O Senhor Do Paço de Ninães, de Camilo Castelo Branco

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OBRAS

DE
CAMILLO CASTELLO BRANCO
EDIO POPULAR
I
\-
VII
O SENHOR DO PAO DE NINES
r-j.
&R 1 ' DA PARCERiA
ANTONIO MARIA
- RA AUGUSTA, 44, 46 E 48 -

jtl
OBRAS DE CAMILLO CASTELLO B R A N C ~
Edi,ao popular das suas principaes obras em 8o volumes
in-8. o, de 2oo a 300 paginas
impressa em bom papel, typo elzevir
t - Coisas espantosas.
2 - As tres irmana.
:i - A engeitada.
4 - Doze casamentos felizes.
5 - O esqueleto.
6 - O bem e o mal.
7- O senhor do Pao deNines.
8 - Anathema.
!1 - A mulher fatal.
lU- Cavar em ruinas.
11 e 12- Correspondencia epis-
tolar.
IS- Divindade de Jesus.
U- A doida do Candal.
15- Duas horas de leitura.
16-Fanny.
17, 18 e 19- Novellas do Minho.
20 e 21- Horas de paz. I
22 - Agulha em palheiro.
23 -O olho de v1dro.
2 - Anuo& de prosa.
'Z5 -Os brilhantes do brasileiro.
26 -A bmxa do Monte--Cordova.
'1.7 - Carlota Angela.
28- Quatro btras innocentes.
'1.9 - As virtudes antigas.
30- A filha do Doutor Negro.
31 - Estrellas propicias.
32 - A filha do regicida.
33 e 3(l - O dcmonio do ouro.
35 -O regicida.
36 - A filha do arcediago.
31 - A neta do arcediago.
38- Delictos da mocidade.
39 - Onde estA. a felicidade 't
to- Um homem de brios.
&l - Memorias de Guilherme do
Amaral.
12, 43 e 44- Mysterios de Lis-
boa. 1
15 e i6- Livro negro de padre
Diniz. - -
l7 e '-8- O judeu.
-19 - Duas pocas da. vida.
50 .-.. Estrellaa funeatas.
t.t- Lagrimal abenoadas.
52 - Lucta de gigantes.
53 e Si - Memorias do carcere .
55- Mysterios de Fafe.
56 - Corao, cabea e estoma-
go.
57 -O que fazem mulheres.
58- O retrato de Ricardina.
59 - O aangue.
60- O santo da montanha.
61 -Vingana.
62- Vinte horas de liteira.
63- A queda d'um anjo.
64 - Scenas da Foz.
65- Scenas contemporaneaa.
66- O romance d'um rapaz po-
bre.
67- Aventuras de Bazilio Fer-
nandes Enxertado.
68- Noites de Lamego.
69 - Scenas innocentes da come-
dia humana.
70 e 71 - Os Martyres.
72- Um livro.
7S- A Sereia.
74-Esboos de apreciae
litterarias.
75 - Cousas leves e pesadas.
76- TBXAno: I-Agostinho de-
Ceuta.-0 marquez de
Torres-Novas.
77- Tsuno: II-Poesia ou di-
nheiro 't- Justia.- Es-
pinhos e flOres.-:- Purgato-
rio e Paraizo.
78 - Tm:ATII.O : III -O Morga-
do de Fafe em Lisboa. -O
Morgado de Fafe amoroso.
-O altimo acto. - Aben-
oadas lagrimal r
79 - TlluTII.O: IV - O condem-
nado. - Como os anjos se
vinsam.- Entre a flauta e
a VIOla.
li
80- TBuTRo : Y - O Lobis-
Bomem. - A MorgadiDheo
de Val-d 'Amorea.

~ ~ o Y '
~ ' 4 S ~ S CAMILLO CASTELLO BRANCO J
O SENHOR DO PACO DE NINAES
'
I
ROMANCE
~ . ediit
1
conforme a 1.
1
uni c a revIsta pelo auctor
~ ~
\ I
1919
PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVBARU. EDITOtlA.
Rua Augusta, 44 a 54
LISBOA
"''
c.. ,
O SENHOR DO PAO DE NINES
fiota das edies que tem tido este volume at A presente
1.' edio- Porto-1867- Typ. do Commercio-
1 voJ. de 261 pags.- Ha exemplares d'esta edi ..
o com novos frontispicios.- Lisboa, sem data,
Campos junior.
2.a edio- Lisboa -1889- Vol. 3.
0
da colleco Pe-
dro Correia.
3.' edio- Lisboa -1902- Vol. 7.
0
da nossa col-
leco, da qual se fez uma tiragem especial de l 00
exemplares em papel de linho nacional para biblo-
philos.
4.' edio- Lisboa- 191 I - Vol. 7.
0
da r.ossa col-
lec-o.
5.' edio- ~ i s boa- 1919- que a presente.
li
. .
.,,
ADVERTENCIA
Na edio d'este romance, dada em folhetins do Commercio
do Porto, estampou-se uma nota que dizia respeito aos mula-
tos do seculo XVI. O author inadvertidamente entendeu mo-
derna a palavra como a tinha entendido outro ignorante mais
antigo que ementAra a lei de D. Joo III, citada na dita nota,
com as palavras Leis respectivas aos escravos. Mte!atos, ao
menos os alludidos na lei de 1 5 38, no eram homens, eram <<ma-
chos asneiros, filhos de cavallo e burra. Se eu tivesse consul-
tado frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo antes de annotar o
vilipendio dos escravos no seculo XVI, em Portugal, no injuria-
ria os filhos das burras chamando-lhes filhos de pretas. N'aquelle
tempo era melhor ter a primeira linhagem.
Aspou-se, portanto, n'esta edio a nota absurda, e fez-se
aqui advertencia do caso para se agradecer a quem logo nos fez
conhecer o erro. E este testemunho de gratida:o seja incentivo
para que nos favoream com as suas emendas as pessoas que
benevolentemente nos podem ir melhorando os livros na5 ulte-
riores edies. Bemdito seja Deus, ainda nos falta um vicio : o
fi)rJulho.
CAMILLO CASTELLO BRANCO.
--
O que era o pao e quem estava n'elle
Estamos no Minho, o leitor e eu.
Chegmos Portella, uma legua andada de Villa
Nova de Famalico, na estrada de Guimares. Deixada
.a estrada, entremos n'umas brenhas de arvores, por ata-
lho tortuoso com seu docel de carvalheiras e festes de
vides enroscadas n 'ellas. Andou o leitor um kilometro
em vinte minutos, se no parou algumas vezes a respL
rar o acre saudavel das bouas, e a ver o pullular dos
milharaes e a ouvir as toadas das seareiras que cantam.
Para este ver, cheirar e ouvir preciso que vamos em
agosto ou setembro, ao repontar do sol ou ao desdobrar
da noute. fra d' esta quadra e horas no v; que as
aldeias, pesar dos poetas que as viram nas bucolicas de
Caines e Bernardes, teem horas e mezes dos que teve
<> Creador, quando inventou o dormir.
Andados, pois, mil passos na quebrada da ramalhosa
encosta, nos sahe de rosto uma casa de dous sobrados,
8 O senhor do pao de N ines
caiada, azulejada, com suas columnas pintadas de verde
e como de papelo grudado parede, com as bases ama-
relias e os vertices escarlates. Vo-se os olhos n'aquillo!
Esta maravilha architectonica devem-na as artes ao gsto
e genio pintoresco de um rico mercador que veio das
luxuriantes selvas do Amazonas, com todas as cres que
l viu de memoria, e todas aqui fez reproduzir sob o
inspirado pincel de trolha, o qual se havia ensaiado n'um
S. Miguel de retabulo de alminhas com uma fortuna
digna de ltalia.
Admirado isto, rodeia o leitor uns pardieiros de de-
molidas arribanas, e, na revolta do quinchoso, topa com
umas runas.
Aqui tem o pao de Nines.
Se levou comsigo o Nobiliario do conde D. Pedro, o
legitimo e genuino, publicado pelo snr. Alexandre Her-
culano, abra em paginas 227 e leia o Titulo xxxv, que
logo encontra historias galantes e tragicas, mais ou me-
nos passadas no pao, cujas runas ahi tem.
Ver que nasceu e creou-se aqui um D. Vasco Mar-
tins Pimentel, fidalgo da casa de D. Affonso III
seu meirinho-mr; o qual Vasco Martins nasceu de
uma D. Sancha, que o houvera de um fidalgo com
quem clandestinamente se casra, no primeiro anno de
vi uva.
Ora succedeu que, estando o rapaz nos paos de el-
rei, travou-se de razes com uns donzeis appellidados
Marinhos, os quaes lhe chamaram manzelado, injuria
disparada ao pundonor de sua mi; porquanto, era mo-
tivo para desairar o bom nome de ma dama, consoante
as leis do tempo, passar ella a segun-
das nupdas, durante o primeiro anno de viuva; e tanto
O senhor do pao de Nines
que o filho havido n'esse espao defezo s nupcias cor-
ria o perigo de empatelhar-se com os illegitimos, no em
juizo nem nos direitos de successo, mas certamente no
tal qual desdouro de sua mi.
O leitor cordato, se lhe chamassem o: manzelado,
que faria? Chamava os Marinhos policia correccional,
como pessoa que tem no codigo a salvaguarda de sua
honra.
Ignoro o que diziam as leis de Affonso III, no tocante
quelle insulto. O que sei que D. Vasco se affrontou
grandemente e foi-se aos Marinhos, e deu a huum delles
tam gram punhada que lhi britou loogo huum olho, e,
abraado no outro, foi cahir com elle por uma fresta ao
saguo do pao! Vejam com que franqueza se esmurra-
vam os donzeis na casa e na presena de el-rei!
Ao do olho britado ainda lhe succedeu peior. L
quando se lhe ageitou o lano, D. Vasco Martins agar-
rou d'elle e o lanou depois em huum poo muyto alto
_que estava nos paaos d'el-rei. Esta segunda diabrura
valeu-lhe estar dous annos preso em Santarem. Depois
de solto, o estomagado meirinho-mr do reino (que bom
meirinho-mr!) passou-se a Castella com duzentos e cin-
coenta cavalleiros, e l morreu n'uma escaramua de-
baixo das muralhas de Crdnva.
Tornando ao ponto: aqui tem o leitor esta escalavrada
e grossa parede afestoada de hera, e alm outro lano
derrocado e a dentro das paredes um silveiral que rompe
do pedregulho. Pois eram esta ou aquella a parede do
quarto em que D. Sancha deu luz o britador e mer-
gulhador de donzeis, D. Vasco Martins Pimentel, que
santa gloria haja!
Veja-me esta janella, a unica das tres que provavel-
:o O senhor do pao de Nines
mente o pao tinha. Das tres, digo, e aproveito o ensejo
de inteirar o leitor da bruteza immunda da fidalguia
d'aquellas ras. Os paos de ento, tirante a bellicosa
torre, eram crtes de gado. Comiam unha do mesmo
-arro de cortio ou gamella, bebiam do mesmo acetr,
dormiam no mesmo sobrado os de um sexo, os do outro
no sobrado visinho; e os sexos sacramentalmente mistu-
rados no sei onde pernoutavam. Quantos paos conheo
por este Minho, taes como o de Numes, o de Carude,
o de Barbude, o de Deles e outros menos arruinados,
offerecem-me crer que os fidalgos portuguezes, at ao
seculo XIII, eram uns animalaos que no comiam nem
pernoutavam mais limpa e honestamente que os nossos
bcoros e os nossos mastins.
Torno a pedir-lhe que me repare n'esta janella. So
quatro pedras lavradas a marrta, postas em invasadura
esquadriada. Olhemos, porm, de longe, porque n'aquelle
peitoril repousam nove seculos e alguma hora ho-de
vir abaixo. D'alli, e recostada com a face n'uma d'aquel-
Ias ilhargas de pedra, a formosa Sancha, viuva sem sau-
dades, anciava, olhando ao longe, emquanto no ouvia
<> chofrar das patas do rincho murzello do seu Martim
Fernandes, que, l de Riba-Vizelia, vinha por trevas e
chuva aquecer-lhe no seio os embries d'aquelle D. Vasco
-esm urrador de olhos, e baldeador de Marinhos por sagues
-e poos. Os suspiros que j bafejaram aquellas pedras!
O arfar de seios que j se refrigeraram n'aquelle peito-
ril, onde as corujas pousam e guincham por noute ve
lha! Aquillo d que scismar e poetar; mas quem, como
v. exc.a, viaja com um guia em annos de prosa, como
.eu, ha-de abster-se de poesia.
Este pao de Nines .foi senhorio de differentes appel-
'-
O senhor do pao de Nines 11
lidos. Passou aos Vasconcellos, depois condes de Cas-
tello-melhor, razo de ter casado D. Leonor Rodrigues
Pimentel com Gonalo Mendes de Vasconcellos. No la-
pso de muitos annos, herdaram-no com o vasto terri-
torio circumjacente os senhores de S. Joo de Rev e
os Pereiras Caldas, ascendentes do author da Ulyssea,
os padres da Companhia de jesus e a Misericordia do
Porto.
No pao, porm, e a ampla quinta que o circuitava
em 1576, residia uma viuva, que o era de um fidalgo
da casa de Azevedo, mi de um moo de vinte annos,
chamado Ruy Gomes de Azevedo.
Estes muros, combros e casarias, que se cruzam e
espalham em volta das ruinas, no retalhavam no se-
enio XVI a quinta de Nines. Por largo estadia em volta
verdeciam ainda os arvoredos que circuitavam as espa-
osas veigas, os almargeaes extensos e panes, que todos
se avistavam dos adarves da torre, soterrada ha hoje
cem annos.
A viuva de D. Vasco de Azevedo era, ainda assim,
-comparativamente pobre, attento o empenho em que seu
marido deixra a casa, desbaratada na milcia de Africa
e lndi2., onde foi servir com esperanas de ganhar com-
mendas, que el-rei D. Joo 111 lhe no dera-ingratido
e desenganos juntos a cavar-lhe precocemente a sepul-
tura, onde se escondeu com as suas cicatrizes.
D. Thereza por alli se ficou ermando e cuidando na
creao do filho, jurando a Deus e memoria de seu
marido no lhe fallar na gloria da rnilicia nem espertar-
lhe, no tenro animo, affecto s armas. Com o proposito
de lhe ir torcendo o esprito, contava-lhe a rni a ingra-
tido dos reis com seu pai, soldado de Arzila e Malaca.
12
O senhor do pao de Nines
de Moluco e Mazago, por onde gastra o melhor de
seus haveres, e de onde voltra rico de servios e tes-
temunhs de valor a requerer o premio que sobejava
para os indignos e no chegou para elle. Ruy Gomes
de Azevedo condescendia de boamente vontade de
D. Thereza, movido no tanto d'ella como de seu pro-
prio esprito, captivo, desde a puercia, de sua prima
D. Leonor Correia de Lacerda, da estirpe dos senhores
de fareles, ento representados por um dos seus bons
ramos, nos moradores do pao do Roboredo, um quarto
de legua distante do pao de Nines.
D. Thereza comprazia-se n'estes amores do filho. Leo-
nor, alm de nobilssima, era rica, e, sobre rica, formosa.
Cumulava-se ainda a satisfao da viuva com a certeza
de que Ruy, casado e rico, nunca pensaria em desa-
braar-se de uma esposa amada para correr sua vida nos
perigos da guerra e affrontoso menoscabo dos seus.
Incitava-o ella, pois, encarecendo-lhe dons e graas
da prima Leonor, variando umas vezes por outras o
applauso no dar-lhe a sentir a preciso de restaurar com
o dote da esposa a casa de Nines, damnificada por seu
pai. Esta variante impressionava pouco mais de nada os
fidalgos espritos de Ruy. A no se darem moes in-
compatveis com o caJculo da onzena que os rendimen-
tos de Nines pagavam, Ruy Gomes, affeito frugal e
barata vida de aldeo, achar-se-ia bastante remediado
para no resignar sua independencia. O que o movia
era o amai-a, o ser amado d'ella, o conversarem-3e s-
sinhos como irmos, desde meninos at aos vinte, que
um e outro perfaziam no anno de 1576.
Gonalo Correia de Lacerda, pai de Leonor, dava a
entender, praticando com sua prima Thereza, que no

O senhor do pao de Nines 13
estorvuia o amarem-se e casarem-se os primos, com-
tanto que elles differissem para os vinte e cinco annos
a sua unio. Era scisma do velho fidalgo que, antes
d'aquella idade, o siso, o claro entendimento, no pre-
side, como convem, s tendencias do corao; pelo que,
urgia aos paes circumspectos demorar a execuo de to
serio acto da vida at que o juizo maduro dos filhos re-
temperasse com o ao da experiencia o fragil das incli-
naes dos annos em flor.
D. Thereza argumentava contra, citando exemplos de
venturosos enlaces em idade da primeira juventude. O
velho, que tinha sido marido infeliz por se ter casado
sem a reflexo que os dezeseis annos implicavam, dava-
se a si como exemplo. Ia mais longe: corroborava a ma-
nia com o casamento da sua contraventora.
- Se a prima Thereza - dizia elle - no casasse aos
quinze com o primo Vasco de Azevedo, que tinha ento
dezoito, certo no passaria o melhor tempo de sua mo-
cidade aqui ssinha, em quanto elle gastava fazenda e
foras na guerra d'alm-mar. Quizesse-lhe elle aos vinte
como queria aos dezoito, prima Thereza, vl-o-ia que-
dar-se em sua casa, em vez de se ir India ... fazer o
qu? Desfalcar os bens, que j no eram metade do que
tinham sido, ganhar feridas e derramar o sangue que
lhe faltou aos quarenta annos de idade. Das duas uma :
guerra ou casa. Soldados querem-se solteiros ; casados
querem-se bons maridos, bons paes e bons curadores dos
haveres de seus filhos. N'uma palavra, deixemos ver se
Ruy se conserva n'este apgo sua aldeia; depois, ca-
sal-os-hemos, e no lhes ha-de faltar tempo e occasies
de se fartarem de estar casados.
D. Thereza no redargua, porque seu primo Gonalo
14
O senhor do pao de Nines
Correia era obstinado, testudao e capaz de trancar suas
portas a quem lhe incommodasse os habitos do seu pa-
chorrento viver entre abeges, eguarios e uns quasi
servos de gleba, que o temiam, como os outros da idade
mdia temiam a seu dedmo segundo av O. Godinho
Ffes.
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--
II
CaYillaes de nm chanceller-mr do reino
No se cuide que Gonalo Correia vivia isento de-
dissabores. Pungentissimos o inquielavam conta de
um litgio com seu primo Salvador Correia de S, bisav
do primeiro visconde da Assca. Oriundos do Couto de
fareles, as vergonteas do mesmo tronco renhiam e con-
tendiam sobre o legitimo lgro de vinculas e fros, em
posse dos quaes o fidalgo de Roboredo se no achava_
asss seguro pela amarra da lei.
Perder a demanda era deteriorar-se-lhe notavelmente
a casa e julgar por sentena uma cousa pouco menos de
latrocinio de seus avs, accusao que os parentes liti-
gantes lhe fulminavam.
A previdencia de tal sabida molestava-lhe a indole
igualmente cubiosa dos bens que sensivel ao desdouro
dos antepassados.

- b1
Ao tempo em que Ruy"'e davam reciprocas
alentos e esperanas para os vinte e cinco anrtos, Gon-.
.16 O senhor do pao de Nines
-alo Correia de Lacerda decahiu do pleito em segunda
estancia.
Chegada a nova infausta, mandou pr aos varaes da
:liteira os machos e foi a Lisboa, impondo honestidade
da filha o preceito de recluso completa, durante a sua
-ausencia.
foi o fidalgo hospedar-se na crte em casa de seu
primo o chanceller-mr do reino Pedro Esteves Cago-
minho.
Este magistrado era tambem minhoto, visinho e por
igual parente de Ruy Gomes de Azevedo. A casa d'elle,
chamada o morgadio de Pouve, no posso mostrai-a ao
leitor, porque me impedem causas que eu lhe direi no
ultimo capitulo d'esta chronica.
O chanceller recebeu o attribulado primo, e ouviu-lhe
.as lastimas do, seu brio e justia esmagados. Quanto ao
brio, o magistrado cmdizia; mas, no tocante a justia,
rosnava o que quer que era. Queria dizer que a Relao
do Porto julgra bem. Todavia, como o ru vencido le-
vava para o desembargo do pao appellao da sentena,
o doutor Pedro Esteves quebrantou-lhe a paixo, pro-
mettendo patrocinar-lhe a causa. Pediu-lhe Gonalo Cor-
reia sua palavra: deu-lh'a o chanceller. A causa, a juizo
do appellante, estava de antemo vencida.
Pedro Esteves Cogominho atalhou friamente o expan-
sivo contentamento do primo, dize o-lhe n'um tom si-
sudo e pausado: .
-Temos que f ~ U ~ r , primo Lacerda.- muito de es-
.- r , lU I
pao. os : -i )
- Respeito da demanda?- acudiu o outro, sentindo
despegar-se-lhe alguma entranha ~ a s maiores -No
-certo o bom despacho? ." Duvda, primo?
.
O senhor do pao de Nines 17
-No.
- de tamanha justia! ..
-Hum ... regougou nazalmente o doutor; e, mu-
dando para jovial, proseguiu: - No se fali e mais de de-
mandas. O iito dito. Outra cousa. . O primo viu
por l, em Pouve, meu sobrinho Joo Esteves?
-L lhe passei porta, apiei da liteira, e dei-lhe
parte da minha vinda e perguntei se queria alguma
cousa para vossa merc. Disse-me que lhe tinha escripto
na vespera.
-E' verdade. Como governa elle o morgadio?
-Mal. O rapaz atravessado. Gasta sem tom nem
som. A casa grande, mas no d para tanto.
-E' certo isso-conveio o chanceller.-Grande culpa
tive no desconcerto de meu sobrinho! Andei errado em
para a crte, quando meu irmo falleceu. O
acrto era deixai-o na aldeia. Vezou-se a luzir, a pom-
pear, a estadear-se, a fazer praa de cavallos e lacaios.
Quando o mandei para a provinda, j me estava caro,
-e trazia-me inquieto com as suas visitas por conven-
tos .. e, a dizer-lhe tudo, inquietava-me muito que as
moas da rainha folgassem com elle-disse o chanceller,
inclinando-se ao ouvido do primo.
-Que tal !-exclamou Gonalo de Lacerda-O ra-
paz era arrojadio t
- E por l? que faz elle?
- Por l ... -murmurou o senhor de Roboredo-por
l ... -proseguiu, dando aos h ombros e casquinandd- _,
por l. . rapaziadas, rapaziadas, primo chanceller .
Mas... no se conta que elle tenha posto nodoa nos
creditas de pessoa da sua condio. Louvemos a
Deus e louvemo l-o a ene por isso
18
O senhor do pao de Nines
- Ah ! . . . sim. . . Estimo muito. . . Eu receia v a
que meu sobrinho maculasse o nome de alguma dama
virtuosa.
- Nada. . . No me consta; salvo se o faz l por
Guimares, Braga e Porto, por onde elle passa o mais
do tempo.
- Isso sabia-se ..
- E' verdade. . . sabia-se.
- Pois muito quizera eu ver socegado aquelle rapaz,
que amo como a filho .. -tornou o doutor- j tenho
pensado em casal-o corno remedio ..
- Mau rernedio !-interrompeu o adversario do casa-
mento antes dos vinte e cinco - Que idade tem elle?
- Vinte e dous e tantos mezes.
- Deixe-o chegar aos trinta, primo. A minha opinio
aos vinte e cinco, mas o primo j oo Esteves precisa
dos trinta. . . e bons !
- Aos trinta-replicou o doutor-j o casamento se
no d como remedio para concertar espritos errados ;
bastante de si j o remedio da idade. Casal-o era
agora, em quanto a alma nova e rebelde carece de freio;
e ha ahi mais doce freio que a sujeio esposa amada?
- Isso o ponto da verdade, porm acontece s ye-
zes o marido tomar o freio nos dentes e depois .
Concluiu:com um frouxo de riso apoiado pelo chan-
celler e proseguiu :
-Vossa merc um sabio capaz de aconselhar os
mais avisados; no obstante, releve-me a ousadia de lhe
dar or"meu parecer, fundado na experiencia: no pense
em prender o moo. Deixe-o canar, que elle vir de
per si cata do repouso.
--
O senhor do pao de Nines 19
-Hei-de ponderar detidamente o seu aviso .. -
disse com reflexiva gravidade Pedro Esteves.
-Faz vossa merc como discreto. Pouco ha tive eu
com a nossa prima Thereza Figueira uma larga prti ..
ca, respeito de casamentos ..
- Ah ! . . verdade, como est a prima Figueira ?
ainda bella?
-Est velha. Tem quarenta e quatro annos.
-Foi uma dama perfeita!
-Foi, mas qu? .. Porventura, amou-a como devia
n primo Vasco de Azevedo? .. No. Deixou-a, foi-se ,
India, voltou, tornou-se Africa. Veio alfim envelhecido,
contristado, enfermio, e quasi pobre morreu. . Aqui
tem vossa merc um que mordeu o tal freio e correu
desentoado at quebrar a cabea n'um penedo!
- E o filho ? como se chama?
- Ruy. E' um bom rapaz, docil, sujeito, affeioado
lavoura, poupado e todo entregue aos cuidados de sua
casa, como quem -pensa ein desaggraval-a dos damnos
com que o pai a quebrantou. Veio ao intento fallar .. se
do casamento, por motivo de minha filha Leonor se
a g r a d a ~ do primo Ruy, e elle, ao que diz a me e eu
creio, morrer de amores d'ella. Pde dizer-se que foram
creados mo por mo; fazem annos no mesmo mez e os
mesmos annos. Pois, primo chanceller, a despeito do
iuizo d'elle, disse eu prima Thereza que smente aos
vinte e cinco os deixaria casar. Veja quo rgido sou
nos meus princpios e doutrinas !
-Ento . -volveu meditativo Pedro Esteves Co-
gominho- pacto feito o casamento de minha prima
Leonor com Ru y de Azevedo ?
-Sim .. a minha teno essa, resalvando mu-
20 O sellhor do pao de Niniles
dana no rapaz ou n'ella; que eu, se ella escolher me-
lhor, mo no lhe vou; porm melhor no onde ;
isto , melhor de sangue e bons dotes de esprito; que,
no patrimonio, o que elle tem o decimo, se for, do que
ella ha-de herdar, embora eu pe-rdesse a demanda, ques-
to de dignidade e honra, como vossa merc conhece ...
-Sim ..
-Que, se no fosse o aggravo feito a meu av, le-
gitimo possessor do vinculo de Ruives e fros, eu des-
presava o pleito e mandava n'uma salva de ouro ao
primo Correia de S a sentena dada contra mim ..
Espero, porm, que ..
- Ahi vem vossa merc martellar-me com a deman-
da! ... - atalhou risonho o chanceller- Faltava-se do
casamento de sua filha, motivo para se fazerem epita-
lamios, e vossa merc a tirar-me o espirito para os fei-
tos a ppellados e conclusos ! pre com a teima ! Deixe-
me tambem ser poeta e alegrar-me com as delicias de
um casamento bem sorteado ! Dizia o meu collega
na casa da supplicao, o doutor Antonio Ferreira .
coitado! morreu da peste h a sete annos! .. Deus o te-
nha sua vista!. . Dizia elle:
No fazem damno s musas os doutores .
E, sendo assim, tambem eu me quero aperceber e
conloiar com as musas para ir estrear-me com ellas ao
Minho no casamento a prima Leonor ..
-Est a folgar o primo chanceller riden-
tissimo o velho.
- A folgar estou, em verdade, pri_mo Correia ; mas ...
ha cousas! -disse o chanceller, bamboleando a cabea
O senhor do pao de Nines
21
e esfregando a mo esquerda com a direita-ha cou-
sas .
- Ento?- sobreveio o pai de Leonor, curioso de
entender as suspenses do magistrado.
-Vou dizer-lhe a ideia que me anda bascolejando ha
mais de um anno e que lh'a teria j expendido, se vossa
merc me no atalhasse com a noticia do resolvido ca-
samento da priminha Leonor. Ahi vai. Tencionava pe-
dir-lh'a ..
Gonalo de Lacerda, como o chanceller se detivesse,
assoando-se com o vagar e trombetear proprio de seu
nariz 2rande e grave, entendeu que o p e d ~ d o da filha
era para elJe, e o mesmo foi abrir a bocca, esbugalhar
os olhos e espantar-se.
Pedro Esteves riu-se atraz do leno e continuou:
-Tencionava pedir-lh'a p ~ r a meu sobrinho Joo ...
O fidalgo de Roboredo no pde ter-se que no sa-
hisse logo com a resposta:
-Deus nos livre!. ..
-Das penas do inferno !-ajuntou jovialmente o
chanceller-mr do reino; e, compondo o aspeito, prose-
guiu :- Drus nos livre! .. Pois qu! to desigual em
sangue e bens de fortuna seria o casamento! ... Em
sangue so to primos, que suas tetravs eram irms;
em haveres, o morgadio de Pouve, se no emparelha o
de Roboredo.,.
- No isso ... -atalhou Gonalo Correia de La-
cerda-no faz isso ao caso, primo Pedro Cogominho ...
-- A duvida est no genio de seu sobrinho, que me no
quadra, e no intento de Leonor ao primo de Nines.
- Ah ! sim, isso outra cousa. o ~ accordo. Guarde-
me Deus de pr mo no sagrado das vontades e dos
22 O senhor do pao tle Nines
coraes! O que est gizado por ella e por vossa merc
faa-se. Disse-lhe isto em palestra; longe de mim o pen-
samento de revirar os seus intentos, primo. Acredite:
me ...
-Pois sim, eu entendo o que . .
........_Mas que repugnancia to de salto vossa merc
mostrou!. .. -volveu o chanceller-Pelos modos, mui-
tssimo indigno se lhe figura meu sobrinho ! ...
-No tanto assim, primo ..
-Qual .. Deus nos livre! ... clamou o primo Cor-
reia, como quem dissesse: a minha filha no lh'a dava
eu! .. Porqu? Os vicios de meu sobrinho? Raparia-
das, disse vossa merc, rapaziadas . .. E quem as no
tem? qual de ns as no teve? Rapaziadas sem des-
douro de avs nem de netos, na quadra propria d'ellas,
antes isso, antes quero que as elle tenha para depois de
marido e pai as no praticar. Meu .sobrinho tem vinte
e dous annos, creou-se na crte, faz pontaria a grande-
zas, e folga de galear e dar nas vistas. Eis o defeito que
lhe notamos: quem acoimar de crime ou sequer vicio
esta doudice innocente, calumna o rapaz. Gasta mais
do que deve? Elle o poupar. Dispende-se em luzimen-
tos que nada prestam aos seus creditos de fidalgo e si-
sudo? Herdou com o sangue esse desvanecimento. J
bisav, av e pai foram muito apontados em pompas de
trajos, cavallerias, caadas, corridas e torneios, attribu-
tos tocantes s usanas de fidalgos, como vossa merce
sabe e usou, primo Correia. No assim ?
- Assim .. -condescendeu o pai de Leonor, en-
guli1L!:) os argumentos com que pc:d!J. pm .. ~ 1 r que j:: >
Esleves ca um compendio de vicias.
-De mim creio-tornou o chanceller-mr-que meu
O senhor do pao de Nines 23
-sobrinho pde eleger esposa entre as mais nobres e me-
lhores herdeiras do Minho.
- Quem duvida?
-Duvida o primo Correia.
-Eu!?
- Vossa merc, duvidando acceital-o para genro.
- Eu j dei as razes .. - redarguiu Gonalo.
-Esto dadas e optimas so: no lh'as impugno.
Est destinada sua filha ? Basta. Deu a sua palavra. A
palavra de um Correia de Lacerda inabalavel como a
rocha, mas queria eu, como tio do representante dos se-
nhores de PoU:ve, que vossa merc me houvesse dito
que a no estar Leonqr promettida, meu sobrinho po-
deria considerar-se digno d'ella.
-Como na verdade pde . - obtemperou o velho,
-desconfiado e assustado do tom e gesto do chanceller.
-Bem -concluiu Pedro Cogominho, cortando o dia-
logo.-Estou satisfeito da sua condescendencia. Vou-mt
minha escrivaninha, que so horas. O primo v vi-
sitar os parentes,que no sabem da sua vinda, se no
prefere antes repousar-se da fadiga da jornada. E at
-depois ...
III
Dons homens qne a si se definem
Cuidadoso da filha e da casa, o senhor de Fareles.
deixou a crte ao sexto di, entregando a sua honra e
proveito no zlo do chanceller, que era sacco onde ca-
biam as duas cousas.
Saudou Leonor com jubilosas caricias a chegada do
pai. Acabra-se-lhe a recluso. J ella podia ver o pri-
mo Ruy, se que o no tinha visto passar nas lombas
das serras aulando a matilha dos podengos ou desfilar
encavalgado pelas clareiras dos pinhaes circumvisinhos.
Admirou-se Gonalo Correia de ser visitado pelo mor-
gado de Pouve apenas chegou; e admirou-se ainda mais
e peior humorado, quando o viu outra vez, passadas
dous dias, apear no pateo de sua casa e ir sentar-se
beira de sua filha debaixo do faanhoso carvalho, cuja
corpulencia anda j celebrada nas chronicas e corogra--
phias (1).
( 1) Veja frei Luiz de Souza, n ~ Vida do Arcebispo, Ii v. 1. o
cap. XIV, e Carvalho na Corograpkia, tom. 1.
0
, pag. 329 .
26 O senhor do pao 'de Nines
Deu-se pressa em descer ao pateo o velho.
Joo Cogominho, mui senhor de si e desenvoltamente
-cortezo, sahiu ao encontro do primo, abraou-o, disse-
lhe muitas e requintadas finezas em gabao da pri-
ma Leonor, e terminou entregando-lhe uma carta de seu
tio chanceller-mr do reino.
Gonalo Correia mandou abrir a sala vaga, como en-
to se chamava sala que hoje dizemos de visita. Era
aquelta em que o leitor pde ainda agora entrar, acau-
tellando-se de uns abysmos abertos no taboado; que fa-
cilmente o podem engulir e estripar nos paus dos bois,
que ruminam nas crtes.
E' esta sala artezoada, apainelada, recamada de Jaa-
rias e grinaldas, mirificamente lavradas e douradas em
magnificencia superior a quanto lhe podem de-
parar casas antigas n 'estas provindas do norte. Que es-
plendores no dardejaria todo aquelle ouro por sobre as
colgaduras e guadamecins das paredes, n'aquelle anno
de 1576, se hoje ainda se vo os olhos nos primorosos,
bem que desbotados, lavores da sala vaga do senhor de
Roboredo!
Entrado dourada estancia e sentado no alto tambo-
rete carmezinado, Joo Esteves Cogominho esperou que
o primo lsse a carta do chanceller, enfiando, no em-
tanto, os olhos pelos resqucios da porta almofae!2d a
vr se lobrigava fra a encantadora e muda Leonor :
muda, como elle quasi a suspeitava, porque a prima,
em bom quarto de hora, escassamente lhe dissera que
a arvore, de que o primo fazia grandes espantos, con-
soante o dizer de seu pai, tinha duzentos annos; e ajun-
tou que, tendo ella cinco, se lembrava de ter visto o
arcebispo de Braga D. frei Bartholomeu dos Martyres a
O senhor do pao de Nines 27
visitar a ireguezia sentado no vo do tronco da arvore e
lhe perguntra l dentro a doutrina christ (1).
Gonalo de Lacerda lra agita.damente a carta do dou-
tor Cogominho. Dobrou-a pressa e disse mal assom-
brado ao hospede : __
-fica entregue, primo. Escrevo a seu tio manh .
O morgado de Pouve, quasi despedido, sahiu pasma-
do da brutido do senhor de fareles, e disse ao tio que
-o primo Correia era um selvagem a competir em gros-
sura de casca e entendimento com o carvalho que tinha
no pateo.
O chanceller azedou-se d'este juizo.
Em carta ao sobrinho lhe havia recommendado que
examinasse o ar com que o recebiam o velho de Robo-
redo e a f i l h ~ .
De Leonor dizia 1 oo Esteves Cogominho que ape-
nas ficra sabendo, por lh'o dizer ella, que aos cinco
annos fra examinada em doutrina christ pelo arcebis-
po, dentro do co da arvore : -o que fazia suppor que
sua prima era to boal quanto bonita.
r
(I t <(Arvore de to desmesurada grandeza, que dentro no
tronco, que da muita antiguidade tinha aberto e co, se armou
uma meza e o arcebispo se assentou a ella em uma cadeira, e por
memoria no mesmo sitio e assento visitou a freguezia, e tinha
tambem lugar dentro a testemunha que vinha dizer seu dito.
Deve de ser filho do outro o carvalho que hoje braceja admira-
velmente no lugar do j extincto. A rJ.mada pde cobrir trezen-
tas pessoas. Rodeia-lhe e defende o carcomido tronco um ante-
-- mural de cantaria grossa. Esta gerao de carvalhos provavel-
mente deu ao local o nome de Roboredo. Pertence hoje a casa
ao snr. marquez de Monfalim, como casado com a snr.a marque-
. za de Terena, representante dos senhores de Fareles.
28 O senhor do pao de Nines
A carta do chanceller sobreagitou dolorosamente o fi-
dalgo. Escrevia o velhaco doutor duvidando do exito do
litgio sobre a justia da possesso do vinculo e fros de
Ruives, segundo a explanao clara que alguns minis-
tros do pao lhe tinham feito do processo, quando elle
fra sem delongas prevenil-os do seu fervoroso empe--
nho. Acrescentava o doutor, em recrescente pavor do
velho, que pessoas fidedignas e validas de Sal\'ador Cor-
reia de S lhe tinham segredado que, vencido o pleito,
!a o author victorioso instaurar-lhe o outro de reivindi-
cao de muitas quintas indevidamente possudas ha
cem annos, fundando .a demanda n'uma successa ille-
gitima e incestuosa entre primos co-irmos.
De feito, na menoridade de Gonalo Correia, seu pai -
conseguira atabafar e sumir, custa de avultosas quan-
t i ~ s , um pleito vilipendioso. Cuidava o fidalgo de Robo-
redo que os desaires de familia no voltariam a lume, e
j nem d'isso o inquietavam lembranas at ao momento
em que o chanceller lhe poz diante dos olhos os dons
phantasmas da pobreza e da ignomnia.
Est de sobejo explicado o terror do velho e mais que
muito s c1aras a cavillao do chanceller.
Gonalo Correia, respondendo ao doutor, enviou-se
todo ao valimento e compaixo d'elle em termos to
supplices e abatidos, que ninguem diria ir n'aquella carta
o esprito do fidalgo que se gloriava de poder mandar
ao contendor a sua sentena em taa de ouro.
o chanceller redarguiu-lhe com promessa dos possi-
veis esforos; receiava, porm, de se vr fraudado nos
seus ardentes desejos de o remir no s da quasi pobre-
za, que tambem do superabundante vilipendio cuspido
nas cinzas de sua terceira av.
--
O senhor do pao de Nines 29
Andados alguns dias, o advogado da causa, sujeito
muito da privana do chanceller-mr, escreveu ao seu
nobre constituinte, pedindo-lhe que fosse a Lisboa, sem
detena, a fim de pactuarem o extremo expediente de
salvar-se a casa de Fareles, Roboredo e as demais amea-
adas por futuras contendas.
Gonalo Correia sahiu na mesma hora, dizendo fi-
lha com os olhos em agua :
-Vou vr se salvamos a nossa.-casa. Reza sempre e
pede a Deus que se remedeie uma grande desgraa que
nos est imminente! ...
Foi.
~
E Leonor, bem que excellente filha, no rezou sem-
pre, em conformidade com o pai. D'aquella torre qua-
drilatera que se ergue de um angulo do palacete, cha-
mada ento casa-forte, - por ser a IIi o refugio das
preciosidades no assalto de fogo ou ladres - por alta
noute conversava ella com Ruy Gomes de Azevedo. No
se cuide que a menina se afortelezava na torre, defen-
dendo-se do moo como de incendio ou de salteadores.
No. A innocencia genuna rende-se; no sabe defen-
der-se. O moo que era a pureza e estreme honra.
Leonor ia d'alli fallar-lhe, porque a estrada passava subja-
-cente casa forte, e elle no ousava saltar os muros e
ouvil-a de outra janelJa.
Contava-lhe a temerosa menina as palavras afflictivas
do pai, no lano de abraai-a e partir. Ruy, no intento
de consolai-a, dizia-lhe que no receiasse a pobreza; por_
que, em poucos annos, remiria elle a casa de sua me
e teria que farte para o decente passadio de numerosa
famlia. Leonor consolava-se mediocremente. O perdi-
-mento da sua primazia entre as mais ricas herdeiras do
30 O senhor do pao de Nines
Minho incommodava-lhe o eu cogitativo, que raro se ban.
deia nas chimeras do eu amorativo. Ruy que era a ex-
cepo dos dous eus identificados. Era o louco sublime,
o idiota do cu, o abnegativo anjo que se sentia mais
amante, ao compasso que a amada mais se amiserava.
Referiu elle me o caso, os sustos de Leonor e as
palavras do primo Correia.
O. Thereza disse:
- Melhor seria que Leonor fosse rica; mas, se empo-
brecer, no ter em nossa casa saudades da meza abun-
dante do pai.
E ajuntava:
- Meu fiiho, ainda que o primo Correia perdesse as
quintas, para ser rico lhe basta o dinheiro que herdou e
augmentou. Ouvi dizer a teu pai que ha um quarto na
casa-forte de Roboredo especado com traves de ferro e
cheio de arcas de moedas de ouro. Deixa-o chorar-se;
que elle capaz de chorar porque no seu todo q
mundo.
-Se elle assim fosse ambicioso, -observou Ruy-
no dava a filha a marido com uma casa to pequena
como esta ..
- filho - replicou a me - escuta-me e cala-te. A
maior parte do que tem, seno tudo que tem Gon-
alo Correia de Lacerda, devia ser teu, porque tudo era
de minha bisav D. Maria de figueira. Houve ha oi-
tenta annos um grande crime e um grande roubo, mas
Deus perde aos criminosos, que eu, ainda que estivesse
s sopas de parentes, no lhes tolhia a salvao. Quem
nos diz a ns que o velho sabe ludo e quer restituir?!
Sabl-o, sabe-o elle. Ha muitos annos que outros pa-
rentes nossos de Lisboa quizeram demandai-o com o
O senhor do pao de Nines 31
consentimento de meu av. No sei no que parou isso ..
Pde ser que o inquietem novamente agora com deman-
das ... Eu por mim no assigno papel nenhum ...
-Nem pensar n'isso, minha me !-atalhou Ruy Go-
mes de Azevedo-Antes o po de esmola ! ...
foi cortado o dialogo por um tropel de cavallos por-
taria de Nines.
Era j oo Esteves Cogominho e seus quatro lacaios.
-Primo Azevedo!- chamou o morgado de Pouve ..
Ruy observou me:
-Nunca nos visitou! ..
-Vai recebl-o, filho- disse D. Thereza-E' muito
teu proximo parente.
- Sei e elle tem ido a Roboredo ... -tornou o
lilOO.
- Que monta isso? To parente de Nines como
de Roboredo.
Joo Esteves estava j no patim, dizendo comsigo:
-Este bruto d pela barba do outro de Roboredo ! ...
Isto um mattagal de lobos e meninas que trezandam
ao rapazinho !
Observaes perdoaveis n'um mancebo requestado
pelas damas da rainha D. Catharina.
Abriu Ruy as portadas do sobrado em que o morga-.
do de Pouve entrou olhando a um lado e outro a sala
em que hospedava suas visitas o senhor de Nines.
- Que viver este de cabaneiros! -dizia entre si o
sobrinho do chanceller como anojado de vr montes de
milho e feijes, rimas de aboboras e cebolas de envolta
com tamboretes de Moscovia, e contadores lavrados com
atauxias de cobre e prata.
Ruy no pediu venia da desordem da sua sala : che-
-32 O senhot do pao de Nines
gou-lhe o mais alto tamborete, e dispoz-se a receber a
visita com uma seriedade e apostura to ceremoniosa,
que o de Pouve esteve a espirrar de riso, combinando a
cortezania com o local, a rima das cebolas ao lado do
canhestro palaciano.
-Maravilha-te a visita, primo Ruy ?-disse o Cago-
minho.
-Estimo-a muito . Ha mais de anno que no te vi.
-Tenho estado por Barcellos. Vive-se por l regala-
damente. As primas Pinheiros e as primas Gran-Magri-
os so a flr do Minho. Bailam, fazem entremezes, me-
rendas, caadas, pescarias e que um fugir
alegremente o tempo! Tu que fazes, Ruy? Ninguem te
arranca d'este bravio?
- Vivo com minha me e cuido da lavoura.
- Ah ! tu s lavrador!? Ora no que tu dste!
-Nunca fui outra cousa
-Pois sabe da lura; mostra-te, que s um rapaz bem
figurado; e tracta-te como homem de tua estfa. Vai-se-
te a mocidade a vr os bois a tozar nas veigas !
Tens c a vali os bons ?
, -Tenho um cavallo velho, que me leva .
-faz-te um grande favor!. . -acudiu Joo Este-
ves sorrindo - Mau seria que elle quizesse ser leva-
do!. . . Eu tenho seis. . . Esto nas minhas cavallari-'
as, mas so teus quando os quizeres.
-Mercs. No sou picador que me affoute a medir a
-minha destreza com a valentia dos teus cavallos.
-Ento que aprendeste, Ruy? jogas as armas?
-No.
-No?! Que filho de guerreiro, e guerreiro de
--
O senhor do pao de Nines 31
Mazago ! Nem o ver a espada, a lana e o escudo de
teu pai te movem ?
--:Movem compaixo d' elle, que malbaratou o tempo
e o sangue! Minha me mandou fazer foucinhas das es-
padas de meu pai, e fez bem .
.:...._Que blasphemia!- atalhou Joo Esteves Cago-
minho- Tens ouvido dizer que el-rei planeia grandes
batalhas sobre Africa ?
- No. Aqui no chegam novas da crte. O que me
disseram, vai em quatro annos, foi a perdio das naus
que vararam no Tejo em guerra com a tempestade.
- Eu estava embarcado para a empreza.
- Qual empreza ?
- No sei. El. rei mandou.
- Que mandou sei eu. C me chegou a carta de el-
rei. (1)
- E no te moveste ?
-No. Minha me para mim a patria. Elia no me
quer soldado.
-Nem que te chamem para a segunda jornada de
Africa?
w
( 1) Veja na Histmia Sebaslica, pag. 2 33, a carta que D. Se-
bastio escreveu aos morgados, pedindo-lhes coadjuvao para
rebater uma sonhada invaso de quiJ!ze mil francezes por mar.
D. Sebastio comeo.u e acabou, o seu reinado. Os
aprestos francezes de que o visionario e infeliz invencioneiro se
temia dispararam na morte de trinta mil hugonotes nas chama-
das Matinas de S. Bartholomeu. Veja na citada Historia Se-
bastica como D. Sebastio escreveu a el-rei de Frana louz,and d
e levantando sobre as estrellas a santa mortandade
11os hugonotes.
3
34 O senhor do pao de Nines
-E tu foste primeira do afino passado ?-pergun-.
tou ironicamente Ruy de Azevedo.
--- No fui porque estava amaleitado, mas hei de ir
segunda; e quem no for mau vassallo.
- Antes isso que mau filho! -disse Ruy, fatigado
dos ares e gestos farfantes de seu primo, acompanhados
do tom de censura ao seu pacifico genio.
-Bom !-volveu o de Pouve, embaraado pela con-
ciso e seriedade de Ruy- Estudas ? gostas de ler?
- Estudei at aos quinze annos. tt
- Em Coimbra?
-No: no mosteiro de Landim com meu tio D. Jorge
de Azevedo.
- Mas no queres ser frade ...
- No : quero ser isto: lavrador.
- fiz-te uma lerda pergunta agora ! ... 1 me soou que
te casavas com a prima Leonor de Roboredo. E' ver-
dade?
Ruy Gomes quedou-se mudo como se o repentino da
pergunta o atordoasse. D'este enleio passou subitamente
ao azedume. Parecera-lhe audaz a pergunta. Avincou-se-
lhe a testa e secraram-se-lhe os beios.
-Enfadou-te a pergunta?!. .-acudiu Joo Esteves.
-Que me faz isso?- respondeu prompto o de Ni-
nes, contrafazendo o rosto em jovial.
- Pensei que te offendera. . Isto sabido e soado ..
Disse-te o que se diz. Se verdade, dou-te os profalas;
se no , a mentira no te mareia o nome. Estive em
R o b o r e d o ~ ha tempo. Achei:a bonita. Pena que esteja
assim a modo de montezinha ..
- Est bem !-atalhou Ruy.
- No est mal para dama alde; mas, se fr cr-
O senhor do pao de ines 35
te, mettem-na a riso. O pai devia fazer o que fazem os
outros da sua plana: mandai-a policiar, lapidar.-.. No
vens n'isso, primo Azevedo? r ~
-No entro nos deveres do pai da s r ~ a D. Leonor,-
minha prima. } n
- Homem ! ests agastadio! - exclamou o morgado
de Pouve, despeitado com os modos incivis do primo.
-E' geito men .. so os habitos de serrano .. -
disse placidamente Ruy Gomes. .rn
- Ento compe-te, moo; desembua-te d'esse som-
brio capuz de cavalieiro nocturno! Est a gente a fallar-
te como rapaz e tu ds a crer que praticas nos dormi-
torios de Landim com os conegos de Santo Agostinho !
-Que queres, pois, de mim ?-volveu Ruy, forcejan-
do ~ m sorrir.
- Fallar. Conviver comtigo. Tirar-te d'este rustico
mister de abego .. Vamos ao ponto: certo o que me
disseram? . . . Andas namorado de Leonor?
- Ahi est uma pergunta .. -disse Ruy, dissimu-
lando a custo o desabrimento que lhe refervia no sangue.
- Que tem a pergunta? s OlJ m
-Que s minha me tem direito de fazer-me. r,_.,.
-A f !-exclamou Joo Esteves-No toparam meus
olhos ainda nem donzel nem donzella to melindrada
como este Ruy!. .. V feito! Nem palavra mais.que te
agaste, meu primo. Mas do primo Gonalo de Lacerda,
se eu disser alguma cousa, vai n 'isso dissabor para ti?
- Fio de que no dirs mal de um to nosso parente ..
- No. O que digo que o homem corre perig> de
ficar pobre. Leva perdida uma demanda em .que se lhe
vai muito e no tarda a ser assaltado de outras em que
tudo se lhe ir.
O senhor do pao de Nines
-Pena , se iniquamente lh'o levarem-disse quie-
tamente Ruy.
-Iniquamente, no. Meu tio chancellermr l'atrono
d'elle, e no basta. A justia dos primos Correias de S
clara e inapellavel. Pobre fica elle ...
acontecer,-volveu o de Nines-sobram-
lhe abastados parentes que o recolham e se honrem de
to illustre hospede. Pouco valho eu; e me no commine
Deus maior pena que prestar-lhe o que tenho.
-Principalmente se a prima Leonor tiver metade do
teu morgadio ...
-Sem isso.
-Guapo corao! .. Vejo que nada te vai em ser
rico, primo Ruy! ..
-Nada. Os meus thesouros isto que vs. Umas ri-
mas de cebolas, uns alqueires de milho .
- Pareces romano ! ... -interrompeu com malicioso
riso o sobrinho do chanceller.
- Portuguez, sequer., e muito j sl-o da casta de
nossos avs, que por aqui se remiram com estes mesmos
thesouros e perderam a paz d'esta rude abundanci21.
quando a trocaram pela gloria da India. Repara n 'estas
grossas e nuas paredes. Sabes que homens aqui vive-
ram? Os filhos e netos dos que largavam a lana e vi-
nham pegar-se ao arado. Elles- ganhavam o torro que
lavravam; e nossos paes ganhavam cidades distantes a
milhares de leguas, arrazavam-nas a fogo, reedificavam-
nas sobre ossadas portuguezas e l as teem at que o
ventar da fortuna esquerda as derrube. .
-Toada de Jeremias !-interrompeu .Joo Esteves-
Ds em propheta, Ruy! . Olha o tio D. prior de Lan-
--
O senhor do pao de /Yines 37
dim como te desvairou a razo!... Queres de mim al-
gum Vou espairecer da tristeza que me pegas-
te! ...
- Pois vai e alegra-te, primo.
-Adeus.
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Deprehende-se do enfadoso dialogo do capitulo an-
terior que Joo Esteves, insinuado pelo. tio, compulsava
os obstaculos impeditivos ao casamento. Se o
de Pouve foi, .como bem de ver, Nines medir a
.corpulencia e brios do mulo com quem hayia de tl-as.
o exame .no o deixou satisfeito. Ruy Gomes de Aze-
vedo pareceu-lhe duro de .. brios asselvajados,. parco de
palavras e capaz de obras atrevidas. Presumira-o lerdo
.e montez de entendimento: ao revez, o lavrador sahira-
lhe expedito e lustroso na palavra, como se a tivesse
aprendido no tracto dos sabias qne pejavam as salas do
,l},anceller-mr do reino.
Descontente, mas no j oo Esteves in-
formou o doutor, a condio de Ruy
-Gomes para: que o chanceller se no ativesse to s-
mente .ao alvedrio de Gonalo Correia. O de Pouve,
com o tio, confessava-se ditiJinutQ para
40 O sellhor do pafO de Nines
a lucta, se o necessitassem s ultimas. Nada de
fias, bem que no tivesse melhores armas e as jogasse
todas. E tanto mais para admirar a ingenua confisso
do moo quanto fortes as razes que o compelliam a
conquistar a noiva e os pingues senhorios de Robore-
do: uma, o amor, o querl-a, o dizer em si que mais
formosa a no podia desejar; outra razo, o ir-se-lhe a
casa em pouos annos mos de crdores, por entre
as mos. dissolutas do vicio, das galas, das prodigalida-
des. Pois, com tudo isto, pde elle, n'um Incido quarto
de hora, considerar-se e temer-se do pacifico filho da
senhora que mandara dsfazer em oucinhas as espadas
de marido e avs.
Entretanto, o jurisconsulto advogado de Gonalo Cor-
reia, expostos em miudos os termos da causa appellada
e mui em perigo de naufragio no do pao,
dizia, em Lisboa, ao constituinte lavado em lagrimas,
como poderia chorai-as o homem de infimo lote:
-Vossa merc, snr. Gonalo Correia de Lacerda ..
valha-se de seu primo chanceller. Se lhe elle no acu-
dir, estamos cabidos!
;-Pois no elle o meu patrono? No lh'o tenho eu
dito, doutor ?
1
_:_Disse; vossa merc j m'o disse; mas no me con-
venceu do zelo, vontade de ferro e deciso do snr. dou-
tor Pedro Esteves. "' ''""
-Aqui tenho as cartas d'elle . -disse Gonalo
Correia, escolhendo-as na carteira.
:........ Cartas so papeis. Queremos obras; que palavras
ditas ou escriptas no reformam leis. Queremos que O
chanceller-mr do reino entre meza dos destmbarga-
dores e diga: c Ol! Isto ha-de fazer-se assim! As or--
O senhor do pao de Nines
41'
denaes dizem que este caso preto? Ns, os minis--
tros e legisladores, e interpretes das Pandectas e Decre-
, taes, dizemos que este caso branco, embora parecesse
s justias de Barcellos e s da Relao do Porto que
era preto o caso. O snr. rchance11er capaz de fazer
isto? E'; mas ... franq.ueza e lealdade! .. -no no faz.
E, se o no faz, foi-se tudo! Abysmo chama abysmo.
Perdida uma, perdem-se todas "as causas. Esta a ver--
dade.
-Assim . -tartamudeou Gonalo Correia de com-
movido e afogado por soluos-assim. . vai-se-me a
minha casa!
o jurisperito deu aos h o m b r o s ~ apiedando os olhos e
mostrando a ponta da lngua, que era tambem signal
de consternao.
-Ser bom-tornou o velho-que me eu v lanar
aos ps de meu primo chanceller... qrl' .s
-No, senhor !-clamou o doutor com soberbo ent-
no - Humilhaes no as aconselho aos meus consti;..
tuintes, maiormente se elles -se appellidam- Correias e
Lacerdas!... No, senhor!... Espere vossa merc_
Deixe-me pensar . .'. Um raio de luz me aq-ueceu a ca-
bea n'este momento!. ..
Volteou alguns giros na casa o doutor. Gonalo Cor-
reia, fitos n'elle os olhos embaciados, parecia procurar-
lhe na cabea o inculcado raio de luz. Quedou-se de
subito o lettrado, como se a ideia lhe saltasse sob oca-
Jor fecundante do luminoso hospede, e disse :
-Senhor, vossa merc tem uma filha-.
-Tenho.
- Unica e solteira.
-Sim .... y- t
-42
O senhor do pao de Nines
1
E o chanceller tem um sobrinho.
-Tem.
Ahi vai a palavra salvadora: case-os. Traspasse ao
.sobrinho do chanceller o proveito do vencimento das
causas: est_o ganhadas uma e todas.
--:-Mas -balbuciou o velho-Minha filha . est
,promettida .
-Est solteira-atalhou de pancada o jurisconsulto
- Nada de pannos quentes! E' uma grande casa e a
honra de seus possuidores que se salva. _Vossa merc
pai com a razo clara : no victime aos amores pue-
Tis de sua filha ..
-Fui eu que dei palavra .
'j
-Tire-a, reforme-a, que respeitaveis causas o abs<?l-
vem! Snr. Gonalo Correia de Lacerda, esta casta de
conselhos no est na esphera do jurisconsulto,- mas eu
abalancei-me a dar-lh'os, porque no sou mer> advoga-
do, .sou tambem affectivo amigo de vossa merc. Ca-
se-os, case-os. No se abata com supplicas. V de rosto
.alto a casa do chanceller; no lhe toque no
dos pleitos; fuja d'isso; entr_e risonho_ presena d'elle
e dig3:-lhe: Convem que seu sobrinho case com mJ:
nha filha.
-Pobres moos! - murmurou Gonalo Correia,
lembrando-se associadamente de Leonor e
graada filha!. . &'J
-Desgraada !-replicou o O so-
-brinho do chanceller ganhou _na crte de cavallei-
ro, d cortezo e bem posto fidalgo para se ter rz com
rz na linha dos primeiros de Portugal ! No elle do
mesmo sangue dos antigos bares e gentis-homens de
fare1es? No vi eu, no estudo da arvore de vossa mer-
O senhor do pao de.Nines 43
c, que o vinculo de Pouve foi fundao de um adail
da casa de fareles, e que os communs avs do snr ..
Gonalo Correia e do snr. chanceller eram primos cc-ir-
mos?
- E' verdade ..
- Pois se . . . que ha ahi para lastimar sua filha ?
- Elle . um dissipador! . vicioso! ...
-Tudo isso quebram as sacratissimas palavras do
-sacramento do matrimonio, snr. Gonalo Correia. E'
agua na fervura a subitanea mudana que fazem os ho-
'mens empestados de liberdade, quando se casam ...
Levantou-se o velho, abordoou-se alta bengala de
-casto de osso e disse :
-V! r
-E' a salvao, fidalgo !-exclamou fervoroso o dou-
tor- E' o tranquillo acabar da sua honrada existencia !
1:' o esmagar inimigos que o qurem desbalisar! E' o
ter em Portugal o mais prestimoso amigo,: a mais vigi ..
]ante e sagacissima atalaia dos seus haveres ... Quem?
O chanceller-mr do reino!. . . Abrace-me e diga que
-este conselho vale o que no se remunera com dinhei-
ro ! vale a posse quieta de sua casa e o transmittil-a a
seus netos sem- taxa de deshonra, do opprobrio com
-que lh'a queriam extorquir!
O aviso do jurisconsulto em casa do chanceller pre-
-cedeu a chegada do tardo e pensativo Gonalo Correia.
J Pedro Esteves, em duas palavras do seu servo, deci-
frra a victoria ganhada por astucia e se dava os em ..
horas de to ardilosa traa. Amor proprio do villo; que
a infamia nada tinha de engenhosa. foi aquilo um illa-
quear um velho timorato, ignorante e cubioso dos seus
11': l
f''
44 O senhor do pao de Nines
haveres, e zelador do nome honrado de alguns punha--
dos de cinzas.
A visado de ser procurado por seu primo Correia, sa-
hiu o chanceller a receb l-o ao mainel da primeira escada .
- Em Lisboa outra vez?! -disse o doutor-No po-
dia avisar-me pelo correio para eu lhe mandar a minha
liteira a Sacavem ?
- No quiz apurar a sua paciencia em aturar-me ..
Vim vindo devagar nos velhos machos, que pouco mais
podem que o dono.
Gonalo fazia-se fora para dissimular o trvo animo
com que entrava.
-A bagagem ?-perguntou o chanceller.
- Vim escoteiro; pequena trouxa enfarde lei. . Est
na estalagem .
. -Em qual?
- N'uma ahi para Santo Anto. Deixai-a estar, que
poucas horas estarei por Lisboa. ,
. -Veio por causa da sua demanda?- tornou Pedro
Esteves-Ora, _se veio !
-No, snr. primo. __ A demanda l est em mo de
rectos juizes e debaixo da mo omnipotente de- vossa
merc. J o primo Cogominho me preveniu para o mau
despacho. Estou apercebido de valor. No me ha-de o
golpe derribar. V-se tudo que meus paes me deixaram;
v-se tudo nas boas horas; que eu, primo chanceller,
tenho ouro com que possa recomprar as quintas e fazer
de ouro os padres das Ho as ( 1) de algum2s.
n/ .
- o
(1) Estes ou column:1s de pedra, signifkativas de
t-lJtito, . ainda agora se conservam em muitas quintas. Especial-
mente na da quinta de Pereira de Esmeriz, pertencente ao.
--
O senhor do pao de Nines 45
Que falsidade de animo! que jactancia! O velhacaz
do chanceller ria-se por dentro e cortinava o nariz-cha-
ramel1a com o leno para se lhe no ver o riso fra.
- folgo de o ver assim coraudo, primo! -disse o
Cogominho- Homens de boa laia e tempera so assim!
A honra vem ao de cima do mar tempestuoso em que
se afundam os bens da fortuna. Penso do ouro mal-
dito ser elle o primeiro que se abysma em virtude do
seu peso. O homem de bem, quanto mais leveiro do
louro metal, como diz o pobre do Luiz de Cames, que
por ahi anda a passear por Valverde a sua fome do tal
metal louro dizia eu que o homem de bem, quanto
mais leveiro de ouro, mais desimpedidas azas bate no
-caminho d{l bem aventurana, cujas portas so mais
apertadas para o rico do que o fundo de uma agulha
para um camello, como disse o Divino Mestre. Pobre
que vossa merc ficasse ..
- No fico pobre ... -interrompeu Gonalo Correia
- J disse a vossa merc que tenho em moeda valor
excedente ao das terras e fros.
-Deve ser muito! .. Pois, parabens, primo Cor-
reia. Exulto com essa nova! Pula-me o corao de ale-
gria! Salvador Correia de S no se ha-de regozijar de
o ver em angustias! .. Ento que outras causas o tra-
zem crte?
- Causas festivas, primo ..
snr. Antonio Pereira Coutinho, li: Quem pozer a 1-no 11'esta
colmmw tzo poder se-r preso. A casa actual d'esta quinta, vi-
zinha do rio Ave, ergueu-se, ao que se presume das genealo-
gias, sobre as runas do solar dos Pereiras, ascendentes de
D. Nunalvares.
46 O senhor do pao de Nines
-Oh! quanto me rejubila o peito! .. Abra-se, pri-
mo e amigo, quanto antes! No me retarde o prazer.
de ...
- Ahi vai . E' prazer commum .. Vi e tractei de
perto o primo Joo Cogominho. Agradei-me d'elle. Mu-
dei de ideias . Emfim, quero-o para esposo de minha.
filha.
O chanceller levantou-se de pulo com os braos aber-
tos, cresceu sobre o velho e clamou :
- D c esse peito, primo! Se me trouxesse a nova
de .. que sei eu!. .. da resurreio do pai de meu so-
brinho, no me dava alegria tamanha! E quer vossa
merc a prova summa do meu desprendimento e abne--
gao n'este consorcio? Eu lh'a dou clara omo a luz
que nos allumia ! clarissima! Dou-lhe meu sobrinho e
herdeiro na occasio em que os haveres da prima Leo-
nor so ameaados de derrota inteira! Que mais lhe di-
rei eu? Sinto que vossa merc ainda fique abastado,
perdidos os pleitos! Veja at onde se estende a minha
abneg-ao! Eu queria que o primo Correia entrasse com
sua filha na casa de Pouve e meu sobrinho lhe disses-
se: Pai! aqui tem dous filhos na sua casa! Pai! faa
como seu d'aquillo que no nosso, em quanto Deus o
no chamar s eternas riquezas da patria celestial!
Gonalo estava commovido a lagtimas. Fizeram-lhe
bem, acoroaram-no as phrases declamativas do trapa-
ceiro. j se lhe figurava bom e vantajoso o casamento,
visto por todos os lados, resalvando o lado da qualidade
do genro.
Desabafou d'esta oppresso o velho. murmurando:
-E tomar elle caminho? Comporemos ns aquella.
cabea?
O senhor do pao de N"nes 47
-Se compomos!: -acudiu o chanceller-0 con-
certo principia desde que eu lhe disser: Moo, tu vaes
ser genro de Gonalo Correia de Lacerda. Repara no
encargo que acceitas. Uma filha d.;este honrado varo
um deposito sagrado .. Sabe que mais, primo? Vou
a Pouve. Ha 2.nnos que I no fui para no ver a
imagem de meu irmo. Agora vou; vou assistir s bodas
da prima e j minha muito querida sobrinha Leonor ...
Vou ler a cartilha dos deveres a meu sobrinho e di-
zer-lhe: primeira lagrima que tua mulher chorar, ao
primeiro desgosto de que teu sogro se queixe, aqui es-
tou tua beira! Que mais quer?
-Mais nada, seno . que olhe pela casa d'elles, que
se empenhe em lhes segurar os bens que lhes querem
iniquamente extorquir! ''
1
- Primo Gonalo! - o chanceller, batendo
o p no cho - Primo Gonalo! Hei-de dar voltas no
inferno!. . . O que eu no fizer, no o far el-rei! ..
Mas, se decahirmos, no se aterre ..
- No .. - eu estou socegado. porm a honra de
meus Retos. . o processo affrontoso que vai enlodar as
cinzas de minha bisav! ..
- Descance!. . . Em que tempo se ha-de celebrar o
casamento? A prima j sabe?
-No sabe Vai sabl-o ...
-Mas se ella, captiva do tal Ruy de Azevedo, re-
pugna .
- E' minha filha ! .
-Boa palavra! E' sua filha I. E elle, o primo de
Nines ? Desatinar ?
- Ruy Gomes um corao excellente. Soffrer si-.
lencioso e reportado .
48 O senhor do pao de ('J ines
-Quem sabe! Tenlto informaes d'elle. Consta-me
que trombudo, selvagem, e exquisito de modos e di-
zeres ..
- Mas bom e docil. Basta que a me lhe diga o que
eu lhe aconselhar ...
- Optimo! Sim .. detenho-me n'estas explicaes,
porque no quero que Joo Esteves ande em testilhas
com elle. Muito 'bem sabe o primo o que so e no que
desfecham odios de familias, notavelmente no sertG do
Minho, onde no ha rei que valha nem justia que en-
tre ..
- Socegue, primo, que eu fico pela prudencia de Ru y
Gomes de Azevedo.
- N' esse caso - tornou o chanceller - eu estou em
Pouve no proximo mez de agosto, e levo d'aqui as ne-
cessarias dispensas e licenas rgias e ecclesiasticas para
os noivos receberem as benos na capella de Pouve.
Que dia! que dia to feliz este para mim! Que enchen-
tes de jubilo lhe devo, carssimo primo, amigo e senhor
meu!
-
v
,
Como choram as mes
Nos u1timos dias de julho de 1576, D. Thereza fi-
gueira mandou chamar Ruy sua camara.
O moo parou no limiar da porta, vendo-a ajoelhada
diante do seu crucifixo de marfim, com as mos postas e
os olhos em Christo.
Esperou.
Ergueu-se a me, relanou, ultima vez, os olhos Iacri-
.mosos imagem do Senhor e __ murmurou :
-Dai-me valC?r!..
Voltando-se, viu y.
-Estavas ahi j,. filho?
- Cheguei agora, minha me.
--..Vem c. ' minha beira . Tenho de fal-
lar comtigo. :
D. Thereza no atinava com o melhor comear. Ruy
Gomes olhava compadecido. em sua me. Via-lhe oco-
rao lanceado: Apertou nas suas mos as-d'eUa e disser
- Sei o que vai
O senhor do pao de Nines
-Sabes?!
- O primo Gonalo fallou-lhe hontem. Quer casar a
filha com o de Pouve ...
-A tua serenidade, filho !-exclamou a me com ale-
gre vehemencia-Deus fez-me o milagre! ..
-Qual?
- O da tua paciencia. . . No choras ..
-Homens no choram. . . A minha obrigao de-
fendl-a a ena, pobre Leonor, de chorar. Mal nos iria,.
se esmorecesse mos ambos ...
-E ella no quer o de Pouve ?-perguntou D. The-
reza admirada.
- No, senhora.
- Outra cousa me disse o pae ...
~ - Que lhe disse ?-acudiu Ruy agitado.
- Que ella conformava com a terrivel preciso de ga-
nhar as demandas.
r:o O moo fez breve pausa, meditando, e disse com ener-
gia: . 1"
- Goncalo Correia enganou minha me ! Leonor no
me mentia ! ~ - .:-. O qUe me ella disse fm que o pae, na
volta da crte, lhe tecra louvores e gabos do sobrinho
do chanceller; e ao mesmo tempo expo1era os perigos.
de se ir a pique tudo quanto possuiam, se ella no ac-
ceitasse como esposo o morgado de Pouve. Leonor cho-
rou, e Gonalo Correia ordenou-lhe obediencia de filha
e nada .de lastimas. E' o que sei. Minha me que sabe?
-O que me disse o primo Correia: que Leonor no
contradisse o pae, conhecendo que a sa condescenden-
cia era salvar-se a casa, o velho e a honra de seus maio-
-res. A honra de seus maiores! . -repetiu a dama, le-
vantando os olhos para a cruz.'!
1
~ ~ U I - ~
O senhor do pao de Nines 51
- Sendo assim, que quer Gonalo Correia?
- Que te no apaixones ..
- Se o caso verdadeiro .. - atalhou elle, sorrindo
amargamente-se Leonor de to boamente annuiu, no
devo, em verdade, apaixonar-me nem carecer de que m'o
aconselhem. . . Para vil bastaria ella ! ...
- Ainda bem que o entendes assim, meu filho ...
-Mas no assim, me! Gonalo Correia calumniou
Leonor !-insistiu calorosamente Ruy Gomes-Eu vi-a
chorar ...
-Viste?
- E ouvia-a pedir-me que a no .desamparasse ...
--Ento ... -conveio D. Thereza-o primo enganou-
me_!... E que resolves fazer? Vaes romper em brigas
com Joo Esteves ?
-No, senhora. Espero que elle rompa contra mim.
-Tudo um .. -clamou a senhora affligida-Te-
mos desgraas! ...
-No as prevejo, minha me; mas, se vierem, dei-
xe-me ser homem. Meu pai chamava-se Vasco de Aze-
vedo e meu av materno Heitor de Lacerda figueira.
- Attende-rne, filho! -disse D. Thereza-Valei-me,
senhor meu Redemptor!-exclamou, pondo as mos e fi-
tando os olhos em Christo-Filho, tu s a minha vida!...
Ampara tua me e deixa Leonor! Guarda para mim a
tua mocidade, a paz de tua alma, o bom corao que
Deus e eu te formamos ! Deixa casar Leonor; no os
empeas, desvia-te .. d'ella e de Joo Esteves! ... Escu-
-- tas-me, filho da minha alma ?
-Sim, escuto-a, como a Deus !-volveu Ruy-Mas
hei-de eu deixai-a sem que ella me diga que a deixe? ..
Oh!. . Minha me no sabe como eu amo Leonor!
52 O senhot do pao de Nines
No me v, desde os quinze annos, s d'ella, todo na
esperana de a ver minha? E hei-de eu desamparai-a,
quando me pede que seja por ella . eu, unico refugio
que a pobre menina tem ! ...
-Mas se o pai t'a no d ... -objectou D. The-
reza.
- Pde ella ssinha defender-se de ser immolada a
um homem que abomina?. . . Devo deferfdl-a eu ! ...
- Queres raptai-a? !
- No, senhora.
-Ento?. . Explica-me os teus planos ...
-Nenhuns tenho. Amparai-a com dignidade ; defen-
dl-a at ao momento em que ella me diga: Deixa-me !
- Que desastres vem sobre ns! - clamou a f!le
consternadissima; e logo irrompeu com alvoroo :-Meu
filho! vai estar alguns mezes na crte ! Eu vou comti ..
go! Vamos ver os nossos parentes !
-Se vossa merc m'o assim ordena, vamos. Mas .
aviso-a... Perde seu filho!. . . Sei que morro ... de
amor. . . e de vergonha da minha covardia ?
-Valha-me Christo e a Virgem do cu!- soluou
D. Thereza-Ruy! juras-me de ser prudente?
E, levantando-se de golpe, tirou da peanha um livro
e disse:
- juras-m'o sobre estas sagradas Horas?
-Juro ser prudente em quanto a prudencia no pu-
dr chamar-se fraqueza.
-E has-de ouvir-me, consultar-me sempre?
-Sim, minha me.
- juraste, filho?
- Pela memoria de meu pa!.
- Eu te abeno, anjo !
O senhor do pao de Nines 53
E lanou-lhe os braos acariciativos, beijando-o mui-
tas vezes no rosto.
-Me, -disse elle-se Leonor mandar que eu lhe
falle, devo ouvil-a?
- Deves; mas, se e lia o faz com prohibio do pai no.
-Com a prohibio violenta? a prohibio em car-
cere ? o encerrai-a, o refreai-a com ameaas e terrores,
at lhe levar o algoz do marido? Quer isto, quer este
opprobrio para seu filho? Quer que eu viva depois com
estacruz de vilipendio e vergonha? Quer que eu me vexe
da minha propria sombra e que me atire desesperado a
urna voragem, acceitando em troca da minha ignomnia
n'este mundo as eternas penas do inferno?
D. Thereza, tremente e pallida, acompanhava com
respirao convulsa as palavras arrebatadas de Ruy de
Azevedo.
Calou-se elle.
E chorava em silencio, condodo de Leonor, de sua
me e de si.
D. Thereza correu-lhe as mos ao descer das faces e
murmurou:
-Vai, Ruy. Deixa-me orar. jesus Christo v a minha
dr melhor do que tu; e o teu corao pde elle mudai-o
n'um acno de sua divina vontade. ..
Ruy Gomes sahiu, entrou no seu quarto, lanou-se
de bruos a chorar sobre o catre, d'onde ouvia o soluar
alto de s u a ~ m e no quarto visinho. As lagrimas rebalsa-
das sabiam entd em torrentes.
Horas depois, o moo entrra no mais cerrado da matta.
Sua me vira-o ir e l o mandou buscar para receber
um recado que lhe trazia uma pastora da casa de Robo-
redo.
54 O senhor. do pao de Nines
rdizer Leonor que seu pai a tinha to
nem s- janellas a deixava sahir; por isso
lhe pedia que a no buscasse nem apparecesse nascer-
canias da casa at novo aviso. , . " ''
.: Ruy escreveu-lhe, mas as1Iagrimas competiam em af-
com as palavras. Peqia-lhe noticias
do seu . martyrio, e confiana na justia de Deus e no
valimento da justia humana, quando mais no podesse
comportar a- violencia do pai. rH u
Sem impedimento da recommendaode Leonor, pelas
onze da seguinte noute, Ruy Gorues atravessou as Vei-
gas do Vermuin, no proposito de assomar-se a um vizo
de serra de onde se avistava a casaria de Roboredo. Para
alm do;rio Pele, escutou a estrupiada de cavallos a des-
cer no monte sob-posto ao pao de Numes. Desviou-se
para uma deveza fechada de Carvalhos, e viu, luz bri-
lhante da lua, passar Joo Esteves Cogominho e os seus
lacaios. Permaneceu como empedrado sobre a sella at
que deixou de ouvir o raspar das ferraduras nas caladas
contguas de Pouve.
Depois, subiu a ladeira por onde Joo Esteves des-
cra, defrontou-se com a casa de Leonor, parou, e viu
d'ahi arroxear-se o co no monte Crdova e branquea-
rem-se as cumiadas das serras. foi como um acordar-se
ento de sonho horrente. Desandou, caminho de Nines,
e de longe viu a me na janella do seu quarto, aque-
cendo-se do frio da madrugada aos primeiros raios do
sol. Passra alli a noute inteira espera do filho.
Ruy abraou-a, beijou-lhe a fronte e disse :
r.F- Porque se no deitou? ... Vejo que d pouco va-
meu juramento! Jurei pela memoria de meu
O senhor do pao de Nines 55
No bastar a conter-me o sagrado da imagem d'elle e
da sua, minha santa me ?
. -Pois sim, Ruy; mas a primeira noute de tua vida
que pernoutas fra. . Paliarias com Leonor? .
-No sahi n 'essa esperana nem e lia o poderia fazer.
O de Pouve sahiu de l. alta noute com a sua ala de
lacaios.
r
-Encontrastes-vos ?-exclamou assustada a senhora.
- Affastei-me do caminho. . para que elle passasse
1ranquillo.
avisado, meu bom Ruy; mas no vol-
tes l . No te encontres, sequer de acaso, com elle .
-A m. teme que me affrontem ?-voltou o moo,
sorrindo .
....:._Temo tudo que pde temer o corao de tua me,
que te deixa e merre, se te acontece desgraa!
Ruy Gomes affagou-lhe as faces amarellidas do_ re-
lento da e aqueceu-lhe nas suas as mos frigi-
dissimas d 'e lia. I
-Tens febre, filho !-disse D. Thereza, compulsan-
do-lhe a testa e os pulsos-Que lume! Vai-te deitar ..
dorme, Ruy, meu pobre filho!
-Vou, vou repousar.
Na seguinte noute, Ruy escutou o resonar de sua me
e saltou pela janella do seu quarto. Um preto de sua
idade, trazido de Africa por seu pai, tinha-lhe o cavallo
-pela brida, longe, em terra descalada, para no ser ou-
vido. Era este negro a unica e sublime alma de homem
-que parecia entender e ler no peito do seu senhor. Ti-
nha sido desde os seis annos um como pagem do fidalgo.
Escudeirava-o depois nas idas ao visinho mosteiro de
56 O senhor do pao de Nines
Landims a estudar com o tio O. 'prior. Soube d'elle aos:
quinze annos o amor a sua prima. Entre os dous, o preto.
Vasco, do nome de seu padrinho, no era tanto.:omo
amigo, mas nada tinha da submisso e temor de escravo.
As galanterias pueris, com que os primos se mutuavam
o cu na terra, no nas escondiam de Vasco nem de al-
gum ente estranho as occutrariam, porque eram to da
graa dos anjos, que podra o Senhor, se assim as dsse
a todas as almas, recompor um mundo sem culpa, sem
nodoa, todo amor e louvor de quem o fez.
Vasco tinha sido, na quadra das alegrias, o portador
dos ramilhetes para a v6litante borboleta de Roboredo, e
trazia para Nines as flores que a menina, desde o alvor
da manh, conservava com seu avelludado'vio erri jar-
ras indiaticas. A's vezes entre as flores de Ruy ia um
bilhete aberto, que o velho Gonalo deletreava
prompto que a filha. O senhor de Roboredo cuidra pouco
de lettras; e pde ser que nenhuma importancia que
lhes dava se deva consentir e1Ie que a filha aprendesse
a ler a cartilha com o capello e a escrever um pouco
mais intelligivel que o mestre: prenda no vulgar
quellas ras, bem que ainda vivessem as discpulas das
Sigeas.
Ruy cavalgou e disse ao negro que o seguisse. .
Ao atravessar a vau o riacho Pele, ouviu estrupiada
de cavallos da banda de Ruives. Devia ser j oo Este-
ves com os seus criados. Arredou-se para perto, man-
dando affastar-se o preto com o cavallo. Viu-o passar o-
de Pouve rente do tronco de arvore que o encobtia.
Amo e lacaios iam armados de longas espadas, ctl'jos
copos e misericordias brunidas espelhavam lampejantes
a lua.
--
O senhor do pao de N.ines 57
foi Ruy em demanda do cavallo e disse ao preto:
-Vasco, poders ver minha prima? Quero que
a vejas. ~
_._Pois hei de vl-a, senbor.
-E lhe ds uma carta. i c
-Darei, senhor. . ~ : r t n 'TIB .
- Se ella estiver fechada. . se te no podr ver ..
- Pde, meu amo. t- ~ rr 101
- Porque me dizes que p6de? - acudiu Ruy.
- Porque hontem me viu.
-Viu-te?!. . . Que foste l fazer?
-fui em cata da cadella perdigueira, que fugiu para
l na matilha do . capello, quando elle atravessou a
nossa deveza e quedou-se a caar no nosso texuguei-
ro. (1) fui. . . '1t'i
-E viste-a? . Onde? ~ rU-
- Passou na varanda grande ...
-E viu-te?
- Parece-me que sim, senhor; e deu a fugir, quando-
me enxergou. Cuidei que a fidalga iria l dentro bus--
car algum recado para vossa merc; estive, estive es-
pera at que o snr. Gonalo me viu e perguntou o que
eu estava a fazer. Disse-lhe que ia em busca da perdi-
gueira. Elle mandou-a procurar e dar-m'a:
- Tractou-te com m cara?
-Est feito... Parecia zangado .. e eu deixei-me
c estar um todo-nada no terreiro a ver se lobrigava a
fidalga e ouvi o snr. primo de vossa m e r ~ perguntar
l dentro se a snr.a morgada tinha fallado ao preto.
\
(1) Assim_ se nomeia no Minho o agro Jurado de tocas de coe-
lhos e privtiva dos senhores das mattas.
58 O senhor do pao de Nines
Ruy Gomes, da relao do escravo, inferiu que Leo-
nor andava espiada e temerosa at ao_ ponto de fugir
assim que viu o escravo para esquivar-se a algum so-
bresalto do pai, e maior aprto e vigilancia no seu car-
cere. Ponderado isto, o moo cogitou de si consigo
consternadamente: .1orJ,
- Desventurada Leonor! Cotno hei-de eua cudir-te!
E, voltado ao negro, disse andado: , ~ t
-Como has-de tu vl-a? onde has-de ir entregar-lhe
a carta?
- Deixe por minha conta, senhor - respondeu, sor-
rindo ladmamente, Vasco."'TD-me vossa merc a car-
ta, que eu d'aqui me parto j para Roboredo em cata
da perdigueira! -continuou elle, j festejando com tre-
geitos o bom successo da traa- Vou dar a casa do
caseiro, dizendo-lhe que o fidalgo me mandou buscar a
cadella, porque sabe ao romper do dia para o monte.
Depois, fao signal pastora- e dou-lhe a carta. Procu-
ra no procura a perdigueira, bota madrugada; eu fao
que me vou embora e escondo-me na matta espera
.da resposta. 1
Ruy de Azevedo tirou a carta do bolso do gibo, en-
tregou-a ao escravo e disse-lhe:
-faz o que podres, Vasco!
...
~ . I I
...
Como as boas almas so tolas
A's oito horas do dia seguinte, chegava o escravo ao
pao de Nines.
- Viste-a? - perguntou andado o amo.
-No, senhor; mas aqui est a resposta. A pastora
arranjou tudo. ,.a
Vasco ia contando os pormenores da feliz empreza; e
Ruy, ;lidas as poucas linhas, voltou costas ao escravo.
A carta era afflictiva. Leonor desgraciava-se em lasti-
mas de preza, condemnada a casar com o primo de
Pouve ou a ir do seu quarto para o convento. No lhe
pedia amparo; rogava-lhe que a deixasse morrer.
Que rogos ! Como o corao do moo se diluia .em
lagrimas de sangue ! Se elle tivesse amado antes de
Leonor duas mulheres que vulgarssima especie lhe _no
- pareceria a terceira !
Foi ter-se com a me e leu-lhe a carta, em soluadas
ancias e cego de lagrimas. D. Thereza, consternada.
mas socegadamente, observou:
60 O senhor do pao de Nines
- Elia pede-te que a deixes, filho .
-Que a deixe morrer!- a c t ~ d i u Ruy.
- Sim . . mas . . . a oaixo no me parece grande ....
-Porqu ?!-sobreveio Ruy com insoffrido semblante.
- Leonor cede muito depressa vontade violenta do
pai ...
-Pois no ouviu a me isto que ella escreve: Tem-
. me presa e leva-me para o convento, se eu no quizer
o primo de Pouve .. :. No v isto?
-Vejo, Ruy, meu pobre filho, vejo; mas, se Leonor
te quizesse muito, acceitaria o convento, acceitaria a
-morte, em vez de acceitar o primo de Pouve.
O moo cravou os olhos nos da me: parecia ouvir
por elles e no entender o que ouvia.
D. Thereza continuou:
- Tambem eu fui ameaada com a clausura, quando
me affdoei a teu pai, e nem por isso me deixei es-
morecer e querer a morte. Antes o convento, antes ca-
ptiva de mouros, que ligada ao homem que me queria
obrigar deslealdade com teu pai!
Ruy sacudiu a cabea, como se a quizesse desoppri-
mir de uma ideia excruciante, e murmurou:
--- No. . . no pde ser ! ...
- O qu, filho?
- Leonor desleal I. . . No me diga isso, minha me !
- Disse-t'o eu, porventura, Ruy?! ... O meu reparo
no olha a tanto. O que eu mal percebo a prom-
pta . ohediencia de minha sobrinha. Boa filha era eu e
desobedeci, quando teu av me quiz casar com um tio
a quem eu no podia ver sem odio. Alm d'isto, filho,
esta carta de Leonor diz bem com as palavras de Gon-
alo_ Correia. Que me disse elle? Que a filha obe-
O senhor do pao de Nines 6/
decia. E ella, meu querido Ruy, no te diz o mesmo? ..
Nosso Senhor! Bem vejo que te estou ator-
mentando com as minhas desconfianas !
-Atormenta! ... E eu defendo Leonor, minha me ...
Defendo-a ...
-De mim no; que bem sabe Deus que a no of-
fendo... Longe tal ideia!. .. No sei at se te diga,
filho, que o procedimento d'eila mais para louvores
do que para ...
- Qual procedimento? casar com 1 oo Esteves ?
-Sim.
-Para louvores?! -clamou Ruy.
-Certo . Se o pai lhe pede o sacrifcio de sua von-
tade e ella obedece, contando com a morte, no s-
mente boa filha, seno uma santa ....
- Uma infame- atalhou o moo- Uma santa que
me atira em corpo e a) ma aos abysmos do inferno! ...
Os demonios so menos traioeiros! ... Oh! que hor-
riveis tractos minha me est dando ao corao de seu
filho! No me diga que ha mulheres assim ! . . Leonor
no me pede que a .livre, verdade; no pede; a razo
temer que eu arrisque a minha vida contra o de Pou-
ve... E' talvez o.lembrar-se que minha me no tem
{)Utro filho ..
- Pois sobre ella chovam benos e coras do Alts-
simo!- exclamou _D. Thereza- Bem haja a compas-
siva creatura que tem d da minha viuvez!. . . E se-
rs ts. filho, menos piedoso do que Leonor? Irs arris-
car a tua e minha vida contra o de Pouve ?
-No, minha me !-respondeu firmemente Ruy de
Azevedo-No irei medir foras nem direitos com 1 oo
Esteves. A refesta seria deshonrosa para mim, embora
. 62
O senhor do pao de Nines
o marcasse de villo e covarde ! . . O que eu devo fa-
zer n'este lance . Minha me, diga-me, aconselhe-me,
allumie a minha razo !
D. Thereza poz os olhos no semblante do Crucificado
e disse em seu corao:
- Allumiai-o, meu Deus ! . Se o enganado elle,
desenganai-o!
Deus attendeu a prece da me humilde, que por si
no ousra aconselhar o filho. ,..
N'este comenos, Ruy de Azevedo, como se luz subita
lhe rareasse as sombras do juizo, exclamou de subito e
com a energia de uma inspirada resoluo:
- Ha justia na terra.
feita breve pausa, proseguiu :
- Minha me ! preciso saber se Leonor vai arrasta-
da ou de vontade casar com o de Pouve; preciso saber
se uma desventurada digna de respeito, se uma treda
para quem o odio seria ainda sentimento aViltador de
homem honrado! Preciso e hei-de sabl-o! ... N'esta
peonha da duvida, que me agonisa, ha smente o re-
media do cortar fundo do ferro, sarjar sem dr, arran-
car do corao esta raiz que eu no quero afogar e des-
fazer com lagrimas a pouco e pouco!. .. V de uma
feita! Venha o raio do desengano! Tanto monta viver
como morrer ! ..
;_ Morrer, filho do meu corao ! - acudiu D. The-
reza, pondo as mos no seio de Ruy - Pois has-de tu
morrer, se ella casar com outro?!
O moco estremeceu, sorriu e respondeu:
-Disse eu que morria? ... Perde-me, esquea-se, Rli-
nha me ! . . . Morrer eu!. Seria isso afogar-me na
lama dos ps d'elles! . Nem tanto! Padecer, sim,.
O senhor do pao de Nin.es
..
63
e muito_; porque eu . nunca Ih'o disse, minha me? ...
no lhe confessei quanto amava Leonor? ! . 1 ~
-Disseste, filho E no me queres tanto a mim?
a tua vida, que tem sido sempre a minha, instante por
instante desde que nasceste e te eu lavei com as mi-
nhas lagtimas de esposa infeliz. . a tua vida, Ruy .
haver razo que me obrigue a perdl-a ! ? E ento ago.
ra! agora que eu principiava a ser alegre, porque te
vejo homem, e to homem de honra to bom fi-
lho. to meu amigo e amado de todos ! . _
D. Thereza arquejava. AIJ
Ruy, estreitando-a ao peito, balbuciou :
;-Nada perdi do.que era .. Aqui me tem para
quanto me ordenar. . . Que quer, minha querida me?
-Esquece-a, filho ... Peo-te isto a chorar e a tre.
mer como de medo de te magoar!. . Esquece-a .
-Se ella for despresivel. . . sim! Posso jurar-Ih'o
pelas chagas de ..
-Oh! no jures! no jures!- atalhou a me, em-
bargando-lhe nos labios com a mo a palavra CHRISTO
- Tu no sabes o que manh ha-de sentir o teu ani-
mo!. . no sabes o que pde fazer a paixo nas mais
austeras almas!. . Eu pude voltar o rosto das lagri-
mas de meu pai, pude resistir sua vontade. . e bem
m'o "dizia o corao que a vingana d'elle seria a mi-
nha infelicidade de esposa. E mais era en. m u-
lher, innocente, temerosa de tudo, e tudo affrontei,
quando mais cega estava! .. E, se eu pude tanto, que
poderei eu agora e depois. . . depois do desengano ..
com os meus rogos ... a ti que s homem, que s for-
te. . que te h as-de atormentar com o vexame
- E o meu pundonor ?-interrompeu Ruy.
64 O senhor do pao de Nines

-O teu pundonor, filho, ha-de ser o mais penetran-
te ferro da tua agonia ! . . Fosses tu como ella ! .
Que Deus te dsse uma alma como a de Leonor! ..
-Que atroz injustia, senhora! -exclamou o moo
-No me despedace, minha me ! Deixe-me o socego
preciso para o desengano! Escute-me. . . Findos tres
dias. . . minha me ou se arrepende de julgar to des-
abridamente Leonor ou me chama infame, se eu profe-
rir o nome d'ella I
-Que vaes fazer n'estes tres dias, Ruy?
-Desenganar-me.
-De que modo?
-Do mais justo e prudente. Eu lhe digo o meu in-
tento ..
E continuaram praticando .
-.R IJ
b
J!
VII
Desengano
Corridos dous dias, o ouvidor de Barcellos e seus mei-
rinhos apeavam porta de Gonalo Correia de Lacerda.
O senhor de Roboredo, avisado de tal e to odiado
hospede,-odiado por causa das sentenas contrarias que
lhe elle julgara- vacillou em dar-lhe entrada. O ouvi-
dor, abespinhado com a delonga, reenviou novo aviso
ao fidalgo, dizendo ao mensageiro :
-Diz l que est aqui el-rei, e el-rei 'no espera.
O magistrado lembrava-se de O. Pedro, o cr, gri-
tando que o esbofetearam na cara de um corregedor.
Sem desaire, pois, de O. Sebastio, podia o ouvidor de
Barcellos capacitar -se de estar e l-rei n' elle.
Esporeado pela segunda mensagem, Gonalo Correia
sahiu de suas rancorosas indecises e assomou no pa-
tim, a tempo que o ouvidor ia subindo c&m ar mages-
tatico, segundo convinha s qualidades realengas que o
revestiam.
5
66 O senhor do pao de Nines
- Salve Deus a vossa merc-saudou o magistrado .
- Deus o guarde-correspondeu o fidalgo.
O buvidor entrou sala e os meirinhos ficaram no
q uinteird ao p das mulas.
Volvidos quinze minutos, appareceu o magistrado com
torva catadura, desceu at ao penultimo degrau, ge-
meu a encavalgar-se e resmoneou, como ao ouvido da
mula:
- Tambem s femea .. No me fio de ti ! ...
Que desilluses motivariam, no animo de to sisudo
sujeito, uma confrontao assim offensiva e attentato-
ria dos dons angelicos das damas?
Vamos sabl-o.
O ouvidor desviou-se, logo adiante, do caminho de
Barcellos e ladeou para o pao de Nines, onde o espe-
ravam duas senhoras da familia de Alcoforados, paren-
tas de D. Thereza, as quaes tinham vindo da sua casa
da Silva para o intento que logo se dir.
Esperavam-no anciadamente Ruy de Azevedo, a me
e as duas primas.
Assim que ouviram o tropel das cavalgaduras, sahi-
ram todos ao patim. Ruy foi pegar do estribo e offere-
cer o hombro ao ouvidor. Ao descer-se, o magistrado
poz-lhe a mo no seio e disse :)

- Mal em pregado corao ! ...
-Pois qu -balbuciou Ruy.
D. Thereza, ouvindo as palavras do ouvidor, disse
para as parentas :
- Adivinhei .
-Ento?- perguntaram simultaneamente as snr.
18
Alcoforados- Que da prima Correia de Lacerda? t
Elia no vem ?
O sellher do pao de Nines 67
-Nem queremos que venha !-respondeu elle-Que
v para o diabo!. . Subamos.
Recolhidos sala seguidos de Ruy, cujo aspecto no
arguia commoo forte nem sequer espanto, o magis-
trado, enxugadas as camarinhas de suor, disse,
fando:
- Ora ouam l. Feitas as cortezias de parte a parte,
seccas e brevet, disse eu ao que ia: que me constava por
denuncia certa que n'aquella casa estava preza uma me-
nina para haver de casar contra vontade propria, em
virtude de se ter affeioado, sem aggravo do beneplacito
paterno, a outrem. Discorri cerca do crime de carcere
particular, defezo e culpavel em toda a ordem de oppres-
sores, embora elles se chamassem paes. Ordenei, pois,
que a snr.
8
D. Leonor me fosse trazida a fim de ser
perguntada sobre o contheudo do requerimento e infor-
maes. Gonalo Correia levantou-se, sahiu porta sem
se esconder da minha vista, para me certificar de que
no ia preparar a filha, e chamou por ella. Entrou a
creatura. Bastou-me encarai-a! Qual priso nem qual
violencia! Cara risonha, gorda, rosada, a rebentar saude
e alegria por aquelles olhos !
senhor- disse-lhe o pai- o snr. ouvidor
de Barcellos, que vem fazer.te umas perguntas.
-E' verdade- continuei eu.- Chegou ao meu co-
nhecimento que vossa merc, snr.
8
D. Leonor, estava
como preza na casa de seu pai, em razo de ter uns
affectos que no so os que o pai de vossa merc quer
que a senhora tenha.
-A creatura ficou-se muda a olhar para mim, e eu.
espera da resposta, a olhar para e-lla. Quiz-me parecer
que a menina me no percebra ou a presena do pai a
68
O senhor do pao de Nines
constrangia. Perguntei novamente, esclarecendo quanto
pude a ideia. Entendeu-me e respondeu que no estava
preza.
-Mas casa por vontade sua de vossa merc com a
pessoa que seu pai lhe escolhe?- tornei a
-Sim - disse e lia, sem levantar olhos do regao.
--Este sim to lesto e desempenado, se vai a dizer
verdade, azedou-me, porque eu tinha visto a carta que
ella escreveu ao snr. Ruy Gomes. No pude ter o m-
peto de zanga e disse:
-Vossa merc, minha senhora, bom que seja ver-
dadeira commigo, mas melhor seria que o tivesse sido
com a pessoa a quem disse ou a quem escreveu estas
palavras: Tem- me preza e leva-me para a convento, se
eu llo quizer o primo de Pouve. Escreveu i5to ?
-Esteve-se a engulir em secco .. mas n'este ponto
mais curial dizer-se : esteve-se a engulir o pejo. . a
vergonha ... e sahiu com esta negao:
-Tal no ha!. .
-Ouvido isto, levantei-me, e, suffocado de colera,
no pude reprimir estas palavras:
-Quem a si mesmo se desmente no d direito a
que outrem lhe diga: Est mentindo!
-Gonalo Correia tudo ouviu em silencio; at pro-
priamente o aggravante insulto que no pude soffrear.
Sahi; e aqui estou, snr. Ruy Gomes de Azevedo, para
lhe repetir o que j lhe disse: c Mal empregado cora-
o! .
Ruy Gomes continuava, de braos cruzados, mui fito
na cara do magistrado, como se o narrador no tivesse
concludo.
Seguiu-se logo silencio. D. Thereza chorava, mas aba-
O senhor do pao de Nines 69
fava a suspirao anciosa. As 3nr.s Alcoforados entre ..
olhavam-se espantadas e de si lanavam compassivo olhar
ao rosto empedernido de Ruy. Quebrou o ouvidor esta
mudez, que era, no interno de duas almas, um tumul ..
tuar de inexpressaveis angustias. Levantou-se, foi direito
ao moo, e, tomando-o nos braos, disse-lhe jovialmente:
-se vossa merc no tiver dez vigilantes anjos da
guarda volta de si. mulheres como aquella ha-de o
demonio deparar-lh'as s duzias!
E, voltado a D. Thereza, continuou:
- E est chorando?! Porqu, minha senhora ? ..
O caso p a r ~ muito festejado? ... Saiham-me as lou-
ainhas todas, venham para ahi descantes e folias, toca
a tanger sinos e queimar morteiros, que est vossa
merc, minha snr. D. Thereza de figueira, livre de
nora que lhe havia de empeonhar os contentamentos
d'este honrado filho, d'este gentil moo, para quem Deus
formou um anjo!
-Eu sabia isto I .. eu sabia isto! ... -balbuciou
D. Thereza, rompendo a reprza dos soluos; e, correndo
como arrebatada para o filho, abraou-o com vehemente
ternura, exclamando:- Ruy, filho, tu no dizes nada?
- Que hei-de eu dizer?- respondeu elle, sorrindo,
n'um tom mavioso de paciencia, fico maravilhosa,
cujos exemplos smente a extrema, a dilacerante, a suf-
focativa desgraa os d.
- Ruy Gomes um homem! -clamou o ouvidor-
Aqui est sangue de Azevedos e figueiras!-proseguiu,
assentando-lhe a mo no seio- Nada de lastimas, snr. a
D. Thereza! O filho de vossa merc amou enganado e
abriu os olhos quando Deus quiz mostrar-lhe que ades-
leal o no merecia ! . . Castigada, bem castigada a dei-
70 O senhor do IJao de Nines
xei eu ! Mulheres!. . Bem no diz Jorge de Aguiar ....
Oua isto, snr. Ruy :
Esforo, meu corao ;
Nao te mates, si quizeres;
Lembra-te que so mulheres ...
Ruy Gomes parecia no ter ainda percebido bem o
que era, n'aquella hora, o seu viver, a sua razo e senso
intimo. Estava como nas indecises do terrvel espertar
de um sonho mau, n'aquellas andas de quem acorda e
cuida que o terror verdadeiro, e a si mesmo se est
dizendo: Se isto fosse um sonho!
Via sua me debulhada em lagrimas e o ar condodo
com que fiS hospedas attentavam n'elle. Este olhar pe-
nalisado das parentas e o tom delamatorio do ouvidor
entraram-no de uma especie de vergonha de seu oppro-
brio, legitima vergonha do amor-proprio enxovalhado.
Sentiu que a presena de estranhos lhe era uma corda
na garganta. O corao, cheio de lagrimas, tumecia-se-
lhe contra as paredes do peito. A espaos, annuviavam-
se-lhe os olhos e troavam-lhe no interno da cabea es-
trondos metallicos, como a reboada surda de pancadas
subterraneas. Era o desabar horrendo da esperana, do
cu e terra, do phantastico mundo formado por espao
de muitos annos. Era o ruir de tudo que fizetam milha-
res de dias e noutes. Era o passado no abysmo; o pre-
sente no inferno; o futuro ... uma viso indescriptivel,
um complexo de vises horrendas, das quaes os desgra-
ados se fogem a tremer e chorar, pedindo a Deus que
lhes abra sepultura onde se escondam !
Foi repentina a sabida de Ruy, mas levava quieto o
O senhor do pao de Nnes 71
semblante e mesurado o passo. Se alguma palavra dis-
sesse de antemo, cuidar-se-ia que o moo se apartava
serenamente de uma prtica familiar. Porm o corao
da viuva ia-lhe no seio d'elle a compulsar-lhe a angus-
tia. Sabia sobre o seguro como aquella alma ia. Levan-
tou-se para seguilo. Teve mo d'ella o ouvidor, dizen-
do-lhe:
-Deixe-o, minha senhora, deixe-o ir. Afflices
d'aquellas redobram-se com lastimas alheias. Ssinho
que elle se quer n'estes primeiros dias. Depois, o acer-
1ado que elie v para onde seja muita a gente.
Pouqussimo sabia do corao o magistrado. O ho-
mem talvez tivesse subido ao Oolgotha da saudade, mas
no conhecia o outro mais acerbo supplicio do vilipen-
dio- a esponja da ignomnia chegada, sem intermitten-
cia, aos labios do padecente que diz: Morro deshonrado
e ludibrio da mulher que adorei!;
O mundo tem padecentes assim. Os que no mar-
Tem de taes angustias so uns que vivem encouraados
no seu despejo e no teem parte s do peito onde a
frecha da affronta rompa veia de sangue puro. Estes
taes, quando os lancta a ingratido e a injuria, esvur-
rnam a sua pe.)nha, vociferam e curam-se.
Ora, Ruy Gomes de Azevedo no articulra uma s
palavra contra Leonor.
VIII
o D. prior de Santa Maria de Landim
O ouvidor de Barcellos no perguntou a D. Thereza
se Ruy Gomes tinha em Deus f bastante a soccorrer-
se de seu amparo. foi a senhora do Pao de Nines
que lh'o lembrou, dizendo entre soluos:
-Meu filho muito devoto da Virgem Senhora das
Dres .
E, pondo as mos, continuou :
- Entrego-vos o meu Ruy. . . Ide com elle, no no
deixeis perder, Senhora das angustias!
E, de feito, o atormentado moo ia guiado por mQ:
da piedade atravez dos arvoredos que separavam o seu.
solar do mosteiro de Landim. (1)
(1) Tambem diziam .Natzdim e primitivamente J.llardim.. Vej.
Chron. dos cottegos reg. por D. Nicolau de Santa Maria e Agiol_
lust. por Jorge Cardoso.
74 O senhor do pao de Nines
Os cruzios receberam-no como a um dos seus. L o
tinham creado e ensinado. A sua celJa, convisinha da
de seu tio prior D. Jorge de Azevedo, estava sempre
apparelhada. Os mestres do docil e angelico moo di-
ziam que Ruy, a final, havia de vestir o habito de San-
to Agostinho e honrar com elle mais um dos descen-
dentes de D. Arnaldo de Bayam, no s varo de Deus
que tambem fundador do convento de Arnoia. Lidavam
~ o m o D. prior, pedindo-lhe que attrahisse o sobrinho
ao mosteiro e lhe insinuasse santos amores vida claus-
tral. D- Jorge redargua-lhes que Deus lhe levaria a mal
mover um filho unico a separar-se de sua me; alm de
que, Santo Agostinho tantos e bons filhos tinha, que se
no folgaria de que em seu nome se contendesse com
uma senhora que no tinha outro. Eram assim d'este
bom juizo os espritos do prior de Landim, tio paterno
de Ruy.
D 'esta vez, a entrada do senhor de Nines ao mos-
teiro causou nos conegos um certo espanto com que
uns a outros pareciam interrogar-se. Ruy Gomes pass-
ra silencioso e de o!hos abatidos rente com s mestres,
com os parentes, e amigos conhecidos desde novios.
fallavam-lhe; e o moo, desfranzindo os labios em cons-
trangido sorriso, indicava violentar-se de modo que o rir
devia de ser n'elle uma contraco dolorosa. Endireitou
aos aposentos do tio, que estava medindo com os seus
ponderosos oculos a profundidade de um Sablico. Acer-
cou. se d 'eU e sem lhe dar as boas tardes, ajoelhou, dei-
tou a face nos joelhos do cruzio e murmurou:
- Deixe-me chorar! ...
-Porque choras?! Morreu minha cunhada? ! -ex-
clamou D. Jorge.
O snhor do pao de Nines 75
- No, senhor ..
-No ! . E podes assim chorar ! . No morreu
tua me e choras assim?. . . Que crime capital _esse
que te dilacera a Ruy? Praticaste feito de
insanavel deshonra?
-No, meu tio
E continuava em andados arquejos.
-Levanta-te, filho)-disse com authoridade o D. prior
-A p! Vamos a saber que isto ... D'onde vens? ..
V l, Ruy! ... -admoestou o conego regrante, adver-
tido subitamente por uma suspeita bem fundada- V
l que no tenhas ainda pesar de ti e vergonha d'essas
lagrimas!
D. Jorge de Azevedo conhecia os affectos e esperan-
as do sobrinho, .:desde que no seio do moo amanhe-
ceu o primeiro, o communicativo contentamento do
amor. Quadrra ao frade fidalgo uma alliana to van-
tajosa em bens de fortuna quanto ajustada em nobreza.
-por isso approvra o acertado intento do sobrinho por
vezes o pergun tra sobre a brevidade do seu casamen-
to, afervorando-lhe a vontade com louvores da noiva e
no menos do proveito adveniente casa desbaratada
de Nines.
D'estas antecedencias que D. Jorge inferiu a sus-
peita de que seu sobrinlfo se estava em tamanha afflic-
o por causa de Leonor.
Ruy Gomes confirmou a desconfiana do tio, referin-
do os successos .decorridos a entrada de Joo
Mendes de Pouve na casa de Roboredo. A narrativa sa-
hiu-lhe apaixonada, interrompida por silencios longos de
Jagrimas, e omo ella devia ser at ao ponto em que o
76 O senhor do fJao de Nines
j quebrantado moo, quasi exhaurido o alento, decla-
rou que vinha ao mosteiro pedir o habito de novio.
O. Jorge de Azevedo, ouvido o remate da lamenta-
o, expediu uma gargalhada, que fez um estremeci_-
mento de assombro nos nervos injuriados do sobrinho.
-O habito de exclamou o O. prior, de-
mudado o rosto para severo- Vens tu, fraco homemt
pedir a Deus que te acoute e defenda das injurias de
uma mulher! foges para a religio, assim que uma vil
creatura te arremessa com lama ao rosto!. . O' filho
de Vasco de Azevedo! O' filho de meu irmo! que amor
foi esse que te abastardou os brios? quem te afeminou e
enfraqueceu os espritos at este cahir de tanta vilta! Co-
mo podes tu com o ludibrio de esconderes d'essa trfade
mulherinha, que se ha-de envaidar de tua mesma mise-
ria e andar por ahi contando em ar de piedade que por
amor d'ella fugiste do mundo, no intento de se fazer bem
conhecida a causa da tua desesperao! ... E foges, Ruy!?
e deixas que Joo Esteves &valie o muito que ella vale
pelo muito que tu sacrificas I .. Mata esse corao a
estocadas, se elle te abaixa a tanto aviltamento! R e- .
surge, moo, para uma vida de homem, e homem do
teu -sangue! Desfigura-te, se preciso; abre um riso
n'esse rosto, muito embora as lagrimas te queimem dentro.
Convence-me a mim proprio que choraste de vergonha
de a ter amado. Convence-a a ella de que tiveste ape-
nas uma hora de assombro de sua infamia e sahiste
d'essa lethargia despresando-a tanto, que j a tinhas
esquecido quando toda a gente cuidava que Jhe tinhas
odio. Tens alma que me escute, homem? E's Ruy Go-
mes de Azevedo ou quem s tu? falia! ..
-Eu escuto-o, meu tio; as suas palavras teem une-
O senhor do pao de Nines 77
o de Deus ! ... - disse o moo, com o real senti-
mento de inesperado allivio.
E D. Jorge de Azevedo proseguiu solemnemente:
-No dirs mais que pensaste em ser frade. E' um
segredo entre duas pessoas que ho-de guardai-o porque
o descobril-o opprobrio de ambas. Sahirs d'aqui hoje
mesmo. Irs levantar a alma que mais carece de soe-
corro; dirs a tua me que se lastime smente de ter
em sua parentella duas creaturas talhadas e concerta-
das para se procrearem n'uma raa parte da nossa. O
devasso de Pouve deve unir-se villanaz de Roboredo.
Mas preciso quet ' .. conta d'estes dous consortes e
consociados na infamia, no soffra um homem de bem
nem haja de chorar uma dona como Thereza de figuei-
ra. E' isto preciso, Ruy; ou eu me finarei de desgs-
to, como ancio que no pde j com o peso de g r a n ~
des affrontas. Vai, filho. A ninguem digas que padeces;
nem mais a mim m'o digas; occulta-o mesmamente
tua razo, se alguma hora te assoberbarem allucinaes
do espirito. Olha se podes comtigo e sobre ti de modo
que hajas de te encarar com ella, com essa abatida e
mal-agourada creatnra. Que ella se veja em teu olhar
despresivel, feia de alma e manchada na face com o
ferrete da deslealdade! ... Chegou a minha voz at ao
mago da tua Razo, ruy ?
- Chegou, sim ! -disse o moo com sincera e deli-
berada vehemencia -Estou reposto na dignidade de
onde cahi diante de meu tio ! Ninguem mais me viu
chorar; ninguem me ver desde agora ! . . . E minha
me? que pensar de mim? Onde cuidar que estou?
Sobre a vergonha, remorso de a ter deixado n'esta ho-
ra, mais atribulada para ella do que para mim ! ...
78 O senhor do pao de Nines
-Apressa-te, Ruy; vai ter com tua me; cuida em
consolaJ.a. Olha que no tens nem ters mais leal co-
rao n'esta vida .. Eu te abeno em nome de Deus
e de teu pai!
Ruy sahiu. Era j escuro. A poucos passos da porta--
ria estava uma senhora descendo das andilhas ampa-
rada sobre o hombro do preto Vasco. Era D. Thereza.
o moo, reconhecendo-a, exclamou:
- Minha me ! ..
- Bem me dizia Nossa Senhora que tinhas vindo
para aqui, meu filho! . Vinha saber de ti e' pedir-te
que te deixasses estar, se a companhia de teu tio te
melhorasse.
I
-Eu, minha me, estou bom! -acudiu Ruy com
alegre sombra- No v que mudana ? Sinto alguma
cousa que s as suas oraes podiam dar-me, e as san-
tas e honradas advertencias de meu tio!. .
D. Thereza, em demazia credula no effeito das suas
oraes, nada pde exprimir do. jubilo que a sobresal-
tou. Dos braos do filho correu a ajoelhar.se nos de-
graus do adro e orou longo tempo, com a face abatida
at lage.
D'alli caminharam, como exagitados de contentamen-
to, fpara Nines. Dir-se-iam amantes fugitivos e j re-
salvos da perseguio. D. Thereza, encostada ao hom-
bro do filho, apertava o passo como se t o ~ a a fora da
juventude se lhe remoasse ao calor da exultao. Nada
lhe faltava para o milagre: levava n'alma o amor de
me e a f omnipotente da santa.
Quem no acreditava na subita restaurao do moo
apaixonado era D. Jorge, o frade que no tinha atra-
vessado inclume a mocidade. Confira-se elle pouquis-
O senhor do pao de Nines 79.
simo na durao do effeito de suas palavras sentencio-
sas e energicas para persuadir e mover de assalto. O
que elle queria era apanhar a vontade do sobrinho n'uma-
entre.aberta das tempestades, que haviam, no judicioso
pensar d'elle, de ser muitas. Durante a quebra da pri-
meira sezo, esperava elle gizar e executar o
principio de uma cura solida. E qual fosse ella, na pa-
thologia moral do conego agostiniano, vamos j averi-
guar.

D. Jorge, ao abrir.se a manh, sahiu do mosteiro e
foi a Nines.
Ruy dormia ainda e D. Thereza estava orando.
Sahiu ella a recebl-o lavada em lagrimas. Contou-
lhe que Ruy, em quanto vieram de caminhada at casa,
dissera cousas to justas e sentidas contra Leonor, que
ella o julgra de todo resgatado de suas penas: porm,_
-desde que entrra em casa, se recolhra ao seu quarto
e apagra o candieiro. Ajuntou que ella fra escutar de
mansinho porta e o ouvira chorar. Quo o chamra e.
elle lhe pedira encarecidamente que se fosse deitar. De-
pois, como no pudra adormecer, dera tento de elle sa-
hir por noute morta e recolher-se ao romper do dia.
-Bem- disse o D. prior.- faa minha irm de
conta que nada passou do que me conta, salvo a satis-
fao com que seu filho veio para casa. E' necessario
que elle se no atrigue de me ver, desconfiando que eu
j sei de to rapida transgresso do seu proposito e das.
promessas que me fez. Emquanto Ruy no sahe do
quarto, lance minha irm as suas medidas, que, ma-
nh, h a-de sahir d' aqui e seu filho para Lisboa. Eu tam-
bem vou, que tenho l negocias, e muito desejo ver.
nossos primos D. Antonio de Azevedo, o almirante, e
.80
O senhor do pao de Nines
seu irmo D. Joo. Em casa de O. Antonio vai hospe-
dar-se a mana Thereza e seu filho. Quando chegarmos
a Lisboa, j a noticia da jornada l ter ido pela posta.
Dispe-se a tudo?
- Quanto me ordenar, snr. meu irmo; tudo farei
no bem de meu filho.
-Ora ento, senhora, resolvido. V-me dizer a
Ruy que estou aqui e j me tarda o almoo. Mande-me
vossa merc depois ordenhar uma boa tigella de leite e
adoce-me as sopas, que me anda muito encruado este
pigarro nas guelas.
Ruy tinha ouvido a voz sonora e cheia do tio prior.
Desconfiou que a me o tivesse mandado chamar e cons-
trangeu-se para lhe apparecer. Empeava-o o pejo de
to rapida quebra em seus briosos protestos. Sahiu-lhe
ao encontro o conego mui faceta, dizendo remoques
preguia do rapaz de vinte annos que se levantava de-
pois da aurota de agosto, a divindade dos poetas e a
saude de toda a gente. Poucas mais palavras ditas,
D. Jorge avisou, com ar imperativo, seu sobrinho da
ida para Lisboa com sua me e com o tio frade, que
lhe ia ensinar as ruas d'aquella Babiionia.
Ruy declinou d'elle a vista para o rosto da me como
a pedir-lhe explicao do improviso desgnio.
D. Jorge proseguiu:
-Bem sabes, Ruy, que tens em Lisboa teus primos,
em quem rebrilha todo o lustre antigo da casa de Aze-
vedo. Todos somos oriundos do snr. O. Pedro Mendes
de Azevedo; todavia nos alcaides-mres de Alem quer se
continuaram as glorias seculares dos Gozendes e Vie-
gas. Bom que te avisinhes de senhores tanto da nos-
O senhor do pao de Nines
81
-sa obrigao e alguma hora vagues d' este tracto mon-
tez policia da crte.
- Se meu tio guardasse para melhor occasio esta
visita aos nossos parentes . -observou Ruy.
-A melhor occasio chegou: esta-replicou autho-
risadamente o frade.-E' esta, repito! Em Lisboa que
-se ha-de provar o quilate do teu merecimento, Ruy de
Azevedo! L que florece o melhor sangue em fidalgos
sentimentos. L que se estimam coraes nobres; e
em cada familia das mais gradas da crte encontrars
muitas parentas e muitas dignas esposas onde empre-
gues tua complacencia. Em summa, l que te espera
um brioso desforo da filha de Gonalo Correia. Quando
voltues a Nines, vir comnosco tua esposa, e tu, de
opulento da tua felicidade, nem descers olhos a ver
eese pouco de lodo com que o chanceller Pedro Esteves
Cogominho vai tapar as fendas de sua casa, para que
o mundo nS? veja as miserias que l vo dentro.
Quando, pois, aguardas tu melhor lano de ir a Lisboa?
Ruy Gomes, sem embargo do respeito com que ouvia
-o austero conego regular, tartamudeou com desplicencia 1
-Ora, snr. meu tio! .
-Ora ... qu? .. No me estejas mastigando pa-
lavras!. .. Que dizes, homem?
- Que, se o fim para que vou casar-me, escusado
o sahir-se minha me de sua casa e o ir eu como
fora para onde me no leva a vontade. A mim que me
fazem desforos e felicidades achadas em Lisboa ? No
nas quero nem busco, meu tio ... Por caridade lhe rogo
que me no tire d'aqui Se algum remedio ha para
quem tanto soffre ..
-E quem que tantosoffre?!-interrompeu D. Jorge
6
82 O senhor do pao de Nines
- E's tu? Homem sem pundonor, s tu? .. No te
cabe de vergonha o rosto, quando to despejadamente
o confessas? Minha irm Thereza, queira vossa merc
chamar-me o seu lacaio, esse negro que ahi est fra.
Quero perguntar-lhe o que faria elle, se fosse o que
este filho de Vasco de Azevedo! Venha o preto dar um
quinau nos brios d'este fidalgo! Venha o nfimo da ral-
dar aqui testemunho de que o melhor sangue no con-
dio de honestos sentimentos ! ...
fez o D. prior uma longa pausa gesticulando sem
expressar as ideias atabafadas pela colera. A final, rom-
peu n'estes brados, acompanhados de tres valentes pan-
cadas com que esmurraou um bofete:
-Alto l! Dementes no se regem a si! No tens
pai que te leve de um acno at tua dignidade. No
tens, Tua me no pde, porque a ternura lhe quebra
as foras e a authoridade. Que monta isso? Aqui est
o irmo de Vasco de Azevedo. Aqui est teu tio, que
te diz: Irs manh para Lisboa!
D. Thereza chorava em alto soluar.
E o frade, sublime e magestoso d'aquella sua ira e
postura, d'aquelJe venerando aspeito e bracejar, ondu-
lando a capa sacudida pelo brao, repetiu, passados ins-
tantes, a exclamao:
-Irs manh para Lisboa I
Ruy Gomes ergueu os olhos lagrimosos ao rosto do
tio e disse:
-Irei!
IX
Chaga curada em falso
O almirante d'estes reinos, D. Antonio de Azevedo,
recebeu festivamente a viuva de seu tio Vasco, o gen-
til e galhardo provinciano seu primo, e o respeitavel
D. Jorge, cujos saber e virtudes soavam no tuba pouco
pregoeira de virtudes n'aqut.lle tempo. Avisado puri-
dade pelo conego regrante, D. Antonio incumbiu a seu
irmo D. Joo de Azevedo, lnuito moo e gal, do en-
cargo de divertir o animo apaixonado de Ruy Gomes.
D. Joo era a flor dos fidalgos em prendas de sua
condio, em pontos de pundonor e pujana de brao.
Sem encarecimento lhe davam os mais vaidosos a pri-
macial vantagem em cavallerias, amores, dotes de cor-
tezo e btavura, se bem que no a tivesse ainda pro-
yado nas batalhas.
Acceitou alegremente D. Joo o cargo de distrahir
seu primo, tanto mais quanto o triste minhoto se lhe
affeiora, folgando muito de ouvil-o fallar de amores
-84 O senhor do pao de Nines
proprios e alheios, de faras e tragedias, de aventuras e
desaventuras, umas na casa de el-rei, sem embargo das
severidades de D. Catharina e do neto, outras fra do
pao, apesar das trovoadas de moral, que nunca tanto
reboaram dos pulpitos.
Ruy Gomes ouvia cousas que o pasmavam, muitas
que o entristeciam, e algumas que lhe inflammavam
saudades da sua provinda e desejos de s
suas tranquillas runas de Nines. No obstante, a con-
versao do primo era-lhe grata e j to precisa, que
raras horas se apartavam.
D. Joo ouvia-lhe a repetida historia dos amores
mallogrados, accusava ligeiramente a lealdade do pro-
ceder de Leonor e dizia com elle, no encarecimento da
saudade, como quem no julgava necessario invocar
sentimentos de honra para induzil-o a despresar a per-
fida. O irmo do almirante, comquanto moo, sabia um
tanto mais que D. Jorge da fabrica espiritual do homem.
O conego fra rapaz no fim do reinado de O. Manoel;
D. Joo de Azevedo floria nos dias malsinados de cor-
rupo pelo bispo de Silves. Duas escolas diversissimas,
duas epochas entre si to desiguaes, que o homem de
uma comparado ao de outra, at certo ponto, denota
ifferenas sensiveis na alma. Se a alguem se figurar
paradoxo este dizer, desculpe-me, que no cabe aqui a
defeza, e vae muito que dizer e saber n'ella.
Enganado estava, porm, D. Joo com seu primo.
Ruy de. Azevedo no era de uma nem de outra epocha.
O que elle tinha em alto quilate, e da me de Deus
recebra e a sua me lhe velara, isso faltava j no peito
do moo lisbonense : era a virginal candura do corao,
o perfume de innocencia que, apenas sallido ao ar pes-
O senhor do pao de Nines 85
tilencial dos vicios alheios, em vez de levantar-se em
aromas, se esfria, congela e dilue em lagrimas. O se-
nhor de Nines no transigia com a offensa. Chamava
elle odio de peito honrado lembrana de Leonor. No
era o que elle fingia crer ou cria de boa f: era o amor,
o amor commum, este aleijo ordinaio que tanto mo-
lesta peitos plebeus como illustres.
Lisboa, e particularmente a parentella de Azevedos,
tinha insignes formosuras. D. Joo levava-o s assem-
bleias mais apparatosas. Estimulava-o a render-se s
bellezas mais pretendidas, no intuito de lhe dar rivaes
e ensaiar a cura na competencia. Ruy nem amava nem
era amavel. A me)fmcolia, que no corria ento como
graa e attractivo, desluzia a gentileza do moo. As
formosas viam-no recolhido como avaro de um gozo
ideal ou como beato malquerente dos festejos do mundo
e passavam sem sequer o lastimarem. Algumas, impres-
sionadas de to montezinha taciturnidade, diziam que o
provinciano estava em Lisboa afflicto como a toupeira
ao sol. De frma que D. Joo de Azevedo, conversando
com seu tio D. Jorge, dizia que ou Leonor era belleza
sem parelha ou o primo Ruy um parvo desapparelhao.
D. Thereza pedia a seu cunhado que dsse por inutil
a demora em Lisboa, visto que eram passados quatro
mezes e Ruy no melhorava. O cruzio respondia que
ao era tarde. Instava a senhora j impaciente. D. Jorge
contraveio cem estas razes :
- Que quer, minha irm? Que seu filho v assistir
s festas do casamento de D. Leonor Correia com Joo
Esteves? Hoje me escrevem de Landim, referindo-me
os preparativos que l vo. O chanceller j l est com
grande rcomitiva. r fazem-se arcos de murtas e flores
86 O senhor do pao de Nines
desde Roboredo a Pou ve. Todos os caseiros e foreiros
das duas casas andam afanados a empedrar caladas
para o transito das liteiras. Quer que seu filho v assis-
tir a estas alegrias ?
- Deus me guarde d'isso! ... No Ih'o diga ...
-No lh 'o diga minha irm.
- Mas ... -tornou elia-no sabe vossa
o que me elle disse? Que brevemente iamos ter guerra
em Africa, porque o senhor D. Sebastio quer conquis-
tar no sei que terras ...
- Assim se diz ; a isso o levam os inimigos de den-
tro e de fra. Fizeram-no fanatico e sequioso de sangue
ae mesmo tempo os conselheiros, os padres da Compa-
nhia. No ha ter mo d'elle. Assim que o lano se lhe
ageitar, l vai. ..
-E Ruy ir tambem?
-Se for, corre-lhe obrigao de ir. Todos os fidalgos
iro. Como ficar e ver ir el-rei?
.-Que v el-rei muito nas boas horas, mas meu
filho, exclamou D. Thereza.- Para o conter,
no me ho-de faltar foras ! Se as lagrimas no vale-
rem, de rojo me levar! ... O' meu Deus! pois ainda
me guardaes para ver partir-se meu filho para Africa!
No basta o que eu chorei nas idas :de meu marido,
que de l me veio com a morte- na garganta e com as
feridas ainda abertas ! jesus ! que desgraada esposa fui
e que desgraada me estou sendo ! ..
-Que lastimas, Santo Deus, que lastimas ! -ata-
lhou kD. j orge - j vossa merc se est figurando a
frota que se abala, e seu filho que vai e a mourisma
que Ih'o come! Se todas as mes assim fossem, quem
infieis ? quem .,assaria -o caba
O senhor do pao de Nlnes 87
1ormentorio, quem daria azo s faanhas que ahi andam
cantadas por um filho do meu amigo Simo Vaz de
Cames? . Veja que exemplos referem os soldados,
que vem da lndia, do heroismo das mulheres de Ga
e Chaul. .
-Ai! snr. D. jorge,-interrompeu a viuva-no sei
nem quero saber o que essas mulheres fizeram .
Eram mes?
-=--Eram; e algumas, que perdiam um filho, pffere-
ciam outro ao servio do rei ...
-Ento.- -tornou D. Thereza-eram mais do que
eu. . no eram smente mes ; eram santas. Pois
Deus no me chamou ainda a grau de virtude e con-
formidade to alto. . . Sou mulher. . no tenho outro
filho. nem me alimento de commendas de e l-rei .
Os que receberam melhor premio que meu defunto ma-
rido, vo, vo. esses augmentar o que teem. Eu dou-me
por feliz com o meu pouco e com o ineu filho. Se
-elle quer ir, que m'o diga j para eu me deixar morrer
sem mais con:er bocadinho de po nem beber sede de
agua! Hei-de estar morta quando elle embarcar .. e
Deus se amerceie da minha, alma, que to passada de
dres sabe d'esta vida!. .
- Mi ,a irm, minha pobre senhora! . -redarguiu
D. jorge-Isso que atormentar-se imaginariamente!
Ninguem sabe ao certo se vai el-rei segunda jornada
de Africa; e, caso v, no sabido nem provavel que
v Ruy.-.
-Mas meus sobrinhos D. Antonio e D. Joo j me
,disseram que no ficam...
1
r
-Porque deshonroso seria ficar
c
88
O senhor do pao de Nines
- Ento quer dizer que meu filho se deshonra, no.
indo?
- Deshonrar-se no. Qantos fidalgos de tomo teem
de ficar, e sem labu? Seu filho ser um d'elles, e eu,
forado por minhas obrigaes, ficarei tambem. No so
setenta e dous annos que me peiam. L ho-de ir, se
essa m sorte nos aguarda, os homens do meu tempo,
os que aprenderam a terar com barbaros na lndia de-
O. Manoel, e l ganharam callo nas cicatrizes que ain-
da vedam sangue valoroso e prompto a derramar-se pela
patria. D'esses ha j pouqussimos, e por isso eu tremo
pela sorte de -el-rei, se levar vante o seu funesto des-
gnio. Bem m'o diz o meu amigo D. jeronymo Osorio
e ao rei o disse j: Queriam-se menos cassou las e
mais cassoletes para tamanha em preza .. Em fim, se-
nhora minha, d tempo ao tempo, mas tome conta do-
que lhe digo: mal por mal, antes v Ruy para Africa
do que para Nines. Em Africa pde esperai-o a morte
com honra; em Nines ha-de devorai-o uma desespera-
o aviltadora, um inferno incomparavel, um desejo de
vingana que lh'o ha-de atirar louco aos seus braos ou
homicida ao peito do rival ! . . Mas, diga-me, senhora,.
em quantas batalhas entrou seu marido? Em todas que
se travaram na Africa e no Oriente, durante trinta e
cinco annos do reinado do senhor D. Joo III. Pois seu
marido e meu chorado irmo morreu em sua casa, e no
seu catre. Ruy Gomes p6de ir verter sangue onde seu
pai deixou o d' elle e voltar glorioso com o seu rei, cheio
do seu Jubilo de homem prestadio patria de seus avs
e esquecido para sempre d'essa mulher que o ia redu-
zindo a um obscuro caador de lebres nas tapadas do-
.Minho!
O senhor do pao de Nines 89
D. Thereza no podia disputar. Cerrra-se-Jhe o cora-
o e a garganta com os gemidos. D. Jorge deixou-a,
dando aos hombros e murmurando:
-Pobre me! Que infeliz tens sido ... e sers! .
Quem espertava no animo de Ruy Gomes o herda-
do instincto das batalhas eram o almirante e seu irmo,
cujas praticas no visavam a outro alvo. Mrmente D.
Joo de Azevedo, o incendido moo que, volvidos dous
annos, perpetuar seu ~ o r n e , abalisando-o entre os mais
egregios de sua estirpe, dizia que iria servir em guerras
de potentados estrangeiros, se D. Sebastio no adian-
tasse conquistas em Africa ou lndia, ou Castella, so-'
bretudo Castella ! exclamava elle, evocando as victo-
rias de Aljubarrota e Atoleiros.
Continuavam a toda a hora estas bellicosas palestras
entre moos exuberantes de vida, anciosos de correrem
sobre cadaveres a toda a furia de espumantes murze-
los, rasgando a ferro barreiras bronzeadas de mouros, n-
dios ou hespanhoes. Era bom vl-os m arraiaes phan-
tasticos, circumscriptos sala de armas do almirante,
cortarem com as espadas o ar sibilante ou botarem-lhes
os fios das menos provadas nos arnezes uns dos outros,
repartidos em filas adversas. N' estes pugnazes ensaios
primavam os dous filhos de Pedro de AJcaova, o filho-
mais velho do conde de Tentugal, os dous filhos de
D. Alvaro de Castro. Todos estes e muitos que alli
iam amestrar-se e docilmente recebiam preceitos do an-
cio D. Garcia de Menezes, todos e com elles o vene-
rando mestre, volvidos alguns mezes, conheceram quo
_ . pouco pode a ousadia juvenil, sacudido o freio da disci-
plina. Morreram. Disseram os chronistas que lhes foi

O senhor do pao de Nines
obelisco os acervos de cadaveres sobre que cahiram.
foi ; mas morreram ; e tinham me, e esposas e crean-
cinhas, em cujas faces puderam dar o derr deiro ijo
Oh! a gloria!
E as lagrimas? A gloria dos fastos, a conveno de
uma palavra que as mes, as esposas e as creancinhas
no entendem !
N'esta convivencia, pois, Ruy Gomes tanto se deixou
entrar do animo dos seus parceiros de idade e proge-
nie, que de si mesmo se admirav, recordando o desaf-
fecto que j um anno antes, tinha aos heroismos da guerra
e o menospreo com que ouvira as baforadas belligeran-
tes de Joo Mendes Cogominho.
Assim mesmo, divertido em jogo de armas e ades-
tramento de estardiota, no se lhe delia da memoria a
j esposa do senhor de Pouve. No dia em que lh'o dis-
seram pessoas conhecidas do chanceller, Ruy Gomes
.deu mostras de um aspecto novo da sua paixo, sahin-
do-se em mpetos furiosos contra o seu principal amigo,
D. Joo de Azevedo, cujas palavras consoladoras arguiam
tambem censura ao fraco animo de seu primo.
Durante dias, nem propriamente a me lhe conteve
o desabrimento. Enfadavam-no as lagrimas e azedavam-
no as censuras. Voltava-se irado contra O. Jorge e re-
pellia com termos in3olitos a severidade do ancio. De
alma e rosto desformra-se notavelmente aquelle moo,
que, pouco . antes, to docil e brando sobpunha a sua
vontade, sem que o grande desastre de suas esperanas
lhe dsse ouso rebtllio.
Acalmou-se esta febre, que justificava o receio de des-
concerto no juizo. Volveu a costumada tristeza com in-
termittente de uma alegria no menos suspeit' de tres-
O senhor do pao de Ni es
vario. Perguntava a esmo e abruptamente se el-rei ia
definitivamente a Africa. Acoimava de fracos os timi-
dos do successo da guerra e odiava os contraventores
do arrojado neto de el.rei D. Joo II, assignalando como
desastrosa para o futuro de Portugal a influencia de
conselheiros senis como o bispo de Silves e D. Joo
Mascarenhas, cujo espirito timorato D. Sebastio queria
submetter a uma junta de medicos para tirar o limpo
se a velhice era attreita covardia.
D. Thereza era avisada d'estes discursos. Chorava
diante de Deus, chorava diante do filho, a todos pedia
com mos e_rguidas que lh'o no roubassem.
E, um dia, quando ella mais ternamente o demovia,
porque j estava declarada guerra a Muley Moluk e
aprasada a estao da partida, Ruy lanou-se nos bra-
os de sua me e exclamou:
- Preciso de morrer I .
'
-,
X
As damas heroicas e o bispo do Porto
Os prantos de D. Thereza, em vez de commoverem
e apiedarem os p:nentes, davam causa a reparos pouco
menos de censuras. Quantas damas a ouviam carpir-se
em casa do almirante se davam como exemplos de animo
e amor gloria da sua patria; porque todos tinham ou
filohs, ou irmos ou esposos apercebidos para a jornada
de Africa. D. Maria da Camara, a neta do conde de
Tarouca, e me de D. Antonio e D. Joo de Azevedo,
era a primeira a exclamar :
- E eu ! eu, que tenho dous filhos, no hei-de vl-os
ir ambos ? Minha me e minha av6 no se reportaram
conformadas, quando a patria lhes demandou o mais
caro thesouro de sua alma? ... No chore assim, prima
Thereza, que as mulheres no nosso tempo affizeram-se
a considerar mais filhos da patria do que seus os pro-
prios filhos. E' pri]Ilor d 'elles e orgulho nosso creal-os
para defeza do rei, que fia dos estremados vassallos a
94 O senhor do pao de Nines
conservao dos gloriosos nomes dos avs d'elle e nos-
sos. Meu sobrinho Ruy deve ser dos primeiros na guerra,
porque seu pai tambem o foi .
- E o derradeiro nas mercs como seu pai . -ata-
lhou D. Thereza.
- O derradeiro?! - perguntou D. Maria Gonalves
da Camara.
\
- Sim, minha prima, o derradeiro; mas a vez, ainda
assim, nunca lhe chegou, porque todos eram primeiros
antes d'elle ..
- Maior gloria para meu primo Ruy ! -disse D. An-
tonio de Azevedo, que entreviera na contenda das se-
nhoras.
- ~ a i o r gloria . diz v. s.a, snr. almirante?- per-
guntou a viuva.
-Sim, minha tia e senhora. Vai seu. filho justificar
e patentear as injustias feitas a seu pai. Se voltar de
Africa, ainda com as cicatrizes mal fechadas, poder
dizer como seu pai e meu tio disse n'esta casa n'uma
das voltas da lndia : Os bizalhos de diamantes que
trago do Oriente so as pontas de algumas azagaias
que no pude ainda descravar de uma perna. Se algum
. dia pudr tirai-as, farei d' e lias arrecadas para enfeitar
minha mulher, que ainda no sabe o que so pedras
da lndia. Eu era pequeno, quando isto ouvi; e vendo
que meu av, o snr. almirante D. Lopo Vaz de Aze-
vedo, se abraava no sobrinho a chorar de alegria de
tal parente, fui eu, levado de minha impetuosa admira-
o, beijar a mo de meu tio e seu marido, minha se-
nhora e tia D. Thereza. Ora aqui est porque seu filho
vai na companhia de el-rei: porque filho de ta1 p a ~
e faa vossa merc, minha senhora, quanto em si c o ~
O senhor do pao de Nines
{)5
.. ber rpara que este moo guarde e defenda a herana,
cujo mais augusto vinculo a pobreza de commendas e
mercs. Deve-lhe muito a patria? melhor. Os Azevedos
so to ricos das tradies, que despresam a recompensa
dos que hoje as do e servem os que n'outro tempo
as deram. Ns e os que foram comnosco no Vai da
Matana, em Ourique, em Aljubarrota, em Diu, e Ma-
laca, fizemos e seguramos a cora na testa dos reis :
agora, corre-nos o dever de sustentar o feito pelo que
elle e no pelos descendentes d'aquelles a quem o
fizemos. Quando a Portugal volver outro D. Joo II,
cruzaremos os braos; e, ao soarem os anafis da mau-
ritania ahi s portas de Belem, vamos do alto de Vai-
verde e Santa Catharina ver como as flammulas dos
reis africanos campeiam desfraldadas por esse Tejo aci-
ma. Por ora, no. Ajudemos os espiritos do rei moo,
que tem fada benigna a segredar-lhe destinos assombro-
sos. No faamos grita desconchavada, porque vamos
alli a Africa, onde cada hora iam nossos paes se man-
darem porte mplos e mosteiros, pedindo reliquias de
santos, como ahi fazem agora. Espadas de boa tempera
e arnezes de prova que elles se esmeravam em levar.
Tanto prantear que ahi vai ! No smente minha tia
que se carpe. Espantoso abastardamento de condio
portugueza! Como se no sahisse de Sagres Bartholo-
meu Dias para os confins da Africa e de Restello Vasco
da Gama para o Oriente ..
N'este lano do enthusiasta discurso, D. Ayres da
Silva,. bispo do Porto e hospede do almirante, como e s ~
tivesse silencioso escutando as damas e o vehemente
D. Antonio, acudiu agora ao ponto em que o discursa-
dor parecia asseverar que a nao folgava e as mes
96
O senhor do pao de Ninis
coevas de D. Manoel viam impassiveis sahir seus filhos
a defrontar-se com o Adamastor e exclamou :
Mas um velho d'aspecto venerando,
Que ficava nas praias entre a gente,
Postos em ns os olhos, meneando
Tres vezes a cabea descontente,
A voz pesada um pouco alevantando
Que ns no mar ouvimos claramente,
C'um s d'experiencias feito,
Taes palavras tirou do experto
Oh gloria de' mandar! Oh vaa cubia
D'esta vaidade, a quem chamamos fama!
Oh fraudulento gsto, que se atia
C'uma aura popular, que honra se chama:
Que castigo tamanho, e qne justia
Fazes no peito vo, que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
- Que crueldades n'elles experimentas!
Dura inquietao d'alma, e da vida,
Fonte de desamparos e adulterios.
Sagaz conhecida
De fazendas, de reinos, e de imperios:
Chamo-te illustre. chamao-te subida,
Sendo digna de infames vituperios:
Chamo-te fama e gloria soberana,
Nomes, com quem se o povo nescio engana !
O bispo concluiu,
meneando,
Tres vezes a cabea descontente,
como o velho de Restello.

'
-f
O senhor do pao de (Vin.es
{) almirante sorriu-se e perguntou :
- Isso do Luiz cego?
97
J
-E' do cego, e do torto, e do coixo e do que tu
aquizeres !-disse o principe da igreja-E'
1
a verdade es-
cripta pelo poeta que sabe do mundo . e de guerras:
tanto sabe, l deixou o olho em uma, signal de
que o feriram na cara. Mancebo, no digas de mofa o
cego. Luiz de Cames um dos que, no teu dizer de
ha pouco, defendem a herana, cujo mais augusto vin-
culo a pobreza de commendas e mercs. Se lhe no
valessem os frades. . . E aquella pobre me .. que fins
de viqa! ...
- Elle tem ainda me?!. -acudiu D. Thereza.
prima, tem . "aquella pobre senhora Anna
Macedo, que ahi est com o filho em pobre casa na -
calada de Sant' Anna. Correu-lhe triste a mocidade
com o travesso do marido ; e a velhice tristissima lhe
vai indo a pobreza do que todos admiram e
poucos soccorrem . . , .
-Mesquinha sorte!-disse a me de Ruy.
- Os companheiros de Luiz de o
almirante-dizem que elle na India era o adail das mo-
tinadas e esturdias, e fidalgo de pouca conta entre os
-outros. Era mais hQmem de foliar e gastar o seu e alheio
que de curar de seu adiantamento .
- Foliava, e amotinava -interrompeu
O bispo- tudo isso . e escrevia os Luziadas .. Va-
lha-te Deus, meu D. Antonio!... Parece-te
. que no basta perder um olho e escrever um livro
d'aquelles para ser um homem acrescentado, e a
de tal hoinem farta de po na sua decrepidez!. Ora
sejamos justos e digamos que Luiz de Cames, se
7

98 O senhor do pao de Nines
tivesse nascido sessenta annos antes, seria bem acceito-
na crte do senhor rei O. Manoel. A tena que lhe do
tal, que mais avisado andaria quem lh'a alvidrou dei-
xan_do perecer de mingua o poeta, para que na pobre
vida que leva no estivesse accusando esta gerao de
hoje em dia afistulada de herpes e podre at s me--
dullas ...
- Isso diziam j da sua gerao os paes de v. s.
illustrissima . ...:..._atalhou, sorrindo, o almirante.
- Diriam ; porque nossos avs tinham ouvido fallar
dos tempos de O. Joo II.
-E dos tempos de O. Joo II, do amigo dos fidal--
gos-acrescentou ironicamente O. Antonio de Azevedo
-Tanto quanto os fidalgos engraavam com elle-
redarguiu o bispo do Porto.-Meu sobrinho e snr. ai--
' mirante, no comparemos quadras, que esta desgra-
ada a mais no poder ser. Todas tiveram seus Pache-
cos e Albuquerques, todas se assignalaram com ferretes.
de reis mal agradecidos, e privados corrompidos e cor-
rompedores. Tudo, porm, o que ahi ha triste na histo-
ria lusitana so laivos negros communs historia de
todas as naes. O peior o porvir, meu sobrinho. O
vento africano traz peste de morte .
- Ahi vem v. s. s razes da snr.a O. Thereza, mi
nha tia !-atalhou o almirante.
- Bem haja o snr. bispo! .. -disse a me de Ruy .
-Minha prima-retorquiu O. Ayres da Silva-las-
tma um filho e eu uma patria, o aggregado de quantas .
mes e quantos filhos ahi so. Choro-a, mas no fica-
. rei a vl-a nas agonias. Tambem vou, meu sobrinho, e
vai com migo o que tenho mais conjunto de meu sangue:.
ir tambem commigo meu trmo, o velho frei Joo da.

O senl10r do pao de Nines 99
I
Silva. L nos veremos. Ahi tens, D. Antonio de Aze-
vedo, que me no lano nas razes da D.
Vou d'esta idade; iria na derradeira decrepitud; .. Como
indultaria eu a me que embaraasse a ida de um filllo
na flor dos annos e na obrigao de brioso cavalleiro?
Verdade que, nos meus annos, facilmente se desata
um homem. do fardo da vida: tanto monta que lh'o
umas febres como um pelouro. Mais doe e
custa ver seccar-se folhas, flores e fructos segunda
hora do dia formosssimo da vida de um moo tal como .
Ruy de Azevedo Triste , mas a covardia ou o despgo
das obrigaes, que interessam o homem em certas es-
tancias da republica, vil viver peior que morte hon-
rada. Snr. D. Thereza, minha prima! agora, alento e
corao de egregia matrona ! Ahi vai vaticnio do quem
os tem bons e terribilissimos : seu filho no ha-de mor-
rer. Viva vossa merc e vl-o-ha, galardodo no direi,
viv9, que muito .
D. Thereza de Figueira, apesar das animosas damas
e da prophecia de D. Ayres, no podia ter as lagrimas.
-'
1!'
\.IJ
XI
1
_.,, L YO I. I.
Quando a armada real se fez ao mar, aos 24 de ju-
nho de 1578, D: Thereza sabia de Lisboa, ca.minho do
pao de Nines, mas no levaya seu filho.
j no chorava. As lagrimas so vida; e ella ia mori.
bunda, morta, n'aquella paralysia de sentimento, anihi-
1ao de consciencia da dr, alheamento do senso intimo
n'uma intuspeco de outra ordem, de outro inferno em
que o padecente acaba por cogitar no seu estado com a
incerteza do que passou em si.
L vai Ru y Gomes de Azevedo, hora em que Leo-
nor Correia de Lacerda, do alto de Santa Catharina,
com o marido e tio, contemplava as oitocentas velas
infladas, empavezadas, trapeando com o impulso da vi-
rao, e ouvia o estridor horrisono das charameiias, e o
tmar da artilheria e a grita do povo a prosperar victo-
. rias ao famoso rei, que o saudava cta amurada da gal
real. .,
1
102 O senhot do pao de Nines
O fidalgo de Pouve dizia:
- Quem me l dera ! ...
E Leonor, melencolisada de mimo e despeito, mur-
'
murava:
-E deixar-me?! .
- Quantas ahi ficam! .. -respondeu Joo Esteves.
-.Maridos extremosos quantos_ahi vo! ...
- Deixai-os ir __:disse o chanceMer Pedro Cogo-
minho- que vo com Deus e vai tu para o seguro da
tua casa. Veremos quantos voltam .
Esvoaou no esprito de Leonor o pensamento de ir
alli Ruy Gomes de Azevedo, aquella creana que cres-
cra com ella ao correr de vinte primaveras? No se
sabe. Os relampagos da artilheria no lh'o deixariam
ver entre milhares de moos flammejantes de ao e de
. ouro, mas muito mais de sedas e tabis,- ca-
mafeus, rpupilhas e gibOes de flacido estofo, que se des-
fariam n'um prompto, se roasse por elles um pellote
de Nunalvares. mil -
Que bizarros iam 1 qne tafues -gcrls para conquista-
rem de assalto os coraes das argelinas! Lustroso vai
o prestito para cortejo do rei no dia em que elle cingir
fronte a cora de imperador de Marrocos! (1)
Sumiu-se nas brumas do oceano a armada. Velhos e
donzeis, encostados s pontes e amuradas das naus, pu-
nham os olhos nas torres e zimborios de Lisboa, que se
... , .
(I) D. Sebastio levava j comsigo a cora de ouro cerrada
e Ferno da Silva ia decorando o serrn:to que havia de prgar,
celebrando a victoria. Que lastima! da Bihliotltua
Real. citado pelo snr. Rebello da Silva, a pag. 163, do vol. 1..
0
da J-Jistoria de Portugal dos seculos XVII e XVIII.
--

O senhor do pao de Nines 103
lhes escondia na nebrina do Tejo. N'alguns olhos ma-
rejavam Jagrimas; de outros corriam a fio. Ruy Gomes
era um dos que choravam e davam na vista com os
arquejos dos mal repressos gemidos.
-Que mulher nos vai sahindo o choramingas! -di-
zia em secreto D. Joo de Azevedo ao almirante.
-Vai divertil-o d'aquellas lastimas, que fazem rir .
Que chore s escondidas - recommendou D. Antonio.
Ruy Gomes volveu o rosto para ver quem lhe assen-
tava uma palmada no hombro, bastante affectuosa para
quebrar uma clavicula. t
-Ainda no mouro!-:-disse D. joo-No tenhas
_ medo ! v
Ruy sorriu e murmurou:
- Se no ' mouro, selvagem. ~ Guarda tu, meu
primo, esses murros _para a mourisma!
D. Joo de Azevedo voUeou-lhe pelo pescoo o brao
e levou-o para o castello de pra.
-No se chora assim diante de velhos que vo con-
tentes- disse o pujante moo.
- Os velhos no teem me!- respondeu Ruy- Eu
-estalo de saudades de minha me! Ainda agor sei o
.que fiz .. matei-a . matamol-a ns, eu e a infame!
Se aquella vibora me 1_1o mordesse o corao, eu es-
1ava a esta hora na minha aldeia com a minha santa
me . Perverteu-me a maldita! . Pude despedir-me
< de minha me .. abraai-a e ouvir uma voz que me
dizia: No mais a vers! .. ,. E porque, meu Deus!
porque me apartei d'eiia? Qne me fazia a mim ver
Leonor casada, honrada, infamada, adorada ou perdida?
_Que me importava a mim isso? foi meu tio D. Jorge
~ u e abriu a sepultura de minha me! Aqui vou.
..
104 O senhor do pao de Nines
aqui vou. . sem vontade, sem alento; sem esperan-
a ..
O. Joo cruzou os braos, deixou-o concluir um como-
monologo repassado de arrependit?ento e phrenesis, e
disse:
- Ruy, a lana ferro em Lagos. De l reti-
ra-te para a tua aldeia .. Eu direi que a doena te
obrigou. Vai para tua me: que no ha patria que tanto
valha. Assim me forras a mim do remorso de te haver
movido a vir. Vai para tua me e pede-lhe por mim
perdo de ser eu a causa principal de te apartares por
alguns dias dos affagos d'ella.
- jno!-disse Ruy-lrei comtigo; e perda-me-
estas Jagrimas . Desafoguei-me e estou melhor.
E. no deixou mais q_ue lhe vissem lagrimas. Escon-
dia-se e s vezes ajoelhava-se, a Deus que lhe
consolasse sua me.
O bispo do Porto dava-lhe muita alma, quando, n'uma
toada de illuminado por alta revelao, lhe dizia":
- Sua me est chorando, mas a paciencia e a con-
formidade ho de vir scegal-a. Choram com ella mi-
lhar de mes. So prantos que regam as flores por-
vindouras dos jubilas na volta da jornada.
O. Ayres da Silva louvavelmente desmentia os pre-
sagios intimos: queria dar alentos o heroico pastor, para
cuja vida, quella hora, o seu rebanho do Porto exorav
a Deus a defeza dos seus anjos.
L vo!
'I
'
XII
Alcacer-Kibir
Andam em mos de todos as descripes minuciosas
da batalha de Alcacer-Kibir. Os incidentes de tamanho
desastre so mais notorios que os triumphos do cyclo
aureo das batalhas feridas com mais disciplinado e nu-
meroso inimigo. Os captivos de 1580 contaram-os aos
filhos e estes aos netos dos poucos que vieram patria
dar testemunho da mais affrontosa derrota com qqe a
Divina Providencia podia castigar a s o b ~ r b a cega de
uns barbaros que se arregimentavam com a cruz na
avanada- a cruz, o guio do amor e da misericordia !
O dia 4 de agosto de 1578 devia de ser de alegri-
l em cima, onde a justia de Deus saudada pelas
' almas boas que d'aqui foram sem nodoa de sangue nem
i migalha do po roubado a homens. N'aquelle tempo,
seriam muitas as almas portuguezas que podessem sau-
dar a divina justia fulminante nos arraiaes de Alcacer-
Kibir? No entro n'esse computo, mas suspeito que no
106 O senhor do pao de Nines
fossem muitas. D. Sebastio, o doudo providencial, pa-
gou por si, por D. Joo III, por D. Manoel, porO. Joo II,
pelo conquistador de Tanger, pelo conquistador de Ceu-
ta. Os centenares de fidalgos que ahi cahir-am, covarde
ou heroicamente, pagaram tambem, porque eram os ne-
tos dos algozes subalternos. Aquelles homens deviam
ver no cu de Africa imagem do Juiz Supremo muito
mais Incida e distincta do que a tinha visto Affonso no
cu de Ourique. Os mais cordatos de certo viram Deus;
os cegos, os ardentes e phreneticos matadores, esses, por
desventura, se finaram blasphemando-o. To desampa-
0.., rados do cu e dos santos, que ninguem viu brao com
aza de S. Miguel, nerri montante de S. Thiago nem es-
pada de S. Jorge! Aquilo foi um batalhar todo de ho-
mens, um desastre bem dis,utido, bem verificado, es-
treme e depurado e limpo de milagres para poder
entrar na historia sincera, sem que os Herculanos hajam
de encendral-o no crisol da critica. cheia e de-
finida, cerca da .qual um qualquer escrevedor de baixa
conta pde, sem travor de impiedade, dizer que Portu-
gal n'aquelle dia no teve por si Deus nem Satanaz.
Morreu, e nem sequer gloriosamente! As heroicid"ades
... de algumas dezenas de valentes sem chefe .nem disci-
plina, em vez de. contrapesarem a pusillanimidade de
muitos, comprovam. a decadencia, o concerto de traas,
at certo ponto, providenciaes e operatorias de tal sue-
:: cesso. A valentia, n'aquellas poucas horas da agonia de
Portugal, era o escabujar do moribundo, o estorcer-se
vigoroso do ethico nas derradeiras vascas. A desespera-
o matou os mais d'elles, antes que o ferro arabe os
Cortasse. Os que tinham appellidos e deveres contrabi-
dos com as commendas e com a historia tolerante e abje-
O senhor do pao de Nines 107
cta morreram de feitio que J eronymo de Mendona, e
frei Bernardo da Cruz, e frei Manoel dos Santos, e Mi-
guel Leito de Andrade e Bayo podessem dizer: Ven-
deram caras as vidas. uu
E Ruy Gomes de Azevedo? Quer o leitor que se lhe
mostre o lagrimavel moo por en re o ondear d'aque11e
sangue e fumo. Abra ahi qualquer dos seus mais dile-
.ctos da batalha expiatoria. Siga no revolu-
ear incerto e desatinado do exercito portuguez o movi-
mento do tero de aventureiros, capitaneado por Alvaro
Pires de Tavora. Est ahi Ruy Gomes. ,.
Veja hasteado na frente um crucifixo. E' o padre
Alexandre da Companhia que o arvora. No s. presta
' o bondosissimo jesus a servir s ordens de D. Sebas-
tio. As primeiras bombardas que afuzilam da hoste ini-
miga matam dous aventureiros. Rompe o esquadro por
sobre os cadaveres dos dous fidalgos. O capito morre
de uma mosqueteada. At alli a carnagem era feroz-
mente espantosa. Ruy Gomes era igual a todos. D. Joo
de Azevedo escasso tempo lhe crescia para se admirar
das certeiras alabardadas do primo. Ressoavam j gritos
de victoria pelos portuguezes, quand cahiu o capito e
outro exclamou :-Ter! ter!
Este brado decidiu da porque o tero dos aven-
tureiros quedeu-se e a pouco retiraram de5ordena-
dos.: So as monographias da batalha que o O
brado do capito Pero Lopes .ficou sendo uma cousa que
ainda ha-de ser pesada por historiadores competentes.
foi aquelle Pero Lopes que tirou a cora imperial de
Marrocos da cabea de D. Sebastio e sobrepoz a pur-
pura de Portugal na de Philippe II de Castella! Que
elementos nos deixaram para uma boa historia!

108 O senhor do pao de Nines
Revertamos aos aventureiros.
Muitos d'elles j so mortos e os vivos correm o cam-
po desordenados. 1 r ~
Ruy Gomes -de Azevedo ouviu um grito de D. Joo
que dizia:
- Matam meu irmo!
Correram sobre a turva de mourcs que o cercavam ...
Romperam o redobrado crco a golpes, mas o almirante
j estava morto.
D. Joo vociferou um rugido. Envolveu-se com Ruy
Gomes n'uma espadana de sangue. D. Joo cahiu de
um tiro no peito. N'este comenos chegou el-rei a salvar
a artilqeria j tomada pelo inimigo. Ruy misturou-se
com os fidalgos da comitiva d'el-rei. Vingaram liberta:r:
a preza; mas, ao desandar da remettida, viu moribundo
o bispo do Porto. Quedou. contemplou com lagrimas os
paroxismos do velho. Perto d'este, arrancava da vida o
bispo de Coimbra e contorciam-se nas ultimas ancias os
seus amigos que esgrimiam em casa do almirante. Co-
nhecidos seus nenhum lhe restava : todos vira mortos.
Entrou-se o moo do convencimento da geral derrota.
J corria a voz de ter fugido D. Sebastio. Bandeira
portugueza nenhuma; e todos procuravam a de el-rei.
Uns o pregoavam captivo e outros morto.
De repente, n'um vrtice de cavalleiros, reconhece
Ruy Gomes o rei. Abre a ferro a curta distancia que o
separava; mas, ao acercar-se dos cavalleiros, no acto em
que os mouros travavam de D. Sebastio, sentiu que
uma lanada lhe abria o peito e cahiu a tempo que ~
rei ia fugindo .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O senhor do pao de Ni.nes IO!J
Deixemos agora, leitores, por breve espao, os mortos,
os feridos e os captivos de mouros.
Celebram-se as exequias de D. Sebastio ... na s de
Lisboa. Vai prgar orador de cunho. E' o deo da s de
Silves, homem que deve ter a cabea allumiada das
ideias do seu bispo jeronymo Osorio. Perde-me o pre-
claro deo figural-o eu n 'este baixo tablado de uma no-
vena. Releve-me a ousadia em paga de eu o fazer co-
nhecido. E ao leitor peo licena de o advertir que os
fragmentos d'este sermo de exequias ensinam a histo_
ria do tempo melhor de quantos dissertadores ahi batem
no fanatismo de O. Sebastio e na protervia dos seus
aulicos.
Entremos s. O deo j comeou. Perdeu-se o exor-
dio: aproveitemos o restante:
.............................................
Que deshonra esta do nosso rosto, deshonra de
nossos reis, deshonra de nossos principes, de nossos
bispos, de nossos prgadores, de nossos pais! Que des-
honra esta para vs, rei D. Affonso Henriques; pois as
vossas armas, com que libertastes este reino, com que
( vencestes cinco reis mouros no campo onde Jesus vos
crtlcificado, no campo de no
sem grande deshonra nossa, ficaram! Que affronta esta
para O. Joo I, de gloriosa cujo esforo deu
a este reino Ceuta, chave de toda a Hespanha! Que
affronta para os reis que sopearam Africa! Que affronta
para vs, grande rei D. Manoel, a cujos ps todos os
reis do oriente vinham com as mos cruzadas dar obe-
diencia! E que direi de vs, senhor O. Joo III, santo
(digo santo porque o santificaram suas obras), em cujo
/
I
..
UO O senhor do pao de Nin.es
tempo houve este reino muitas e mui grandes victorias,.
quando vejo vosso neto assim despido entre os mouros
no campo de Alcacere e sem sepultura ! Que vergonha
esta ! que deshonra ! 1
Cuidar n'isto parece sonho! Quem viu, hoje ha
trez mezes, Portugal e o v agora ! Tanta festa ! tanta
galantaria ! tanta riqueza ! tanta formosura ! Quem cui-
dra que em to breve tempo com tanta deshonra ha-
via de acabar tudo! De mim vos direi que nunca me
agradaram todas estas festas; antes ento se meen-
chiam os olhos de agu\. quando mais contentes e for-
mosos os via. No sei que esprito me dizia o que isto:
veio parar! A.o menos nunca vos eu abonei esta guerra;
antes vos gritei a desordem d'ella, tanto que a muitos
de vs parecia doudo ...
Amigos, isto acabado! . Tremem as carnes cui-
dar n'esta desventura! Cansam os espritos, enleia-se o
entendimento ! ...
cNo morrestes vs, meu rei, na guerra como co-
varde; vossas mos no foram atadas corno captivo;
vossos ps no trouxeram braga nein vos feriram por
detniz como quem fugia. No dissestes: Sou rei, no
me mateis; estimastes .mais a honra que a vida .
Rei de menino, creado vontade com fumos de impe-
rador de Marrocos, levantados com authoridades de mui-
tas mentiras, entonados com tantos capllos, e assopra-
dos com tantas lettras e tanta nobreza, no era muito
que nol-o levassem onde o vimos; e sobretudo nenhuma
culpa tendes, meu rei-, porque vossos annos, se o eram,
correndo a idade, poderam ter remedio e emenda.
Pois quem vos matou, meu formoso? . Matou-vos
o b i ~ p o , matou-vos o clerigo, mato-vos o frade, matou-
)
O senhor do pao de N" es
III
vos a freira, matou-vos o grande, matou-vos o pequeno,
matou-vos o privado, matou-vos o baixo, matou-vos o-
matei-vos eu, matamol;.o todos quantos somos;
pois entre ns no houve um tanoeiro que lhe tivesse
mo pela redea, como se fez a outro rei d'este reino . t
Mas Deus justssimo. j que vos a vs no lem-
brou o bem comtnum, seno s o vosso particular'inte-
resse foi to grande que a todos fez calar, e no hou-
ve ninguem que gritasse, todos mentistes, todos lison-
geastes, nenhum de vs fallou verdade, recurvando e
retorcendo a condio do rei a insaciavel fome da vossa
cobia, um para casar as parentas, outro para melhorar
o officio, ou.tro para haver commenda para filhos e ne-
tos! .. Deus justssimo; no vos' tomeis com elle;
que tantas lagrimas de pobres; tantas oppresses de po-
vo, tantas vexaes to exorbitantes em que o rei tinha
pouca culpa ou nenhuma .. pois no faltavam lettra-
dos que lhe diziam que,sim podia; mas como a culpa
toda foi vossa e de nossos peccados, juizo justssimo
de Deus que no tenhaes paes, nem maridos, nem fi-
lhos, nem irmos, nem parentes, aem llonra, nem vida,
estou em dizer que nem Deus, affronta perpetua,
sibilo (?) perpetuo, ignomnia indelevel em vosso ros-
to! .
Mas, direis vs: Padre, bem me est a mim que
isto seja a quem l levou el-rei i mas o meu filho, o meu
marido, o meu irmo, o meu parente e os mais que no
foram n'esse conselho, mais que por obrigao de leal-
dade, que devem a seu rei, o seguiram, que culpa teem
n'isso? Resix>ndo-vos que n'isto teem culpa e morre-
ram na em preza duvidosa da salvao i os que a no
teem levavam sobre si a de seus paes
112 O senhor do pao de Nines
Mandavam os nobres de Portugal to soberbos, to
entonados, que ainda na igreja faziam sobrancerias a
Deus ! Ao homem, quf no era fidalgo, no era de sua
bocca mais que villo ruim. Permittiu Deus levai-os a
terra onde lhes no catem cortezia, mas lhes chamem
ces perros e lhes puchem pelas barbas, dando-lhes bo-
fetadas e repelles. Gastaveis vossas rendas com tantas
demazias, e que mais custoso era o feitio de umas s
calas vossas, do que era a renda que em toda a vida
vossos avs, sendo melhores que vs, tiveram. Levou-:
vos Deus- a terra onde no tenhaes vestido nem calado;
onde as a calas de agulha, tragam
adobes e ferros, sem camiza e sem
No podieis dormir seno em camas molles e defu-
madas com polvinhos cabeceira em leitos dourados, e
cortinas rendadas de prata e ouro; que no trnhaes ago-
ra cama nem leito, seno dous palmos de cho em uma
' fedorenta masmorra com uma pouca de palha com um
1ebes roto.
No podieis comer seno bocadinhos e guizadinhos
a que no ha atinar cpm os nomes nem beber seno\
vinhos preciosos ; que vades a terra onde po vos falte
e que louveis a Deus achardel-o de frellos, nem de
agua vos vejaes fartos.
E vs, senhoras minhas que c ficastes, que vos no
compadeceis da pobre muiher africana que vos vinha \
pedir ajuda para resgaste do marido ou filho, que vos
vejaes to pobres, gastadas e endividadas com vossas
loucuras e de vossos maridos, que agora para seus res-
gates haveis de pedir esmola misericordi, que vos
no ouam.
E vs, mimosa, que por dormir at ao meio dia no
O senhor. do pao de Nines 113
vnheis ao domingo missa, que percaes o somno, e
vades de noute e de madrugada descala buscar as san-
tas reliquias, e que vos no ouam.
E vs, namoradia, que vos direi ? No quero mais
dizer. . . Cuidai-o vs ..
E no vos parea foi este castigo repentino.
No. 1 vem de muito longe. Muitos annos ha que nos
ameaa Deus com elle, a ver se havia emenda em
ns ..
A peste que todos vimos. Quem morreu d'ella foi
s gente pobre e baixa a quem faltaram herdades e
quintas a que se acolhessem.
Quando d'esta barra foi uma grossa armada ao Bra-
zil que tomaram os francezes e no perdoaram a alma
viva, e tingiram as ondas do mar bravo com o sangue
dos nossos portuguezes.
A destruio que com nossos olhos vimos n'essa
barra da grande e poderosa frota que se armou, de que
-era general o senhor D. Duarte, que est em glori3: ..
Quo perdido e despojado fica d'esta guer-
ra, com os olhos o vedes. Qual dos que l foram no
levou d'aqui as peas mais ricas de ouro e prata de sua
casa, e quantos levaram de emprestimo o que suas mu-
lheres e filhos no pagaro em toda a vida ! ...
Vede se sou doudo ou no, como alguns de vs di-
.zeis; pois havei por entendido que ainda Deus no. re-
colheu o aoute, ainda no embainhou a espada ; e se
vos no emendaes muito devras temo outro castigo
muito peior que este; e quanto a mim no duvido que
tarde, mas antes que muito depressa venha assoviando
pelas orelhas; pois ainda agora ha homens to encar-
niados no odio como antes, to grandes ladres como
8
114 O senhor do pao de Nines
d'antes; no vejo n'isto emenda: antes cada vez peior.
Tempo este para se no comer po alvo em nenhuma
casa, e vs fazeis marmeladas; para vestir burel e cHi-
cios, e vs mimaes- vos como sohieis.
No choreis, que me no fio de vossas lagrimas,
quando vejo que so lagrimas de Saul, de Eza e de
Judas. No vos vejo chorar mais que ai! meu pai!
-ai! meu filho!- ai! meu marido!- ai! meu irmo !
-ai! meu amigo! Quizera que chorasseis a honra de
Deus, as blasphemias que ora diro .os mouros ao nome
bemditissimo de jesus, havendo que melhor o seu
Mafamede, pois no nos livrou das suas mos ! Chorai
as bandeiras de Christo arrastadas pela areia ! Chorai a
honra de Portugal perdida! Chorai a infamia d'este
reino sempiterna ! Chorai o vosso rei que com lagri-
mas pedistes, com lagrimas houvestes, com lagrimas
perdestes. . . a \IS, que para outros mres
trabalhos estaes guardados, e olhai que sempre gri-
tei verdades ...
N'este ponto do pungitivo sermo, por sobre o ressoar
de gemidos e soluos, avantajou-se um clamor afflictivo
de uma voz que dizia :
-0 meu filho, Deus de misericordia! o meu filho!. ..
E, logo, trazida em braos de pessoas que a levanta-
ram do pavimento, sahiu. ao alpendre da s uma senho-
ra idosa, sem alento, com a face coberta de lagrimast
seguida de outra arrastando lucto com sua comitiva de
dous lacaios. Convisinhou do atrio uma liteira, qual
fOi transportada a senhora desmaiada, e logo entrou a re-
cebl-a nos braos a dama, diante de quem se desco-
briam os circumstantes. Esta era a me do almirante
O se11hor do pao de Nines 115
D. Antonio de Azevedo, morto A outra era
a me de Ruy Gomes de Azevedo, cujo destino era
ainda ignorado em Lisboa.
Assim que a nova funesta chegou a Nines, D. The-
reza metteu-se a caminho de Lisboa. Entrou casa do
almirante e viu sua prima de lucto. Perguntou por seu
filho e D. Marill da Camara
-Um dos meus sei eu que morreu. De Joo nada
sei nem de Ruy. J sahiram de Lisboa com ordem de
os procurar os religiosos da Trindade; e, se estiverem
(aptivos, em resgate d'elles darei tudo e mendigaremos
todos.
D. Thereza, a quem Deus no dotra com a fora
de alma de sua prima, concentrou.se n'um scismar e
chorar, que parecia um voluntario ir-se ao alcance da
sepultura.
Como levada de rastos, a titulo de invocar a piedade
do Senhor, foi s exequias do rei. As vozes do deo de
Silves esquartejaram-lhe o corao. Terribilissimo e du-
radouro abalo produziu o discurso do dignitario, a quem,
segundo elle confessa, o publico chamava doudo com
alguma ustia. (I)
(1) O sermo, cujos perodos se publicam, inedito. Tenho-o
n'uma manuscripta e autographa de Ferno Rodrigues
Lobo Soropita, abalisado poeta, coevo do prgador e colleccionis-
ta das primeiras rimas de Cames que se publicaram em 1 595
Em uma nota que precede esta pea escreve Soro-
pita : Pregaam que dizem que fez o Daiam da See de Situes
do Algartee em Lixboa nas exequias de! Rey Dom. Sebastiam,
e despois soube eu que disera o conde de Portaleg1e que era de
Luiz Alteres, Coltegiat da Compatzllia de Jesus, o que 111e pa-
nceo veresnit por esta ser a ti11guagem de Ltei:<: Aberes.
1/6 O senhor do pao de Nines
Este padre Luiz Alvares no pde ser o fallecido em 1709 e
mencionao pel? snr. Innocencio Francisco da Silva, embora ui-
- trapassasse os noventa e tres annos, como presume o douto bi-
bliophilo. Ha, portanto, outro Luiz Alvares, jesuita, mais anti-
go, cujos sermes, conhecidos de Rodrigues Lobo Soropita, no
foram impressos, ou, se o foram, se desconhecem. Pois pena!
O que eu sobremaneira admiro como elle escreveu, para o dea:o
de Silves recitar, um sermo em que o prgador duas vezes se
refere sua noto ria doudice ! O serm:Io excede, a meu vr, a fa
ma do orador !
XIII
Me!. ' ,
Os mouros, vencida a batalha, com mais
solicitude que propriamente aos seus, os. inimigos feri-
dos, se pelo trajo e compostura lhe pareciam fidalgos.
A obvia inteno d'esta caridade era guarecer um corpo
que, no resgate, seria pesado a ouro.
Ruy Gomes de Azevedo e o irmo do finado almi-
rante deram nas vistas dos soldados de Muley Hamed,
atarefados em despojar os cadaveres. Ambos viviam,
mas j quasi esgotados de sangue. Estancaram-lhes pres-
surosos os mouros o restante da vida ; e; j seguros de
os feridos se resgatariam por bom preo, os trans-
portaram para Fez. Entreviram-se O. Joo e Ruy no
acto em que os captivos a milhares eram arrebanhados.
-Alegrou-se quanto no lance podia o corao de Ruy i
.acercou-se do primo, amparando-se ao hombro do solda-
do, que o ia espoliando das cousas de algum preo. e
lanou-se nos braos de O. Joo, exclamando:
'-
118 O senhor do pao de Nines
r
Que sorte! .. E aqui morreremos! ..
-No! -disse o irmo do almirante-Eu no quero
ainda morrer ... Estas zagunchadas curam-se e a liber-
dade compra.se. . . No esmoreas, Ruy ! S to pa-
ciente agora como valente eras ha pouco.
O scherifltomou posse dos que se lhe figuraram fi-
dalgos. Entre os cincoenta e quatro, que depois subiram
a oitenta, postos a resgate, forz.m arrolados D. Joo e
Ruy. (1)
fr:; Em fez se restauraram os dous enfermos, beni que
acorrentados nas sejanas, sob o cuidado de D. Duarte
de Castelbranco e Luiz Cesar de "Menezes, nomeados
directores da enfermaria.
Os fidalgos negociadores do resgate offereceram oi-
tenta mil cruzados pelos captivos do rol do scherif. Es-
pantou-se o vencedor da sovinaria da offerta e determi-
nou o preo dos oitenta captivos em quatrocentas mil
cruzados.
Dous mezes e seis dias depois da batalha lavrou-se o
contracto.
Vieram a Portugal alguns fidalgos ajuntar o dinheiro
pactuado.
D. Thereza figueira recebeu carta de seu filho. Con-
tava-lhe em termos no exactos seu estado. Desfigurava
grandemente a verdade d'elle, desencarecendo tormen-
tos que, no seu dizer, no bastavam a dobrar uma pou-
ca paciencia. Mostrava desejos de ser resgatado para
vl-a, mas recommendava-lhe que dsse para a somma
dos cruzados em que os oitenta fidal-
(I) Veja a lista dos:oitenta fidalgos em todos os m(tni;!;rapho5
da'"biaiha.
O senhor do pao de Ni(Zes 119
gos tinham sido cotados o que podesse, sem desfalque
de sua abundancia e decencia.
Que reflexes para me como ella !
D. Thereza pedia dinheiro de emprestimo aos seus
parentes mais abastados em Lisboa, reservando a paga
para quando seu filho viesse vender de sua casa o ne-
cessario ao pagamento. Ninguem lhe acudiu. Os mais
ricos vendiam ao desbarato os seus bens para resgata-
rem filhos e irmos.
Ruy estava cortado em tres mil cruzados pelos juizes
do lanamento.
Sahiu para o Minho a deliberada senhora. Offereceu
as melhores terras, que ainda unidas s de menos valia
escassamente produziram tres mil cruzados, que era, por
ento," quantia de grande alcance. Ficou a viuva de
Vasco de Azevedo reduzida ao pao de Nines, e hor-
tas e jardins circumjacentes 4'aquelle quasi caduco par-
dieiro.
No obstante, arguia animo egregio e desapgo de
tudo. Restava-lhe seu filho, o thesouro de sua alma.
Vendia sem tergiversar, sem saber a quem. Dinheiro
que ella queria. Contava-o alegremente, recontava-o, 1
parecendo-lhe pouco para o descaptiveiro de seu filho
tanto ouro. Chegava janella, de onde, pouco antes,
quanto em roda via era seu e dizia:
-Nada j meuU tanto monta! . Vem ahi meu fi-
lho!. . Comeremos do caldo que da vamos aos nossos
escravos!
foi para Lisboa. Entregou o dinheiro e ficou espe-
rando seu filho. Os negociadores abalaram para Africa, 1
sem ter podido ajuntar quatrocentos mil cruzados, bem
que o maximo numero dos oitenta fidalgos fossem das
120 O senhor do pao de Nines
mais gradas e opulentas casas de Portugal! Para se ef-
fectuar o resgate, ficou em fez o embaixador O. Fran-
cisco da Costa como penhor de cento e vinte mil cru-
zados que faltavam. E J ficou por espao de oito an-
nos. Ninguem o resgatou a elle. Esqueceram-no os res-
, gatados. Esqueceu-o o rei portuguez; esqueceu-o o rei
castelhano. No ha ahi vergonha que possamos empa-
relhar com aquella ! Que decadencia ! que Portugal e-
que portuguezes! Deixaram-no morrer captivo! (1)
N'aquelle }ubilo da viuva de Vasco de Azevedo, em-
pobrecida, quasi indigente, havia alguma cousa que mo--
via a espanto. Agora que as outras mes choravam,.
alegrava-se ella, e, por sua vez, acoimava de pusillani-
mes as outras que, para o resgate dos filhos, tinham
vehdido as gargantilhas e arrecadas de diamantes. Ma-
ravilhava-se ella de que tivessem taes mes visto, a
olhos enxutos, sahir os filhos para Africa, e tanto se
lastimassem agora que elles voltavam ! As damas, a
quem o deo de Silves apostrophava no insolente ser-
mo, podiam mal entender a senhora de Nines.
Constou a O. Thereza que tinham chegado a Lisboa
uns soldados fugidos de Larache. Indagou-lhes a mora-
da para saber d'elles novas de seu filho, se acaso oco-
nhecessem no captiveiro. Um d'estes foi sua presen-
a, e, interrogado, disse que o snr. Ruy Gomes tinha
IJlOrrido dos ferimentos da batalha n'uma sejana de Mar-
rocos, poucos dias antes que elle fugira.
O. Thereza pareceu render a alma no grito que ex-
pediu.
. ..
f
( 1) Hieronimo de Mendona-JorntJda de Africa, 1>ag. 124-

O senlzor do pao de Niq.es 121
... No mentira o soldado. Nas sejanas de Marrocos ti-
nha morrido um fidalgo de nome Ruy Gomes da Cunha,
pae de Simo da Cunha, que depois voltou resgatado
patria. O ultimo appellido no lh'o conhecia o i n f o ~
mador nem a fulminada senhora cuidou verosmil que
outro Ruy Gomes tivesse ido na armada.
Os hospedeiros da V!uva tambem no curaram de
illucidar averiguaes. Correu a atoarda da morte de
Ruy Gomes de Azevedo, e logo em seguida a certa nova
de que a me, sobre a pobreza a que a reduziu o res-
gate, perdra a razo ao darem-lhe a noticia da morte
do filho: Ao apagar-se-lhe a luz do entendimento, aquelle
corpo esfriou, at ao reglo do cadaver. Vivia com tudo
morto dentro em si. O brilho de seus olhos era intenso,
mas como o do crystal sem consciencia da viso.
Paralisou-se-lhe a Jingua; e, no exterior, comeou-lhe
a morte pelo cerrado e rouxo dos beios, que nunca mais
articularam palavra. O symptoma da vida era um tiri-
tar de frio e aconchegar-se a roupa da garganta, como
j presentindo a pegajosa lentido da terra da sepultu-
ra. Este existir indescriptivel, esta agonia anmala, que
incutia terror e compaixo nos circumstantes, acabou
depressa. Ao quinto dia, a me de Ruy descerrou os
labios para deixar passar o supremo suspiro.
D. Thereza era do cu, quando chegaram de fez no-
vas cartas dos captivos. Ruy Gomes escrevia a sua me ...
\
....
. .
\
XIV
Tres annos depois
Oezeseis mezes depois da batalha, desembarcaram em
Lisboa Oi fidalgos resgatados, tirante os que morreram
no longo decurso das negociaes sobre a liberdade dos
oitenta do rol.
Ruy Gomes recebeu, ainda no Tejo, a nova da morte
-de sua me, procedida da equivoca noticia que trouxera
-a Lisboa um fugitivo.
Ruy voltou-se para O. Joo de Azevedo e disse:
- No tenho ninguem ! ..
Passados instantes, tomou :
- Nem j minha me!. . Elia morta e a minha casa
vendida! .. Onde irei? para quem irei agora? ..
-Meu primo! -disse O. Joo, apertando-a ao seio
-Se eu tiver de meu um cruzado, repartimol-o ...
Me que eu te no posso dar. . Choremol-a ambos !
Pago-te as lagrimas que dste memoria de meu ir-
mo! .
- Seria uma felicidade, meu Deus! . - proseguiu
Ruy, abstrahido do dizer enternecido de D. Joo.
124 O senhor do pao de Nines
-O qu? felicidade .. qual?- perguntou o amigo.
- Morrer e lia ! . foi, certamente! A velhice na in-
digencia triste! fizestes bem, Senhor! Dai-lhe o des-
canso eterno!. . Santa alma, pede a Deus por mim e
perda-me tu pelo muito que hei padecido!
D. Joo de Azevedo succedeu na casa e no almiran-
tado de D. Antonio. As commendas de J uromenha e
S. Pedro de Elvas, com o dote haviao por casamento
com uma filha do conde de Cantanhede, restauraram-lhe
a casa endividada nas galas com que os dous irmos se
passaram a Africa. Abundavam-lhe bens de fortuna para
gazalhar liberalmente o primo. Deu-lhe nome e alve-
drio de irmo em sua casa. Honrou-o em publico, desve-
lando-se em dar a entender que Ruy Gomes demorava
em Lisboa e em casa estranha o b r i g ~ d o pela amisade,
. que no pela dependencia.
O viver de Ruy Gomes era um incessante segreg2r-se
de companhias e communicao de amigos que, roga-
dos pelo almirante; porfiavam em disputai-o sua voraz
tristeza. O moo, como cansado de sua inercia, e ancioso
de actividade e trabalhos que o prostrassem e acabas-
sem, cogitava em transferir-se a reino estrangeiro, onde
seguisse as armas.
Contrariava-lhe o intento D. Joo, promettendo-lhe
breve _opportunidade de exercitar a alma e o -corpo na
guerra interna contra os traidores da patria e na externa
contra os castelhanos.
Desde o como de 1580, alguns animos inquieto?
anteviam maximo desastre, e se apercebiam de desi-
gnios para affastar de sobre a cora do provecto cardeal-
rei as garras da ona do Escurial. Muitos d'esses se ban-
dearam depois com os assalariados de Christovo de
O senhor do pao de N" .-es 125
Moura, chegado o lano de se decidirem; e outros, ain-
da antes do filho de D. Manoel se fechar no tumulo com
a independencia de Portugal, lh'a tinham cavado, que-
brando a vida cadente do velho com suggestes aterra-.
doras de escrupulos e prophecias de enormes calamida-
des. Raros animos, porm, se desceram do seu primeiro
proposito, e to raros, que no seria longa nem enfado-
sa a lista d'elles. Entre os mais empenhados na accla-
mao de rei portuguez, apagada a frouxa luz do simu-
lacro real que vasquejava nas ultimas, primavam o bispo da
Guarda, o conde de Vimioso, D. Joo de Azevedo, Dio-
go Botelho, o conde de Tentugal, D. Manoel de Portu-
gal, Phebus Moniz e, volta d'estes, poucos mais fidal-
gos, e o restante da nao, os artific.es, os homens do
campo, o povo miudo.
Quando o cardeal expirou, demorava D. Joo de Aze.
vedo em Extremoz, de cujo castello era alcaide. Ruy
Gomes, com a patente de capito de cavallos, militava
com seu primo, andando a hora promettida, a. distraco
da lucta, o encarniamento de duas naes velhas ini-
migas de envolta com os odios dos traidores de dentro.
Aqui lhes chegou a nova da chegada de D. Antonio,
filho natural do infante D. Luiz, s portas de Lisboa,
para se fazer acclamar. foram os dous Azevedos beijar-
lhe a mo ao mosteiro dos J eronymos e com elle parti-
ram, como as portas da cidade se lhes no abrissem, pa-
ra Santarem. Os burguezes de Lisboa queriam paz, que-
riam rei que lhes permittisse o trafico dos seus negocies,
fosse elle turco e turcos os fizesse a elles. O senado e a
nobreza estavam por Castella. O povo no tinha caudi-
lhos. O dinheiro offerecia-o a jorros a raa judaica em
prol do filho de Violante Gomes, mas acovardava-lhe a
126 O senhor do pao de Nines
energia o pavor da expiao por effeito de alguma me-
dida geral de fogueiras exterminadoras.
Do prior do Crato fugiam muitos inimigos do rei in-
truso, no j por inveja da cora nem menoscabo de seu
illegitimo nascimento. Conheciam-lhe, porventura, oca-
racter impersistente, as mal occultas libertin8gens do seu
temperamento, a mescla da baixeza plebeia de onde ma-
terialmente procedia e 2. .soberba realenga do infante D.
Luiz, seu pae. O almirante, porm, que o vira em Alca
cer-Kibir romper na vanguarda dos mais audazes e agora
o via formar em volta de si uma crte de poucos, mas
conjrados inimigos de Castella, affeioou-se-lhe, deu-
se-lhe de corao, e ganhou para o numero dos amigos,.
que haviam de assistir a D. Antonio at morte no
destrro, o animo impressionavel e amoroso de Ruy Go-
mes.
Talado o territorio portuguez por D. Sancho de A vila
e ameaada de assalto a praa de Elvas, o almirante re-
colheu-se ao seu castello de Extremoz, e confiou de Ruy
Gomes e Gaspar de Brito trezentos homens enviados
em soccorro do presidio de Elvas. Ao tempo que o SOC'-
corro avistou a cidade, j os hespanhoes hasteavam nas
ameias da fortaleza a bandeira de Castella. Por traio
de uns e covardia de todos se havia entregado Elvas,
aquelle antemural da defeza de Portugal. Ruy Gomes,
submisso s ordens do alcaide, retrocedeu.
O duque de Alba passra as fronteiras, frente de
dous mil cavalleiros e para mais de doze mil infantes.
Levava a mira post_a em Extremoz. A pouca distancia
da fortaleza de D. Joo, mandou D. Alvaro de Luna
pedir a entrega do castello e villa. O almirante respon-
deu que no entregava seno a vida, da qual mais
O senhor do pao de N"nes 127
facilmente podia dispor que das chaves do castello.
Respondia d'este tom o alcaide, calculando pela sua a
coragem 4e quatrocentos homens que tinha na praa!
Entrou em Extremoz Christovo de Moura, diligencian-
do dobrar o animo inflexivel do moo, ao lado do qual
Ruy Gomes, carregado e silencioso, media com ranco-
rosos olhos o traidor que andava empestando almas in-
corruptas.
Os engenheiros de Castella curavam de construir ba-
terias para destruirem a villa rebelde.
Os soldados de D. Joo tremeram diante dos prepa-
rativos de bombardeamento. Alguns d'elles fugiram pe-
las muralhas, outros conclamavam que no pelejariam.
O almirante e Ruy Gomes cruzaram os braos, e vi-
ram entrar um capito do duque de Alba a senhorear-
se do castello. Conduzidos ao general e interrogados so-
bre a pertinacia da rebeldia, respoQderam to corajosos
e despresadores da morte, que essa mesma abnegao
os salvou. La Clede narra com encomio e admirao a
bravura do heroico imitador de antigos alcaides portu-
guezes. Os nossos historiadores, porventura vezados
relao de proezas analogas, no se nem sequer
se maravilham do facto de patriotismo praticado n'aquelle
conflicto de vergonhas insartadas umas n 'outras.
Alguns dias depois, Ruy Gomes e o almirante esta-
vam em Setubal com D. Antonio, j acclamado rei. Lam-
pejou um claro de esperana na alma dos que deses-
peranados seguiam o rei do povo. As cidades
paes do norte ou o acceitavam ou sacudiam o pavor de
Castella para conclamal-o.
O duque de Alba defrontou-se com Setubal. O exer-
cito era formidavel e o general temido. A populaa es-
,
128 O senhor do pao de Nines
moreceu : os primeiros mortos do presidio pareciam es-
tar vaticinando aos vivos o seu commum destino. Um
Simo de Miranda, parcial de Catella, sahiu s praas
proclamando ao povo que ise abstivesse de pegar em
armas, porque antes de duas horas seriam todos passa-
dos pelos fios das espadas. Ruy Gomes avisinhou-se do
orador, sobraou-o com terrvel placidez, chegou-se ao
caes e atirou-o ao mar, dizendo-lhe:
-No envergonhes a gente, visto que prgas em
portuguez, traidor infame !
Salvou-se o ditoso homem n'um batel dos galees do
prior do Crato.
Outro traidor, porm, abriu as portas da cidade. Al-
gumas duzias de soldados hespanhoes matavam indis-
tinctamente, ao mesmo passo que o pavor desorganisava
todos os planos dos capites de D. Antonio, menospre-
sando-lhes o commando. Uma derrota sem peleja era
como a precursora da outra. Os mais eram os
mais infelizes. Ruy Gomes de Azevedo desafogava a sua
colera chorando. O almirante atirava ao rosto dos mais
privados de D. Antonio o labu de covardes.
Chegou aquella hora nefasta de Alcantara. No se
vituperem os esforados portuguezes que ahi perderam
uma batalha contra o maior capito da Hespanha. D'a-
quelles oito mil homens de D. Antonio apenas podereis
recensear uns cem dos quaes podesseis dizer: Bateram-
se estes com o exercito disciplinado e victorioso de Cas-
tella. Succumbiram. No sei se algum milagre dos
usuaes nos fastos das nossas batalhas bastaria a dar a
victoria ao desamparado filho da Pelicana.
Duas vezes ferido, D. Antonio fugiu, quando lhe dis-
seram que no convinha morrer ainda. Seguiram-no os
O senhor do pao de Nines 12!J
seus mais amigos, aquelles que o tinham abroquelado
com o peito. Ruy Gomes e o almirante, receiosos de lhe
causarem a m o r t e ~ sustando-lhe a fuga, seguiram-no a
Santarem. Conheceu que ahi lhe voltavam o rosto. Te
meu-se dos traidores e buscou refugio em Coimbra.
Saudou-o a mocidade academica, a gente de corao e
desapgo da vida na sua mais desbotoada florecencia.
Com este illusorio soccorro, quiz ainda tentar a fortuna.
Amontoo seis mil homens, para os quaes Ruy Gomes
olhava com piedade. Resistiu-lhe Aveiro, que a final ca-
pitulou. Que exercito de rei contra o qual se atreveu
Aveiro! E' um trao que faz saltar da tela toda .a figu-
rao d'aquella tragedia cravejada de scenas comicas.
Seguiu-se a infamia. foi saqueada a villa e assassina-
dos os partidarios dos Philippes. O duque de Alba tam-
bem tinha justiado no patbulo D. Diogo de Menezes,
o defensor infeliz de Cascaes. A retaliao, porm, no
era igual. D. Antonio mandava decapitar portuguezes.
Ruy Gomes quiz ento abandonar o tumulto da san-
guinaria plebe. O almirante teve mo d 'elle, dizendo-
lhe :. UJ. -Iitf'
- No desamparemos este desgraado ! s.
j o exercito de Sincho de Avila se avisinhava, quan-
do o prior levantou de Aveiro para o Porto. Pantaleo
de S- prcere e oraculo na cidade que outr'ora dera
robusto esteio ao mestre de Aviz - sahiu do Porto com
os mais illustres para Galliza. Entrou o: Antonio entre
alaridos do gentio, que no tumultuar delirante de algu-
mas horas executou protervias que todas reflectiram si-
nistramente no rosto do pretensor. Este infeliz, desvai-
rado e ensandecido pelos insulfos da m fortuna, vinga-
va-se assistindo impassivel s perversidades consumma-
9
130 O senhor do pao de Nines
das em seu nome . A cidade dos laboriosos e dos ricos
soffreu dez dias de angustias e roubos. Os cavalleiros
da comitiva de D. Antonio corriam as ruas, cortando a
ferro, quando os brados soavam inutilmente, a ral que
assaltava as casas dos abastados. .
D. Sancho de Avila mostrou-se diante do Porto.
Os dex. mil combatentes de D. Antonio, largando uns-
apoz outros os baluartes mais protectores da cidade, abri-
ram as portas ao inimigo. Ruy Gomes de Azevedo, fe-
rido e j foi libertado por um arrojado feito
de seu primo. " .j
-No nos deixemos aqui acabar !-disse o almirante
-E' vergonha que os nossos cadaveres sejam encontra-
dos entre os d'esta gentalha, que morre por no poder
fugir com o peso dos roubos ! .
Ruv Gomes regorgitava de tedio da vida. Toda aquella
cadeia de derrotas, de ignomnias e de feitos infamissi-
mos volta de um acclamado rei lhe parecia o mais in-
fernal supplicio de homem honrado. Desertar s fileiras
do perdido filho do infante figurava-se-lhe torpeza maior
de quantas o anojavam. Seguil-o atravez de chafurdeiros-
to repulsivos era-lhe uma violencia de que nem a sua
dignidade o desculpava. Que fazer? Ancorava-se no sen-
timento de compaixo pelo pobre rei, que uma vez, no.
acume do desalento, dissera aos poucos fidalgos da sua
comitiva : .... r
-Meus amigos, ainda ha quem ame desgraados! ....
Vs daes ao mundo e historia um exemplo de desin-
teresse ! . . . j agora no me deixeis. Assistide-me na
minha ultima hora para poderdes testemunhar que eu
cahi no cho de Portugal como nos areaes de Alcacer !.
E, fugitivo, com a morte.a soar-lhe perto no tropel;
O senhor do pao de Nines 131
dos esquadres castelhanos, D. Antonio atravessou o Mi-
nho at ao rio Lima. Ahi, sem alentos para continuar,
cahiu alquebrado, dizendo aos seus poucos companhei-
ros que o deixassem. Nem j espritos lhe restavam pa-
ra receber a morte com as honras de quem cinge uma
espada. a incansavel desventura. foi en-
to memoravel o patriotismo de um homem da plebe que
o tomou nos braos e a nado ganhou margem d'alm.
De Vianna fugiu desfigurado, em trajos de marinheiro,
com seis fidalgos, n'uma barca. Viu a morte nos abys-
mos das vagas, contemplou-a com assombro de idiota,
se que n'aquella penetrante fixidez de olhos no falla-
va a supplica de uma alma que pedia a Deus o repou.
so interno.
Lanado na praia, onde a chegaria tarde,
D. Antonio, guiado pelo senhor de Nines, que conhe-
cia as montanhas do Minho, pde ganhar sem sobresalto
as alturas da villa da Barca. Aqui se repartiram em gru-
pos de dous os sete fidalgos que o acompanhavam, de-
marcando os pontos de reunio, nas visinhanas do mos-
teiro de Tibes, onde o bispo da Guarda tinha fieis
amigos.
Os benedictinos acolheram o bispo e o conde de Vi.
mioso. Antonio de Brito foi de Tibes enviado para Re
fojos de Basto. D. Antonio, entregue ao cuidado de Ru y
Gomes, entrou no mosteiro de conegos regrantes de Lan-
dim e foi aquartelado na cella de D. Jorge de Azevedo,
que lhe beijou a mo de rei.
E, no entanto, Philippe 11 offerecia oitenta mil duca-
dos a quem lhe apresentasse a cabea do prior do Cra-
to! ..
O almirante e Ruy, durante o dia, Juravam-se n'uma
/32 O senhot:, do pao de Nines
arribana afogada no espesso da matta de Landim. De
npute, acolhiam-se ao mosteiro e passavam horas de fi-
cticia esperana com o seu rei, a quem a communidade
ouvia em p com a, vassallagem e reverencia de rei legi-
timo. rt
fra uma noute Ruy Gomes ao pao de Nines. Ba-
teu: ninguem lhe abriu. .,.
-Morreria o meu Vasco ?-disse Ruy-0 meu ami-
go desde o bero j l vai tambem ? Quem me dir se
a paixo de me julgar morto o ac:tbou tambem! ...
o meu pobre Vasco encontro! . Pois j nem minhas
sero estas paredes, que minha me reservou para con-
servar um tecto que nos cobrisse!
De feito, o amantissimo escravo j era morto?
Ao adiante, averiguaremos o destino do medianeiro
nos amores de seu amo.
lf Na volta de Nines para o mosteiro, Ruy desviou-se
do caminho que levra.
-Por onde vamos ?Tt perguntou D. Joo.
-Por aqui. No torcemos nada.
E parou defrontado com a casa de Roboredo. Debru-
ou-se sobre uma parede do jardim e disse :
O. Joo ... era por alli ....
-O que era por alli ?! ,
- Que eu passei a minha infancia. . Vs alm
aquellas murtas? Plantei-as eu. Leonor que me chega-
va as plantas. . . Que tristeza!. . O que l vai perdi-
do na minha vida! ... Como aqui estou .. eu ! ... tres
annos depois ! . . . .
-Vamos ... -interrompeu D. Joo.
- chorar .. que tu no sabes o que is._
O senhor do pao de Nines 133
to. . Sinto-me acordar de um sonho. . . E no encon-
tro minha me! ... Bastava-me ella; mas no tenho na-
da do que eu era ha to pouco temJ'o ! ...
At pobre!. .
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Ao cabo de dezeseis annos
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Cinco mezes demorou D. Antonio, j em Landim, j
em Refojos, no mosteiro de S. Bento, e por algum es-
pao nos mosteiros de Pao de Souza e Santa Maria de
Pombeiro. (1} Maravilha-se Manoel de Faria e Souza da
acrisolada lealdade dos portuguezes com um perseguido
pouco benemerito de to provados amigos. No era o ho-
o
-l
(1) No tomem como de todo phantasioso o paradeiro do prior
do Crato nos indicados mosteiros do Minho. Alguns presumem
que at em conventos de religiosas se acoutou. No me parece in-
verosimil a hypothese pelo que ella tem de conveniente com a in-
dole de D. Antonio, em vista do que elle foi com as freiras da
ilha Terceira, mas mais cordata e christa: a conjectura de que
frades e nao freiras o acoutaram.
Faz ao intento o que o snr. Rebello da Silv.a escreve na sua
Inlrodttco historia dos secu./os XVII e XVIII, concernente
ao filho de Violante Gomes : N()s mosteiros de religiosas e nos
conventos de frades das comarcas do Minho, e de outras terras,
116 O senlzor do pao de Nines
rnern, era a ideia patriotica, era o rei nado em terra lu-
sitana que os martyres de um mero symbolo defendiam_
Ainda aquelles que lhe conheciam os vicios do tempe-
ramento e OS aleijes da condio, e no previam seno
calamidades da investidura real em homem to despro-
porcionado para reinar, esses mesmos, bem que o des-
amparassem, no o denunciariam aos espias de Christo-
vo de Moura. Repita-se aqui la admiracion, escreve o
citado faria, de que estando Antonio a los ojos y entre
las manos de Felipe que avia prometido 80 mil escudos
de oro aquien se lo entregasse, no uvo alguno hombre
de quantos /e siguian y precisamente /e avian de tratar
que entrasse en pensamiento de consiguir to apetitoso
golpe de moneda; y acabe de admirar-se la emulation de
la lcaltad Portugueza una vez prometida, que viendo a
este Principe puesio a las horribles puertas de la mise-
ria. (Europ. port., tom. 3.
0
, pag. I, cap. IV.)
. N'aquelle tempo, de uma principal casa de Basto
sahiu para Lisboa um fidalgo de nome Pedro de Alpoimt
na traa de arranjar navio que levasse D. Antonio a
Frana. Deteve-se na melindrosa negociao e deu azo
a que o governo soubesse, por informaes de Parizt
que prior em Portugal, espera que um Pedro
de Alpoim lhe ajustasse a sabida.
11 1
.IJ .
) tf
onde elle encontrou mais carinho e affabilidade, hospedagem
mais segura e discreta, e uma to que se pre-
sou de affrontar todos os riscos para nao desmentir a antiga e
honrada lealdade portugueza. Das joias que tirra da casa da
cora, muitas no tinham sido perdidas de todo no meios dos re-
vezes, perm s em raras occasiOes careceu d'ellas para affei;oar
vontfldes. Vol. 2.
0
, pag. 577
1
O senhor do pao de N" -es 137
Alpoim foi preso, atormentado e morto. Morreu, po-
rm, com o segredo do esconderijo do seu rei.
Sahiu, no obstante, D. Antonio para Lisboa, depois
que o almirante se antecipou a preparar-lhe seguro
asylo. .1 . n. b 'lJ
Acompanharam-no os seus amigos, que eram dez,
amigos conjurados em acabarem onde elle fechasse o
cyclo de seus infortunios. De Lisboa transferiram-se a
Setubal, e d'aqui, favorecidos ,por certa mulher do po-
vo, passaram a Calais em unta caravella mercantil. A
magnanima mulher, preza ordem do cardeal Alberto,
governador do reino, expiou na masmorra, onde morreu,.
a sua desinteresseira dedicao.
Catharina de Medieis recebeu mais que favoravel-
mente o real exilado. O duque de Alenon, entrevendo
para si o resplandor da cora portugueza n escuro da
confusa lucta de pretendentes, addiu-se bizarramente a
D. Antonio. ~ ,
Sahiu o prior para as Terceiras com cincoenta e oito
navios e mais de sete mil homens.
A primeira refrega sahiu-lhe auspiciosa. Tres mil por-
tuguezes e castelhanos foram cortados pelo ferro fran-
cez. Pouco avultavam como numero, mas estremavam-se
na bravura os dez portuguezes a quem D. Antonio con--
fira a honra de sua guarda. No segundo recontro na-
val, triumphou, apoz cinco horas de combate, a armada
de Philippe. Ahi morreu o conde de Vimioso, D. Fran-
cisco de Portugal, o mais devoto amigo que ainda teve
um prncipe sem virtudes e sem ventura.
Impaciente e allucinado, D. Antonio, cuidando-se
vendido por alguns portuguezes de entre os que se ti-.
nham bandeado com elle, fez degolar D. Duarte de Cas-
138 O senhot do pao de Nines
tro. Mara.vilhoso e secreto enredo da Providencia! A's
mos d'aquelle fidalgo tinha morrido Antonio Baracho,
.o primeiro que voz em grita acclamra rei D. Antonio,
-em Santarem. Fra elle ainda quem descobrira em Lis-
boa a parage111 do justiado Pedro de Alpoim. Pagou.
Destroado segunda e terceira vez, e j desamparado
das naus francezas, o prior do Crato, deixando morrer
I
em supplicio lento alguns dos seus mais affectos, pas-
sou a Inglaterra, expoz rainha Izabel a sua necessi-
dade de cento e vinte baixeis com quinze mil homens
de terra e cinco mil de mar, tudo isto em troca de cinco
milhes por uma vez e trezentos mil ducados por anno
perpetuamente, com outras condies de igual porte e
juizo, exequveis desde o momento em que se coroasse
rei de Portugal. ~ u 1 t"
Corria o anno de 1589. A 26 de maio costeava a ar-
mada ingleza as ribas de Peniche. O coronel Noris foi
por terra bater s portas de Lisboa, e esperar que os de
dentro, consoante as promessas do pretendente, accla-
massem D. Antonio. Nem a mais leve manifestao !
O coronel espantava-se; e Draque, o general do mar,
fazia-se ao largo, piratando navios de trigo para se oc-
cupar em alguma cousa, e exercitar os soldados nos
usos e costumes passados e futuros da sua terra.
D. Antonio, derrotado !em peleja, envergonhado de
si e dos alliados que illudira, maltractado propriamente
de alguns dos portuguezes que o seguiam, pediu aos in-
glez;s que o lanassem n'um porto de Inglaterra. De
Plymouth passou a Frana com Diogo Botelho, com
um lettrado frei Joo Teixeira, propugnador e escriptor
dos seus direitos, com D. Joo de Azevedo e Ruy Go-
mes, com Estevo Ferreira da Gama e sua mulher, a
O senhor do pao de Nines J3fJ
-qual, por ter fugido de Lisboa, ao avisiaharem-se os in-
glezes passou pelo dissabor de ser enforcada em esta-
tua.
Requereu D. Antonio proteco a Henrique IV. Mos-
trou, pelos manifestos de frei Joo Teixeira, que era o
legitimo rei de Portugal. Mallograva-se-lhe tudo quanto
pervicazmente cogitava, no intento de voltar patria,
onde a sua memoria no tinha quem j lhe dsse gota
de sangue nem sequer uma saudade.
Seis annos de fundas angustias, de desesperao, de
pobreza, de enfermidades aggravadas com sessenta e
quatro annos; acabaram com aquelle homem, verdugo
de si e dos poucos amigos que teve, e dos muitos que
por compaixo o seguiram nos conflictos de maior pe-
rigo.
Morreu o filho do prncipe D. Luiz em 26 de agosto
de 1595. A' volta do seu leito, em quanto a luz da al-
ma se lhe no apagou, viu Ruy Gomes, Diogo Bote-
lho, D. Joo de Azevedo, dous filhos sem porvir, e o
frade que lhe abonava, com o crucifixo na mo, a cer-
teza da gloria eterna e do reinado entre t>s anjos. Os
outros amigos ou estavam mortq_s ou cansados da des-
graa sem treguas nem esperana.
Acabada aquella vida to funesta no destino de Ruy
Gomes, quebrados os liames de um honrado juramento
por uma pedta de sepultura humilde, o senhor do pao
de Nines perguntou sua razo que rumo tomaria no
mar aparcellado de sua vida. D. j oo de Azevedo, na-
turalmente desejoso de descanso, e saudoso de esposa e
filhos, j desde muito deliberra voltar patria, e aco-
lher-se ao retiro e guarda de alguma sua herdade, ex--.
tincto o prncipe. Ruy Gomes no seguia os planos do
\
140 O senhor do pao de Nines
primo, porque, tirante uma horta, volta de um derro-
cado abrigo coevo da monarchia, no tinha nada ; nem
que tivesse inteiros os seus bens no Minho, iria habi-
tai-oS. Estava alli beira do lugubre recinto onde sua
me lhe acaricira a infancia, uma mulher que lhe ma-
tra a me e a mocidade. Ruy no amaldioava, ainda
assim, Leonor em cada trance que o excruciava. A ella
attribuia, sem injustia, a concatenao de tantos e to
travados infortunios, mas no a amaldioava.
Quiz D. Joo mover o primo a recolher-se com elle
ao seguro de uma quinta, em quanto no podessem
voltar a Lisboa confiadamente. Resistiu Ruy s mais
affectuosas instancias. 'nr
-Que intentas?- perguntou o almirante .
...:..:__No me decidi. Servirei a Frana; irei servir onde
o estipendio me suppra o po de cada d i a ~ Ainda tenho
o vigor dos trinta e sete annos. Trinta e sete an-
nos!. L yo dezesete depois que, ultima vez, vi
Leonor!
-I; ainda te lembras! .. - atalhou D. Joo.
- Pois se elle ha dres como laminas de ferro en-
terradas no peito que se no gastam nunca!. . . Tan-
tas desventuras a lembrarem-me sempre a primeira! ..
- Pde ser que ella j tnha morrido e dado contas
a Deus do mal que te fez ..
-No lh'as pea o Supremo juiz, que eu lhe per-
do. Se minha me a no tiver accusado no tribunal
da justia divina, no quererei eu q u ~ o inferno me
vingue. Vingado terei eu sido n'este mundo. Homens
que dominam mulheres, que tanto mal fizeram, so pelo
ordinario os algozes d'ellas... '
-Mas para onde vaes ?! -insistiu D. Joo.
O senhor do pao de Nines 141
Ruy deteve-se uma longa pausa e disse:
- Irei para a fndia.
-Servir os governadores de Castella.?
- V pergunta! No: vou mercadejar, ganhar um
po e u ~ a sede de agu: trabalhar na terra, no mar,
no que acontecer. Se l possivel probidade enrique-
cer-se, voltarei alguma hora a Portugal levantar as pa-
redes da casa onde nasceu meu pai.
E assim te apartas de rnim ao fim de dezeseis annos ?
volveu D. Joo.
-No m'o lembres . Louvemos Deus, que tantas
vezes nos teve separados pela morte dos pelouros e da:s
lanadas, e nos solevou da beira da sepultura para ain-
da nos abraannos e fecharmos as feridas um do outro.
Quem verteu sangue como ns no deve ter lagrimas.
Separemo-nos como homens._. . Vai ver tua esposa e
filhos, um dos quaes j deve estar homem. Abraa tua
me, se ainda viver, e aos nossos parentes diz-lhes que
no se pejem de trazerem nas ieitorias da lndia um pa-
rente mercador.
Separaram-se, chegada a occasio de se fazer de vela
para as costas de Portugal um navio e outro para a
lndia.
No podemos relatar sobre o certo o proseguimento
da vida de D. Joo de Azevedo em Portugal. Sabemos
to smente (e no para o caso pouco nem admirati-
vo) que D. Joo, o parcial de D. Antonio e entranhado
inimigo dos Philippes, foi reposto nas honras do almi-
rantado e posse das commendas de que fra esbulha-
do, desde a resistencia de Extremoz ao duque de Alba.
Sabemos isto por nol-o haver assim asseverado o padre
Joo Cardoso, franciscano de grandes lettras e creditos,
142 O senhor do pao de Nines
o qual, publicando em 1626 um livro intitulado fornada
da alma libertada, etc., o dedica a D. Lopo de Azeve-
do. D'esta dedicatoria, que inclue a genealogia do seu
Mecenas, colligimos que D. Joo de Azevedo, almirante
d'estes reinos, claveiro do mestrado de Aviz, commenda-
dor de j uromenha e S. Pedro de Elvas, tinha morrido
antes de 1626, e deixra sua casa e commendas a seu.
filho Lopo, a quem o livro dedicado. No ha aqui
motivo para estranhezas. A' memoria do 1migo do prior
do -Crato superabundante gloria saber-se que foi elle
o ultimo, chronologicamente fallando, que recebeu mer-
cs do rei intruso.
Quatorze annos depois, no de 1640, no encontra-
mos D. Lopo de Azevedo na lista dos quarenta conja-
rados. No sabemos se vivia, mas do seu sangue deviam
ser tres dos restauradores da patria, Marco Antonio,
Vasco e Manoel de Azevedo.
Ainda aqui nos no despedimos. Logo o veremos de
relance. No fez na vida a gloriosa pausa que as armas
deram ao conde de Vimioso, verdade ; mas, ainda as-
sim, sobejaram-lhe creditos e louvores de portuguez de
lei.
.\\
XVI
O pobre nas pompas da Asia
'
Aportou a Ga Ruy Gomes de Azevedo, a tempo
que o conde da Vidigueira O. Francisco da Gama en-
trava no governo como successor de Mathias de Albu-
querque.
Ruy ," cuja procedencia ninguem lhe perguntou, pas-
sava desconhecido de muitos fidalgos que o tractaram-
em Lisboa e pelejaram no seu tero dos aventureiros-
em Africa. Iam corridos dezoito annos. Quem poderia
achar vestgios do gentil fidalgo do Minho n'aquelle ve-
lho pallido, arrugado, encanecido, que se parava nas
praas de Ga olhando em todos como espantado foras-
teiro? Notava elle, porm, que os seus antigos conheci-
dos nem se tinham desfigurado, nem empobrecido. Via-os;
joviaes, ricos e remoados, galeando trajos a primor,.
como nos ultimos annos de D. Sebastio.
Um d'estes lhe fez maior mossa na sua faculdade
admirativa. Era seu parente e companheiro da jornada.
144 O senhor do pao de Nines
de Alcacer D. J eronymo de Azevedo, quelle tempo ca-
pito general dos portuguezes na ilha de Ceilo. Fitou-o,
reconheceu-o e fez-se reparavel na sua atteno pene-
trante. D. jeronymo poz n'elle um olhar de fidalga se-
veridade, como offendido da fixidez com que o encara-
va um desconhecido de jubo cossado, indicativo de
chatim de baixa veniaga.
Ruy Gomes ainda sabia sorrir. Sorriu e perpassou.
O capito-general, volvendo a um dos seus seguido-
res, disse:
-Que m olhadella me lanou aquelle prro de fo-
rasteiro!
-Se v. s.a quer, pega-se d'elle e saibamos porque
se foi rindo por entre dentes.
-Deixai-o ir, que no nos v sahir doudo.
Ao outro dia, Ruy Gomes,. ao sahir da igreja dos je-
sutas, bateu de fito no general, que entrava. Deteve-se
alguns segundos a olhar contra elle e machinalmente
sorriu.
D. jeronymo de Azevedo, dobradamente colerico por-
que o insolente lhe tomava o passo, disse com desabri-
mento:
' u on .u 1 J
1 Que rir esse?
- De satisfao- respondeu Ruy. rt
-De qu? .... "
-A' puridade lh'o direi, snr. capitQ..general.
D. jeronymo ladeou fra dos seus companheiros co-
mo convidando o desconhecido a explicar-se. Ruy se-
guiu-o e disse-lhe em baixa voz: 1m ,
- E' a satisfao de ver tao adiantado um valente
cavalleiro de Alcacer-Kibir. u ~ m : ~ r l , 1J
-L estive.....,.respondeu sacudidamente D. jeronymo.
O senhor do pao
N"res 145
- L estivemos.
- Bem ! e que mais ?
-Uma pergunta, snr. capito-general governador de
Ceilo de Castella: quantos aos nossos camaradas do
tero dos aventureiros vivem assim adiantados?
- Dos nossos camaradas ? !
-De v. s. e meus.
-Foi do tero dos aventureiros? como se chama?
Deteve Ruy a resposta. O governador de Ceilo
voltou o rosto para os companheiros e disse, grace-
jando:
- No vos disse eu que era demente ?
Os amigos acercaram-se dos dous, dispostos a garga-
lhar do louco.
D. Jeronymo continuou:
-Est-me aqui dizendo que foi do tero dos aven-
tureiros em Alcacer-Kibir.
Gargalhada compacta do auditoria.
--Mas-disse placidamente Ruy-no fui d'aquelles
que, na noute da derrota, foram bater s portas de Ar-
zilla, dizendo que ia alli o rei !
. Nicolau Pereira de MirandaJ que era um dos mais
ridentes, crou at s orelhas. Os outros refugiram d'elle
-os olhos. D. J eronymo mediu de alto a baixo o desco-
nhecido. (1) o 1
u,
I ~ I
(I) O caso assim referido pelo portuense Hieronimo de Men-
dona,. um d o ~ captivos da infa!Jsta batalha: (t Mas entre
estes poucos que se. salvaram, por na:o haver mal que de tanta
.desventura no procedesse, permittiu Deus que chegaram a Ar
zilla na mesma noute tres ou quatro homens; e como a tal tempo
e a taes horas lhes no quizessem abrir, vendo elles o perigo que
lO
146 O sellhor do pao de Nines
Para quasi todos o silencio era um modo de vexame
e afflico. u
Ruy Gomes proseguiu :
- Alli est o snr. Affonso de Menezes, que foi dos
oitenta resgatados no rol do scherif.
-E vossa merc seria tambem dos oitenta ? - per-
guntou ironicamente D. Diogo Lobo.
O interrogado sorriu-se; e, passados momentos, res-
pondeu:
corriam, se esperassem at pela manh, disseram que vinha alli
el-rei D. Sebastio (cautela cert-a digna de um grande castigo,
pelos damnos que d'ella resultaram, posto que sua teno
fosse mais que buscar seu remedio, sem imaginarem o que podia
acontecer). Abriram-se logo as portas com tanto alvoroo t! con-
tentamento de todos como se pde imaginar; e como o capita"o
mandasse accender algumas tochas. um d'elles se embuou, que
parece era o principal, fingindo os outros n'elle grande respeito,
pr escaparem d'esta maneira da furia do povo e dos soldados,
pois no podiam contestar .com a verdade do que haviam dito, e
realmente com razo se poderam se o engano se manifes-
tra, Chegou logo esta nova armada, e veio Diogo da Fonseca,
corregedor da crte, a inteirar-se do caso, e entrando onde estes
.homens estavam com o capit:ro Pero de Mesquita, o mancebo
embuado se descobriu e visto que era um homem fidalgo
(no da casa de el-rei nem da crte de certo), cujo nome no sa
bemos nem bem que se saiba, e sendo mui reprehendido d'elle
e seus companheiros, deram por desculpa que no haviam dito
que vinha alli el-rei, seno que vinham de onde el-rei estava.
N'este meio tempo comeou a fama a fazer seu officio, e foi con-
firmada a opinio de ser aquelle el-rei D. Sebastia:o no mar e na
terra . _ e por mais que eram desenganados, ninguem queria
acreditar o contrario.__ Foi deixarem-no embarcar uma grande
inadvertencia e mal empregada piedade, pois em qualquer damno.
recebesse no ia nada . Pag. 84 e 85, edi. 1785.
O senhor do pao de Nines 147
- Tal captivo l esteve que se resgatou a si e a seis
dos que hoje campeiam poderosos.
- E' de sybilla a resposta-replicou D. Diogo.
-Para certos entendimentos tudo sybillino-disse
Ruy.
- De mais a mais, petulante !-observou um fidalgo,
relanando-lhe uma vista de desprso.
- Verdadeiro !-replicou o senhor de Nines.
D. jeronymo pegou d'elle suavemente pela manga
do jubo, apartou-se para longe dos pasmados officiaes
e disse-lhe :
- Quem ? como se chama ?
- O tom brando da pergunta obriga-me, porm da
honra de v. s. a fio o segredo do meu nome.
- Pde fiar.
- Sou o homem em cujos braos expirou o ultimo
rei portuguez.
- D. Sebastio?
-No, S'enhor: D. Antonio, sobrinho varo do car-
deal-rei e neto de el-rei D. Manoel.
D. jeronymo suspeitou que de feito era mentecapto
o homem.
. - No me conhece ainda, snr. capito-general? -
proseguiu Ruy Gomes.
-No.
- Cuidei que o meu nome chegava at aqui para
ser abominado dos bons portuguezes!. . Eu acudo
sua anciosa curiosidade. Nossos bisa vs eram irmos,
snr. governador de Ceilo.
-Como? !-acudiu D. J
-Como podem ser irmos o bisav e v. s. e o bi-
sav de Ruy Gomes de Azevedo.
148 O senhor do pao de Nines
f .- Ruy .. Tu !-exclamou D. jeronymo,
abrindo-lhe os braos.
-No me exponhas ao odio d'esta gente-disse Ruy,
fazendo p atraz.-A minha cabea ainda est a preo (
de escudos castelhanos e receio que um d'aquelles
aproveite o lano.:. Meu primo, vai para elles e diz
que eu sou doudo. j sabes porque eu me sorria? Era
contentamento de te ver... Ad.eus. Quando passares
no me fa1les. Eu sou um pobre mercador de
gengibre e pimenta. t:t.,
-Vem c! Ruy !-clamou D. jeronymo, seguindo-o
a passo apertado. o
Os fidalgos reunidos porta da igreja viram desap-
parecer o general depoz o homem pobremente entrajado
e disseram entre si :
-Tem o negocio dente de coelho! Que homem ser
este!?
No pde Ruy Gomes desapressar-se do primo. As
multides de fidalgos e mercadores viam pasmadas ir
de par com tal pobrete o capito-general das armas por-
tuguezas, fallando-lhe muito affectuoso e o outro com
os olhos humildes no cho que pizava.
Levado constrangidamente, entrou Ruy gran-
de casa, aposentadoria de D. jeronymo.
Ahi passou o seguinte dialogo, em que, a revezes. o
governador de Ceilo duvidou da sanidade intellectual
de seu primo. Dizia o general :
-O que primeiro cumpre . pedir perdo da tua per-
tinaz rebeldia. . . r '
- Perdo? pedem-no os delinquentes! No delinqui.
Lidei. dei-me cem vezes morte pela justia e
pelos direitos de D. Antonio, rei legitimo, digno se in-
O senhor do pao de Nzes 149
..
digno, no sei: rei por herana de avs; rei como D.
Joo I. Perdi, fui vencido. Acabado est tudo. No sou
portuguez. No sou nada Pedir perdo! de qu? De
ser desgraado? Se o sou em desconto de peccados, l
est Deus. O usurpador de Portugal um verme, com
uma tira de ouro roubado na cabea, com alguns ver-
dugos s suas ordens, e com o inferno e a maldio
da historia diante d'elle! Sabes o que eu salvei, primo
D. jeronymo? A consciencia inteira da honra. A vida foi
o menos que eu tirei dos gumes dos ferros, ora africa-
nos, ora castelhanos, ora portuguezes. Todos me tiraram
sangue, mas a honra nenhum. Isto, que eu salvei de
um naufragio de dezesete annos, querias tu que eu
agora o fosse atirar aos ps de um Philippe! Pedir eu
perdo para resalva d'esta cabea que j me pesa para a
sepultura ! Pedir eu perdo para ser castelhano! Um ho-
mem no trabalha tanto para a final se despachar in
fame, e ir-se, encostado s muletas da ignominia, .arras-
tando at cova que me est aberta alli adiante!
- O' Ruy!- atalhou D. J eronymo. de Azevedo- A
tua razo est turvada ! Esses teus brios no sero ga-
lardoados, porque no ha entendimento claro que os
perceba ! No vs tanto portuguez illustre, tantos leaes
amigos da sua patria, cuidando em augmental-a aqui na
esperana de alguma hora se levantarem com rei seu,
rei port uguez? IJ r l - ~ J - 1, rnr
- E repelliram, e feriram duas vezes no rosto e en ...
terraram o rei portuguez que tinham!-:- replicou Ruy.
- D. Antonio no podia ser rei, homem!- retorquiu
o governador de Ceilo. , rr J va..a
- Lettrados que te respondam, primo. Em quanto foi
tempo e util, provei espada e lana que o neto de el ...
150 O senhor do pao de Nines
rei D. Manoel era rei. Agora, que nem a elle nem a
mim aproveitam argumentos, deixa-me tambem morrer
convencido de que dei sangue em defenso da Justia.
-Vamos ao ponto- volveu D. jeronymo de Aze-
vedo.- Vaes commigo para Ceilo? U J'3fl
me dispuz a ir l mercadejar. Acaso me vers
aJguma hora em Ceilo, mas no te ds por conhecido
do pobre mercador. 2 ' 11 ' b s
-Cada vez mais tresvaliado !-exclamou o general-
Cuidas que te hei-de consentir que andes a chatinar!
Um filho de meu tio Vasco de Azevedo a comprar pi-
menta e gengibre!
-Pois por isso, meu primo: no dirs que eu sou
filho de Vasco de Azevedo. A memoria de meu pai no
receio desdoural-a com este humilde mester. Se haver-
gonhas que sujem as cinzas dos mortos, certo no so
estas do trabalhar do pobre. . n
-Mas que tu- interrompeu O. J eronymo- tens
btaos para uma espada; a espada o officio dos ho-
mens da tua raa . - 1 r
- Os homens da minha raa. . . desculpa-me; que
eu queria dizer os homens da minha condio, no ser-
vem inimigos de Portugal. Quebrei a espada no tumulo
do senhor D. Antonio. Se ha ahi portuguez com igual
ou bastante direito cora do ultimo rei, ento, sim,
meu primo, pedir-te-hei uma de tuas espadas, porque
no tenho de meu com que a compre ao espadeiro.
-Assim ests carecido, Ruy?-disse o general; e, pu-
xando a gaveta de um contador, tirou duas mos cheias
ducados, que lanou n'um bofete, exclamando:-
Aqui tens, primo) Remedeia-te; e, findo este dinheiro,
que quizeres do meu, que me sobeja.
O senhor do pao de Nines 151
-Guarda-o com a minha gratido, O. jeronymo-
acudiu Ruy. -Eu careo do trabalho para occupar os
espritos, que ociosos me dariam garrote ao corao. E'
por sustentar corpo e alma que eu me irei de porto em
porto, como forasteiro, como homem que no tem pa-
tria, como judeu, comprando aqui e vendendo alm.
D'este teor, irei de boa paz com a minha consciencia e
tirarei da necessidade do po de amanh o proveito de
entreter o dia de hoje.
- Ests varrido! -voltou o general- No sei que
te faa!. ..
-Abraa-me e adeus! Tempo de mais te esperdicei.
Vai aos teus officiaes, que te aguardam, e diz-lhes que
de feito era doudo este homem que conhece os villos
encapotados em reis na praa de Arzilla. Adeus.
Sahiu Ruy apressadamente para forrar-se a instancias
impertinentes. O. J eronymo quedou-se pensativo, avo-
cou reminiscencias do Ruy de 15 78, arrependeu-se de o
deixar sahir sem os ducados, cogitou no meio de curar a
enfermidade moral do primo e disse de si para comsigo:
- No veio lndia tamanho doudo !
Jh'
&.Blil
T
XVII
A corrupo da India e a justia do cn
Com dous mezes de paragem na lndia, Ruy Gomes
sondara o plago lamacento em que bravejavm as va-
gas das mais desenfreadas e sordidas paixes dos por-
tuguezes. A corrupo era culminante quando O. Fran-
cisco da Gama foi substituir Mathias de Albuquerque,
bem que o seu antecessor claudicasse como tolerante.
As tradies dos viso-reis probos e amados nem j mor-
diam como remorsos nos barbaras e cupi':lissimos suc-
cessores. O conde de Vidigueira, em presena de um
desvergonhamento impune e destemido, providenciou,
legislou, ameaou; mas a torrente ia to de monte a
monte, que, se o no volveu ao abysmo das memorias
infamadas, passou por elle soberba inquebrantavel.
Dizia-se que o antecessor de D. Francisco trazia para
o reino um milho, grangearia de seis annos de viso-
reinado! 1( .J
Ancorada em Cochim, estava carga a nau que de--
-154 O senhor do pao de Nines
via passar ao reino Mathias de Albuquerque. Nunca se
vira tanto fardo de riqueza, marcada com o sllo de um
viso-rei!
Ruy Gomes, por esse tempo, estanceava em Cochim,
e passava suas horas, f e r i a d a ~ da apoucada mercancia,
sentado no caes da alfandega, entre a gente miuda,
vendo passar os pacotes do passado viso-rei e ou vindo
os juizos da plebe, respeito dos grandes haveres de Ma-
thias de Albuquerque. Os mais audazes, abroquelados
com a sua propria miseria e desvalia, diziam que viso-
-rei mais ladro no tinha pesado sobre os indios nem
quebrantado com os prncipes alliados mais contractos,
sagrados pelo juramento de seus antecessores. Isto di-
riam elles de todos; do proprio D. Joo de Castro o di-
riam talvez!
Como quer que fosse, ao anoutecer de uma tarde, em
que Ruy Gomes, silencioso e como alheio da linguagem
do gentio, escutava aquelles rotos chronistas e philoso-
phos do .caes de Cochim, subito se ouviu da parte da
bahia, onde ancoravam as naus, grande celeuma de
brados de soccorro e misericordia. Promiscumente com
o alarido, rompiam chammas e fumarada de uma nau,
que todos disseram ser a da fazenda de Mathias de Al-
buquerque, j de verga alta para se abalar no dia se-
guinte, em demanda da frota que o esperava em Ga.
Viu Ruy, ao claro das labaredas, a marinhagem e
passageiros j embarcados para a viagem, saltando da
amurada aos botes, com os braos estendidos para o in-
cendio, em que lhes ficavam as riquezas.- Afra isto, o
que elle viu luz das chammas foi . DEUS. Viu o que
viram muitos, julgou como julgaram aquelles cujo juizo
Manoel de faria e Sousa deixou perpetuado na relao
O senhor do pao de Nines 155
d'aquelle desastre. Merecem traslado as linhas, que so
poucas e conceituosa&: Aili em uma hora se viu des-
feito em fumo para mais de milho e meio, que eram
os interesses grangeados de muitos, ou por muitos an-
nos e muitas diligencias. E como na India costuma ser
mais por ellas que por elles e nunca o largo medrar em
breve tempo deixa de ser escrupuloso, julgou-se que era
castigo o que parecra acaso. Albuquerque, como maior,
mais perdeu. Porm, soccorrendo-se ao seu bom animo,
vista do incendio, levantou mos e olhos ao cu, e,
feito discipulo de job, disse: Senhor, vs o dstes, vs o
lelastes. Do seu proceder pde-se esperar que fallou
ajustadamente; outros, porm, melhor diriam: Deus o
deu, o diabo o levou. (1) n rJ
O successo impressionou vivamente Ruy Gomes. Es-
tava de animo bem disposto a comprehender como jus-
tia divina o baque subito de uma opulencia, alli, nas
cavernas do mar, aos olhos espavoridos do possuidor,
punido diante das de suas rapacidades.
Corroborou-lhe a crena ouvir logo dizer um padre da
Companhia, a quem se confessra, que Mathias de Al-
buquerque recebra do jesuta j eronymo Xavier uma
carta prophetica d'aquelle successo. (2)
ll
(-1) .Azia porlttgueza, tom. 3.
0
; 109.
(2) O vaticinio do jesuita assentava n'estas palavras, de que
Manoel de Faria se lembrou lugar citado : Que, aligeirasse a
alma para a viagem , adverli1zdo-llze que aos gover1zadores da
lrrdia no se havia concedido isempo de su.perimidade, como .
elles jwesumiam; porque sobre . todos igualmente a tin!tam o
-oceano com suas liberdades: e o cabo da Boa Esperana nllo
se deixava domar, vender netiC lisongear., t
156 O senhor do pao de Nines
Com o animo commovido d'aquella viso, Ruy Go
mes cada v ~ z se entranhava mais no seu proposito de
correr os dias restantes da vida pobremente. Estas ideias
iam gerando n'elle outras de fervorosa piedade, levado
das quaes freq.uentava a miude as igrejas e o confessio-
nario, relembrando-se das oraes que sua me lhe en-
sinra e a guerra com a desfortuna de tantos. annos po-
dra escassamente delir-lhe da memoria.
Entretanto, corria-lhe o indeclinavel dever do trabalho
para subsistir. Se elle tivesse de seu, e auferidos do seu
suor, alguns recursos, verosimilmente lhe acudiria o pen-
samento de se recolher a qualquer dos mosteiros da ln-
dia florentes em piedade e fructificadores de almas para
Deus nas perigosas misses onde, quelle tempo, seu
primo o padre lgnacio de Azevedo andava em busca do
martyrio que mais tarde lhe deu azas para o cu. Ca-
recido, porm, do mais urgente vida e adverso de-
pendencia de parentes, alternava os actos ~ e piedade com
os da veniaga, agorentando n'estes quanto espaJ podia
para o dar ao allivio da orao e jubilos ineffaveis de
quem se cr na presena de Deus que o ouve.
Como soubesse que em Ceilo se fazia bom mercado
de especiarias, porque n'aquella ilha os mattagaes so
de canella, como diz Barros, aproveitou Ruy Gomes a
passagem de alguns missionarias em navio de baixa
conta e passou com outros mercadores do seu lote.
D. jeronyrno de Azevedo trazia guerra com o cha-
mado tyranno de Candia. Ventava-lhe prosperidade nas
entreprezas. Elle e seus officiaes, onde quer que punham
o p, abriam poas de sangue. Degolavam os indios
pacficos a fim de incutir pavor nos inquietos. fera es-
pantosa aos proprios barbaras, o governador de Ceilo.
\
O senlzor do pao de Nines 157
vingou affugentar de Candia o poderoso inimigo, e iou
em espeques as cabeas dos desprecavidos ou teimosos
em defender suas casas e famlias.
Ora pelo incrvel a rueldade do capito-general.
Um escriptor portuguez. j nascido ao tempo em que o
primo de Ruy Gomes governava Ceilo e j homem
quando elle morreu, conta que D. jeronymo de Azeve-
do, ebrio das fumaas de vencedor, obrigava as india-
nas a triturarem seus filhos em almofarizes; depois do
que, as estrangulava por mo de seus verdugos. Man-
dava cravejar lanas em creanas e pl as ao alto; e,
se as creancinhas agonisavam gementes, dizia que ou-
vissem o cantar d'aquelles gal/os, alludindo ao poleiro e
aos gentios que se chamavam os Oalas. Mandava des-
penhar da ponte de Malvana os rebeldes s fauces dos
jacars que os esperavam; e to vezadas andavam as
.feras d'este cevo, que, costumada senha de um asso-
bio, emergiam as cabeas e abriam as boccas debaixo
da ponte. O historiador ajunta que D. J eronymo tinha
escripta a alma no semblante, e de modo o descreve,
que mal se imagina, visto ainda o retrato que lhe acom-
panha a biographia. (1) .
N'estas proezas andava_ D. Jeronymo de Azevedo ra-
dioso e ovante, quando Ruy Gomes saltou em Ceilo.
Testemunha de alguns supplicios infligidos a mulheres
e creanas, sentiu-se trespassado de horror e quiz ouvir
a historia dos criminosos assim castigados. Como lhe
dissessem que o capito-general castigava d'aquelle
(1) Veja a pag. 321, tom. 3.
0
da Azia p01-tugu.eza, e o re-
trato a pag. 324.
158 O senhor do pao de Nines
modo os captivos, as esposas e filhos dos captivos, ju-
rou a Deus no pr seus ps no a trio de to feroz can-
nibal, e deu-se pressa em mercar e vender suas espe-
cies, no intento de sahir da ilha, antes de ser visto do
governador.
No vingou o proposito ..
Bem que R.uy se no atravessasse nas ganancias de
alguem, alguns mercadores, que o no conheciam, en-
traram com elle a contas de remoques e insultos, aos
quaes o paciente escarnecido no redarguiu. Chama-
ram-lhe de judeu, de prro, de mouro fugidio. Fugiu,
furtando-lhes as voltas. Os insultadores, espicaados da
inercia do fugitivo, sahiram-Ihe com outras chufas e le
varam comsigo chusma de gandaieiros assobiando-o. O
menos condodo d'aquella soffred.ora pusillanimidade tra-
vou-lhe do brao esquerdo sacudiu-lh'o e bradou:
-Anda c, D. Iscariotes! Diz quem s ou vaes ao
potro de Ga ! . . . Ters tu fugido da santa casa?
- No. Deixai-me ir- disse brandamente R.uy.
- No irs; que judeu s tu dos quatro costados!
Vem c responder por ti ao ouvidor.
- Ahi vem o snr. capito-general !-gritou o rapazio;
voltado para onde soava a trupiada de cavallos.
D. J eronimo passava desattento do grupo, mas os
chatins quasi lhe levaram frente do cavallo o suspeito
judeu, bradando:
- Snr. capito-general!
Olhou o governador, reparou e descavalgou de um
salto, gritando :
- Que tendes que ver com esse homem ?
- No diz quem e ninguem o conhece em Ceilo
-respondeu um da turba.
O senhor do pao de Nines 15g
- Ha tres dias que apparece a mercar nas feitorias
- gritou outro.
- Deixai-o!-disse o general-Porque o trazeis assim-
s vaias do povo? Que mal vos fez?
Calaram-se os accusadores.
D. J eronimo, ruoro de sangue, chamou um de seus
officiaes, resmuneou-lhe orelha ~ ordenou aos amoti-
nados que ninguem movesse d'alli os ps. D'ahi a pou-
co, estavam as avenidas da rua cortadas por soldades-
ca, os insultadores e gandaieiros eram presos, e despi-
dos da pelle fora de vergastadas. A
Ruy Gomes dissera duas palavras em baixa voz a seu
primo, pedindo-lhe o perdo d'aquelles homens. O ge-
neral respondeu :
-At os brios perdeste, homem! Espero-te em mi-
nha casa, d'aqui a duas horas.
Como as duas horas passassem, D. j eronimo man-
dou procurar em Ceilo o mercador, em breve desco-
berto pelos aguazis de s. s. e conduzido respeitosa-
mente s moradas do general.
O as peito de D. j eronimo de Azevedo, j recom-.
mendado por Manoel de Faria e Souza, d'esta feita
espelhava a condio raro branda e o resentimento des-
affeito a sopear-se. . u
... -Vejo que te obstinas, primo Ruy!-disse elle com a
testa avincada.
---Em qu?
n
rr
I ..,_ lS'
- Em andar desairando tua familia ! Ou mudar de
vida ou sahlr da India ! Que vest_imenta essa ? j a
gentalha te apupa como a doudo; e eu no posso an-
dar atraz de ti com os verdugos para retalhar os lombos
dos que te enxovalham ! :.
160 O senhor do pao de Nines
-Respondo, se no tens mais que dizer.
-Vejamos ...
-No envergonha sua familia quem no desculpa
-seus vcios proprios com a pobreza; e menos a enver-
gonha quem, como pobre e desambicioso, commerceia;
podendo ser, porm, que este mester desdoure o gene-
ral D. jeronimo de Azevedo, acautelei-me, calando os
. meus appellidos. Mudar de vida ou sahir da lndia, me
dizes. Esperarei que Deus me mude para outra. fartas
vezes busquei a mudana, atirando-me aos pelouros e
s espadas. O Altssimo Senhor no quiz: pouco monta
que eu queira. Sahir da India, sahirei: manda-me quem
p6de.' Tanto faz . .''. Ainda h a mais mundo. Onde quer
est a patria de quem nenhuma j tem. . . Perguntas
que vestimenta esta? A do pobre, mas do pobre con-
formado que no ambiciona outra. A de D. Antonio,
rei de Portugal, era como esta no derradsiro anno de
sua vida. Nunca o vi lastimar-se mingua de um ju-
bo orlado de ouro, como esse que tens. O primo de
D. j eronimo de Azevedo no se peja de andar entra-
. jado como o sobrinho de D. Joo III. O meu mantu
de :damasco :ficou em Alcacer-Kibir ... Se a gentalha
me apupa como a doudo, no dei azo a que me enxo-
valhasse. Estava eu comprando canella; dava por uma
pequena poro o que me pedia o vendedor; como no
desfiz na mercadoria. nem lbe chatinei o preo, os ou-
tros mercadores levaram-m'o a mal e desabriram-se irri-
tados da minha paciencia. Debaixo d'este surrado ju-
bo j no estava Ruy Gomes; por isso me viste, pri-
mo, desfeiteado entre aquelles homens, que por vilta
nossa fallavam a propria lngua com que S. Francisco
Xavier e teu irmo lgnacio de Azevedo por aqui passa-
O senhor do .pao de Nines 161
ram evangelisando o amor ao proximo. Se lhes fizeste
retalhar as costas aos mercadores pelos teus verdugos,
pedi-te que os deixasses e tu me privaste de merecer
-com Deus a virtude do perdo' de offensas que nem in-
Jurias eram. Respondi, D. jeronymo. Assim que sahir
navio, voltarei a Oa, onde tenho umas pogeas de pi-
menta, que so o meu alimento de oito dias. De Oa
me sahirei para onde te no empea. farto vou da lndia
de Castella. No isto o que meu paidizia da Azia portu-
gueza: O que ahi ha uma caverna de feras e ladres!
-faz-te frade, Ruy!- D. jeronymo,
galhofeando. t J : JD
- Que iria n 'isso religio ou a mim ? Sobejam fra-
des e sobejam homens sem temor de. Deus. Um frade
mais no diminuiria um criminoso ao numero d'elles.
No se ha mister frades na lndia para desbravar almas
de genttos. Estes so quem menos envergonham as fa-
ces do Creador. frades, meu primo e senhor, quem mais
carece d'elles s tu e os da tua plana; so todos os que
levam diante de si o padre com a cruz e o verdugo com
f
o cutelo! N 1 u.
-Por maneira-atalhou' entre risonho e colerico D.
J eronymo-que me pagas com affrontamentos ...
- Affrontamentos no :-fao-te advertencias salutares
para te pagar como posso os favores que me querias fa-
zer. Hmem, que se desceu de
1
moto-proprio ao nada
.que eu sou, j no lisongeia alguem para ser alguma
cousa n 'esta vida, em que os mais vistosos no passam
do commum mais arreiado de enfeites. D. Jerony-
mo, no sejas cruel. Eu vitn ver e: saber cmo tu casti-
gas os venCidos, e -vingas -em ve"l h e meninos e mu-
lheres a injuria dos vencedores !
11
/62 O senhor do pao de Nines
-J me enfadas !-interrompeu o capito-general-
Tudo te relvo a fro de parente, e de mesquinho e coi-
tado que s, a quem a. desgraa enfermou a razo! ...
Se te no sirvo em remedio de tua pobreza, no me offe-
reo para pedra de afiar_ o estoque da tua devota pr-
gao, meu primo Ruy !_ Ouvi de ti o que no ousaria.
diz,er-me segunda vez o viso-rei!.
-Mercs; mas lastimo que qualquer padre christo
desmaiasse diante de tua authoridade, mrmente o pa-
dre que ousa insultar as divindades das religies estra-
nhas. Se os viso-reis se no atrevem comtigo, meu pri-
mo, arreceia-te do 1 uiz que h a pouco puniu Mathias de
All;mquerque !
-O incendio da nau ?-acudiu com despresador sor-
riso o governador-Acabemos com isto! ..
-Essas palavras-disse Ruy-me lembram o santo-
homem por q u ~ m chora a India. . . f tempo de aca-
bar, dizia Affonso de Albuquerque .. Pois, sim, primo,
acabemos com isto. Fica-te_ em paz com migo e comtigo,
se podres. Deus ou a desventura te melhorem !
Ruy Gomes de Azevedo sahiu. A' porta do capito-
general estavam muitos fidalgos, attrahidos por um boa-
to mysterioso espalhado por conta do incognito merca-
dor. Os fidalgos, com os olho_s cravados n'elle, deram-
lhe respeitosa passagem. Ruy passou obrigado por entre
as alas com o chapu na mo e o sorriso nos beios, o
sorriso de piedade do ,animal. spberbo e abjecto chama-
do homem.
I(..
. Entre as atoardas correntes por confa do incognito-
mercador, a mais imaginosa no deve faltar o romanc;
com ella: alguns disseram que pela estatura, olhos e an-
.I
O senhor do pao de Nines 163
dar, o mysterioso homem, que sahira do pao do capi-
to-general, era e l-rei D. Sebastio.
O certo que os espectadores se acotovellavam no
caes de Ceilo quando o pobre mercador, sobralndo
dous fardos de especiarias, saltava n'uma caravella de
carregao para Ga.
-
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cy
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~
JH.;
cB
' ~
xvnf
1
r.,
. J ~
, :
~ Leonor ~
.r.J
lurr c
f J -
Vamos ao Minho ouvir a' conta que :nos d da sua
vida . de dezoito annos Leonor .Correia de Lacerda. No
cousa bem vulgar e ordinaria que etla tenha sido fe-
liz com um esposo estranho s= convulses dos bandos,
nem amigo nem inimigo dos Philippes, rico e socegado
possuidor de seus bens, de sua mulher e filhos, se os ti-
nha? E'. Est a vida, como ella apesar dos romancis-
tas, abundantissima de casos analogos e contrastes que
insinuam nos animes irreflexivas a suspeita de que a
Providencia, umas vezes por outras. dorme.
Entretanto saibamos. J
Quando a frota sahiu para Africa em junho de 15 78,
j Leonor era esposada de um anno e j tinha chorado.
Isto no admira. Choram de mimosas as mais amadas
esposas. Esta conjectura, porm, contrariavam-na certos
menospreos de j oo Esteves Cogominho, picadellas pun-
gentes no corao, ciumes emfim, mas ciumes que muito
a desciam, nivelando-a com rivaes de condioinfima.
Cuidava ella que soffreria menos, se as rivaes fossem
de condio alta. Pura illuso. J1
166 O senhor do pao de Nines
Apressou-se-lhe a experiencia. Logo que o esposo fez
uma excurso s villas e cidades minhotas, no intento
de mostrar os lacaios com suas librs escarlates, os ca-
vallos com suas marlotas brancas e capillares e capra-
zes encarnados, O. Leonor, espiando-o como esposa vi-
gilante, soube que era mais remordente o ciume da da-
ma com a qual a mulher trahida se julga competir em
prozapia, belleza e outras graas.
1 oo Esteves demorou-se; Leonor appareceu-lhe ines-
perada. foi surpreza que o in:itou. So pessimos os ho-
mens! Pobres anjos as mulheres, quando amam e ex-
piam culpas to usadas e triviaes como Leonor !
A gente diz isto, mas Deus l sabe.
Por este tempo vendia O. Thereza o patrirnonio de
seu filho e logo adiante morria fulminada de saudade.
Convem combinar estas cousas, e ver se, mediante ellas,
entendemos a justia l de cima. E apontemos para o
cu, sem pejo dos espritos fortes.
O esposo irritado obedeceu violencia das lagrimas.
Deixou a vida folgada que vivia, e acommodou-se com
os desvarios e baixa libertinagem das suas aldeias.
As primeiras lagrimas de Leonor Gon-
alo Correia. Devia-lh'o de obrigao, porque lhe ensi-
nra a villania da alma ou pelo menos lhe ajudou o des-
envolvimento d'ella, que poderia ter morrido nos em-
bries. Porm, quando a esposa trahida e immolada a
idolos de mais incenso e culto chorou as segundas Ia-
grimas, o pai tinha morrido. , L
Ssinha, portanto, e de mais a mais odiada das suas
parentas e amigas; razo de umas 3nr. Alcoforados; de
quem o author se lembra, contaram o caso feio e deshon-
roso do desmentido que ella dera s razes do ouvidor
O senhor do pao de Nines 167
de Barcellos; e este, por sua parte, divulgou o despun-
donor da rtteniha com cres negras a mais no poder.
Honrado e malfadado ouvidor! '' '
Aos ouvidos de Joo Esteves chegaram as asperrimas
censuras do magistrado, movidas da compaixo e colera
com que elle recebeu a nova de ser morto no captiveiro
Ruy Gomes, e logo em poucos dias tambem morta O.
Thereza figuira. <h trr
Trovejava o ouvidor maldies sobre os causadores de
duas mortes. Mandava esperar a vingana de Deus so-
bre a treda mulher atada a um villanaz de marido que,
servido de astucias ignobeis, empolgra o lodo do ouro
e o lodo do corao da esposa. Tinha grande auditoria e
applausos o praguejador. O sobrinho do chanceller ju-
rou vingar-se. -;(i- d: . :n'l q,
Sahiu o magistrado em correio ao julgado de Ver-
moin, no anno de 1580. O seu transito corria por perto
das terras de Pouve. Joo Esteves mandou seus lacaios
.que o matassem. : ....
1
r, r}r' : l&V 1n:
Cumpriram. .- ?.'"lv!' :-r
O crime estrondeou tanto, que ainda hoje ressa . na
tradio popular. Os lavradores d'aqueltes sitias. vos re-
ferem, nua de causas e effeitos, a historia de ter sido
assassinado alli perto de umas runas j soterradas, qtie
foram o pao de Pouve, um ouvidor de Barcellos.
:. No valeram ao homicida': appellidos nem a defeza
castellada com seus criados.r fugiu pra Castetla. A
occasio era Bandeado com os almoedeiros de
Portugal devia esperar indulto. L mesmo, porm, no
corao de Madrid, uma noute, romperam-lhe o peito
tom um ferro curto e abateram-no com segundo golpe.
, Quem foi? O ferido, em perigo de morte, apenas disse

Q. senhor do pao de Nines
que era negro o sicario que o atacra. Attribuiu a trai-
o a algum . ri v a\: por amor de alguma das suas damas.
Elias e elles eram ..
Fossem l descobrir o negro ! .:: . '
.o escravo e amigo de Ruy Gomes de Azeve-
do, sete dias depois estava no pao de Nines agricul-
tando as hortas. """. t !'
E quinze dias antes sahira de Landim Ruy Gomes
com O; Antonio. .s ,. R
Restaurou-se o senhor de Pouve. Leonor assistiu-lhe
na enfermidade e fiCou em Madrid.
j oo Estev.es Cogominho, se viesse a Portugal com
o exercito do duque. oe Alba, poderia ter avistado Ruy
Gomes em ExtremQz, em Cascaes, Setubal e Alcantara.
No tinha amor tamanho a Castella que se expozesse
s luvidas da guerra.-. Limitou-se, como os jurisconsuttos
de Philippe, a dar o. s.eu parecer favoravel ao hesp&nhol
e o corao s bespanholas. )n 'J'I r-' :f
Consolidado o domnio de Philippe II em Portugal,
Joo Esteves, sem mais cicatrizes das que o negro lhe
fizera com mal certeira faca, foi para sua casa do Minho,
escoltado le homens armados a expensas d'elle; porm,
como saudades de Madrid lhe afeiassem os e
da sua tt.ldeia, deixou Leonor empenhada no con-
certo dos bens desfalcados e foi para Hespanha rebater
a cedula ou carta que tinha recebido de Christovo de
Moura; bem que sua alma, como cousa infamissima, se
dsse e no .vendesse a astell. (1)
::)t;: ('
1 n.
(I) Eram as cedulas uns assfgnados com que os portuguezes
vendidos a Castella se aeviam apresentar, vencida a contenda,._
O senhor do pao de-Nines 169
"( Em Pouve correram a margosos os dhts de Leonor.
No sabia d'entre as quatro paredes-mestras da sua sala,
desde que um -dia, passeando no jardim, viu rente com
o muro a cara de azeviche, e os olhos coruscantes e os
beios em carne viva do negro Vasco, d'aquelle negro
das suas confidencias, a perguntar-lhe:
-Ento sempre foi certo morrer no captiveiro o seu
priminho Ruy, snr. O. Leonor?
fugiu e o negro sumiu-se. L sabia o porqu do su-
midouro. -.. v ,f ..
Ainda sahiu outra vez a uma festa de igreja a Santa
Maria de Abbade, perto de sua casa. Mas, n'um inter-
vallo de silencio dos--padres cantores, ouviu um1 voz
plangente que dizia: Um Padre-Nosso e uma Ave-Ma-
ria por alma do fidalgo de Nines, que morreu captivo
em Marrocos. o q
Algumas mulheres soluaram, rezando. Sobre Leonor
convergiram muitos olhos. Estava pallida e com a face
cabida sobre o seio arquejante. ii
Depois que nunca mais -sahiu.
Quem pedira o Padre-Nosso fra Vasco, o escravo ..
Entrou-se de medo e afflico. O marido no vinha:
foiella procurai-o. O acolhimento excedeu em desabrido o
que Leonor antevia. j oo Esteves dava a outra mulher
o corao, do qual metade bastaria felicidade sua
esposa. Mas isto um paradoxo: no h a metades de
corao. Ou todo o amor ou toda a indifferena, quan-
do no uma insustentavel impostura, chamada estima .
l o:-q . ..
,. -, . .
para receberem a paga. Quem quizer conhecer os vendidos e
vendidas- de maior quiiate os nomes na Europa portu-
gueza de M. de Faria e Souza, tom. 3.
0
, pag. 119 e 120.
170 O senhot do pao de Nines
.- No. apuro dos ultrajs-e humiliaes, Leonor chegou a
saudades dos seus: medos Pouve .. Foi to acima
na escala das angustias; que um dia rompeu n'eStas vo-
zes em presena do marido: .! .... i..,-;,' 9J 1ur
-O' meu primo Ruy, como eu estou pagando! Ago-
ra conheo quanto mal te fiz!. DeuS' tenha a tua al-
ma em descanso; e, quando estiveres vingado, pede-lhe
que me despense d'este castigo! 1 .1
Joo Esteves esbravejou. Era a vez primeira; que sua
mulher lhe dardejava to act:rada affronta. Recebeu-a
.elle na conscienda de sua infamia e sentiu-se alanciado
na .&cS.J ''. .. , ii
Foi outro negro que Leonor levantou na sua
. .: t m "f. , .. r
D'ahi por diante, o algoz quebrava 9 silencio com o
insulto e sovava aos ps a memoria de Ruy Gomes de
Azevedo, infamando-o de co arde e incapaz de lhe dis-
.putar a mulher que amava. r!' rm l'e
-Se te elle queria vociferava o senhor. de
Pouve- porque te largou to facilmente minha von-
tade?! Ou te. queria mui pouco ou a covardia era maior
da marca-! E, se o amavas, que filtros te dei eu? Rau-
zei-te? ameacei-o a elle? requestei-te muito tempo? fui-
me lagrimar aos teus ps? . No. Meu tio que me
levou de rastos, atando-me gal do teu ouro, que me
no serve seno de peso no peito e mais nada. Que me
faz a mim a tua .riqueza?. Por tua causa, fui atassa-
lhado do ouvidor, que j est no inferno! Andei fugido
e suspeito de assassino, por ter desaffrontado a honra
dos meus e a tua! Ainda vens agora lembrar-me Ruy!
LeJllbras-m'o, como se eu perdesse muito, sendo tu d'elle
O senhor do pao de Nines 171
e no minha! fosses para elle quando o ouvidor te foi
buscar! Quem te quitou ?
Leonor cabia em joelhos, pedindo ao Senhor que a
remisse de suas penas. 1 oo Esteves, quando assim a
via desafogando n'aquelle chorar, que Deus ainda lhe
esmolava, sabia escarnecendo-lhe as exclamaes.
foi ella, a final, quem pediu ao marido que a deixas-
se voltar ssinha para Portugal. A meia volta, estavam
preparadas as liteiras para a jornada. 1 oo Esteves via
lucidar-se-lhe dia novo de liberdade cheia, com muito
sol para o corao e calor para reaquecer os espritos en-
torpecidos no cansasso da libertinagem. S e rico! No
vigor dos trinta e quatro annos, em terra, e n'um tem-
po em que at aos cincoenta e at aos cem como n'ou-
tras terras todo homem endinheirado podia chover ouro
sobre os tectos bronzeados das Danes, Joo Esteves
no se trocaria por jupiter.
Recolhida casa de Pouve, D. Leonor Correia am ..
parou-se da cruz do Salvador e comeou vida de pe-
nitencia, como se a no trouxesse de Madrid mais que
muito expiatoria. Rodeou-se de frades, que lhe ensina- .
'ram o reflorir da alma na macerao do corpo. Verda-
deiramente, Leonor Correia, ao sentir-se velha e ver-se
alvejante de cans, antes dos trinta e cinco annos, prin-
cipiava a enlevar-se em raptos de amor divino.
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XIX
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Vasco- o escravo
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Quem tiver versado a historia dos vinte annos se-
quentes usurpao de 1580; de Joo Pinto Ribeiro,
de Salgado de Araujo, de frei Santo Agos-
tinho, do. conde da Ericeira e dezenas de mongraphos
d'aquella nefasta epocha, tiver sabido as atrozes vingan-
as dos ministros de Castella exercitadas sobre os parti-
darios D. Antonio, como a permanencia
de Ruy Gomes de Azevedo, por cinco mezes, no Minho,
foi to smente sabida das pessoas que deram guarida
ao prncipe homiziado. Ninguem vira o senhor de Ni-
nes, seno os cruzios, que j lhe tinham suffragado a
alma no seu mosteiro. O povo das aldeias, que assistira
aos responsorios, nunca mais se lembrou do bemquisto --
fidalgo que no fosse para lhe rezar como a martyr dos
infieis da Mourama. Tambem Leonor Correia o conside-
rava to morto, que raro dia, 'depois da sua exaltao
mystica, deixava de assistir a uma missa por alma de
Ruy Gomes, durante a qual as lagrimas eram o mais
tocante e mavioso testemunho da -sua mgoa:; ..
174 O senhor do pao de Nines
Dous annos de soledade e melancolia, de orao e je-
juns, de cilicios e esmolas rodearam no viver da esposa
de Joo Esteves Cogominho. A' proporo que as absti-
nencias e maceraes lhe iam adelgaando o involucro
material, o esprito cobrava certa lucidez, tirava para de-
vaneios do mundo desconhecido, voejava com azas ethe-
reas e sentia os jubilos costumados em todas as almas
febricitantes de affectos celestiaes. D'ahi lhe succede-
ram umas preoccupaes e visualidades, nas quaes o fra-
de seu confessor entendia que algumas faiscas de amor
profano tinham entrado subrepticiamente. Era o caso que
Leonor cria ver a imagem, a sombra, o phantasma de
Ruy Gornes, no torvo e ameaador, antes compadecido
e indulgente, ora chorando com ella, ora contemplando-a
com amoravel tristeza. O frade director espiritual que-
ria ver n'isto um amor posthumo por uma das partes,
e, alm de posthumo, de offensa lealdade-
conjugal: Por onde, rogava muito rogada sua filha es-
piritual que espancasse vises similhantes com muitos
actos de f e esconjurios, ao sagacissimo demonio, que
lhe andava negaceando no phantasma de Ruy Gomes
de Azevedo. Outro frade de S. Francisco de Guimares
era de parecer que o avejo do morto pedia missas, si-
gnal de estar penando no purgatorio. Leonor mandava
dizer muitas missas; e, nos seus colloquios com a viso,
pedia-lhe que, ao entrar na bem-aventurana, lhe dsse-
um signal.
E, com a alma ateada n'aquelles incendidissi-
mos arrbos, todo o corpo se lhe ia desfibrando,. no ti-
nha sangue seno para lagrimas nem resto de formosu-
ra que impressionasse cousa que no fosse phantasma.
Em 1598, Joo Esteves veio de Hespanha ajuntar
O senhor do pao de Nines 175
dinheiro que pendia da assignatura da esposa, e pasmou
de a ver mumificada e.secca de fazer medo. Fallava-lhe;
e ella escutava-o sem o entender.:Ao tocar-lhe nas mos
gelidas, o cadaver galvanisado retrahia-se, como do pru-
rido de uma OSga. 'T J orrr rt,. t I
Era odio ao esposo e amor ao phantasma ; era a re-
pulso da mais leal esposa que ainda tiveram espectros_
O senhor de Pouve, esquadrinhando o viver de Leo-
nor, soube que dous religiosos principaes entre outros
muitos visitavam frequentemente sua casa, onde se di-
zia missa quotidiana. Entendeu que a mystica lhe are-
ra o juizo da esposa. No se consternou com isso nem
impediu a influencia dos franciscanos e carmelitas. Dei-
xou-a, e foi. para onde as mulheres eram menos asceti-
cas e diaphanas pelo desbastar das
Passados dous annos, recebeu Joo Esteves a nova
de que sua mulher queria vender o que herdra de seus
paes para fundar um convento de carmelitas descales
na sua casa de Roboredo. A lembrana pareceu-lhe
humana e juridicamente parvoa ao marido. Como ven-
deria sua mulher os bens- communs? Quem lhe alvitra-
ria to estolida piedade ?
No respondeu ao aviso do prior carmelitano.
Volvidos mezes, outra nova-: sua mulher queria reco-
lher-se n'um mosteiro, separando-se judicialmente do ma-
rido e levantando seu patrimonio, visto no haver suc--
cesso.
Isto era grave, porque era a pobreza.
Joo Esteves weio a Portugal. Entrou no pao de
Pouve. Encontrou um frade e despediu-o com ameaa.
de o Jazer atagantar pelos lacaios. fez correr o boato de
que escorcharia quantos frades lhe entrassem na casa.
176 O setzhor do pao de Nines
Poz atalaias volta dos seus domnios e tratou de co-
brar assignados da mulher para verdadeira ou fraudulo-
samente alienar os bens; . , rrt.} o r
D. Leonor no assignava nem discutia.
O seu responder era no. Um no rspido, secco, sel-
vagem como de creatura que perdeu o afinado da voz
com a .prtica .de dialogar com phantasmas.
O marido,. no extremo da impaciencia, exhaurido o
. aril da brandura, -quiz violentai-a a escrever seu nome.
Leonor cqrreu balaustrada que abria sobre os campos
e gritou. Os aldeos, que lhe chamavam csanta, acu-
diram em barda. O fidalgo, acaudilhando os lacaios,
atravessou-se populaa com a espada nua.
A esse tempo, o religioso expulso, a quem os campo-
nezes tambem santo, dizia no adro da
igreja que o homicida do .ouvidor: de Barcellos, o traidor
que se vendra a Castella, o causador da morte do fi-
dalgo de Nines e da virtuosa D. Thereza, viera de Ma-
drid a matar sua mulher. E, entrando ao templo, pegou
de um crucifixo e sahiu, bradando :
-Defendei a fidalga, defendei a vossa bem feitora,
que nos annos da fome vos perda as rendas e vos man-
da as mzinhas quando estaes doentes! -
D'ahi a pouco, repicavam a rebate os sit1os de tres
freguezias; e, no concurso de pevo volta da casa de
Pouve, via-se o negro de Nines, o escravo de Ruy Go-
mes, perguntando a uns e outros se era fogo ou ladres
no pao do fidalgo. 1d01 .. ''
Revolvia-se a plebe sem chefe de um para outro lado,
vozeando ; mas ao direito dos alterosos cancllos do pa-
teo no ia alguem, porque s criados de Joo Esteves,
[J .
O senhor do pao de Nines 177
-com as escopetas engatilhadas e abocadas cara de
quem vinha, desmaiavam os mais corajosos.
-Mas que querem vocs?- perguntava o preto.
-Queremos tirar das mos do fidalgo a senhora que
. eU e est matando !
O preto sorriu e disse :
- L se avenham. Cuidei que era outra cousa.
Se no fosse ella, vivia o meu senhor ! Agora se
aguente .. Deus bem sabe o que faz Ora venham
c vocs, que eu vou contar-lhes tudo. '
Reunia-se o povo volta do negro, qcando j oo Es-
teves, surgindo n'uma janella, bradou:
-Eh! d'ahi, villanagem!.
E, desfechando um arcabuz ao meio da mole popular,
cravou um pelouro nas costas do negro. Depoz esta se-
guiu-se uma surriada de arcabuzadas, j seperfluas, por-
que o gentio sumira-se de modo e to depressa, que pa.
recia ter sido engulido pela terra dentro.
Mas o preto no. Vasco ficou no sitio onde o feriram, ,
em p, a olhar fito na ja'nella, a apalpar o lugar ferido
e a dizer entre dentes :
- Se eu escapar! ..
foi para casa por seu p e
Carnadura de negro e cirurgia de um velho soldado
da Azia deram com o pelouro fra dos musculos inter-
costaes, e fechou-se a ferida. Mas o preto, assim que o
soldado o deixou, tomou a bala entre os dedos, rolou-a-,
pesou-a de mo em mo, ajustou-a bocca de uma ca-
adeira de seu amo e disse :
-Cabes? muito bem . Has-de ir para quem te c
,. mandou! Veremos se entras melhor do que a cuchil-
la ! . _.
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o que era um negro quando precisava ser homem
'
As propriedades de Nines, alienadas por D. Thereza,
tinham sido vendidas ao doutor Francisco Pereira Cal-
das, de Braga, pae de Gabriel Pereira de Castro.
O doutor Francisco Pereira tinha sido, em Braga, o
mais ardente propugnador dos direitos de D. Antonio
cora. D'elle, como douto e estimado do povo, se temia
o arcebispo D. Bartholomeu dos Martyres, e to sobre-
saltado andava, que, ao visinhar-se o prior do Crato de
Aveiro, enfardelava o arcebispo a trouxa e a conscien-
cia de patriota para se passar ao seguro de Castella.
Infestado o territorio portuguez por vinte mil soldados
de . fra e alguns milhares de traidores de dentro, o ar-
<:ebispo mandou processar Francisco Pereira Caldas, o
qual previdentemente se tinha homiziado.
Obrigado a extraordinarios dispendios em reinos es-
trangeiros, o .. pae do pico author da Ulissea mandou
,
vender as propriedade; compradas a sua prima D. The-
reza figueira. Gonalo Correia as comprou e Leom,r
sua filha as ajuntou ao seu grande patrimonio.
180\. O senhor do pao de Nines
Estas prQpriedades queria j oo Esteves Cogominho
vender agora pelo qudruplo do que seu sogro as tinha
havido. Se D. Leonor, dobrada pelo medo, assignou ou
prometteu assignar a venda, no sei. E' de crer que sim,
attento o desamparo em que se via dos parentes e dos
frades. O sabido que j oo Esteves, seguido dos com-
pradores, andou mostrando as terras; e, chegando s
hortas circumpostas ao pao, as indigitou como suas.
O escravo, que ouvira a falsidade, sahiu ao patim da
casa e disse que sua senhora D. Thereza, quando ven-
dra as terras para o snr. Ruy, lhe dissera que
nor vendia a casa nem as hortas.
- Quem te chama aqui, macaco vil?- bradou Joo
Esteves. ,
-Vim eu a dizer a verdade. Vossa merc no dono
d'isto. Venda o que seu.
O de Pouve fez de galgar as escadas, mas
os lavradores prudentes lanaram-lhe as mos respeito-
samente, lizendo que o que fosse havia de constar das
esc ri pt u ras.
-.Mas deixem-me esRlagar aquelle nojento co ! -
dizia o fidalgo, sacudindo-se das mos dos lavradores-
Cuidei que j no te achava aqui, prro!
- C esto_u, disse Vasco..:_ e o pelouro c
est tambem. Custa a morrer! ..
..
Joo Esteves espumejava de ira e o negro estava se-
reno, encostad esquadria da porta_ .
. Lograram os lavradores retirar o fidalgo, desconfiados
de que o preto era homem para lhe malhar um .tiro,
suspeita bem assentada . nos precedentes de Vasco.
O marido de Leonor Correia, apartando-se dos lavra-
dores, desandou pelo mesmo ca.minho c en tro.JI s
O senhor do pao de Nines
/81
tas de Nines. O escravo, distrahido no trabalho de ca-
var, deu tento de Joo Esteves; ao saltar por sobre um
baixo tapume de buxos, com um punhal na tyto con-
vulsa. h
- Vem mal aviado, snr. fidalgo!- disse o preto-
Olhe que est no siti onde morre, se no muda de
rumo! '-
Cresceu sobre elle o raivoso aggressor. Vasco assen-
tou-lhe de leve a p da no peito como para sus-
pender-lhe o impeto do ferro e disse-lhe:
-fidalgo, no se atrigue, que eu no o mato por-
\.
que no quero! V-se- embora com Des. As hortas' no
so de vossa merc ... Isto dos herdeiros de meu amo,
o snr. Ruy Gomes. Vossa merc no herdeiro d'ene,
que eu saiba .
Insistia o furioso nos arremssos com o ferro e o preto
seguia-lhe com a sua segura defeza os movimentos. De
repente, Vasco deixou cahir a enxada, e pe um pulo o
apanhou e levou debaixo, arrancando-lhe o da
mo.
Desfigurou-se. Era o tigre de Africa, peiorado pelo ..
que ahi ha para maior horror na fera humana assanha-
da. Deleitava-o infernalmente aquella preza que lhe es-
cabujava debaixo dos joelhos de ferro. O sangue regol-
fava-lhe nas cavernas dos olhos esbugalhados. Cevava-
se-lhe, a vl-o espernear, a sua fome d'aquella vida que
trouxera duas mortes casa de seus amos. Via tudo, o
negro, instantes. Via o seu amo a rir no ber-
o e a no captiveiro. Via sua madrinha a
as arvores de seus avs e a chorar abraada s que seu
filho plantra. Via tudo como o veria molosso, com
as fauces na gargant do homem que lhe houvesse ma-
/82 O senhor. do pao de Nines
o amo. E parecia demorar-lhe a vida para sentir
bem no joelho o desfazer-se do corao. No b tinha
ainda ferido, no queria feril-o. O esmagai-o era-lhe
maiores mais longo o aspirar o acre do sangue.
No queria matai-o, sem pensar no modo de lhe espre-
mer entre os dedos recurvos lima por uma as fibras da
vida. . No queria, mas j oo Esteves estava estrangu:.
lado.
Vasco levantou--se, olhou 'Volta de si e passou o pu-
nho da vestia pela fronte. A enxugar o suor ? No : as
lagri mas ! 1
Despedia-se da casa onde entrra aos quatro annos,
da memoria de seus senhores, de uma esperana que
em sonhos lhe fallava de seu amo voltar ainda ..
- Agora. . . estou frro !
Disse elle e sahiu do pao de Nines .
t
I 1
n
XXI
"Renexes sobre os pretos e o mais que se disser
N'aqueue' tempo, ~ s escravos eram
1
as 'mais desditosas
e infimas creaes de Deus. Os pr6ceres, os grandes da
_ bitola dos Cogominhos, matavam impunemente os ou
vidores. Mas, se acontecia o negro ajuntar sua condi-
-o social de besta a condio humana de lera, os fidal-
gos morriam s garras do negro, e a mo da Providen-
cia abria reconcavos de montanhas, gargantas alcantila-
das de despenhadeiros por onde os aguazis e verdugos
-no iam desmontar os latibulos dos escravos. No Minho,
principalmente, a quantidade dos escravos e a barbarie
dos senhores no poucas vezes se conflagravam de mo-
do que nem sempre os proprietarios da besta ficavam de
cima.
J
As cordilheiras do norte a miudo appareciam infesta-
das de joldas de salteadores, recrutados na raa escrava;
-e raro socio d'aquellas campanhas temerosas se alistava
sem levar as mos tintas de sangue. ~ ' i s t o que os
pretos e mulatos se no pareciam com os pacientes be-
184 O senhor do pao de Nines
zerros, seus irmos, comprados na mesma feira ou ven-
didos pelo mesmo gallego.
Encontrado o cada ver de j oo Esteves Cogominho,.
ninguem curou de bater os mattos em busca do mata-
dor. Poucos homens no ousariam defrontar-se com p
terrvel negro de Nines; e os necessarios para uma mon-
taria no os tinha a terra nem os chama v a longe a
estima do morto. Alm de que, o juizo geral era que
Vasco se tinha ido ajuntar a uma cabilda de ladres
que estanceavam por Barroso e desciam como alcateias
de lobos s estradas na quadra das feiras annuaes.
Injustia grave ao sangui ario amigo .pe Ruy Gomes
de Azevedo. Vasco entrou tm Castell, encaminhou-se
Corunha e l entrou na marinhagem de uma nau que
estava de ancora levantada para a ilha Terceira.
No correr d'estes successos, a viuva Leanor Correia
no se descabellava em descomppstas lastimas. Abria a
miudo o livrinho _consolador de Kempis e conformava-se
com a vontade do- Senhor, como as viuvas de em
dia, sem lerem Kempis nem cousa que as distrahia de.
suas I hPm ,f) 20'
O que ella fez, com religioso respeito aos restos de
seu marido, foi mandar construir um d'aquelles dous
caixes de pedra tosca e liza, q1:1e o leitor pde ver no
adro da igreja de Santa Maria de Abbade, encostados
parede da capella-mr. N'um d'esses mausolus est
j oo Esteves Cogominho. No outro logo lhe diremos
que cinzas esperam o. sopro revivente d=1 tuba do ar-
chanjo. , tJ r.n
1
,h
Continuava a estatica viuva a dialogar com o phan-
tasma de Ruy Gomes, mais illuminadamente, mais trans-
portada em deliquios de sobrenatural amor. Allucinava-
'
O senhor do pao de Nines 185
se ao extremo de pensar que os seus dedos lhe tocavam
nas mos em que, ella creandnha, inclinava ':l cabea
para se deixar toucar de flores. Via as flores, o matiz
dos (amores perfeitos, o avelludado candissimo do ly-
rio, o rouxo das violetas que lhe elle mandava do seu
jar.{lim. Aspirava os aromas dos ramilhetes, ia aos sal-
tos como nos seus dpze annos de janella em janella, fi-
gurando-se-lhe volta do pao de Pouve as aleas de
carvalheiras por onde Ruy se andava a pedir s avezi-
nhas que lh'a chamassem para as sombras dos cara-
mancheis das fontes.
Estava, pois, louca? No: estava muitssimo mais des-
graada. Porque, apagada a flamma febril q ~ e lhe allu-
miava o seu mundo fictcio, Leonor entrava na mas-
morra escura da sua razo' e dizia: Mas elle morreu e
foi d'este mundo sem me perdoar! ...
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{J I : I
XXII
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E Rny?
Alm-mar, n'outro hemispherio, tambem um esprito
de homem, congraado com as tristezas, apertando bem
fronte os seus espinhos, J)enitenciando-se sem neces-
sidade de purificar-se para entrar ao corao da justia
divina, se alevantava a Deus n'aquelle alto desferir de
azas para onde o. vai guiando o anjo do infortunio iro-
merecido, porm, no fervor religioso d'esse outro infeliz
d'esta vida no pungiam remorsos nem pavores do in-
ferno. Era dr que presena do Juiz Supremo no le-
vava mais lagrimas, seno as suas.
fira por demais nas foras proorias Ruy Gomes o
po de cada dia. No lh'o dava o seu lavor. As miga-
lhas do seu commercio alguma vez lhe no retornavam
liquido o dinheiro empregado n'ellas. A muita vontade
de trabalhar e exerccio incansa vel das faculdades de
alma e corpo no enganam a fome: bem que a tal res-
peito se hajam escripto excellentissimas maximas, toda-
via pouco nutrientes.

188 O senhor do pao de Nzes
No mosteiro de S. Domingos de Ga era conventuar
um dos soldados illustres do reino que acompanharam
Ruy . n<\ captiveiro. Diogo das Povoas, em perigo de
morte, fizera voto de vestir o habito dominicano, se
ainda beijasse terra de sua patria. Resgatado pelos fra-
des da Santssima Trindade, abraou sua famlia n'uma
aldeia da Beira e foi caminho de Bemfica vestir a tu-
nica branca. Depois, passou India a missionar, e de-
morava no seu convento de Ga, quando Ruy Gomes,
casualmente sabedor da paragem do seu camarada e
companheiro na sejana de fez, o procurou e lhe disse f
quem era. Vinte e dous annos interpostos haviam detido
no aspecto dos dous soldados de Alcacer-Kibir os traos
todos do antigo porte e feies. Um era o frade enve-
lhecido no Peg e no Malabar ; o outro, mais novo na
idade e. caduco no exterior, arguia a
avanada, o desgraado qtre tinha sentido em cada hora
o giar de seis invernos .consecutivos sem sol _interca-
dente. O frade dormira algumas noutes serenas sob o
pavilho de missionaria. nos arraiaes Q.e Jesus Christo i
por isso SQrria contentamentos de alma. O solda-
do do prior; do Crato no provra as douras da paz
desde a perda de um rei at que o outro adormeceu o
som no eterno na igreja da A v e-Maria, em Pariz. Deze-
sete annos sem uma alvorada de esperana! O _"amarei-
lido grandes barbas, que lhe cobriam o ave-
lhentado peito do jubo, era o crestar das Jagrimas cor
rosivas. Ruy Gomes de Azevedo perfazia quarenta e
quatro annos 1600,- quando frei Diogo das Povoas
lhe qizia : \r j
- Tu eras mais novo do que eu, Ruy Grandssi-
mos trabalhos devem ter sido os teus !
O senhor do pao de Nines 189
'"'o a exposio particularisada do sectario I de D.
Antonio colligiu frei Diogo que o seu socio de capti-
veiro entre muitas agonias j tinha experimentado as
-da fome, alli, no centro das opulencias da Azia. Lou-
vou-lhe com lagrimas o desprendimento dos favores do
cruel capito-general de Ceilo; e, em nome de Chris ..
to, cuja imagem tirou do seio para santificar um pedi-
do, lhe rogou que todos os dias fosse duas vezes ao
mosteiro fazer-lhe companhia s horas do repasto.
Ruy acceitou metade do quinho de sopas de frei
Diogo. Travou-se tanto, em seguimento, a convivencia
.. dos dous, que, ou por amor d-'isso ou por fervor de de-
voo quella hospitaleira casa, pediu Ruy que o rece-
bessem como leigo. De boa mente lhe davam o habito
sem patrimonio os dominic.anos; qualquer que fosse,
porm, o embarao e irreso1uo -do cavalleiro de Alca-

cer, certo que se a professar. Esperaria o
amigo de O. Antonio que o successor do prncipe mor-
to, D. Manoel de Pqrtugal, chamasse ainda os fieis sol-
dados de seu pai a restituir-lhe a herana paterna?
No primeiro anno dt, leigo, Ruy Gomes, como frei
Diogo das Povoas acompanhasse frei Francisco da An-
nunciao em servio do instituto e da republica aos
reinos situados na costa do Peg, pe<;iiu licena de
acompanhai-os. <
foi. Elle e os frades foram os primeiros que palmi-
lharam com habitos sacerdotaes as terras de J angom,
confinantes da Tartaria. Chegados ao seu destino, en-
tendeu Ruy quo outra d. evangtlca frei Fran-
cisco ia exercitar to longe do seu mosteiro como do
seu officio de mensageiro de jesus._
N' aqueUas paragens demorava um reino chamado
190 O senhor do pao de N ines
'
I
Arrao, grande principado. O rei d'este reino salvra
da forca um mercador portuguez, de nome Philippe de
Brito de Nicote, captivo em Chandeco. Chamou-o a
conselho seus particulares negocios, nomeou-o seu
ministro, e deu-lhe o cabedal e governo de uma fei-
toria em Sirio, ilha que media cincoenta leguas em
volta. Brito curou de levantar uma fortaleza, pretextan-
do acautelar-se de salteadores. Concludo o traioeiro
intento, vai a Ga. offerece ao :viso-rei a fortaleza e en-
trada no reino do seu bem feitor. O viso-rei Ayres de
Saldanha acceita-lhe a menagem, d-lhe honras de ca-
pito e urna sobrinha sua para mulher. Durante o es-
pao da ida e volta do perfido feitor e ministro,' o rei
atraioado e suspeitoso assaltou a fortaleza, que os de
dentro defenderam, capitaneados por Salvador Ribeiro,
que, na ausencia de Brito Nicote, se fezac clamar rei do
Peg, depois de muit.as batalhas e to prsperas quanto
cruelissirnas victorias. (1) O legitimo rei, porm,-con-
soante o que l na lndia os portuguezes chamavam le_
gitimidade - era o primeiro constructor da fortaleza, o
traidor por primazia e o Nicote que, no di-
L l.ill I
\b o
<d O meu a'fuigo J. Pizarro, Salvador Ribeiro
em maviosas trovas, d-o como digno de um poema que cele-
brasse o seu illustre nome, e perpetuasse a memoria de suas pro-
digiosas faanhas e mais extraorJinarias virtudes>>. E acrescenta:
Quem ler as minhas singelas trovas dar tardio galardao de
piedade ao heroe do meu romance; commigo derramar algumas
Jagrim.as de saudade sua memoria; e ellas daro refrigerio s
cinzas que uma criminosa ingatida<1 tinha requeimado. Peo
licena ao meu illustrado amigo para lhe observar que o maior
obsequio que podemos fazer S de Salvador Riheiro n!to
1

O senhor do pao de Nines
J(Jf
zer de frei Luiz de Sousa, subira de condemnado para
a forca a ministro real, e de pobre mercador a rico e
poderoso capito de guerra. (I) Esqueceu ao amno.
historiador dizer que Philippe de Brito Nicote, filho de
Lisboa e de pai francez, comera em carvoeiro, nego-
cira depois em sal e acabra. . . como logo de fugida
se dir.
Discutiram os theologos em Ga se a traio de Brito
era acceitavel luz da santa religio e da lealdade por_
tugueza. Os theologos decidiram que sim; e, no intuito
de colorirem a perfidia com os interesses do commer-
cio, enviaram ao Peg o frade dominicano. frei Fran-
cisco da Annunciao insinuou-se na boa vontade dos
reis revoltados contra os invasores ettonseguiu tudo que
pediu.
6

emtanto, o leigo Ruy Gomes, informado das vil-
lanias de Philippe de Brito, e presente s atrocissimas
cavilles COil\,que frades e capites illaqueavam a pro-
bidade do principe gentio, rompeu em clamores pouco
menos de publicos contra Nicote. indigitando-o como-
digno vassallo do rei usurpadorP. que; pela infame faa-
nha, lhe mandra brazo de armas. (2) Subindo no braU
r(
. "' . '
as remexer. O epitheto de iJ.Iassinga, com que o poeta o conde-
- cora e elle se quiz nobilitar, fundado na degolao
do rei d'aquelle reino, uma alcunha mais para vituperio doque
para glorificao. Manoel de Faria e Souza, quasi contempor.ai-.
neo de Salvador ,Ribeiro, conheceu bastante e viu lucidamente
os heroes do padro de arito Nicote, de Sebastio Gon,alves
Timba, de Diogo Soares de Mello, de Salvador Ribeiro e ou-
tros.
(1) Historia de .S. Dominros, tozv . 3.
0
, pag. 351.
(2) Historia citada na mesma pag .
192 O senhor do 11ao de Nines
do vehemente de suas apostrophes at toada de pro-
pheta, vaticinou affrontosa morte a Philippe e desastroso
fim aos cegos ministros d Jesus, que, longe de lhe re-
provarem a torpe deslraldade a quem lhe dera vida e
riqueza, o .andavam acobertando com a bandeira de S.
Domingo3. .. . ' l
frei Diogo das Povoas debalde quiz abafar-lhe os im-
petC?S da eloquencia, que o leigo propriamente no podia
refrear. O frade mensageiro lanou-o de si com desa-
mor; e Ruv Oomes, deposto o habito de-leigo nas mos
do amigo, que lh'o recebeu com muitas lagrimas, sahiu
das costas do Peg e j em 1604 se no sabia memo-
ria d 'elle em Ga.
.. O fim do ingrafb ministro do rei de Arrao qual-
quer animo, crente na justia do cu, podra antevl-o,
sem illustrao prophetica. No obstante, , muitos dos
' que lhe assistiram ao ultimo desastre se lembraram, em
1613, de umas vozes soltadas com espantoso animo por
um leigo dominicano, cujo nome j ento ninguem re-
cordava .. Digamds em pouco : foi enforcado na fortaleza
que defendia, a cujas poptas vinham pouco antes ajoe-
lhar os mensageiros dos reis tributarias. Quando a ca-
bea do traidor se mirrC?u na haste arvorada sobre os
adarves, foi arratada a fortaleza: E ficaram as cousas
d'este homem com(.) se fram um sonho .ou sombra de
sonho, (1) diz frei Luiz de .Souza. Tem certo esprito o
chancear do rei vencedor, quando lhe mandou arvorar
a cabea no ponto mais alto da fortaleza-E' para qut'
a guarde bem - (2). Acho menos espirituoso o dicto do
. b - .
(1) Historia de S. Domi11gos, tom. 3.
0
, pag. 453.'
(2) Faria e Souza-Azia Portugue::a, tom. 3., pag. 238.
O senhor do pao de Nines 1()3
mesmo rei (que, bem feitas as contas, sahiu to selva-
gem como o portuguez), mandando metter n'um rio, por
espao de tres dias, para se lavar das manchas de tal
marido, D. Luiza de Saldanha, mulher de Philippe de
Brito. Limpeza oriental, mas excessiva, a meu ver; mr-
mente se o selvagem tencionava, como depois fez, ati-
ral-a cafila das captivas, vendidas em almoeda. No
reza bem d'esta dama o citado faria .. Porque na
memoria dos vindouros- escreve elle- se qualifique a
sentena de que ha-de ser rara a ruina em que mulhe-
res no tenham parte, e se acautelem os que manejam
grandes perigos e se temam das proprias, mister dizer
que a de Nicote foi um dos principaes motivos de sua
miseria. Era de mediana estatura, mas refeita e presu-
mida de formosa, presumpo perigosissima em mulhe-
res, e mais ainda nas que tiveram sua creao em deli-
cias aziaticas e goenses . Contina uma historia que
no faz ao nosso intento.
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XXIII I,
O ermito
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Andava nas ilhas Philippinas um homem, envolto
n'um habito sem distinco de ordem religiosa, tunica
preta de capllo, sandalias, barbas e cabellos intonsos.
No mendigava, mas recebia as esmolas que lhe davam
em paga dos beneficias que fazia aos enfermos. As suas
curas no eram mais milagrosas do que a sciencia me-
dicinal podia por ento operai-as. o valedor dos doen-
tes levava comsigo ~ s poucos livros dos que andavam
entre mos dos phisicos portuguezes na lndia. Se os com-
prou, se lh'os esmolaram, no ponto assaz claro. O
sabido e experimentado pelos enfermos era que o ho-
mem da tunica preta e das barbas alvissimas caminhava
de terra em terra com dous livros,e muits variadas
hervas e drogas em um li, que elle mesmo sobraava.
A' volta d'elle se agrupavam as mes com as rean-
cinhas nos braos e os velhos levados em braos de
seus filhos. O povo em redor dos apostolas da lei de
'
Jesus era um- tocante espectaculo, mas o outro das mes
Jf)6 O senhor do pao de Nines
dolorosas e dos velhos gementes era mais grandioso.
Aquelle homem passava sem nome. Das ilhas Philippi-
nas atravessou longos mares e quedou-se em Macau. Ahi
topou, em 1618, um frade dominicano que o conheceu
e lhe chamou Ruy Gomes.
Era frei Diogo das Povoas.
Este e outros estavam alli apparelhando- se para a
misso na China. Era como certa a morte l dentro.
Aquella investidura apostolica era dada com o adeus
eterno dos que ficavam aos que partiam. Os sequiosos
de Deus, os que se apressavam em vl-o, pediam a mis-
so da China e desde o primeiro passo comeavam a
contar os uJtimos de sua vida.
Frei Diogo das Povoas despediu-se de Ruy e disse :
-At Deus, meu irmo . Onde vaes tu d'aqui?
-A Portugal. .;_ :,
0
, -'l
- Vaes patria, Rl!Y? .... , !! ,
- Vou morrer onde se Deus quer en-
contre ainda o tecto da em que minha me medis ..
se : Aqui expirou teu pae. Horas antes de render o es-
prito, fallou assim: Estava aqui a felicidade, e eu .pro ..
curei-a onde o vicio e o crin;Je a no deixava medrar.
Estava aqui a riqueza e eu andei a tan-
1 a ..... "' "
.. Oi o. rsn ,rn -u '
- Vaes v os teus .... -:-.murmurou o esten-
dendo os olhos saudosos por sobre o mar.
- No t_enho ninguem, amigq.t.J_ :d '
- E eu tenho ainda me. . h a seis mezes que ella
oJ ,,..... I
-vivia .. ul , qu l "" r I
-Tens E vaes .ao martyrio? :)
- xars teu pai e tua me. diz jesus Christo.
-.S _cQm a

go se pde tanto ! ...


. - I .
O senhor do pao de Nines 197
- Eu tenho-a. Ai dos que vacillam e trepidam ! ...
Vaes tu a Portugal, Ruy! ... Se uma hora passasses
na minha aldeia e buscasses minha familia, e minha
me vivesse .. davas-lhe a reliquia do santo lenho que
me ella deu quando entrei na religio. Tenhoa commi-
go. Os ps dos gentios ho de logo pulverisal-a como
aos meus ossos ... Aqui a tens. Se lh'a no podres en-
tregar, se j estiver morta, dou-t'a, Ruy; leva-a comtigo
tua cova! ...
Ruy Gomes pendurou do pescoo a reliquia, deteve.se
olhando muito fito em frei Diogo e disse:
-E porque vaes tu morrer? Eu passei por meio de
rf!gies e povos que no sabem da nossa f, e vo assim
como tu de rosto sereno ao martyrio e levam a certeza
do triumpho no co. Quem lhes ensinou o sacrifcio do
sangue? o anniquillarem-se na morte que a si mesmos
se do ou recebem dos verdugos de outra f? Pensei
n'isto no fundo da minha solido e estremeci do horror
das minhas duvidas. Pareceu-me que mais prestadio
aos homens soffrer por elles do que morrer por Christo.
Ha que annos me deixaste? fui mundo alm com as
mos cheias de beneficies: dava saude aos enfermos; e',
quando eJles me queriam adorar, eu apontava-lhes o
cu, e os resgatados das angustias do corpo entendiam-
me .e sabiam que eu os mandava agradecer ao Creador
do bem que receberam de minhas mos. Se eu lhes
prgasse o Evangelho de Jesus; em vez de lhes minis.
trar linimentos dr, matar-me-hiarn, e commigo se aca-
baria a for do homem e os dons da caridade ensina.
dos pela minha religio. . . Jesus. Christo no quereria
que tu e eu ensinassernos primeiro a caridade e depois
o nome de seu divino propagador? O sangue corno tu
HJB O senhor do pao de N ines
vaes derramai-o no regar arvore de justia e misericor-
dia e amor entre os teusalgozes. Deus acolhe tua alma,
porm que mais santo servio fars ao cu, se com a
tua levares outra alma!. . Oiogo, eu pensei nas mon-
tanhas, le onde o homem- to pequenino avista a im-
De l vi as naes e os vermes ennovela-
dos de cada nao, e disse entre mim: Que lucra Deus
que aquelles bichinhos se despedacem? Todo aquelle
sangue l em baixo ser logo lavado de sobre a terra
por um chuveiro d.a nuvem que vai abrir-se. j d'aqui
no ouo o gritar dos meus irmos. Aquelle brado no
vai mais alto que o bramido das feras nos seus deser-
tos. Porque se matam aquelles ouos volta de uma
aresta que um sopro de vento lhes arrebata ? Pergun-
tei isto sem me esconder de Deus ; e desci das monta-
nhas, onde orava e comia raizes, e lia os Evangelhos,
balsamas da alma, e uns livros que me alliviavam as
dres do corpo e retardavam a morte. Desci, fallei, achei-
me cercado de bons, desgraados . todos porque todos
soffriam ; e figurou-se-me que Deus me dizia : Ahi tens
teus irmos; so almas que eu fiz; esto feitas; no
lh'as refaas. Soffrem porque sabem menos do que tu:
comem a herva que os mata e despresar a que os avi-
ventra, se a conhecessem. Mostra-lh'a. A caridade
isso. Eu disse aos meus discpulos que o thesouro do
meu amor o abrissem para todos. Atira s rebatinhas
os diamantes da caridade. Ciam onde cahirem; ser
teu irmo aquelle que os houver da tua bem-querena.
No scismes nem forcejes por me ver as fr-
mas. Eu sou tudo em que nasce um gro de alimento;
sou tudo em .que bate um raio de luz; sou o que sou.
A religio de meu Pai uma milcia valorosa, uma ba-
O senhor do pao de Nines 19rJ
1alha s legies perversoras da ignorancia, um arranca r
incessante de almas em trevas para este sol que lhes
aquece e desabrolha os entendimentos. No te affrontes
com o erro, porque levas no pulso a minha cruz. Pre-
luz-lhe primeiro os bens da redempo; mostra-Ih'os pra-
ticamente; depois de lhes dares o po, ensina os famin-
tos a pedir-m'o. A tua morte que aos verdugos,
Diogo? 1nt: rJ .rr J r.,
O frade no respondeu e disse entre si :
-A desgraa no o perverteu, mas tentou-o. No se
perder esta pobre alma, porm a razo vai perdida!
Abraou-o e disse-lhe :
-Meu irmo, lembrar-me-hei de ti na hora do mar-
tyrio. Pedirei ao Senhor que te ampare.
-Pede .. -murmurou Ruy de Azevedo-pede-lhe
que nunca me deixe cahir em tenta de ferir de dr
o seio dos que teem de Deus a vida e a morte. Estes
so os meus irmos, e entre estes so malditos os que
trazem_ para aqui o sermo da montanha escripto nos
ferros das lauas e dos pelouros. No vs entre elles ao
martyrio, porque o perfume do sangue assim despresado
um rendimento sacrilego. Diz a estes selvagens do
-occidente que deixem ao indio a sua cabana, que um
testemunho vivo de que Deus deu ao que a tem uns
-palmos de terra e a scien:cia de cultivai-a, e a paga do
suor que lhes cabe da face de sol a sol. Diz-lh 'o a elles.
Evangelisa aos christos ; morre, se anceias o supplicio,
s mos d'elles. jesus Christo foi assim. Quiz ser morto
s mos dos que tinham lido Moyss e os juizes. No
procurou a cruz entre os barbaros. O teu sangue inu-
til, Diogo!
As ultimas palavras foram ouvidas por tres dominica-
200 O senhot do pao de Nines
nos companheiros de frei Diogo. Um d'elles, accezo em
ira santa, disse:
-.v ade retr, satan I a
Outro murmurou:
- E'! herege este homem ! De onde vem e quem ?
O terceiro maravilhou-se de ouvir aquillo proferido-
em linguagem portugueza por um homem que tinha na
lndia, alli a mil leguas distante, um purificado crysol -
a inquisio! No disse isto alto, porventura no sauda-
vel intuito de no afugentar aquella alma to carecid&
de recaldeao na fornalha de Ga.
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O vidente
Duas naus carregadas, ptimorosas e das mais ricas
que viram os mares indianos, sahiram a barra de Oa
no 1.
0
de mro de 1621-.
Uma era a nau capitania chamada Penha de Frana:
a outra era a nau Nossa Senhora da Conceio. N'esta
se embarcra Ruy Gomes de Azevedo, no mesmo dia
em que chegra de Macau. ~
Ao cabo de cincoenta e tres dias de viagem, deram
vista do cabo da Boa Esperana. Seguiu-se logo tor-
menta de quarenta dias, nos quaes pairaram sem poder
passar o cabo. ~
Todos os passageiros olhavam reverentes o ermito:
algumas perguntas lhe fizeram sobre os lugares de onde
vinha. Ruy respondia quanto convinha a satisfazer em
pouco a muita curiosidade das damas e fidalgos.
Um s dos passageiros se entretinha mais de espao
com elle : era frei Oregorio, frade franciscano, ancio de
fa.mosas virtudes j notorias na lndia a Ruy Gomes, e
202 O senhor do pao de Nines
mrmente na passagem de Ceilo para Ga, onde se
viram, bem que ao frade lhe no acudissem reminiscen-
cias de to venerando quo triste aspito.
Fallaram uma vez de Ceilo e do seu capito-general
de 1598.
-Que mau acabamento foi o do inr. D. 1 eronymo
de Azevedo ... -disse frei Gregorio.
-Acabou mal?- perguntou Ruy.
-Pois no sabeis?
- Sei que elle era ha seis annos viso-rei da India.
-Quando to alto o vi. ..
-Deveis esperar que fosse mais funda a quda ..
Que riquezas amontoou ! . . . J antes de viso-rei era to
abastado, que, dizendo-lhe D. Nuno da Cunha que,
apesar das desastrosas perdas de sua fazenda, ai.nda
possua quatrocentos ou quinhentos mil ducados, D. je-
ronymo lhe respondeu: S em bestas possuo eu isso.
Duzentas mil _cabeas de diversos animaes teve elle!
Vede, pois, irmo! D. jeronymo de Azezedo, apenas
entrou no Tejo em 1617, foi preso e levado ao calabou-
o do castello. Assettearam-no de escarneos e injurias;
despojaram-no . de tudo ; morreria de fome, se lhe no
acudissem os padres da Companhia de Jesus, em res-
peito memoria do martyr lgnacio de Azevedo, irmo
do desvalido preso: Morreu e no deixou de si quanto
abastasse a um pobre entrro! Nem um parente sahiu
a venerar e cobrir aquelle cada ver! Os jesutas lhe man-
daram a mortalha e fizeram os responsos ... N'este mor-
rer assim, affrontado e. indigente, cumpriu-se uma ini-
quidade monstruosa dos h o m e ~ s ou um adoravel decre-
to da Divina Providencia. Os juizes humanos coloraram
tanta crueza com arguil-o de no haver combatido as
O senhor _do pao de Nines 203
naus de Hollanda. No podia ser, no se punia to acer-
bamente e to sem provas uma culpa desigual ao casti-
go. do cu! Se soubesseis o que elle fez
por aquella costa de Ceilo!. . . As crudelissimas vin-
-ganas que tirava de gente quieta, de pobrinhas mes
que esperavam a morte abraadas nos filhinhos! . Se
visseis ..
-Sei e vi-atalhou Ruy Gomes.-No m'o lembreis,
frei Gregorio... jesus se amerceie da alma d'elle ..
A Azia a garganta do abysmo infernal. Por alli se vo
voragem da deshonra os melhores nomes de um Por-
tugal, que existiu, quando eu era moo. Sabeis, porven-
tura, dizer-me quem vai comnosco? Estes semblantes
transluzem uma alegria que me no parece a dos que
levam para a patria mais direitos a mercs que o lucro
antecipado dos servios. Quem so estas damas arreia-
das de manilhas. e estes homens de to variegadas c-
res ? Devem ser ..de grande porte ! ..
- Eu vos digo, irmo-respondeu frei G_regorio, bam-
boando a cabea, como querendo exordiar com um tre-
geito silencioso a ruim conta em que tinha os lustrosos
cavalleiros e as tafulas damas.- Aquelle Pero Men-
des de Vasconcellos com sua mulher e filhos. Mercade-
jou e vai rco. Aquell'outro,. o capito D. Luiz de
Souza,que 1e.va de Orr:nuz duzentos. mil cruzados em du-
cados e mais de mil quinhentos de pimenta. Sabei que
e_sta nau em que vamos leva o presente do rei da Per-
sia para el-rei de Portugal. Nunca sahiu da India nau.
mais rica. D. Luiz o mais homem que, pouco
ha, vivia em Ga. Leva da China camas douradas e
de Ormuz as melhores perolas, os primores da Persia
e a mais cara pedraria que encontrou. em Ga. Aquella
204 O senhor do pao de Nitzes
dama esposa d'e11e; as outras so suas escravas, chi-
nas e japonezas.- Alm est aquella menina cega ... Que
dr me faz vl- a! E' filha de Pero Mendes. Estar aquelle
anjo com os olhos d'alrna cheios de luz divina a ver e pre-
sagiar desgraas n'esta viagem? .. Um que alm est
encostado queiJa pea Gaspar Mimoso, feitor de Ma-
laca: vai muito rico de bizalhos de diamantes. A' minha
vista comprou a Abraho, joalheiro de Malaca, doze mil
cruzados dos melhores. Vo todos ricos ..
-Como enriqueceram?
- Corno Deus sabe. . . e os homens tarnbern. . A
Azia no, clima em que a probidade florea e
que. A honra aqui planta que se mirra e fenece ....
Ouvi dizer que andastes na India trinta annos ..
- Vinte e cinco- emendou o ermito.
- De mais foi para me poderdes dar dous nomes por-
tuguezes que l" deixassem fama de ricos e honrados.
-No os vi, mas sabei que mui pouco lidei com por-
tuguezes e nada me ingeri em suas vidas. O que eu vi
foi catastrophes ingentes, expiaes miserandas, e ..
tremo de ver outras !
' Ficou largo tempo cogitativo e continuou, como se o
dissesse a si em dialogo com revelaes e presagios n-
timos: J "
- A vida no na encareo nem a furto aos decretos
de' Deus. As agonias do afogado, a sepultura no mar,
tudo agonisar e morrer, como l em terra descer de
um leito de -palha pata outro de terra; frei Gre-
gorio, eu no irei vante com esta gente enriquecida na
India.
0
J
- Pois temeis naufragio?
- O primeiro pego de vento arrebatou um homem ..
O senhor do pao de Nines 205
Enguliram-no as vagas... No vos estremeceram
carnes por aquelle desastre?... Aziago de
calamidades medonhas ideia de quem j viu tan-
tas! ...
. -As naus vo s mil maravillias, a mono boa?
Santa Helena est-nos ela pra. . No receieis.
- E iremos l ? .,
5
- D. Luiz de Souza, temeroso das naus hollandezas,
no quer que l vamos fazer aguada, mas o capito
.quer que vamos.
- L me ficarei.
-Para pasto de feras?! -perguntou e_spantado frei
Oregorio.
- fera de mil fauces tragadoras este mar e vo
aqui medradas rezes das que .sle engulir.
De feito, aproou a nau Conceifo a Santa Helena.
Tremulavam-lhe nas azas pavezes vermelhos e bandei-
ras largas. Armaram-se os .cavalleiros e marinhagem,
puxou-se fra a artilheria, apostaram.se os pelejadores,
dispostos a fazer agua, ainda empecidos. por inimigos.
O capito j eronymo Correia Peixoto subiu convez,
como laborar o cabrestante, quando j estava
surta a nau; e. mal chegou ao cimo, um vi-
rador, e logo uma barra do cabrestante, apanhando-lhe
em cheio o peito o matou _instantaneamente.
-Vistes, frei .
7
perguntcu Ruy Gomes
-Dai-me boas esperanas d' ste egundo agour e di-
zei-me se este capito ia rico. , -fJ
- Dizem l em Ga no no havia mai$ rico na
:earreira da India. s
1
, 'T
-:-;-Que pensaes d'isto? . r n t l).
-Meu irmo, penso no de eis, eiJl d'este
206 O senhor do pao de Nines
homem se finar, correr morte infa11ivel n'uma ilha de-
serta e povoada de animaes carniceiros.
- Feras isto que nos crca, frei Oregorio- redar-
guiu Ruy.
- Temido sois por demais. No receieis que Deus nos
confunda com os indignos da sua misericordia.
- Peccador sou tambem e no tento o Senhor, que
sabe melhor de todos que cada um de si.
Ancorou a nau. Ruy abraou estreitamente frei Ore-
gorio e disse-lhe :
- Deus vos leve a salvamento. lG'li
- Pois ficaes ?
-:- fico. Adeus.
l E sahiu a terra -com- os demais. Ao fim de oito dias,
oue tantos p3'5saTa-m ert1- fazer aguada, estavam_ os na-
vegantes embarcados todos, salvo o ermito.
Um passageiro da nau Conceio escreve assim a falta
do ermito: Mandou o capito saber se estava
a gente na nau ou se por descuido ficava alguma
soa em terra; -feita esta diligencia, achou-se que faltava
um ermito que vinha na nau, hom!!m virtuoso e de
boa vida, o qual tinha passado pelo mar do sul s Phi-
lippinas e vinha-se recolhendo para sua havendo
mais de trinta annos que andava fra d'ella: foram logo
com o batel a terra a buscai-o sete ou oito grumetes e
nunca poderam dar com elle: e para a nau lhe
tiraram uma- esmola muito boa de fardos de arroz,
biscouto, de muitas especiarias,= e um machado e cal-
deiro, linhas de pescar,' fuzil e tudo o mais que era
necessario, para poder passar a vida at virem outras
naus que o trouxessem, e isto se deitou em terra porta
da ermida, em lugar de onde elle por fora havia de
O senhor do pao de Nines 207
acudir ; e/ tornado o barco a terra e comeando a
pejar o que levava, houveram vista do ermito e, pe-
gando n'eiJe o trouxeram por fora para a nau; e per-
guntando-lhe qual era a razo porque se queria ficar
n'aquella ilha deserta, respondeu que pr no ver o triste
fim que havia de ter aquella nau. E foi isto tanto as-
sim, que, chegando a nau ilha Terceira, foi o primeiro
homem que d'ella sahiu e em terra se ficou sem se tor-
nar mais a embarcar: tudo- isto foram prodgios do que
depois lhe aconteceu. (I) ..
Ficou, pois, Ruy Gomes de Azevedo na ilha Terceira-.
Agora, em breves linhas, o destino dos mais graudos
passageiros da nau batida por dezesete vasos turcos, em
frente de Cascaes. O mais rico homem de Ga, D. Luiz
de Souza, captivo, n, ferido e separado de sua mulher,
pediu ao arraes da nau capitania em que ia preso que
lhe deixasse vr sua esposa. Trouxeram-lhe D. Anto-
nia. O pranto e a lastima que esta senhora fez, quan-
do se encontrou com seu marido em to triste estado,
como foi vl-o ferido, pobre e escravo, fazia compa-
decer at os mesmos turcos. (2) Ao fim de tres dias,
D. Luiz de Sousa expirou. O. Antonia morreu de peste
, I. h I.
(1) iJJem_orai.'el '("elaam da jerd_a da np onceiapt fUe OS
turcos 'queimaro vista da barra- de Lisbo, e varios succes
sos das pessoas qtte nella calivarllo, com nova discripo d
Cidade de Argel, de se11 governo, e muy notaveis- acotJ-
tecidas n'esles flltimtJs ann'O.s de I62I at 626, por Joo Tava-
res . &> :. atznq de. I627. Encontra -se esta
no complexo de naufragios que formam o 3.
0
c; raris-
simo volume da Historia trgico-mritima. ' ..-'' -
{2) s palavras con1ad'as pertencem citad relao de Mas--
carenhas, um dos 1, -- ' 1l .
208 O senhor df! pao de Nines
em_ Argel, . .:no se lhe_ achando para lhe dizerem uma
missa... . ,-- ,rt :;m
Pero Mendes de Vasconcellos morreu no mesmo dia
que D. Luiz de Souza. Deixou a esposa, a filhinha ce-
ga, e ainda assim formosissima, no dizer de Mascare-
nhas, e mais dous filhos. Um d'estes moneu nos braos
de sua me, o outro levaram-lh'o de presente ao gran-
turco. Quanto me, andou esta senhora desgraa-
dissima, e ainda o : pois vindo da lndia com muita
riqueza, deixando seus parentes, metter-se em uma nau,
e o dia que viu a terra ern, que havia de descansar com
seu marido, matarem-lh'o de uma pelourada, e o filho
mais velho Jevarem-lh'o para Constantinopla a ser tur-
co, o pequeno morrer-lhe nos braos de peste, eJla ficar
escrava, e ter ainda, para maior grilho e trabalho, com-
sigo uma filha -cega e formosissima em poder de bar-
bares; sei que mulher houve que soffresse mais gol-
le fortuna, e hoje os soffre sendo ella e a filha es-
cravas de aduana. . ..
A Gaspar Mimoso lhe tiraram dos sapatos doze mil
-cruzados de diamantes, e veio a I:llOrrer em Argel de
peste, a poucos dias de captiveiro, sem ter uns sapatos
que calar.
E o collucutor de Ruy Gomes de Azevedo?
Quantas vezes, antes que a peste o despenasse no
se lembraria elle do ermito! Bravo e santo
homem. era o franciscano! Primeiro pelejou com esfor-
ado brao e com brados alentadores contra os turcos;
depois, em Argel, curava os enfermos, confessava e sa-
cramentava os a onisantes, esmolava para remediar os
mais reformava hospitaes, ousava entrar
.casa dos mouros a consolar captivos privados da luz do
O senhor do pao de Nines 209
dia, at que, cheio de merecimentos, adormeceu no Se-
nhor.
Ruy Gomes, chegada a noticia do successo da nau
ilha Terceira, disse:
-Meu Deus! meu Deus! que admiravel - vossa
justia e vosso brao omnipotente ! ..
Oh! livre-se a minha alma de conceber assim a jus-
tia do Senhor e a fora do seu brao! No foi Deus :
foram os turcos que mataram aquelles filhinhos nos bra-
os de suas mes. Deus, a querer conservar o nome que
lhe damos de Pai, no consentia que as mes vissem
o espectaculo horrente dos innocentes sem pai a expia-
rem ainda a culpa dos que tinham morrido a vl-os es-
cravos, pobres e ns. Isto de matar mes e filhos pro-
miscuamente s o faziam os generaes portuguezes na
lndia, e os turcos em Africa.
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Ao.
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rr "T!
o assassino de Joo Esteves Cogominho
I.
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Ahi est Ruy Gomes de Azevedo na ilha, onde, trinta
e nove annos antes, cahra ferido, em peleja naval, a ~
lado do cadaver do conde de Vimioso.
Que scismar dolorosissimo ir no pensamento do an-
cio, sentado no vizo das rochas sotopostas ermida de
Nossa Senhora do Loreto! Que vises, que imag-ens,
que saudades lhe negrejam d'alm do infinito cu ar-
queado no oceano! Se elle ver ainda o anjo a toucar-
se das flores de Nines ! Se da velhice ou das cinzas
de Leonor Correia poder ainda a phantasia de Ruy
recompor a formosa que elle vira formar-se, dia a dia,
com tantas graas, tantos mimos, tantas cousas bellas e
adora veis convertidas em mortal peonha de sua vida I
No a esqueceria elle ? Como ella fra seu primeiro e
derradeiro amor, possivel que ainda lhe no gastasse
a lima de quarenta e cinco annos os relvos da ima-
gem no corao? .Se aquelle affecto puro teve um a!tar,
llO manchadO de OUtrO CUltO, porque no ba-de crer-se
212 O senhor do pao de Nines
que h a ahi n' esse peito a lampada sempre acceza ao
ideal da mulher, que de fora ha-de ter o ar, os olhos,
o sorriso da unica, da fatal consagrao de sua alma?
E, depois, a imagem de sua me. As ultimas pa-
lavras, o morrer angustiado da extremosa, a quem elle
podra ter dado fins de vida socegados, o prazer de se
ver chorada, o tumulo beira dos ossos de seu pai ...
Que vai fazer patria? Que devaneio esse de bus-
car o tecto da casa onde nasceu, porque secreto presen-
timento lhe diz que chegado o seu fim? Elle, que
no dir seu nome aos que Ih'o souberam, se ainda vive
algum; elle, que no .tem .de seu cd"ll\; que pagar o ga-
za!hado de uma noute, se a caridade lh'o no der: que
ir ser na sua aldeia? quem o acolher nos trances ul-
timas? quem lhe fechar os <>lhos eesmolr ao cada-
ver o habito dos mendigos?. 1id91 ionn !''- ..... '
Se estas interrogaes lhe inquietam , ... o animo, rte-
nhuma o demovia do-intento ... : ,orotob r
O ermito, acoutado ao alpendre da capella. de- Nossa
Senhora do Loreto,. recebia dos Cntos, senha..
res d'aquellas terras. chamadas, de< S. Pedro, o alimento
que lhe enviavam por um negro; todas- as manhs
noutes. .b '?,.Bni/1 'b .. 10ll r&
O escravo dizia ao -ermito que mUitos- annos tinha
vivido em Portugal. Que seu senhor fra soldado em
Africa e o filho d'elle morrra em Alcacer4 lnRt
Ruy Gomes de Azevedo escutava-o. n'umsilencio de
abstrahido; e o negro, como soubesse que_,o ermito es-
perava navio do reino para se passar a Portugal, "dizia-
lhe: -, 10!'111 . ni' ' '.o srnif
- Se Deus me deixasse acabar ,no na terra
de meus senhores , ... :1 fJJ:> "lhn t ct .
O -senhor do pao de Nines 213
- -De onde eram teus stnhores?- perguntou Ruy.
-Das terras de Vermuin.
---De qual casa n'essas terras?
Do pao de Nines. Ouviu vossa merc fallar de um
fidalgo que morreu em Africa, chamado Ruy Gomes de
.Azevedo? lt'l u o
O ermito era vou os olhos perplexos no preto e ficou
largo tempo sem proferir palavra. Que fora de homem!
que habito de sopesar os mpetos de sua alma ! Reco-
nheceu o escravo amigo, o confidente da sua mocida-
.de, o homem. que conhecra Leonor e sua me! E per-
guntou-lhe serenamente: J. '1nJ> u "'
- Ha quantos annos sahiste d'essa casa?
-r Ha pertc:> de .n:t J 1
Deteve-se Ruy a combinar as epochas e tornou :
. - Porque deixaste a casa de teus senhores ?
... .J"""" Porque ... :. foi uma desgraa que me fez deixar a
:casa;.de meus senhores, quando nenhum vivia j.
' Que desgraa foiP.-volveu com authoridade e pres-
teza o ermito. . .ltt
- Perd-me vocemeci no lh'a dizer, porque s Deus
a sabe .. fiz 'llm crime .. ms . . ... , n.
-Diz. o teu crime; Vasco!- .
. ....,......, Chamou-me- Vasco! . .- balbuciou o negro.
-E' o teu nome? .u
.. . -.. foi esse .. 1 .esse . '. mas ninguem
sabe h'e$ta ilha meu nome.. n.-.nG.
-No temas que te accuse s justias o teu senhor,
:o homem que se creou comtigo: Olha bem em mim ..
Procura debaixod'estehabito Ruy Gomes de Azevedo.
O preto poz as mos convulsivas, tartamudeo1;1, tre-
geitou: de quantos: feitios se :exprime o assombro, cahiu
214 O senhor do pao de Nines
de joelhos diante de Ruy, e quedou-se, por largo tempo,
mudo, empedernido. .n .,...,J
-Ergue-te, Vasco-disse o ermito. Vs que no
morri .. !a!'. tl :1 t ni ' A _,Q
Levantou-se o escravo de salto e disse : .JP
- No posso crer. . . meu senhor morreu ; e: a me
d'elle morreu tambem de paixo ... Vossa merc
me que o snr. Ruy_ 9omes ?.
1
111 .d::t h.;;o
--- De Azevedo. ,. . i' .J ..)t ii!
-Sim... "l.r . ....
-Disse. No .. Procurei-te no pao de Ni-
nes ha quarenta annos, Vasco .. Onde estavas? o
-Onde estava? l..J :;,
1
r:ru. , :1
-Sim: o pao estava deserto, quando o exercito de
Castella entrou em Portugal. u>!
-Deixe-me chorar! -:-e-xclamou Vasco-:- Depois res-
ponderei, senhor. . No morri sem vr meu amo. Eu
sonhava isto. . . Deixe-me beijar-lhe as mos.- So as
de meu amo e senhor Ruy Gomes, so? Pois aquelle
moo to gentil. . . ,..
-E' este velho .. ,; pobre Vasco! querias-me tu mais
novo? Sessenta e quatro annos como os meus passaram
no nos h a mais gentis .. -disse Ruy, sorrindo.
- foi ella que tudo causou .... foi aquella senhora ...
-tornou Vasco. '"''
-A paz de Deus com ella e-commigo .. - murmu-
rou o ermito- Diz-me agora porque sahiste de Portu-
gal? Que fazias em Eastella ?, r ('
.. -Andava cata de Joo Esteves. . do matador de
meus ames e do snr. ouvidor de Barcellos. =tb 't
-Matou-o elle .? : Iu\t h iim :\.Vt.l .11
Vasco comeou uma..longa historia, cuja substancia
O senhor do pao de Nines 215
-o leitor sabe, e completou-a, quando voltou com o re-
pasto do ermito.
Concluida a narrativa com \morte de Joo Esteves
Cogominho e fuga do homicida para as ilhas, Ruy Go-
mes, lavado em lagrimas, disse:
-Vasco, melhor fra que te deixasses morrer s mos
d'elle como eu me deixei a mim. No te havia eu dado
~ exemplo da paciencia? fizeste mal .. Escondido vi-
ves da justia da terra, mas Deus sabe que ests aqui ..
Chro porque no posso louvar o teu zlo. No tive
mais verliadeiro amigo; perdeste a tua paz de conscien-
.cia e arriscaste perdio eterna a tua alma por amor
de mim ... e eis que te no posso dizer: Bem ha-
jas! Tens tu feito penitencia? tens confessado o teu
crime? tens chorado muito aos ps do Salvador?
Vasco, feita breve pausa entre o suspiro e a pala-
vra, disse:
- Ainda no tive remorsos, senhor ..
-Apagada est, pois, a luz da tua consciencia, in-
feliz? 11
- Matei-o porque me vinha elle matar - replicou o
negro - e matava-me porque o no d e i x ~ i vender o bo-
cadinho de terra que sua me no quiz vender, dizen-
do-me: <<Olha se tens c umas couves para eu comer
e ~ mais teu amo. Isto me disse a snr.a D. Thereza,
quando foi a Lisboa esperar vossa merc. Ai! no
vieram comer as couves d'aquella terra cheia das mi-
nhas lagrimas ... No vieram; mas foi elle, o ladro das
alegrias de meus amos, a vender a casa onde meu se-
nhor me chamra amigo ... a mim, o escravo que cui-
dava ser da familia pelo muito que lhe queriam, e pen-
sou que era sua obrigao vingar seus amos ... Remor-
216 O senhor do pao de Nines
sos? eu ! no os terei nunca. Deus justo; o que
eu fiz, senhor, se fosse mal feito, j a consciencia me
gritaria . ~ .. v.,
-Arrepende-te Vasco!- retorquiu o ermito- Pe-
de-t'o agora o amigo por quem ensanguentaste as tuas
mos! Vai confessar teu crime; que ests a poucos
passos do juizo de Deus. . Eu farei penitencia comti-
go ; resgatarei metade da tua divida; velarei as noutes
a chorar porta da misericordia divina. No posso des-
empenhar-me de outro modo comtigo . E's tu escravo,
de teu amo? 'J '
-Sou livre, snr. Ruy, mas escravo sou de vossa
meoc. t
- Seguir-me-has a Portugal. No temas a justia.
Ninguem se lembra de ti nem do morto. Vem; porque
Deus to bom para os desgraados que o no ofen-
deram .. to bom para mim, que me deixar morrer
encostado ao seio do unico amigo. . do teu seio, Vas-
co!. . . :J
O negro, tomado de commoo e ao mesmo tempo
respeito de escravo, hesitava -em obedecer a impulsos
da alma. Ruy Gomes, porm, estreitando-o ao peito, ex--
clamou: a.
, - Deus perdoar o teu crime, alma que tanto me
quizeste ! Minha santa me lhe pedir por ti. . Dous
infelizes, que soffreram to conformados as torturas de
sua vida, podem valer com o Senhor a salvao de tua
alma. Vem commigo; que eu no tenho corao que te
deixe. Quero despedir-me de ti no fim d'este destrro,
que est no cabo. . Que a luz de meus olhos se apa
gue na tua face ! . . . . '
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11
XXVI
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Vivia!. ..
E os sessenta e quatro annos de D. Leonor Correia
de Lacerda o que eram ento? "'
Vivia. d b1l
Palavra que encerra um livro. h
Vivia a esperar a imagem sempre nova do corao
nunca desfallecido. O confidente dos seus anhelos era
um crucifixo. Perguntava a Christo pelo desgraado do
seu amor, quando a febre lh'o no avultava na imagi-
nativa. Tinha sobresaltos de alegria e medo. Chorava
com a consciencia allumiada pelo incendio -do remorso;
depois, pedia flores, enfeitava os cabellos e fechava-se
na recamara, onde a razo alheada lhe figurava Ruy
Gomes, o phantasma, ainda creana como a memoria
lh'o debuxava aos dez annos, j homem, s vezes -sup-
plicante, outras accusador. 1 ., p u
Douda ? u ~ f . 1W
Peior. Vivia-lhe o corao, renascia-lhe o entendi-
mento, _quando a lanterna magica se apagava sob um
218 O senhor do pao de Nines
repentino espessar de trevas. Esccridade e afflico ver-
dadeiramente era-lhe a hora em que ella dizia :
- Eu . Ruy morreu !
Tinha Leonor cincoenta annos, quando um fidalgo,
com prestito de muitos lacaios, parou diante do solar
de Pouve e perguntou a outro cavalleiro:
- Quem mora aqui ?: -
-E' a viuva de Joo Esteves Cogominho.
- Ah !-disse o almirante D. Joo de Azevedo-A
mulher querida d'aquene pobre Ruy ?!
- A mesma creatura.
- Se a vssemos. . . . .: tu
-Pede-se-lhe licena para ser vista de dous paren-
tes. No ser nossa prima?- perguntou o outro via-
jante. t p -
-Deve ser. Vou fallar-lhe em Ruy Gomes.
Apearam. foi aviso fidalga. Sahiu um a to-
mar conta do recado. n
-Diga snr.ll o: Leonor Correia que a procura o
almirante, seu primo, por Lacerdas-disse D. Joo. .
Recebidos e conduzidos a uma sala, de cujo tecto
apainelado pendiam saccos de irrequietos aranhes, como
.espantados de verem gente e luz, tambem os hospedes
se espantaram. J )tt .... ., JhH.S,l., u"::r r
o . frade explicou : e k 1 - '1
L Desde que o fidalgo foi morto, a viuva no voltou
a . esta casa. J l vo vinte annos.. . Nunca mais se
abriram estas janellas. rt .ii .... ) i' A\
-Muito lhe queria ao seu defunto marido esta se-
nhora! ... -observou o almirante.
- Elia chega -disse o frade. "'
Entrou Leonor de par com outro franciscano.
O senhor do pao ck Nines 219
- Snr. minha prima,-disse D. joo-passei acaso
porta de vossa merc e no perdi o lano de a sau-
dar. Muitas vezes ouvi faltar de minha prima snr.
D. Thereza Figueira, que falleceu em minha casa, es-
tando eu captivo em Fez e mais Ruy Gomes de Aze-
vedo, que ella julgou morto e de paixo se finou.
- Que , senhor ? - perguntou Leonor sobresaltada
.....-julgou-o ella morto .. oh 1 . l"
-" - E no tinha morrido-volveu o almirante-e vivia
ainda em 1598, vinte annos depois da batalha de Alca-
cer. Morreu o senhor D. Antonio, eu vim de Pariz para
Lisboa e meu primo Ruy foi para a India. No volta-
ram novas d'elle. Hoje iria eu jurar que morto ..
"j. que morto ?-acudiu Leonor, offegando.
o - No sei, mas s a morte explica o silencio do ho-
mem que to meu amigo foi ...
- - Mas no tem o primo almir.ante eerteza ...
_, - No tenho outra. H
Leonor, como as lagrimas lhe rebentassem subi tas
cobriu as faces, e suffocou os soluos em quanto a an-
cia no venceu o recato e o pejo. 1
, -Aqui vim eu mortificai-a, sem ajuizar que succes-
sos to affastados a podessem consternar tanto, minha
prima ! - disse D. j oo.
A dama, cobrando animo e desatando-se do pie te-
mor que os dons frades lhe incutiam, acercou-se do al-
mirante com vehemencia de gestos, com as faces abra-
zeadas e disse. lhe: u.1 "' r
- Ha-de ouvir-me duas palavras em segredo?
iJ -.Mil palavras, minha prima e senhora! rll'
I -Cumpre-nos sahir- disse o senhor de S. Joo de
Rey, o companheiro do almirante, aos frades.
220 O senhot. do pao de
Esto ss. t.:nf , ,srri n .. 1 .tCi
Leonor pe as mos juntas e diz:
,- Elle vive? '.hr -1' .. Gi I Ul "'v r
- No sei, . . up , " 1 J
- Fallou-lhe alguma hora em mim? G ? 11
- Durante mais de vinte annos,- todos os dias. 1
-Amaldioava-me? nu - . "iOrln'
-No, senhora. No _primeiros mezes,- teve dias de
summa tribulao. Queixava-se quanto-devia; mas-, de-
pois, fallava de Leonor como se lhe sobejasse a .certeza
de que ella j era to:infeliz, que seria barbaridade im-
por-lhe maiores penas. q OJ ,.,, 1 .q ' ., J
-Mas elle vive, snr. almirante, vive ! ... - exclamou.
ella- Tenho pedido muito a Deus que me no-deixe
morrer sem que elle venha salvar minha alma com o
perdo ! . . . Jgim , n.
-Mas senhora! -atalhou D. Joo de Azevedo-
No entendo essa saudade, esse remorso,- esse' desejo
de ver um homem que vossa merc t-o cruamente aban-
donou ... '"' nf l. ln- r.. uo. ,IJ ,s}
- A h ! no me accuse; que farte me despedao eu !::.
Elle no sabia que meu pai chorou diante de meus
olhos e dizia a. cada hora :: Eis-me pobre e deshonrado,
se no casas com Joo Esteves! E eu iui culpada em
obedecer; e castigada logo porque cheguei- a amar o-
homem que meu pai me deu. O que- eu padeci, se-
nhor!. e como eu chamava por ellt .... por meu pri-
mo, em meio dos tormentos da minha expiao! ..
Mas elle vive .. Ruy vive! . Bem m'o diziam osso-
nhos e os delirios!. . Que esperanas ! que anjo da
boa nova me trouxe ! Estar em Portugal ? Querer elle
que eu lhe lave os ps com as minhas lagrimas? .
O senhor do pao de Nines 221
Que me venha perdoar .. Diga-lh'o V dizer-lhe
que me viu assim de , cUtJ. .J M'>
-Senhora !-disse. O. Joo, levantando-a para sobre
um tamborete de espaldar.
Quando a depoz, Leonor tinha perdido o sentimento.
Sahiu fra o almirante onde fallavam os frades.
-A snr.a O. Leonor tem de costume estes desmaios?
-perguntou. "JI r11 q itt? tJP ,omu
. -Muito amiudados; em seguimento de uns descon-
-certos de razo-disse um frade. .r :\ u
- Ser bom que as suas aias a levem ao leito e lhe
dem algum sabido remedio. lh,d1s
- EIJa volta a si logo.-. tornou o franciscano.- So
flatos passageiros. R ... ;b 1 ' . 1 .,si! rr
almirante, que en:trra a queiJa casa impellido por
sentimentos nada o generosos, sahiu. to 'consternado
quanto persuadido de que Leonor, quella to tardia
hora da vida, expiava ainda uma deslealdade da natu-
reza de outras que elle tinha. visto, nem mordidas de
remorsos nem lembradas nos annos decadentes. t
' Quando elle sahiu, Leonor beijou-lhe as mos e dis-
se-lhe : .JJn ..... 2 tU r t'uafq .
-Se eu tiver morrido, antes de elle chegu, pea-lhe
que no me v accusar no dia de juizo."' .. Diga-lhe
que os meus ossos ho-de mexer-se na sepultura, se
elle l. fr, a pedir-lhe o perdo da minha alma 1 .h r
E, desde' aquelle dia; recrudesceram .as vises, exa-
cerbadas de maiores angustias alternadas-tom urnas es-
peranas e jubilos mais que muito significativos de lou-
cura. it t! 1 , , ilO Or:t l ,,
Se um espelho, encontrado sem proposito, lhe mos-
trava o rosto emaciado, os cabellos betados de mehas
222 O senhor do pao de Nines
brancas, os vincos e rugas profundas da fronte, a luz
embaada dos olhos, Leonor retrahia-se, rompia em so-
luos e tapava o rosto como para de si mesma se es-
conder. r t fE< ..
Que significava isto? Que paixo era aquella de se
ver assim repulsiva da formosa de trinta annos antes ?
Era o amor, que vem como castigo ou como demencia:
era o absurdo, que est paredes meias com a razo inin-
telligivel de Deus. Era, para em duas palavras o dizer,
uma cousa que faz suar dez philosophos e faria rir me-
tade de um critico, posto em juizo com o seu imberbe
entendimento na cthedra onde ensina pelas postillas
das paixes correntes e notarias nos botequins.
Um dia, O. Leonor disse aos seus vigilantes filhos de
S. Francisco, muito deliberada, que se- mudava para
Lisboa, onde tinha parentes. Ento que os frades,.
atravessados de penosissima certeza, a deram como dou-
da e tomaram a peito estorvar-lhe o desatino. N' este in-
tento, sem lhe impugnarem o d'ella, foram espacejando
as estaes da jornada, pretextando guerras, motins,
bandJs de salteadores e tudo- mais que a sua commi-
serada phantasia lhes suggeriu.
: Assim se dobaram dous annos, em que os frades,
por vezes, foram a f areles entender-se com os herdei-
ros das casas de e Pouve, por fallecimento de
Leonor. Ao senhor da honra- de Fareles desconvinha
que a viuva de Joo Esteves desatasse a alma das pias
amarras dos franciscanos. !' - b n 1
Verdadeira prova de insania deu Leonor, rompendo
com os frades, ao ponto de ordenar a seus criados que
lhes embargassem a entrada.. Prova de insania, dize-
mos, porque o seu temor de Deus e respeito aos seus
O senhor do pao de Nines 223
ministros devia recrescer desde o dia em que ella, ao
perfazer cincoenta e seis annos, perdeu o vigor, e, como
leza dos ps, entreveceu.
Que velhice! e que solido volta d'ella!
E, todavia, aquelle despojo da formosa de Roboredo,
aquella irriso da soberania das graas, ainda punha
olhos na cruz e exclamava :
- Elle no vem, meu Deus ? No vem ?
Oh! que insondavel agonia n'aquelle interrogatorio
ao crucifixo que ella vira cahir das mos mortas de sua_
me!
Que pedir aquelle to para ser ouvido do Pai mise--
ricordioso ! '

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CONCLUSO
"
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Conclnsio
Em fim do anno de 1622, desceu das montanhas da
Beira o ermito portador do santo lenho de frei Diogo
das Povoas. A me do martyr j tinha ido encontrar-se
com a alma do filho. Ruy Gomes de Azevedo beijou a
santa relquia, entregou-a irm do cavalJeiro de Africa
e disse-lhe :
- A mim me deu frei Diogo este sagrado deposito,
se sua me fosse morta Aqui vol-o dou, senhora;
porque no tenho quem o legar nem longa vida para
c ter commigo. Ensinai a vossos filhos e netos que este
pedacinho da cruz do Redemptor acompanhou seu tio
at pizar terra humida do sangue de martyres. No vos
sei dizer se elle morto, mas nas ultimas naus vindas
da lndia chegou a noticia de que nenhum missionaria
ido China voltou ao seu convento.
Volvidos dias, Ruy Gomes e o escravo oravam
porta do templo mozarabe de S. Thiago de Antas, a
meia legua do pao de Nines. O abbade, avisado de
228 O senhor do pao de Nines
estar em joelhos porta da igreja um ancio coberto
de burel, mandou abrir o templo orao do eremita.
Depois, convidou-o a entrar em sua casa e deu-lhe
uma refeio, que o.peregrino acceitou com a boa von-
tade de quem vinha mendigando pelas aldeias do seu
transito.
Por satisfazer curiosidade do hospedeiro, disse que
vinha da Azia e caminhava sem destino. Contou cos-
tlfmes no sabidos das terras que vira e o estado das
christandades do Oriente. Pediu-lhe o abbade que des-
cansasse uma noute em sua residencia. Ruy Gomes
condescendeu, porque as foras eram-lhe j to diminu-
tas, que o mais do longo caminho viera arrimado ao
hombro do escravo.
Perguntou o peregrino que conventos demo-ravam
por aquelles sitios. t
-A tres leguas d'aqui ha Vairo, de religiosas bene-
dictinas; a ltres quartos de legua est Santa Maria de
Landim, de conegos regrantes de Santo Agostinho.
- Lembr-me de ter visto em Lisboa-disse
um prior d'essa casa ... Era Jeronymo ..
-Da familia de Azevedos- ajuntou o abbade.-
Ainda o eu alcancei j muito velho. Morreu ha vinte
annos ., ou mais. Disseram-me alguns cruzios que o D.
prior acabra de paixo pelo desgraado fim do senhor
D. Antonio, que j ouvi dizer alli estivera refugiado em
Landim. Tinha o D. prior um sobrinho, que eu no
conheCi, illustrissimo fidalgo e senhor que foi do pao
de Nines. Contam os cruzios que ainda o conhece-
ram... J s
-Que ainda conheceramo senhor d"esse pao .. -
perguntou serenamente Ruy Gomes. -r
O senhor do pao de Nines 229
---:-Sim; porque vivem ainda frades que noviciavam
quando o fidalgo de Nines l estudou dentro do mos-
teiro, onde foi credo. Dizem esses que D. jeronymo
no morreu tanto por compaixo de D. Antonio como
por no haver mais novas do sobrinho, que, segundo o
pOvo, morreu no captiveiro, depois da batalha
cer, mas asseveram os cruzios que elle ainda vivia
,quando D. Antonio morreu. ,0 certo que ninguem
deu novas certas d'elle at vir aqui de passagem um
fidalgo de Lisboa, parente do de Nines. Esteve este
em Pouve, no pao que est d'aqui a tiro de
rnosqute, onde mora uma fidalga viuva entrevadinha
e louca ..
- -Louca ?
1
interrompeu Ruy, colorindo com piedade
natural a commoo. ..
- Louca, segundo entendo. . . Pois que juizo tem
uma senhora de mais dos sessenta, entrevada h a bons
nove annos, mas de vez em. quando dizendo s aias
que a touquem de flores, porque est a chegar seu primo
Ruy ?!
- Como?- exchmou o ermito.
-Seu primo Ruy- repetiu o abbade, certo de que o
tom sobresaltado do hospede procedia do espanto de tal
demencia. E proseguiu:- Este Ruy o tal fidalgo de
Nines a quem ella quiz at aos vinte annos; depois,
casou com o senhor de Pouve para obedecer ao pai,
que era o .fidalgo de Roooredo, aqui perto nas terras de
Ruives. Pelos modos, o. marido, que um negro da casa
de Ruy depois matou, deu-lhe vida de gals pobre
dona .. E' urna historia que no na ha de cavallerias
nem tragedia mais triste! .. Como eu lhe vinha con-
tando, esteve aqui dez annos em Pouve o tal fidal-
230 O senhor do pao de Nines
go de Lisboa e disse snr. O. Leonor Correia que
seu primo Ruy podia ainda ser vivo, porque ambos ti-
nham andado at ao fim nas guerras do snr. prior do
Crato. Ora desde ento que ella de todo em todo en-
sandeceu ! Ninguem lhe tira do bestun to que o primo
vem ahi! Est a morrer; todos cuidam que ella morre;
veem os sacramentos. Acodem os herdeiros. Chegam a
dai-a no ultimo fio. . . E vai ella resuscita, abre os olhos,
sentase no catre, pergunta se seu primo no chegou e
quer que lhe enfeitem os cabellos com as flores. De-
pois chora, depois ri; finalmente uma lastima v l-a
estar alli a penar! Os cruzios de Landim entendem que
a mulher est penando em vida a perfdia que fez ao
primo, sendo ella a causa de morrer de dr a me do
fidalgo, no fallando na cruel morte que o marido fez
dar a um honrado ouvidor de Barcellos, conta d'este
reprovar o feito indigno da mulher. . . Pois, se vossa
merc seguir este cminho de dentro, topa ahi logo
adiante uma casa com duas torres; l que est a en-
cher a conta do seu castigo a triste louca.
Ruy Gomes recolheu-se ao seu aposento, passou em
orao o maior espao da noute, restaurou-se com o dor-
mir ligeiro da madrugada sobre o pavimento estreme;
e, ao apontar o sol, despediu-se do abbade e disse ao es-
cravo que o fosse esperar porta do mosteiro de Landim.
Quinze minutos corridos, o ermito chegou porta
da casa de Pouve e perguntou se a fidalga quereria dar
uma esmola a um peregrino muito necessitado.
Trouxeram-lhe uma tigella de leite com migas de po
de milho, sem consultar a fidalga.
Estavam as criadas olhando de uma varanda o velhi-
nho, que, sentado n'um toro de carvalho, bebia o leite.
O senhor do pao de Nines 231
- Aquillo um santo!- diziam entre si as moas.
-Vede que barbas elle tem! . No vos parece tal
-qual o S. Pedro da nossa igreja?
- Se elle dsse saude fidalga !
- Olhaide, moas! .. vamos ns elizer senhora
:que est aqui este ermito?
-V! Eu lhe vou dizer, se ella estiver acordada.
Entrou a moa p-ante-p. D. Leonor levantou a ca-
bea e disse:
-Ainda no chegou?
-Ainda no, senhora. Quem alli est no redo um
ermito com ar de santo. Se a fidalga quizesse que elle
lhe fizesse algumas oraes ...
- Ide-me todas buscar flores. . Oraes ! - excla-
mou D. Leonor agitada- Oraes bastam as minhas ...
Tenho rezado toda a noute e meu primo no chega ..
-Mas, se v. s. quizesse que o peregrino tambem
rezasse, pde ser que o snr. seu primo chegasse mais
depressa ... - objectou a aia com piedosa astucia.
-Sim?- murmurou a entrevada- Dizei-lhe que
-entre aqui o ermito.
Ruy Gomes acabava de beber o leite e cogitava no
modo de chegar presena de Leonor, quando as cria_
das lhe pediram que fosse ver a fidalga, que o mandava
chamar.
'f
-Irei. ''
Guiado porta de uma alcova escura, Ruy cravava
os olhos no interior sem divisar vulto distincto da es-
curidade. Deteve-se fra at poder entrever um leito e
uma frma de mulher sentada entre dous almadra-
.qus.
As criadas, que o conduziram, abeiraram-se do leito
232 O senhor do pao de Nines
de sua ama. Ruy ficou na ante-camara, tomado de ta--
manha convulso e to extenuado, que no podia dar
passada. A enferma, fitos n' elle os olhos, parecia temer
e ao mesmo tempo reverenciar aquelle venerando rosto,
aquella postura de braos encruzados sobre o peito.
- Pde chegar at aqui-disse a m ~ i s velha das tres
criadas, dando-lhe lugar.
Ruy permaneceu immovel.
-A fidalga padece muito ha dez annos- tornou a
criada. n
O ermito estendendo o brao bombreira da porta
da alcova para se amparar, disse s criadas :'
- Sahi do quartq. Precisa vossa ama de me dizer
seus padecimentos. Mandai-as vs sahir, senhora.
p. Leonor acenou s aias que sahissem. A voz d'a--
quelle homem tinha U_!lla vibrao que todos os nervos
lhe alvorora.
Estavam sem ninguem que os ouyisse.
Ruy Gomes tom9u uma lampada acceza do oratorio
e achegou-se ao leito. Aproximou-a da face de Leonor;
tremia-lhe a mo e as sombras da lampada oscillavam
no rosto da paralytica. Deixou cahir o brao, com a
mo do outro afogcu os soluos na bocca e sahiu da
alcova. Dependurou a lampada e prostrou-se diant_e do
oratorio, abafando os gemidos no pavimento. No orava.
E Leonor contemplava aquelles actos com o habitual
espasmo das suas vises.
Ergueu-se Ruy, voltou cabeceira do catre, viu o re-
luzir dos olhos febris da enferma e disse-lhe :
- falia i. . . Quem esperaes, senhora?
- Quem espero?

O senhor do pao de Nines 233'
-Dizei que beneficias esperaes do cuja vin-
da pedis a Deus.
I
- Elle vive ainda? Acaso sabeis que elle vive? Vis-
tes em alguma do mundo meu primo Ruy Go-
mes?- perguntou ella, arquejando na vehemencia e
energia das interrogaes.
- Vive, sei que vive ..
- E vir perdoar-me ? Vir, homem de Deus ? Ento
que me levantem . sahir d'aqui ... levem-me
para Roboredo, que meu primo no querer entrar n'esta
casa.. Olhai !-exclamou ella muito irrequieta, sacu-
dindo a roupa da cama-N'esta casa entrei eu, quando
a d'elle ficou deserta : Foi d'aqui, d'esta c_ova de fe-
ras, que eu matei aquella familia . Mas elle no mor-
reu, no? vos disse elle de mim? e
. ?
quem SOIS. . , '(J , J _
-Um mensageiro de Ruy Gomes. De mando d'elle
aqui estou. Ou vide. as palavras de Ruy Gomes de Aze-
vedo: Leonor, minha alegria da infancia; anjo bemdito
_que at aos vinte annos me encheste de alegria e sal-
vaste a minha alma dos vcios que a enfraquecem o ho-
mem na Iucta com a desgraa; cu- que te abriste e
me mostraste a bemaventurana dos virtuosos ; crena,
religio em que eu aprendi a pureza dos pensamentos ;
imagem que, depois de perdida, ainda me guiavas fra
do caminho da prevaricao; perdido anjo e desgraada
_mulher que no tiveste fora para me ajudar a vencer
a sina funesta ;-algoz minha mocidade e victima da
tua fragil alma; Leonor, sabe que eu fui menos infeliz
4o que tu,. porque cheguei aos e cinco annos
sem sentir na consciencia o morder de remorso nem re-
ceber dos homens outro opprobrio seno o da tua des-
234 O senhor do pao de Nines
1ealdade. Leonor, eu nunca pedi a Deus o teu castigo,
nunca pintei na minha imaginao as delicias da vin-
gana. A's vezes, orava por ti, depois de orar por mi-
-nha me. A' santa, que tinha morrido amaldioando-te,
pedia-lhe que te no chamasse ao juizo de Deus; pedia-
lhe, Leonor, porque eu vira todos os maus castigados,
a justia divina vingada em todos os deshumanos,
e bem sabia que tu havias de pagar na proporo das
agonias de Ruy. Grandssimas foram, terribilissimas
h sido as .tuas. Leonor, ests perdoada. Teu primo
ajoelha ao p do teu leito, e banha de seu pranto a
mo que ha quarenta e seis annos recebeu outras la-
grimas de alegria ! ...
E, dizendo, ajoelhra e levra aos labios a mo de
Leonor,
- Qu ! ... - exclamou ella a gritos, cortados de
pausas afflictivas-Que viso. que voz. . . um so-
nho. . . Qnem me fallou a mim agora?
- Leonor ! - volveu Ruy Gomes, levantando-se -
:Minha prima, entra perdoada no seio de Deus! As mi-
nhas dres offereo em desconto das tuas. No m'as
acceite o Senhor seno como angustias da tua alma. E'
Ruy que te falia. E' este ancio vestido de burel que
1e pede a quietao de e s p i ~ i t o precisa para entrare.; no
reino dos infelizes que a si mesmo se puniram. . . Vai,
pobresinha, vai repousar. Eu ficarei para te chorar um
dia.. . e depois. . at l !
Leonor ouvira as ultimas palavras, quando lhe alvo-
recia o crepusculo .do dia eterno.
Ruy Gomes sahiu. As criadas viram-no passar coberto
-de lagrimas e sentiram uns calefrios de terror.
Entraram alcova de Leonor. Julgaram-na desmaia-
O senhor do pao de Nines 235
da. Esperaram o espertar do deliquio. Desconfiaram -na
morta. Agitaram-na. friccionaram-lhe as mos e retira-
vam as suas glidas do contacto do cadaver.
Vinte e quatro horas depois, fechava-se, com os des-
pojos da fidalga de Pouve, aquelle segundo tumulo que
o leitor pde ver no adro da igreja de Santa Maria de
Abbade.
Soou a fama que no solar de Pouve entrra o phan-
tasma de Ruy Gomes e matra Leonor pedindo-lhe] con-
tas da sua perfdia. As criadas, em quanto vivas, disse-
ram que um ermito entrra ao quarto de sua ama e sa-
bira deixando-a morta, mas juravam que o tinham v1sto
e lhe ouviram a voz, e no era phantasma, bem que,
ao sahir do quarto, as fizesse tremer de medo.
Esta explicao no quadrava legenda maravilhosa
do povo. Teimavam que o ermito era do
fidalgo de Nines.
Os herdeiros de D. Leonor Correia no acharam ca.
seiros que mais quizessem occupar a casa de Pouve.
Elles mesmos, comquanto mais desempoados, no ousa-
vam deter-se na sala contigua alcova onde o phan-
tasma fulminou a paralytica. De matlo que, passados
cem annos, a casa estava alagada pelo alvio do tem-
po; e n'este anno de 1866 ninguem sabe dizer sobre o.
certo onde ella esteve. Mostram um extenso almargeal
os velhos de oitenta annos e dizem :
cfoi por aqui:.> ..
E Ruy Gomes de Azevedo conseguiu morrer sob o
tecto da casa onde nasceu? No. Aqui tem o leitor o
fiel traslado da pagina de um manuscripto, que sahiu
236 O senhot do pao de Nines
do mosteiro de Landim, quando os conegos r e g r a n t e ~
de l sahiram. (1) Diz o titulo do manuscripto:
Memorial de D foaquim dagrda, conego regular em
Nandim. Ano 623. No ano findo de 22, vespera do Na-
tal de N. S. jesus Xpto, cerca de 11 oras, chegou por-
"taria deste mosteyro hu lzermytam da orde terf!l'ra do
padre So Francisco, e chamou ao locotoiro de baixo o
padre d anton:o de barcelos, o qual indo e tendo c ele
breve fJratica, vero ao d_ pryor, e lhe a ele disse o quem
fosse o peregrino, donde ambos deceram portaria e
tr veram /}ara dentro o lzermytam; o qual trazia c
ele hu escravo preto que tbe entrou. A' volta de"IS dyas
contados do dya de Natal correu voz de se estar em ar-
rancos da morte o peregrino, o qual de feito rendeo o
esprito neste imo corrente de 23 haa meya noite de 11
de janeyro; e to somentes despois de sepultado na ga-
lil acostada caza capytular com escandalo e mermu-
rao da comunidade se soube que o hermytam hera
hu grande fydalg.o destes sitios chamado Rtzy gomes da-
zevedo, o qual estit,era cos novios que aiada uiuem neste
ano, e todos cu_ auam morto haa muytos anos, e qui-
gera morrer sem se puhricar seu nome dele. No mesmo
mez e ano, foy desta uida o preto que uinha c ele muy
prouecto de anos, e haa tal que dis ter aquele dito ne-
gro matado quando era moo outro fydalgo chamado
joanes esteues, cazado que foy c hua Leonor Coreya que
se fynou pollo mesmo tempo. Esta tragedia vay por
em escriptura o nosso d ant.
0
de barcelos varon de muy-
tas letras e engenho para historias.
(1) O antigo mosteiro hoje a bella casa e quinta do meu
amigo Antonio Vicente de Carvalho Leal de Sousa, herdeiro e
sobrinho do ultimo capito-mr de Landim.
O senhor do pao de Nines 237
A escriptura de O. Antonio de Barcellos perdeu-se,
se, porventura, logrou escrevl-a o sujeito encomiado
por O. Joaquim de Agreda. As ultimas palavras de Ruy
Gomes de Azevedo recebeu-as o seu amigo 4os bancos
escholares. O mais tocante capitulo d'esta narrativa de-
veria ser trasladado da historia do conego regrante de
Santo Agostinho.
Sabemos que o senhor do pao de Nines foi sepul-
tado na galil contigua casa capitular, mas esta casa,
na reforma que alguns priores deram ao material arranjo
do mosteiro, foi arrazada, e sobre os ossos sepultas na
galil, chamada dos fundadores, construram e lagea ram
a capella-mr da actual igreja parochial de Landim.
Aqui ficaram n'este recinto de um quarto de legua
as cinzas dos principaes personagens d'este romance.
fiM

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