uma
tolice santa, talvez devamos nos perguntar o que a santidade fria e intimidativa já fez em favor
deste mundo? Eu prefiro a santa tolice. A igreja faria melhor se riscasse um pouco de rastilho de
pólvora em vez de continuar para sempre festejando as suas teologias geladas.
A COMPREENSÃO DA BELEZA
O mínimo que Deus pode ser é belo! Considere o esplendor desse adjetivo que é onipresente em
nossos hinos: "Tão belo, tão bom"; "Jesus tão belo, Rei das nações"; "Ele torna todas as coisas
belas no seu tempo"; "Na beleza dos lírios, Cristo nasceu no além-mar".
Deus deve vestir-se com o adjetivo "belo".
Lindo pode ser, mas belo é lindo acrescentado de disciplina.
Não nascemos belos: adquirimos essas características como dádiva de nossa disciplina. Nem
todos podem ser bonitos (a mais automática e inútil das virtudes), mas a disciplina da oração
torna verdadeiramente belos todos os que se disciplinam. A beleza é em geral o canal da nossa
centralização.
Conheço um missionário com paralisia cerebral. "Bonito" é um adjetivo que nunca lhe coube,
mas "belo" é a palavra que o define. Sem dúvida, ele mesmo repudiaria essa noção. Ficou
estranhamente contorcido e aleijado durante toda a vida, mas seu andar com Deus é de passos
largos e planos como o vidro.
Uma das minhas peças prediletas de Tolstói é Memórias de um lunático. Nesse testemunho, o
conde Tolstói começa a história de sua peregrinação para a fé, a partir de sua infância. Sua babá
lhe contava na hora de dormir histórias do Salvador e sempre terminava com a crucificação,
para em seguida apagar a vela bruscamente e mandá-lo adormecer. Mas o jovem Tolstói não
conseguia conciliar o sono depois dessa leitura. Rogava que ela ficasse, acendesse de novo a
_______________________________________________________________________
20
Ibid., p. 109.
21
MORE, p. 11.
vela e lhe contasse por que as pessoas más crucificaram a Jesus, já que ele nada fizera de errado.
Insensível, Mitinka proibia-o de fazer perguntas e fechava a porta abruptamente deixando-o no
escuro. Trevas mais densas, porém, povoavam-lhe a mente. Tolstói confessou que quando era
criança chorava e batia a cabeça contra a parede, frustrado, pois queria saber tudo que fosse
possível a respeito do sacrifício de Jesus. Essa sua loucura continuou durante muitos anos. Vivia
com a necessidade insaciável de conhecer o Cristo crucificado no esplendor de sua redenção.
Mas tudo lhe ficava oculto, e somente anos mais tarde é que houve um instante de entendimento
centralizador. Depois, homem feito, recebeu a comunhão e imediatamente encontrou o Senhor
vivo da igreja. Suas perguntas melancólicas, destituídas de respostas, foram atendidas com fé
jubilosa. Num só momento, sua vida foi transformada em beleza.
Thomas More escreveu em Utopia que devemos tornar o menos ruim possível aquilo que não
conseguimos transformar em bem.22 Eu gostaria de acrescentar que devemos tornar belo na
presença de Deus aquilo que não conseguimos evitar que seja feio. Francisco de Sales dizia que,
dentro do possível, devemos tornar atraente nossa devoção a Deus.23 Talvez seja por esse
motivo que não devemos levar nossa santa tolice longe demais. Pular em cima dos bancos da
igreja talvez demonstre sua vitalidade em Cristo, mas não necessariamente sua saúde mental. E
Paulo, falando sobre o uso de línguas em público, disse: "Assim, se toda a igreja se reunir e
todos falarem em línguas, e entrarem alguns não instruídos ou descrentes, não dirão que vocês
estão loucos?" (ICo 14.23).
Catarina de Siena declara melhor o que penso a respeito: "Devo eu sempre, por causa da minha
infidelidade, fechar as portas à Providência Divina [...] Senhor, desfaze-me e quebranta minha
dureza de coração para eu não ser uma ferramenta que estrague a tua obra".24 Quero ter a
liberdade em Cristo de sentir a presença de Deus, mas o exibicionismo religioso, assim como
qualquer outro, macula a face de Deus para os que não crêem. Temos a obrigação de tornar a
nossa devoção a Deus tão atraente que todos aqueles que nos virem imersos na maravilha do
nosso louvor desejarão conhecer o objeto do nosso louvor.
_____________________________________________________________________________________________________
1
Ascent of mt. Carmel, p. 313.
2
Cit. Richard FOSTER, org., Devotional classics, p. 236.
3
Guardians of the singreale, epigrama de abertura, San Francisco: Harper
SanFrancisco, 1988, p. 10.
O Salvador eleva-se do monte das Oliveiras,
dissipa-se no céu e desaparece.
O Espírito vern, mas como?
Ouça o que o vento fala
à chama.
O amor rugiu.
E então o tríplice mistério do Espírito Era um só.
4
The song, Downer's Grove: InterVarsity Press, 1978, p. 192.
MISTICISMO: MANTER
CONTATO COM O ESPÍRITO SANTO
Místico" é um adjetivo maravilhoso que aplicamos a tudo que tem significado definitivo e
essencial, mas foge ao nosso entendimento. No tocante à vida espiritual, a realidade mística é
um lugar de convergência de duas estradas: a do mistério e a da paixão. Quando o mistério e a
paixão se encontram, ficamos quase sempre desnorteados, mas nunca entediados. Nessa união,
às vezes ansiamos mais por Deus e o compreendemos menos. Experimentamos a maravilha
acolhedora e exótica que nos avisa que estamos nos aproximando de Deus. Ele não se declara a
nós — isto é, ele não pode se declarar. Ele é imenso demais, e nós, finitos demais. Nosso
cérebro pesa apenas cerca de 1 500 gramas. Como esses órgãos humanos tão leves e pequenos
poderiam acolher a plena descrição do Deus grandioso? A mais poderosa de todas as paixões
concentra-se em coisas por demais maravilhosas para ser compreendidas. Verdades tão grandes
assim afetam profundamente nossa vida, e sentimos o peso da glória.
Onde está o centro dessa paixão — dessa exultação que dá ao mistério o seu poder? O Espírito
de Deus fornece toda vitalidade autêntica. Concede a vida e cria o propósito. Seus símbolos são
a chama e o vento. Não existe nada que nos inflame a vida como o bendito Espírito de Atos 2. O
fogo e o vento impetuoso são suas águias gêmeas. O Espírito penetra nossa filosofia obtusa, rasa
e materialista como um fogo impulsionado pelo vento que impede que nossa fé seja morta e
nossas confissões destituídas de vida.
Quando Isabel da Hungria foi canonizada no século XIII, ganhou seu próprio dia — 17 de
novembro — no calendário dos santos da Igreja Católica. Não me importo muito com os dias
dos santos, mas há muito tempo Isabel me intriga. Ela nasceu em 1207 e, quando alcançou idade
para casar-se, ficou "loucamente apaixonada" por Luís IV, nobre da Turíngia. Existem muitas
histórias apócrifas da vida dela, mas todas convergem para seu caso de amor com Luís IV.
Estava tão apaixonada que se deixava tomar por um desejo ardente sempre que o via. O
casamento com Luís IV só serviu para aumentar o ardor. Ela segurava a mão dele e chorava
pela deliciosa alegria de ser sua mulher e amante. Quando Luís resolveu sair numa cruzada, ela
ficou arrasada. Implorou-lhe que não fosse, mas ele foi. E, para sua maior tristeza, seu amado
morreu na cruzada.
Após a morte de Luís IV, Isabel ficou vagando triste e enlutada pelos corredores do castelo. Aos
poucos, a amarga solidão começou a ser preenchida com a substância do Salvador.
Gradualmente, sua paixão humana transferiu-se para Jesus. O romantismo que conhecera com
Luís tomou direção espiritual. Isabel se entregou a Cristo. A glória de Deus estabeleceu-se em
sua vida. Agora ela pertencia a Jesus. Deu o que tinha aos pobres e esvaziou a tesouraria do
marido com sua caridade para com os necessitados da Hungria.
A paixão de Isabel por Cristo e sua dedicação total à glória de Deus suscitaram nela o mistério
da piedade e o amor incontido. Sempre que essas qualidades se reúnem, Jesus volta a andar pela
terra. O Pentecostes renasce. "Obediência" é a senha. A adoração é a mística. Deus espera
aqueles que hão de amá-lo e têm sede da excelência infinita, que não se pode compreender.
Quando anelo por Cristo, sempre vou ao encontro dessa excelência. É terra cognita, território
conhecido, cujo acesso passa pela ponte do anseio. Mas o caminho desse anseio pode levar a
becos sem saída, à decepção. Às vezes, mesmo quando sentimos sede de Deus, nosso anseio é
tragado por nossa necessidade.
A derradeira sede remidora ainda será transformada na glória da sua imagem — para sermos
conforme à imagem de Cristo. Paulo expressou de muitas maneiras esse desejo de conformar-se
à imagem do Senhor, mas minha forma predileta aparece em 2Coríntios 3.18: "E todos nós, que
com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo
transformados...". Aqui temos o oposto de Narciso. Moço grego infeliz! Apai-xonou-se por sua
imagem refletida na água de uma fonte e morreu procurando inutilmente apoderar-se dela. Nós,
por outro lado, olhamos num espelho, vemos a Jesus e recebemos vida no desejo de ser iguais
ao Cristo de nosso espelho.
"Em outras palavras", diria o apóstolo, "pendure um quadro de Cristo na galeria do seu coração.
Resolva com determinação que você será uma reprodução viva desse quadro, e seu desejo fará
isso acontecer no decurso do tempo".
Não preciso compreender os mistérios que estão além de qualquer compreensão. Preciso apenas
ter alguma experiência deles. Mas estou ávido para encontrar o lugar em que Cristo se
apresenta. Não consigo, pelo poder espiritual de minha sede fraca, atrair sua presença. Mas, se
eu escutar e examinar a paisagem do meu tédio espiritual, ainda consigo ouvir o rugir do vento e
ver as chamas dançando. Então, precipito-me para entrar em sua realidade afável e saber que
tudo quanto procurei — a realidade do céu, o trono elevado de Deus — é realidade mesmo.
O que se acha por trás desse impulso? O próprio Espírito! Fico absorvido em minha necessidade
de encontrá-lo. Já sorvi desse fogo, mas nunca foi suficiente. Eu imaginava que era suficiente
quando senti os ventos fortes e vi as chamas. Mas sempre que o céu toca a terra, brota uma
estranha sensação inebriante. O desejo de tornar-se semelhante a Cristo é compulsivo. Ao
provar de Cristo, sentimos necessidade de experimentá-lo sempre mais. Depois de ouvir a Cris-
to, não conseguimos descanso enquanto não o ouvimos de novo. Não tenho plena certeza se foi
sobre ele que T. S. Eliot escreveu em The four quartets [Os quatro quartetos], mas ouça o
clamor do poeta a Deus e pergunte-se quanto tempo passou desde a última vez que você entrou
em contato com esse mistério.
O pombo quando desce rompe os ares
Com chama de terror incandescente
Da qual as línguas declaram
Aquele que é inocente de pecado e erro.
A única esperança, senão o desespero,
Encontra-se na escolha entre uma pira e outra —
Ser redimido do fogo pelo fogo.
Quem, pois, concebeu o tormento? O amor.
O amor é o Nome desconhecido
Por detrás das mãos que teceram
A intolerável camisa de chamas,
Que o poder humano não pode remover.
Vivemos apenas, tão-somente respiramos
Consumidos pelo fogo, ou pelo fogo.3
Eliot era místico demais? De modo algum. Na mística, está a realidade da vida. Desaparecendo
o mistério, também desaparece a igreja — pelo menos, a vitalidade dela. Creio que estamos
neste momento numa etapa avançada de declínio espiritual. A não ser que descubramos como
conseguir trazer o mistério de volta à igreja, sua vitalidade continuará diminuindo. Já levamos
longe demais o sistema "prático". Precisamos recuperar o vento e o fogo inescrutáveis de nossa
comunhão.
RECUPERAR O FOGO
É lastimável que os evangélicos tenham deixado de edificar santuários e começado a construir
auditórios. Parece que isso declara que trocamos o mistério pelas conferências. Nunca fomos
bons no mistério, na fumaça do incenso, em rituais nem em súplicas veladas. Não temos
incenso. Não temos templos. Só temos auditórios em forma de caixas, com teto baixo e luzes
de teatro. Nós nos transformamos em pessoas simples e pragmáticas. Não tenha dúvida disso:
__________________________________________________________________________
5
San Diego: Harvest Books, 1968, p. 143-4.
depois que o pragmatismo tiver completado seu curso, só restará a morte. Precisamos desistir de
fazer de Deus uma divindade prática que só existe para nos levar ao sucesso.
Um pastor que conheço planejou um reavivamento. Para conseguir o forte efeito que achava
necessário, convidou um evangelista "inflamado" para estimular vivacidade nos membros e um
pouco de emoção na sua velha igreja sem vida. Numa das noites de reavivamento, a
congregação sóbria sentiu as chamas da confissão e da necessidade espiritual. A antiga mesa de
comunhão, inativa durante tanto tempo, ficou cercada de arrependidos que choravam. A alegria
foi contagiante. Na noite seguinte, porém, o pastor pediu desculpas por ter deixado que a igreja
ultrapassasse os limites da emoção. O fogo, ainda uma ténue chama que rogava uma
oportunidade de se transformar em verdadeiro fogo avassalador, foi totalmente apagado pelo
extintor da prática religiosa sóbria. O Espírito Santo não os visitou de novo.
Que pena! Não existe vida no pragmatismo, nenhuma vitalidade nos trabalhos habituais,
rotineiros. Precisamos ter o Espírito, ou seremos apenas pessoas superficiais, pequenas e
explicáveis. Não admira que Karl Rahner tenha dito que o cristão do futuro ou será místico, ou
terá desaparecido completamente.6
Há muito tempo, existia um grupo de pessoas em Efeso que se consideravam cristãos
verdadeiros. Com a diferença de terem vivido mais de dois mil anos antes de nós, sem o império
de publicações e mídia cristãos, essas pessoas tinham a aparência e muitos costumes típicos da
classe média alta. Imaginando-os em nossos dias, usariam uma fotocopiadora de última geração
para reproduzir o boletim da Escola Bíblica Dominical, usariam um moderno projetor multi-
mídia para projetar a letra de seus cânticos de louvor e jogariam muito futebol em nome de
Jesus.
Atos 19.1,2 não diz exatamente como Paulo conheceu esses crentes, mas, quando isso
aconteceu, sentiu-se compelido a perguntar:
"Vocês receberam o Espírito Santo quando creram?". Resumindo, a resposta foi: "Não
recebemos. Na realidade, nem sabemos o que é 'Espírito Santo'", confessaram os confusos
efésios.
Não devemos culpar os efésios por essa confusão. Infelizmente, tenho quase certeza de que a
culpa toda era de Apolo. Ele era o pregador popular daqueles dias e "lotava os bancos da igreja"
— mil anos antes de existirem bancos — de pessoas que queriam ouvir seus sermões.
Dominava a técnica homilética do "quebra-gelo" e era difícil escutar seus sermões, pois os
aplausos eram frequentes. Os gritos e vivas interrompiam o fluxo de seus discursos, feitos em
ambientes onde costumava não restar lugar para sentar.
Apesar disso, não era fácil achar boa teologia em seus sermões. Era impossível encontrar neles
o Espírito Santo. Nos melhores momentos da história eclesiástica, o Espírito Santo dominou e
revestiu de poder o sermão cristão. Mas nunca foi fácil encontrá-lo no culto. Apolo não era uma
anomalia — alguém que apareceu uma única vez e morreu. Apolo sobreviveu ao tempo, em
todas as gerações que procuraram e procuram substituir o fogo pela agitação. Jesus é a única
alternativa autêntica a essa "agitação". Quando sentirmos sede de Jesus, veremos o Pentecostes
— não um pentecostes criado por campanhas publicitárias e aeróbica cristã. Encontraremos a
igreja transbordando de discípulos que anseiam pelo Senhor — cada um deles como uma página
em branco entregue a Deus pedindo sua orientação.
Uma igreja de joelhos não ganha campeonatos esportivos. Na realidade, nem sequer se importa
com eles. Annie Dillard escreveu:
De modo geral, não acho que os cristãos, fora das catacumbas, estejam
suficientemente inteirados das condições. Alguém tem a mínima idéia de que tipo
de poder estamos invocando tão levianamente? Ou, conforme estou suspeitando,
ninguém crê em nada disso? As igrejas são como crianças brincando no chão com
seus conjuntos de química, misturando um lote de TNT para fazer hora num
domingo de manhã. É loucura as damas usarem chapéu de palha na igreja.
Deveríamos todas usar capacete. Os introdutores deveriam distribuir salva-vidas e
sinais luminosos, deveriam pren-der-nos com cinto de segurança nos assentos. Isso
porque Deus, que parece estar dormindo, pode acordar um dia e ficar ofendido, ou o Deus
acordado pode nos levar a um ponto de onde jamais conseguiremos voltar.7
_________________________________________________________
6
Mary Ann FATULA, Catherine of Siena's way, p. 13.
7
Teaching a stone to talk, New York: HarperCollins, 1988, p. 40-1.
Como brincamos levianamente com o fogo! Como o desprezamos!
Corremos entre os púlpitos populares e os salões de concertos religiosos, exclamando:
"Procurem! Procurem! Cristo está aqui? Está ali?". Ficamos semelhantes a Diógenes. Lançamos
a luz da nossa lanterna nas fissuras homiléticas do pós-modernismo, exclamando: "Procuramos
o Espírito que reveste de poder, mas dê-nos o Espírito de Atos 2, se não se importa. Gostamos
do jeito que ele sempre fazia coisas inexplicáveis".
Sem dúvida, existem outros espíritos falsificados. Existe o espirito de artista de concerto, que
sabe quando deve estalar os dedos. Existe o espirito politicamente correio, que pode ficar
falando o culto inteiro sem ofender nenhum grupo minoritário ou de preferência sexual. Existe o
espírito institucional, que expressa sorridente suas preferências sobre cada programa específico.
Existe o espírito ecuménico, que é tão tolerante que joga copas com os fariseus e bridge com os
herodianos. Esse espírito é tão tolerante que convenceu muita gente de que crer menos é melhor
do que crer mais, que a aceitação mútua é melhor quando se baseia em ideias pequenas.
Desse modo, vivemos numa geração que acredita que a tibieza é boa. Encaixa doutrinas
espinhosas nos mesmos bancos almofadados das igrejas sem deixar que nossas bordas cortantes
incomodem uns aos outros. A fraqueza isola a paixão fria, cercando-lhe, até que esta se sinta
mais à vontade. A pusilanimidade é um pára-choque doutrinário. Quando as várias cristologias
se encontram, a debilidade é melhor que os plásticos de bolhas de ar para proteger as arestas
sensíveis das nossas tradições religiosas que antes eram importantes e individualizadas.
Essa flacidez espiritual é fabricada em vários lugares em todas as partes do reino. Existe a
tendência sempre presente de pensar que, se fôssemos mais inteligentes no conhecimento da
Bíblia e se consultássemos os doutores no templo, ficaríamos mais próximos do vento e do
fogo. Infelizmente, porém, não podemos alcançar a vitalidade espiritual por meio dos estudos.
Catarina de Siena disse que era muito melhor andar segundo o conselho de uma pessoa sem
cultura, mas que conhecesse a Deus, do que confiar na erudição de um intelectual orgulhoso.8
Não podemos acabar com nossa apatia espiritual usando a educação.
CONCLUSÃO
A única pergunta válida para qualquer pessoa da igreja é: "Você recebeu o Espírito Santo
quando creu?". Como conseguimos perceber que o Espírito Santo está presente? Quem pode
descrever todos os aspectos do seu modo de operar? Quando ele chegou pela primeira vez em
Atos, sua vinda parecia marcada por uma espécie de delírio, todos balbuciavam em línguas que
nunca tinham aprendido e agiam, de certo modo, como se estivessem embriagados. Talvez
estivessem: inebriados pelo Espírito. "Não se embriaguem com vinho, que leva à libertinagem,
mas deixem-se encher pelo Espírito", disse o apóstolo. Embriagar-se do Espírito. É um vício
glorioso. Se tomarmos um só gole, nós, os pneumatólatras, precisaremos de mais do Pneuma!
Talvez não sejamos de todo doutrinários nem nitidamente teológicos, mas estaremos com vida,
e a vida encontra-se no vento e no fogo. O vento que sopra para desorientar nossas convenções
sociais. O fogo que reduz a cinzas nossa necessidade de programas impressos e estatutos sociais
rígidos. Essa vitalidade na adoração quase sempre surge no meio daquilo que podemos chamar
de caos glorioso!
Quando cheguei pela primeira vez às Filipinas, ao Seminário Ba-guio, estava atravessando o
campus quando um cidadão filipino apro-ximou-se de mim. Ele estava levando um saco plástico
transparente, dentro do qual havia um exemplar do meu livro, The empowered leader [O líder
capacitado].
— Comprei esse livro no ano passado — disse ele — sem a mínima ideia de que teria a
oportunidade de conhecer o senhor.
— Por que você o guarda num saco? — perguntei.
— Ora — respondeu —, custa um pouco caro. Gosto muito desse livro e não quero que fique
sujo. Quero mantê-lo limpo.
Ele via meu livro como se fosse o Codex Sinaiticus. È difícil não gostar de alguém que carrega
o livro da gente num saco de plástico por medo de que fique sujo.
9
Ibid., p. 103.
— Gostaria de saber — disse ele — se o senhor estaria disposto a vir pregar para o meu povo?
Sei que gostariam de ouvi-lo pregar.
— Claro — respondi. Eu não sabia realmente se isso era da vontade de Deus, mas parecia, já
que meu novo amigo estava levando meu livro para cima e para baixo num saco de plástico.
— Agradeço muito — disse. — Meu nome é Ifagao — continuou — e preciso viajar oito horas
de ônibus para chegar ao seminário.
Marcamos uma data. A irmã dele também era pastora pentecostal, de modo que persuadi o
presidente do Seminário Baguio a também pregar na igreja dela, e começamos nossa longa
viagem de carro pelas montanhas de Benaue. Sempre imaginei que os estudantes fossem o
melhor exemplo da palavra "pobre". Mas ali descobri uma definição nova de pobreza. No
entanto, em meio aos pobres vi as riquezas gloriosas do evangelho para todos aqueles que
vivem essa situação. Jesus é um grande tesouro para todos. E eles são enriquecidos pelo amor
de Jesus — e como o amam! Nem o pastor, nem nenhum membro da igreja tinha carro.
Cantamos corinhos escritos em folhas enormes de papel-jornal com marcadores feitos de caixo-
tes. Preguei sobre a importância de ter paixão por Cristo, mas o sermão era totalmente
desnecessário. A paixão por Cristo era a maior virtude daquela igreja.
O pastor me pedira para convidá-los a participar, embora não parecesse necessário: mal
tínhamos começado a cantar, pareciam vir para a frente em massa. Há muito tempo, sou batista.
Estava acostumado a não ver ninguém indo à frente, mesmo depois de repetir os versos do
cântico "Tal qual estou". Por isso fiquei assustado ao ver tantos vindo para a frente. Foi como se
estivessem precipitan-do-se sobre mim como os filisteus no quarto de Dalila.
O que me deixou mais atónito foi o senso de confusão e de desordem. Caos! Bendito caos!
Todos ao mesmo tempo sentindo sede de Deus. Todos desejando, estendendo a mão, chorando
pela intimidade com o Senhor. Rindo com o prazer da sua visitação. Não conseguia lembrar a
última vez que fiz um apelo, e havia tantas pessoas no altar que fiquei confuso ao perguntar-lhes
por que todos tinham vindo à frente.
O pastor Dumia estava à disposição para ajudar-me a tentar levar alguns a Cristo e outros à
reconsagração. Era uma desordem. Todos estavam só tentando nos fazer orar, e finalmente não
tive a mínima ideia do que estava acontecendo. Para complicar as coisas, havia muita gente
enferma pedindo oração. Então o pastor Dumia disse:
— Vou aconselhar os perdidos; você pode cuidar das curas?
— Por favor, pastor — implorei —, sou batista. Não oro por curas. Quando nós, batistas,
ficamos doentes, tomamos remédios. Não sou bom nessas coisas.
— É só orar pelos enfermos — é só isso que você precisa fazer, é só orar.
E orei mesmo. Dentro de trinta ou quarenta minutos, o caos acabou, mas nunca me esquecerei
da sensação espantosa de que havia pessoas enchendo o salão todo e de que Deus estava
realizando coisas na vida delas. Muitas vezes, tenho dado graças a Deus por esse caos glorioso.
Agora sei o que faltava em Éfeso. Sei onde Apolo havia falhado. Conheço a glória do alvoroço
divino que surge na visitação de Deus, que nem sempre é ordeira.
Amor non tenet ordinam — "O amor não se preocupa com a ordem", disse Columbano.10 Na
realidade, se é para confiarmos em Atos 2, o caos é uma maneira melhor de medir a visitação de
Deus do que uma ordem de culto impressa num boletim. O fogo caótico de Atos 2 é o único
fogo que tem importância. Por isso anseio pela chama santa.
Jesus é a única refeição para os que têm fome espiritual. Procuro-o nos caminhos comuns e
também nos mais excelentes. Quando vier o fogo, e eu sentir o seu calor, conhecerei o mistério
que redime. Não se trata de conhecer melhor os dogmas da fé. Continuo compreendendo bem
pouco, mas não somos chamados para entender tudo sobre Deus, apenas para ficar atentos a ele.
Sei que, quando me aproximo de Deus, sou prisioneiro da única realidade que existe. A
realidade do Mistério Divino.
______________________________________________________________________
10
Cit. Esther DE WAAL, The celtic way of prayer, p. 8.
Em meio à alegria da vida,
a traição de outros e a nossa própria
infidelidade às vezes nos forçam,
pela dor, a questionar se existe no mundo
alguma coisa ou pessoa digna
de confiança ou leal até o fim.1
— CATARINA DE SIEMA
A Ecclesia Chrísti,
a comunidade dos discípulos,
foi arrancada das garras do mundo.2
— DIETRICH BONHOEFEER
______________________________________________________________________
1
Mary Ann FATULA, Catherine of Siena's way, p. 61.
2
The cost of discipleship, p. 272. [Publicado em português com o título Discipulado (São Leopoldo:
Sinodal, 2002).]
3
Thy will be done, p. 228.
Quando a luz brilha nas trevas,
as trevas simplesmente vão embora
ou se transformam em luz?
O Deus! Não sabemos quem tu és! "A luz brilha nas trevas" (Jo
1.5], mas nós não a vemos. Luz universal! Somente por ti
conseguimos enxergar alguma coisa. Sol da alma! Tu brilhas
mais forte do que o sol no céu. Dominas sobre tudo. És tudo
quanto vejo. Tudo mais desaparece como uma sombra. Quem
nunca te viu, nunca viu nada. Vive uma vida de faz-de-conta, um
sonho.
Eu, porém, sempre te encontro dentro de mim. Trabalhas por
meu intermédio em todo o bem que levo a efeito. Quantas vezes
fui incapaz de refrear as minhas emoções, resistir a meus hábitos,
subjugar meu orgulho, seguir minha razão ou manter-me firme
no meu plano! Sem ti, sou um "caniço agitado pelo vento" (Mt
11.7). Tu me deste coragem e tudo que experimento de decente.
Tu me deste um novo coração que nada deseja senão o que tu
desejas. Estou nas tuas mãos. Para mim, é suficiente fazer o que
tu queres que eu faça. Para isso fui criado.4
— FRANCOIS FÉNELON
4
Meditations and devotions, cit. Bernard BANGLEY: Near to the heart of God, Wheaton: Harold Shaw
Publishers, 1998, da leitura do dia 10 de novembro.
CHEGAR ÀS PROFUNDEZAS DESCOBRINDO
NOSSO CHAMADO
Booker T. Washington, em Up from slavery, disse que, quando era jovem, todas as manhãs, os
escravos eram despertados pelo canto do galo muito antes do amanhecer. Quer o novo dia
estivesse escuro como breu, quer não, aquele galo era o chamado para os escravos se porem em
pé na choupana e partir para o trabalho no campo. Então, foi proclamada a Emancipação.
Lincoln decretara! Os escravos estão livres! Na manhã seguinte, o jovem Booker foi despertado
pelo som de sua mãe correndo com um machado na mão atrás daquele galo no quintal. A
Emancipação foi pesada para os galos de toda a região sulina. Naquele mesmo dia, os
Washington fritaram seu despertador e o comeram no almoço. Antes da Emancipação, a falsa
vocação deles era ditada pelo canto ritual interminável do galo. Mas agora, sua verdadeira
vocação era um grito maravilhoso de liberdade.
Tenho a impressão, mas são sei como provar, de que as pessoas que têm vida mais longa são as
que sabem por que vivem. Quando entramos nas profundezas, não somente descobrimos quem
somos, mas também o que Deus tem para fazermos. Então é a glória das glórias: descobrimos
que são a mesmíssima coisa. O que Deus tem para nós fazermos é aquilo que somos. É melhor
viver uma década e saber por que se vive do que viver um século sem a mínima idéia.
Talvez a melhor coisa que aconteceu a Booker foi que, pela primeira vez na vida, tinha motivo
para viver. Mesmo ainda criança, tinha uma vaga ideia de por que estava no mundo. Todo pai
deve ajudar o filho a identificar o que Deus significa para ele e o que ele significa para Deus.
Quando uma criança chega a compreender o que Deus tem para ela fazer na vida, também
compreenderá o seu significado para Deus. E o primeiro dia que o jovem Booker não precisou
levantar-se foi também o primeiro dia em que realmente quis se levantar por seus próprios
motivos. A paixão de uma vocação o deixara em chamas.
O chamado de Deus é uma peregrinação marcada para sempre pelo fato de comermos nosso
despertador. Recebi meu chamado para o serviço cristão no fim da adolescência. Por algum
tempo depois disso, continuei trabalhando para meu cunhado todo verão. Dirigia um caminhão
de trigo entre Pond Creek, em Oklahoma, e Presho, em Dakota do Sul. Todo o verão, levantava-
me antes do raiar do dia para aplicar graxa nas nossas ceifadeiras combinadas de propulsão
independente Massey-Harris. Passei a odiar o despertador por me acordar para esse suplício.
Foi então que, no verão de 1956, uma igreja batista pequena no norte de Oklahoma chamou-me
para ser seu pastor. Eu sabia que nunca mais teria de me levantar cedo para engraxar as
ceifadeiras combinadas. Tinha certeza da minha vocação para pregar. Com efeito, comi meu
despertador. Durante os quarenta anos seguintes, tive de me levantar cedo para pregar, mas da
mesma forma que Booker, sabia que estava me levantando cedo porque queria, não porque era
obrigado a isso.
Nossa vocação coloca uma santa centralidade em nosso viver. Repetidas vezes, tenho visto
cristãos — alguns na igreja há longo tempo — passarem de repente a ter vivacidade. Finalmente
descobriram o que Deus quer para a vida deles. Caiu sobre eles uma nova paixão por estarem
vivos. Suas ocupações não passam por nenhuma mudança visível na maioria dos casos, mas
nem por isso deixam de ser novas. Eles são chamados. Finalmente, o despertador os acorda para
a alegria e o propósito todas as manhãs.
O chamado pode, em diferentes períodos da nossa vida, levar-nos a alguma nova direção. Por
exemplo, aos 55 anos de idade, comecei a notar novamente um santo descontentamento quando
meu despertador soava. A alegria dos meus anos de pastorado me escapava. Já não achava
prazer no que fazia. Parecia que as manhãs de domingo, que antes foram meu período predileto
da semana, começavam cedo demais e exigiam a máxima capacidade de resistência. Frequen-
temente me sentia surrado e morto — por dentro e por fora — no fim do dia. Pedia sempre que
Deus "vivificasse meu corpo mortal" nessas manhãs duras e exigentes.
Então, sem nenhum aviso prévio, Deus agiu! O presidente de um grande seminário convidou-
me para fazer parte do corpo docente. No dia 2 de novembro de 1991, acordei às 6 horas da
manhã e fui pregar meu último sermão como pastor da igreja. Sentia-me como quem tivesse
comido um velho despertador angustiante e entrado numa nova senda emocionante do
ministério cristão. Tornei-me professor! Podia conviver com alunos! Passei a ter novo zelo, uma
nova paixão. E a mais gloriosa de todas as paixões é entender no íntimo que Jesus nos deu um
motivo verdadeiro para estar neste mundo.
Conforme ressaltou Paulo, o amor é a maior das virtudes cristãs. O amor empresta validade a
nossa vocação. O cristão que está sempre se queixando talvez esteja fora de contato com aquilo
a que Deus inicialmente o chamou para fazer. Sobre isso Richard Baxter escreveu:
Se você ama a Deus, fará tudo que for possível para servir e agradá-lo.
O amor é impaciente para praticar o bem. E também pronto, ativo e
observante. A fé o anima. A esperança o põe em ação como a mola a
um relógio. A reverência a Deus o desperta da sonolência. O
entusiasmo pelas coisas espirituais o faz arder como fogo. Quanto mais
você tiver consciência de Deus, mais envolvido estará no trabalho dele.5
QUAL É O CHAMADO?
Jeremias disse de seu chamado que era como um fogo encerrado em seus ossos (v. cap. 20.9).
Esse fogo o mantinha ativo quando tudo falhava. Mas, diante da porta Superior de Benjamim,
Jeremias aprendeu outra verdade: o fogo santo do chamado pode extinguir-se facilmente. A
política eclesiástica tediosa é um extintor de incêndio. As reuniões administrativas, de diáconos,
do conselho de líderes e as várias críticas congregacionais de todos os tipos tendem a jogar água
nas chamas, a apagar o fogo de nossos ossos.
Como são maravilhosas as igrejas em que o número de membros é idêntico ao número de
pastores! Nessas igrejas, os leigos são chamados por Deus. A paixão deles arde. O fogo no seu
íntimo se atiça. Esses crentes fritam seu velho despertador e mal conseguem esperar o raiar do
sol. Têm um espírito indestrutível. Não murcham diante da maledicência. Duram mais do que
seus inimigos. Sobrevivem a seus críticos. Acordam para louvar a Deus, mesmo nas manhãs de
suas provações mais ameaçadoras.
O chamado de Deus é muito mais do que uma agência de empregos divina. Quase sempre o
chamado é considerado igual à vocação, como se o chamado divino fosse válido se implicasse
um emprego no ministério. O chamado é mais um relacionamento do que uma vocação. É zelo
por Deus. É ardor pelas coisas dele. E o ardor leva aos aplausos de Deus. Os anjos não podem
deixar de aplaudir os ajoelhados e sedentos por Deus.
Certa vez, numa partida de futebol americano, os Green Bay Packers sofreram muitas lesões e
marcaram poucos pontos no fim do primeiro tempo. O treinador Vince Lombardi ouviu as
queixas dos jogadores no intervalo e disse: "Homens, vocês só poderão vencer os grandes jogos
quando aprenderem a jogar com as pequenas feridas da vida". Não sei o que capacita os
jogadores de futebol a continuar o jogo quando estão com pequenas lesões, mas na vida cristã
trata-se do chamado e somente do chamado.
Cinquenta por cento das pessoas que frequentam os cultos de adoração nos Estados Unidos
entram na igreja com algum problema. Isso tem fundamento, pois também 50% das vezes os
pastores estão com algum problema quando dirigem o culto de adoração. Entretanto, pregam
assim mesmo, e os leigos com saúde espiritual também servem com alegria. Todo cristão foi
chamado para continuar jogando apesar das contusões.
No entanto, muitos cristãos não conseguem continuar o jogo quando sentem dores. Se
continuam, fazem-no sem muita alegria. Nessas temporadas, são os únicos jogadores que se
queixam. São abençoados por Deus, amaldiçoados por Deus, divididos entre precisar agradar a
Deus e precisar cura demais. Onde erraram? A vida em Cristo de repente passa a ser só
agulhadas e hematomas. O júbilo da primeira fé jaz encalhado numa praia de azedume.
__________________________________________________________________________
5
The saint's everlasting rest, cit. BANGLEY, da leitura do dia 5 de fevereiro.
Em momentos como esse, pode parecer que nossa vida interior esteja morta. Derrotados por
nossa situação, procuramos recolher-nos às profundezas de Deus assim como sempre fizemos.
De repente, porém, mesmo as profundezas parecem alegria velha, rasa e morna. Choramos, mas
Deus não presta atenção às nossas lágrimas. Debaixo do fardo da depressão espiritual, achamos
difícil acreditar que Deus existe e, se existe, certamente parece que não nos está tratando muito
bem.
É difícil nos lembrar de nosso chamado nesses períodos de prostração.
Jeremias 20 fala do esforço cíclico que todo cristão faz para lem-brar-se de seu chamado. Na
porta Superior de Benjamim, avaliou seu chamado. Você percebe a mágoa na dor de Jeremias?
Ela nos atrai a mente de forma muito poderosa! Depois de muitos anos no ministério, confesso
meu vício tolo de me apegar ao meu chamado enquanto vivo com dores e críticas.
No exercício de meu chamado como pregador, gastei muito tempo frequentando a porta
Superior de Benjamim. Gosto da neurose do local — do ódio total, do amor fervoroso. Minhas
necessidades naqueles tempos tenebrosos pareciam maiores que o suprimento divino. Meus
sermões pareciam tão mortos quanto minha alegria. Queria pregar com poder, mas o fogo me
escapava. As conclusões "tal qual estou" dos meus sermões sempre deixavam os ouvintes da
forma que estavam.
A porta Superior de Benjamim: que cristão não a conhece bem? É um lugar de rostos cor de
cera, de marcas de altas horas das noites de sábado. Mortas em consequência das partidas de
baralho, essas almas espiritualmente necessitadas vão brigando pelo caminho até à igreja.
Domingo de manhã — o chamado à adoração — é a ladainha dos mortos: o pastor lê as letras
claras enquanto os que ainda têm pulso lêem a resposta em letras escuras. Aí vem o sermão.
"Aqui temos alguns pecados genéricos", anuncia o mensageiro desanimado, "escolham uns
poucos e apliquem-nos a seus vizinhos".
Por que um cristão continuaria agarrando-se tola e desesperadamente a seu chamado? Porque os
melhores crentes fazem uma aliança com o chamado. Quando vivem em aliança com o
chamado, a vida flui com facilidade.
No livro apócrifo de Eclesiástico, o escritor nos manda valorizar as provações que nos
ensinaram a apreciar mais o Senhor.
Filho, se te dedicares a servir ao Senhor,
prepara-te para a prova.
Endireita teu coração e sê constante,
não te apavores no tempo da adversidade.
Une-te a ele e não te separes,
a fim de seres exaltado no teu último dia.
Tudo o que te acontecer, aceita-o,
e nas vicissitudes de tua pobre condição sê paciente,
pois o ouro se prova no fogo,
e os eleitos, no cadinho da humilhação.
(2.1-5;BJ).
Desconfio que somente os que conseguem bendizer a fornalha podem chegar a compreender o
ouro.
Francisco de Assis aceitou seu chamado, e o mundo passou a ter sentido para ele. Ugolino disse
que Francisco deixou seus companheiros e foi pelo mundo pregando a suas irmãzinhas, as aves.
E aqui está o que Francisco dizia:
Minhas irmãzinhas, lembrem-se de louvar a Deus porque lhe devem
muita coisa. Vocês são livres para voar por onde quiserem. Ele lhes
deu vestes bonitas. Providencia-lhes alimentos e as ensina a cantar.
Salvou-as juntamente com a arca de Noé e ajudou-as a ser fecundas e
se multiplicarem. Agradeçam a ele o ar em que voam. Agradeçam a
água que bebem dos rios e das fontes. Agradeçam a ele os altos
penhascos e as árvores onde podem construir seu ninho. Agradeçam a
ele porque não são obrigadas a semear nem ceifar, a fiar nem tecer.
Deus dá a vocês e a seus filhos tudo quanto necessitam. Tudo isso só
pode significar que Deus ama muitíssimo vocês. Portanto, minhas
irmãzinhas, lembrem-se de agradecer e louvar a Deus.6
Fica claro que Francisco de Assis deixou seu chamado santificar o mundo.
O que você pensa de seu chamado? O que Jeremias pensava? Ele se lamentava: "Mau dia, Deus!
Ora, sou eu, Jeremias. Lembra-te de como eu te amava? Agora vê como fiquei, Deus! Estou
aqui na porta Superior de Benjamim, preso no tronco com migalhas de alimentos apodrecendo
aos meus pés. Por favor, ajuda-me, estou morrendo, ó Deus. Prego e choro, choro e prego.
Alguém se importa? Tu te importas, ó Deus?".
Assim como Jeremias, nós servimos com grande autoridade, mas choramingamos muito e nos
queixamos entre nossos períodos de alegria. Vacilamos entre "Assim diz o Senhor" e "O que
estou fazendo aqui embaixo se minhas notas me qualificam para ser executivo?!".
Alguns estudiosos duvidam de que Jeremias fosse capaz dessas alterações de humor que
ocorrem no capítulo 20 de seu livro. Em Jeremias 20.13, por exemplo, é vitória e louvor,
encaixados entre notas suicidas rabiscadas no verso do seu diploma de seminário. De fato,
Jeremias parece inconstante — será que os estudiosos estão com a razão? Acho que não! A
verdade é que os únicos intelectuais que duvidam dessa história são os que nunca lançaram
verdadeiramente o coração no meio do jogo e seguiram um compromisso resoluto e indesviável
com o seu chamado. São aqueles que não vêem nada de estranho nas mudanças de estado de
ânimo de qualquer profeta. Os tempos de choro e os momentos de celebração na vida frequen-
temente aparecem bem próximos — tão próximos um do outro que ansiamos por uma união
mais profunda com Cristo, mesmo quando duvidamos que isso seja possível.
Essa é a glória do chamado. Continuamos obedecendo ao chamado, mesmo quando ficamos
imaginando se nossa parceria com Deus foi cancelada. Quando continuamos fiéis, percebemos
que o chamado desperta a consciência adormecida e ela volta, mais cedo ou mais tarde, a sentir
confiança sublime. Não demora para voltarmos às profundezas da nossa união com Cristo. Os
tempos duros não são de duração prolongada, mas os santos resistentes perduram para sempre.
O chamado nos acompanha nos tempos difíceis. Servimos porque nos sentimos chamados e
continuamos servindo, mesmo quando não sentimos esse chamado. Não é que finjamos tê-lo até
o conseguirmos de volta. Prendemo-nos a ele até o termos de volta.
Jeremias ensina que o chamado nos ajuda a nos manter firmes mesmo quando não conseguimos
classificar a vida em segmentos administráveis. No caso do profeta, as engrenagens do cerco
avançaram contra os muros de sua cultura imprópria. Seu chamado manti-nha-o contando a
verdade. Nosso chamado mantém-nos honestos. Devemos, no entanto, tomar cuidado para não
colocar as áreas pequenas de obediência no lugar das grandes. Há ocasiões em que nossa
ortodoxia pode tornar-se substituta da coragem verdadeira. Os chamados são insistentes.
Mantêm-nos em estado de prontidão e produzem em nós a coragem necessária para fazermos o
que Deus quer que façamos.
O MÉDICO FERIDO
Deus curou o mundo de uma vez por todas no topo de uma colina, mediante seu próprio
quebrantamento encarnado. Agora, o mundo que conhecemos so pode ser curado por nosso
quebrantamento. Os sofrimentos de Jeremias despertam uma antiga verdade irreconciliável:
quando queremos ser importantes, Deus sempre silencia. Não é a preponderância das palavras
das pessoas que perturba o profeta. É a ausência das palavras de Deus.
Na ausência da dor, perde-se a intensidade da nossa devoção. O escritor russo Solzhenitsyn
disse: "Se não existem escritores verdadeiros no Ocidente, a razão deve ser esta: não existe dor
verdadeira no Ocidente". Estamos nos afogando num mar de utopia. Poucos escritores
verdadeiros? Talvez poucos cristãos verdadeiros pela mesma razão. Jeremias foi prisioneiro da
crise da guerra que destruía sua amada pátria. Assim como Barth, em Safenwil; Thielicke, em
Stuttgart ou Gilkey, na China, Jeremias vivia numa época que o fazia rico em feridas que só
Deus podia curar.
O que fazem os servos não feridos? Tornam-se arrogantes, asso-ciam-se a clubes esportivos,
entregam-se à mediocridade da classe média ou tornam-se cristãos caçadores de raposas. Podem
até incli-nar-se para o liberalismo, pois somente os protegidos têm o privilégio de transformar a
teologia em discussão; os outros apegam-se à teologia e choram. O liberalismo sempre provém
de gente que tem pouca necessidade de Deus.
Porém, sempre devemos fazer a seguinte pergunta: "Como manter a vitalidade da nossa fé e da
nossa vocação?". Manter-se ativo com uma fé viva é questão de manter firme o foco em Cristo.
Margaret Ebner, por exemplo, confessou que sua vitalidade em Cristo achava-se na meditação
de meia dúzia de elementos fundamentais da fé.
Primeiro, como Deus desceu do céu para a terra, entrou no ventre de
uma mulher e habitou ali durante nove meses.
Segundo, como Cristo nasceu de modo normal e de fato habitou entre
nós durante 33 anos.
Terceiro, como ele foi motivado pelo amor a ponto de se dispor a
morrer na cruz.
Quarto, como ele se entregou por nós...
Quinto, como ele se oferece diariamente.
Sexto, como seu amor não é inacessível.10
Jeremias estava ferido, e as feridas matam a irrelevância assim como a vida semelhante à de
Cristo impõe o senso contínuo do chamado nos crentes sinceros. O provérbio antigo "paus e
pedras podem quebrar-me os ossos, mas palavras jamais me ferirão" simplesmente não é
verdadeiro. As palavras doem de verdade. Podem acabar nos ferindo com cicatrizes eternas.
Podem arrancar o propósito divino da nossa visão e deixar-nos com pouco motivo para viver.
Também provam a resistência do nosso chamado. Os cristãos de grandeza estão casados com
esse chamado. Estão totalmente ligados com aquilo que Deus deseja fazer com a vida deles.
O chamado é como um fogo encerrado em nossos ossos. É por isso que Jesus disse: "Meu fardo
é leve" (Mt 11.30). Também é por essa razão que, quando os nossos fardos são destrutivos,
continuamos cantando, não nossos triunfos, mas nossa necessidade. "Estou morrendo nesse
conflito, ó Deus [...] Clamo; preciso de ti. Oh, preciso de ti. Todos os momentos preciso de ti."
CONCLUSÃO
As provações que nos deixam de joelhos diante de nossas tarefas ao longo da vida nunca
ocorrem por acaso. Todos os nossos sofrimentos podem servir para nos levar à maturidade. Paul
Billheimer, por exemplo, disse que devemos considerar riqueza a dor que nos vai esculpindo à
imagem de Cristo:
Meu filho, tenho um recado para você hoje: deixe-me sussurrá-lo no
seu ouvido, para dourar com glória as nuvens de tempestade que
surgirem e aplainar os lugares escabrosos em que você porventura tiver
de pisar. É recado breve, cinco palavras apenas, mas deixe-as penetrar
no íntimo da sua alma; use-o como travesseiro onde recosta sua cabeça
cansada: "Isso provém de mim".11
Nesses tempos apocalípticos, o fogo da intenção de Deus desperta a alegria por termos sido
escolhidos como instrumentos para os seus propósitos. Somos os cadinhos vivos que contêm o
fogo de Deus.
O apóstolo Paulo jamais atingiu um ponto tão sublime quanto o que alcançou em 2Coríntios
12.7-10:
Para impedir que eu me exaltasse por causa da grandeza dessas reve-
lações, foi-me dado um espinho na carne, um mensageiro de Satanás,
para me atormentar. Três vezes roguei ao Senhor que o tirasse de mim.
Mas ele me disse: "Minha graça é suficiente para você, pois o meu
poder se aperfeiçoa na fraqueza". Portanto, eu me gloriarei ainda mais
alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse
em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas,
nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois
quando sou fraco é que sou forte.
Logo, uma vez que nos fortalecemos nos períodos de necessidade, devemos valorizar nossas
feridas e celebrar nossas dores.
William Tyndale também entendeu a relação entre a dor e a graça ao comentar este trecho da
carta de Pedro:
Amados, não se surpreendam com o fogo que surge entre vocês para os
provar, como se algo estranho lhes estivesse acontecendo. Mas
______________________________________________________________
10
Revelations, cit. BANGLEY, da leitura do dia 31 de outubro.
11
Don't waste your sorrows, Ft. Washington: Christian Literature Crusade, 1977, p. 65.
alegrem-se à medida que participam dos sofrimentos de Cristo, para
que também, quando a sua glória for revelada, vocês exultem com
grande alegria. Se vocês são insultados por causa do nome de Cristo,
felizes são vocês, pois o Espírito da glória, o Espírito de Deus, repousa
sobre vocês (IPe 4.12-14].
Diz ele:
Cristo nunca será forte em nós enquanto não formos fracos. A medida
que nossas forças diminuem, a força de Cristo cresce em nós. Quando
estivermos inteiramente esvaziados de nossas próprias forças,
ficaremos repletos do poder de Cristo. O tanto que mantemos de nós é
o que nos falta de Cristo.12
__________________________________________________________________________________________________________________________________
12
Preface to obedience, cit. BANG LEY, da leitura do dia 5 de setembro.
A moralidade não começou quando um
homem disse a outro: "Eu não vou
agredi-lo se você não me agredir". Mão existe
o menor sinal de nenhum acordo como esse.
Existem, sim, indícios de ambos terem dito:
"Mão devemos nos agredir um ao outro
no lugar santo". Eles adquiriram a moralidade
praticando a religião.1
— Q. K. CHESTERTON
_________________________________________________________________
1
Orthodoxy, New York: Image Books, 1959, p. 68.
2
A vida cristã normal, trad. Gordon Chown, São Paulo: Fiel, 1984, p. 143.
3
Abundant living, Nashville: Abingdon Festival Books, 1978, p. 108.
Caráter: o que é isso?
O que somos por dentro?
O que nossa mãe pensa que somos?
O que somos no escuro?
Não, apenas isto: o que seremos
quando a obra perfeita de Cristo
se acrescentar ao nosso desejo inabalável
de viver para a sua boa vontade.
_____________________________________________________________________________________
4
The form of a servant (3 de agosto de 1986).
A DISCIPLINA QUE PRODUZ
O CARÁTER PIEDOSO
Os amigos possuem uma nobreza de caráter que raras vezes notamos, a não ser quando as
crises da vida nos ensinam por que os amamos. Tenho um grande amigo afro-americano, e
raramente ocorreu a um ou a outro a ideia de que somos "ébano e marfim", como se costuma
dizer nos Estados Unidos. Mas chegou o dia em que os guetos de Los Angeles de repente se
inflamaram com os conflitos raciais. Parece que as diferenças de cor começaram ins-
tantaneamente a se autoproclamar. Naqueles dias incendiários, meu amigo estava praticando
jogging em nosso bairro residencial quando passou por ele um automóvel cheio de brancos.
Abaixaram a janela do carro, xingaram-no de nomes obscenos e cuspiram-lhe no rosto. Ele
sentiu-se inundado por uma lava incandescente de vergonha. Ardia em ira e chorava enquanto
limpava o rosto e continuava o exercício rua afora. Pensou na cruz e em Cristo. De repente, deu-
se conta de que não era a primeira pessoa que já sentira a humilhação de ter o cuspe de alguém
secando no rosto. Jesus foi servo; também ele conheceu o vexame. Meu amigo venceu a
provação porque se lembrou do conselho do seu Salvador: "Nenhum servo é maior do que seu
Senhor". O tempo seca a saliva velha e a vergonha. Em todos os tempos, os servos verdadeiros
são passíveis de passar pela crucificação. Todos os que seguem a Cristo precisam mais cedo ou
mais tarde aprender as duras lições de morrer para o próprio eu. Depois de aprenderem, podem
sussurrar orações de perdão, pregados em sua própria cruz.
A vida em Cristo é um corpo sustentado pelo esqueleto forte do auto-sacrifício. Nunca devemos
nos esquecer disso, porque o sacrifício que insiste em "tirar férias" das exigências peculiares é
pouco mais do que permissividade com um ligeiro hábito religioso. A Quaresma não são
quarenta dias para abrir mão de morangos. É uma vida inteira de abnegação — de abnegação
que produz caráter.
A abnegação gera o caráter, e o caráter fortalece o espírito de serviço. Mas simplesmente abrir
mão das coisas de que gostamos não nos levará a uma humanidade de valor esterlino. Para isso,
precisamos depender do surgimento da necessidade humana. O caráter surge aos poucos quando
permitimos que Deus nos transforme em servos. Mas quanta dor jaz ao longo do caminho! A
dor é a forja indesejável em que Deus forma com o malho nossa semelhança com Cristo. Porém,
os golpes do ferro continuam sendo desferidos, e a bigorna se rompe. Alguns precisaram morrer
literalmente para servir a Cristo. Às vezes, as mesmas pessoas chamadas para servir contêm na
vida ingrata a dor que quebra o espírito e nos esmaga debaixo da alienação e da solidão.
Infelizmente, servir às pessoas é a única maneira pela qual podemos servir a Deus. E servir
significa que vamos nos magoar nessa atividade. Se não tivermos cuidado, a dor envolvida em
nosso trabalho pode em última análise fazer-nos desprezar aqueles aos quais antes nos
sentíamos chamados a amar. Charlie Brown tem razão: "Todos nós amamos a humanidade, só
que não suportamos as pessoas!". Todos queremos servir a Deus, mas pode ser terrivelmente
degradante ter de servir às pessoas em primeiro lugar!
Jesus, de acordo com Filipenses 2, humilhou-se e se fez homem. Agora, nós devemos nos
humilhar a fim de nos tornarmos servos e pessoas de caráter. A crucificação pode ser um
pérfido fim para quem quer ser servo. Por quê? Reflita na metodologia da servidão: é preciso
oferecer a outra face e andar duas milhas cada vez que alguém nos força a andar uma! Servir
aos nossos inimigos e abençoar nossos perseguidores é o terrível enfado que nos molda à
imagem de Cristo.
Como vir a ser uma pessoa de caráter? O caráter de um servo, conforme diz Paulo, deve ser de
entrega total em quatro áreas: a cabeça, o coração, os joelhos e a língua.
A CABEÇA DO SERVO (HUMILDADE)
A cabeça do servo curva-se por humildade.
O orgulho é a adaga de aço no coração da humildade. Não admira que Richard Baxter tenha
escrito:
Previna-se contra o espírito orgulhoso e altivo. Esse pecado levanta uma grande barreira entre o
indivíduo e Deus. É muito difícil ter consciência de Deus enquanto se está cheio de orgulho.
Uma vez que o orgulho levou anjos a serem expulsos do céu, certamente impedirá que seu
coração chegue ao céu. O orgulho foi a derrocada de Adão e Eva. Ele aumenta nossa distância
de Deus e nos expulsa do paraíso.5
O orgulho suga a vitalidade do nosso caráter. Bernardo de Claraval ensinou com muita
sabedoria que há quatro virtudes cristãs. A primeira é a humildade. A segunda é a humildade. A
terceira é a humildade. E a quarta é a humildade. Ensinou também que na maioria das vezes
gostaríamos de conquistar a humildade sem a humilhação. Infelizmente, não é possível. Nossa
arrogância é a menos atraente de nossas qualidades pessoais. O ego é a barreira que se interpõe
entre Deus e os planos dele para nossa vida.
Como servos, devemos ser sacerdotes. O sacerdote é um terreno — solo intermediário — um
canteiro de terra onde tanto Deus quanto os necessitados se encontram. Nossa obra é sacerdotal.
Assim como Jesus, nosso Sumo Sacerdote, também usamos as vestes da mediação da graça.
Possibilitamos de novo a encarnação de Jesus. Somos o "amém" voluntário de Walt Whitman.
Nós também devemos exclamar ao nosso mundo necessitado: "Se vocês nos querem, olhem
debaixo das solas de suas botas". Nossa humildade pode ser facilmente vista em nosso amor por
ajudar o próximo. Nosso serviço é o nosso cargo. Se o Rei do Céu pode lavar pés, nosso
chamado fica claro.
Como escapar da necessidade de sermos aquilo que outros queriam que fôssemos? Cristo, o
servo sacerdote, curvou a cabeça e tor-nou-se nada — melhor, fez-se nada. Declarou-se livre.
Em geral nos concentramos na palavra "nada" contida nessa verdade. Sugiro que nos
concentremos na palavra "fez". Fazer-nos significa que não deixamos que os outros nos façam.
Emily Dickinson clamou:
Eu sou ninguém] Quem é você?
Você é ninguém, também?
Como é tedioso ser alguém!
Tão público! Como uma rã
Que conta seu nome
o dia inteiro
A um pântano admirado!6
A cabeça precisa curvar-se, precisa tirar a coroa pesada do narcisismo exibicionista. Tem de
curvar-se quando o servo pergunta: "O que posso fazer, ó Cristo... por quanto tempo... onde?".
Richard Baxter concordaria com Emily Dickinson:
_Você fica inflado de orgulho? Acolhe o louvor dos outros? Procura as
mais altas honrarias? Fica zangado quando sua palavra ou sua vontade
é desrespeitada? Não consegue servir a Deus numa posição inferior
como serve em posição superior? Gosta de reconhecimento e fama?
Não tem consciência de que seu coração é enganoso e traiçoeiro? Está
mais disposto a defender sua inocência do que a confessar suas faltas?
Se isso define seu coração, você é uma pessoa orgulhosa. É provável
que não tenha familiaridade com Deus. Foi muito longe ao fazer de
você mesmo um deus. Você é seu próprio ídolo. Como poderia ter o
coração no céu? Talvez você diga algo correto, mas seu coração não
entende o que está dizendo.7
_________________________________________________________________________
5
The saints' everlasting rest, cit. BANGLEY, Near to the heart of Cod, da leitura do dia 16 de novembro.
6
Mabel Loomis TODD & T. W. HlGGINSON, orgs., Favorite poems, New York: Avenel Books, 1978, p.
155.
7
Cit. BANGLEY, da leitura do dia 16 de novembro.
O CORAÇÃO DO SERVO (OBEDIÊNCIA)
Assim como a cabeça se curva, o coração do servo obedece. O coração se curva interiormente e
dessa forma possibilita ao corpo curvar os joelhos. O coração do servo dedica-se à integridade e
à misericórdia. Na verdade, o coração do caráter é a misericórdia. William Tyndale escreveu:
Ser misericordioso é ter compaixão, sentir a dor do próximo, sentir o
pesar dos enlutados, sofrer com o aflito, ajudar de todo modo e
consolar com palavras afetuosas. Ser misericordioso é perdoar com
amor ao ofensor, depois de ele ter confessado o pecado e pedido
misericórdia.
É ser paciente com os pecadores e orar a Deus que finalmente os
converta. É enxergar o melhor em tudo e olhar muita coisa através dos
dedos e não fazer de qualquer ninharia um pecado grave.8
Jesus sabia quem era, e foi com muita integridade que se dedicou à misericórdia e à vontade do
Pai. Isaías retratou-o como alguém que não podia desviar-se da vontade de seu Pai.
Ofereci minhas costas àqueles que
me batiam, meu rosto àqueles que
arrancavam minha barba;
não escondi a face da zombaria e dos cuspes.
Porque o Senhor, o Soberano, me ajuda,
não serei constrangido.
Por isso eu me opus firme como uma dura rocha,
e sei que não ficarei decepcionado
(Is 50.6,7).
A integridade na obediência é a lição da cruz. Jesus poderia ter escapado da sentença com
mentiras. Poderia ter dito: "Não, Pilatos, não sou Filho de Deus — crucifique outro". Mas
apegou-se à verdade, mesmo quando aumentavam cada vez mais as pressões. Pilatos poderia ter
dito: "Para que esse desperdício? Por que você simplesmente não se associa ao conselho de
pastores ou faz um circuito de preleções, ou uma série de filmes, ou escreve um livro sobre ficar
feliz? Ceda um pouco, Jesus! Relaxe! Abra mão da sua cruz e tire férias de tudo isso".
A obediência é curvar nossa vontade. "Mantenham o coração livre dos pensamentos malignos",
escreveu o cardeal Henry Edward Manning, "pois assim como as escolhas malignas separam
nossa vontade da vontade divina, os pensamentos malignos anuviam a alma e escondem Deus
de nós. Tudo quanto se opõe a Deus transforma nossa vontade em intolerável tormento.
Enquanto determinarmos uma coisa e Deus outra, continuaremos nos atravessando de lado a
lado com uma ferida perpétua, e a vontade de Deus vai avançando, passando adiante com
santidade e majestade, esmagando a nossa até o pó".9 Devemos encher de renúncia e luz as
fissuras vazias e escuras de nosso coração convoluto.
A obediência não é a obra principal do discípulo, é a única. Mas como levar a efeito essa
entrega do coração orgulhoso? Fénelon falou da organização de nossa vida que antecede à
condição de submissão:
Organize seu tempo a fim de todos os dias ter um período de descanso,
para a meditação e para a oração. Isso é fácil quando você realmente
ama a Deus. Nunca ficamos em dúvida quanto ao assunto da nossa conversa.
Ele é o nosso amigo. Nosso coração se abre para ele. Devemos ser
completamente sinceros com ele e nada esconder. Mesmo não havendo nada
que lhe queiramos dizer, é uma alegria simplesmente ficar na presença dele.10
O espírito e a carne estão intimamente casados. Vivem, sofrem e morrem juntos. É raro o
indivíduo que se mantém íntegro diante de sofrimentos severos. Mas Jesus conseguiu. Ele se
humilhou e se manteve obediente e morreu de modo muito sangrento. E mais ainda: sacrificou-
se pelo prazer de ser servo leal. É isso que os servos conformados fazem. Obedecem! A
obediência é a fonte do caráter.
______________________________________________________________________
8
Exposition on the Sermon on the Mount, ibid., da leitura do dia 23 de novembro.
9
Cit. Mary TlLESTON, org., Daily strength for daily needs, p. 298
11
Meditations and devotions, cit. BANGLEY, da leitura do dia 30 de outubro.
OS JOELHOS DO SERVO (ENTREGA)
Os joelhos do servo se dobram (v. Fp 2.10). Quando os joelhos se dobram, nasce o caráter. Não
é que a postura externa em si seja a chave para o poder de Deus, mas é um indício de como
enxergamos o Onipotente. Um antigo parceiro meu de oração começava orando de joelhos e
acabava com o rosto no chão diante de Deus. Por que fazia isso? Sua adoração era um mal-estar
que encontrava alívio apenas quando ele se humilhava fisicamente.
Karl Barth disse que a oração é "nosso anseio por Deus, nossa incurável ânsia por Deus".11 É um
entorpecimento, uma paixão que nunca se satisfaz apenas provando gotas de Deus quando a
vida surge em tragos profundos.
Os joelhos precisam dobrar-se.
Quando os joelhos se dobram, o Rei entra! Certa vez, quando estava em Ávila, entrei na cela de
pedra, com teto baixo, onde Teresa e João da Cruz oravam. Os moradores de Ávila dizem que
os dois se ocupavam tão profundamente da oração que flutuavam. Parece estranho? Talvez, mas
quem pode saber se isso aconteceu? Quando lemos suas obras e descobrimos a prostração
inerente de suas orações, só podemos imaginar as glórias que Deus derramava sobre a adoração
deles. Mas estou convicto de que o segredo para chegar a Deus é uma atitude de joelhos
dobrados.
Ajoelhar-se não deve ser visto apenas como símbolo de devoção. É muito mais do que isso. É a
postura que recebe o revestimento de poder de nossa vida. Quando nossos joelhos se levantam
de novo, sabemos que temos de voltar andando para os campos de serviço. Muita coisa precisa
ser feita. John Masefield escreveu:
Fazer o mundo inteiro levantar-se da cama, lavar-se, vestir-se, alimentar-se, sair para o serviço e
voltar à cama de novo, creia-me, Saulo, custa um mundo de dor.12
Nossa vida inteira se desfaz em ruínas quando vivemos como se não tivéssemos joelhos! Sei
agora que a postura de um servo é de joelhos. Pense no que mantém eretas as pernas. Em
primeiro lugar, há a auto-suficiência. Precisamos aprender a humildade de espírito. O genuflexo
não é uma posição só de oração, mas também de súplica. Se você se considera pobre, chegará
de joelhos a Cristo, e de joelhos o receberá. Então será considerado bem-aventurado, pois bem-
aven-turados somos nós os humildes de espírito, pois nosso é o reino.
O narcisismo também nos impede de ajoelhar-nos. A maior parte do nosso narcisismo não é
flagrante. Na realidade, quase todos nós fazemos muito esforço para ocultar a aparência de
egocêntricos. Sabemos rebaixar a cabeça e procuramos manter cara de inocentes e submissos,
mesmo que seja apenas para manter a aparência de espirituais. Mas somos um pouco falsos. Em
nossa vida pública de oração, exclamamos: "Quem nos dera ser nada, nada!". Mas no íntimo
exclamamos: "Amo-me, amo-me, tomo-me nos braços e me abraço".
Lembre-se disso: Narciso era belo. Todos os deuses concordavam nisso. Mas, como se sabe,
afogou-se tentando abraçar o próprio reflexo. Essa metáfora deve ser um espelho para o nosso
orgulho.
Os pregadores, os concertistas, os membros dos comités de igreja, os solistas talentosos, enfim,
quantas pessoas em todas essas categorias vivem a vida servindo a sua própria divindade
falsificada? O remédio do apóstolo para o narcisismo era dobrar os joelhos diante de Cristo —
alguém superior ao nosso ego para nossa adoração necessitada.
No fim, todas as línguas o confessarão (v. Fp 2.11).13 Em última análise, todas as pessoas que já
viveram neste mundo confessarão que Jesus é o Senhor. É apenas uma questão de tempo.
Procure imaginar o momento em que toda língua confessará. Os ateus, os catedráticos
universitários, os gigantes literários, todos comparecendo diante do trono sublime de vidro, na
--------------------------------------------------------------------------------------------------------
11
De Evelyn UNDERBILL, The spiritual life, cit. Emilie GRIFFIN, Clinging, p. 86.
12
The everlasting mercy, cit. Sherwood E. WlRT, Jesus man of joy, Eugene: Harvest, 1999, p. 113.
13
A disciplina espiritual da confissão é parte tão importante da vida cristã que dediquei uma seção inteira
(parte 4) a considerá-la. Aqui, quero tão-somente enfatizar que o ato de declarar Jesus como o Senhor é
característica do servo. (N. do T.)
derradeira cena da História.
As vezes os imagino, de olhos esbugalhados, olhando incrédulos para o trono altíssimo de Deus.
O Onipotente limpa a garganta com trovões e diz: "Ahã!".
O filósofo agnóstico cai de joelhos, chorando: "Oh, meu Deus!".
O físico sabe-tudo finalmente reconhece a Deus.
Imagine só: Karl Marx, Frederich Nietzsche, Bertrand Russell, Madeleine Murray O'Hair, todos
reconhecendo o nome de Jesus nos últimos portões da eternidade. É o momento estarrecedor,
em que toda língua confessará o nome de quem duvidou durante toda a vida.
O que confessamos? Confessamos o mesmo que uma senhora pobre confessou ao chegar à fé
em Cristo no dia em que completou 66 anos de vida: "Deus, tenho bem pouco para te dar. Tudo
quanto me sobra é o meu futuro". Mas a salvação é isso mesmo. Ser redimido é começar onde o
futuro inicia e respirar o nome "Senhor". Diante dessa palavra, nasce o caráter cristão.
Certo rei amava tanto o profeta da corte que mandou pintar seu retrato. Quando o retrato ficou
pronto, via-se o homem santo em todos os pormenores — menos no rosto. O rosto olhava de
esguelha, cheio de ódio, contorcido de ressentimentos e rosnando de vingança.
O rei ficou tão chocado que estava prestes a mandar tirar a vida do pintor, mas o homem santo
pediu a anulação da ordem de execução.
"O rei!", exclamou, "poupe esse pintor! Ele pintou um quadro do homem que durante toda
minha vida procurei não ser!" Esse servo entendia a palavra "caráter".
A língua do servo sempre quer proclamar: "Jesus é o Senhor! Dono de todas as coisas".
Qualquer coisa inferior seria como o som de unhas raspando um quadro negro, ou do telefone
celular tocando num cinema ou o barulho de briga de gatos na calada da noite. Estridente,
irritante, invasivo e inteiramente impróprio. Que nossos lábios sempre transbordem de adoração
e louvor pelo nosso Salvador majestoso.
l5
Calvin MILLER, The character of a servant (4 de agosto de 1986).
A enfermidade é uma perda de equilíbrio
em parte do organismo ou nele
todo. Pode começar no espírito e na
desintegração física. Pode começar com
causas físicas e atuar sobre a psique.
Mas sempre é uma perda de equilíbrio
na essência básica do indivíduo. 1
— DAVID SEABURY
___________________________________________________________________
1
Cit. E. Stanley Jones, Abundam living, p. 189.
2
Ibid., p. 95.
3
A vida cristã normal, p. 88.
Conhece-te a ti mesmo", disse Sócrates,
"e conhecerás o mundo".
Se Sócrates tivesse conhecido Jesus,
teria sabido que existe um passo anterior.
"Conheça a Deus", disse Jesus, "senão
jamais conhecerá a si mesmo".
________________________________________________________________________________________________________________________
4
Cit. BANGLEY, Near to the heart of God, da leitura do dia 19 de julho.
CHEGAR À
AUTOCOMPREENSÃO
Em quase todas as épocas, concebe-se em geral que ser rico e ser importante são a mesma
coisa. Mas Jesus deixou claro que, mesmo que possuamos o mundo inteiro, se perdermos a
nossa alma, não teremos nada. Certo rico pediu que, quando morresse, fosse sepultado na
posição de motorista atrás do volante de seu Cadillac de ouro maciço. O enterro foi uma
demonstração exterior de riqueza, mas na realidade era uma declaração de alguém que foi
deserdado por Deus. Ouviu-se uma pessoa comentar, enquanto o carro e o motorista
embalsamado desciam para o fundo da cova: "Ora, isso é que é viver!". É comum, nesses dias
de ricos e famosos, declarar quem somos em termos do que possuímos. Para corrigir essa noção
tola, Jesus morreu.
Neste mundo às avessas, há pessoas que possuem bem pouco e às vezes descobrem motivos
maravilhosos para ser felizes, ao passo que outras, que possuem muito, acham-se desgraçadas.
Nossa filosofia torta nos leva a lamentar com as palavras de uma canção bastante popular no
passado: "Pergunte ao rico, e ele reconhecerá que o dinheiro não compra a felicidade. Pergunte
ao pobre, e ele não terá dúvida de que prefere ser infeliz a ficar sem dinheiro". Assim como
Tevye, do filme O violinista no telhado, o pobre clama a Deus, perguntando se algum grande
plano divino se estragaria se ele fosse rico. Salomão situa-se no extremo oposto de Tevye —
poderia comprar o violinista no telhado. Era um homem rico que tinha de tudo em abundância.
De sua fartura brotava tédio. De seu tédio brotava desânimo, e de seu desânimo brotou o livro
de Eclesiastes.
O livro de Eclesiastes foi escrito por ura homem que refletiu por muito tempo, às vezes com
pessimismo, acerca do significado da vida. Em tempos como os nossos, em que as diversões e
as riquezas parecem sempre belas na televisão, precisamos de Eclesiastes. Esse livro é o
laboratório onde os ricos podem estudar a depressão e o tédio. Nossas novelas glorificam as
riquezas, o poder e a permissividade. O sexo é a obsessão daqueles que têm tudo (Salomão teve
mil mulheres), e o poder, de acordo com o eufemismo de Henry Kissinger, é o afrodisíaco
supremo. O poder e o abuso de poder raras vezes fizeram bem ao mundo. Mesmo assim, a
maioria das pessoas prefere dirigir os próprios planos a fazer parte dos planos alheios. O
Satanás da obra de Milton testificou que seria melhor governar no inferno do que servir no céu.
Ao que parece, Salomão nunca fez ideia de que a permissividade e o serviço sacrificial
representam uma bifurcação na mesma estrada — um caminho leva ao poder, outro, ao
sacrifício. Mas ninguém faz diretamente uma escolha entre o poder e o sacrifício. Em primeiro
lugar, escolhe-se a abnegação. Ou decidimos negar a nós mesmos e viver em harmonia com
Cristo, ou vamos atrás de alguma esfera de influência pessoal.
O altar dessa decisão é o maior santuário de nossa vida. Ao escolhermos que caminho vamos
percorrer, também estamos escolhendo nosso companheiro de viagem. Jesus nos acena para
seguirmos por um dos caminhos, e Satanás indica o outro. Jesus está vestido com roupas pobres,
em pé ao lado da própria cruz, e nos aponta outra cruz, que pretende claramente que
carreguemos. Satanás, no outro caminho, está vestido de plumas e paetês, segurando sacos de
dinheiro e acenando: "Vem cá". Cristo deseja tornar-nos úteis, e Satanás, transformar-nos em
vedetes e astros.
Nós escolhemos. A maioria anda pelo caminho do tentador. Mas os que caminham com Jesus
percorrem uma trilha menos usada. Cristo faz seus companheiros lembrarem-se de que os ricos
e famosos da estrada mais procurada estão descendo paulatinamente para o abismo final do ego
e da morte. A recompensa deles, na melhor das hipóteses, será um caixão bonito e uma lápide
mais cara do que a dos mártires. Mas o caminho tão gostoso não leva a lugar algum.
Nós que escolhemos a Cristo descobrimos que o destino é somente um pouco melhor que a
jornada. Andamos com ele. Falamos, e ele escuta. Sentimos dores, e ele nos cura. Ficamos
perplexos com os enigmas da vida, e ele nos oferece respostas. Quando não há resposta, ele
concorda em esperar conosco até que cheguemos à terra onde todos os pontos de interrogação
serão banidos pela compreensão instantânea.
Quando a viagem se aproxima do fim, Jesus está em dois lugares, e passamos a ter um
abençoado paradoxo. O mesmo Jesus que sempre foi nosso companheiro de viagem, passa a ser
nosso hospedeiro e estende os braços para nos dar as boas-vindas em casa. Finalmente,
conseguimos ver com clareza que o destino certo sempre foi melhor do que o caixão dourado.
O que dizer dos viajantes do caminho largo? Nessa senda, o sexo é a mística mais santa que os
ricos e famosos — e temporais — conseguem conhecer. A beleza física é o valor supremo nessa
estrada. O ego é o pequeno Baal da geração superficial, que escolhe em favor de si mesma. Seus
valores são todos de giz e gesso. Nessa estrada, o trânsito é controlado pelos senhores da Bolsa
de Valores. Em geral se pensa que a vida existe nas esquinas onde circula muito dinheiro e as
grifes causam deslumbramento.
Com que se pareceria o rei Salomão em nossos dias? Creio que teria experimentado o estilo da
Wall Street, montado na alta do mercado passando pela avenida larga do sucesso financeiro.
Teria experimentado a devassidão moral e o sexo pela Internet. Entraria no mundo das drogas,
aquela viagem prolongada pontuada por alucinações e ressacas.
Certamente teria experimentado carros esportivos, gurus, ioga, caratê, tae-bo, golfe, vodca etc.
Teria praticado montanhismo, mergulhos com tubo de oxigénio, mergulhos para catar pérolas,
mergulhos no ar, Las Vegas e Disneylândia. Teria assistido a filmes de arte, arrecadado fundos
entre as celebridades, dirigido uma Ferrari com superequipamento, saído com atrizes de cinema
suecas, apostado corrida de iate, frequentado lugares e festas de requinte, especulado com poços
submarinos de petróleo, teria feito pesca submarina, frequentado sessões de médiuns chiques e
discutido Eric Fromm com seu psicanalista. Mas, infelizmente, nada disso seria diversão para
ele. Os devassos nunca conseguem exclamar "uau!" com sonoridade e extensão suficientes para
se convencerem de que estão mesmo se divertindo.
Embora bem poucos de nós tenham meios financeiros para viver uma vida de tamanha
frivolidade, sucumbimos diante da noção de que esse estilo de vida valha a pena. A maior parte
da cultura do caminho largo assume o compromisso de tornar tudo o mais belo possível. Mas a
maior parte da busca do sentido das coisas acaba no vazio. A biografia de cada uma dessas
pessoas consiste em dois versículos do livro de Eclesiastes: "Que fardo pesado Deus pôs sobre
os homens! Tenho visto tudo o que é feito debaixo do sol; tudo é inútil, é correr atrás do vento!"
(Ec 1.13,14).
Que exclamação angustiante! É verdade que todos os empreendimentos da vida estão
destituídos de significado? Becket disse: "Coma e defeque, o prato e a privada, esse é o alcance
máximo do homem". E Cherea diz em Calígula: "Vou lhe contar o que me assusta. Perder a
vida não é grande coisa, e terei coragem quando for necessário. Mas ver dissipado o sentido
desta vida, ver desaparecer nossa razão de existir, isso é intolerável. O homem não pode viver
sem sentido".
Precisamos ficar sentados com Deus por um tempo. Se há uma resposta para a falta de
significado, ela se encontra no aposento secreto do coração. Whittier entendia isso:
E assim acho melhor vir
A esse quarto quieto para um repouso mais profundo,
Pois aqui o hábito da alma
Sente menos o controle do mundo exterior...
E do silêncio multiplicado
Por essas formas imóveis em cada lado,
O mundo que o tempo e os sentidos conhecem
Caem por terra e ficamos a sós com Deus.5
Quanto perdemos sempre que tentamos agarrar os bens da vida e nos recusamos a abrir as mãos
para receber o que Deus nos quer dar! Frederick Buechner escreveu: "Vai para onde suas
melhores orações o levam, descerre os punhos do espírito e relaxe. Respire profundamente ar
alegre e viva um dia de cada vez. Saiba que você é precioso".6
Os cristãos evangelizam o mundo porque crêem que têm a resposta à pergunta: "Qual é o
sentido da vida?". Salomão foi um homem que disse em quase todas as páginas do seu livro:
"Tive um encontro com Deus e ainda tenho dúvidas acerca de todas as coisas que supostamente
me dariam sentido à vida". A maioria dos bilhetes de despedida de suicidas pulsa com as
questões que se acham no centro de Eclesiastes.
SENTIDO E DESCONTENTAMENTO
O pessimismo da busca de Salomão se completa nos evangelhos. Jesus disse que a verdade
liberta (v. Jo 8.32). Entretanto, muitos estão presos num mundo em que a verdade é difícil de
achar e onde esses prisioneiros estão acorrentados a condenáveis mentiras materialistas. Veja se
você se reconhece nestas palavras de Salomão: "Havia um homem totalmente solitário; não
tinha filho nem irmão. Trabalhava sem parar! Contudo, os seus olhos não se satisfaziam com a
sua riqueza. Ele sequer perguntava: 'Para quem estou trabalhando tanto, e por que razão deixo
de me divertir?' Isso também é absurdo; é um trabalho por demais ingrato!" (Ec 4.8).
Há muitos anos, foi exibido o filme Se o meu fusca falasse. Tratava da história de um
Volkswagen muito animado chamado Herbie. Em determinada cena, Herbie está estacionado
num drive-in típico da década de 1950. Numa tentativa de fomentar o namoro entre o mocinho e
a mocinha, Herbie recusa-se a abrir suas portas e janelas e deixá-los sair. A mocinha, presa,
começa a bater na janela e grita a um casal de hippies no carro ao lado:
— Socorro, estou presa!
O hippie cabeludo acena para ela, empurra um hambúrguer enorme para dentro da boca cheia de
dentes esverdeados e responde, despreocupado:
— Todos nós somos prisioneiros, bonequinha! Filosofia sublime para um filme não tão sublime.
Jesus disse que, se não o recebermos como a verdade redentora, permaneceremos eternamente
prisioneiros sem esperança. Fizemos da prosperidade quase um inferno. Temos mais do que
conseguimos gastar — mais do que necessitamos. Mas nossa fartura não é liberdade. É uma
prisão da essência. Estamos servindo às mentiras e somos prisioneiros da intranquilidade. Como
prisioneiros da falta de paz podem chegar a encontrar contentamento? Obtendo lucro em Wall
Street? Ganhando dinheiro suficiente para mudar de um gueto brilhante para o próximo? É claro
que não! Se quisermos ter verdadeiro contentamento, encontraremos na fonte de uma só
verdade: Deus está em Cristo reconciliando o mundo com ele mesmo.
Lorenzo Scupoli compreendia que, assim como servir a Cristo traz grande alegria, servir ao
egoísmo traz intranquilidade. Da mesma maneira que o eu é o deus da infelicidade, a abnegação
é o bálsamo. Scupoli diz que precisamos ter uma desconfiança saudável de nossa necessidade de
servir ao eu:
Precisamos tomar quatro atitudes para conseguir essa desconfiança espiritualmente saudável de
nós mesmos:
1. Refletir em nossa própria fraqueza. (Reconhecer que não con-
seguimos realizar nada sem a ajuda de Deus.)
2. Pedir a Deus o que somente ele pode dar. (Reconhecer que não
temos isso e que não podemos adquiri-lo em outro lugar. Devemos nos
prostrar aos pés do nosso Senhor e implorar que ele nos conceda o que
pedimos.)
3. Descartar pouco a pouco as ilusões de nossa mente (— nossa
tendência para o pecado — e começar a ver os obstáculos im-
pressionantes, embora, ocultos, que nos cercam. Cada vez que
______________________________________________________________________
5
The meeting, cit. Harry FARRA, The early years of the little monk, New York: Paulist Press, 1999, p. 10.
6
Telling secrets, p. 92-3.
cometemos uma falta, devemos fazer uma relação de nossas fraquezas.
Deus só permite que caiamos para ajudar a compreen-der-nos mais
profundamente. Deus permite que pequemos de modo mais ou menos
grave segundo a proporção do nosso orgulho. Cada vez que
João 21 contém uma passagem maravilhosa em que Jesus volta à vida depois de ressurreto. Os
apóstolos, no entanto, ficam apreensivos e incertos quanto às aparições inesperadas. Parecia-
lhes que Jesus sempre aparecia nos lugares menos esperados e os pegava desprevenidos.
Depois, Jesus se ausenta por algum tempo. Depois de alguns dias sem "nenhuma aparição", os
apóstolos estão de volta a bordo de seu barco, pescando, quando de repente Jesus aparece na
_________________________________________________________________________
7
The spiritual combat, cit. BANGLEY, da leitura do dia 15 de maio.
praia enevoada da Galiléia como uma silhueta na penumbra que antecede a alvorada.
Perguntou-lhes:
— Filhos, vocês têm algo para comer?
— Não! — exclamam.
— Lancem a rede do lado direito do barco e vocês encontrarão! — grita.
Eles obedeceram, e a pesca foi tão grande que a rede quase se rompeu.
Pedro, consciente de que se trata do Senhor (está despido a bordo) , veste rapidamente a capa de
pescador e atira-se ao mar, nadando rapidamente até a praia. Quando chega, vê que Jesus já está
com uma fogueira acesa. Nada demais! Nos nossos dias talvez se tratasse de uma caneca de café
sendo preparada sobre as chamas. Depois que os outros encostaram o barco,
Simão Pedro entrou no barco e arrastou a rede para a praia. Ela estava
cheia: tinha cento e cinquenta e três grandes peixes. Embora houvesse
tantos peixes, a rede não se rompeu [...] Depois de comerem, Jesus
perguntou a Simão Pedro: "Simão, filho de João, você me ama mais do
que estes?". Disse ele: "Sim, Senhor, tu sabes que te amo". Disse Jesus:
"Cuide dos meus cordeiros" (Jo 21.11,15).
Nessa história, podemos descobrir várias razões comuns para a luta que travamos para encontrar
sentido em nosso cristianismo.
Deixe que essas descobertas o ajudem a começar a traçar o itinerário da compreensão de você
mesmo.
Estamos muito preocupados com o que Deus está fazendo na vida de outra pessoa
Quando Pedro recebe a má notícia de como vai morrer (como mártir), naturalmente se preocupa
com que tratamento os demais apóstolos vão receber, de modo que se volta e, vendo João,
pergunta: "Senhor, e quanto a ele?".
Jesus responde: "Se eu quiser que ele permaneça vivo até que eu volte, o que lhe importa?
Quanto a você, siga-me!" (Jo 21.21,22).
Para sermos verdadeiramente felizes, temos de parar de comparar nosso destino com o bom
tratamento que outra pessoa está recebendo. Quando começamos a fixar nossa atenção naquilo
______________________________________________________________________
8
The Saving life of Christ, Grand Rapids, Zondervan, 1961, p. 42.
9
Ibid, p. 41.
que nos parece ser injustiça da parte de Deus, a amargura começa a crescer. Por isso, Cristo diz:
"Pare com isso! Pare de comparar-se com pessoas brilhantes e talentosas. Siga-me".
CONCLUSÃO
____________________________________________________________________________
10
Apoth., Mius, cit. Roberta C. BONDI, To love as God loves, Philadelphia: Fortress Press, 1987, p. 51.
Esforcemo-nos para entrar pela porta estreita.
Somos semelhantes às árvores, que, se não
suportarem com firmeza as tempestades
do inverno, não podem dar frutos.
O tempo presente é uma tempestade,
e somente com muitas provações
e tentações podemos obter uma
herança no Reino dos Céus.1
— AMMA THEODORA
________________________________________________________________________________
2
De Daily readings in orthodox spirituality, Peter BOUTENEFF, org.,
Springfield: Templegate Publishers, 1996, p. 42.
2
Ibid.
2
Careço de Jesus in: Salmos e hinos, n° 170.
Como me aproximarei de ti, ó meu Deus?
Conte toda a verdade, meu filho.
Passe uma boa escova de honestidade.
Lave suas fraquezas com a confissão.
Depois, a nossa vida juntos me satisfará,
e eu te chamarei de filho.
E nossa união lhe concederá
acesso a meu trono.
___________________________________________________________________________________
4
Cit. BOUTENEFF, p. 51.
A CONFISSÃO E A GLÓRIA
DE NOSSA NECESSIDADE
A mentira interior é "estou bem". A mentira externa é "você está bem". A idiotice cultural é
que todos estão bem. Existem duas maneiras de lidar com o nosso pecado. A primeira é olhar
para ele e dizer: "Eu estou bem". A segunda é dizer: "Bom, para ser sincero, não estou bem, mas
tudo fica bem porque Cristo é maior do que tudo e é onipotente".
A partir da metade do século XX, o conceito de pecado começou a desaparecer. Karl Menninger
lamentou-lhe o falecimento em seu notável livro Whatever became of sin? [Em que se
transformou o pecado?]. Protestou contra a ascensão da psicologia do "eu estou bem, você está
bem". Chegou a dizer que a condição de "estarmos bem", diante da realidade da depravação
humana, era como falar dos pássaros azulões no meio de um monte de esterco. As pessoas que
continuamente se congratulam por estar bem não são boas candidatas para a graça. A
necessidade é o melhor incentivo para nos atrair ao Cristo todo-poderoso. "O bispo martirizado
de El Salvador, Oscar Romero, disse certa vez que somente os pobres podem comemorar o
Natal, aqueles que 'sabem que precisam de alguém para vir em favor deles'."5 Os que
reconhecem que estão espiritualmente famintos descobrem com rapidez o pão de Deus. Quando
vêem a cruz, dizem com toda a prontidão: "Perdoa-me. Vem, Espírito Santo, pois meu vazio
precisa agora da tua plenitude".
Talvez tenha sido por isso que Boaventura exclamou no Natal: "E agora, a minha alma abraça a
manjedoura. Pressione os lábios nos pés do Cristo menino com um beijo devoto; acompanhe
mentalmente a adoração dos pastores; contemple maravilhado o exército de anjos que o
acompanhava...".6 Para mim, é claro que nossa necessidade foi satisfeita pelo Deus compassivo,
que nos amou a ponto de desprezar a cidade de pérola e preferir a palha e o estábulo. E nós, que
somos espiritualmente pobres, não podemos deixar de notar sua vinda.
A confissão é o segredo de uma relação correia com Deus. Num poema do século X, Eva
confessa seu pecado e a consequência dele: "Eu sou Eva, mulher do grandioso Adão; fui eu
quem ultrajou a Jesus no passado; fui eu quem furtou dos meus filhos o céu; segundo a justiça,
sou eu quem deveria ter ido para o madeiro".7 Juntamente com o salmista, Eva entende que seu
pecado não é contra Adão somente. É contra Deus.
No mesmo poema do século X, Judas, o condenado à perdição, lamenta: "A de mim porque
abandonei o meu Rei". Embora Judas esteja perdido para sempre nessa história apócrifa,
também entende que seu pecado é contra Deus.
Nós somos pecadores. Nosso pecado custou a Jesus sua vida. O pecado é realidade. É grave e é
barreira entre nós e Deus. Mas não precisa nos fazer viver com culpa nem autocondenação. A
confissão é a resposta de Deus à culpa. O salmo 51 vem com o seguinte título: "Salmo de Davi.
Escrito quando o profeta Nata veio falar com Davi, depois que este cometeu adultério com
Bate-Seba". Ou, em termos francos: "Salmo de Davi, depois de ele ter sido pego em flagrante".
Existem duas ocasiões em que uma pessoa pode confessar um pecado: antes de ser flagrado ou
depois! Se o pecado é confessado antes do flagrante, é chamado "confissão". Se depois, é
"reconhecer a culpa". Se você esperar até depois de ser apanhado, descobrirá que a dor de
"reconhecer a culpa" é mais difícil do que se pode imaginar. E o peso é uma sobrecarga na
confissão. Davi confessou, e a cura acompanhou sua honestidade. "Pois eu mesmo reconheço as
minhas transgressões, e o meu pecado sempre me persegue" (SI 51.3). Nasce em todos nós uma
_____________________________________________________________________________
5
Kathleen NORRIS, Amazing grace, p. 226.
6
Cit. The saints show us Christ, p. 168.
7
Esther DE WAAL, The Celtic way of prayer, p. 121.
forte necessidade de confessar o pecado. A necessidade não somente é o estado do coração
impenitente, como também é a sua glória. A confissão é o caminho de volta ao relacionamento
perdido com Deus.
Diante do biombo do confessionário, o penitente diz ao sacerdote: "Abençoe-me, padre, pois
pequei [...] Passaram-se tantos dias desde minha última confissão". Essa referência deixa os
comungantes livres do "sacerdócio do sacerdote" a fim de cumprir "o sacerdócio do crente".
Contudo, os evangélicos são em geral menos pontuais no que se refere à confissão. Será que não
levamos o pecado a sério?
Quando alguém me diz: "Não confesso meus pecados há muito tempo", sei que não é
meramente porque tem menos pecado do que outras pessoas. O verdadeiro problema é que a
pessoa se desculpa e não tem a menor ideia — ou talvez nem sequer se importe — de que seu
pecado está impedindo o relacionamento dela com Deus. Todo cristão saudável anseia pela
confissão, porque leva a sério seu relacionamento com Deus.
Em termos de oração, é possível que exista um só pecado. Não é o pecado de fatigar a Deus
com confissões, mas o pecado de não ansiar por Deus. "Se Deus não se cansa, nós mesmos
podemos nos cansar de ansiar", escreve Annie Dillard.8
E Deus escuta e perdoa a alma que o ama e por ele anseia? É claro que sim. Mas o pecado não
confessado permanece como nosso maior bloqueio à graça. Nicolau Cabasilas escreveu:
Das muitas coisas que impedem nossa salvação, a maior de todas é que, quando cometemos
alguma transgressão, não nos voltamos imediatamente para Deus e lhe pedimos perdão. Por
sentirmos vergonha e medo, achamos que é difícil o caminho de volta a Deus, que ele está
zangado e indisposto conosco e que há necessidade de muita preparação se quisermos nos
aproximar dele. Mas a misericórdia amorosa de Deus expulsa totalmente da alma esse pensa-
mento. O que pode impedir qualquer pessoa que claramente sabe como ele é bondoso e que,
conforme está escrito, "enquanto ainda falas, ele dirá: 'Eis-me aqui'".9
CONCLUSÃO
A graça de Deus é maior do que o nosso pecado. Sua bênção preenche até transbordar o abismo
dos nossos anseios. Clamamos em nossa necessidade e de imediato descobrimos que ela já não
existe. Em seu lugar, há riquezas fornecidas direta e ricamente da tesouraria do perdão que
procuramos com tanta relutância. Realmente compreendemos: "O meu Deus suprirá todas as
necessidades de vocês, de acordo com as suas gloriosas riquezas em Cristo Jesus" (Fp 4.19).
Não falemos, porém, da confissão como se fosse um trabalho penoso. É a maneira mais doce
possível de acabar com nossa obstinação. Coloca uma nova qualidade imediata em nossa união
com Cristo. Impacta-nos com júbilo proveniente de outro mundo.
Às vezes, a confissão é uma tarefa dura, mas é um esforço que vale a pena. As moedas que
ganha compram uma exultação permanente. A dor da cirurgia do câncer é esquecida quando o
médico diz: "Conseguimos remover tudo!". Uma mãe considera que suas dores de parto valem
bem a pena quando seu bebê vivo chora fora do corpo dela.
E quando nossa carência nos leva, chorando, à cruz, bendizemos nossas lágrimas e celebramos
nossa alegria. Nossa pobreza de espírito é trocada pela riqueza incomensurável da graça de
Deus. Nossa melhor confissão termina com antífonas que celebram a purificação que
recebemos. Isso porque Deus, que parecia distante e frio enquanto estávamos em nossos
pecados, aproxima-se de nossas palavras que pedem perdão.
_______________________________________________________________________
15
His stubborn love, p. 64-5.
Eu mesmo fiquei tão emaranhado e
constrangido pelos muitíssimos erros do
meu passado, que não acreditava que me
fosse possível escapar deles (...)
Mas quando a mancha do meu passado foi
lavada mediante a ajuda da água do
nascimento (o batismo) (...) e o segundo
nascimento me restaurara de modo a fazer
de mim um novo homem (...) aquilo que
antes parecera difícil agora era fácil.1
— ClPRIANO
______________________________________________________________________
1
Cit. Tony LANE, Exploring Christian thought, Nashville: Thomas Nelson, 1984, p. 24.
2
A vida cristã normal, p. 17.
3
A passion for God, p. 68.
Estou limpo porque confessei.
Permanecerei limpo até eu pecar...
Então confessarei e ficarei limpo de novo.
A confissão é a janela da graça.
Confessamos, e a luz solar da integridade
passa com seus raios pelo vidro manchado
dos nossos meios-termos e nos purifica
ao chegar até nós.
_________________________________________________________________________________________
4
Cit. LANE, p. 156-7.
A CONFISSÃO E O DISCIPULADO
LIVRE DE CULPA
Em certos momentos da nossa vida, somos semelhantes a crianças amedrontadas por uma
tempestade à meia-noite. Nosso terror é um divórcio escuro — uma separação entre a confiança
e a necessidade. Mas o medo contém ainda outra maldição. Aquilo que tememos também nos
transmite certo tipo de culpa. Por quê? Porque nossos amigos na igreja, aqueles impulsionados
por chavões, disseram muitas vezes que nenhum cristão verdadeiro chegaria a ter medo em
hipótese alguma. E saber que não deveríamos ter medo nos deixa com sentimento de culpa.
Somos como uma criança apanhada com a mão na lata de biscoitos, cujos pais disseram —
quase como se estivesse escrito na Bíblia: "Não comerás; no momento em que comeres,
certamente serás castigado". O medo e a culpa vêm e voltam juntos em nossa vida.
Uma das quatro emoções humanas básicas é o medo. Quando estamos acossados por ele,
devemos reconhecer que boa parte da Bíblia nos foi dada a fim de que não precisássemos viver
acorrentados a esse demônio. O salmista diz: "Mesmo quando eu andar por um vale de trevas e
morte, não temerei perigo algum, pois tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me protegem"
(23.4). O salmo 91 aconselha a nos esconder à sombra do Todo-Poderoso e, ao proceder assim,
fazer de Deus a fortaleza da nossa segurança. Martinho Lutero, ao ler esses versículos, escreveu:
"Castelo forte é nosso Deus, espada e bom escudo" .
Como Lutero tinha razão! Não precisamos passar pela vida intimidados pelo medo. O Cristo
que em nós habita torna-se a nossa segurança ou, conforme diz o salmo 23, a nossa vara, nosso
cajado, nosso companheiro constante, nosso grande pastor! Nossos temores devem dissipar-se
quando o sentirmos presente. Nossa confissão contínua é a chave de sua presença permanente.
Hildegard de Bingen escreveu:
Os pecadores descobrem que suas amizades são frágeis, facilmente quebradas; a solidão é a
porção deles. Mas essa solidão não precisa ser permanente. O arrependimento restaura a
amizade; o pecador que se arrepende recebe como recompensa os prazeres do companheirismo.5
A presença de Deus é a nossa fortaleza.
Frequentemente, no entanto, a despeito da fortaleza de Deus, agimos superficialmente e com
bravata inchada. "Bravata" é a arte de dizer a nós mesmos que não estamos com medo, quando,
na realidade, estamos mortalmente atemorizados. Somos mais fortaleza tremente do que
fortaleza poderosa! A passagem bíblica citada acima nos ensina que a coragem não é a ausência
de medo. É a capacidade de enfrentarmos, inflexíveis, os nossos temores.
Existem tipos diferentes de medo. Primeiro, o tipo instantâneo, repentino, que pega de
surpresa; "Ele o livrará do laço do caçador" (Sl 91.3). O salmo dirige nossa atenção à armadilha
do caçador que, sem aviso prévio, salta e se fecha ao redor de uma ave infeliz. Assim também
na vida encontramos aqueles temores que chegam de supetão, sem dar tempo para prepararmos
uma resposta. A vida gira num tostão. A tampa coberta de capim cede e somos lançados
imediatamente na cova. Andamos por uma rua bem conhecida, a mesma que percorremos
durante anos. Viramos numa esquina — a mesma esquina em que viramos muitas vezes — e o
universo decai, e nosso mundo é destruído. Às vezes, a vida surpreende-nos com circunstâncias
tão devastadoras que nunca poderemos voltar a viver da mesma maneira que vivíamos antes.
É a agonia trucidante da síndrome do medo. Não poderíamos ter suspeitado que algo semelhante
__________________________________________________________________________
5
Hildegard in a nutshell, Robert van de WEYER, org., London: Hodder & Stoughton, 1997, p. 66.
fosse acontecer. Acontece sem avisar, e, num dia lindo que achávamos que duraria para sempre,
ficamos fragmentados e quebrados. Nunca teremos a capacidade de rejuntar os pedaços
esmigalhados da nossa vida.
Existe, porém, um segundo temor: o medo contínuo da luta do dia-a-dia. Todos os tipos de
coisas nos amedrontam. Às vezes, nossos maiores temores estão nos atropelos da vida.
Conseguiremos dar conta?
Já ouvi algumas pessoas dizerem: "Os cristãos verdadeiros nunca sofrem esgotamento". Não
acredite nisso! Os cristãos estão em segurança contra o repentino esmagamento por um peso de
calamidades seguidas? Claro que não! Às vezes, as situações vêm contra nós tão rapidamente
que ficamos paralisados diante delas. É claro que podemos sofrer esgotamento, assombrados
pelos terrores que nos enxameiam como insetos e ameaçam nos conquistar.
O esgotamento, porém, não é nossa condição final. A confissão pode nos tirar desse vazio
escuro ao fazer de Cristo nosso parceiro para enfrentarmos os terrores da vida. Na realidade, a
confissão é a nossa única armadura contra os males esmagadores do mundo demoníaco. Abraão,
o discípulo de Abba Agathon, perguntou a Abba Poemen, dizendo: "Como os demónios lutam
contra mim?". Abba Poemen lhe disse: "Os demônios lutam contra você? Não lutam contra nós,
de modo algum, enquanto estivermos fazendo a nossa própria vontade. Isso porque a nossa
própria vontade passa a ser a dos demônios, e são estes que nos atacam para que a cumpramos.
Mas, se você quiser saber contra quem os demônios realmente lutam, é contra Moisés e aqueles
que são semelhantes a ele”. 6 Os Pais do Deserto consideravam a confissão uma verdadeira arma
contra os demônios do esgotamento que congestionam nossos dias.
A confissão nos mantém em contato com Cristo. A confissão nos faz andar com o pastor, com
nosso Rei maravilhoso, coroado com o sol. Capte a metáfora que realmente se acha no salmo
23. No vale escuro, as ovelhas chegam bem perto das pernas do pastor e tocam nele enquanto
atravessam as fendas estreitas de trevas e dúvidas. Vêem na mão do pastor um cajado e uma
vara. Com o cajado, toca suavemente nas ovelhas para guiá-las e dirigi-las. Com a vara, lhes
diz: "Nada pode ameaçar vocês a menos que minha vida seja tirada. Cuido de vocês. Amo
vocês. Confiem em mim!". Deus não deixa nenhum medo ter a liberdade de impor sua vontade
sobre nós.
O terceio medo é um tipo de terror; o medo do desconhecido, de dar um passo para a frente. O
salmista diz que Deus, de modo semelhante a uma águia, estende as asas sobre nós e cuida de
nós: "Ele o cobrirá com as suas penas, e sob as suas asas você encontrará refúgio" (91.4). Aqui,
"penas" pode referir-se aos grandes ossos primários nas asas da águia, que estendem as penas
sobre os filhotes a fim de que nada os atinja.
Muitas vezes, Deus opera em nossa vida assim como fazemos com nossos filhos.
Frequentemente, nos empurra para dentro de algum lugar desconhecido para nos fazer confiar e
crescer. A mãe águia às vezes precisa parecer sem coração. Quando surgem alguns movimentos
próprios da maturidade, ela empurra seus filhotes em direção àquilo que mais temem: a beira do
ninho.
Mas a águia realmente é desalmada? Ela sabe que os temores naturais de seus filhotes os
deixariam encalhados, tremendo para sempre em meio aos gravetos secos do seu ninho nas
alturas. No final, iriam se tornar águias velhas e gordas que nunca conheceram a alegria dos
mergulhos no espaço nem a emoção do pôr-do-sol. Por isso, os filhotes precisam aprender que a
queda tão temida não passa de uma ilusão a ser domada. O medo só precisa ser vencido para ser
transformado em vôo. O vôo é fruto das asas que dão ao terror. Os temores das aguiazinhas são
reais? Sim. Mas não precisam enfrentá-los sozinhas. Contra tais temores, a mãe águia estende
suas asas. O inverno está chegando. Não demorará para cair o gelo sobre o ninho. Mas até lá
esses filhotes não conhecerão nenhum medo. A mãe estendeu o alcance das asas de seu zelo
entre as vidas frágeis e a tempestade.
Semelhantemente, o Bom Pastor nos diz: "Eu os liberto do medo. Vocês não terão medo do
terror da noite". Não ter medo? Não! Temos um intercessor! O Espírito Santo está em oração
constante por nossa segurança.
A atenção verdadeira e inerrante significa que o intelecto fica vigiando
o coração enquanto este ora. Deve sempre estar de plantão,
_____________________________________________________________________________
6
Apoth., Poemen 65:176, cit. Roberta C. BONDI, To love as God loves, p. 68.
patrulhando o coração e de dentro — das profundezas do coração —
deve oferecer suas orações a Deus.7
Nenhum coração precisa temer enquanto o Espírito Santo permanece em orações incessantes.
A confissão é o canal originário da coragem.
Você já conheceu o terror da noite? Nunca teve medo do escuro? Agora você é grande demais,
não é? Mas já houve tempos em que tinha medo do escuro. Parecia que demónios ficavam à
espreita nas flores do papel da parede. Você tinha medo de apagar a luz e medo de ligar de novo
de modo muito rápido, para não apanhar os próprios demónios pairando diretamente sobre você.
Eu, quando era criança, tinha medo do terror da noite. Odiava a escuridão. E tinha pesadelos tão
terríveis que fiz uma promessa a mim mesmo: se um dia eu tivesse filhos, nunca os deixaria
passar uma única noite terrível de medo. Assim também, Deus não quer que qualquer de nós
passe por semelhante medo: "Minha verdade será o seu escudo", diz ele. "Minha verdade será a
sua fortaleza. Tenho um cajado; tenho uma vara. Não confie em nada senão na minha vara e no
meu cajado." Devemos, portanto, confiar.
Quando as tempestades se aglomeram contra nós, devemos confiar. "Não tenha medo das
provações que Deus achar por bem mandar a você. É com o vento e a tempestade da tribulação
que Deus faz separação entre o trigo verdadeiro e a palha."8
Devemos lidar com nossas provações: "Faça amizade com suas provações, como se vocês
fossem conviver juntos para sempre, e você verá, quando deixar de se preocupar com o próprio
livramento, que Deus cuidará de você".9
Devemos exclamar: "Bendito seja qualquer peso, por mais esmagador que seja, que Deus teve a
bondade de fixar nos nossos ombros, com sua própria mão divina".10
Devemos testificar que somos abençoados pelos próprios terrores da nossa vida: "Aprenda a ser
como o anjo que descia entre os doentes de Betesda sem perder a pureza celestial nem a
felicidade perfeita. Obtenha a cura das águas remexidas. Resolva enfrentar a perspectiva de
aguentar certa medida de dor e angústia ao passar pela vida".11
"A aflição e a perplexidade nos levam à oração, e a oração leva embora a aflição e a
perplexidade."12
"Deus dedica mil vezes mais cuidados a nós do que o pintor ao seu quadro. Por muitos toques
de tristeza e por muitas cores das circunstâncias, Deus quer levar o homem a ter a forma mais
sublime e nobre ao olhar divino."13
O Bom Pastor entrega-se a si mesmo pela vida de suas ovelhas. Lembro-me de uma pessoa
muito querida na minha primeira congregação que não era membro da nossa igreja. Foi doente a
vida toda e resolveu ir a Lourdes para receber a cura.
Questionei sua sabedoria: "O que Deus pode fazer na França que não possa fazer no município
de Cass?". Vi-a sair de viagem. Ainda estava usando seu crucifixo predileto quando embarcou
para a França a fim de receber a cura. Voltou para a nossa cidadezinha dentro de poucas
semanas, ainda muito doente. O crucifixo ainda estava pendurado em seu pescoço. Ela me disse:
"Aprendi uma coisa importante na França: nunca confie num crucifixo, mas somente no
crucificado". Nisso, estava realmente me dando uma resposta na forma de sua confissão. E sua
confissão estava sarando todos os temores dela.
A confissão não cria nenhum poder dentro de nós, mas certamente lança fora todo o lixo da
preocupação com nós mesmos. Em seguida, o poder de Deus pode encher de coragem o lugar
vazio. A confissão nos leva a lembrar que temos um Pai celeste que anseia por nos ver
vitoriosos. Um dos santos de Deus, de tempos distantes, Minúcio Félix, escreveu:
Que vista bela é para Deus quando o cristão vem de braços com a dor; quando entra na luta
___________________________________________________________________________
7
SlMEÃO, cit. Andrew HARVEY, org., Teachings of the Christian mystics, Boston:
Shambhala, 1998, p. 60.
8
Miguel MOLINOS, cit. Tileston, org., Daily strength for daily needs, p. 347.
9
Francisco de SALES, ibid., p. 321.
10
Frederick William FABER, ibid., p. 342.
11
Cardeal John Henry NEWMAN, ibid., p. 72.
12
Filipe MELÂNCTON, ibid., p. 76.
13
João TAULER, ibid., p. 305.
contra as ameaças, contra a pena capital e contra a tortura; quando, com sorrisos, ri do barulho
das ferramentas da morte e do horror do algoz; quando defende e sustenta sua liberdade em
oposição aos reis e príncipes e obedece somente a Deus, a quem pertence; quando, de modo
triunfante e vitorioso, desafia a própria pessoa que decretou a sentença contra ele! É, pois, um
vencedor que alcançou o alvo das suas aspirações.14
É assim que se vive sem temor. É descansar à sombra do Onipoten-te e andar debaixo da
proteção de sua vara e seu cajado. Até onde? Ele andará com você para sempre. No avô de
minha mulher, vi claramente que a dádiva do Bom Pastor era a sua fidelidade. Há alguns anos,
quando ele estava doente num hospital em Oklahoma, sua condição deteriorou-se tanto que
parecia que não viveria mais. Estava com 96 anos, e pelo fato de seu estado de saúde ser tão
grave, a família foi reunida para estar presente em seu falecimento. Ele andara com o Pastor
durante muitos anos e, ao confiar nele, descobrira que ele era fidedigno.
Ele me disse: "Será tão bom ver Edith de novo". Ela partira para estar com Cristo trinta anos
antes dele. Esse veterano rural tinha dois grandes amores: a família e a igreja. Agora, enquanto
sua família reunia-se ao redor de seu leito, dávamos graças a Deus pela igreja — diante da
insistência dele. Depois, ficamos de mãos dadas com ele e oramos juntos, recomendando-o a
Deus.
Fui o último a orar. Tão logo disse o amém, ele pediu para encerrar com sua própria oração.
Abençoou cada membro de sua família e de sua igreja. Para um homem tão doente, era uma
oração muito prolongada. A medida que continuava, passava a ser mais eloquente, e começou a
orar em voz tão alta que ecoava pelo corredor do hospital. Na verdade, sua oração era tão
extensa e exuberante que, quando terminou, sussurrei à minha mulher: "Fomos convocados aqui
por um alarme falso. Hoje, ele não vai morrer de jeito nenhum". De fato, viveu mais seis anos!
Mas de uma coisa nunca vou me esquecer: seu comportamento diante da morte. Não tinha
absolutamente qualquer medo! Enfrentara o vale da sombra da morte sem desespero. Foi a
maior de todas as dádivas que poderia ter concedido à sua família.
No vale da sombra da morte, a vara e o cajado realmente consolam. Todos nós devemos ser
cobertos pela sombra de suas asas. Cada um de nós é defendido por seu escudo protetor. Não
podemos permitir que qualquer ferida seja por demais terminal para nos excluir da confiança em
Deus. Nem o dragão nem o arsenal do inferno podem deixar-nos amedrontados.
Considere esse assunto de ficarmos cobertos pelas asas de um Deus amoroso assim como uma
águia cobre os filhotes. Conrad Willard conta uma história triste de quando ele era menino.
Olhou certo dia para o outro lado do quintal e viu uma galinha atravessando orgulhosa o espaço
vazio, cacarejando. Seus pintinhos a seguiam de perto.
O irmão de Conrad desafiou-o: "Aposto que você não consegue atingir aquela galinha velha
com sua espingarda de ar comprimido".
"Era uma espingarda novinha em folha", disse Conrad, "e eu teria atirado em qualquer objeto
parado ou em movimento. Sabia que conseguiria. Coloquei a bala no cano e mirei a galinha.
Puxei o gatilho e a atingi no pescoço.
"A cabeça dela caiu lentamente para o lado. Observei-a fascinado e com duplo medo. O medo
de uma velha galinha em total desorientação sobre o que era a vida e o que poderia significar:
qual calamidade repentina caíra do céu? Depois, vi o medo dos seus pintinhos, fazendo tudo o
que sabiam fazer: correram para a mãe. Mesmo enquanto morria, esticou as asas tão
amplamente quanto pôde, num esforço para protegê-los. E em seus momentos finais, os
pintinhos refugiaram-se debaixo de suas asas, para receberem o último calor que ela podia lhes
dar."
Agora entendo a beleza do compromisso do Salvador: "Eu os cobrirei com as minhas asas. Meu
escudo é libertação para vocês. Estão livres do medo! Podem confiar na minha integridade!
Venham e recebam". Mas qual é o primeiro passo para nos apropriarmos dessa segurança? A
confissão. Chamamos Jesus de "Senhor", e a totalidade da vida torna-se manejável — todos os
nossos temores são como mero papel na presença do seu poder.
________________________________________________________________________
14
Cit. The early Christians, Eberhard ARNOLD, org., p. 127.
O PECADO PRODUZ CULPA
Alguns conseguem a vitória sobre o medo apenas para depois torná-la ineficaz por causa da
culpa. Levantam uma barreira de culpa ao recusarem o perdão de Deus. Devemos confessar a
Cristo nosso pecado. Depois, devemos deixar que ele nos perdoe. Além disso, devemos confiar
em seu perdão. Carregar por aí os pecados que Jesus já perdoou é recusar-nos a confiar na obra
perfeita e total que ele realizou ao morrer por nós. O sentimento de culpa somente pode nos
abençoar quando nos capacita a pedir "perdão" a Deus, ao nosso cônjuge ou aos nossos
familiares. Mas a culpa em demasia, carregada durante um período prolongado demais, passa a
ser destruidora do espírito humano.
Quando chegamos a Deus pela primeira vez para confessar nossos pecados, ele quer remover da
nossa vida tudo quanto há de ruim e deixar no lugar tudo quanto é bom. Mas muitas vezes
impedimos sua obra ao nos apegar às coisas ruins. É então que a culpa dói! No fim, acaba
destruindo.
A intercessão incessante do Espírito Santo é nossa proteção. Ele ora continuamente para que a
culpa não nos vença. Isaque, o Sírio, escreveu:
Por isso se diz que quando o Espírito Santo vem habitar num homem, este nunca cessa de orar,
pois então o próprio Espírito Santo ora constantemente dentro dele (v. Rm 8.26). A partir daí, a
oração nunca cessa na alma do homem, quer esteja dormindo, quer acordado. Ao comer ou
beber, ao dormir ou ao realizar alguma coisa, mesmo no sono profundo, seu coração transmite
sem esforço o incenso e os suspiros da oração. A oração então nunca o deixa, mas a cada hora,
mesmo se estiver em silêncio, continua secretamente a agir por dentro.15
Viver a vida confessional é viver livre dessa culpa. É o nosso desejo. Porém, mais do que isso, é
o desejo da intercessão incessante do Espírito.
Como, porém, nasce a culpa? De modo sutil, penso eu. Todolíipo de coisa pode nos sugestionar
à culpa. Imaginemos que estamos de dieta há três semanas. Em seguida, alguém no escritório
traz uma caixa de sonhos. O cheirinho chega até nós ao entrar pela porta! De início, talvez
procuremos fugir da tentação ao manter fechada nossa porta e ler a Bíblia. Mas o cheiro deles
vem penetrando embaixo da porta e, como hipnotizados, somos seduzidos a ponto de parar o
trabalho. A confeitaria "maligna" nos atrai para olharmos e contemplarmos. É só olhar, mais
nada! Então, examinamos a massa frita, o glacê doce. Mesmo quando damos as costas para nos
afastar, eles clamam: "Coma-nos! Coma-nos! Coma-nosl". Em poucos instantes, tudo acaba!
Recomeça a permissividade! Perdidos e totalmente infelizes, abandonamos três semanas de
dieta, exclamando: "Por quê? Por quê? Por quê?".
Então entramos num novo tipo de tormento. Tendo comido do doce proibido, achamos que
devemos pagar por esse pecado. Como é estranho que um simples bolinho possa nos prender na
esteira da mágoa e forçar-nos a reconhecer a derrota para nossa velha natureza pecaminosa. Por
certo, nossa fraqueza infernal nos implora que pratiquemos algum tipo de penitência. Sentimo-
nos culpados em perder o domínio próprio. O sentimento de culpa que cresceu tanto nos man-
tém determinados no esforço de pagar nosso próprio pecado. S.I.Milliken diz:
O estudo de Hans Eysenck indica que, das pessoas emocionalmente perturbadas que procuram a
psicanálise, 6% melhoram em um ano. Das que procuram psicoterapia, 64% melhoram em um
ano, e das que não procuram nenhum tratamento, 72% melhoram
em um ano.16
Milliken dá a entender que as pessoas lucram mais ficando em casal Sem dúvida, acredito ser
importante obter ajuda profissional quando for necessária. Mesmo assim, creio que, quando
sentimos dor por nosso pecado, é melhor nos voltarmos para Deus.
Mas o senso de culpa frequentemente embute no nosso organismo uma falsa noção de que Deus
gosta mais de nós quando nos sentimos inferiores. De alguma maneira, se virmos a nós mesmos
como insignificantes, ficamos mais humildes diante de Deus. Charles Swindoll diz:
Se Deus tivesse desejado que você fosse verme, poderia muito facilmente tê-lo criado assim!
Você deve saber que ele cria muito bem os vermes. Existe uma variedade quase infinita dessas
criaturas que se remexem. Quando Watts escreveu a respeito dos vermes, estava simplesmente
____________________________________________________________________
15
Cit. HARVEY, p. 63.
l6
Cit. Anthony CAMPOLO JR., The power delusion, Wheaton: Victor Books, s.d., p. 34.
empregando um quadro verbal. Muitos outros, no entanto, têm dado moldura ao quadro, como
modelo a ser seguido, e o têm chamado de humildade. Essa "teologia dos vermes" cria
problemas enormes. Tem muitas faces — todas tristes. Sai de manhã do seu esconderijo entre os
cobertores e o colchão, dizendo a si mesmo: "Não sou nada. Sou um verme. Ai, ai. Não consigo
fazer nada e mesmo que pareça que estou fazendo, não sou eu na verdade quem faz. Ai! Preciso
aniquilar o respeito por mim mesmo [...] crucificar toda a motivação e ambição. Se algo de bom
aparece acidentalmente, preciso escondê-lo rapidamente ou negar categoricamente que tive
alguma parte nisso. Como eu poderia realizar alguma coisa de valor? Afinal, quem sou eu? Sou
um verme. Não presto para nada senão para me rastejar muito lentamente, afogando-me em
poças de lama ou sendo pisoteado. Ai, ai, ai.17
Na igreja evangélica, as pessoas estão sempre se reprimindo. E tudo isso torna-se uma patologia
negativa de espírito que nunca foi a intenção de Deus. Semelhante sentimento de culpa tem feito
da igreja um centro teológico para a baixa auto-estima.
A culpa é, por si mesma, o mais danificante de todos os pecados. Quando a culpa começa a
dominar nossa vida, ficamos esmagados quanto ao nosso autoconceito e nossa segurança e logo
começamos a definhar na febre de tudo quanto temos feito de errado, não vendo absolutamente
nada de bom em nós mesmos. O sentimento de culpa que abrigamos está de verdade matando
não somente nossa íntima comunhão com Deus, mas também com nós mesmos.
Os cristãos nunca devem se sentir culpados? O sentimento de culpa nunca pode ser bom? Sim,
quando tiver o efeito de nos aproximar de Deus, mas também pode ter o efeito de obscurecer a
Deus. O sentimento de culpa fica mais destituído de valor quando ficamos tão preocupados
conosco que não conseguimos enxergar nada senão nossas próprias necessidades egoístas.
Muitos cristãos tendem a não perdoar a si mesmos. Às vezes, fazem isso ao deixar despercebido
o conceito total de pecado. Mas aqueles que realmente desejam viver na presença de Deus
querem ter a marca da santidade em sua vida. Quanto menos possuem santidade, porém, tanto
mais se recriminam com culpa.
A culpa dói?
Davi cometeu adultério e o fez com Bate-Seba. Errou o alvo. Fracassou no propósito de viver
uma vida reta. Deixou, também, de fazer da santidade um objetivo. Mas, com o pecado, a culpa
também tomou posse. Davi ficou preso numa teia de autodestruição que levou a tantas mentiras
que, por comparação, faz o caso Watergate parecer um piquenique da Escola Bíblica Dominical.
Cometeu adultério, falso testemunho, discriminação racial e assassinato. Deus finalmente
decretou seu juízo contra o rei. Mas a culpa também recaiu sobre ele — culpa essa que nasceu
no reconhecimento de que Deus o observara em seu pecado.
Na obra O grande abismo, de C. S. Lewis, um dos fantasmas novos protesta:
— Você! — gaguejou o fantasma. — Você tem coragem de dizer que eu não fui um sujeito
decente?
— Claro. Preciso entrar em detalhes? Vou dizer-lhe uma coisa para começar. Assassinar o velho
Joaquim não foi a pior coisa que fiz. Aquilo foi coisa de momento, e eu estava louco naquela
hora. Mas eu matei você em meu coração, deliberadamente, durante anos. Eu costumava ficar
acordado à noite, pensando no que faria se tivesse uma oportunidade. Por isso fui enviado a
você agora: para pedir o seu perdão e ser seu servo enquanto precisar, e por mais tempo, se lhe
agradar. Eu era o pior. Mas todos os homens que trabalhavam sob suas ordens sentiam o
mesmo. Você tornava as coisas difíceis para nós. E tornou difícil também a vida de sua mulher e
de seus filhos.
— Cuide dos seus assuntos, meu jovem — falou o fantasma. — Nada de palavrórios, está
ouvindo? Porque não vou aceitar nenhum atrevimento da sua parte sobre os meus negócios
particulares.
— Não existem assuntos particulares — replicou o outro.18
Nenhum assunto particular é segredo entre você e Deus. A culpa acontece quando o santo Deus
e o homem desnudado estão examinando as coisas como realmente são. Trata-se de um
momento que pode ser saudável ou não — depende do que fazemos com o pecado depois de ter
sido descoberto.
__________________________________________________________________________
17
Starting over, Sisters: Multnomah Press, 1983, p. 51.
18
0 grande abismo, trad. Neide Siqueira, São Paulo: Mundo Cristão, 1983, p. 26.
Muito frequentemente somos semelhantes a Adão depois do pecado. Nossa culpa leva-nos a ser
repugnantes a Deus e a nós mesmos, e assim ouvimos Deus chamando no frescor do dia: "Onde
está você, Adão?". A culpa nos acossa tanto quanto a santidade de Deus. Sentimo-nos nus e
escondemo-nos. Assim foi com Davi. "Estou nu", clamou a Deus, "e sei disso. Purifica-me com
hissopo, e ficarei puro; lava-me, e mais branco do que a neve serei" (v. SI 51).
Existem duas narrativas a respeito de lidar com o pecado, as quais envolvem o que aconteceu
perto da crucificação de Cristo. Uma delas é quando Pedro negou Cristo. Conseguiu ser franco,
examinar seu pecado, confessá-lo e esquecer-se dele. Judas Iscariotes, porém, não fez assim —
carregou a culpa até que ela finalmente quebrasse seus ossos num ato de autodestruição.
Semelhante culpa sempre produz a síndrome de Judas; sempre destrói. Às vezes, destrói na
forma do suicídio e outras vezes destrói na forma de um viver derrotado, do negativismo ou do
esgotamento mental. Mas a síndrome de Judas é sempre destrutiva e separa-nos do Deus
amoroso.
Já conheci muitos que levamconsigo a culpa porque simplesmente não conseguem aceitar o
perdão divino. Quantas vezes alguém tem dito: "Pedi muitas vezes que o Senhor me perdoasse
esse pecado — pedi-lhe dez mil vezes". Pois bem, Deus perdoa ao receber o primeiro pedido;
portanto, 9 999 dessas vezes foram desnecessárias e sempre indicam homens ou mulheres que
querem que Deus perdoe aquilo que não estão dispostos a peidoar em si mesmos. O perdão
divino é completo. E você, até que ponto é completo o seu perdão?
Justino escreveu que Cristo é a autoridade sobre tudo quanto nos ameaça. Se a culpa é ameaça
contra nós, por que não simplesmente entregá-la à autoridade dele? "Você pode enxergar que o
Cristo crucificado possui o poder encoberto de Deus: todo demónio — e, realmente, todo e
qualquer poder e autoridade na terra — treme diante dele."19
Certa vez, conversei com unia mulher que tinha passado algum tempo num hospital
psiquiátrico.Nas visitas subsequentes, consegui perceber que a razão pela qual ainda estava
sendo submetida a cuidados psiquiátricos era que nunca se abrira com seu médico, e este, apesar
de todos os diplomas, jamais conseguira que ela lhe contasse a verdade. Finalmente, em
desespero, ela me disse:
— Meu problema é este.
Foi incrível a confissão que se seguiu. Senti-me constrangido por somente ouvi-la. Soluçando
em sua angústia, revelou todo o problema. Vi que o assunto estava destruindo-a por dentro.
Falei:
— Você quer me dizer que gastou esses milhares de dólares num hospital psiquiátrico e que
nunca contou ao seu médico essas coisas que provocaram a situação na qual você está?
— Tive vergonha de contá-las abertamente! — disse ela.
Pois bem, encontrou a cura porque conseguiu enxergar aquilo que ela era e dizer: "Deus, tem
misericórdia de mim, uma pecadora".
CONCLUSÃO
Nenhum de nós gosta quando alguém acende a luz no nosso quarto desarrumado. Nisso
compreendemos o que Davi queria dizer ao declarar: "Esconde o rosto dos meus pecados" (SI
51.9). No entanto, o pecado secreto precisa ser julgado. Em Romanos 2.16, Paulo diz que virá
um dia em que Deus julgará os segredos dos homens. Em Marcos 4.22, Jesus diz: "Porque não
há nada oculto, senão para ser revelado". E em Eclesiastes 12.14, o escritor do livro nos diz:
"Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido".
Romanos 8.1 diz: "Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus". A
condenação vem quando carregamos no coração coisas que Deus já perdoou. O pecado primário
que muitos cristãos talvez tenham de confessar é o pecado de carregar a culpa. Quando
carregamos a culpa pelo pecado confessado, estamos dizendo que a cruz era pequena demais
para cobrir nosso pecado.
Em O peregrino, a personagem Cristão chega até a cruz. Está carregando nas costas um fardo
tão pesado de pecado que não consegue livrar-se dele. Cai no chão diante da cruz, e o fardo do
pecado sai rolando, e Cristão fica livre, mas não vai muito longe antes de começar a catar de
________________________________________________________________________
19
Cit. ARNOLD, p. 148.
novo as coisas que Deus já lhe perdoara. Se você quiser viver livre, não pegue de volta aquilo
que Deus tira de você. O erro trágico de Cristão é repetitivo. Resolva diante de Deus que nunca
carregará mais do que lhe é obrigatório.
Você talvez se lembre da antiga parábola de um homem de idade que entrou num ônibus
carregando uma mala grande. Ficou em pé, firmando-se num dos suportes, quase esmagado
debaixo do seu fardo, quando alguém lhe tocou o ombro e disse: "Olhe, você não consegue
carregar isso. Coloque no chão e deixe o ônibus carregá-lo". A confissão reconhece o "ônibus".
A confissão nos leva a desfazer-nos dos nossos fardos e ficar em pé livres.
Mantenham silêncio, todas as coisas criadas,
e aguardem o sinal do seu Criador;
minha alma treme enquanto canta
as honras do seu Deus. 1
— RAY ORTLUND JR.
______________________________________________________________________________________________
1
A passion for God, p. 129.
2
A vida cristã normal, p. 193.
3
De Hildegard in a nutshell, Robert van de WEYER, org., p. 29.
Como poderei chegar a ser um participante
importante no Reino de Deus? Confesse seu
pecado. Reconheça suas traições.
Então sua relevância para Deus será
engrandecida na estima dele, ao passo
que você nem sequer
pensará nisso.
4
Cit. HARVEY, org., Teachings of the Christian mystics, p. 135-6.
PRINCÍPIOS DE CONFISSÃO PARA o CRESCIMENTO
PESSOAL
A depressão é uma tendência mental tenebrosa que, de tempos em tempos, mancha a nossa
disposição. Em um momento ou outro, aflige a todos nós. As ondas da depressão vêm bater nas
praias da nossa vida em vagalhões cada vez maiores. A solidão e a depressão têm se tornado um
jugo neste mundo de tantos trabalhos. Mas será que nos chafurdaremos na depressão espiritual,
sentindo-nos melancólicos? O evangelista Billy Sunday expressou o caso da seguinte maneira:
"Ao vermos certas pessoas, acharíamos que o essencial do cristianismo ortodoxo é ter uma cara
tão alongada que poderia chupar flocos de aveia pela extremidade de um cano de gás".5 Mas
isso é caso perdido? Não. Cristo é sempre a chave para a vitória sobre nossas disposições
depressivas. A questão da nossa integridade total está em fazer de Cristo o Senhor de todas as
nossas circunstâncias.
Roberta Bondi escreveu: "Há uma geração inteira de cristãos esquizofrênicos que têm duas
personalidades — uma para Deus e a igreja e outra para o mundo do dia-a-dia da ciência e do
bom-sen-so".6 Procurar nos submeter a tal dupla personalidade pode nos deixar vulneráveis. A
não ser que juntemos o Cristo do domingo com o Jesus de todos os dias, nunca alcançaremos a
integridade total.
Além disso, Jesus deve ter plena liberdade para atuar na totalidade dos nossos relacionamentos.
É esse âmbito da nossa existência que nos dá o trabalho maior. São outras pessoas que
frequentemente nos afundam na depressão. Apesar disso, as pessoas que nos deixam
desanimados são tão amadas por Deus quanto nós o somos. Somente a submissão a Cristo pode
capacitar-nos a amar todos aqueles que nos cercam. E somente à medida que amarmos aos
outros é que poderemos nos livrar daqueles ressentimentos que nos deprimem e imobilizam.
Existem quatro modos primários de lidarmos com as pessoas ao nosso redor. O primeiro é
idolatrá-las. Certa vez, passei de carro por Tupelo, no Mississippi, onde um placar enorme
proclamava que foi nessa cidade que nasceu Elvis Presley. É atordoante o ponto atingido por
nossa cultura na idolatria dos artistas famosos. A vida de Elvis Presley demonstra que os
pedestais são lugares frágeis de onde os egos espatifam-se na queda de volta ao lugar-comum. A
segunda coisa que podemos fazer com as pessoas é demonizá-las. Se, por algum motivo, não
gostamos de alguém, podemos retratar essa pessoa com cores negativas e colocar sobre ela uma
imagem pavorosa com nossas palavras de menosprezo. Em terceiro lugar, frequentemente
usamos outras pessoas. Quando tiramos proveito de alguém que é facilmente persuadido a
conseguir o que queremos, a vida dessa pessoa torna-se um utensílio que exploramos, visando
nossos interesses. Mas a quarta e melhor coisa que podemos fazer em favor das outras pessoas é
humanizá-las. Podemos, com a ajuda de Cristo, fazer dos nossos inimigos seres humanos reais e
vivos. Consideremos alguns princípios de confissão que nos ajudam a escapar da depressão
espiritual.
__________________________________________________________________________
5
Cit. Sherwood E. WlRT, Jesus man of joy, p. 60.
6
To love as God loves, p. 26.
NUNCA DEVEMOS PERMITIR QUE AS CIRCUNSTÂNCIAS
CONTROLEM NOSSAS EMOÇÕES
O primeiro princípio de confissão é este: "Não permitirei que minhas circunstâncias atuais
controlem minha mente". Paulo disse em Filipenses:"... aprendi a adaptar-me a toda e qualquer
circunstância" (4.11). Na verdade, o apóstolo está dizendo: "Estou no comando das minhas
vontades. Não vou ceder diante do aspecto tenebroso da minha personalidade, mesmo quando
os outros assim o fazem".
Por onde quer que vamos, as circunstâncias que nos cercam tendem a afetar nosso estado de
ânimo. Mas consideremos este dizer de nossos mentores, aquelas almas triunfantes capacitadas,
onde quer que se achem: "Cristo é Senhor sobre todas as minhas circunstâncias. A presente
angústia momentânea não furtará minha alegria".
Em The unsinkable Molly Brown [Molly Brown, a garota que não afundou], Meredith Wilson
coloca Molly Brown em pé na proa de um bote salva-vidas enquanto o Titanic, atrás dela, está
afundando no mar solitário. Enquanto todas as outras pessoas no salva-vidas estão lamentando e
chorando, Molly irrompe numa expressão e tanto: "Não afundei ainda". Viver acima de nossas
circunstâncias e não ficar desanimado é levar a marca do cristão. Francois Fénelon observou:
"O desânimo não é fruto da humildade, mas do orgulho".7 Aqueles que ficam facilmente
deprimidos são os que sentem confiança de poder dar conta de tudo até sua autoconfiança
receber a alfinetada do fracasso. O orgulho deles tornou-se o trampolim para a queda.
Cristo é o grande vencedor. Ao aceitarmos a Jesus, alcançamos o reforço interior que nos
capacita a resistir à pressão de todas as circunstâncias externas. Acolhendo a Cristo, recebemos
o poder para controlá-la e não ser esmagados por ela. No entanto, para suportarmos as forças
esmagadoras da vida, devemos sempre estar submissos ao senhorio de Cristo em nós. A vida
submissa torna-se a vida forte.
É curioso o paradoxo de devermos curvar nosso pescoço ao jugo de Cristo se queremos viver
livres. Seu jugo é suave, e seu fardo é leve (v. Mt 11.30). Devemos entregar nosso futuro, ainda
não moldado, nas mãos do nosso oleiro criativo. Devemos ser como a flecha do arqueiro e
submeter nossa forma rígida ao poder do arco, para conhecermos a emoção de um vôo com
propósitos para os alvos tencionados por Deus. Devemos mortificar nossas razões para co-
nhecermos a emoção de uma vontade melhor. Devemos crucificar o grande "eu" se quisermos
que o grandioso "ele" viva manifestamente em nós.
Além disso, devemos nos libertar do orgulho que nos leva a alegar possuir mais do que
realmente possuímos. Ugolino diz que Francisco de Assis e seus companheiros descobriram a
alegria na renúncia que deixa toda a depressão para trás: cada um deles tomou a "santa pobreza"
para ser sua noiva. Como resultado, toda a depressão foi eliminada.
Pois é essa a virtude celestial mediante a qual todas as coisas terrestres e transitórias são
pisoteadas e são removidas todas as barreiras que podem impedir que a alma se una livremente
ao Deus eterno. Essa é a virtude que capacita a alma, enquanto ela ainda estiver na terra, a
conversar no céu com os anjos.8
Certa vez, plantei uma igreja. Outro pastor jovem mudara para a mesma cidade e no mesmo
período, e a denominação dele deu-lhe a incumbência de iniciar uma igreja no outro lado da
cidade. É difícil plantar igrejas. É duro o solo onde têm de crescer. As chuvas do auxílio
nutritivo vêm com pouquíssima frequência. É difícil conseguir organizar um grupo estável e
bem formado, disposto a servir até quando a igreja ficar forte. Existem pessoas que dificilmente
se deixam motivar. Às vezes, é difícil ensinar aos cristãos recém-con-vertidos o tipo de
dedicação necessária para formar um corpo coeso. As plantações de igrejas novas são
sementeiras de negatividade e depressão.
Todas as segundas-feiras, quando me encontrava com esse colega pastor, tínhamos muitas
coisas para conversar. Percebemos que nossas conversas frequentemente se transformavam em
mútua comiseração. Lambíamos as feridas um do outro e dizíamos: "Como a vida é terrível". A
comiseração é a miséria em desfile, mas contém algum tipo de prazer. Assim celebrávamos o
sofrimento um do outro e desfrutávamos da desgraça mútua.
________________________________________________________________________
7
Talking with God, p. 72.
8
Francisco de ASSIS, cit. HEYWOOD, org., The little flowers of St. Francis of Assisi, p. 30.
Semana após semana, comecei a notar que, enquanto eu conseguia tomar café e abandonar lá
dentro da cafeteria meus momentos de desânimo, a depressão dele continuava. Ela acampava
em sua alma, ao passo que eu encontrava modos de livrar-me dela. Quando me via coberto pelo
manto negro da depressão, obrigava-me a sair e a bater de porta em porta e levar as pessoas em
direção à fé em Cristo. Assim minha depressão cedia lugar à grande alegria. Era espantoso o
bem que produzia em meu espírito doentio levar pessoas à conversão.
Mas meu amigo não conhecia nenhuma terapia para as suas crises de desânimo. A depressão
não demorou para imobilizá-lo. Assim como um bisturi de aço, parecia atravessar os tendões è
músculos do seu espírito. Deixou-o destituído de forças, e, depois de alguns meses infrutíferos,
ele começou a ter crises de choro debilitante. Não demorou a recorrer a um psicólogo e, depois,
a um psiquiatra. Finalmente, sua condição ficou tão ruim que teve de pedir exoneração da igreja
e deixar totalmente o ministério.
Tornei-me — pela graça de Cristo — mais um sobrevivente. Não posso dizer que eu possuía
mais estabilidade do que meu colega, mas certamente compreendia que Jesus não queria que me
tornasse inútil debaixo da nuvem escura da minha depressão. Fui dando as boas-vindas a Jesus à
medida que ele surgia poderoso dentro da minha intenção anêmica, até eu poder dizer: "Não
vou, com o poder de Cristo, deixar que as minhas circunstâncias afetem meu estado de ânimo".
Afinal, segundo escreveu Fénelon: "Deus nunca nos aflige, exceto contra sua própria propensão.
Seu coração paternal não se alegra ao ver nossa miséria, mas ele corta profundo para sarar a
doença em nossa alma [...] Ele nos aflige somente para restaurar".9
Quão doces são as suas restaurações! Sempre me via curado mediante o mínimo toque da orla
do propósito divino.
CONCLUSÃO
Podemos empregar esses quatro princípios para mantermos crescente e positiva nossa confissão
interior. Uma chave para isso é lem-brar-nos de que Jesus é Senhor e de que essa é a confissão
primária positiva que deve definir nossa vida. A humildade é o nosso pão, a obediência, o nosso
vinho. Conquistamos a humildade genuína, não por nos rebaixarmos, mas por nos colocarmos
em pé ao lado de Cristo. Uma vez que percebemos quão grande é o amor do Salvador por nós,
conhecemos nosso lugar humilde neste mundo. A humildade conquistada assim é poder e
triunfo.
Certo dia, quando Abba Macarius estava voltando do pântano para a sua cela, levando umas
palmas, viu o Diabo levando uma foice na estrada diante dele. O Diabo tentava desferir golpes
nele tanto quanto queria, mas em vão, e perguntou-lhe: "Qual é o seu poder, Macarius, que me
deixa incapaz contra você? Tudo que você faz, eu faço também; você jejua, e eu também; você
faz vigílias, e eu nem sequer durmo era momento algum; é só numa coisa que você ganha de
mim". Abba Macarius perguntou qual era essa coisa. O Diabo respondeu: "Em sua humildade.
Por causa dela, eu nada posso fazer contra você".12
Satanás é derrotado pela ausência do orgulho.
É um enfoque positivo que reveste de alegria nossa confissão.
Use todas as suas capacidades para apreciar a criação de Deus. Use seu corpo para simpatizar
com a experiência corpórea de outras pessoas. Use suas emoções de ira e vingança para entender a
guerra. Aprecie a virtude ao distingui-la da iniquidade. Aprecie a beleza ao distingui-la da feiúra e da
deformidade. Defina a pobreza ao compará-la com a riqueza. Regozije-se com a boa saúde ao compará-la
com a enfermidade. Distinga entre os vários opostos: a extensão e a pequenez; a dureza e a maciez; a
profundidade e a superficialidade; a luz e as trevas. Desfrute de cada momento da vida ao lembrar-se
constantemente da iminência da morte. Anseie o paraíso ao lembrar-se do castigo eterno. Você entende
bem pouco daquilo que está ao seu redor porque não usa aquilo que está dentro de você.13
Confesse a Cristo e triunfe sobre a depressão e a negatividade.
___________________________________________________________________________
11
Cit. Lewis B. SMEDES, Forgive and forget, San Francisco: Harper & Row, 1984, p. 126-7.
12
BONDI, p. 42.
13
Hildegard in a Nutshell, p. 37.
Deus é amigo do silêncio...
Veja como a natureza, as árvores, o capim
crescem em profundo silêncio.
Veja como as estrelas, a lua e o sol
movimentam-se em silêncio.
Quanto mais recebemos em nossa oração
silenciosa, mais podemos contribuir
com nossa vida ativa. 1
— MADRE TERESA DE CALCUTÁ
______________________________________________________________________
1
Cit. Richard FOSTER, A spiritual formation journal, página sem numeração.
A oração é uma conversa?
Sim, entre amantes.
A oração é uma viagem?
Sim, uma longa caminhada para
os que andam entre mundos.
____________________________________________________________________________________________________________________________
2
Cit. Calvin MILLER, Images of heaven, Wheaton: Harold Shaw Publishers, 1996, p. 98.
HABITANDO NA ETERNIDADE
Charles Kingsley disse que no grande dia da prestação de contas, quando ficasse face a face
diante do Juiz de todos os tempos, diria:
Senhor, não sou nenhum herói. Fui descuidado, covarde, às vezes quase um amotinado. Mereço
castigo, não nego [...] Não fui bom, mas pelo menos tentei ser bom. Aceita a intenção como se
fosse ação, bom Senhor. Não apaga meu nome indigno do rol de chamada do teu exército nobre
e vitorioso [...] que eu também seja achado escrito no Livro da Vida, mesmo que fique na última
posição, no lugar mais baixo da lista. Amém.3
Fénelon disse que "quando Ambrósio estava morrendo, pergun-taram-lhe se sentia algum medo
do juízo divino. Respondeu: 'Temos um bom Mestre'. Esse é o tipo de resposta que nós mesmos
devemos dar".4
Na era vitoriana, as pessoas falavam bem abertamente a respeito da morte, mas com muita
reserva a respeito do sexo. Mas tudo isso foi no fim do século XIX. Agora, no início do século
XXI, falamos muito abertamente de sexo e com muita reserva a respeito da morte. É como se
tivéssemos vergonha da morte. Nós, que dominamos a tecnologia de sondas espaciais e de
tomografia computadorizada, não conseguimos evitar a morte. Alargamos ao máximo os limites
da morte, mas não conseguimos vencer-lhe a inevitabilidade.
Quanto mais secular uma cultura se torna, mais ela pensa na morte como uma anomalia
lastimável. Nas Escrituras, é apresentada como parte da vida e, no Novo Testamento, sem
dúvida, é apresentada como uma espécie de realização. É o fim vitorioso da peregrinação
gloriosa. É uma mudança de residência, é trocar o barro pelo ouro, o protoplasma pelo espírito,
é a troca da temporalidade pela imortalidade.
O salmista termina o salmo 23 com uma explosão de esperança: "E habitarei na casa do
SENHOR para todo o sempre" (RA). De certa maneira, parece errado encaixar doutrina nos
belos salmos. Apesar disso, existem poucos versículos (mesmo no NT) que falam de modo tão
belo sobre a vida eterna. Nunca entraremos nas profundezas de Deus se não dermos grande
valor à casa do Senhor.
Mas o tesouro e a casa do porvir são secundários em relação ao alvo do nosso relacionamento
completo com Cristo. Não admira que Tennyson tenha escrito: "Ainda que as águas me levem
para bem longe do limite do tempo e do espaço, espero ver meu piloto face a face depois de ter
atravessado a fronteira". Quanto aguardamos nossa união definitiva com Jesus! Trata-se de mais
que ruas de ouro, portais de pérola, muralhas de jaspe e mares de cristal. Temos cantado tão
frequentemente a nossa melhor esperança: "Redimido junto dele eu hei de estar. Hei de ver meu
Salvador, os sinais dos cravos hei de contemplar".
Nosso anseio pelo céu tem a ver somente com Jesus. Até hoje, nunca conheci um crente maduro
que, estando para morrer, ansiasse pelos tesouros da eternidade, todos ansiavam somente pelo
encontro face a face com Cristo. É fácil desconfiar das pessoas que anseiam pelo céu sem nunca
mencionar Cristo. Um céu sem Jesus não seria céu. Se não ansiamos por vê-lo além do túmulo,
significa que estamos quase nada fascinados por ele antes de enfrentarmos a morte.
O que há de maravilhoso em conhecer a Jesus Cristo é que, mesmo que não tenhamos vivido
com segurança os capítulos iniciais de nossa vida, acharemos o capítulo final tão seguro quanto
o próprio Deus. Depois de recebermos a Jesus Cristo, não existe em nossa mente a mínima
dúvida de que um dia compareceremos ante sua presença e esperaremos enquanto ele nos
completa em sua excelência: moldados de acordo com seu auto-retrato. Tendo começado sua
obra em nós nestes tempos incertos, ele nos completará no futuro seguro. Carlyle escreveu:
_________________________________________________________________________________________________________________________________
3
Cit. TlLESTON, org., Daily strength for daily needs, p. 183.
4
Talking with God, p. 140.
"Aqui na terra somos como soldados lutando num país estrangeiro [...]
atrás de nós jazem seis mil anos de esforços humanos. Diante de nós
estende-se o tempo ilimitado [...] continentes de eldorados ainda não
conquistados que precisamos conquistar a fim de criá-los. Provenientes
do íntimo da eternidade, brilham para nós as estrelas eternas que nos
guiam".5
A CERTEZA DO CÉU
Vamos mesmo habitar na casa do Senhor para sempre? Às vezes, nossa certeza vacila diante de
nossa incredulidade: a dúvida é aquele demônio com dentes irregulares que vai roendo as
beiradas das promessas de Deus. Como ousamos duvidar de promessas tão sólidas como a do
salmo 121? E a de Salmos 2.6 tremula como uma bandeira, muito acima de nossas dúvidas.
Apesar disso, a dúvida sempre nos acompanha. Aprendemos desde cedo a duvidar. Alguns de
nós ensinam aos filhos que o João-Pestana vem ao anoitecer e espalha grãos de areia nos olhos
das pessoas para elas ficarem sonolentas. (De fato, quando acordam de manhã, têm um resíduo
"arenoso" nos olhos.) Parece que as crianças acreditam, e nós estimulamos essa crença.
Infelizmente, mais tarde terão de desaprender essas histórias. Bem como a história da fada dos
dentes, do coelho da Páscoa e do barriga de gelatina têm de ser arquivadas com o título de
"fábulas em que acreditávamos na infância". Quando arquivamos essas fábulas, aprendemos a
duvidar.
_________________________________________________________________________
5
Cit. TlLESTON, p. 358.
Fui visitar um homem, não faz muito tempo, e lhe perguntei:
— Você frequenta muito a igreja?
— Não, sou ateu — respondeu.
— E a sua mulher? — perguntei. — Ela frequenta a igreja?
— Sim, ela é metodista (como se fossem denominações semelhantes) .
Depois que saí, enquanto me afastava, ainda dava para vê-lo emoldurado pela porta de entrada.
Pensava nele como o "incrédulo nu". A pessoa que duvida fica passando frio no meio de um
mundo carregado de dúvidas. Não tem nada que a proteja. Qualquer confiança em si mesma é
forçosamente falsificada. O Cristo do Apocalipse condena nossos valores inferiores: "Você diz:
'Estou rico, adquiri riquezas e não preciso de nada'. Não reconhece, porém, que é miserável,
digno de compaixão, pobre, cego, e que está nu" (Ap 3.17). Precisamos nos vestir com a
segurança que provém somente de Deus. Deus é quem nos guarda. Nada na vida é mais certo do
que o cumprimento das promessas de Deus. Aconteça o que acontecer em nosso redor, podemos
contar com ele.
Aqueles que o conhecem falam com naturalidade da morte iminente e da vitória final que Cristo
ganhará na vida deles. Aqueles, porém, que não estão em Cristo, têm medo da morte. Em alguns
casos, porém, têm medo igual de aprender uma nova visão do mundo no último momento da
vida. Lembro-me de um amigo que tive desde o primeiro ano escolar até ele completar 53 anos
de idade. Com o passar do tempo fui dando testemunho da graça salvífica de Deus, mas ele
aceitou mesmo a Cristo no fim da vida. Eu notava nele certa relutância — algum tipo de
vergonha — quando falava de Jesus. Amava ao Senhor, eu não tinha a menor dúvida disso. Mas
durante toda a vida sempre falara entre seus familiares e amigos íntimos somente sobre assuntos
seculares. Para ele, era difícil mudar completamente sua maneira de pensar e passar a falar de
valores espirituais. Os indivíduos cuja vida se centraliza na terra têm dificuldade de falar com
naturalidade do céu. É raro ver pessoas incrédulas durante a vida inteira transformarem-se em
crentes abertos e vibrantes na sombra de sua lápide. As pessoas em geral morrem do jeito que
viveram.
Neville Shutte foi um dos primeiros escritores de romance "apocalíptico". On the beach [Na
praia] trata de uma faixa de radi-oatividade que avança lentamente — resíduo da última grande
guerra nuclear — por toda a Austrália, indo em direção ao sul. Na adaptação para o cinema,
existe um grupo de obreiros do Exército de Salvação pregando fielmente o evangelho aos
australianos condenados. Embora muitos dos que ouvem os sermões queiram acreditar, não
conseguem. O filme termina com a extinção da vida na terra, sem ninguém chegar à fé em
Cristo. É uma sugestão brutal demais? Acho que não. Os que vivem uma vida mundana
normalmente não podem ser levados à fé vibrante por meio de ameaças. Não conseguem dar
uma guinada tão grande na vida a ponto de abraçar o grande Cristo redentor a quem
desconsideraram durante tanto tempo.
Existimos para nos preparar para encontrar com Deus. Se não estivermos prontos para esse
acontecimento, tudo o mais que tivermos realizado não significará muita coisa.
Nenhum marido em sã consciência deixa de honrar sua mulher e falar de modo nobre a respeito
dela. Nenhuma criança sadia recusa-se a elogiar o pai e a mãe dedicados. Por certo, ninguém
que ama a Cristo vai ter a língua lerda para falar do nome de Jesus. Ser redimidos é uma dádiva,
um tesouro tão valioso que toda nossa vida deve ser vivida engrandecendo as ações de Deus em
nós. Uma maneira de engrandecer a Cristo é ansiar por nossa união definitiva com ele. "Vou
para o céu quando eu morrer", deve fluir tão facilmente quanto "vou para Orlando nas férias".
A questão do nosso destino ficou assegurada no momento que entramos num relacionamento
real com Jesus Cristo. Não importa que mágoas surjam no meio do caminho, sabemos que Deus
não dorme, mas mantém-se alerta! Vela por nós e importa-se.
A ETERNIDADE É O NOSSO DESTINO GLORIOSO
Nossa vida está em Cristo, que permanece nos céus. Andraé Crouch canta: "Tenho confiança,
meu Deus vai me acompanhar até o fim". George Beverly Shea canta: "Não sei o que o futuro
me trará, mas sei quem tem o futuro nas mãos". E Fanny Crosby escreveu: "Que segurança! Sou
de Jesus! Por ele agora vivo na luz!" .
Entretanto, nossa eternidade não é um destino que tivemos a inteligência de escolher e mapear.
A eternidade para o crente não é tanto o fim da viagem quanto uma etapa dela — uma das voltas
completas previstas na vida —, uma parte segura do circuito inteiro. Tiago Martineau disse que
somos pobres viajantes caminhando penosamente ao longo da senda da vida, às vezes com os
pés ardendo e sangrando. Mas nunca damos um passo sem alguma confiança. A morte é questão
de constar do registro do censo de um reino melhor que a província onde antes morávamos.
Martineau testificou: "A morte, enfim, do ponto de vista cristão, nada mais é do que o método
divino de colonização, da transição desta pátria da nossa raça para o mundo mais belo e novo da
nossa imigração".6
Em 1977, vi-me face a face com a eternidade. Minha irmã tele-fonou-me no meio da noite para
dizer duas palavras que não podiam ser enfeitadas: "Mamãe morreu". Disse isso de uma só vez,
sem nenhum meio de amenizar a notícia nem usar o bom-tom. A fé de nossa mãe, para seus
nove filhos, era a rocha no centro da família. Sem ela, nunca teríamos conhecido a vida. Seu
andar gracioso na fé fez dela um exemplo de tudo que era bom num mundo muitas vezes
corrupto.
Viajamos uma longa distância para o funeral. Eram quilômetros penosos, ao longo dos quais fui
contrabalançando tudo em que acreditava a respeito do céu com o peso de minha relutância em
aceitar a ida de minha mãe para o lado de Jesus. Nossos filhos, eu e Barbara fomos a pé do carro
fúnebre até a sepultura de minha mãe. Ouvimos o pregador dizer as palavras: "Nem todos
dormiremos, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao
som da última trombeta. Pois a trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós
seremos transformados" (ICo 15.51,52). Como os passos entre o carro funerário e aquele buraco
feio no chão eram longos! No entanto, eu nunca aprendi com minha mãe a doutrina dos
"buracos feios". Ela estava convicta de que estar ausente do corpo era estar presente com o
Senhor. Não havia "buracos" na sua teologia de vitória. E não demoraria muito para eu voltar a
tudo aquilo em que ela acreditava. Agarrei meus filhos pelos ombros e os abracei e chorei.
Mamãe foi enterrada num cemitério onde antes havia somente campos abertos quando ela se
mudou para o norte de Oklahoma. E esses campos não ficavam longe da casinha onde nasceram
todos os seus filhos. Naquele dia de outubro (foi enterrada ao completar 77 anos), pensei no
antigo cântico de Stuart Hamblen:
Não vou precisar mais desta casa,
não vou precisar dela nunca mais.
Não tenho tempo para consertar o telhado
nem tempo para consertar a porta.
Não tenho tempo para consertar o teto
nem para consertar o vidro da janela.
Não vou precisar mais desta casa,
Estou me aprontando para meu encontro com os santos.
O céu é de fato o anseio mais profundo do coração.
Mas eu estava fazendo mais uma coisa com meus filhos naquele dia tão difícil. Estava
preparando-os para o dia em que fariam a mesma longa viagem de carro funerário para cuidar
dos restos mortais dos próprios pais. Existe um ciclo de vida, tal como dá a entender o filme O
rei leão. Mas não é tão sombrio quanto o filme retrata. Nosso ciclo de vida gira numa confiança
de aço, mais forte do que a que o Rei Leão conhecia. Viveremos e reinaremos com Cristo para
sempre. Antes haverá apenas breves paradas aqui e ali para deixar nosso corpo à espera até nos
reunirmos com todos os santos na presença do nosso Rei.
Quando começa essa grande eternidade? O que a Bíblia ensina a respeito da certeza da salvação
em Cristo? Não existe um versículo sequer na Bíblia inteira que ensine que vamos ter vida após
a morte. A Bíblia ensina que podemos ter vida em vez de morte. Jesus Cristo entra numa vida e
nesse exato momento começa a vida eterna. Algum dia, o pulso e a respiração cessarão, mas não
nós — já teremos dado o passo gigantesco para dentro da perfeita vontade de Deus! O céu
começa aqui. A eternidade é agora.
__________________________________________________________________________
6
Ibid., p. 212.
A eternidade é a vida com Cristo, a vida no céu, e o céu é uma categoria grandiosa. Não é uma
reunião de família. Não é um lugar onde praticamos ações grandiosas. O céu é um lugar para
viver.
A roda paralela de uma máquina fotográfica é um dispositivo de focalização que sobrepõe duas
imagens separadas em uma só. No ponto de fusão das duas imagens, tudo está pronto para tirar
a fotografia. Considere as implicações espirituais desse tipo de focalização. Imagine Deus
girando a roda de foco até duas pessoas entrarem em harmonia, uma com a outra. A imagem de
Jesus Cristo e minha imagem serão fundidas numa só. Vou experimentar aquilo que, segundo
estou dizendo neste livro, é a sede da vida: a união com Jesus Cristo. Como Deus fixa as
categorias? Como deve ser o céu? Qual é esse grande mistério da piedade? Devemos deixar
tudo aos cuidados de Deus. O que mais importa é que temos um mapa! Temos um destino!
Emily Dickinson escreveu:
Nunca vi uma montanha, Nunca vi o mar; Mas sei como se parece a urze E como deve ser uma
onda.
Nunca falei com Deus Nem visitei o céu; Mas estou tão certa do lugar Como se tivesse o mapa.7
Agora, pois, estamos vivendo o destino ordenado para nós. Ouvimos de novo o salmista: "Eu
sou o teu pastor. Você morará na casa do Senhor para sempre. De dia o sol não o ferirá, nem a
lua, de noite. O Senhor é o seu protetor; ele preservará a sua alma".
Na noite em que minha irmã me telefonou para contar que minha mãe trocara a terra pelo céu,
uma melancolia tomou posse de mim. Era um tipo de escuridão depresssiva que pairava sobre
mim e parecia desafiar Deus a vir até mim com alguma luz. Depois, as trevas recuaram quando
pensei em duas coisas. A primeira foi uma passagem de Hebreus que me fez lembrar que os que
herdaram o céu antes de nós passaram a fazer parte da grande "nuvem de testemunhas" que
estão olhando para a vitória iminente que conheceremos quando herdarmos o céu. Os que foram
para lá antes de nós estão torcendo para alcançarmos a grande união com Cristo que transforma
a morte em vida, as trevas em luz. E reinaremos para sempre com Cristo por "mil anos".
Mesmo assim, a vitória não pode nos deixar isentos de lágrimas. A segunda coisa que me
ocorreu naquela noite foi que a promessa do céu era o alívio das aflições. Deus fez-me lembrar
do seguinte hino:
Venham, desconsolados, onde quer que se definhem, Venham ao propiciatório, ajoelhem-se
com fervor; Tragam para cá o coração ferido, contem aqui a sua angústia: A terra não tem
nenhuma mágoa que o céu não possa curar.8
Os sofrimentos terrenos são curados com as promessas de Deus. Quando finalmente chegarmos
a nosso lar, acabarão todas as saudades. Louvaremos ao Rei que soube abrir portas eternas. O
júbilo pertence a todos aqueles que entendem que a terra é apenas um ensaio para o céu. Não
desperdiça nada na vida quem se lembra disso.
No entardecer, se você olhar com os olhos semi-abertos para o pôr-do-sol, conseguirá quase
enxergar a promessa. Na casa do nosso Pai, realmente há muitas moradas — e uma delas é a
nossa. Aleluia!
Ouvimos Jesus, o Bom Pastor, dizer: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e
elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar
da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar
da mão de meu Pai. Eu e o Pai somos um" (Jo 10.27-30).
Aleluia!
___________________________________________________________________________
7
CXXVII (sem título), de Mabel Loomis TODD & T. W HlGGINSON, orgs., Collected poems of Emily
Dickinson, p. 250.
8
Thomas MORE (sem título), The Baptist hymnal, p. 67.
Larguem as velas, e que Deus nos
dirija até onde queira. 1
— BEDA
_____________________________________________________________________
1
The voyage of Brendan, trad. J. F. Webb, The age ofBede, New York: Penguin Books, 1965, p. 228.
2
The spring of contemplation, p. 170.
A vida em Cristo é a única que
cresce do céu em direção à terra
e do interior para o exterior.
_________________________________________________________________________________________________________________________
3
An owner's manual for the unfinished soul, Wheaton: Harold Shaw Publishers, 1997, p. 125.
EPÍLOGO
NAS PROFUNDEZAS
Quase perdi a oportunidade de ir ao recife da Grande Barreira. Por quê? Acho que estava com
medo. Sou marinheiro de água doce. Não sou nenhum nadador, e o oceano é amplo, profundo e
traiçoeiro. Eu era mais velho do que a maioria das pessoas que faz esse tipo de excursão. A
praia é meu jeito predi-leto de ficar perto do oceano — sem estar no meio dele.
Mas a necessidade de ficar em segurança é uma masmorra que nós mesmos construímos. O
medo sempre é o carcereiro da nossa alma. Em última análise, habitamos nas celas pequeninas
do não-posso-fazer-isso. Conhecer verdadeiramente a Deus é tarefa especial dos corajosos. É
para os mártires que conquistaram seus nichos de gesso nas catedrais. Mas isso não é para nós.
Somos comuns demais — com muito medo das pessoas que querem de fato conhecer as coisas
mais profundas de Deus. Os que têm sede de conhecer a Deus não são semelhantes a nós. Sua
mentalidade é do outro mundo. Têm aparência estranha. Habitam em mosteiros. São extrava-
gâncias de Deus que não penteiam os cabelos. Pregam nas esquinas das ruas e carregam placas
sobre a Segunda Vinda.
É raro confessarmos em voz audível esses temores, mas passamos boa parte da vida mantendo-
os à distância. Nosso jogo seguro é feito sem alarido de trombetas. E nosso modo de vida
semelhante ao da ameba. Ficamos andando à toa em nosso habitat, dando uns encontrões na
vida.
***FIM***