Aquilino Ribeiro - Lapides Partidas (Livro)
Aquilino Ribeiro - Lapides Partidas (Livro)
Aquilino Ribeiro - Lapides Partidas (Livro)
L�pides partidas
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C�RCULO DE LEITORES
Capa e Frontisp�cio:
ex-libris de Aquilino Ribeiro,
desenho de Abel Manta
Em semelhante sarapatel, sem outros claros al�m da ravina que separa os dois
morros, sa�a mentida a frase pitoresca de Castilho, com que me azabumbava
Patarroxa:
- V�des v�s aquele monte que leva �s costas a sua rede de ruas velhas? � a
Lissibona �rabe.
Com efeito, fora bem um cego a ver com os olhos da fantasia a trama do
arruado, j� que por cima das cumieiras n�o se divisava mais do que a babel do
casario em seu selv�tico empastelamento de tintas e de volumes.
Patarroxa, depois de me dar uma sucinta desemburradela em ruas, pra�as e
curiosidades ulissiponenses, despedia-se. N�o podia faltar �s primeiras aulas.
Adeus?, adeus? O director era uma fera. Mandasse, Col�gio Verney, telefone 282.
Era, n�o podia deixar de ser, um subterf�gio, paragana do ci�me de rival sem
sorte e, com isso, frouxid�o, que tamb�m podia ser delicadeza, em n�o reviver o
cartel. Mas eu, j� risonho, arrefecido tamb�m em meus prop�sitos de despique,
segurei-o pelo bot�o do palet�:
- Ou�a l�, Humberto... Sabe-me dizer onde � o Largo da Achada?
- Largo da Achada...? Largo da Achada... n�o me ocorre agora onde �. Pergunta-
se. Homem, quem tem boca vai a Roma.
Descemos a rampa. Patarroxa assobiava o Cygne fid�le. Pelas Escadinhas do
Duque e Cal�ada do Carmo vinha mais e sempre mais gente, de toda a extrac��o e
feitio, marchando grave, pincharolando, rebolando, e nos voejos agora e logo da
len�aria feminina e no coco do senhor ventrudo e importante eu n�o me cansava de
admirar Lisboa. Corno da primeira hora em que arribei a Lamego �lugar forte por
arte e natureza, com tanta reputa��o entre os estrangeiros que Ptolomeu a titulava
cidade maior de Espanha�, afigurava-se-me tudo extraordin�rio, soberano, e ol�mpica
a mais n�o poder ser a fauna alfacinha.
Em baixo, densa popula��o enxameava uma larga pra�a. Patarroxa, que n�o perdia
pitada quanto a sobrancear-me, com mais envaidecimento do que se tivesse sido ele o
calceteiro, chamou-me a aten��o para a maneira como era empedrado aquele precioso
Rossio: ondas pretas e brancas, representadas por meias-luas alternantes de
calc�rio e basalto, que iam rolando, rolando umas sobre outras em ritmado gal�o. E
eu, com a ufana ousadia dum ocupante, fui pisando esse intermin�vel mosaico de
curvas e contracurvas, de modo a produzir a imagem, inocente imagem, do mar alto.
Ociosos de grande gaforina e lavalli�re ao vento, e pobres com ar de vares mal
repastados repimpavam-se nos bancos de pedra. E a priori dei por confirmado um
velho ju�zo meu, ju�zo verdade se diga, que poderia prevalecer-se da benditosa
largueza com que a Santa Madre Igreja marchetou o calend�rio de dias santos, de que
na capital para muita gente boa a maior parte da semana era domingo.
Betesga fora, deslizavam carros el�ctricos pintados dum amarelo de ovo
magnificente. E a tilintada surpreendia o meu ouvido, afeito aos sinos de S.
Francisco, � campainha dos Vi�ticos, e ao tintin�bulo das vacas que, retoi�ando nos
pastos ou marchando pelos caminhos velhos, entornam no sil�ncio, que enche a terra
como a �gua enche um a�ude, a sua gota melada de oiro e cristal. E que diferen�a?
Na minha serra, uma tarantela humilde como p�talas de esteva ao vento; aqui, sons
imperativos e �speros, policiais. � compita, os l�pidos e rotos ardinas brandiam,
como mirmid�es, as gazetas da manh�: �S�culo! Mundo! C� est� o Mundo!�
Era a hora de entrar para ateliers e armaz�ns, e raparigas lir�s, muito com-
postinhas, dizia Patarroxa que midinettes de todo, passavam, impregnando-nos da
cirandada gra�a de seus meneios. Patarroxa, cem por cento alfacinha, afora o ber�o,
que caminhava o mais depressa que era l�cito a um bacharel em Direito, neto de
fidalgos e dons priores, batia-me a todos os pontos. Onde ia Estef�nia, cara metade
do Menelau de escada abaixo Miguel Baila Taralh�o Morrafora Galafura de Malafaia?
Toda esta paisagem humana, de par que me enchia de estranheza e de turba��o,
dava-me ao mesmo tempo orgulho por me ver ali, encontrar-me a pisar as pedras
tantas vezes faladas nos livrinhos que o mestre-escola nos metia a cacete na
cachim�nia.
Logo ap�s a vibra��o espiritual do primeiro contacto, entraram os sentidos a
exercer-se. A que � que me cheirava Lisboa? Marche que marche ao lado de Patarroxa,
aspirando os ventos, n�o descobria a que cheirava Lisboa, embora n�o me fosse de
todo desconhecido aquele cheiro. N�o era o odor das capitais do distrito, meio de
murtinhos, meio de cad�ver embalsamado, menos que de po�o de cortumes. Tampouco o
das aldeias � roda de S. Francisco: �gua choca, fumo de rama verde de pinheiro,
flor de macela. Era uma fragr�ncia que tinha part�culas de metana, p�-de-arroz
barato, salsugem de mar, ambiente de afrodision, e perfume de jardim, um jardim de
muitas rosas esflorado pelo vento. Indefin�vel, no entanto trespassava-me como se �
minha pele se colasse outra, acariciante e salitrosa por igual.
- O senhor Jos� Elias teve aqui um quarto, teve, sim senhor - respondeu-nos no
Largo da Achada, segundo, uma dama adiposa, de bata at� os p�s e cabelo em tran�a.
- O senhor Jos� Elias �-lhes alguma coisa?
Patarroxa abriu os bra�os. Eu disse:
- Nada. Fomos contempor�neos no liceu. Ela mediu-nos da coroa da cabe�a aos
bicos dos sapatos e, convencida da nossa sinceridade, tornou:
- Na Rua do Crucifixo, cento e dezasseis, poder�o inform�-los. - E depois dum
segundo de circunspec��o: Olhem, se lhes n�o custa, fa�am o favor de lhe lembrar
que me deve tr�s meses de quarto e duas notas na engomadeira...
Desci mais tranquilo quanto aos sarcasmos de Jos� Elias, que � minha
imagina��o se representava cintado no d�lman de cadete, galantim e soberbo, mas n�o
caloteiro.
Em baixo, Humberto Patarroxa estendeu-me a m�o, m�o impaciente de quem se v�
atrasado em suas horas. E, j� se afastara uns passos, voltou atr�s a renovar o
oferecimento dos seus pr�stimos: se precisasse alguma coisa, fosse procur�-lo ao
Col�gio Verney, Campo Grande. Era certo l� at� ao meio-dia. Mas tomasse tento,
pol�tica � porta. O director era o raio dum homem peguilhento, bota-de-el�stico em
pol�tica e religi�o, e que n�o ia muito � bola dos republicanos. Para mais, Cocu
furibundo. Estava a perceber? Ainda n�o tinha casa... o problema apresentava-se-lhe
bicudo. Sem uma cama razo�vel, uma tina e um maple... mas o que se chama um bom
maple. nada feito. Onde � que se encontrava em Lisboa um cochicho com estes
requisitos?
Patarroxa coibia-se de me perguntar o que � que vinha fazer a Lisboa, embora
eu sentisse a curiosidade aflorar-lhe na fisionomia corri uma transpar�ncia
teimosa. Magn�nimo, como quem lan�a ao vento do olvido os agravos antigos,
desespartilhei-me, avan�ando que o nosso comum amigo Velhinha me tinha arranjado um
emprego - patranha rotunda. E embora eu lesse nos seus olhos, muito embebidos nos
meus, que n�o acreditava, troc�mos um aperto de m�o, franco e sem mais reservas.
Patarroxa era tudo quanto naquela hora me ligava ao passado, � minha serra, me
cimentava sobre mim mesmo, e ao v�-lo ir tive a impress�o que me desagregava e
dilu�a num meio �cido e contr�rio. Este Patarroxa � que se achava em Lisboa como
peixe na �gua. Filho dum escriv�o de Direito, que viera do rochedo a�oriano exercer
fun��es para o continente, formara-se em leis na Universidade de Coimbra, mas a
voca��o dele estava longe do foro. O seu diploma repousava int�ctil no canudo de
lata. Insatisfeito, artista, n�o te rales sobretudo, hipotecaria a alma por uma
r�cita em S. Carlos. O of�cio mais compat�vel com os seus conhecimentos e
disposi��o de �nimo era ainda o professorado. No Col�gio Verney regia hist�ria e
franc�s e constava-me, n�o sei de que fonte, que fazia tradu��es para as livrarias.
As f�rias passava-as na terra adoptiva, onde o pai ia curtindo os dias, regalando-
se com a burundanga de pit�us e de amigas que lhe levavam o melhor dos r�ditos de
aposentado. No m�s de Setembro encontrara-o em Santa Maria das �guias a cortejar
Estef�nia. Mas era mais cerebral que homem de instinto, e mulheres daquele topete
n�o navegam muito em tais mares. A intromiss�o n�o constitu�ra sequer uma amea�a,
mas o ressentimento acendeu-se de parte a parte.
Patarroxa desapareceu no fundo da rua, e fiquei s� no meio dum mundo zumbidor,
estranho e magn�fico. Pouco a pouco deixei-me penetrar, em tal soledade, primeiro
do sentimento da minha pequenez, depois da melancolia do homem perdido no meio da
multid�o, que � o mesmo que perder-se em pleno e cerrado deserto. E acabei por
entregar-me ao lazarnismo t�o delicioso da falta de vontade. Errando pela cidade
desconhecida, Rua �urea em fora - que lindo e sort�lego nome? - extravasou-se toda
a timidez do meu natural montesinho. Atarantavam-me aqueles alizares de m�rmore e
de granito como facturou Herculano - e nas lojas e lojecas tafuis os caixeiros de
especiosa trunfa e m�os alvas, cheios de si como her�is mussetianos. De rua em rua
fui dar ao cais, em cujo brancor se dilu�a por �ptica revers�o um pouco de anil
mate das �guas. As gaivotas entregavam-se a altas e imprevistas sarabandas, e ao
espadanar de suas r�miges por baixo dos cirros ou por cima, n�o se distinguia bem,
eu tinha a impress�o de que eram gazes, gazes fin�ssimas que elas andavam
esgar�ando com a carda pentad�tila dos p�s.
A Outra Banda, com o polvilho de suas aldeias a luzir a todo o largo da
margem, com a carca�a medieval do Castelo de Palmela � direita, a Arr�bida lil�s de
Frei Agostinho da Cruz � esquerda, dizia-me, nada mais que no hausto revessado de
sua amplid�o, que o mundo n�o � t�o pequeno como o representava a esfera armilar
franciscana por que aprendi geografia.
Mas eu, padecesse muito embora mais trabalhos que os argonautas, havia de
descobrir o paradeiro de Jos� Elias de Sande - o meu Velhinha do Liceu de Lamego,
terrabinto e m� cabe�a, benjamim dos Sandes de Riodades, fidalgos de meia-tigela,
com fama de arruinados, mas de pulso sempre fa�anhudo tanto a domar um potro bravo
entre os joelhos como a deslindar pend�ncias pelas feiras a vara de marmelo,
aquelas varas, estonadas ao forno, para correctivo de calcetas. E, retrocedendo
sobre os meus passos, fui dar segunda vez � inferneira do mercado. A gentiaga que
se atropelava aos balc�es, a zaragata, o fervido salutaris ao deus do ventre, os
mil rictos das colarejas e criadinhas de servir de avental branco e sinalinho no
queixo, actuando sobre o meu est�mago em jejum, criaram em mim um estado de v�cuo e
insuport�vel des�nimo.
Andei, tornei a andar dum lado para o outro como um col�ide que perdeu a
faculdade de reac��o. Da Rua do Crucifixo remeteram-me com jeito brando - o que me
espantou - para o restaurante do Passarinho Assado, na Travessa da Palha, que era
afinal por onde eu devia ter come�ado, pois que de tal bai�ca rezava o endere�o que
trouxera. Estava a bater o meio-dia, e diante da tor�a cuja tabuleta chamava com
fereza herodiana a clientela v�ria, sobretudo gente de trabalho, estaque meu bom
mestre teimava denominar mec�nicos, detive-me irresoluto. O pr�dio era igual a um
mais acima, a outro logo em baixo, a todos, em geral, os da rua. Alto e estreito,
era o acabado caixote de gente, um dos caixot�es a pino da constru��o utilit�ria,
com a mesma ordem de frestas de cima a baixo, salvo que do primeiro andar pendiam
para fora dos bala�stres da sacada espessas persianas verdes.
Os clientes do Passarinho Assado empurravam uma cancela que era de dois
batentes, madeira no rasto, do peito para cima vidra�a fosca, e ficavam � vista as
duas filas de mesas, com o balc�o ao fundo em que rodopiava a cabe�a maci�a do
tascueiro sob a pir�mide apote�tica da frascaria. Essa pir�mide era divertida com o
seu ar mirabolante de charola e, sempre que a porta se escancarava, eu, para matar
o tempo, deletreava os r�tulos das garrafas, desde o vinho fino, tarjado sobrimente
de oiro, ao an�s del mono. enramalhetado dos verdes anduluzes e amarelos
apopl�cticos de Sorolla y Bastida.
Postado no asfalto em frente, durante um bom peda�o me entretive nesse gozo:
ver entrar freguesia, gente da lide e tamb�m gente da moina, carregadores,
cocheiros, magarefes, com suas galdripeiras e frandunas. Mas como o Velhinha se n�o
dignava mostrar-se, e eu n�o viera para quedar ali boquiaberto, tomado de frenesi
galguei a escada l�brega e malcheirosa at� o terceiro andar, porta em frente.
N�o deu ares de se espantar com a minha apari��o, como se fossem favas
contadas, o impag�vel e fero amigo do liceu. Pela greta da porta, em ceroulas e
chinelos de tapete, disse-me para o esperar em baixo, no �galego�, e rodou,
tornando a dar volta � chave. Ao tempo que desandava, ouvi tossicar uma garganta de
mulher, e fiquei a admirar o sibaritismo deste felizardo e a invejar-lhe a sorte de
c�o. Fui abancar � pedra vermelha do Passarinho Assado entre uma matula numerosa,
conscienciosamente entregue � degluti��o de lulas guisadas � espanhola e cabe�as de
pargo com batatas, que reconheci a breve trecho constitu�rem a especialidade da
casa.
E n�o teria decorrido meia hora quando o Velhinha surgiu, muito composto,
grenha de azeviche apartada ao meio, bigodinho em baioneta, com uma rapariga em
cabelo, de cravo rubro picado na blusa de Bruxelas, entumecida pelo opulento
�patriotismo�, e barrad�ssima de pinturas. Sentaram-se a par de mim com uma
airosidade de maneiras que se me afigurou a �ltima palavra do bom tom. E o
Velhinha, depois de trocar comigo insignificantes monadas, dobrou-se para o prato,
mudo e meticuloso. Reparei, espreitando de soslaio, que tinha refinado. Manejava o
garfo com rara distin��o, pretexto talvez a exibir o belo anel de camafeu no dedo
afilado, longe dos velosos e tronchudos dedos da estirpe, fugida � esbeltez
aristocr�tica pelo governo da rabi�a e da enxada. Os seus l�bios eram finos, mais
finos do que aquilo que acusava a imagem a que me afizera desde os tempos de
Lamego, se � que a vida lhos n�o estilara. Alto e direito do tronco, flexuoso no
andar, car�o sobre o comprido picado das bexigas, era o homem feio que as mulheres
adoram. Olhar um tanto parado mas sem obsess�o, por esse olhar e n�o sei por que
mais dava-me agora ideia daqueles oficiais estabanados e tomba-lobos, pintados por
Tolstoi nas novelas do C�ucaso, que o senhor Chinoca tivera ultimamente a bondade
de me emprestar.
� socapa, tamb�m, fui observando a mo�a, que comia menos retraida-mente que
Jos� Elias, e n�o era de deitar fora, olhos grandes e humildes de vaca de est�bulo,
e o seio tr�mulo, escandalosamente tr�mulo de monte de nata. Mas tinha certas
maneiras soltas, um desnalgamento de frase e de gestos, que tra�am para mim, sem
que o fosse jurar, para mim que nunca tivera trato com seme-lhante casta de
mulheres, salvo a Micas, Santa Maria Egipc�aca lamecense, a fille de joie plebeia.
O revelador eram as m�os, m�os polpudas, embora nada pesa-das, deixando ver por
baixo da fl�cida brancura os calos de quem desterroou a leiva e apertou o vencilho
a muito molho de sarga�os.
Como, modo de mostrar o meu apre�o, a Jos� Elias, admirasse n�o lhe ver a
farda, �aquela catit�ssima fardinha de cadete por que se pelavam as pequenas desde
a Estef�nia aos Douradores� declarou-me, sem erguer olhos do prato, que deixara a
Escola do Ex�rcito. Se voltaria ou n�o, estava ainda para se ver.
- Essa � de cabo-de-esquadra! - exclamei eu, acrisolando o interesse.
- Era uma chatice. Queres maior dana��o que a tropa? Sempre um homem ao
cabresto, tolhido de ter vontade, aut�mato puro!... Ernestina, os calamares en su
tinta, j� sabes, fazem-te azia. Pede outro prato...
Notei que o meu antigo condisc�pulo pronunciara as suas raz�es de afogadilho e
� sobreposse, e que buscara aquela derivante da alimenta��o como quem salta para o
lado dum atoleiro em que perde o p�. Calei-me, visto ele virar a sombrio, n�o
olhando para mim, nem se importando j� comigo. Fora desastrado, saltava aos olhos
do entendimento. Mas eu, gra�as a estas pequenas solicitudes que � fortuito ter �
mesa redonda, passando-lhes o jarro da �gua, pondo o saleiro ao seu alcance,
cruzando com eles um sorriso de aplauso sempre que o Velhinha jogava a sua fac�cia
ao galeguito que nos servia, e me soavam a ironias platinadas, acabei por faz�-lo
desembuchar e reconduzi-lo � sua amenidade.
Esta espelunca era dum galego - disse ele. - Para um cidad�o de Porri�o dos
tais que escreviam � mulher: �A terra � boa, a xente � tola; a auga � deles e n�s
vendemoslla�, n�o ia mal de todo. �s vezes o bife era adubado com margarina, mas
era bife. O galego regressou a penares depois de trespassar a casa a um portugu�s
de Vale de Ladr�es. Pronto, o bife agora � de sola e, quanto a tempero, sebo... e
mesmo sebo de grilo. Somos todos mais ou menos da terra deste vendeiro.
Como eu olhasse para ele com o ar embara�ado de quem � de todo estranho �
mat�ria para poder aplaudir, ladeou:
- Vens de visita?
- Venho para me empregar...
Provavelmente porque o tom da minha voz lhes soasse a amargura, logo os dois,
em especial ela, me percorreram com olhos demorados neste movimento instintivo da
simpatia humana, tal como se estivessem a fazer o c�lculo dos trabalhos com que
teria de me haver at� realizar semelhante des�gnio. Depois, o Velhinha franziu os
l�bios bem ostensivamente quanto � incerta possibilidade de eu me arrumar. Era como
se prevenisse a minha esperan�a com o lugar-comum: �Sim, se os empregos andassem
pelo ch�o aos pontap�s'?� E ia a desinteressar-se de mim, dei logo conta, quando
lhe disse:
- Antes de mais nada, tenho de arranjar casa. � o principal por agora, um
cub�culo onde estire o cad�ver. Tu, um alfacinha consumado, n�o sabes indicar-me
uma pens�o onde encontre cama e mesa, baratucho...?
Lisonjeou-o a invocat�ria e, ao passo que a mo�a me contemplava com aquele ar
sol�cito e enternecido que nunca deixa de revestir nas mulheres o seu instinto
maternal diante das pessoas fracas, inermes ou desarrumadas, ele tirava uma fuma�a,
tirava duas, e era envolto numa nuvem de fumo que proferia, olhos semicerrados,
cara de vi�s para mim, com sainete:
- Casas de h�spedes h� muitas. O diabo � que s�o piores umas que as outras.
Olha, aqui perto tens a da Rua do Crucifixo... onde foste perguntar por mim... - E
voltando-se para a mulher: - A Dona Fl�via ter� quarto devoluto...?
Ela quedou im�vel um instante, depois, arrega�ando o l�bio inferior numa
m�mica de desd�m, sorriu e mergulhou olhos no prato. Jos� Elias volveu, dir-se-ia
com propositado retorno:
- Nessa casa comi eu mais dum ano o fiel amigo e a pelanga de vaca. Tem sempre
muita gente. A patroa � quase suport�vel se lhe andarem com a mensalidade em dia.
Sem a massinha na ponta da unha, nada feito. J� l� n�o vou h� muito. N�o ter�
quartos, n�o ter�, mas quartos arranjam-se a dar com um pau, � quest�o de consultar
os an�ncios do jornal. Vai � Rua do Crucifixo, meu bom; dize que vais de minha
parte, que ela atende-te. N�o h� melhor que ela se lhe souberem cantar...
Entretanto, j� o criado, a rogo da mulher que depreendi n�o saber ler,
respigava as colunas do Not�cias � sua beira, repetindo ela e comentando numa
sequela de ladainha:
- Quarto mobilado, janela para a rua, em casa de pouca fam�lia; Travessa das
Pedras Negras: tr�s mil r�is. � � uma rua de percevejos. �Quarto para casal, Rua do
Carmo, segundo: dez mil r�is.� Caro. �Ao Rato, para homem s�. Longe. �Rua do
Passadi�o, em casa de senhora estrangeira, n�o tem mais h�spedes; segundo.� Este
talvez convenha �quatro mil r�is�. � ir ver. Hem, n�o achas, Jos� Elias?
O Velhinha puxara de novo da cigarreira de prata e, depois de esbo�ar e logo
desfazer o gesto de ma oferecer vendo-me ainda de garfo � boca, proferiu, batendo o
cigarro de ponta contra o m�rmore:
- Qual � o teu oficio, se n�o sou indiscreto?
Qual era o meu of�cio, caramba? Qual era? Lembrando-me das fun��es que
exercera em casa dos Malafaias, acudi, n�o t�o depressa que lhe n�o pungisse o
l�bio um sorrizinho sacripanta:
- Estive empregado numa livraria particular. Copiava manuscritos,
catalogava...
Mediram-me os dois num lance de olhos, movimento este reflexo quanto a
infirmar ou corroborar o meu asserto merc� da intui��o de cada um. Depois, ele
baixou os olhos sobre o m�rmore; permaneceu assim um momento, chupou o cigarro, e
antes de expelir a fuma�a, com ela a evadir-se da boca e das narinas em pequenas
hidras de Medusa, proferiu:
- Numa livraria particular, � patusco. Vens recomendado...? Est�-se a ver,
vens recomendado...
- N�o? - soltei com perempt�rio, embora em tom lastim�vel. - Venho ao acaso...
A mulher arqueou e desarqueou as sobrancelhas e, fitando-me no fundo dos olhos
como se estivesse mais a ler-me a sina do que a interrogar-me, mur-murou condo�da,
sem se dirigir a nenhum de n�s:
- Coitado, sabe Deus os tombos que tem de dar?
Neste em meio o Velhinha, possu�do dos t�picos do meu intuito, discorria em
tom af�vel:
- Para a� n�o faltam estabelecimentos da especialidade.
O neg�cio de livros por modos n�o � mau de todo... para quem vende. Outro
tanto n�o ou�o dizer relativamente a quem os faz. Meia d�zia de escritorecos, com
quem me encontro �s vezes, andam a cair da boca aos c�es. Conhe�o-os de ginjeira.
Hei-de apresentar-te. Olha, o Humberto Patarroxa � que est� em condi��es de te ser
prest�vel. � professor dum filho do Felizardo Langroiva, um dos manda-chuva das
letras. - E acrescentou com certa despi-ci�ncia: - N�o me dou com ele... � um
pedant�rio! Encontra-lo a� pelos caf�s. N�o sei se tamb�m vai � Dona Fl�via...
Creio bem que sim.
- Tem gra�a! Viaj�mos juntos, quer dizer, viemos no mesmo comboio para Lisboa.
Mas, sim, � um pedant�rio, pessoa a quem de modo algum quero ocupar... C� por
coisas...
O meu exclusivismo satisf�-lo, porque tornou solicitamente:
- Se bem compreendi, o que tu desejavas era obter servi�o em casa
particular... com algum bibli�filo...
- Sim, sim, era isso mesmo.
Estacou um instante, como se a delicadeza o tolhesse de expressar o seu
pensamento, e num meio sorriso, este sorriso filos�fico do homem que v� outro
estatelado, emitiu:
- Em suma, vens aos ca�dos. H� por c� muito disso?
Sa�mos juntos. � porta, em plena rua, o Velhinha e a pega lambuzaram-se de
beijos e, ao tempo que ela largava, escada a cima, casquivana e risoteira, reparei
que, detr�s dos estores verdes, por cima do Passarinho Assado, uma teoria de rostos
femininos, em caraminhola de aparato e face carminada, lhe faziam abundant�ssimos
acenos, amicalmente faceiros. E disse comigo: �Sois da trama!�
- Eu vou contigo � Rua do Crucifixo, mas n�o to queria dizer diante da
Ernestina. � uma ciumenta dos diabos? proferiu ele, enfiando o bra�o no meu.
Ia reconfortado com aquela bizarria, e animadamente nos dirigimos � casa de
h�spedes. Ao passo que no patamar do terceiro, escuro e empestado de fedorentina de
gato, premia o bot�o da porta pombalina � prova de p� de cabra, ponderava:
- Apepina-me a patroa, mas n�o te d�s por achado. Sou o seu menino bonito.
Chur, eu te contarei... � Fornos de Algodres chapada.
Mal ouvimos interrogar: quem �? - uma cabe�a mostrou-se alvissareira e
jubilosa, com gaforina meio africana:
- O senhor Jos� Elias?! Ditosos olhos que o v�em? Toda a gente a dizer:
morreu, fugiu, j� n�o quer saber de n�s, afinal c� o temos. Vem para ficar...?
- Bom dia, Elvirinha, bom dia! Est�s cada vez mais bonita. N�o, ainda n�o
chegou esse fausto dia, como se diz nos anivers�rios de Sua Majestade El-Rei. Mas
chegar�!
N�o lhe deu tempo de responder e, deixando de a�outar com o indicador a face
da criada, que me deu a impress�o de ser franga do seu poleiro, meteu pelo corredor
fora, chap�u na cabe�a, aos brados:
- Dona Fl�via! � Dona Fl�via!...
Saiu-lhe ao encontro uma mulhera�a j� adiantada em anos, rebolona, toucada
desta pel�cia suja, ru�a e inomin�vel, que esvurma dos sof�s velhos, arrestados na
casa do pobre ou remetidos para o s�t�o no palacete do rico, com dois p�los na
venta duros como arame, os queixais em inacabada opera��o masticat�ria. � sua cauda
agarravam-se duas meninas, uma, toda vistosa e sobre o galante, com um la�arote
vermelho na cabe�a, dezoito anos quando muito, outra, felota, duas madeixas
atiradas das esp�duas para o selo magro, l�bios sem alegria, quinze anos pobres de
vi�o. As tr�s engalfinharam-se no Velhinha, prolixas em tagat�s e miando. D.
Fl�via, acalmado o alvoro�o e rebuli�o dos cumprimentos, apostrofou-o com voz em
que palpitava n�o sei que �cido ressentimento:
- Julguei que estava de mal connosco...?
- Deixe-me c�, Dona Fl�via, tenho andado num virote!. Ou�a, trago-lhe uma boa
not�cia... Afinal, parece que sempre volto para o ex�rcito. Meu irm�os tantas
passadas deram, muita empenhoca meteram que o ministro prometeu deixar-me
matricular. Para o ano, est� a ver; agora � tarde...
- S�rio?! - replicou ela com um metal de voz, jubiloso sim, mas em que
transparecia o chocalho do cepticismo. - Fala s�rio?
- S�rio, pois ent�o! Desta vez at� o diabo dava estoiro se me ro�am a corda.
- Bem, bem? Estou morta por tornar a v�-lo com a bonita farda de sargento-
cadete? Nesse dia, queima-se aqui uma caixa de champanhe. Mas � a s�rio?
- � a s�rio, pois ent�o, mulher de pouca f�! - exclamou ele como lhe notasse �
flor dos l�bios aquele sorriso lombardo, produto tanto do sentimento ir�nico da
miragem como da incredulidade ben�vola. - E estes anjos como v�o? Como vai esta
linda? - e batia com os dois dedos, como fizera � criada, na face da rapariga.
Os anjos, tanto como a D. Fl�via, como a Elvira, como eu, eram surpreen-didos
numa brev�ssima pausa a imaginar colado aos ombros largos, propor-cionados, de Jos�
Elias de Sande e � sua cintura de vespa o guapo uniforme. Mas j� as duas, a criada
de parte num arzinho sonso de Gata Borralheira, entravam a espenuiar-se com todo o
dengue e afectuosidade, chilreando cada uma para sua banda a mesm�ssima �ria:
- Muito zangadas, muito, muito, muito? Sempre a prometer: � amanh�, � depois,
e vai em dois meses sem nos levar ao teatro. Mauz�o? Por onde � que tem andado?
Diga l�, diga, por onde � que tem andado?
Ele rompeu em gluglus, traduzindo para zombaria ledas e amaviosas moganguices,
a que elas retrucavam com risadinhas e motetes. Mas, subita-mente, Jos� Elias
quebrou o grato entremez com revestir um ar sisudo, rosto revirado para mim:
- Trago-lhe um h�spede, Dona Fl�via. Arranja-se um quarto?
- Quartos dera-os Deus! - pronunciou ela em seu modo de Fornos. - Chegaram-me
h� tr�s dias h�spedes antigos, e n�o sabia onde os deitar. Tive de pedir ao Bexiga
e ao Neves para armar uma cama no quarto de cada um. O Bexiga � acomodado,
consentiu de boa mente. Mas o Neves, veja l� o pach�, fartou-se de resmungar...
- Nesse caso, ou�a, aloja-se noutra parte e come aqui... Pode ser assim, n�o
pode?
D. Fl�via passeou-me com o olhar dos p�s � cabe�a diante dos sapatos que j� h�
dias n�o tinham sido engraxados, da gravata que n�o era nenhum primor, das cal�as
que = afligiam com as hediondas joelheiras e da saca de amostras, sobretudo, este
odioso ap�ndice do portugu�s da ral�, decerto concebeu a meu respeito uma impress�o
desfavor�vel. O mesmo desd�m devia ter suscitado nas meninas, que, interrompendo
por um momento nas festas que faziam ao Velhinha para me mirarem e pesarem na sua
balan�a de namoradeiras, logo distra�ram os olhos com ar de n�o presta. A matrona�a
julgou-se obrigada a dizer:
- H�spedes s� de pucarinho, arrenego deles. Lograda a confian�a, atrasam-se
nas contas e �s duas por tr�s ferram calote. � sempre assim? Mas em suma, por
serdes v�s quem sois...
D. Fl�via sorria-lhe langorosamente, e com uma topetada da cabe�a indicava-me
como contrapeso da considera��o que Jos� Elias lhe merecia. Este ent�o bichanou-lhe
qualquer coisa ao ouvido que n�o era preciso ser Salom�o para decifrar: �Trago-lhe
este ponto, D. Fl�via, mas em mat�ria de cunquibus, presteza, pontualidade em
esportular-se, o que o merceeiro chama ser bom ou mau pag�o, lavo as m�os. Sabe,
isto s�o conhecimentos que v�m dos estudos.� Como eco de meu pensamento, ela
advertiu:
- O senhor Jos� Elias est� ao facto, a pens�o � paga adiantadamente...
- Ora essa, minha senhora - apressei-me eu a garantir. - Tanto pago � quinzena
como ao m�s. Fa�a favor de dizer quanto �...
O meu rasgo disp�-la bem. Antes de mais nada ganhei a confian�a do medianeiro
que desatou com acertado crit�rio:
- Este senhor vem para se empregar. Pague-se da quinzena, Dona Fl�via; tenha a
bondade. Eu respondo...
Contei de manu-a-manu 7000 r�is, uma fortuna ao tempo, e sa� �s arrecuas, mais
satisfeito, se n�o reconciliado com a vida, sem embargo da javardice da
estalajadeira e do farisa�smo do Jos� Elias, tendo lan�ado amarra no sebo, couve
mercearia, requeij�o saloio da capital. D. Fl�via, as duas mi�das, a delambida da
sopa, acompanharam este Jos� Elias, segundo grande Elias, ao patamar, cobriram-no
outra vez de remoques e bland�cias, gemeram, suspiraram:
- Veja l� se se esquece de n�s? Quando nos leva ao teatro? Se lhe parecer,
deixe-nos semanas inteiras sem not�cias suas! Ingrato! Marau! Gostava de saber quem
� que o prende!
Disse-lhe, descendo a escada:
- Safad�o, tens aqui o serralho...?
Ele desatou �s gargalhadas, grandes cacarejos de galo, e n�o me tornou outra
resposta. Mal pusemos p� na rua, disse-me:
- Vais encontrar nesta casa uma bicheza mais variada que no jardim Zool�gico.
O Bexiga, em que falou a Dona Fl�via, � praticante de farm�cia e orador de
com�cios. Quando se inflama, vem-lhe espuma ao canto dos l�bios, sinal da sua alma
apopl�ctica. � inofensivo. O Belis�rio Malh�o � um velhote que usa gab�o de Aveiro
e botas � Frederica, adquiridas, h� quem julgue, no esp�lio de Camilo, porque o
homem � das bandas de Fafe. N�o tem profiss�o pr�pria, ou por outra, tem todas as
profiss�es, visto que � faz-tudo. � um vegete muito esquisito, bastante misterioso,
esp�cie de tesoureiro dos revolucion�rios, explorando uns, caloteado por outros,
especialmente pelos malandr�es.
Calou-se um instante a farejar uma linda mulher que passava.
...Havia de relacionar-me com outro velhote, esse compendiosamente pitoresco,
de cabelo em pia��, primeiro-caixeiro da Eur�sia: tout court, o senhor Silva.
Papagaio real. Mas veria outros exemplares, hilariantes de todo, um Maldonado com
cara de C�sar da decad�ncia, prot�tipo do pinga-amor lisboeta, que h� quinze anos
namorava uma carochinha da Estef�nia e era fixe ao gargarejo das oito � meia-noite.
Novos amantes de Teruel, casariam � data em que o patr�o lhe subisse o ordenado, um
dia... tal ano... quando ca�ssem os dentes a ambos. Veria um aut�ntico salafr�rio,
o senhor Ab�ndio Passos de Lob�o, meio jornalista, meio amanuense. Olho nele que
n�o era seguro das unhas. Tivesse tamb�m cuidado com dois ou tr�s sujeitos que n�o
perdiam o ensejo de meter o focinho no prato e n�o diziam bus. Que mais n�o fosse,
levavam-me o melhor bocado. Mas em casa da D. Fl�via havia de tudo: um coronel
reformado que andava melancolicamente a passear pelas mil casas de h�spedes da
capital uma minotauriza��o estupenda; o empregado dum armaz�m de cordas ao
Benformoso, que catrapiscava a Irene, a rapariga que eu acabava de ver... a
bonitota; acratas; miguelistas; e revolucion�rios em barda; um Bemposta; um Roli�a;
criaturas com quem se dava... com quem metia �s vezes palhinha... mas que para n�o
haver confus�es tratava � devida dist�ncia, alto l�, como os guardas do jardim
Zool�gico aos tigres reais. Se professava ideias subversivas ou simplesmente
inconformistas, multa cautelinha... desconfiasse de todos... N�o me deixasse comer
o caldo na cabe�a...
Fiz um gesto de confirma��o. Ele atalhou, depois dum instante de sil�ncio,
absorvido a espreitar agora a serigaita que acabava de contornar a esquina da rua e
vinha para n�s:
- � verdade, tu estiveste preso no Castelo de Lamego quando foi da quest�o
Calm�n...? Mas prenderam-te por engano, dize, n�o me lembra j� bem...? Tu eras
carola, pois n�o eras? Eu c� sou anarquista. O mundo � uma choldra. Mas estou com
os republicanos para pregar com a Monarquia de cangalhas. Olha, tu, sejas que n�o
sejas revolucion�rio, lembra-te que o calado � o melhor. E digo-te adeus, que tenho
um rendez-vous no Tavares. Para ires � Rua do Passadi�o segues por a� fora, fora,
at� encontrares a Rua da Esperan�a do Cardal. L�-se o nome na placa, parece-me bem.
Mas, ouve, n�o te canses de andar, que esta rua � das mais compridas de Lisboa - e
apontava-me a art�ria que passa � ilharga da Casa de Garrett, cuja bela ordenan�a,
em frente, me recreava os olhos.
- Vasco da Gama tamb�m foi � �ndia...
- Dizem que foi, n�o sei. Percebeste? Chegado � Rua da Esperan�a, vais, vais
por ela a cima at� topar outra que est� para as ruas que v�o de baixo como a barra
para a perpendicular. � a Rua do Passadi�o. N�o tem que errar. Se o quarto n�o
servir, volta a ler o Not�cias. H� mais an�ncios que inquilinos. N�o te prendas....
Manda sempre - e, depois de me estender a m�o com rapidez, rodou pelo caminho que
troux�ramos.
Comecei a palmilhar a rua mesteiral, com quitandas entremeadas de pal�cios
espl�ndidos. Ao passar pelo Coliseu, a fantasia, romanceando o que a palavra
coliseu cristalizara desde longe no meu esp�rito gra�as aos seus m�gicos fonemas e
ao prest�gio que herdara da latinidade, exaltava-se com a realidade que nestas e
noutras coisas a cada passo revestia a minha inicia��o da urbe. � ideia de teatro
associei a ideia de lindas mulheres decoradas e recordei-me de Estef�nia e o meu
peito sangrou. Onde estaria �quela hora a minha Dalila sem tesouras? Teria eu
alguma vez a sorte de me vingar dela? Muitas mulheres, lindas mulheres se cruzavam
no meu caminho, e acudiu-me que por obra e gra�a duma boa fada - que pode hav�-las
imprevistas nos meandros do nosso destino - talvez fosse defrontar com uma que me
substitu�sse Celid�nia, a inef�vel, ou a outra que continuava encastoada na minha
carne. Com efeito, o fluxo dos transeuntes, subindo uns, descendo outros, era
irregular e denso como dos rios que nunca secam. Bonitas caras algumas, moldadas
por gera��es e gera��es de habitat urbano, com um misto de cec�m e pervinca;
grandes olhos, por vezes em am�ndoa; nariz nem arrebitado, nem adunco, antes
direito e fino de arestas; boca voluntariosa; cabelos pretos sem ousar ao azeviche;
certa express�o fision�mica hesitante entre meiguice e melancolia; estatura sobre o
mediano; meneio leve, muito levemente balanceado das anquinhas: onda, palaquim,
primeiro elemento do saricot� tropical - eu dava conta que no tipo feminino de
Lisboa deviam flutuar estes predicados e certamente outros que me escapavam. Nas
caras das raparigas n�o podia entrever outra coisa que n�o fosse indiferen�a pelo
meu ar patego e bisonho, mas nem por isso deixava de sentir o grande regalo de
bater a bota no ch�o em que est� escrita uma das maiores p�ginas da hist�ria. As
sombras � roda do meio-dia pareciam de negro retinto, e pelo meio da rua o sol era
tal qual um requife de oiro que ningu�m se arrisca a pisar. Passava um burro
ajoujado de hortali�a, uma cale�a com o senhor que iria para um enterro, e o gal�o
voltava ao gozo da intangibilidade, com o refervedoiro, � margem, duma popula��o
que se me afigurava trabalhada acima de tudo pelo pensamento roaz da manten�a,
Afoitei-me a entrar numa loja de malas e outros artigos de viagem. Tinha
reconhecido que o saco que trouxera me refugava � condi��o de embarcadi�o, qualquer
Manel Chin� de aldeia, abroeirado, pobre e de letras gordas. Todo o dinheiro que
possu�a comigo limitava-se �s sobras daquele estip�ndio que o lacaio de Miguel
Malafaia me contara para cima da mesa com um arreganho que eram as vertalhas da
sobranceria dominial para a sua alma sabuja:
- Aqui est� o ordenado. Se n�o acha bem, tenho ordem de meu amo para me
entender corri seu pai...
Para mala de cabedal com pregos amarelos, destes trastes que na m�o dum
fabiano, decentemente vestido, equivalem a pedra de armas, n�o chegava o meu
pec�lio desfalcado com as larguezas absurdas daquela meia d�zia de dias. Mas
adquiri uma sobre o modesto de lona e coiro, dentro da qual o meu taleigo se sumiu
como um recruta labroste no uniforme do cas�o.
E de mala em punho marinhei o bairro que me recordava Almacave com as casas
desataviadas e pl�cidas, de dois andares as mais altas, chumecos torcidos sobre as
meias-solas, os li�os ensebados entre os bei�os, meninos de zimb�rio nu patinhando
na �gua que gotejava das bocas de inc�ndio, pequenos interiores resguardados do
olho curioso pela cortininha de repes, e �s portas, a discutir a carestia da vida,
mam�s em assembleia. Mal mordiscava o sil�ncio um buliciozinho de nada, semelhante
� tritura��o do caruncho, dum viver que se prolongava para pequenas hortas
claustrais, onde � beira do po�o, com o balde suspenso da roldana, se viam verdejar
duas nespereiras, e se jogava o chinquilho e bailaricava nos dias de festa da folha
ulissiponense.
Mesmo no tope da Rua da Esperan�a do Cardal, uma casa de dois andares com
janelas amplas de sacada, panos a azul esvanescente e um ar de boa-ser�s como
inculcam certos asilos pobres de meninos, correspondia ao an�ncio da gazeta.
Fruteiras an�micas erguiam ao c�u ramos despidos, zincados pelos Dezembros. E, nada
mais que por esses e outros jardinzecos agenciados no talude, eu compreendi de
salto o movimento sinuoso da rua, obrigada a todo o correr a inscrever-se na rocha
viva que cresce em aclive para o Campo de Santana.
N�o me desagradou o s�tio com a sua buc�lica bastarda, mas igual impress�o n�o
tive quando a porta girou nos engon�os e defronte de mim se apresentou uma
mulherzinha sobre o obeso, caiada literalmente a p� cor-de-rosa, dentro dum roup�o
viol�ceo semeado de malmequeres doirados, sapatos t�o roxos que nem confeccionados
com a t�nica do Senhor dos Passos, cabelos enrolados em regueifa para a nuca, e uma
idade vaga, infixa como o yem dos te�logos, oscilando na mais temer�ria das
hip�teses entre trinta e cinquenta anos. Com a pressa de abrir, trazia nas m�os
ensanguentadas de estranguladora o borrachinho que estava a depenar. � sua cauda
surgiu logo a criada, uma cara de fuinha sobre um tronco de t�bua costaneira.
Percebi que a locat�ria era espanhola e armava em grande dama.
O quartozinho, asc�tico de todo, mas limpo, encheu-me as medidas. Entr�mos em
negocia��es e de parte a parte fomos declinando dados e informes que facilitassem o
com�rcio pessoal dos contratantes. Ela era a Sr.? D. Pepa Cienfuegos, vi�va dum
antigo adido da Lega��o de Espanha, e vivia s� com a criada. Alugava aquele quarto
n�o porque precisasse de todo em todo, embora um real que entrasse fizesse jeito
nos tempos dif�ceis que corriam, mas em suma porque eram duas mulheres e precisavam
em casa dum muchacho valiente. s�rio, regradinho e que se deitasse a horas, para
n�o ficarem desamparadas de noite. D. Pepa tinha muito medo de ser assassinada, e
claro est� que arvorava guarda do corpo o seu inquilino. Quem era eu? Prestei todos
os esclarecimentos e mais um, e ela a certa altura prorrompeu:
- Bueno, traiga usted el equipaje!
Quando lhe observei que n�o tinha outra, tirando-me a mala da m�o e
pespegando-a em cima da pequena escrevaninha, suponho que para me proporcionar o
seu emprego, pois n�o via c�moda nem arm�rio onde arrumar as duas pe�as de bragal
que trazia, tornou-me com a mesma voz satisfeita:
- Bien est�!
Num momento das evolu��es de D. Pepa, dei conta que coxeava. Reconhe�o a minha
inferioridade em nutrir uma antecipa��o absurda pelos que coxeam e suponho que me
veio a tara ao avalar as malas-artes de Merc�rio, deus das alicantinas e
patifarias, que arrastava a perna t�o lastimosamente. Ela claudicava e o aleij�o,
pareceu-me, ajudava a compor o seu retrato. Eu estava emba�ado a olhar-lhe para os
p�s, a olhar-lhe para os dedos grossos, dedos fatais, e ela, julgando que fazia
reparo ao sangue inocente que lhe mascarrava as m�os - uma s�rie de tipo facinoroso
com o Passarinho Assado - explicou que a receita dos facultativos o seu comer era
pombinhos. Todos os dias tinha de sacrificar os pobritos dos palomitos. Sofria duma
dispepsia muito grande, uma dispepsia rebelde a todas as medicinas.
- Le aseguro que siento hondamente esta prescripci�n cl�nica, Pero que voy a
hacer?! Le digo, se�orito, que todo es sencillo y respetable en la paloma. Si no
fuera asi, la Tercera Persona de la Trinidad, el Par�clito, no hubiera tomado su
forma sobre las �guas del Jord�n. Verdad? Paloma de los cantares se nombra a�n � la
Madre del mismo Dios. Es usted versado en la Biblia? Si lo es, sabr� que hubo una
hambre rabiosa en Samaria y hasta se llega comer la palomina. Nuestro rey Alfonso
XII hartabase de comer pichones. Yo, desgraciada de mi, los como porque quiero
cumplir hasta el fin mi calvario en este valle de l�grimas. Mas cuando lo hago. me
acuerdo del divino p�jaro y me parece comulgar al mismo Dios.
��men�, estive eu tentado a dizer para fecho da inesperada homilia.
Pois que era coxa, disp�ptica, mais adiantada em rela��o � vida eterna do que
represa � carne pecadora, pela certa firme na f� e nos mandamentos da Santa Madre
Igreja, estava livre de esta Pepa me fazer guerra. Consequente-mente, a batalha da
paz, como lhe chamam os pol�ticos, de antem�o estava ganha e bem ganha.
II
III
IV
Quando se n�o tem nada que fazer, e n�o chocalha cheta nas algibeiras, h�
certo regalo em fazer de basbaque no meio das turbas embasbacadas - dizia-me
Humberto, gong�rico para me deslumbrar e persuadir, enfiando o seu bra�o no meu �
sa�da da D. Fl�via. - Anda, vamos gozar o domingo para a Avenida, como qualquer z�-
dos-anz�is...
- E que somos n�s...? - balbuciei eu.
- Que somos...? Ora essa, banqueiros, ministros, deputados, ou melhor, pau
para essa esp�cie de colheres, e sem cuidados na alma. Somos isso em pot�ncia, sim
senhor, e eu s� assim me consolo de n�o ter urna amante rica e bonita, mulher dum
figur�o da alta, de comer na espelunca da Rua do Crucifixo, e de n�o ter dez r�is
com que mandar cantar um cego. Se come�asse a olhar para mim tal qual sou, sem nada
desses atributos que constituem o social do homem de bem - n�o te tor�as; de bem,
porque n�o? -, tinha nojo de mim, vomitava sobre a minha pr�pria insignific�ncia.
Hoje, mas � s� hoje, n�o somos banqueiros, nem ministros, nem deputados, mas
descansa, s�-lo-emos amanh�. E ent�o, � meu amigo, tira-se a desforra?
Desemboc�vamos na Pra�a dos Restauradores onde vinha dar volta, contornando o
obelisco, a fila quase ininterrupta de equipagens que naquela tarde de touros
batiam o asfalto, subindo e descendo a Avenida. Parada heter�clita, via-se o mail a
empurrar a aranha, a pileca lazarenta de pra�a com duas francesas do Ferragial a
refrear o �mpeto da parelha de urcos de Alter guiados pelo jovem aristocrata, de
m�o enluvada, um raro autom�vel, olhado com desconfian�a, soltando o escarc�u
infernal dum modernismo alto l� com ele. Os passeios estavam negros de gente, uma
que assistia ao desfile com supina beatitude, outra, impando da inveja de se ver �
pata, namoriscando esta, ou simplesmente espairecendo aquela. No coreto, a banda da
Guarda atacava mais uma vez com o brio costumado - como se comprazia Langroiva de
registar na cr�nica mundana do Beija-Flor, n�mero por n�mero - a abertura do
Profeta. Entretanto, os simp�ticos velhinhos do Asilo dos Capuchos - eles em
andaina de surrobeco, elas numa an�gua ao estilo monacal - desabavam como tab�es
sanguissedentos sobre o passeante, que improvidamente arriara a carca�a na cadeira
p�blica, a cobrar a respectiva esp�rtula.
A Lisboa mediocrata, com fato de ver a Deus, despejara-se para ali a desfrutar
a amenidade vesperal daquele domingo de sol. E nada mais divertido que o seu
bul�cio, magnificamente simples, a costureira espairecendo as lou�ainhas, o
caixeiro de modas a janotice, o bom burgu�s o abd�men cheio, e as tintas de tudo e
o vozeio de todos, sem falar na praga densa dos vendilh�es, esp�cie de guzarates
que est�o em toda a parte com os seus tremo�os, as suas pevides, a t�mara doce, o
torr�o-de-alicante, os bal�ezinhos e moinhos de vento para os meninos das mam�s
endinheiradas. Rompera a Primavera com vi�o descompassado, e j� as �rvores dia a
dia anoiteciam mais enfolhadas para gozo dos moinas, e dos pardais que a esta
altura emigram dos jardinzecos particulares, pensionistas que foram da migalha de
p�o que ca�a da toalha rica durante o esganado Inverno. Dos pequenos talh�es,
insulados como o�sis nos largos tabuleiros de relva, as maravilhas entornavam oiro
� roda, enrubescendo c�u e terra, enquanto junto delas os amores-perfeitos, uns com
ar de gnomos, outros com ar de olharapos, pareciam ca�oar dos pac�vios. Flutuava na
atmosfera o aroma quente das mimosas e ac�cias em flor, de mistura com o cheirete
pegadi�o dos lencinhos de m�o, encharcados de ess�ncias pataqueiras.
Quando luziu ao alto a for�a de lanceiros, saraivada de fl�mulas e cocares
brancos, um fr�mito de curiosidade arrepiou a turbamulta. No est�mulo, que mais n�o
fosse, de observar a comitiva real, uma parte correu a postar-se � beira do
passeio. Suas Majestades passavam. Raros eram os chap�us que se erguiam a
cumprimentar. A popula��o da capital n�o tinha nenhuma esp�cie de ternura pelos
monarcas. Nem ternura nem respeito. De fisionomia prazenteira respondiam tanto o
rei corno a rainha, ele menos que tolo, ela ciosa acima de tudo das prerrogativas,
a este congelamento da opini�o. E, a avaliar por t�o discreta atitude, dir-se-ia
que n�o lhe ligavam outra import�ncia que a de fluxo eventual, fluxo de onda a que
est� sujeita a multid�o como o mar...
Depois do tiro � daumont de Suas Majestades, aguentavam o trote com aparatoso
ritmo as carruagens dos mordomos, dos �ulicos, do corpo diplom�tico, da nobreza do
reino, indistintamente Pires ou Cogominho. E foi nesta enxurrada de fidalgos que vi
passar Estef�nia numa bela vit�ria, cocheiro e trintan�rio ostentando com aprumo a
libr� verde-gaio dos Malafaias. � sua esquerda ia o marido, mais azul a barba
turca, mais papudas as m�os de grossos dedos cilhados sobre a barriga, e
bonacheir�o corno sempre na barbela de tr�s regueifas. Ela � que nunca me parecera
t�o bonita? Trazia um chap�u com altas e brancas plumas, boa ao pesco�o em
correspond�ncia, o que lhe dava n�o sei que gra�a alada e aventureira. Um enorme
cris�ntemo de confec��o, vermelho encarni�ado contra fundo vieux rose, chamava os
olhos para o seu peito decotado, mais decoroso que o altar em que um papa vai
cantar missa.
Eu fazia Estef�nia l� fora. Fazia-a ministra de Portugal num pa�s cio Norte, e
se - aconteceu surpreender-me a rondar na Pra�a do Pr�ncipe Real em volta da sua
casa, � que fui l� com o sentido de desafogar em horizonte adequado a saudade que
me oprimia, e nada mais. Sim, por duas ou tr�s vezes me achei parado diante do
balc�o de m�rmore a contemplar as linhas s�brias do al�ado e as janelas elegantes e
t�o altas que deviam inundar o interior de claridade, mas sempre se me deparou o
pr�dio ermo e silencioso. A luz surgira a uma das lucarnas para logo se eclipsar
atribu�-a eu a maneio do pessoal que tinha a cargo a sua conserva��o e guarda.
Estava tirada a prova que Estef�nia me mentira mais uma vez. Com aqueles dentinhos
brancos e ralos, posto que bonitos, podia tal bicha deixar de mentir?! Sim,
mentira-me desaforadamente quando me anunciara a partida para o estrangeiro com
ideia de se demorar. Tal an�ncio n�o passara afinal dum subterf�gio de trapaceira.
O singular � que n�o obstante o desabusado do meu racioc�nio, a minha surpresa
agora, no meio do rold�o de gente que me acotovelava, n�o fosse menos seguida de
embeveci-mento.
Humberto Patarroxa vira-a como eu, vira-a com certeza, e n�o dizia palavra.
Cabisbaixos, cada um a recozer a sua sanha, �ramos como dois inimigos, leva que
leva pela mesma estrada, a empunhar a faca de repente um para o outro.
Estava em Lisboa Estef�nia! Movia-se debaixo do mesmo peda�o de c�u, debaixo
do mesmo grande dossel de leito; e os meus sentidos n�o a tinham farejado? T�o
provados e expostos, os meus sentidos n�o tinham sabido captar os efl�vios da
libertina? Como pudera dar-se tal absurdo? E ela, h� pouco, ao arrastar a vista
pelo meu lado, que eu bem notei, vira-me? Podia eu jurar que me vira?
Fosse como fosse, daquele minuto em diante a Avenida com o seu rio de pessoas,
as carochinhas viciosas ou apenas namorisqueiras, os preg�es, as �rvores, as
pedrinhas em mosaico; a cidade toda com caf�s, bibliotecas, riquezas, ci�ncias e
artes, e mesmo com a sua nobre alma propensa ao grandioso e � revolta, revestiram
para mim outro aspecto. Tudo o que me antepunha, quer aos meus olhos, quer ao
esp�rito deslumbrado, n�o vinha em negro, que � a cor do desespero, nem ainda no
fosco, ind�cio do v�cuo sem rem�dio. Era de arruivado, cor dos olhos de N�mesis,
tal um c�u de can�cula numa plan�cie esbrasida e sem fim, que se me pintava o
horizonte. Patarroxa falava-me e eu n�o o ouvia. indignou-se e eu limitei-me a
sorrir. Uma besta de dois p�s deu-me um encontr�o e eu deixei-a ir sem uma palavra
sequer de correctivo. Encontrei-me com uns camaradinhas da carbon�ria, que
reiteraram a senha que j� me dera o Roli�a, e s� tempos depois, como se
repercutisse a um eco, vim ao entendimento do que propunham. Ainda n�o baixara a
noite e a minha vontade era ver-me sozinho para me entregar a ela todo, mergulhado
nela todo, como, ao tomar-se banho, se mergulha nas �guas do mar. Sim, bendita
fosse a treva que me permitiria cham�-la, deferi-la ao pret�rio, t�-la comigo,
senti-la, possu�-la em pleno �xtase do meu ser!
Disse ao Humberto que recolhia a casa e n�o ia jantar. Ele n�o deu sinal de
admirar-se e perguntou:
- Assim ficaste perturbado?
- Perturbado, porqu�?
- Homem, vi-a t�o bem como tu!
- E ent�o?
- N�o te quis falar nela, mas j� sabia que tinha voltado de Paris h� mais de
duas semanas. Disse-mo meu primo Deodoro de Vasconcelos, que � visita. Parece que o
gigolo dela agora � um secret�rio de Lega��o.
Turvou-se-me a vista e ele que reconheceu o meu sobressalto tornou:
- E n�o te falei nela porque sabia que a ferida ainda n�o tinha cicatrizado.
Lib�rio, capacita-te que o romance acabou ali. N�o proferi uma palavra de resposta
e o esp�rito implac�vel voltou � carga:
- Sabes que o Miguel Malafaia pensou ainda em te dar uma tunda...? Chegou
mesmo a chamar dois criados pimp�es. Depois, l� reconsiderou e preferiu admoestar-
te por meio do padre. Sempre te disseram alguma coisa?
- Nada.
- L� me queria parecer. O mais bonito � que ela quando lhe foram com a parte:
�V�o ali o Trinta e o Castela espancar o filho do Barradas�, encolheu os ombros.
Palavra, n�o sabias?
- � falso? - exclamei. - Era incapaz duma inf�mia dessas.
- � verdade. Pergunta a meu primo.
- � falso, � falso, e pe�o-te que n�o digas mais uma palavra. Foste tu que
chamaste o Castela e o Trinta. Foste ou n�o foste?
Patarroxa fez-se amarelo como a cera e apenas respondeu:
- �s tolo? Serei, mas tu �s um grande malandro, c�nico por dentro e por fora.
Passa bem.
Voltei-lhe as costas. Era � altura da Rua das Pretas e meti para casa.
Entrando no bairro, algum al�vio trouxe � minha febre a sua paz alde�. Ao
atravessar diante das casinhas sossegadas, corri magotes de gente a conversar
gravemente �s portas de poderos�ssimas ninharias, na ess�ncia agora e sempre sem
outras rala��es que a de comer, tirar o rel�gio do prego, satisfazer o amor carnal,
comecei a impregnar-me da bem-ditosa atmosfera. Sentia-me longe das equipagens de
luxo do corso possid�nio, dos meus furiosos apetites, de Humberto que era um
civilizado, tanto assim que tinha parentes fidalgos e rela��es com o Malafaia
enquanto eu n�o passava dum serrano pobre e mal esfalcado. O terramoto e o fogo
poupassem aquela aglomera��o de simples, em que eu me integrava e adormecia como um
arroiozinho na �gua choca duma lagoa!
Entrei no quarto a trautear a est�pida can�oneta em voga do � da Guarda.
Anoitecera. Aqui, al�m, pelas hortas, onde se jogava a laranjinha e a malha,
fuzilavam as luzes que se acendem apenas aos domingos. A Costa do Castelo, que me
ficava de soslaio, polvilhou-se da poeira luminosa de seus candeeiros de querosene.
Em baixo, no porto, os navios i�aram os far�is e a pradaria ba�a apareceu riscada
de mil cordas vibr�teis e luminosas, esbrazida de archotes derrubados que iam
ardendo e lan�ando no torvelinho das �guas a sua deliquescente e difusa chama. Mais
ao longe, para l� da extrema arg�ntea do rio, a Arr�bida mostrou-se no recorte
deslumbrante dum fundo de �pera, vermelho de n�car com pregaturas de roxo macerado.
Era uma estupenda vis�o de outro mundo, duma placidez sobrenatural. Oh, quem pudera
mover, como se faz a um martelo-pil�o, a mole imensa e com aquela serenidade,
pulverizar, reduzir a lud�brio a mesquinha e reles ang�stia humana!
Depois de observar com olhos parados a noite a corrigir os montes e a adere��-
los duma imposs�vel majestade, avistei a maldita e adorada mulher. Via-a t�o
perfeitamente como se a tivesse diante de mim ao alcance dos beijos, com aquele
nariz arrebitado, que era uma provoca��o � sisudez, a boca delicada, apenas o l�bio
inferior recortado com certa pujan�a e voluptuosidade, aqueles olhos que pareciam
em sua radia��o antecipar-se ao pr�prio pensamento, como p�los da fa�sca cerebral,
e eram, consoante, janelas de c�u cheias de anjos e po�os escuros por onde os
diabos subiam do inferno. Ao mesmo tempo via-lhe arfar o selo e ao espect�culo da
alvura cogulada, tremulante, eu delirava, balou�ado entre a insatisfa��o e a
perspectiva deliciosa.
Estive em semelhante balanc� uma hora, duas horas, ora a ranger os dentes, ora
a pensar em matar e morrer. Subitamente, senti-me empolgado por uma inspira��o
terr�vel e sobre-humana, destas que desabrolham da ponta duma navalha e da aresta
cabeira do promont�rio em que da vida se cai no oceano sem fundo do nada. E, pondo
o chap�u, desci o bairro sonolento a correr.
Atravessei a Avenida para a M�e-d'�gua, �quela hora totalmente deserta, pela
�ngreme escadaria alcancei o Pr�ncipe Real. A pra�a encontrava-se amorti�ada em
sil�ncio, com os seus arvoredos vi�osos e seus recantos romanescos franjados ao
longo das quatro faces pela luminosidade que escorria dos lampi�es de g�s. � parte
os el�ctricos, que a costeavam pela orla oriental, nada interrompia a quietude um
pouco altaneira dos seus pr�dios. Uns passos que se esva�am na escada que leva �
Rua Cec�lio de Sousa era como se fosse l� ao longe nos bairros da Ribeira.
Namorados, ao abrigo do cedro dos amores, nem se ouviam arrulhar.
Diante do pal�cio imerso em serenidade, com seu aprumo fidalgo, seus
bala�stres de s�bia ordenan�a, estaquei. N�o filtrava de portas ou janelas o m�nimo
rumor ou r�stia de luz. Mas abstive-me dum ju�zo precipitado. O pr�dio do rico na
cidade reveste por vezes esta caratonha herm�tica e � um corti�o de gente. Na
aldeia, quando assim se mostra, est� desabitado. E deixei-me ficar minutos atr�s de
minutos, um quarto de hora atr�s doutro quarto de hora sempre na esperan�a de que a
cabe�a de levandisca assomasse � janela ou, dado que houvesse convidados, eles
acabassem com a ardentia da noite por sair ao balc�o ou animar as salas que olhavam
para a square. De tempos a tempos um p�ssaro erguia com imprevista estreloi�ada do
umbr�culo das arauc�rias, e ia demandar Outro poiso. Duas vezes o banz� me iludiu e
o meu cora��o bateu apressadamente.
A certa altura julguei perceber para as costas do edif�cio o defluir, com Seus
hiatos e borbot�es, ora ilus�rios ora inflexos, de cavaqueira pegada. Estariam para
ali os donos da casa? Ao palpite, e tanto mais que um guarda na Rua da Escola
Polit�cnica parecia observar-me com persist�ncia suspeita, desci a Rua do Jasmim no
mais lasso dos ripansos como algu�m que segue itiner�rio calcorriado habitualmente.
Eu conhecia a planta do edif�cio pelas descri��es que me fizera Estef�nia nos
ditosos dias. Ao passo que da banda da pra�a ostentava Um ar esbelto de pavilh�o -
a porta principal flanqueada de duas janelas; por cima da porta Lima elegante
varanda, tamb�m entre janelas; um segundo andar com o seu corpo central,
sobrepujado dum entablamento gracioso, e trapeiras laterais - � retaguarda, em
raz�o do declive, tinha com alturas de alc��ova nada menos de dois pisos
dissimulados. No primeiro, ao n�vel do jardim, ficava a habita��o da criadagem,
salas de trabalho, arruma��es. O segundo, com unia galeria, embora aberta,
recolhida no sistema do al�ado, compunha-se de duas salas de jantar, Lima para Liso
quotidiano, outra de cerim�nia, e seus anexos, alem do bilhar e biblioteca. Por
conseguinte, o r�s-do-ch�o do lado da pra�a, em rela��o a estes dois Pisos de
Sudeste, podia considerar-se o terceiro andar. A cocheira, � esquerda do pr�dio
para o espectador, formava, com a face zenital ladrilhada, um terra�o de que se
derramavam ger�nios multo rubros, muito lou��os, dos vasos de barro alinhados a
toda a volta.
Ningu�m que olhasse do Pr�ncipe Real avaliaria as dimens�es e altura do
edif�cio, em apar�ncia n�o passando dum pequeno e distinto palacete p�s-pombalino.
- V�s esta janela por cima do terra�o da cocheira...? e o dedo de Estef�nia,
adejando sobre a fotografia, assinalava na parede a sudoeste uma sombra
transparente. - � o meu quarto.
- Primeiro andar, portanto?
- Primeiro, olhando da pra�a; terceiro, do jardim.
- Compreendo. E ele onde dorme?
- Meu marido dorme nos altos. Como padece de asma, instalou-se l� bem em cima,
perto da Lua, no quinto andar. Mas � o melhor aposento da casa. De l� avista-se a
barra at� o remoto horizonte, o cabo Espichei, Palmela... as aldeias ribatejanas,
os navios que entram e saem... Um deslumbramento para uma alma t�o po�tica como a
dele!!!
- E nesta casa ao lado quem mora?
- Do lado do meu quarto? � uma Lega��o. Tudo orientais. N�o gosto. �s vezes
vejo-os com aqueles olhos de tigre moribundo a espreitar-me por tr�s das cortinas.
Tenho de correr os reposteiros.
Qued�mos um instante, um instante todo abissal, a rever, pela certa tanto ela
como eu, coisas pouco edificantes da lasc�via asi�tica, e para romper o
enervamento, disse:
- E onde � que me vais instalar?
- Vou-te instalar no r�s-do-ch�o, por baixo, mesmo por baixo de mim. Tens um
quarto que � um amor. E, olha, podemo-nos entender muito bem; tu bates para cima,
eu bato para baixo, � quest�o de combinarmos um alfabeto Morse para o nosso uso. Ao
meu lado, deixa-me dizer-te, h� um aposento livre; � o que reservamos para os
h�spedes. Estava �s tuas ordens se n�o desse nas vistas. H� ainda um outro, mais
adiante, tamb�m livre; � onde dorme minha irm� quando lhe d� na bolha de me
visitar. Pode-se dizer que est� por sua conta. Mas, sossega, ficas naquele que nem
um pr�ncipe.. Tem uma pequena saleta onde podes receber. E, sabes, basta subir a
escada para estar logo... chez nous.
Aquela descri��o topogr�fica ia sendo entremeada do prelibar dos gozos que nos
promet�amos no pal�cio que ent�o se levantava diante de mim, siderado na bromo-
gelatina do fot�grafo. E se era por antecipa��o que me dava beijos, de que me
ficava todo o dia o ressaibo da sua boca, eu tornava-lhos sem conta nem medida, num
esbanjamento, louvado seja o Pai da Vida, s� compar�vel ao de Salom�o, pr�digo
omnipotente.
Os jardins comunicavam para a Travessa do jasmim por uma porta que,
normalmente, apenas se abria � carro�a do horticultor. Se a casa gozava de
seguran�a do lado da frontaria gra�as ao seu gradeado s�lido, dali estava ao abrigo
de qualquer percal�o, que o muro era alto, dif�cil de escalar. Miguel de Malafaia
tinha muito medo dos ladr�es e trazia tudo aferrolhado, as portas com trancas de
ferro, agradaria em frente da cocheira calafetada a chapa grossa e de setas afiadas
nos topes. Era um basti�o debaixo da camuflagem de casa burguesa, ao lance de olhos
nem mais nem menos apreensiva que as outras. Mas, como Miguel era ao mesmo tempo o
pai da somiticaria, n�o tinha jardineiro pr�prio, salvo um velho reumatizado que j�
vinha do av� Malafaia. Esse velho fazia de guarda-port�o e nas horas vagas, pegando
do sacho, plantava o seu quartel de feij�es e cortava as ervas nocivas. Para o
amanho principal da horta e jardim, rogava um saloio, ao acaso, de prefer�ncia
aquele que tivesse mais cara de mouro ra�a de gente que a seu ver dava nestes
servi�os sota e �s ao trabalhador crist�o. O c�o de guarda era o Nicodemus, que em
verdade pela corpul�ncia e o vozeir�o metia respeito, mas para tal tinha de
acontecer que algu�m, ao fim das vindimas, viesse de Santa Maria das �guias e o
trouxesse. Estef�nia queixava-se destas parcim�nias de judeu, merc� das quais
tivera de renunciar ao cultivo dos cris�ntemos, uma das suas paix�es de solteira,
n�o falando do desgosto que lhe causava ver nos alegretes couve lombarda, em vez de
rosas ou cravos.
Levado pelo ressaibo agridoce de tais planos, tive, as vezes que por ali andei
pasmado, ensejo de observar o edif�cio a todos os quadrantes e aperceber-me que
Estef�nia n�o falseara o bosquejo. O conhecimento adquirido, ouvindo-a antes e de
visu depois, servia-me agora em meu desespero para um cometi-mento que n�o deixava
de afigurar-se-me temer�rio, mas exequ�vel com um bocado de sorte. Como a Travessa
do jasmim estivesse deserta e afogada em sombras, n�o hesitei mais que segundos.
Marinhei pelo candeeiro e, fincando-me na pequena barra que se subp�e � lanterna,
pude agarrar-me a um ramo que se debru�ava para a rua. Por eleva��o consegui depois
p�r-me a cavalo na crista do muro. Com o esfor�o que fiz esbofava, mas, pronto,
via-me na pra�a.
Mal pude tomar f�lego, apliquei-me a devassar o que se passava ao cabo do
jardim. Da galeria aberta, por entre a ramagem, relampejavam espaneja-mentos claros
e sombras movedi�as contra o fundo iluminado. Mas de princ�pio nada distingui com
nitidez. Acertando por fim a melhorar o �ngulo �ptico, notei que eram os senhores
da casa e gente que eu nunca vira que tomavam o fresco amesendados � x�cara do
caf�. Estef�nia fazia t�te-�-t�te a Lima dama, Miguel de Malafaia a um sujeito
pouco mais ou menos da mesma idade que ele. E chegaram-me ao ouvido, a
intercad�ncias com risos e frouxos de tosse, as vozes dos quatro, embora
indistintas, em tom de melopeia, Lima melopeia de �gua de bica na estiagem, que ora
sobe, ora baixa de murmurinho conforme lhe sopra o vento.
Posto me acoitasse na sombra dos abrunheiros que estendiam as fran�as por cima
do muro, a minha posi��o era arriscada e nada mais f�cil que ser lobrigado da rua,
dado � dica no dizer do cal�o, e l� ia eu como pilha-galinhas ou gatuno de mosco
para o xelindr�. O rem�dio era saltar para dentro do quintal e esconder-me de
qualquer modo. O lance n�o oferecia dificuldade desde que n�o entrasse na dan�a.
Mas quem me assegurava a mim que o canzarr�o n�o tivesse vindo de Santa Maria das
�guias? Se, tinha vindo, estava alapardado naquele instante aos p�s do dono, e �
primeira bulha t�nhamos alarme. Porque o perigo para mim estava no alarme e n�o nos
colmilhos do animal. Os meses que estivera ao servi�o dos Malafaias, duas
conquistas plenas eu fiz: Estef�nia e o c�o. O c�o era-me dedicado at� � preteri��o
dos seus antigos h�bitos de fidelidade. Entre mim e Malafaia n�o hesitava: seguia-
me a mim. E ia jurar que n�o foi pequena a sua m�goa os dias que se sucederam �
minha partida inopinada. Por isso estava persuadido que se me pilhasse no jardim,
todo o seu rebate seria efusiva e adoidada demonstra��o de regozijo.
Outro expediente era eu pular para uma daquelas �rvores e empoleirar-me entre
os? ramos. E foi essa a sa�da que me tentou, pesados os pr�s e contras. Embora o
pulo me parecesse desmedido e incerta a resist�ncia das pernadas, arremessei-me.
Tive a sorte de alcan�ar um galho onde com relativa facilidade, utilizando-o como
trampolim, me pude i�ar a melhor poiso. �ptimo? Agora estava � maravilha para
vigiar os movimentos dos Malafaias sem correr o risco de que me divisassem da rua.
Dei ent�o conta que tinha a m�o ensanguentada com um forte arranh�o. Que importava
l� isso, O interessante � que dera um bom pincho, um pincho de tigre, t�o �gil ou
t�o pouco que n�o produzira mais chinfrim que o chocalhar das frondes nas frondes
quando as a�oita a nortada.
Que se passava na galeria? Pouca coisa. Estef�nia praticava para empregar o
termo obsoleto, predilecto a meu mestre pelo que envolve de mesura e contin�ncia na
interlocu��o praticava com a dama, Miguel com o cavalheiro. Pareceu-me que as
maneiras duns e doutros eram cerimoniosas se bem que cordiais. A dama vestia uma
destas blusas, que estavam em moda, ajoujadas de rendas e encaixes, e t�o ex�gua se
me afigurava a sua cinta que caberia no abra�o das duas m�os. A sua mancha de puro
jaspe ressaltava contra os tons quentes, apapoilados de Estef�nia, no rosto de quem
a p�rpura era colorido natural real�ado ainda pelo diadema dos cabelos, de cujo
flavor chispavam de quando em quando cintilas vol�teis como de fogueira a arder. Os
dois homens, de charuto a fumegar entre os dedos, deviam estar embrenhados numa
destas palestras pol�ticas que nunca mais t�m fim, � semelhan�a das Mis�rias do
Tempo e da Fortuna. chafurdando no tema do dia: a besta de sete cornos do
Apocalipse que se abatera sobre a na��o debaixo da forma deste Sila do Alcaide.
O tempo foi passando mais ronceiro que lesma numa parede salitrosa. Penetrava-
me a frialdade do arvoredo, se n�o era a febre, que me empolgara, a descer. j�
encomendava a todos os dem�nios aqueles convidados que n�o arredavam p�, ouvi Rua
da Palmeira a cima o trote duma parelha. Pela refrac��o ac�stica avaliei que, ao
atingir a pra�a, os cavalos inflectiam no sentido da m�o esquerda, para se
suspenderem ao cabo de breve chouto. Ou eu muito me enganava, ou era a carruagem
que vinha buscar os h�spedes dos Malafaias. Com efeito, n�o tardou que houvesse na
galeria um certo rebuli�o de largada. A dama pegara do arminho e, depois de
rapidamente se curvar para Estef�nia a beij�-la, sa�a. Todos os demais foram ap�s,
jardim e galeria so�obraram na inalter�vel serenidade da noite. Por muito tempo n�o
buliu uma folha nem nas ruas palpitou vivalma. A carruagem dos visitantes, de rodas
de borracha, rompeu afinal; o trote dos cavalos feriu a placidez da cidade e dos
mundos, o meu embevecimento, marcou o compasso, e foi esmorecendo, esmorecendo at�
delir-se de todo ao propender para o declive de S. Roque. Um mocho ou coruja veio
dos cedros da pra�a com grande fanfarronada de asas e de vozes, adejou por cima de
mim com jeito de querer poisar nos abrunheiros e, porque me pressentisse talvez,
desfechou em direc��o de S. Mar�al.
Se Nicodemus se n�o dignara at� ali dar sinal de presen�a, era de inferir que
ficara em Santa Maria das �guias a assarapantar os ratoneiros de lenhas com a sua
voz de trov�o. Uma criada veio por fim trasbordante de brancura, tanta brancura no
seu avental e coifa que se me afigurou ver tremeluzir neve no v�o da casa. Com m�o
r�pida retirou a baixela e extinguiu as luzes. Eu tive a impress�o de que se me
cegavam os olhos. N�o via nada. T�o-pouco pulsava � roda de mim o mais brando
rumor. Em pleno nocturno. Depois, pouco a pouco, a casa, o jardim, os ramalhos,
afundidos na penumbra, come�aram a revestir formas espectrais. A modorra subtil,
imponder�vel que recobria a cidade, o mar largo, os confins da terra foi quebrada -
embora logo refeita - pelo zuu dos tr�leis dos el�ctricos, ro�ando o cabo e
tilintando l� para o Rato, e pelo diluid�ssimo eco duma tip�ia a toda para as
bandas do Po�o dos Negros. Mas eu perdera por completo a no��o de tempo. A avaliar
pelo amortecimento geral, era tarde. Arrastado pelo envisco dos pr�prios lances,
estranho para mais aos costumes do bairro, n�o calculava, nem aproximadamente, a
hora que era, N�o me admirava nada que fosse apenas meia-noite ou que n�o tardasse
a romper a alva. Do que eu bem me apercebera era do colapso da natureza debaixo do
lucilar de V�nus, cada vez mais rutilo e dominante. Mesmo era a ela entre as mais
estrelas que eu via melhor e em que demorava os olhos de prefer�ncia ao resto. E
dizia-me em sua incompreens�vel- lonjura e mist�rio: pouco � o homem, a vida, esse
vosso planeta. S� uma coisa conta, porque � a realidade insofism�vel de cada um: a
vontade. Satisfaz, satisfaz essa gorgona imperial, e n�o te importes nada com o
minuto que vir� depois.
Quanto tempo estive eu ali contra�do sobre os tend�es como sobre o instinto,
os jarretes em flex�o de salto, tal o jaguar de emboscada nos bosques? Ao cabo duma
longa pausa de ensimesmamento, de fereza e de treva, que me pareceu a vala da
eternidade, surgiu uma luz na face lateral do pr�dio, precisamente no quarto que
era de presumir fosse ainda o de Estef�nia. Um minuto decorrido, o resplendor
doutra luz filtrou no �ltimo andar atrav�s da janela, que eu dali n�o via, muito
prov�vel que dos aposentos de Miguel Malafaia.
A vidra�a de baixo abriu-se. Entrevi na meia obscuridade a lactesc�ncia
inst�vel dum bra�o nu. Dei muito bem conta que, antes de correr os estores contra a
janela escancarada, a forma eb�rnea se detivera absorta ou indecisa.
E agora? A cidade dormia. Abaixo de mim, � roda acumulava-se o sil�ncio numa
perenidade de chafurdo. N�o sobrevogava � d�cima do oceano nocturnal outra senha de
vida al�m da luz do g�s que, reverberando na casa fronteiri�a, se derramava pelo
terra�o em arrebol crepuscular.
Turenne nos instantes cr�ticos da batalha fustigava-se: tu trembles, carcasse?
Viver e morrer dependem dum sopro que t�o depressa se aspira como se exala.
Adiante? Debaixo do telheiro desencantei uma escada e, com o Diabo, certamente o
bom Diabo a fortalecer-me o bra�o - se n�o era antes Nossa Senhora dos Rem�dios, a
boa madrinha que eu mais de um percal�o s�rio senti por cima do ombro a coadjuvar-
me sorridente e passa-culpas, como a um grego audacioso Palas Atencia - ergui-a
para a janela de Estef�nia. Se, n�o desse conta, bem ia. Se desse conta, antes que
acudisse gente, teria eu, afrondoso como Geraldo sem Pavor, chegado ao p� dela.
Para qu�, n�o sabia ao certo. L� se veria.
A escada encostou � parede sem produzir o mais leve bul�cio; nem o ro�ar duma
asa, minha Nossa Senhora? Trepei banzo a banzo, tamb�m o mais r�pida e subtilmente
que pude e, l� em cima, ao sobreexceder, o Peitoril, espreitei para o interior do
quarto. L� estava ela? L� estava, e tanto quanto pude depreender, porque o �ngulo
encobria-ma em parte, recostada na otomana, no desalinho do quimono. N�o lhe via
mais que a perna dentro da teia de aranha da meia, o borzeguim ca�do junto do p�, e
a m�o abandonada � altura do joelho com um livro entalado entre os dedos. Meditava
a passagem do trecho em que interrompera a leitura ou a sua medita��o n�o seria
antes um devaneio muito � parte do que rezava o autor? Sim, n�o lhe via mais que a
perna, mas essa, roli�a e aluarada, nunca me parecera t�o infernalmente tentadora.
E dizia-me debaixo do punho cerrado da intimida��o: era poss�vel que aquele corpo
divino alguma vez tivesse sido meu? T�-lo-ia sido mais do que em fantasia?
Eu era um triste ningu�m e nunca como naquela hora crucial senti essa feroz e
inata realidade. Sim, eu era uni triste ningu�m e, penetrado cada vez mais da
pr�pria insignific�ncia, em propor��o tornava-se Estef�nia long�nqua e inacess�vel.
N�o valia mais a pena descer cautelosamente como subira e regressar ao pobre casulo
da Rua do Passadi�o? Mas, com seiscentos diabos, aquela mulher fora minha, o que se
chama minha; gemera-me nos bra�os; morderamo-nos um ao outro de raiva voluptuosa, e
havia de retirar como um patola emba�ado e pusil�nime? N�o costumava ela dizer-me:
�D� o mundo as voltas que der, nunca mais desaparece do meu sangue o lume da tua
boca?� Pois tudo na vida n�o eram pontos que se repetiam em sucess�o helicoidal, no
mesmo paralelo e azimute, com diferen�a apenas da temporalidade?
Dardejei uma instintiva vista de olhos pelo casario adormecido. A vaga de
telhados, �ngulos, empenas, pir�mides truncadas pelo jogo de luz e sombra,
assoberbando vale a vale, ia esbater-se ao longe no tropo-galhopo dos bairros
ribeirinhos. Nesses bairros a n�voa, que � imaginosa, andava de sociedade com o
luar a inscrever as coisas do arco-da-velha mais inveros�meis. Mas, logo ap�s, o
Tejo resplandecia muito puro e manso no seu estu�rio, lhama tr�mula junto dos cais
por efeito das luzes, balsa fosca dali em fora, at� transverter-se na outra margem,
Bugio e sua restinga, numa fumarola arg�ntea, tenu�ssima.
Eu pairava alto e, talvez em virtude disso, sentia-me cada vez mais nulo e
desmoralizado. O sossego infinito, a imensidade infinita deviam exercer sobre mim o
mesmo poder de fascina��o que tem uma serpente, plantada de olhos esbrasidos e boca
escachada diante dum laparoto. Porque me n�o ia eu embora? Mas tornei a espreitar
para dentro da casa. Estef�nia tinha mudado de posi��o e, reclinada sobre a ilharga
em meia-lua, deixava ver a esp�dua e a perna toda. A perna, liberta da bata, s�
ela, valia bem a morte. Acabe-se tudo? Ao passo que me agarranchava ao parapeito
chamei:
- Estef�nia!
N�o ouviu a minha voz ou ter-lhe-ia parecido o logro da sua imagina��o? Eu de
resto articulara mal e o meu apelo n�o passara de baixo e atemoriza-d�ssimo som,
espremido pela glote seca entabuada dos lances supremos.
- Estef�nia! - volvi com melhor corda vocal.
Vi-a ent�o desenroscar-se da otomana como uma mola, p�r-se a p� e olhar em
roda, primeiro para a porta, depois em direc��o da janela. E como se apercebesse da
sombra da minha cabe�a, vi-a abanar toda, estarrecer coisa de nada e avan�ar dois
passos.
- Estef�nia! - repeti em tom agora mais brando, quase um murm�rio, para que
sem sobressalto se compenetrasse do facto da minha presen�a.
Ela ent�o reconheceu-me e senti, como uma terr�vel senten�a, o seu olhar
assombrado descer sobre mim. Foi mais r�pido que o rel�mpago e, levando as m�os �
cabe�a, recuou um passo, dois passos, e estacou no meio do aposento, arquejante e
indecisa. Estendi as m�os para ela... Qual? Cresceu para mim com tal �mpeto que no
primeiro momento julguei que fosse para me atirar da escada a baixo. O seu
prop�sito era fechar as vidra�as. Mas eu tinha os bra�os dentro do peitoril e os
caixilhos emperraram neles. Ela puxava, tornava a puxar, e eu manhosamente gemia,
fingindo que me magoava. Um segundo em que me pareceu afrouxar na sua sanha, sem
contudo deixar de estear os caixilhos, disse-lhe com voz lamentosa:
- Quero dizer-lhe duas palavras... s� duas, e saio logo. Deixe-me entrar...
- Seu garoto? - silvou com sobrecenho de serafim.
- Por amor de Deus, ou�a-me? O que tenho a dizer-lhe � r�pido. � r�pido, mas
importante, vai ver. � muito importante para todos... mas principalmente para si.
Deixe-me entrar!
A minha s�plica teve por despacho recome�ar ela a espremer-me os bra�os entre
o parapeito e a vidra�a com novo e refor�ado alento. Eu, no ardil de tocar-lhe a
sensibilidade, desatei a queixar-me por todos os foles, mas nem por isso ela se
moderou, O pior de tudo � que para o alto da Rua Formosa come�aram a soar passos,
passos lentos, compassados, que podiam muito bem ser do pol�cia de ronda.
- N�o me deixa entrar, mas atiro-me abaixo e mato-me! - exclamei com desespero
e desta feita sem impostura.
N�o me enganava com ela. Surpreendendo-lhe na pupila um lampejo felino, meio
de exalta��o, meio de �dio, reflexamente proferi:
- Bem sei que lhe dou prazer se me matar, bem sei. Mas conte que lhe n�o h�o-
de faltar aborrecimentos...
Estef�nia pareceu-me n�o perceber ou pelo menos n�o atingir onde eu queria
chegar, e pus-me com devaneios, como se tudo me fosse exterior por um
encorti�amento do corpo e alma, ou a ac��o se desenvolvesse na periferia da minha
personalidade. Suponho ter-lhe falado assim:
- Diga l�: gosta de ver em baixo o terra�o salpicado de sangue e de miolos,
n�o gosta...? Estou a reparar que gosta e acabo por lhe fazer a vontade. Vai ver se
n�o fa�o! Imagine agora o esc�ndalo, com o bairro em burburinho... bombei-ros... a
pol�cia... a senhora presa ou detida para averigua��es... seu marido, grande do
reino, objecto da maledic�ncia p�blica, coberto de rabos-levas! Agrada-lhe, n�o?!
Calei-me um instante a espreitar, a impress�o que produziam na cara dela estas
palavras sisudas. Era � contraluz, por detr�s dos vidros, e ao certo nada pude
avaliar, pelo que volvi:
- Pois se quer, afinal n�o me custa muito dar-lhe esse prazer. Acredite!
Acredite tamb�m que n�o estamos j� longe disso. Mas, ou�a, porque me n�o deixa
entrar...?! Sou assim lobo que coma gente?!
Continuava hirta e calada e, sentindo a qu�mica do seu eu em vertiginosa
precipita��o, n�o me cansei de rebater-lhe a irac�ndia que brotara no seu peito
como a espuma do colidir da onda.
- Bonito esc�ndalo para os rep�rteres! Bonito!
Como ela se tivesse especado contra os caixilhos, a posi��o em que me
encontrava n�o permitia empregar a for�a para aluir aquela barreira, que
positivamente n�o era a porta de Martim Moniz. Se a empregasse, o mais certo seria
estatelar-me no ch�o, que o mosaico, escorregadio por natureza, oferecia � escada
um apoio mais que melindroso. E, vendo-lhe o ar resoluto e os olhos a luzir de
raiva, comecei em meu �ntimo a agourar mal do empreendimento. Em voz mais humilde
do que nunca tornei a implorar:
- Deixa-me entrar...? N�o deixa...?! Estou aqui estou em terra. j� me n�o
posso ter. Quer ent�o a minha morte, Estef�nia...? Quer...? Uma morte assim
est�pida...?! Deixe-me entrar que eu juro-lhe n�o lhe tocar sequer com um dedo...
Nem me chego para si. N�o me faz esse favor? Tem medo, j� vejo. julguei que n�o
havia ningu�m que lhe metesse medo?!
E como eu pretendesse aproveitar um momento em que se me afigurou mais
descuidada, mudando a posi��o da m�o, o parapeito apareceu ensanguentado, o que a
mim pr�prio causou surpresa. Reparei que ela se confrangeu e a sua resist�ncia
quebrava verticalmente, estanque o fluido nervoso ou amolecida a rijeza dos
m�sculos com que emparava as portadas. Os passos, no �ngulo sudoeste da pra�a,
repercutiam com uma nitidez pavorosa, e meti a cabe�a. Ent�o ela cedeu. Cedendo,
deitou a correr para o fundo do quarto e eu cheguei a supor que ia dar alarme. S�
mais tarde compreendi a que impulso obedecera. E fazendo de s�bito volta-cara e
crescendo afoitamente para mim, como se se dispusesse a lutar bra�o a bra�o ou
fosse a agredir-me, sibilou colericamente:
- Com que ent�o est� feito saltedor? Ou julga que anda a tirar os ninhos no
convento?
- Todos ter�o o direito de o dizer menos a senhora.
- Que � isto se n�o obra de garoto?! V�, v�, retire-se, quando n�o grito e
entrego-o � pol�cia - e fazia men��o de se acercar da janela.
- Grite, ande, grite! N�o deixava de ter a sua pilh�ria! proferi em tom
chocarreiro e desviando-me de modo a oferecer-lhe livre passagem.
- Acabemos com a palha�ada! Retira-se ou n�o se retira?... N�o se retira...? -
e espremia as palavras como uma cobra esguicha veneno.
- Ou�a-me primeiro...
Quedou-se um instante para logo, como arrependida da concess�o, embora nada
mais que potencial, esbravejar, contorcendo-se toda, l�bios num ricto mau, olhos a
despedir lume:
- N�o se retira...? Ai n�o...? Vai ver... - e deu dois passos para a janela.
Certamente ia gritar. Quando entrei, as vidra�as tinham-se fechado. N�o
saberia dizer se fui eu, se foi ela que as fechou. Agora, antecipando-me ao que
parecia ser o seu fito, abri-as com brusquid�o de par em par e, empurrando-a por
detr�s de modo a dobr�-la para fora do parapeito, disse-lhe em minha raiva cega:
- Grite, v�, grite! At� posso gritar eu, se quiser...
Atitude t�o inesperada desnorteou-a. Ficou muda, interdita, ofegante, face a
face comigo no estreito v�o da janela. Depois de a ver suspensa em sua confus�o,
tornei em leve tom de desafio, sem motejar:
- Gritava e depois? Apanhavam-me dentro do seu quarto. Atente nisto: a
primeira a sofrer-lhe a pancada era a senhora. Estou a ver a cara que n�o havia de
fazer o senhor Miguel de Malafaia.
- Nunca meu marido seria capaz de me culpar pela sua ves�nia, este)a certo!
- Ora, ora! Com a �intelig�ncia de pederneira� que a senhora foi a pr�pria a
descobrir-lhe...?!
Vislumbrei-lhe um rel�mpago de ira nos olhos e compreendi que tinha sido
desastrado. Por isso acudi, sem lhe dar tempo � referta:
- Mas vamos ao que me traz, para me ir j� embora e duma vez para todo o
sempre. A senhora enxovalhou-me. Enxovalhou-me, sim, no mais sagrado (la minha
dignidade. Que me repelisse, acabou-se, estava no seu direito. Mas mentiu-me;
aceitou, ao que consta, que me assassinassem; negou-me, depois de me amarfanhar
como um trapo. Diga, que necessidade tinha de cuspir sobre mim?
- Cuspir, que � isso? - articulou com ostensivo desd�m. - Cuspir � nas
alfurjas da Mouraria com as mulheres que l� h�, feitas para a sua estatura!
- N�o conhe�o!
- Vem a tempo. Entre nos � que n�o pode haver mais nenhuma esp�cie de
entendimento. Somos muito diferentes, de mundos opostos, e o senhor est� muito
enganado comigo... e com o que se passou entre n�s.
Calou-se um instante. Eu devia olhar para ela com o ar, entre estomagado e
sacripanta, do palafreneiro para o palafr�m, que o atirou a terra. Aquela dos
mundos opostos n�o lembra ao Diabo.
- Quer saber: o que eu tive por si foi d�, d�, pode acreditar... o d� que
levava n�o sei que rainha a beijar os leprosos. Atravessou-se-me na garganta a
sua... como hei-de chamar-lhe?... a sua insignific�ncia. Palerma de mim! Estou bem
castigada de ter olhado para um fedelho, bem castigada!
Tornou a calar-se. Procurava ler bem no meu rosto a impress�o das chicotadas.
Prosseguiu:
- Pode l� tolerar-se que me venha assaltar a casa, altas horas, quando tudo
est� em sossego, servindo-se de processos a que recorrem os bandidos?! N�o, o que o
senhor fez merece um castigo severo!
Dobrei a cabe�a sem j� me importar de ler nos seus olhos o desfecho da
aventura. Estava a vazar a mar�. Palpitava-me que, deixando-lhe expandir � vontade
c�lera e despeito, breve teria despejado todo o carc�s de flechas.
- N�o tem desculpa! Uma desfa�atez assim passa as marcas!
Novo sil�ncio.
- Mas foi-me bem feita! Foi-me bem feita! Por minutos as pr�prias raz�es, boas
e m�s raz�es, que ia tocando em seu agastamento, davam-lhe corda para a retambana.
Eu continuava a ouvir de cabe�a baixa, como um r�u que de antem�o aceita o
veredicto inexor�vel. Reparei que semelhante atitude lhe causava manifesto prazer.
Quando se lhe estancou a veia dos agravos, p�s-se a repisar:
- Julgava que entre mim e o senhor podia ter havido outra coisa que n�o fosse
uma brincadeira? Brincadeira tola e ef�mera? Do meu lado puro impulso, o tal
est�pido impulso da bondade. Sim, isso e... a espuma dum capricho. Do seu lado,
garranice, uma aut�ntica garranice, ah!, ah!
Sorri ao desconchavo como ela, que acudiu prontamente:
- Acha-lhe gra�a...?! Pois � assim mesmo. Olhe, se me interessasse ter
amantes, do que h� de mais lisonjeiro, de mais viril, tinha onde escolher. O pateta
das lumin�rias a rir-se?! O senhor imagina que � alguma coisa neste mundo?!... Diga
l�!... Imagina que � outra coisa mais que um triste farroupilha!?
Depois daquela golfada, crispou-se-lhe o rosto numa express�o simultaneamente
de piedade e de altivez. Perante a minha submiss�o, que interpretava como um
triunfo, expressou:
- V�, v�-se embora! N�o � pequena vergonha para mim ter-lhe alguma vez dado
aten��o. Veja agora se consegue sair sem darem conta. O senhor al�m de canalha � um
louco perigoso. Apre, entrar de noite por uma janela, quando menos se espera, como
um avej�o, um morcejo? Apre! V�, v�, o senhor deixou de me interessar. Outrem me
interessa. V�, desapare�a da vista!
Tocava-me para a janela como um bicho importuno, e eu sentia-me profundamente
ultrajado, mas n�o levantava o ultraje. N�o sabia levant�-lo, talvez. Chegara a
aventura a seu termo?
- Adeus! - murmurei ao passo que me virava para a janela no jeito de me
retirar. - Ouvi o que precisava de saber, perdoe.
Ela ficara boquiaberta, porventura contando com nova reac��o minha. Ao erguer
o p� para saltar o peitoril, voltei-me:
- Ao menos deixe-me beijar-lhe a m�o... Estendeu-me as duas m�os. Com as m�os
veio o tronco. Com o corpo a boca. Boca que se mostrava esquiva, indignada, que
mordia! Creio que me fez sangue. Depois, boca que era voragem suspirosa.
Ao cabo de muito chorar-me nos bra�os o mal que tinha feito, queria a todo o
custo que lhe batesse. Lhe batesse, para al�vio. Ela teria mais dez anos do que eu
e colocava-se perante mim na postura de criaturinha meia irrespons�vel e
acrian�ada. Mais duma vez tive de lhe p�r a m�o na boca, t�o convulsivos eram os
seus solu�os, uns, de pesar, entremeados com outros, de gozo. Com que sofreguid�o
nos am�mos! Com que sofreguid�o a amei! Por ela acima de todas! Pela desconhecida
do circo, que devia ser uma tremelga, deitada na cama! Por Celid�nia que, em raz�o
possivelmente da dist�ncia e de minha observante candura, me visitava nos sonhos
l�bricos da madrugada! Depois, por ela, ainda por ela, mais por ela!
Sobre a manh�, que eu sentia no arroxear do c�u a difundir pelo mundo sua
estival preia-mar de claridade, dizia-me com pat�tico e furioso inebriamento:
- Do que tu n�o �s capaz, meu querido! Do que tu n�o �s capaz!?
Apenas via a cor cer�lea dos seus olhos pisados, e n�o pude avaliar da
largueza do horizonte com que aquela cigana demarcava a minha sina.
Conduziu-me pelo corredor fora direito � porta principal, como suserano do
feudo. Ah, e a escada contra a janela? A escada ela se encarregaria de a mandar
retirar dali a pouco, n�o me doesse a mim a cabe�a? De passagem, � claridade ba�a e
hesitante da aurora que se coava pelas bandeiras das portas altas, lobriguei na
longa parede, suspensos de seus caixilhos de oiro, os avoen-gos dos Malafaias - que
os Matagatos n�o figuravam no armorial - soldados de �frica, pr�ncipes da igreja,
cortes�os de rabona, em fila, � sombra da torre de prata encimada pelo corvo
alvissareiro, lobriguei-os a olharem para n�s com ar l�vido, como tocados em sua
pudibonderia por acto que n�o podia entrar nos tombos geneal�gicos. Estef�nia
levava um manto negro de vampiro com reflexos viol�ceos, e eu tinha a sensa��o,
vendo a luz r�sea brincar em seus belos cabelos desgrenhados e na sua face de
n�car, de sair pela m�o duma deusa daquelas grutas da H�lade, de que falam os
poemas dionis�acos, onde tiv�ssemos passado a noite a gerar um demiurgo.
No vesti�rio, ao passo que se amarrotava toda contra mim, ciciou:
- A manh� est� fria. Precisas de te agasalhar!
E, sem aguardar a minha resposta, deitou-me aos ombros a peli�a de Miguel
Baila Taralh�o Morrafora Galafura de Malafaia.
- H�s-de lev�-la! N�o fujas... Zango-me!...
Atirei a vestimenta ao ch�o perante a sua doce teimosia. Abriu a porta e,
retirando a chave, meteu-ma na m�o:
- Vens depois das onze. A Am�lia te guiar�, filhinho. Sabes, a Am�lia
Violas...
Enleou-se a mim. Beijei-a. Beijou-me e, boca contra boca, na suc��o efusiva e
demorada, pareceu-me que todo o meu ser se atolava num vulc�nico e lutulento pego
que sabia deliciosamente a leite e a nugate. Velo presa a mim para fora da porta.
Foi preciso desat�-la dos meus bra�os, � viva for�a, como se faz a uma cobra dos
tr�picos ou a uma grossa silva que se agarrou e, quanto mais se despega, mais se
apega.
VI
Maldita esta��o, porque � que o comboio nunca mais partia? Estavam a dar as
tr�s da manh�, e n�s, tr�pegos, cheios de sono, a bater o passo no cais deserto,
bloqueado pelo sil�ncio h�mido da campina. Ouvia-se ao largo, no escuro, e era
tudo, esfuziar o vapor duma locomotiva em chieira molesta e opressa que nunca mais
tinha fim.
- H� que criar o estado psicol�gico especial... o tal estado de ang�stia
colectiva...
- Deixa, o Poder encarrega-se disso.
- Qual? O Poder opera no que considera a anima vili, em n�s, os perturbadores
da ordem. Temos que sarjar no m�sculo... alta parasitagem, mandarins. S� assim se
poder� obter a atmosfera pr�pria de alucina��o... � moscovita.
- E n�o poder� produzir-se a reac��o contr�ria?
- Pode. Nesse caso, ficar� o �ndice. Bem v�s, para chocar ovos, uma galinha
precisa de quarenta graus de febre.
Sentiam-se nas dobras da noite ferragens oleosas e pesadas irem deslizando.
Nos intervalos, amortecido todo o bul�cio da cantina e das salas de espera, o
so�obramento era completo.
- Ora, � absurdo que se atire a esmo...
- N�o tem import�ncia. A quest�o � que se acerte com ca�a grossa. E, pronto,
provocou-se a cat�lise. Se o Z� Pateta ingere, bem vai; se revessa, temos
conversado. � uma cruel experi�ncia, n�o haja d�vida. Mas, dize-me c�, nas guerras
n�o se derrama sangue �s a�udadas? Quem olha a isso? Quem se lembra de protestar,
tratando-se duma opera��o em que se imagina jogar a felicidade, a honra, os
direitos dum povo, e quejandos tru�smos? O fen�meno agora � da mesma �ndole embora
o condicione outra moral.
Calou-se a voz de Manfredo Bemposta, chefe de grupo. E a cena da noite
tumultuosa perpassou na minha imagina��o. Acontecera encontrarmo-nos nos
descampados de Linda-a-Velha dezasseis revolucion�rios desenganados ou presumindo
disso. Palavra puxa palavra, uma raz�o demanda duas; basta uma trilhadela do amor-
pr�prio para causar a zaragata: em breve, como bons inconformistas e portuguesinhos
de lei, est�vamos todos pegados. O Roli�a, que fizera sua a tese de Bemposta,
tratou o Paulo Ramos de empata, charlat�o e paparreta; o Ramos sacou do rev�lver.
Para conter o Roli�a, que avan�ava a peito descoberto para o cano da pistola
abocada sobre ele, foi necess�rio que eu dum salto lhe segurasse o pulso com tanto
�mpeto que lho desloquei. Resultados pr�ticos depois de t�o truculento escarc�u: o
Roli�a com o bra�o ao peito... e pouco mais. Esse pouco cifrava-se na miss�o
secreta de que o Bemposta e eu �amos encarregados, ponto hipot�tico de partida para
mais largo cometimento.
Molemente desc�amos e remont�vamos o piso asfaltado, ele mal proferindo uma
palavra, eu articulando outra, que logo se desvaneciam como borbot�es da corrente
subterr�nea que deflu�a em nossos esp�ritos. Essa palavra era o expoente dum facto,
duma situa��o, dum modo de ver, e chegava para estabelecer entre n�s como que um
longo di�logo com perguntas e respostas.
- O teu Chinoca � homem firme?
- Como uma torre. Falas destas alternavam com pausas que represen-tavam dois a
tr�s minutos de picadeiro, e tornava Bemposta:
- Deixa, homem? H� que determinar o t�nus. N�o � verdade, dize l�, que quanto
mais rubro est� o ferro, melhor o dobra o martelo? Dor, receios, afli��es,
iniquidades, protestos, que sei eu, tudo isso fornece a t�mpera com que se caldeiam
os homens.
- H�s-de ficar na hist�ria da parvalheira com a alcunha de Marat dos
Fanqueiros. O diacho � que na casa de banho espreita infalivelmente uma Carlota
Corday. Ainda mais, esquentadi�o como �s!
Ele, que em mat�ria de castidade superava um col�gio de vestais, sorriu �
fac�cia e ficou a glos�-la, ia jurar, em sil�ncio.
� for�a de desejar comboio, acab�mos por ver lobreguejar os grandes caixot�es
de t�bua e ferro, que nos haviam de conduzir mais longe, descendo lentamente a via,
empurrados a ombro pelos homens da manobra. Tamb�m eles com o seu ar espesso,
baturro, atravessavam, como as pessoas que v�o a andar e a dormir, um sono
quebrantado.
- Mas porque � que ainda n�o sa�mos? Que ter� havido? - gemeu Bemposta.
- N�o sa�mos enquanto n�o chegar o expresso. Ordens especiais?
Maneira de atravessar aquele mar morto de t�dio fomos tomar caf�. Contra a
casa das arrecada��es e sentinas amontoavam-se os passageiros de terceira, cabe�a
reclinada nos sacos de chita, varapau entalado debaixo da perna, � desbanda as
mulheres engoladas nos xailes em compostura menos lassa que os homens. Dentro das
salas de espera, as rimas de gente eram mais densas ainda e atropeladas. Uns
dormiam, outros chupavam o cigarrito, aqueles com o naco de queijo prensado pelo
polegar contra a fatia de broa, a navalha a servir ora para cortar, ora de garfo,
iam rilhando a sua parva. Perante esses redis de ocasi�o do rebanho humano, o
Bemposta enclavinhava as m�os, amea�ador. Ah, quando chegasse a hora de ajustar
contas com os herdados da sorte?
O Bemposta que andava homiziado h� semanas e atingia o �cume do extremismo
lembrava-me �s vezes o Lu�s Chalado com as entranhas a arder em holocausto �
igualdade. Eu deitava �gua na fervura. L�rias, sacrif�cios espor�dicos equivaliam a
gastar cera com ruins defuntos. O liberto de hoje era o opressor de amanh�. Os
exemplos de tal revers�o metiam-se pelos olhos dentro. O homem n�o havia de
resgatar-se pelo homem, isto �, por uma vit�ria do esp�rito. Quem havia de resgatar
o homem era a m�quina, numa palavra, a ci�ncia. Por isso, as doutrinas, que tinham
interesse na escravid�o do homem, renegavam da �rvore da ci�ncia.
- A m�quina faz o bem e faz o mal - redarguiu-me Bemposta, como estiv�ssemos
em desacordo. - Tanto anda como desanda ao servi�o do homem. O selvagem n�o sabe o
que seja o utens�lio e � relativamente feliz. O civilizado de Portugal, da Fran�a,
da It�lia conhece o utens�lio e � miser�vel.
- Perfeitamente. Para que a m�quina desempenhe o seu alto papel � indis-
pens�vel que se aperfei�oe, se eleve ao grau ideal de produ��o. Por enquanto, n�o
passa dum modesto auxiliar. Quando for suscept�vel de substituir o homem de forma
omn�moda, est� realizado o resgate da humanidade. At� l�, sabes tu, temos guerras e
malandrices � solta, que a condi��o de luta torna os homens c�es uns para os
outros.
De s�bito ouviu-se, vindo do sul, o silvo estridente dum comboio. Era o
expresso que se avizinhava. Fulguraram ao fundo, na negrid�o, os far�is do
cabe�ote. Tremeu o cais com o passo rompante do colosso. Chieira do vapor,
ferralhada tonitruante, resfolgamento cavernoso, estalidos de a�o, a forma��o
afrouxou... deteve-se, o que era caso. Um momento, e repartiu com respira��o lenta,
de come�o, logo de arrancada, expelindo um h�lito tit�nico.
- N�o parece o Belis�rio! - disse eu apertando o bra�o de Bemposta ante a
silhueta dum passageiro que descera do r�pido e se esgueirava para o restaurante. -
Vamos ver...?
- O Belis�rio, homem?! N�o est�s bom. O Belis�rio faz-tudo, aquele nosso
camarada, coitado, que sofre de podraga e de conjuntivite, por isso traz botas
papa-l�guas e �culos azuis...? Que ideia? A esta hora dorme o sono dos justos
debaixo da asa maternal da Dona Fl�via.
Vendo-me franzir os l�bios com ares de inconvicto, o Bemposta ria a bandeiras
despregadas do meu desconchavo.
Insulados de novo rio sil�ncio do mundo, volt�mos a peripatetizar pelo cais,
vendo dan�ar diante dos olhos a sombra desengon�ada de nossos vultos. Oh, como a
noite era longa e lenta a escoar-se numa esta��o sertaneja! Os campos revessavam
para ela quanto podiam conter de est�tico e imperme�vel. Lisboa passara no trem
anterior, deixando em suspens�o a sua poeira: ares de senhores importantes �s
janelas, gaforinas de m�sicos ou de poetas, bon�s inglesados, duas imagens bonitas
de mulher, uns olhos brincalh�es doutra. E os minutos tinham entrado a valer
quartos de hora precisamente porque aquele comboio, ao engolir as dist�ncias,
estabelecera novas rela��es de medida.
Mas eis que ao largo, na orla da noite, reluziu um gordo olho de c�clope. Paf,
paf, paf, a locomotiva veio-se acercando, atroando o carril com o rodar
mastod�ntico e a basculagem surda das bielas. Depois, pam!, encostou � cambulhada
de vag�es, o nosso comboio.
Precipitou-se para os lugares a matalotagem dos sacos de chita e de xaile.
Grimp�mos tamb�m n�s em pleno alvoro�o. Fecham-se portinholas, abrem-se
portinholas. Um harm�nio solta dois compassos roufenhos, cala-se, acobardado o
tocador perante a grita em suspens�o. N�o cabe mais ningu�m nos comparti-mentos.
Engrossou o vento, pouco h� maneirinho, que obriga as mulheres que se plantaram �
janela a embiocar-se nos agasalhos. Com o reflorir dos horizontes arru�a ao longe
qualquer coisa que chama a aten��o dum sujeito, vago tipo de lisboeta, que se
sentou ao nosso lado. Essa coisa d� ideia do arvoredo a andar. � a saia de folhos
da alba, e elucido-o, que mal conhece o campo com seus cerros e vales e seus
mist�rios de luminosidade.
- N�o �? - pergunto para Bemposta.
- Sim, a isso na minha terra chama-se o raleiro da madrugada.
- Que nome! � a �os de dedos cor-de-rosa.
- Partida? - clama uma voz fanhosa.
Partida?! Bendita ela fosse. Manfredo Bemposta, tarimbeiro do esp�rito,
autodidacta, pouco mais provido de estudos em sua inf�ncia que da instru��o
prim�ria, versado no tarde em literatura � Kropotkine, nunca leu Homero, nem �
poeta, e eu rio-me da sua incompreens�o. Rio-me deveras, que nunca me senti t�o
satisfeito comigo, com o meu saber, com o meu latin�rio, com a vida e o curso que
seguem as coisas nesta santa terrinha. Sinto-me nadar em beatitude.
- Partida!
O Bemposta surpreende-me a assobiar e observa:
- Vais contente. Algum galo te cantou...!? Se lhe dissesse o galo que foi
ficava menos amigo. A felicidade, quando n�o causa inveja, arrepia, mormente se os
outros s�o infelizes ou carecem daquilo que nos torna felizes. N�o gosto de me
sentir invejado pelas pessoas que estimo, da� o serem as minhas venturas mais
recatadas que vividas no fundo do mar. Na banqueta, pergunto-lhe a meia voz:
- O Jos� Elias reatou com a Ernestina?
- Que eu saiba, n�o.
- Coitada da rapariga? Era tempo de se reconciliarem.
- Bah, ela � uma pobre de Cristo. Era despreocupada a sua voz e tornou no
mesmo tom:
- Porque perguntas...? Se gostas dela, chega-te adiante...
- N�o preciso - respondi a sorrir para amenizar a brutalidade.
- Felizardo? � bonita?
- Como todos os anjos juntos.
- Caspit�? Tem bago?
- Milion�ria.
- Que te sustente!... Boa... quer dizer, amor�vel!
- At� vir para mim, que n�o sou nada neste mundo. Calou-se, fitando-me.
Arrependi-me de ir t�o longe.
O Bemposta, em voz levemente sard�nica, acrescentou:
- Tem dono, hem! Ou � s� tua...?
- S� minha, ah, l� isso n�o �! Entrega-se ao primeiro. Tem sido de
tutilimundi. Pior que a pior das marafonas. � quest�o de lhe acenarem. Por isso �
infeliz e apanha lambada de criar bicho. Usa gorro na cabe�a...
Desatei a rir; o Bemposta tamb�m.
- Percebo, � a Rep�blica. Mas tu n�o �s nenhum convencional. A Rep�blica h�-de
ser aquilo que n�s queiramos que seja. Para um bicho como eu, a amante ideal �
essa. Mas para ti, hum!?
Come�ou a recuar a esta��o. Outras bisarmas negras na contravia moviam-se
igualmente para tr�s. Brilhavam os dorsos viscosos dos seus tejadilhos aos fulgores
crepusculares da alba. Na curva, �pouca terra, pouca terra�, mostrou-se o olho
rebuli�o da locomotiva, ao passo que se sentia que se lhe estiravam os tend�es a
increver-se no railhe. Que al�vio espeda�ar-se a eternidade!
Na esta��o imediata, ainda pareciam de enxofre os rostos alumiados da luz dos
candeeiros e do livor da aurora. Mas adiante, ouviu-se o primeiro trilo da cotovia
ao tempo que se encastelava no c�u a chamar o sol. Campos de milho e de batatal,
pinhais, cabe�os, valeiros... Bemposta deixara-se empolgar pela sonol�ncia, meia
distens�o, meia cansa�o homem sadio e que obedece � natureza com pontualidade. Em
Mort�gua avisto, ao descrever o comboio uma curva apertada, l� adiante, colado
contra a vidra�a das primeiras, o car�o do homem que se me afigurou ser o
Belis�rio. Acordo o Bemposta, mas j� se desfizera a curva. Ante o meu ar de caso,
meio estremunhado, dispara-me nova gargalhada:
- Homem, tira as cocas dos olhos. O Belis�rio faz-tudo � incapaz de sair do
Chiado ou da Baixa para onde quer que seja. Nem para ir buscar os brilhantes da
Begum.
Volta a refocilar no sono com optimismo e tudo para nem mesmo em Vila Franca
das Naves acordar com a estreloi�ada da paragem. Abano-o como um abrunheiro.
julgava-se na Rua dos Fanqueiros em macia suma�ma. Com esp�rito desanuviado ou n�o,
era homem para dormir em cima dum monte de brita como na mais fofa otomana. A
petribilidade do seu sono passava por compleicional. Meio desperto, afivelava
m�scara de enjoado. Sacudi-o de novo com m�o rija:
- Acorda de vez, alma do diabo! Ias mais enrodilhado no assento que um bicho-
de-conta no palhi�o.
Corremos � dilig�ncia que, na terra do Chu�o, nos havia de trasbordar para
outra carreira. Uma traquitana destas, mais que arca de No�, � camarata e
refeit�rio em comum. As pernas dum perdem-se debaixo das vestes dos outros. Quem
saber� distinguir as pr�prias? Farnel que venha � superf�cie morre ali em digno e
franco �gape, sob a �gide de Hermes, o deus das estradas.
Eh, mulas?, e l� vai o tiro de cinco alim�rias aos solavancos pelos macadames
mal cal�ados, dando tempo a contar as cabe�as dos rebanhos, os molhos dos
rolheiros, as espigas da eira e os peixes no pego quando se passa pela ponte. Mas a
plan�cie acordou e festeja com ruidosos ecos a mala-posta gloriosa.
Em Trancoso, somos baldeados para a carripana do Ceguinho, assim chamado
porque um dos seus olhos � vesgo e o outro perlado de estrelas brancas, o que n�o o
impede de ver uma moeda de cinco r�is enterrada na poeira. Somos velhos conhecidos
e passo-lhe a m�o pelo lombo.
- Ainda tem aquela mula, como lhe chamava, Ceguinho! Aquela mula que dava
coices que fervia quando chegava ao p� dela uma batina? Era o peda�o duma mula!
- Rebentou. Chamava-se Marquesa.
- Mal empregada!
- Rebentou na subida para Vila Real, de rixa com o Cosme. Rebentou, mas
cheguei primeiro.
- Voc�, seu Manuel Ceguinho, era um homem das Ar�bias!
Fomos para a boleia em despeito do sol que derretia as pedras. Mas com a
marcha come�ou a correr uma aragem que mitigava a tisneira. O Bemposta, de olhos �
direita e � esquerda, ia bebendo os ares daquelas terras novas para ele, soltando
ahs? de exultamento. Atravess�mos a zona �rida trancosana, restolho e lande, mas
animada por povil�us, cheios de gente como formigueiros, e quadros pequeninos de
buli�osa poesia: uma cabra mocha apascentada nas rampas por uma pastorita que
parecia o modelo das Nossas Senhoras, de roca por dentro, sala rodada e adere�os ao
peito por fora, que se veneram nos altares beir�es; um senhor abade no seu rocim
com arrieiro � frente de pau argolado; um cego com a viola no saco e o seu
lazarilho. Entr�mos depois na �rea amena, regada pelo T�vora, onde tudo � verde, e
a vide frutifica em cord�es, quando n�o se enla�a nas �rvores, cobre as ruas e a
entrada dos p�tios com latadas de fresqu�ssima sombra em que h� sempre um senhor
morgado ou um velho comendador, de alcoba�a a espreitar do bolso, e de �culos, com
que lia as not�cias de Babil�nia, a escorregar do nariz, olhos suspensos no monstro
que desfila.
Em Ponte do Abade, alta. Comemos, bebemos e n�o permitimos que o Ceguinho
entre com a sua esp�rtula. At� aqui chega a colecta que se fez entre
correligion�rios. Fecham-se os merendeiros; batem-se os n�queis no balc�o, sa�da-se
a mulher da venda pelo bom petisco, e ala? Quando manduc�vamos, passou por n�s uma
vit�ria, puxada por dois cavalinhos troteiros, de cortinas corridas, incerta entre
estacar e ir adiante, como se flutuasse � ordem de algu�m. Depois vimo-la parar �
sa�da do povil�u... ficar � espera, deixar-nos passar e abalar, rompendo outra vez
adiante de n�s. Por alturas do Granjal encontr�mo-la de novo parada. Por detr�s das
cortinas, afigurou-se-nos que espreitava uma cabe�a. A manobra n�o nos passou
despercebida e adverti:
- Este carro traz algu�m que nos espia. Tinha gra�a se fosse o Belis�rio?
- L� voltas tu? O Belis�rio � incapaz de matar uma mosca.
- Anda aqui um carro para tr�s e para diante. Reparou? disse eu para o
Ceguinho.
- � um carro de aluguer, de Vila Franca.
- Quem ia nele? Viu...?
- N�o reparei bem, mas pareceu-me o fidalgo da Quinta de Rape... um velho
patusco e meio liru, mais ossos que carne, que anda �s sopas pelas casas deste e
daquele. Esbanjou o que tinha e conta-se dele que o �ltimo jantar de seu o cozinhou
com o papagaio. Estava parado � porta do Sindulfo de Almeida que � da parentela.
N�o conhecem?... Homens, admira?
Ao estalido do chicote por cima da sota, largo e zunidor: eh, mulas!, o
calhambeque devorava o macadame com as duas ordens de aljorces em grande bimbalhada
a desafiar o sossego da prov�ncia.
S�o-me familiares os s�tios: Ribeira, com o convento das bernardas em terra e
os seus cord�es de malvasia a todo o fundo da Quinta de Rape, perten�a do tal
fidalgo do papagaio, mais atr�s do amigo e chanceler de D. Miguel, Ribeiro Saraiva,
n�o sei de quem na actualidade; Granjal, com o Faustino Mour�o, l�d�o como h� muito
se n�o criava nas margens do T�vora, protagonista de larga folha de cacholas
rachadas a endireitar tortos e a varrer rogas por feiras e romarias; Vila da Ponte,
com o padre jacinto da ra�a daqueles monges de cogula e arn�s, capazes tanto de
reger uma comunidade com segura f�rula como de sustentar a causa do pr�ncipe com
rija espada; Penso, Adebarros, Vila da Rua, nateiro de fidalgotes abeberados no
verdasco e dum ou doutro bacharel seboso de corpo e alma. Mais uma vez passa por
n�s a vit�ria. Que sarabanda � esta?
Transmito as minhas suspeitas ao ouvido de Ceguinho. Segundo a regra geral do
automedonte beir�o, este � demagogo, acrata, inimigo do padre e do rei, embora seja
pessoalmente bizarro com todos, uma vez lan�ados na sua caixa infernal, e abana a
cabe�a:
- Estou em jurar que � o tal fidalgo sem tirar nem p�r. Mas, ou�a, n�o passem
para l� do alto do Pombo. Batam � porta do Al�pio, oficial de dilig�ncias, e digam
que v�o em meu nome...
- Somos conhecidos velhos... - digo eu.
- Ent�o melhor.
Descemos na lomba donde a vila se descobre na mescla de telhados moiriscos e
telhados de marselha nova, com a torre da igreja lan�ada como flecha no descampado
das vinhas, o antigo convento de freiras bentas, ali ao p�, averdengado por musgos
e copilos, a bacia do Balsem�o em baixo com o monte de Caba�os a rebordar de
cinzento, seu c�ncavo de esmeralda, e em frente e � direita as fitas claras das
duas estradas, ora corridas, ora bambas, norte a sul, leste a oeste, para Lamego...
R�gua, Vladivostoque.
N�o estava o Al�pio, amigo cola�o dos Barradas, nosso h�spede nos dias de
ralacice cong�nita, que nos abastecia de tinta de escrever, uma tinta roxa muito
fina, que dizia ser invento seu. Mas estava a mulher, e bastou dar-me a conhecer
para nos fazer entrar para um cub�culo onde havia dois mochos e urna mesa, cheia de
frascos, que devia ser simultaneamente a sua carteira de meirinho e laborat�rio de
espag�rico.
Ali nos qued�mos sentados, trocando bocejantes monoss�labos, � espera que se
fechasse a noite para deitarmos at� casa do senhor Chinoca, que ficava �s portas da
vila. Ao cabo de boa meia hora reapareceu o raio da vit�ria. Dois vultos
sobressa�am na penumbra do interior. Solto um urro:
- � ou n�o � o Belis�rio?
- Palavra, a mim n�o me parece nada o Belis�rio respondeu-me com brandura, mas
sem convic��o. - Este � careca; usa bigode; arreganha uma tacha sem dentes. Onde
traz as botas? A pessoa ao lado, sim, lembra o passageiro que antes de Mort�gua nos
matava o bicho-do-ouvido acerca de coisas e loisas, a prop�sito e sem o prop�sito
nenhum.
- N� sei. Quanto ao Belis�rio � preciso contar com o posti�o, disfarce do
profissional. O capachinho safa-se, e temos o careca; a dentadura desarma-se e a�
fica o desdentado; o bigode cola-se e desaparece o glabro; as botas p�em-se de
banda, e quem se v� a andar � o vulgar pedestre. Numa palavra, tirou-se a m�scara e
surgiu o indiv�duo natural que ningu�m ou poucos identificam. Ris-te...? A teu ver,
estou a fazer romance policial no espa�o... O Belis�rio, coita-naxo, tomara ele l�
porcelana e leques para consertar, n�o � assim?
- � assim, e depois?
- Se fosse espia...?
- Imposs�vel. Para espi�o com essa arte e portugu�s, superava Sherlock Holmes.
- Olha, podemos tirar a prova...
- A esta altura assobia-lhe �s botas. Onde ir� ele?!
- Assobiar-lhe �s botas, corno, se as n�o trazia, ou pelo menos n�o as trazia
cal�adas?! Mas pode, pode acontecer que volte.
- Se voltar, ent�o sim, capacito-me que se trata dum bufo lan�ado na nossa
peugada. E se cheg�ssemos � conclus�o... Sim, se cheg�ssemos a essa conclus�o -
proferiu assestando os seus olhos, frios como punhais, nos meus filhos - o que
t�nhamos de fazer era armar-lhe urna esparrela e deit�-lo a uni pego do T�vora com
uma pedra ao pesco�o. N�o sabes de s�tio jeitoso...
- Oh, se sei! O Pontigo estava ria conta. Mas livra? Encarregos dessa ordem
n�o quero eu �s costas. Olha, olha, pagar por boa tal relice de gente!
A vit�ria teria rodado de vez. Acab�mos ambos por tirar do lazareto a
Belis�rio Malh�o, o homem das botas. N�o existem pessoas que se parecem como duas
gotas de �gua, Sa�mos do esconderijo com a noite, Lima noite sonora, com todos os
anim�lculos que t�m voz e �litros a cantar, perfumada dos infinitos incensos
vol�teis da natureza, irm� noite � Frei Lu�s de Le�o para amar a Deus nas multas
coisas am�veis que seria de boa l�gica supor ele ter-nos dado para nosso gozo e
proveito. As folhas dos castanheiros estremeciam levemente ao sopro da aragem e o
vale era roxo, dum viol�ceo t�o imponder�vel que o azul do c�u transluzia � sua
superf�cie como �gua numa ta�a de jade.
O senhor Bento Chinoca, tocado pelo nosso aviso, esperava-nos na salinha verde
que lhe servia de escrit�rio, decorada, como sempre a conheci, com rep�blicas a
todo o l�s em seus cromos vistosos, e com os grandes do partido um fototipias pelas
paredes, no festo do rodap�, e at� em cima do cofre-forte. Era o mesmo homem
escanifrado, com olhos vivos de obsidiana, mas o topete de cabelos que lhe
excrescia da calva, corno um rabicho chin�s ao inverso do occipital, pareceu-me
mais facecioso, de gavi�o jubilado. N�o me surpreendeu que nos recebesse com
frieza, uma cerim�nia artificial que tra�a a sua preocupa��o quanto ao m�bil que
nos levava. Eu apresentei Manfredo Bemposta, comerciante da capital, graduado da
Ma�onaria, e mestre de Alta Venda Carbon�ria como tendo a cargo efectuar a
revolu��o, o que na dose maci�a era uma inofensiva patranha igual a outra qualquer.
E o senhor Chinoca, porque n�o tivesse ventos de quem se tratava, depois de nos
referirmos � sarrafusca de Lamego, redobrou de sobressalto e polidez.
- Temos a grande bernarda � porta, meu ilustre amigo disse eu. - Estamos aqui
um pouco � laia de arautos...
- J� se fixou a data?
- Fixada, fixada, tal dia, tal hora, com santo e senha, n�o. Mas � como se
estivesse.
- Tudo a postos?
- Tudo a postos, sim, isto �: que entende o senhor Chinoca por tudo a postos?
- Por tudo a postos quero dizer: o Direct�rio tem em m�o, prontos � primeira
voz, os efectivos militares e civis que h�-de lan�ar ao assalto do trono? Al�m
disso, cabe perguntar: assentou-se bem nas provid�ncias que compete tomar de golpe,
logo a seguir � Revolu��o, sem deixar arrefer o ferro...
- Est� tudo estudado e assente uma vez por todas. H� um chefe para a marinha;
um chefe para as tropas de terra; est� organizado o governo provis�rio e, at� lhe
digo mais, j� se sabe quais s�o os nomes que h�o-se formar a C�mara Constituinte.
O senhor Chinoca ficou um minuto imerso em cogita��es e proferiu em voz
levemente tr�mula:
- H� coisa de semana, em Viseu, ainda se n�o sabia quem havia de representar o
distrito...
- Ora quem h�-de ser?! - observei eu de afogadilho. H�-de ser o senhor... o
P�dua... talvez o Sebasti�o Arruda...
- O Arruda? - exclamou o senhor Chinoca levantando as m�os ao c�u. - O Arruda,
que tem filhos enjeitados em todas as terras, um safardana que empresta a quinze
por cento e bate na m�e...?
Quedei atontado com aquela ap�strofe � profeta Zacarias e respondi um pouco ao
acaso...
- Mas o Arruda n�o � elemento preponderante do partido no concelho? N�o goza
do maior prest�gio...?
- Goza - respondeu o senhor Chinoca com certa mordacidade na voz -, mas aquele
� o que se chama um sepulcro caiado por fora e cheio de podrid�o por dentro. Goza,
porque tem fornecido uns patacos para a propaganda, mas nada mais injusto. Se
houvesse moralidade nas nossas hostes, esse piranga teria sofrido h� muito a
exautora��o em p�blico e raso.
Lembrei-me que o Arruda arrastara em tempos a asa a �ngela, compa-nheira de
Chinoca escarolada e honesta, ou pelo menos tida como tal. Quem sabe se haveria
naquela avers�o o rescaldo inextinto duma trag�dia �ntima? Mas n�o, eu tinha
lobrigado �ngela � entrada do jardinzeco rubicunda, af�vel e feliz.
Perd�amo-nos na questi�ncula provincial, e o nosso fito era outro. Manfredo
Bemposta, vener�vel da loja Olaia, fero e positivo, a um aceno meu apresentou a
requesta:
�A ac��o revolucion�ria tinha de jogar todas as armas. Eram precisos
explosivos e n�o se encontravam � primeira. Constando que n�o longe dali havia quem
tivesse dep�sito de dinamite, se n�o f�brica de tal produto, lembraram-se os
correligion�rios do nome do senhor Bento Chinoca como intermedi�rio para tal
consecu��o...�
O velho botic�rio fez-se p�lido, depois verde, e tomou uma cor terrena, cor
temerosa, provocada por descargas maci�as de b�lis. Vencendo afinal a gaguez que se
apoderara dele, respondeu:
- Dep�sito de dinamite... na regi�o n�o conhe�o. Tenho, sim, tenho rela��es
com o fogueteiro de Caria, mas esse � um pobre diabo que a vende a quem lha pede,
se a tem, e � homem para despejar tudo na taverna, tudo o que saia fora do seu
ramerr�o.
- Essa agora? Ent�o o primo do senhor Chinoca, o Z� Nina, n�o tem para l�
dinamite aos montes? j� n�o explora as minas de Reriz? - exclamei em tom de
contrariedade.
- Meu primo Jos� Nina ainda � concession�rio das minas de Reriz, de facto, e �
prov�vel que tenha l� explosivos pr�prios a fazer saltar a ganga do mineral. Ma eu
n�o lhos pe�o. � uma responsabilidade com que n�o quero arcar.
- N�o h� responsabilidade nenhuma. Ningu�m sabe a proced�ncia.
- Tudo se sabe. Estas coisas acabam sempre por se saber.
- Por essa caminho a Rep�blica seria proclamada para o ano dois mil? - ricanou
o Bemposta.
- Se t�m a tropa para que precisam de dinamiteros? Eu sempre tive horror ao
revolucion�rio bombista.
- Mas ou�a, senhor Chinoca - intercedi eu. - D�-nos uma apresenta��o para seu
primo Nina, sem especificar ao que vamos. Se nos atender, muito bem; se n�o
atender, Outra vida. O meu excelente amigo ter� cumprido o seu dever de
republicano.
- O meu dever sei eu qual seja. Agora lhes digo, ainda que quisesse, n�o podia
em minha honra dar-lhes a missiva que me pedem. As minhas rela��es com meu primo
Nina esfriaram muito depois dumas testilhas que tivemos. Essas testilhas eu lhes
conto como foram para n�o cobrarem a mais leve sombra de d�vida quanto ao escr�pulo
que me cinge a tal respeito. Sabe o Lib�rio que sou um pequeno propriet�rio com
bens no concelho de Tarouca. A� s�o as explora��es do Nina e por acaso o fil�o
estende-se para uma fazend�ria minha. Que lhe vendesse o morro, requereu-me.
�Prefiro a comparticipa��o�, respondi eu. Daqui se gerou uma contum�lia dos diabos,
em que eu tinha por mim a lei, ele nada mais que as finezas dum parentesco em
quarto grau, que procurava obrigar. N�o cheg�mos a entendimento e, como n�o
cheg�mos, a mina inflectiu para outro rumo e l� est� o fil�o, no terreno que � meu,
� espera que o v�o explorar.
- O senhor Chinoca recusa-se portanto, embora num caso de magnitude como este,
a sacrificar os seus melindres? emitiu Bemposta em tom solene e com certo
perempt�rio.
- J� lhes disse. N�o tenho prazer nenhum em dar com os ossos na cadeia. Nesta
idade era uma guia de marcha para o outro mundo. Mas que lhes desse a
apresenta��o...? Ganhar�amos alguma coisa com isso? Meu primo Nina, por baixo
daquele ar bom-ser�s e estabanado, � o homem mais seguro deste mundo. N�o era com
duas cantigas ao ideal e � Rep�blica que lhe arrancavam a metralha.
- J� vejo que c� pela Beira os republicanos s�o gente muito prosaica e
acautelada. Aqui temos o senhor. Nega-se a prestar o concurso que lhe pedem e que
raz�es s�o as suas? Uma, o sagrado respeito que tem pelo corpinho; v�, �
compreens�vel. Outra, porque � descer da dignidade de melindrado; irris�rio!
Dignidade, canastro, boa alhada! Ah, ah, e quem nos garante o canastro a n�s,
revolucion�rios de Lisboa, que havemos de ir para os cornos do boi, e quem nos lava
do an�tema da fam�lia, � mon�rquica desde as unhas dos p�s do tio prior at� a
peruca da tia Urraca�, como ouvi dizer num com�cio a certo orador dos nossos? -
exclamou Bemposta, como sempre fervendo em pouca �gua e malcriado.
O senhor Chinoca pareceu encavacado e abriu as m�os como os padres no Orate:
- Meus santos...
O Bemposta dardejava-me olhares furiosos e eu tive de retaliar no conceito que
fazia do senhor Chinoca, coluna ideal da Rep�blica em terra de m�scaros e castanhas
piladas:
- Perdoe que lhe diga, mas as suas raz�es n�o deixam de me causar uma surpresa
bem desagrad�vel...
O senhor Chinoca tornou outra vez a fazer-se verde, amarelo, barrento de cor,
e deitando-me a m�o � gola do casaco proferiu:
- Pensem o que lhes parecer. Agora venha aqui que lhe ,,lucro uma palavra. - E
para o Bemposta: - O senhor d� licen�a...?
� puridade disse-me ent�o:
- No ju�zo do S�t�o instru�ram-lhe um processo-crime por homic�dio frustrado e
tentativa de roubo. � queixoso seu tio de Barrelas. O mandado de captura chegou j�
h� tempos a esta comarca. Tanto eu, como o Laurentino, como o senhor padre-mestre,
temos tido um trabalh�o para entravar a marcha da justi�a, Queria dizer-lhe isto
para seu governo e para que n�o esteja a menosprezar a estima cios amigos velhos.
Agora s� lhe quero dar um conselho: n�o se mostre em p�blico, que n�s n�o largamos
a causa de m�os at� ser cancelada a queixa.
Fiquei fora de mim e foi �s arrecuas, envergonhado, vencido, rabo entre as
pernas, que sa� de casa do senhor Chinoca que se esmerava agora por nos obsequiar
mandando vir vinho do Porto e bolos. O Bemposta olhava para mim o seu tanto
interdito, pressentindo com o faro de homem batido pelos bald�es que grave coisa se
interpusera ante o meu optimismo. C� fora, na noite serena, levados pelo caminho
velho, entre quintas escondidas detr�s de pared�es altos, com c�es bravos a
arremeter ao chapejar dos nossos sapatos, contei a Bemposta a p�gina negra da minha
vida. Depois de me ouvir, disse-lhe, esperando a sua palavra como uma senten�a:
- Sabes, estive tentado, e estou tentado ainda, a entregar-me, n�o � justi�a,
n�o � justi�a que � um aparato em que se faz repara��o menos ao agravado que a uma
sociedade pelo que pode ser lesada em cada um dos seus membros, mas ao pr�prio
Aleixo Cust�dio: aqui estou. julgue-me!
- Manda-te para a cadela! - proferiu rindo.
- Mas a minha consci�ncia ficava dealbada.
- Esse Fome Negra � bicho daninho. O que a sociedade ou o indiv�duo, os
parentes ou os ladr�es t�m a fazer � suprimi-lo. � o que te digo. Atira-me com os
remorsos ao vento, palerma!
N�o retorqui aos processos de retorta daquele material�o e em sil�ncio, cada
um remoendo ponderosas filosofias, caminh�mos para S. Francisco. Ao descer da
cumeada, � luz do plenil�nio, o convento mostrou-se agachado em baixo, por tr�s das
frondes dos castanheiros, velhinho, silencioso e cheio do mist�rio das boscagens. A
torre dilu�a-se nas alturas, como prece que se vai alando ao c�u, e at� o vulto
oblongo do edif�cio e a Casa dos Terceiros, ado�ados na p�tina do granito e empaste
dos volumes, exalavam n�o sei que abstracta e radiosa excelsitude. Aos olhos do
Bemposta, que nunca ali fora uma s� vez e tinha pouco de m�stico, foi como se
houvessem corrido a cortina dum mundo morto. Eu vi-lhe os olhos desmesuradamente
abertos em correspon-d�ncia com a perplexidade espiritual, todas as suas ideias ou
emo��es em desequil�brio subit�neo. E disse-me:
- Compreendo? H� tr�s, quatro s�culos, tamb�m eu era capaz de me meter dentro
destas paredes!
Fomo-nos aproximando do c�moro que sobrepujava o muro da cerca, por cima da
funda canada de laja batida pelo vaiv�m, antes de a estrada de macadame ser conduto
ordin�rio da serra com o vale. A fonte corria e o seu gorgol�o, ao embeber-se na
�gua empo�ada, levantava um solfejo dolente, como seria a lit�nia dos Terceiros �
hora da sesta. O solo respirava a sua humidade fecunda, e logo calculei que o
cebolinho, a couve troncha e o feij�o barriga-de-freira continuavam a medrar entre
as ruas de murta para manten�a de meus pais, poverelli de S. Francisco. Da quinta
dos Lemos, entregue a m�os mercen�rias, evolava-se em ondas suav�ssimas o cheiro da
esteva e do rosmaninho, plantas cultivadas no outeiro para pastio dos enxames, de
par com os incensos vegetais de ailantos e outras esp�cies que se n�o tinham
resignado a desaparecer com os frades e vicejavam a espontaneamente aqui e al�m,
esparsa a sua semente pela aragem benigna.
E eu, trespassado pela lan�a da saudade e da ternura, revivendo tudo o que
fora de animalzinho selvagem e descuidoso naqueles palmos de terra, sentindo que a
alma me estalava entregue aos seus anjos e dem�nios, disse para o carbon�rio:
- V�s aquela cabana? � dum homenzinho que passa ali a noite em vindo o tempo
das melancias. A esta altura do ano est� deserta. Vai-te l� deitar. Eu, se me d�s
licen�a, deixo-te por algum tempo. Vou, como se fosse em romaria, visitar o tanque
onde sentava meu mestre a dar-me li��o de latim, no s�tio onde, segundo dizem, se
tinha sentado S�o Francisco de jornada para Compostela. Ao convento entrarei se me
persuadir que posso faz�-lo sem darem conta - porque, bem sabes, n�o quero ver
ningu�m - a buscar uns livros de estudo que deixei na livraria.
O Bemposta, sem me fazer a mais pequena objec��o, meteu por entre as giestas
para o abrigo indicado. Gra�as, Senhora dos Aflitos, podia chorar? Chorei, chorei,
e quando n�o tinha mais l�grimas nos olhos, meti a m�o no seio: porque chorava?
Porque estava negra a minha alma? Chorava sobre mim menos por via do percal�o,
julgo eu, de que me dera aviso o botic�rio, do que � face da inconst�ncia e
volubilidade com que singrava a minha vida. Tal um argalho arrastado na torrente
assim eu me via. O tempo � volta largava toda a esp�cie de destro�os. Aquele
convento, que fora como que o meu casulo de cris�lida, mostrava um maior negror de
vetustez e as fendas do lado sul decerto que se tinham dilatado e acelerado a
ru�na. E meu bom mestre? E a velha Gertrudes? E minha m�e, presa ao ferro de
engomar para os sacerdotes exibirem perante o Deus dos humildes alvas de brancura
imaculada e roquetes de mangas c�scoras � Pompadour? E o pobre burro das panelas de
meu pai, esfreg�o de todos, miserando na sua servid�o, de alma calejada como as
cabe�as dos dedos?? O mundo era sofrimento acima de tudo e mal. Alegria e bondade
n�o passavam de olhas de �leo de am�ndoas amargas � flor dum mar de l�grimas.
A Lua ia, segundo as nuvens que passavam, lan�ando e tirando a sua crepe
ligeira da casa franciscana e os seus passes revestiam-na de miragens da mais
desabalada fantasia. Ora se me afigurava, naquelas transmuta��es, uma tumba negra,
gigantesca, ora mans�o iriada de almas, almas brancas, di�fanas, que subiam ao c�u
e desciam do c�u, divinizando aquele peda�o de terra. A albergaria, essa, revestia
aspectos de todo estranhos. Pareceu-me ver sair dela visitadores de loba ro�agante,
e bispos de passagem para Tarento, e eu via os frades, perfilados contra os renques
de murta, ajoelhar e beijar a m�o papuda em que cintilavam os cachuchos dos
maraj�s, abarbatados pelos vizo-reis. Depois a cerca enchia-se de figuras de todo
incorp�reas, consoante a Lua, filtrando-se por entre a rama dos castanheiros,
ondulantes com a aragem, projectava atrav�s dessas linhas e espa�os movedi�os no
fundo opaco do primeiro plano o seu cinema espectral. E naquele diversivo, mais
v�rio e subtil que a superf�cie dum lago sulcado por cisnes, me entretive e se me
secaram de todo as l�grimas. Aventurei-me ent�o a saltar a cerca. Os meus pais
deviam dormir a sono solto, pois que, tendo eu ficado sem pinga de sangue ao
trope�ar desastradamente numa pedra, n�o ouvi o menor rumor para a Casa dos
Terceiros. Como era de contar, na horta cresciam, balofos de soberbia com a �gua
aben�oada do chafariz, todos os produtos de Ver�o que forneciam o prato substancial
da nossa mesa. Um aguador dizia-me que algu�m, meu pai na melhor das
probabilidades, suara a trasfegar a �gua para os canteiros altos ao desn�vel do
regadio. Por cima do tanque, onde continuava noite e dia a cantilena da bica, a
figueira mostrava a camada de figos lampos que era preciso apanhar todas as manh�s
se n�o quer�amos ver entornar-se-lhes o mel pela pele arregoada, ou que os n�o
comessem as vespas e os mararit�us que s�o gulosos de do�aria. Cortei um e s� com
chup�-lo me vi restitu�do aos ledos tempos da filia agricolae pulcra est, que me
parecia, na boca do gram�tico, um madrigal indirecto a Celid�nia. L� estava a
pedra, bafejada pelo lume de �gua, em que meu mestre costumava sentar-se de Hor�cio
em punho, n�o raro citando o epigrama malicioso, ao ouvir-se para a quinta os
Violas malharem pacatamente duas espigas de milho nas mantas:
VII
Passei parte do dia e da noite baldeado de Herodes para Pilatos tanto quanto
pode s�-lo em latitudes burguesas autor ou presumido c�mplice de crime social
impenetr�vel. �s duas horas da tarde a Pol�cia de Investiga��o arrancara-me do meu
catre da Rua do Passadi�o a um t�nico e pl�mbeo sono.
E plantando-me no corredor, procedeu ao que chamam busca domicili�ria, busca
essa que, no tug�rio asc�tico, acabou pelo confisco integral e definitivo, �
berberesca.
- E isto? E aquilo? E estas coisas?
Estas coisas eram os alfarr�bios, alguns em g�tico, que trouxera de S.
Francisco a tiritar rotos e borolentos dentro das capas engelhadas de pergaminho.
Os esbirros tinham-se interrompido uns segundos a olhar para a letra misteriosa
como onagros para caixas de m�sica e, quando lhes expliquei o que eram, abanaram a
cabe�a sorrindo em sua desdenhosa sufici�ncia. Um deles ainda quis saber:
- De que rezam os �bacamartes�?
Experimentei aproveitar a curiosidade sandia no intuito de cortar caminho �
devassa, traduzindo-lhes os frontisp�cios vener�veis e bordando sobre os autores
anedotas apimentadas.
O meu pavor era o fundo da mala, a fat�dica mala adquirida no primeiro dia da
minha chegada a Lisboa. Mas eles volveram logo � tarefa como se tivessem
consci�ncia perfeita do melhor que estava para vir, e a man�pula velosa dum palpou,
depois i�ou para a superf�cie o negregado embrulho. E a sua voz cariciosa e
arrastada lembrou-me o pescador que acabou por deitar a tinha � truta que sabia no
pego:
- C�!...
Rasgando a seguir o inv�lucro e desfardelando o pacote com a presuntiva e
cavidosa aten��o de quem deu conta do contrabando mas n�o tem a certeza que o faro
o tenha induzido � justa, rejubilaram ao contar e recontar os belos cartuchos de
dinamite: um, dois, tr�s... seis.
- Era quanto bastava para fazer saltar a casa dum ministro? - gracejou aquele
que devia ser o chefe. - Mete na pasta, Ambr�sio. Olha, olha, aqui est� o
fulminato... Cuidadinho!
Acondicionaram o explosivo na pasta sebenta e eu fui dizendo de mim para com
Deus:
�Guia de marcha para Timor j� eu tenho. �-me pouco ainda. Quem me mandou ser
asno? Tive muito tempo de deit�-los ao rio, enfi�-los por uma sarjeta quando se
soube que o par e do Belis�rio tinha ido atr�s de n�s para a Beira a espionar-nos.
N�o quis desperdi�ar muni��es, da Rep�blica, pronto, agora, posso limpar as m�os �
parede'�
Arrebanharam as provas de m�quina de Os Mist�rios de Batignolles, rascunhos,
meia d�zia de cartas e inocentes bilhetes-postais, e hesitaram quanto a levar ou a
deixar em paz e �s moscas os � bacamartes�. j� desc�amos a escada, arrepiaram
caminho, havendo reconsiderado o chefe, e decididamente lan�aram livros, roupas,
objectos de toilette e de escrit�rio de cambulhada para dentro da maleta, como se
se tratasse de roubalheira ou de fugir a um inc�ndio. Coube l� tudo, pai da vida, e
n�o foi preciso, para carreg�-la, chamar um mo�o de esquina.
Atravess�mos Lisboa numa grande diagonal, trupe, trupe, de fiacre, e fomos
apear, para os lados das Amoreiras, diante duma casa branca, de ar muito pac�fico e
provincial com o seu r�s-do-ch�o e primeiro andar de janelas de correr, beirais de
telha moirisca povoados de ninhos de andorinha. Na pequena sala t�rrea, onde n�o
havia mais mob�lia que duas cadeiras, uma mesa de pinho coberta por um tapete
desbotado, destes que andam a vender os argelinos pelos caf�s, e a oleografia da
Sr. a D. Am�lia de Orleans na parede, frescal e maviosa, esperei uma eternidade. Um
mastim vigiava no patamar. Eu via-o pela porta entreaberta, que para matar o tempo
ora passeava de c� para l�, ora metia conversa com gente que �s vezes estava fora
do meu campo visual, e eram pol�cias ou as criadas que entravam e sa�am, tudo
entremeado com o chupar do cigarrinho. Devia ser um fumador danado; as baforadas do
fumo ondeavam at� a altura das bandeiras, e com suas volutas e castelos divertia eu
os olhos por momentos.
Entretanto estudava uma explica��o racional com que justificar, de modo que
n�o cheirasse a sofisma, a posse da dinamite, na hip�tese, mais que certa, de que
em tal consistia o meu delito. Ao mesmo tempo, n�o me tolhia de divagar sobre a
inconst�ncia da fortuna: ainda n�o havia muitas horas eu era um pr�ncipe da gr�-
ventura, e agora j� ali me achava sob a vara dum reles beleguim em bolandas
abomin�veis. Muito vagamente me ocorria que tanto podia andar ali a pata de Fome-
Negra como de Miguel Malafaia. Mas como n�o era absolutamente prov�vel que se
tratasse duma coisa ou doutra, entregava-me � esperan�a de que a minha pris�o n�o
passasse de preventiva, como tantas outras que se faziam � data na capital, e que
encontrara por mau sestro uma justifica��o nos cartuchinhos de dinamite dispensados
por um cr�dulo fogueteiro. E, em abono, ocorria-me que mais duma vez me dissera o
correlegion�rio Lu�s Chalado: �Os �bufos� t�m andado muito sobejos c� pela minha
�rea. A qu�, n�o fui eu capaz de perceber.�
Mas pois que na roda da exist�ncia todos os contrastes s�o poss�veis, eu,
confiado na minha estrela, recusava-me tomar a s�rio este reverso do destino. Sim,
confiava na minha estreia, que n�o era veros�mil, depois de brilhar de modo t�o
coruscante, se apagasse como um pavio de sebo sem ningu�m lhe soprar.
Por uma s�rie de circunst�ncias, vozes que ecoavam a meus ouvidos vindas daqui
e dal�m, frases soltas ao telefone, dixe-me-dixes abiscoitados aos guardas, inferi
que estava na pr�pria habita��o do juiz de instru��o criminal e que havia moiro na
costa. Mas qu�? Teria eu sido surpreendido a sair do palacete da Pra�a do Pr�ncipe
Real? Mas isso, com ser mat�ria de esc�ndalo, n�o o poderia ser de crime. E
incerto, embora resoluto, na bela inconsci�ncia dos verdes anos, fui levado �
presen�a de Sua Excel�ncia. Era um homem baixo, gordinho, amolecido pela idade e
provavelmente com a��car no sangue, uma barbela de tr�s regueifas abaixo da cara
bonacheirona. Mas os seus olhos eram vivos e inteligentes.
Encontrava-me numa casa, meia varanda, meia sala de estar, com um trasteio
despretensioso de todo, a sua gaiolinha de can�rios � janela, e pequenos nadas da
vida �ntima, patriarcal, uma cadeira baixa de senhora com a sua almofada bordada,
um bastidor, n�meros da Gazeta das Aldeias, e o retrato de pap� frente a uma
estampa portuguesa. Depois de me contemplar um segundo por cima dos �culos �
Quevedo, afavelmente ofereceu-me um escabelo ao seu lado. Reparei que o guarda
estava para l� da porta semicerrada e eu via negrejar pela greta a aba do seu
capote de picotilho. Depois dum interrogat�rio sucinto quanto a identidade, entrou
no �mago da quest�o, como dizia o Assis:
- Ora diga-me l�: pertence a uma associa��o revolucion�ria?
O seu rosto era alumiado por um sorriso �t�o boa pessoa� que a gente tinha
pena de o contrariar. Mas que rem�dio?!
- N�o, senhor - respondi com acento categ�rico.
- Pertence, pertence - proferiu matraqueando as palavras para me per-suadir da
sua certeza. - Pertence a uma associa��o revolucion�ria que se prop�e derrubar a
monarquia e afogar Portugal em felicidade. N�o negue?
- Nego, com perd�o de Vossa Excel�ncia. Como n�o hei-de negar se n�o �
verdade?!
- N�o diga que n�o � verdade, torno a repetir? Estou ao corrente de tudo. O
senhor � um rapaz novo e se quer alguma atenuante para as suas trope�adas conven�a-
se que tem de ser franco e leal comigo. Pertence ou n�o pertence a uma associa��o
revolucion�ria?
- J� disse a Vossa Excel�ncia que n�o perten�o - respondi no tom mais sacudido
e rotundo que poderia achar um crist�o do tempo das catacumbas.
- Vejo que o seu forte n�o � a franqueza - proferiu em voz lenta e como que
pesarosa. - Com os seus anos, quando se n�o � criminoso nato e se tem limpa a folha
corrida, n�o se sabe mentir t�o impudentemente.
Esperluxando aquele ros�rio de coisas, associa��o revolucion�ria, folha
corrida limpa, discerni que n�o se tratava de Estef�nia nem de Fome-Negra, pontos
nevr�lgicos que me cruciavam. Mas sentindo um imenso al�vio, procurei n�o lho dar a
perceber, e deixei descair para os joelhos uma cara contrita e melanc�lica. O mais
que viesse era muito, mas j� n�o seria o pior. Ao cabo duma pausa volveu de
rebentina o juiz:
- Para que era a dinamite que tinha em seu poder?
- Ah, sim! Para que era a dinamite? Eu me explico e Vossa Excel�ncia vai ver
que n�o h� nada mais inocente neste mundo, embora comprometedor na apar�ncia. Vossa
Excel�ncia sorri e eu no lugar de Vossa Excel�ncia deitaria at� �s gargalhadas.
Sim, n�o me iludo, para todos os efeitos cometi uma falta. Vossa Excel�ncia ficar�
no que lhe parecer depois de me ouvir.
- Deixe-se de rodeios. Para que era a dinamite?
- Para que era? Eu sou, n�o sei se Vossa Excel�ncia sabe, duma regi�o em que �
costume pescar no rio, que � muito cheio de cachopos e rincolheiras, por v�rios
modos al�m da rede: raba�as, troviscos, coca, dinamite. Nos a�udes pedregosos e at�
nos r�pidos, n�o h� possibilidade de armar os pardelhos ou os galritos. Vossa
Excel�ncia compreende, para se apanhar o peixe, � necess�rio que a linha inferior
das redes assente bem no fundo de areia e por igual, de forma a n�o o deixar furar
por baixo. Desde que assim n�o seja, o �nico rem�dio � dinamitar o pego...
O juiz afivelara uma m�scara especial que era regalo ver. N�o era bem a dum
parolo embasbacado a ouvir uma hist�ria divertida; nem a do c�ptico com ar de
dizer: para c� vens de carrinho; nem t�o-pouco a do Mefisto: brinca enquanto n�o
vais para a grelha. Era um guisado de tudo, e eu disse comigo: leva avante? E,
cobrando f�lego, prossegui na mir�fica patranha:
- Acontece tamb�m o peixe refugiar-se debaixo das lapas e l� bem para dentro
das lorgas que fazem para os dois lados da margem, abaixo da linha de �gua, os
arganazes e as lontras. Neste caso s� com veneno � que se consegue pescar. O ano
passado, dias antes de eu vir para Lisboa, houve uma pescaria no T�vora. Empregou-
se a rede onde foi poss�vel, a mistela aqui e al�m, e a dinamite sempre que n�o era
pratic�vel urna coisa ou outra. Est� Vossa Excel�ncia a ver: a dinamite que
encontraram na minha mala foi a que sobejou da pescaria...
- E trouxe-a para pescar no Tejo? Ah! ah!
- N�o a trouxe para pescar no Tejo. Tinha-a em casa
dentro da mala por estar mais acautelada e quando me vim embora n�o reparei
que a trazia.
- Mas sabe que est� incurso na Lei de treze de Fevereiro?
- N�o sabia. No meu concelho, n�o � costume tirar licen�a para usar de
dinamite em casos corriqueiros como o que acabo de referir a Vossa Excel�ncia. Eu
sei o que me vai dizer. Vossa Excel�ncia vai-me dizer: �N�o lhe passou pela cabe�a
que guardar dinamite em Lisboa o podia levar � pris�o?� Respondo que, mal dei conta
que o pacote danado viera na mala, pensei mais duma vez em me desfazer dele. Mas
como? Estive tentado a ir deit�-lo ao Tejo, n�o para pescar como Vossa Excel�ncia
diz, mas para o inutilizar de vez. Tive medo que me observassem.
- Podia entreg�-lo � pol�cia...
- A pol�cia n�o se contentava com uma simples explica��o. Havia de querer
averiguar... meter o bodelho na minha vida... Pelo menos, ma�adas pela proa.
O senhor juiz de instru��o quedou-se a olhar em vago para o papel alma�o que
tinha diante, o tal sorriso comp�sito ora a borboletear, ora a emurchecer no car�o
bondoso. Depois, tornando a olhar-me de frente, perguntou:
- Tem algum curso superior?
- Tenho o curso dos liceus.
- N�o est� matriculado na Polit�cnica?
- N�o, por agora, n�o, embora seja esse o meu pensamento. Vim para Lisboa para
me empregar porque meus pais s�o pobres.
- Ah, s�o pobres...!? - e figurou-se-me um instante, ao que me olhava com
oclusiva ternura, que Tobias se levantara a meu lado. Mas logo a seguir, quase sem
interrup��o:
- Conhecia Belis�rio Malh�o?
Surpreendeu-me a maneira de falar no pret�rito. Dar-se-ia o caso que o
tribunal revolucion�rio houvesse julgado e mandado executar o espi�o? Este
pensamento brotou imprevistamente no meu c�rebro como uma fa�sca no trol que vai
deslizando. Fiz-me desentendido, respondendo no presente:
- Conhe�o muito bem. � h�spede numa pens�o da Rua do Crucifixo onde tamb�m
tenho talher.
- Est� em boas rela��es com ele?
- Nem boas, nem m�s. Passamos um pelo outro: como est� voc�?, e cada um segue
o seu caminho.
- Que ideia faz dele?
- N�o fa�o ideia nenhuma.
- ...Bom homem, mau homem...?
- Nunca me fez bem nem mal. julgo-o inofensivo... destas naturezas que vivem e
morrem sem ningu�m dar conta.
- Ouviram-lhe uma vez chamar Jano...?
- N�o sei o que isso seja. janota de Famalic�o, quer Vossa Excel�ncia
dizer...?
- N�o se fa�a de novas. Jano, o de duas caras...
- Se alguma vez disse coisa que se pare�a, n�o me lembro. Mas talvez.
Realmente esse senhor Belis�rio � bastante misterioso... mesmo furta-cores.
O juiz olhou muito fito para mim, como se verrumasse, verrumasse no meu peito,
e volveu em tom de ufania:
- Ah, ah! N�o afirmou h� pouco que o considerava inofensivo? H�-de-me explicar
na primeira ocasi�o como pode conciliar no seu esp�rito coisas t�o contradit�rias.
Agora, diga-me: a �ltima vez que o viu quando foi?
- A �ltima vez que o vi... Hoje � quarta...? Foi... foi anteontem.
- De manh� ou de tarde?
- De manh� e de tarde. Tornou a calar-se para depois formular:
- A noite passada deitou-se a que horas?
Hesitei menos que um avo de segundo, mas foi o bastante para ele perce-ber.
Acabava de escancarar-se diante de mim um precip�cio de improfund�vel voragem:
- � hora de sempre. Cerca das dez.
- Cerca das dez? E meteu-se logo na cama...? Apre, chama-se a isso dormir.
Hoje, �s tr�s horas da tarde, estava ainda pegado no sono. Dezoito horas a fio, s�
os defuntos.
- Fui para casa �s dez horas, mas, subentende-se, n�o me deitei logo, logo. �s
tr�s horas estava pegado no sono, sim, estava. Tinha passado a noite mal.
- Suponhamos. Entrou ent�o cerca das dez. � capaz de prov�-lo?
- Sou, com a dona da casa. Isto �, presumo que com a dona da casa. A senhora
Dona Pepa costuma deitar-se com as galinhas...
- E outros testemunhos?
- N�o vejo,
- N�o bateu as palmas ao guarda-nocturno?
- N�o foi preciso. A porta ontem estava aberta.
- Estava aberta...!? � singular.
Ficou um momento em cogita��o e eu, verdadeiramente apreensivo, via-lhe as
regueifas da barbela ondearem e desfazerem-se como o arco-�ris no colo duma pomba.
Que se passava por detr�s da parede branca daquela fronte? Com o mesmo gesto
remansado com que antes me acolhera, menos ameno talvez, me despediu e entregou ao
guarda. Pouco tempo me fizeram esperar na ante-c�mara dos anarquistas. Tinha uma
fome rabiosa a derri�ar-me nas entranhas e rnanifestei-o.
- Pode comprar uns bolos na leitaria aqui ao lado - condescendeu o jan�zaro. -
Tem dinheiro?
A mastigar palitos de Oeiras embarquei num calhambeque hediondo, meio carro
celular, meio tip�ia de pra�a, que se p�s a rodar... a rodar, e julguei que me
conduzia para o fim do mundo.
Quando me vi a trepar para o Campo de Santana, julguei compreender. Levavam-me
� morgue e n�o me espantaria nada que pregassem comigo diante da carca�a do
refinad�ssimo marau que era o Belis�rio Malh�o. Ao mesmo tempo, uma alegria feroz
cachoava-me no peito por cima do mar salitroso dos cuidados. Homens, at� que enfim,
no campo revolucion�rio come�ava a afirmar-se certo esp�rito de decis�o e vontade?
Duma longa lista de estafermos a despachar para as Areias Gordas, que eu conhecia
mais ou menos de ouvir dizer � boca pequena, estava o Belis�rio. Ningu�m havia de
jurar que este homem, com ar de busilh�o, era capaz de enganar o Diabo e sua m�e.
Toda a gente, menos eu, punha a m�o pelo inocentinho. Menos eu e o Bexiga. O
fin�rio do Bexiga cobrara as suas desconfian�as, n�o sei l� como, e sempre que
podia, andava-lhe no encal�o. Um dia apanhara-o em m�s muito m�s companhias, outro
a esgueirar-se � chucha-calada da Parreirinha. Depois, acontecera em menos de oito
dias ser descoberto um dep�sito clandestino de armas, presos os componentes duma
cho�a, assoprados como conspiradores uns tantos sargentos dum regimento da capital.
Por uma opera��o f�cil de acertar, averiguou-se que o Belis�rio podia ser o deletor
em todos estes casos, pois que em todos metera a pata. De jau em jales a via suja
da felonia foi-se balizando. O Malh�o tinha a quintanda da Rua Anchieta como capa
da trafic�ncia e casa pr�pria �s Pedras Negras com mulher por conta. Aqui estava
montada a m�quina com asseclas e beleguins. A minha saltada � Beira com Bemposta
fornecera a prova real. Como o trouxessem debaixo de olho apuraram que n�o s�
desaparecera de Lisboa durante aqueles dias como fora surpreendido a apear do
comboio debaixo do rebu�o que nos dera no goro. E bem embora lhe houv�ssemos
torcido as voltas, inferia eu agora tamb�m que a sua dela��o por alguma coisa
contava na busca que passaram ao meu quarto com t�picos prefixos, como me dissera o
dedo donguinha.
Iria pois na melhor das probabilidades encontrar-me perante o inv�lucro do
traste. Mas se queria voltar ao gozo da sant�ssima liberdade, com fome, desesperos
por uma banda, e Estef�nia de contrapeso, por outra, tinha que representar com
astuciosa convic��o e surpresa a com�dia da verdade. E seria assim dif�cil, podendo
eu lavar as m�os como Pilatos da morte do pandilha?
Vi-me de facto a subir os poucos degraus da casa l�brega, que j� na rua se
anunciava pela m� catadura e o fedor. Mas eu nunca l� tinha entrado e o cheiro de
creosote e n�o sei de que mais desinfectantes, aliado � metana do mortulho,
agarrou-se para sempre a mim e, sempre que me lembro, sinto-o nas narinas e faringe
como se o aspirasse na mesma hora. Mais 1.nfamemente ainda, colou-se-me aos olhos a
vis�o p�trida dos cad�veres estendidos sobre as pedras brancas e, nas noites de
ins�nia ou de pesadelo, quem eu vejo nas profundas da escuridade s�o os macabeus
decompostos, de hiatos sobrenaturais na face, dando-me com a sua imagem nefanda a
perspectiva do que serei a certa altura na noite tumular. O guarda dos defuntos,
n�o atendendo a quem eu era, ou ao desfastio, houve por bem elucidar-me que o
cad�ver grande e lambuzado de pez, t�o desconforme que pareia n�o acabar de passar
para o outro mundo, era um cigano que haviam assassinado no caminho de Mafra para a
Malveira.
Quando me levaram � mesa que lhe ficava no prolongamento e o inspector da
Pol�cia ergueu o bra�o a apontar:
- Reconhece-o? - respondi afoita e sinceramente:
- N�o senhor.
Semelhante horror n�o era o Malh�o. Qual o qu�?! Afigurava-se-me que o corpo
que ali jazia, uma vez que o f�sico das pessoas � a cinzeladura da alma martelada
de dentro para fora, era doutro incomparavelmente sublimado na doblez. Aquela face,
onde se sentia a pastagem de todos os ven�reos, a fronte empinada de criminoso
nato, uma boca que lembrava a sanja duma fistula, feita para vazar mis�rias,
parecia-me v�-las pela primeira vez. O conceito que se exalava deste morto, uma vez
neutralizado todo o convencionalismo do seu induto mundanal, transcendia das
limita��es que em meu esp�rito fixara ao Belis�rio.
Mas a rogo do inspector o guarda deu ao cad�ver um jeito menos desmanchado ou
menos natural, digamos. Comp�s-lhe os bofes da camisa, endireitou-lhe a cabe�a no
pesco�o em que marinhavam tumidas cordoveias e, o imprevista teatralidade, p�s-lhe
no touti�o de careca absoluto um chin� que estava de parte. No decorrer destas
manobras acertou que eu olhasse para o ch�o e visse umas botas de canos, umas botas
� Frederica que come�avam a cambar, sujas de sangue e de lodo, e de salto conclu�
que o meu palpite primeiro se confirmava. Podia l� ser! Ora se podia. O servente
passou-lhe pelos olhos empastados uma esponja h�mida. E para que a boca desdentada
n�o iludisse - perdida talvez a dentadura na refrega de que sucumbira - fechou-lhe
os l�bios. Depois, insinuando a m�o por baixo da nuca e soerguendo a cabe�a de modo
a chapar-se-lhe em pleno rosto a claridade do candeeiro, vi-a olhar para mim com
pupilas v�treas, embaciadas de eternidade, e a ler-me a sua mensagem do outro mundo
o tredo Belis�rio Malh�o. Quase ia soltando um berro. O meu espanto fora t�o bem
mimado que fez impress�o em quantos ali se achavam.
- Reconhece-o agora? - tornou a perguntar o inspector com um sorriso de
pretendido esp�rito forte por baixo da bigodeira.
- Ora se reconhe�o! � o Belis�rio Malh�o com loja de faz-tudo na Rua Anchieta.
Foi atropelado? Mataram-no?... Coitado do homem!
Eu tinha, por uma premoni��o que n�o era caso raro do meu consciente, futurado
e entrevisto as linhas gerais do drama. Malh�o, julgado e sentenciado pelo tribunal
revolucion�rio, ca�ra sob o cutelo justiceiro. A pol�cia, por seu turno, procurava
os homens que se tinham investido do foro de executores, para ela e o direito
constitucional assassinos corri as siglas todas. E dentro do seu papel, come�ava
por deitar m�o aos suspeitos ou indiciados de qualquer modo, ergo eu e os demais
h�spedes da D. Fl�via. A mim, porventura antes de outrem qualquer, por n�o ter
aparecido aquela manh� � mesa redonda, circunst�ncia a priori comprometedora. Mas
eu, pois que n�o tinha nada com semelhante morte, n�o olhava a falar com
desembara�o, despreocupado quanto a qualquer estouvamento que aparentasse cominar-
me por este ou aquele argueiro. Mas de repente fez-se luz no meu esp�rito. Acudiu-
me que rinha a depor contra mim a tem�vel coincid�ncia de haver entrado apenas de
manh� , cerca das oito horas, e que por nada deste mundo me era l�cito declinar o
�libi salvador. E, patatr�s, ru�ram todos os castelos das minhas esperan�as e
quantos silogismos o meu entendimento, retesado como um arco, constru�ra a
precaver-me dos articulados do C�digo. Acabou-se, era um homem ao mar.
Dali em fora mal apreendi as perguntas do pol�cia a que fui respondendo
instintivamente, como um cego a quem o tacto leva por uma rua movimentada. Essas
perguntas incidiam sobretudo nas minhas rela��es com o morto, e como o terreno era
vasto e pode dizer-se sem covas, respondendo ao acaso, pareceu-me n�o me atolar nem
ir esbarrar com contradi��es de nenhuma esp�cie. Entretanto, ao que eu procedia no
mais vivo do meu intelecto era em coordenar ideias e compor-me com elas um bloco,
que fosse como que a tranqueira irredut�vel que havia de defender uma verdade que
estava proibida de confessar-se. Mas enquanto estivemos no necrot�rio ningu�m ousou
investir com tal reduto.
Transitei pelos cub�culos do Governo Civil at� se deparar a enxovia pr�pria
que me havia de receber. Um dos secretas, graduado pelos vistos, batia � direita e
� esquerda pelo telefone: Caminho Novo? Ocupado. Terramotos? Ocupado. Cabe�o da
Bola? A trasbordar. Santa Marta? Retido para um b�bedo que andava pela rua a dar
morras a D. Carlos. Travessa do Loureiro?... Inferi que esvaziavam um calabou�o,
n�o percebi onde, do conte�do humano e me iam remeter para l�. Mas acabei por
averiguar que era para al�m do Bairro Alto que ficava desde aquela hora o meu
hotel.
�s onze da noite penetrei com efeito numa casamata soturna, sem luz, sem cama,
sem �gua, sem esgotos. Perfeita caixa sonora e v�cua de ferro e betumilha: blokaus
da sociedade burgueso-crist�. Apenas uma tarimba de pinheiro espa�osa como um
cadafalso, levemente inclinada, ocupava um dos �ngulos.
- Onde me deito?
- Homem, o ch�o � largo.
- N�o sou nenhum c�o.
- Ser� lobo, que � pior.
- J� vejo que o senhor n�o � meu irm�o.
O cara de fac�nora empurrou-me para a nauseante e hostil treva do chilindr�;
bateu a porta; e, corrido o ferrolho, a chave deu duas bem trabucadas e enormes
voltas. Quando pude bracejar naquele mar de sombras, e a luz de fora - morti�o e
piedoso vagalume - se foi condensando, dilatando nas meninas dos meus olhos,
filtrada pela lucarna que se rasgava na muralha, palpei-me e tornei-me a palpar.
Era bem eu, Lib�rio Barradas, acordado, em carne e osso, pobre ningu�m em tudo,
salvo em amar uma dama mais ou menos perversa, por via de quem ali estava no fim de
contas e iria dar um salto at� Timor. Reflectindo bem, eu era v�tima da imensur�vel
estupidez p�tria, de todo proverbial neste corpo organizado para a defesa da ordem
com um rei e dos bons costumes com Cristo e seu vig�rio na terra. Essa estupidez
tinha a sua l�gica, irrefrag�vel como os coices de todos os burros: um traidor
pateara, uma vez julgado e sentenciado; primeira premissa. Certamente algu�m o
matara. Quem havia de ser? Aqueles que andavam ostensivamente tu c�, tu l� com ele,
ou que estavam mais em contacto com ele. Logo os comensais da D. Fl�via. E com
admir�vel presteza, alumiada por t�o avisado faro, toca a agarrar os comensais da
D. Fl�via. L� fui eu na rede, provavelmente o Bexiga tagarela e comicioso, o L�cio
Maldonado, que era um filho bonito da macaca, como outros o eram de fel�cia, o
Paulo Ramos, parvo de marca maior e, como tal, digno candidato ao mart�rio, e quem
sabe se Humberto Patarroxa, que havia de escapulir-se da rascada com sua esperta e
insinuante bizarria. Tudo petinga, dentre a qual era para mim ponto de f� que
nenhum estava deveras implicado na execu��o do agente provocador.
O tribunal revolucion�rio, com efeito, talhando a frio e medindo bem pr�s e
contras, iria buscar os instrumentos da sua senten�a a toda a parte, menos � Rua do
Crucifixo. Com o faro do que ia suceder, o Bemposta e Roli�a, se dalgum modo
estavam implicados, o que n�o era ponto assente para mim, ter-se-iam posto de largo
a tempo e horas. Para liquidar o Sujeito deveria ter sido designado um grupo
exc�ntrico, estranho ao Rossio e suas abas, da grande periferia, Lumiar, Alg�s,
Po�o do Bispo. Sim, dos bairros exteriores ou mesmo dos arrabaldes, onde pela
dist�ncia e o afastamento pessoal n�o fosse razo�vel sonhar-se o bra�o vingador. S�
pelo mais funesto dos azares a pol�cia, passeando o arrast�o �s cegas e de
afogadilho, poderia ter colhido - assim sucedera comigo - culpado de alhas, que n�o
de maravalhas. Sim, comigo, dada a circunst�ncia de se achar dinamite em meu poder
e de eu ter passado a noite fora, impedido de declarar onde a passara. Por isso
mesmo o veredicto que me havia de fulminar estava lavrado.
Agora s� me restava um expediente: fugir, sim, fugir dali. E sem mais
delongas, tratei de estudar a pris�o e de �reconhecer� o que em fortifica��es se
chama o glacis. Eu tinha lido o bastante em Latude e Casanova para me persuadir que
n�o h� c�rceres inviol�veis. Tanto a Bastilha como os Piombi eram considerados
verdadeiros t�mulos. Quem l� ca�a, raro ou tarde acordava entre os vivos.
Entretanto estes dois c�lebres presos tinham quebrado a lousa supulcral. �
semelhan�a, eu tentaria a dif�cil prova. O erg�stulo que me encerrava era de
cimento armado? Embora. Far-me-ia duende, avej�o, trasgo, e um belo dia, quando
viessem trazer-me a magra pitan�a, pois n�o convinha deixar-me morrer � fome para
que o Moloch mon�rquico-burgu�s gozasse da sua presa, eu teria dado �s de vila-
diogo. E, radicado nesta vontade, um hausto de ar fresco, o primeiro depois de
multas horas de opress�o, desengelhou-me o peito e correu os indecorosos miasmas do
desespero.
Dormi um estirado e brutesco sono, tendo acabado a parte verdadeira-mente
pensante e digna do meu ser por alhear-se do drama em que por mal dos meus pecados
me achava envolvido. Muito para l� do limiar l�cido do eu travava-se uma batalha
confusa de coisas informes - pol�cias explos�es, sangue e amor -, batalha imensa e
indescrit�vel como a de anjos contra anjos no principado do Verbo. Despertei ao
grito alado duma varinita, levada rua fora a pregoar a vivinha da costa, para, mal
se escondeu na esquina, o meu ouvido retumbir na monotonia duma voz cheia, pastosa
e certa, voz de marou�o dos narradores de soalheiro.
Aquela voz fazia o relato, mais ou menos folhetinesco, do acontecimento da
v�spera que, pelos vistos, enchia as gazetas e apaixonava a opini�o p�blica: o
assass�nio de Belis�rio. E pelo que ouvi, corrigido das luzes que tinha da mat�ria,
e me serviram como a talagar�a serve para o desenho da tape�aria, pude reconstituir
com mais ou menos verosimilhan�a o epis�dio b�rbaro.
A determinado grupo revolucion�rio passara palavra a Alta Venda para estudar
uma estrangeirinha que viesse enredar-se o traidor. N�o podia avaliar do modo como
lhe armaram e quem, mas n�o me espantaria nada que o Bemposta, t�o astuto como
desenganado, ali tivesse metido pata. Que houve artista no neg�cio, conclui-se do
facto de o passar�o ter dado na boiz. Puxado pelo pr�prio fio duma pretensa meada,
que naturalmente teria a peito penetrar, o desgra�ado acabara por cair em Cascais a
horas mortas. Ele n�o deixava de ser arrojadi�o por baixo do seu ar borra�udo.
Expunha-se com ilimitada confian�a, se n�o era a embriaguez do �xito que o
incitava. j� assim se mostrara em Linda-a-Velha, donde sa�ra a contento pr�prio e
dos amos sem nada perder nem arriscar. Al�m de desassombrado, amparava-se da sua
filosofia de c�nico. O que � foi longe de mais. Contava ora e sempre com a cegueira
e boa-f� dos revolucion�rios, e desta �ltima vez devia portar-se como um anjo
acompanhando a malta, se malta houve, � beira-mar e compartindo dos seus projectos
tenebrosos. Quando dera conta, estava na Boca do Inferno.
Local mais apropriado para simular de desastre um assass�nio n�o h� em toda a
costa. O mar comprime-se contra a arriba num pego a pique, profundo, negro e
rugidor. Broca, mais acima, a escarpa e, avan�ando pela brecha dentro, brame,
espadana, dilui-se em espuma e molinha, Raramente a natureza reveste aspecto t�o
sinistro. A pr�pria rocha exala a sugest�o funesta dum altar de holocausto. Cerca
dali, ainda, a fal�sia abriu boca, boca longitudinal virada ao mar, igualmente
longa e profunda de muitas dezenas de bra�as. Em baixo, quem tiver o arrojo de
debru�ar-se ver� para l� do algodoamento da treva reluzir a �gua da maresia,
triste, choca e esverdeada. � em g�nero de precip�cio o mais infame que se pode
supor.
Pois at� ali se deixou conduzir o Malh�o, na mais c�ndida das confian�as,
enredado pelo pr�prio fil� da espionagem. Uma vez � beira do pego ou da fissura,
bastava um cambap� dado a tempo, e o traste, depois dum grito que o rumor da vaga
se encarregaria de abafar, l� ia de escantilh�o, cabe�a britada na rocha ou
fendendo como uma cunha o almofadado liquescente, dormir a noite eterna embalado
pelo mar. Pela tarde, ou nos dias seguintes, um pescador de espinel teria
porventura lobrigado o embrulho aziago rolando � superf�cie de mares calmos,
solu�ados. E ergueria brado. Ou ent�o, admitindo que a onda escrupulosa n�o
repousasse at� expuls�-lo do seu seio limpo, iria dar, vazado numa golfada mais
forte, a uma praia deserta entre cachopos. Mordiscado dos caranguejos e rotundo
como um odre de cabra, incognosc�vel de todo em sua provecta corrup��o, assim
transitaria para a morgue, ou para o cemit�rio por um cristian�ssimo acaso.
Partido do princ�pio que faltasse aos revolucion�rios l�bia para conduzir o
miser�vel pela sapata da rocha at� ao fundo expiat�rio, porque o instinto da
pr�pria malandrice acabaria por preveni-lo, l� estava a greta horrenda para receb�-
lo descuidoso ou sem outra formula de protesto al�m dum abafadi�o ai.
Mas os executores n�o souberam executar. Tiveram horror ao acto. A repugn�ncia
natural ter-se-ia sobreposto � f� e � necessidade dum dever antip�tico a cumprir.
Ignoravam o que era sangue nas m�os.
A primeira mocada que lhe deram, pelas costas, n�o teria produzido outro
efeito al�m de aturdi-lo. Uma segunda, tamb�m � trai��o, na cabe�a, acabaria por
prostr�-lo. Gemendo e chorando, mais tr�mulo que um farropo ao vento, o miser�vel
teria em nome de tudo o que � santo debalde implorado compaix�o e chamado sua
m�ezinha a que lhe valesse. Havia que ceder � raz�o pol�tica do pr�prio cometimento
j� em meio, e um mais decidido ou iluminado ter-lhe-ia vibrado o golpe de
miseric�rdia. Depois, em vez de o varrerem para o mar ou para a ralada profunda,
abandonaram-no a c�u aberto. E deitaram a fugir, perseguidos os tristes pelo
remorso ou pela crimina��o interior, que � o primeiro castigo duma m� ac��o e se
traduz em medo, vergonha, esperan�a da impunidade, cobardia numa palavra que se
cobre de infernal sud�rio e pede a ligeireza ao vento. S� quando se viram longe,
lhes foi azado reconhecer que o cad�ver os ia denunciar e desde o primeiro minuto
clamava justi�a, a incontemplativa justi�a da sociedade contra os seus malfeitores.
Mas em debandada como gatunos de meloais, nenhum se sentiu com coragem de volver ao
teatro do crime passar o esfreg�o na sujeira cometida.
A� estava, tinham sido uns infelizes e ineptos mandat�rios, procedendo com
torpeza, nada de nada com a serena consci�ncia de quem � instrumento duma doutrina
que vale a lei social. A deseleg�ncia do feito relegava-os ao baixo grau de
assassinos. O pior do pior � que eu e outros tolos iguais a mim respond�amos pelas
culpas originais de semelhantes enxovedos.
Depois de ter medido a imensidade do golfo em que me achava, certo de que
seria imposs�vel explicar o meu regresso a casa j� manh� alta; que a coruja da
Cienfuegos, cat�lica-apost�lica e espanhola at� � medula, teria prazer no fundo em
contar um grande criminoso de portas adentro e em escarafunchar na p�stula; que por
este gosto ao tr�gico e ao excessivo seria a primeira a ilaquear-me nas malhas
policiais - voltei a embalar-me na ideia deliciosa: fugir. Sim, o recurso era
fugir. Para tanto tinha de revestir capelo e borla de sandeu, e n�o brigar com
inspectores e juizes. Se eu representara bem o meu papel na Rua do Passadi�o e no
necrot�rio, outrotanto n�o sucedera com o juiz de instru��o. Ali, merc� talvez da
excita��o, arvorara-me em dial�ctico, menino s�bio, revolucio-n�rio de primo
cartello. O homem devia ter ficado com uma alta ideia da minha pobre pessoa. Ora o
aconselh�vel para uma rapaz como eu sob as For�as Caudinas era precisamente o
contr�rio. Sim, de prefer�ncia a lutar, armado bem embora de todos os recursos da
casu�stica, Com o raposo de rabo pelado do juiz, o que tinha a fazer era fingir,
fingir-me sucumbido, nulo, insignificante, jo�o-ningu�m, e na primeira
oportunidade, como p�ssaro baldeado nos dedos lassos ou impr�vidos duma crian�a,
bater as asas e por aqui me vou.
VIII
IX
Aqui estou eu nas �guas-furtadas dum pr�dio pombalino, onde nem Deus nem o
Diabo me sonham e muito menos os esbirros do Jo�o. Se ergo a cabe�a, encontro c�u,
o meu c�u de homem livre, respir�vel, com estrelas � noite com que admirar a
misteriosa f�brica do firmamento, nuvens de dia para me p�r pasmado a ver para onde
elas correm. Se me levanto da mesa e olho em frente, por cima do meio aro da
ros�cea vazada, deparam-se-me os panos frontais da Gra�a e do Castelo, de matizes
t�o versicolores como os fundos de Jerusal�m nos pain�is da Via Sacra. Se me
debru�o � janela, estas janelas de mansarda que parecem concebidas para emoldurar
retratos bonitos de Julietas, abarco toda a pitoresca e complexa vinheta do Carmo.
De tope, esbelta e desnuda, a arcaria da igreja ala-se por cima dos panos alvos das
paredes, cortadas dir-se-ia em miolo de p�o, tanto a sua alvura � fri�vel e
feminina. � esquerda, a frontaria cor-de-rosa do quartel da Guarda, com a sentinela
de luvas brancas e a espada virgem em punho, lembra uma imagem de Epinal
desencaixilhada. � direita, para l� do boqueir�o que tanto engole como vomita
gente, agente que demanda o ascensor de Santa Justa, ergue-se o Pal�cio Valadares,
armado em liceu, com o seu janel�o setecentista sobre sacada que se enche de caras,
por golfadas, � maneira do tombadilho dos vapores de sul e sueste. Em baixo,
estudantes e mais estudantes, e os �ltimos aguadeiros que esperam a vez sentados em
seus pipos � volta do chafariz, um chafariz barroco para que encontro infinitas
imagens barrocas: lanternim de p�tio; liteira; a coroa de prata da Senhora dos
Rem�dios, em Lamego. Um bando de pombas saracoteia-se, com voejos singulares dumas
que chegam, doutras a quem intimida a corrima�a dos rapazes, diante duma velhota de
sapatos lilases, uns sapatos que o Senhor dos Passos deixou perder o ano passado do
andor, e se me afigura D. Pepa Cienfuegos ou o diabo por ela. A t�o alto que estou
e em virtude da verticalidade, n�o distingo bem. Filantropicamente, ela vai-lhe
semeando uma pitan�azinha larga, e a minha patroa da Rua do Passadi�o, embora
cat�lica at� o ponto de ver com bons olhos que se purifiquem pelo fogo incr�us como
eu, seria incapaz de gastar dez r�is com as almas. � uma boa mancheia de milho
grosso, cor de oiro velho, o que ela traz �s pombas, deste milho que tem na cor e
na celulose o sol de Agosto e canta quando cal. E de facto eu ou�o o belo sonido
que desprende ao despenhar-se, gr�o a gr�o, nas pedras da cal�ada, salvo as vezes
que a �gua da torneira murmureja no fundo do barril e os galegos, que j� n�o s�o de
Redondela, se pegam � tapona com os estudantes.
De quarto em quarto de hora estruge um el�ctrico para as bandas da Trindade,
saindo ou entrando da ilharga de S. Roque, em sua naveta combinada com o ascensor,
que pressinto pela percuss�o das portas, quando embatem e se embainham nas
couceiras, deslizar com c�lere e oleosa suavidade nas calhas verticais. E �
imagina��o representam-se-me as carapa�as monstras dos bondes alfacinhas,
tartarugas amarelas, com o trol a charriscar lume no cabo de alta tens�o, cabe�as
de meninas perliquitetes a prelibar o encontro com o namoro, o condutor com
emb�fias de argonauta entre o man�pulo e o volante. Vejo nas paragens os meus
semelhantes, solit�rios ou em grupo - �gua-forte t�o alfacinha em que figura
mormente quem n�o tem que fazer - e, se os admiro, la os n�o invejo. Sou livre como
eles, com a diferen�a que a minha liberdade � mais preciosa, porque a reconquistei
� viva for�a, atirando-me como os amoucos de que falam os barbados cronistas. A
deles � uma liberdade de �gua corrente que mata a sede, isto �, a necessidade
humana de exercer os m�sculos locomotores segundo a vontade. A minha, sei-o por
experi�ncia do cativeiro, tem todos os requisitos dum ideal.
Falo em liberdade e todavia encontro-me em clausura. � certo. Mas esta
clausura, bem o sinto, � a antec�mara da liberdade. De resto, se quiser sair � rua,
embora a meu risco e contratempo, ningu�m me estorva. Se � noite me der na real
gana para passear, n�o terei a trancar-me o caminho porta fechada a sete chaves.
Sou livre, sou eu. Sinto-me arbitralmente criatura � imagem e semelhan�a divina. A
euforia que me anima equivale a n�o sei que propuls�o levitadora. Tenho a impress�o
de que se desse um salto para baixo n�o quebraria osso.
Chegara trazido pelo Bemposta, este homem ofegante que sobe os degraus dois a
dois, deixa as frases a meio, e ignora a vol�pia dos caminhos tortos, os mais
deliciosamente vagabundos. Um toque vibrante de campainha, e entr�ramos para sala
ampla e quadrada, recoberta de oleado, com um retrato a crai�o, representando homem
de grande bigodeira, a moldura faixada de crepe, arm�rios de vinh�tico recheios de
cristais e lou�a - baixela de segunda ordem - e no aparador, em linha, a bateria
espampanante dos vinhos finos. Bastava mencionar ao centro a mesa rectangular, que
se antev� ser el�stica, para ficarem tiradas as inquiri��es da sala de jantar
lisboeta, da classe m�dia, que, al�m da fun��o pr�pria, tanto serve para estar como
para receber. Ali sa�ra a acolher-nos o senhor Zeferino Fernandes, a cuja vista
fiquei mais varado do que se me surgisse pela frente o Minotauro. Diabo, este bom
samaritano era o mesm�ssimo homem que, a noite j� distante de palha�os, dava o
bra�o � dama que eu assediara com olhos de carneiro mal morto durante uma boa parte
do espect�culo? Bemposta fez as apresenta��es, e pelo �-vontade do cavalheiro,
isento do mais leve ind�cio de reserva, pela brancura imareada de seus sorrisos e
palavras, conclui que me n�o reconhecera. N�o me teria reconhecido por merc� do
disfarce, ou porque a minha imagem se tivesse desvanecido na sua retina? Ele no
entanto sabia que eu chegava caracterizado, e por baixo da cabeleira flamenga e do
vinco martirizador espreitava a minha fresca e deslavad�ssima figura. Mas n�o me
reconheceu, � o caso? Respirei, mas nem por isso deixei de experimentar uma sorte
de remorso retrospectivo pela m� inten��o que envolvera a seu respeito a corte que
fiz � desconhecida. Ele mostrava-se lhano e af�vel de todo, e dentro de mim
formulou-se a d�vida: ter-me-ia eu enganado? H� muitos Man�is, da mesma maneira que
h� multas Marias na terra. � semelhan�a do homem do Coliseu, este atravessava a
quadra outoni�a. Exalava igualmente aquele desprendimento ou enfado de viver que a
porosidade do barro humano transuda do f�sico cansado. Sobretudo, o seu olhar era
daqueles que v�m de largo, carregado de panoramas que pressentimos, mas somos
incapazes de abarcar, e d�o � fisionomia um t�nus inconfund�vel de espelho de
coisas ausentes. Devia ser o mesmo. N�o a vira a ela, com estes que a terra h�-de
comer, entrar para o pr�dio? S� faltava agora que aparecesse a enjoleuse por uma
das portas laterais que davam para aquela sala.
Ela n�o me apareceu, mas enquanto o Zeferino em pessoa subia �s �guas-furtadas
concertar com as velhas o meu aboletamento, descobri colada contra a fenda da porta
uma face muito branca tendo por suped�neo uma bata cor-de-rosa. Sem d�vida que o
listel entrevisto era de natureza feminina. Depois, um olho rebrilhou ao centro da
talisga. Era um olho negr�ssimo, curioso e penetrante e, pelo arregoar da capela e
n�o sei que remoinho subtil de tonalidades, pareceu-me que aquela m�scara se
arrepiava ao fr�mito faceiro dum sorriso. E, por tudo aquilo, com terror e
sobressaltada exulta��o me palpitou que fosse ela.
Quando a porta se fechou com lenta mesura, para que o manobra n�o fosse
delatada, perguntei a Bemposta:
- Donde conheces o dono da casa?
- Da propaganda. Sabia que era prest�vel e quando o Patarroxa se lembrou dele
na nossa atrapalha��o, botei-me c� ao direito. O dono da casa a bem dizer n�o �
ele. A casa � duma rapariga, chamada Martinha, Martinha Reis, me parece, que lhe
aceitou a protec��o. Est�s a perceber?
- Estou a perceber. Faux m�nage...?
- O Zeferino � vi�vo e vivia com a m�e. Agora reparte-se...
Decorreu um segundo de sil�ncio e tornou, ao passo que apontava para o homem
dos bigodes:
- O Zeferino n�o � o primeiro. O primeiro foi aquele... Mora no Alto do S�o
Jo�o.
- No Alto do S�o Jo�o?
- No cemit�rio.
- Ah, sim!
- Nada mais natural morrer? O que n�o sei � como morreu, nem quando morreu.
Talvez tuberculoso. S� sei que morreu e deixou a Martinha �s do ch�o. O Zeferino
conhecia-a e pegou-lhe. A� tens?
- Um romance trivial de Lisboa.
- Sim, um romance trivial�ssimo de Lisboa. Esta Martinha � um peix�o, mas n�s
n�o temos o direito de erguer olhos para ela. Cuidadinho?
Chegava Zeferino Fernandes de parlamentar com as velhas quanto a darem-me
cama. E s� ent�o se mostrou interessado em saber como eu me tinha evadido e das
perip�cias v�rias, que qualificou de engra�adas, que sucederam. E, estava a perorar
sobre as monstruosidades do poder absoluto, quando uma bela cabe�a - r�sea de
c�tis, negra de cabelos � se mostrou � porta da esquerda, e proferiu:
- Quando quiserem... o quarto est� pronto.
Era ela. Fiquei engasgado, a vista presa ou a adejar tr�mula ao vulto que
desaparecia.
No patamar, tendo-nos precedido com apetrechos mi�dos de toilette, Martinha,
porque era ela, murmurou em voz baixa, olhando para Zeferino, embora parecesse que
falava comigo:
- Disse �s velhas que era primo do Fernandes e vinha muito mo�do da viagem.
Que nome lhes hei-de dar?
- Eu chamo-me Lib�rio... Lib�rio Barradas, criado de Vossas Excel�ncias.
Talvez convenha usar outro nome...
- Sem d�vida - apoiou Zeferino. - Tem a roupa marcada?
Fic�mos um tempo silenciosos a reflectir e ela acudiu, dirigindo-se ora a
Zeferino, ora a mim;
- Que n�o tenha, poder� ser-lhe preciso marc�-la. Um nome que principie por
L...
- Louren�o...
- Que horror!
- Leopoldo...? L�cio...? Luciano?
- Leopoldo � melhor. L�cio e Luciano s�o f�tuos.
- Liberato? - exclamou Zeferino. - A� est�: Liberato? Nada mais oportuno.
- Pois o senhor Liberato - proferiu ela em tom risonho e af�vel, sem cair no
familiar - entre, tenha a bondade, eu vou trazer o pequeno-almo�o.
Em despeito daquele pequeno-almo�o, t�o morfologicamente pires, fiquei
agradado de Martinha, da sua natural distin��o e desembara�o pr�prio de quem
obedece aos impulsos do g�nio, sem ar de presumir servi�os ou de render obs�quios.
Por detr�s da frontaria - mera presun��o psicol�gica - afigurou-se-me airosa,
desenganada e dando todos os sinais de indiferen�a. Pelo que assentei com certo
desconsolo que me n�o identificou. De resto, como podia identificar-me sob o rebu�o
t�o bem aplicado do mestre caracterizador?
O seu instinto podia ter-me adivinhado, podia, sim. Mas n�o me adivinhou, e
tanto melhor.
Quando, aproximando-me do espelho, me vi com a ruga ao meio da fronte e a
gaforina ruiva do Regente. pensei para comigo que por baixo do disfarce, para mais
estando prevenido quem me via, espreitava de maneira abusadora o aut�ntico ego.
Depois, arrancando a cabeleira e diluindo o vinco, permiti-me supor que
diferencialmente pouco ganhara a minha fisionomia. No entanto foi com interessada
expectativa que aguardei a chegada dos meus anfitri�es, N�o veio Zeferino, mas veio
ela com a bandeja, bem provida de comedorias. E ante o meu semblante, tornado
natural, nem pestanejou. Voltei a dizer-me que me n�o reconhecera. Quando ela por�m
se retirou, lan�ando a tudo um olhar irreferente e palavras duma atonia de
hospedeira inglesa, pretendi convencer-me raciocinando, precisamente porque havia
uma perfei��o exagerada no seu gelo, que talvez ali andasse artificio e bem
montado. Fosse como fosse, eu � que nunca ousaria lembrar-me da bela desconhecida
do Coliseu. Decisivamente. E n�o queria j� contar, nem saberia, quantas horas ou
quantos dias a minha carne correra ao faro da sua carne.
Durante aqueles longos meses, com frequ�ncia, havia considerado: �Mais dia,
menos dia, v�-la-�s atravessar no teu campo de tiro. � De facto, ali estava ela
projectada, mas seria o mesmo que n�o estivesse. Este senhor Fernandes, afrontando
os riscos e penalidades da pessoa que d� guarida a foragido das cadeias, procedeu
melhor do que manda Cristo. E eu seria o �ltimo dos homens se n�o tivesse m�o em
mim e cometesse o sacril�gio delicioso. Desse por onde desse, Zeferino Fernandes
podia dormir descansado, Estava ungido pela minha gratid�o contra o lud�brio. A
bonita criatura que comunicava calor e alegria ao seu Outono provecto seria como
uma ara. Tocar-lhe nem com o dedo molhado. A no��o da sua santidade � elas tais que
se imp�em por si, sem ser preciso mostrar aos olhos, levantando a toalha de
cambraia, que o �.
Bem sei que acima da vontade est�o os sentidos e o pensa- mento. S�o eles a
parte din�mica do homem. O que resta, abstraindo de tais componentes, � res�duo
miserando, que de ordin�rio costuma oferecer-se a Deus. O esp�rito, esse querubim
alado, vai � frente batendo terreno por veredas escabrosas e vedadas. Queira ele e
n�o h� obst�culo que o detenha. N�o ouve vozes de s�plica nem de comando. Os
sentidos, por sua vez, t�o-pouco aceitam morda�a. S�o a rebeldia no sector bovino.
Porqu�? Porque obede�am a m�beis que est�o para l� da esfera do indiv�duo, o tal
interesse da esp�cie, chamado lei da conserva��o!?
Pois eu travarei batalha com o esp�rito, arcang�lico e ind�cil sacripanta, e
com os sentidos, esses triunfais Belzebus. Eu, voli��o rude e contrabatida duma
pequena mas latente consci�ncia? Est� dito? Arrenego na palermice, ou complexa
monstruosidade, que o romantismo denominou cora��o, mais do que isso, juro calc�-
lo, esgan�-lo, se ousar dar pio!
Veio a pr�pria D. Martinha erguer a mesa; f�-lo com airosidade simples, nem
�nfase nem requerimento � dignifica��o; e, executada a tarefa, retirou t�o
naturalmente �matrona intemerata� como entrara. Entendido: eu representei o meti
papel menos mal; ela provavelmente n�o representou nenhum, se por tal se pretende
significar uma atitude n�o estudada. Foi-me bem, para aprender a discernir a
natureza das minhocas que rastejam no entendimento e deixam crepes, baba p�trida
corno l�mures das catacumbas.
As duas manas sa�ram a Martinha no cabo do corredor, e percebi que
cochichavam. Que teriam a dizer estas sombras, fugidas do �rebo, pelo que ouvi ao
amigo Fernandes? Fui escutar, feia ac��o que se me inveterou no calabou�o:
- N�o admira que o corpo lhe pe�a ripan�o. Dois dias e duas noites sempre a
andar, sem pregar olho, como diz a Dona Martinha!... A terra dele � ent�o l� no
cabo do mundo?
- � l� para a extrema de Portugal, para tr�s do Monte Mar�o, Dona Juliana.
- Monte Mar�o, ah! N�o d� palha nem gr�o, sempre ouvi dizer. E vem de passeio
ou para se empregar...?
- Vem passar c� uma temporada. Sabe, Dona Aur�lia, o primo do senhor Fernandes
para onde vai leva o emprego consigo...
- Essa agora! Como pode isso ser, minha j�ia? � doutor de leis...!?
- N�o � doutor de leis, mas d� o mesmo. O primo do senhor Fernandes �
escritor... Faz versos, almanaques como o Borda d'�gua, o Sarago�ano. Percebe, Dona
Juliana?
- Faz almanaques, ah! Os almanaques que vendem � entrada da Pra�a da Figueira?
- Esses mesmos.
- Ent�o fraco emprego � o dele, coitado?
- Cada um sabe as linhas com que se cose. Mas, v�, � um oficio que oferece
certa comodidade. Acontece-lhe vir para Lisboa, como agora... Mete-se num quarto,
trabalha, ganha a vida. Vem-lhe � cabe�a largar para o Brasil, para Espanha, para
cascos-de-rolha, d� ao dedo e l� se governa. � como os alfaiates, basta-lhe uma
agulha e a tesoira.
Passou um breve mas frio sil�ncio no locut�rio e, compreendi, eram as duas
velhas a digerir a banal�ssima novidade.
- O primo do senhor Fernandes pode precisar de alguma coisa, encontrar-se
connosco no corredor... Afinal, como � que se chama?
- Liberato.
- Liberato, espere, � como se diss�ssemos: �Livra-te, rato!� j� n�o esque�o.
Pois quando o senhor... o senhor Liberato precisar de alguma coisa, �gua quente
para a barba, a bacia para os p�s, que bata as palmas. N�s estamos sempre em casa,
salvo o tempo da missinha do padre Anasarca, altar da Senhora da Piedade, ali no
Sant�ssimo Sacramento... e um salto � Pra�a da Figueira, cedo, quando a venda �
livre.
- Muito obrigada, Dona Aur�lia, muito obrigada Dona Juliana. Vou-me l�
despachar o rapaz da mercearia que est� � espera h� mais dum quarto de hora.
Estava por conseguinte em casa de D. Juliana e D. Aur�lia, velhas beatas
coscuvilheiras, desentaladas duma p�gina de J�lio C�sar Machado. Dada a curiosidade
inata de tais bichas, e a sua sede de emo��es, tinha de ter cuidado comigo.
Passaram-se naqueles primeiros dias longos per�odos de muitas horas sem que
avistasse Martinha. Esses lapsos de tempo, � medida que se sucediam, mais me
capacitavam de que eu fora objecto de logro. Lib�rio Barradas, perd�o, Liberato de
Barros, era-lhe absolutamente indiferente em tudo o que ficava para l� do homiziado
pol�tico. Mais do que isso, n�o se lembrava sequer do rapaz que estivera corno um
podengo marrado dos seus olhos, e a seguira desatinada e famelicamente pelas ruas
da Trindade, uma tarde dulc�ssima, tarde er�tico-religiosa de T�gides a gambiar ao
lume da �gua, e provavelmente anjinhos papudos, anjinhos � D. Jo�o V, com sim-
senhor algodoado de nuvens brancas, a bater o saricot� por cima do p�lio de
brocatel que cobria a capital do reino fidel�ssimo.
Chama-se Martinha, mas j� me n�o lembro como a baptizei na hora fantasiosa de
palha�os. Creio que foi com uma destas �gra�as� alambicadas e todavia cheias de
eufonia, comp�sitas do m�stico e rescendente que h� no nome de Nossa Senhora -
Maria - e no nome que usaram as hero�nas rom�nticas - Estela, In�s, Helena: Maria
Estela, Maria In�s, Maria Helena. Pois saiu-me uma Martinha, nome que vai � sua
carnadura sobre o chefinho, ao sorriso s�o, ao �patriotismo� para m�o delicada,
como a ametista ao dedo dum bispo. E tudo o mais - as formas envolventes, a polpa
de morango dos l�bios, os olhos t�o retintos de negror como os cabelos, tronco com
uma polegada a menos de altura, para corrigenda do qu� a natureza lhe proporcionou
erecto e alto colo - est� em correspond�ncia. Nesta aproxima��o, como em tudo,
parece haver um trabalho s�rio de adaptabilidade. O nominal modela a subst�ncia e a
subst�ncia faz o nominal. Quando esta criatura nasceu, se na pia lhe chamassem
Ol�mpia ou Capitolina, quem me garante que os �tomos de que se comp�e o seu corpo
se teriam agrupado segundo a mesma tra�a?! Mas porque � que, ao contr�rio dos meus
protestos, me preocupo tanto com ela?
XI
Ah, que miroir � alouettes que � a mulher! De quem elas gostam, por quem s�o
capazes de morrer, s�o os que est�o em cima ou em baixo. Os que est�o em
desequil�brio com o meio, os her�is que ultrapassaram a craveira e os fracos, os
tristes, os que precisam de amparo, e n�o d�o craveira alguma. A m�dia na virtude,
na intelig�ncia, no dom�nio, n�o lhes interessa. Ou, ou. Escravas ou rainhas. A
minha surtida pela noite aventurosa colocou-me no papel de pobre folha ao vento,
varrida ensanguentada para a rnorgue, crian�a falha de ralhos e tutela maternal. E
tanto bastou para que ela assumisse a miss�o que lhe � pr�pria, dar-se.
Toda a noite levei em desassossego. Tinha e n�o tinha a sua boca na m 1nha,
os seus bra�os enla�ados no meu corpo, os seus cabelos desatados sobre a
travesseira. E deste ter e n�o ter tanto me exaltava como refervia de impaci�ncia e
febril imagina��o.
Manh� cedinho, uns dedos brandos tamborilaram � porta. Estava no limiar do
sono e, ao passo que uma indescrit�vel onda de emo��o me percorria, pronunciei:
- Fa�a o favor de entrar. Est� aberta... Era um vulto de mulher e no primeiro
relance s� vi Martinha. Mas quem era ria-lhe o olhinho folgaz�o no rosto redondo e
deslavado, e a caraminhola puxava para o louro, sem falar do espavento.
- Ernestina? N�o tornara a v�-la desde a pris�o e deu-me ares de mais magra e
p�lida, talvez por isso mais atraente... Entrou com certo enleio e agarrou-se a mim
n�o sei se a solu�ar se a rir, na efus�o das almas simples que afogam a ternura sob
rouquejos em que tanto marulham j�bilos como l�grimas. Depois desembuchou:
- Est�s rijo... mais gordo? Coitadinho, em que dan�as tens andado! Olha,
trago-te aqui o fato novo...
- Quem manda?
- O Bemposta.
- Mas o Bemposta esteve comigo esta noite at� altas horas e n�o me disse
nada...!
- N�o sei. Aquilo encontrou o embrulho em casa quando se foi deitar. H� bocado
foi ao meu quarto e disse-me a esbofar, como � seu costume: �Vais-me levar esta
roupa ao Lib�rio?� - �Vai l� tu; ainda agora me deitei.� - �Santa paci�ncia, tens
de ir tu? Uma mulher n�o se torna suspeita.� Arranjaste um bonito nome: Liberato de
Barros! Ah, ah! E, sabes, disse �s velhas que era tua cunhada com medo de que me
n�o deixassem entrar...
Desatou a rir e eu, posto que contrariado com o expediente, desatei a rir
tamb�m. Ernestina tinha-se debru�ado sobre a cama, a cabe�a muito perto da minha, e
com m�o autom�tica afagava-me os cabelos. Sentia o seu h�lito de mistura com o
rescendor do corpo imbu�do de perfumes baratos e do cheiro do lupanar, esp�cie de
metana agarradi�a e mole que, em despeito de lavagens e dealba��es, penetra as
toleradas at� a alma. N�o obstante os severos h�bitos de limpeza, Ernestina
guardava sempre os ventos escabrosos da Am�lia. Um tanto embara�ado, disse-lhe a
fugir � confus�o:
- Reataste com o Jos� Elias?
- Livra! N�o sabes, est� na casa de h�spedes, como um turco. � amigo da Dona
Fl�via, a velha, e da Ervilha-de-Cheiro... Mas n�o se contenta, agora anda a
arrastar a asa � rapariguita...
- Essa agora! A qual delas?
- � Irene; a outra nasceu ontem.
- Quanto � velha e � Ervilha n�o me d�s novidade nenhuma - tornei eu. E a
experimentar-lhe o reactivo: - Confessa: ainda te n�o passou a dor de cotovelo...?
- Qu�? Dor de cotovelo? Est�s muito enganado. Lembro-me dele como da primeira
camisa que vesti.
Inclinei-me para ela a ler-lhe nas meninas-dos-olhos a veracidade do que
dizia. Ela prestou-se ao jogo, arrega�ando com jeito gavroche as duas p�lpebras
inferiores para que eu visse bem. Tirada a prova, acrescentou com certa mal�cia:
- Est�s mais homem... mais guapito...
- Tu � que est�s mais guapa!
- N�o digas isso, estou acabada. O fado � uma mata��o. Mas ouve urna coisa,
aquele sujeito com quem o Velhinha uma vez bulhou... aquele... hem?... quer tirar-
me da vida...
- Quer tirar-te da vida e tu hesitas?
- N�o hesito. � homem casado e tenho medo que se arrependa... ou que eu lhe
leve desgra�a para casa.
Tinha ficado muito s�ria e acabara a confid�ncia em voz baixa com um doce
sorriso a alumiar-lhe os olhos, que eram bons. Eu fiquei calado e entre-tanto ela
tinha-me pegado da m�o e brincava com ela, afagando-a e tornando-a a afagar com
bland�cia e vagarosidade.
- Olha, Ernestina, se ele gosta de ti, experimenta disse eu.
- Que palavras, experimenta! Sempre fazes uma triste ideia de mim. Tens raz�o,
- acabou por dizer com voz triste e olhos marejados de l�grimas.
- Perdoa, se te ofendi... N�o foi por querer. Neste �experimenta�, n�o queria
significar: �N�o perdes nada�, mas �vale a pena fazer uma tentativa�. V�s tu, se o
homem � s�rio, se � rico, pode dar-te com que te governes sem precisares de sofrer
mais humilha��es. Feiona, choras por pouco!
Ela dobrou-se mais para mim e, ao passo que o seu peito arfava e eu o sentia
arfar, dizia com donaire:
- J� n�o choro. Adivinha l�: estou-me a ver nos teus olhos. O que eu sou de
pequenina? Pequenina e bonita como nunca fui nem hei-de ser. S� queria que visses.
Que raio de espelhos 'os teus olhos?
- Tamb�m me estou a ver nas meninas dos teus. Sou horr�vel.
- Vaidoso?
Deu-me um beijo na testa; puxei-a para a cama.
- Deixa-me tirar a blusa e os sapatos... Tirou a blusa, os sapatos, a saia.
- Fecha a porta com o pincho... Furou por entre os len��is. Dali a pouco
chorava:
- N�o gostas de mim? Nunca gostaste? Antes de vir aqui lavei-me em dez
�guas...
Tanta candura, as l�grimas e certa express�o dos olhos baixos, muito pura, que
lembrava Martinha, a desejada, desviaram do meu c�rebro a ideia do bordel, do corpo
que se dava a todos, e tornei-a benditosa. Saltando do leito, pronunciou:
- Vou-me l�, que pode vir gente, n�o pode? Que dir�o as velhas da cunhada do
senhor Liberato? Olha, j� me esquecia, aquele Jos� Taboso l� da tua terra anda
morto por te falar...
- Ernestina, tu voltas? - disse-lhe em termos n�o s� de amenidade como de
reconhecimento.
A sua resposta foi vir beijar-me na testa. Beijava-me em absoluta rendi��o. E,
nesses beijos como na entrega de h� pouco, toda se difundia em carinho, ternura,
bem-querer, mandato duma simpatia imperiosa, como m�e que chega o �bero ao filho.
Cada um d� o que tem. A pobre dava o corpo e as meiguices, corno Santa Maria
Egipc�aca fazia com os barqueiros, que a passaram no Nilo, uma e outra, n�o tendo
mais que dar. Pois podia ela, acalcanhada noite por noite de abra�os mercen�rios e
lubricidades an�nimas, vir procurar lux�ria, s� lux�ria nos meus bra�os? Reconheci
que n�o e, comovido at� o mais impenitente do meu pensar, sensibilizado at� a
�ltima fibra, apertei-a bem contra o peito e beijei-a no pesco�o, na nuca, nos
bicos dos selos, e tive vontade, como os monarcas faziam �s santas, de lhe beijar
os p�s. Afagada e grata, satisfeita e instintiva como uma cadelinha, ela ria, ria
perdidamente sem compreender.
- Amanh� volto. Queres?
- Quero, pois ent�o!
Partiu, a alma lavada de regozijo puro, como em seus tempos de crian�a a
primeira vez que comungou.
XII
Eu n�o votava nenhuma esp�cie de simpatia a este Jos� Taboso que virara Lisboa
de baixo para cima � procura de mim e sempre acabara por ir dar comigo no Caf� Gelo
uma noite que eu ali estava em boa e animada roda. Bem sei que ele procedera a
mandado do senhor padre Ambr�sio, meu bom mestre. N�o h� d�vida. Mas esmerara-se na
dilig�ncia mais do que cumpre a quem faz um recado, embora, imagino eu, andasse
assim menos por maldade que pela emb�fia de poder cantar vit�ria. Fosse como fosse,
a nossa c�lera e quando Deus quer a pedra v�o para o c�o e n�o para o dono do c�o.
Depois, os seus conselhos tinham sido urticantes al�m de indiscretos:
- Oh homem, aquilo faz-se... voltar costas a quem deve o que �? ... V� para
casa, deixe l� estes s�cios, que n�o lhe h�o-de adiantar carreira, e escreva ao
senhor padre-mestre a pedir-lhe perd�o. Santo velho? S� queria que visse as bagadas
que lhe ca�am pelo rosto a baixo! Agora n�o me dir� porque � que andou a fugir
dele? Tinha medo que lhe deitasse a gargalheira ao pesco�o?? Ponha l� na sua que o
padre-mestre s� quer o seu bem, e, antes de mais nada, que n�o ande como um tolinho
a dar com a cabe�a pelas paredes. Ah, uma assim n�o se fazia, n�o senhor? E porqu�?
E porqu�? Por lhe vir chegar a t�bua de salvamento para se n�o afogar? Ol�, afogar!
Pois que � que se pode imaginar duma pessoa que leva o desatino a lan�ar-se � toa
para uma terra como esta, onde quem o tem chama-lhe seu, quem o n�o tem v� navios
do alto de Santa Catarina! Para mais, sem um arrimo, um ganhap�ozinho por muito
modesto que fosse! N�o uma assim, desculpe que lho diga, s� com um vergueiro? Quer
o meu amigo ouvir! H� bons vinte para vinte e cinco anos - andava tudo numa
polvorosa com o Fontana - vim eu para Lisboa vender - imagine o menino, imagine! -
vender capil� na Pra�a de Touros do Campo Pequeno. Trabalhava pelo comer e o meu
amo era mau. Muitas vezes senti na bunda a rijeza dos seus sapatorros, uns
sapatorros de biqueira agu�ada, muito revirada, que costumava trazer? S� com o
andar dos anos � que pude arrematar a cantina do Teatro de D. Am�lia, e navegar
ent�o por meios pr�prios. Bons tempos, meu rico! Com seis vint�ns governava-se uma
casa de gente e ainda crescia para um jantarinho nas hortas, Agora o senhor, que
n�o vinha vender capil�, nem burri�, nem coisa que se pare�a, n�o devia arredar de
par dos seus sem saber para onde atirava com o cad�ver... Acabou-se, est� c�, est�
c�! Mas vamos l� a ver: emprego arranja-se...!
- A boas horas, tio Pedro! - exclamara eu. - Estou governado h� muito. Sou
jornalista. Ordinariamente, quem escreve a resposta ao artigo de fundo do Di�rio
Ilustrado sou eu... - Resposta tesa. - Tem lido? Sou eu, quase todos os dias, mas
assinam outros, est� claro.
Semelhante gazeta andava trancada no goro de muita gente boa, e o meu Taboso
abrira admirativamente os olhos, se bem que o fen�meno fosse de curta dura:
- Pois melhor, melhor? � mais uma raz�o para mandar duas regrinhas ao senhor
padre-mestre e n�o renegar dos seus. Olhe que Deus castiga sem pau nem pedra. L�
porque Lu�s Barradas � Juiz de igreja n�o deixa de ser um homem como outro qualquer
que se preza. Sabe, um indiv�duo pode exercer um oficio de cacarac� e ser tanto ou
mais considerado que aqueles que est�o no alto galarim. Aqui onde me v�, servente
de laborat�rio, todos me apertam a m�o. Todos. Tamb�m tenho ajudado muito filho de
boa m�e a doutorar-se. Sim, senhor, n�o consumi as pestanas em cima dos livros,
meus pais n�o gastaram comigo um chavo em mat�ria de mestres, e tudo o que sei � de
ouvido. Mas olhe que mais qu�mica do que eu s� o Aquiles!
Olhava para mim a medir na minha fisionomia a subida do cr�dito, como se mede
pela escala das pontes a cheia do rio. E, como eu me mostrasse penetr�vel,
acrescentara:
- Se passasse l� pela Polit�cnica havia de ver? Mas vamos ao que me traz:
voltar para a terra n�o quer? Pelos vistos n�o quer. Se quiser, j� sabe, abono o
bilhete, que tais s�o as ordens.
A julgar �pelos vistos� o homenzinho estava a ver de mais, ver para l� das
cruas realidades, uma vez que eu n�o tinha na algibeira com que mandar vir um
capil�. Devia faz�-lo por sistem�tica defesa, al�m de que eu n�o lhe interessava
sobremaneira. Cumprida a sua obriga��o, ala? Mas pois que assim desalmadamente me
desfrutava, n�o com perfeita inoc�ncia, quero crer, dera-me para pagar-lhe em boa e
sonora moeda:
- Bem haja, senhor Taboso, mas logo que eu possa ir visitar o padre-mestre
vou, e quando for disponho do passe do jornal nos Caminhos de Ferro. Agora ou�a...
Tem o senhor Taboso alguma pretens�o que dependa do primeiro-ministro? Se tem, n�o
se acobarde de o dizer. Conhe�o o barbeiro daquele estadista. � s� ele abrir a
boca, as vezes, est� a ver, que o apanha debaixo da navalha, os dedos a esticar-lhe
a barbela, e feito. A semana passada livrei um recruta de andar com a mochila �s
costas; h� dois dias fiz o meu engraxa comendador da Ordem de Cristo.
Com �escovas� deste quilate e outras estupend�ssimas loas correra com o
musaranho do meu salvador, no fundo talvez rendendo gra�as ao Diabo.
Rodaram semanas, meses, e criatura foi o Taboso que nunca mais acudiu ao meu
entendimento, quando, dias depois da fuga, me mandou dizer pelo Velhinha. que o
conhecia dos dois ou tr�s anos �gramados� na Polit�cnica, que tinha um recado
importante para mim, mas que s� o daria em pessoa. N�o me dignei responder. Al�m de
n�o querer divulgar o endere�o da minha morada, segredo que era tanto ou mais de
quem me havia acolhido do que meu, estava ressabiado contra o homem, e supus que se
tratasse dum destes alcriquetes que n�o valem dois carac�is.
Subitamente vi-me no Largo do Carmo com uma trouxa na m�o sem saber para onde
endireitar o passo. Com efeito, na mesma manh� em que recebi a visita de Ernestina,
pouco depois de ela despedir, estalou o cataclismo.
Aquela meia hora corri a pobreta lan�ara-me num estado de esp�rito compar�vel
ao dos beatos no para�so - euforia pura. Nunca a luz me pareceu duma limpidez mais
divina, duma do�ura mais b�blica. Dourada, sim, mas nada pomposa, antes da cor
humilde dos trigais e do azeite quando, vazado no prato, os olhos n�o sabem
distinguir se � tempero, se � o pr�prio colorido da faian�a. Manjar celeste a
manh�. As pombas sarabandeavam pelo largo, que os rapazes estavam nas aulas, todas
se espenujando na chama solar, com voejos mansos entre a c�pula do chafariz e as
cornijas e arcos desnudos da que foi a bela Igreja de Santa Maria.
Eu ia-me vestindo e, volta e meia, deitando para a rua um olhinho curioso.
Sobre o quartel pairava como sempre uma dormida e volumosa paz de convento. E se
n�o fora a sentinela que batia a bota de c� para l�, de luvas brancas e espada ao
alto, espelhadi�a como folha-de-flandres, charlateiras amarelas no d�lman, nada
quebraria o fundo sorumb�tico do front�o.
A Costa do Castelo, entrevista parcelarmente, segundo a limita��o do feixe
�ptico enquadrado pela ros�cea e os janel�es, dava-me mais do que nunca a impress�o
plural do sol, o sol a espolinhar-se e a pincharolar de muro em empena, de janela
para belvedere, de encume para chamin� , e aquelas cabriolas eram de jucund�ssima e
quase animal jovialidade.
Estava a aperfei�oar o n� da gravata para descer ao terceiro andar -
ultimamente, com o afrouxar das preven��es, adoptara-se corno regra parti-cipar eu
da mesa dos meus hospedeiros, comparecendo �s horas previstas - ouvi chapejar no
corredor. Se me atrasava, o que ocorria frequentemente por falta de rel�gio, vinha
Miquelina, a criada, gritar-me pelo orif�cio da fechadura:
- Senhor Liberato, s�o horas! Naquele dia, quando eu, atrasad�ssimo
certamente, esperava ouvir o falsete da sopeira, � Martinha que chama:
- D�-me licen�a...? Notei logo que estava de rosto demudado, e eu a dirigir-me
a ela no gesto de cumprimentar, e ela a cruzar as m�os, ainda que n�o de todo
ostensivamente, sob o aventalinho bordado. �Temos endr�mina e j� calculo onde vai o
gato�, considerei para comigo, mas acautelei-me de ser eu o primeiro a sair �
carreira. Vi-lhe crispar os l�bios, fazer um esfor�o latente para n�o se descompor,
e proferir num esgar que me deu a antevis�o do que seria a sua boca na velhice,
perfeitamente uma boca tortuosa e t�rpida de vieille Houlmi�re:
- Que cunhada � essa que acaba de sair deste quarto? N�o respondi, perplexo
com a forma do ataque, embora muito bem tivesse palpitado que no estratagema de
Ernestina residia a causa do despaut�rio. Mas desatei a rir, enquanto ela na sua
fogosa c�lera volvia:
- Que com�dia foi essa, diga?... Mas diga?...
Descobri-lhe o cenho encrespado com vigor e fiquei no mesmo embara�o por n�o
saber se quem me falava era a mulher ciumenta ou a moralona presumida. E fui
arranhando uma escapat�ria:
- Que com�dia foi? Ora essa, foi a alfaiataria que me mandou este fato. A
rapariga que o trouxe fez-se passar por minha cunhada. Ensinaram-na assim para
encurtar raz�es ou para n�o erguer suspeitas, assim deu o recado. N�o tenho culpa.
- S� isso?
- S� isto, pois ent�o?
- Impostor!
- Impostor, porqu�?
- Refinad�ssimo impostor? Mas, ainda bem, desmascarou-se...
- N�o percebo.
- N�o percebe?! Olhe l�, que julga o senhor? Que est� na sua terra, no meio
dos matos...!?
Lembrei-me que as carochas das duas velhas podiam testemunhar o corpo de
delito. Estava-lhes de resto a car�cter. Pelo f�sico, a cavidosa sinuosidade, o
calafetado dos passos, correspondiam ao que nos conventos se chamou a
important�ssima institui��o das �escutadeiras�. Ao sair do quarto mais duma vez
esbarrara com elas que se esgueiravam pelo corredor fora, sumidas e subtis. E n�o
foi uma s� vez nem duas que as surpreendi tamb�m, � vidra�a da mansarda paralela
com a minha, de gargalo estendido a esperluxar o bul�cio das ruas, mormente quando
eram namorados que passavam de bra�o dado, ou estudantinhos do s�timo ano que
arrastavam a asa �s sopeiras. Com a focinheira, apurada pelo rap�, apreenderiam as
frag�ncias mais vol�teis do pecado, quando mais aquele patchouli grosseiro da
Ernestina? Gulosas de emo��es e sobretudo de esc�ndalo, que equivale � pimentinha
no refogado familiar, � natural que da cena com Ernestina n�o lhes passasse
despercebida uma voz, um gemido, um resqu�cio de aroma. Portanto negar era um f�til
recurso, mas �s mulheres apraz mais a mentira, que as lisonjeia, ainda que calva,
descarada, a pedir pelourinho e o ferro em brasa, do que a crua realidade, que as
defende do inimigo e delas pr�prias, e as rep�e no que s�o. Com esta Martinha, que
mais e mais se me desvendava, sem que eu fosse jurar que me n�o iludia, o
expediente de mentir, mentir a p�s juntos, podia surtir efeito. De resto, pois que
me tinha vergastado com o insulto de impostor, j� n�o tinha direito � minha
sinceridade. Em boa verdade, eu pecara por imprevid�ncia e esse pecado, em meu
sentir, tinha sido contra ela, mas n�o era certo que ela assim o tomasse. Em que
tinha eu trapaceado?
- N�o alcan�o o que a Dona Martinha quer dizer observei. - N�o estou em meio
de matos, estou em sua casa, bem sei. Que tem isso?
- Tem que a ningu�m passou desentendida a visita dessa cunhada de tr�s da
porta. Est� a perceber agora?
- Estou a perceber que deitaram mau sentido...!
- Pois foi, foi isso mesmo, deit�mos, deit�mos mau sentido. N�o se trata duma
p�cora que se veio meter com o senhor � cama, nada disso, trata-se dum anjinho...
um anjinho tenrinho, ainda de peito, que tinha frio, que estava gelado e que o
senhor acalentou ao calor do seu corpo. Ora aqui est� como se desvirtua uma boa
ac��o! Ah! Ah! Ih! Ih!
- N�o escarne�a. A rapariga sentou-se nesta cadeira, deu o recado, contou-me
um epis�dio, por sinal que bem lament�vel da sua vida, e retirou-se. Retirou-se
como veio...
- Retirou-se com o bot�o de rosa... o tal bot�o de rosa que os senhores tanto
apreciam! Que c�nico, Virgem Maria, que c�nico! Nunca imaginei? N�o valia mais a
pena calar-se?
Vi-lhe um sobrecenho bilioso de megera, com a boca de vi�s e os olhos maus, um
sobrecenho que pela ant�tese me lembrou o de Estef�nia, quase varonil ou pelo menos
na linha interm�dia do efebo, as vezes que lhe dava a onda col�rica, e acabei por
perder a paci�ncia:
- A Dona Martinha n�o est� boa. Que bicho lhe mordeu?
- � verdade, mordeu-me um bicho que nunca podia fazer grande comi-ch�o ao
senhor com essa sua cara estanhada: a vergonha! Vergonha n�o por mim, n�o por n�s?
Vergonha pelas duas honest�ssimas e respeit�veis senhoras em casa de quem o
alberg�mos, quando a pol�cia lhe dava montaria corno a um lobo. Pelo respeito que
elas nos merecem, e ao qual o senhor faltou infamemente, sim, tem raz�o em dizer
que �n�o estou boa�.
- Por amor de Deus, em que � que eu faltei ao respeito �s duas vener�veis
m�mias? - formulei em tom escarninho, uma vez que tinham sido elas as delatoras.
Neste instante escancarou-se a porta e, como nas m�gicas da Trindade,
perfilaram-se as duas presen�as espectrais. Altas, �sseas, chinelos de ourelo;
numa, dentes em navalha, noutra, farripas de cabelos ru�os, cabelos de peruca em
barbearia rasca; nos olhos, n�o sei que esplendor infernal. Esbarrigadas e
surpreendidas pelo terramoto na hora �ntima, pareciam, mais que caricaturas de
Goya, duas vassoiras coifadas dum farrapo branco que acabassem de tirar as cocas
das paredes.
Depois de estacarem um reflexo do instante no limiar? convergiam para mim
aspiradas pela vertigem do meu, pr�prio assombro:
- Negue, senhor Liberato, negue, se � capaz, que a criatura se meteu com o
senhor na cama?
- Pois meteu - confessei com o maior descaro.
- Mas afirmou que a criatura chegara, sentara-se nesta cadeira, dera o recado
e despedira-se corno veio? - invectivou Martinha com voz irada em que marulhava uma
amar�ssima decep��o.
- Sim, afirmei - retorqui sorrindo. - Chegou, sentou-se na Cadeira... e o
recado deu-o aqui na cama.
Matinha fez-se verde, depois enrubesceu... revirou os olhos, descobriu a
escler�tica at� o fundo da capela, e eu julguei que nos ia representar o
espect�culo sempre dram�tico do chilique. Mas n�o, correu � janela, e dobrou-se
sobre o peitoril, n�o sei se a buscar um apoio, se com o prop�sito de gritar: � da
guarda? Mas ao lado as velhas n�o eram menos teatrais: de faces hiantes, mostrando
as hist�ricas arnelas, n�o sabiam como responder � minha insol�ncia. Foi Martinha
quem primeiro volveu a si para pronunciar em tom �spero e digno, tom de ultimato,
dirigindo-se indirectamente a mim:
- O senhor Fernandes recebeu-o aqui a pedido dos amigos pol�ticos. Tinha
fugido da pris�o, e era perigo mortal dar-lhe asilo. Claro, claro, as senhoras n�o
sabiam de quem se tratava, o perigo era do Fernandes... s�, s� do Fernandes. Sim,
porque doutro modo nunca n�s lho traz�amos para casa. Mas bem, quem assim se porta
n�o pode continuar a receber a protec��o de gente que se preze... a tal gente que
se deixa morder pelo �bicho da vergonha�...
- Escusa de gastar mais palavras, minha senhora. J� compreendi.
Fiz uma pilha com os livros, arrebanhei a papelada da gaveta, a nova tradu��o
do Mon oncle Juliot. uma prova da monografia camoniana, a roupa, que pouca era,
embrulhei tudo a trouxe-mouxe, mas ordeiro, t�o r�pido e patusco de ver que elas
olhavam para mim, enviscadas. Quando pilhei o pacote feito, porta-mantas com ele. E
sem lhe dar tempo a reflectir, para me cominar com mais severidade ou emendar a
m�o, sobra�ava eu o volume:
- Minhas senhoras, humildemente lhes pe�o perd�o. N�o sou digno de continuar a
receber os seus obs�quios. Reconhe�o-o, embora n�o fosse eu que chamei c� a mulher.
A indigna��o de Vossa Excel�ncia, senhora Dona Martinha, n�o s� � justa como ainda
foi generosa. Eu apresentarei na devida oportunidade os meus respeitos e
agradecimentos ao senhor Fernandes. Passem muito bem.
Sa� imperterritamente resoluto, inflexo, embora me palpitasse que virava para
todo o sempre uma p�gina am�vel da minha vida, por agora nada mais que aguarelada a
t�nue, tenu�ssimo cor-de-rosa.
Ao descer o primeiro lan�o de escada, reparei que Martinha correra � porta e
se suspendera contra o umbral como fulminada. Que significava aquela corrida,
interceptada no momento cr�tico por algum esp�rito mau, incubo nela ou volante nos
ares?
Na rua, em plena rua cheia de sol e de olhos que me viam, matutei com os meus
bot�es: para onde hei-de ir? Para casa do Bemposta? N�o, o quarto do Bemposta era
um dos camarins da revolu��o. Para casa do Humberto? O Humberto tinha muitas casas
e n�o tinha casa nenhuma. Dormia aqui, tinha a mala al�m. Para a Rua do Crucifixo,
seria meter-me na boca do lobo. �quela data, n�o deixava de por l� rondar um novo e
correct�ssimo Belis�rio. Assenti ir bater � porta verboten do Pr�ncipe Real, e
caminhava para l� quando, ante a pr�pria Rua da Escola Polit�cnica, me veio � ideia
o Jos� Taboso, servente na dita. E virei para l� de rumo.
Fui encontrar o homem de bata branca at� aos p�s, cheirando a drogas que
tresandava. Amplamente doutora�o desde a grande cabe�a, calva e eb�rnea, ab�bora
menina sobreposta ao bal�o de arraial que era a barriga, movia-se sobre as duas
palhetas longas e chatas, quase de palm�pede, que eram os seus butes sempre muito
limpos e lustrosos.
Ouviu-me de olhinhos frios, aprendidos no museu com a impassibilidade v�trea
dos bichos embalsamados, n�o deixando escapar o mais leve fumo da vingan�a, a
regozijante vingan�a que lhe lavrava porventura no interior. E que me importavam os
seus sentimentos particulares?
- Vem em boa hora que eu andava em brasas por lhe falar. N�o lhe deram o
recado? Entre para aqui... - proferiu, levando-me para urna esp�cie de s�t�o,
entravado de frascos e bichos empalhados. - Assim que acabem as aulas da manh�,
vamos para minha casa. Ent�o n�o lhe deram nenhum recado?
- O Humberto deu-me um recado, sim senhor, deu. Compreende, eu � que n�o
estava em condi��es de lhe responder.
Deixou-me ali mais de uma hora, a encharcar-me de formol e outros �cidos
nauseantes, distra�do de come�o a contar da direita para a esquerda, depois da
esquerda para a direita, os frascos etiquetados e por etiquetar, enquanto as
moscas, estas moscas do Sul, que zombam do Inverno, iam sarabandeando e entornado
sobre a mesa preta das experi�ncias, besuntada de produtos a�ucarados, uma
zanguizarra fl�bil. Apareceu afinal o Taboso, j� no tra�o da porta a desencabar dos
bra�os curtos o guarda-p�, testa e pesco�o de muitas regueifas perlatos de
camarinhas:
- Ufa, passei a manh� num rodopio? Os senhores professores d�o comigo doido.
Jos�, a balan�a de precis�o; Jos�, o frasco de �cido muri�tico? Depois o pior de
tudo � que n�o sabem nada, estragam as combina��es, e o Taboso � que tem a culpa,
hem?
Eu cabeceava, n�o sei bem se de sono, se intoxicado. Atrav�s do pr�prio jardim
da escola, t�o cheio de sombras quentes que pareciam exalarem as plantas tropicais
seu calor nativo, e t�o deserto e calmo que espantava coexistir no meio da cidade
rumorosa, a vinte e quatro horas de dist�ncia duma sedi��o, embora abortada, me
conduziu a sua casa. Era um segundo andar, o �ltimo do pr�dio, pobre, mas
asseadinho, � M�e-d'�gua. O r�s-do-ch�o era ocupado por uma tinturaria, e na
vitrina, forrada de ladrilhos brancos, debaixo dum manequim a que se pendurava uma
saia de tafet� em xadrez com blusinha cor de caf�, um gatorro preto, de c�coras
sobre as m�os � maneira de esfinge, via-nos passar pela fresta quase cispada dos
seus olhos de oiro. Pela rua fora, das pequenas quintandas, onde vegetavam pequenas
ind�strias manuais, rebeldes ao progresso e vindas do fundo dos tempos, exalava-se
um buliciozinho brando, um bul�cio de nada, que feria muito ao de leve a quietude
do bairro.
Uma cabe�a de dona de casa, repas sobre as orelhas, chambre de mangas
arrega�adas, espreitou duma porta interior, e sumiu-se logo, quando, ao atravessar
o vest�bulo, mais passagem que outra coisa, nos dirig�amos ao quarto que me ia
albergar. Cama de ferro com colcha branca, mesinha de mogno, duas cadeiras de
palhinha, e uma janela quadrada com brise-bises de tule. Mal cheguei, fui logo
deitar para a vizinhan�a e seu termo um olhar perscrutador. Em frente escancarava-
se uma loja de seleiro, em que eu n�o havia reparado quando passei, e onde um
oficial lanzudo, com avental de ganga, desengrossava comprid�ssimas tiras de coiro;
mais abaixo, no lugar, uma mulhera�a gorda, de p� contra os umbrais, erguia a
apre�ar, esbadalhocando-a, a molhada das cenouras. Um jerico, de orelha murcha e
trabucante, subia a cal�ada, ajoujado com as cangalhas da fressura. Gente ia, gente
vinha, exibia-se, parolava, seguia seu destino, no ritmo pr�prio do formigueiro
humano distribuindo-se ao sabor de suas insignificantes necessidades.
Jos� Taboso ergueu o bra�o... A Avenida! Por cima dos telhados fronteiros, com
o verde dos limos avivado pela chuva da v�spera, estirava-se em seu belo tom
hibernal - lustrina de veludo muito terno, a fugir para esmeralda - o requife
precioso da Avenida. O sol flamejava nas arauc�rias, esflocando-as no azul muito
fino, azul inebriador de iluminura. E pelo repique cont�nuo do trote dos cavalos se
adivinhava a art�ria elegante, levando da Baixa populosa �s ruas burguesas,
riscadas a cordel por ali a cima, atrav�s do vi�oso Vale do Pereiro. Nada mais que
a julgar pelas nesgas do arruado que desembocava no jardim da Alegria, espraiava-se
em plano descendente um bairro modesto, sorte de cidade provinciana alapardada na
paz morta dos s�culos. Embora em alto, eu n�o descobria os canteiros e arrelvados
do jardim, mas diante dos meus olhos, interpondo-se diafragmaticamente contra o
morro da Gra�a, boiavam no c�u, iguais a leques abertos ao vento, as comas de suas
palmeiras esgalgadas,
Jos� Taboso chamou a mulher, a senhora Benedita, e fez as apresenta��es. Ela
era da esp�cie pequenina, de magreza e olhos azuis a acusarem o seu �nimo
fren�tico. Eu j� sabia de sobejo quanto o homem era rude, nada ameno, e julgo que
presun�oso deste g�nero de franqueza temperada de t�o reduzida civilidade:
- Sabes tu, � o menino bonito do padre-mestre. Eu n�o te dizia que ainda nos
havia de bater � porta? E nem tu avalias em que condi��es, mulher! Fugiu da
esquadra e honra lhe seja. Preso nem com um barbante podre. L� esteve escondido n�o
sei onde e tamb�m n�o sei que fervura de l� o botou para fora, nem me importa
saber. Girou, pronto, c� o temos que � o que se pretende. Um judeu errante, v�s tu?
Fica em nossa casa at� decidir do rumo que deve tomar. Trata-mo corno a filho. Para
castigo, j� lhe basta. E, j� v�s, � preciso que ningu�m sonhe quem �. Os rapazes
corre-me com eles. N�o mos deixes meter o nariz neste quarto...
A tudo ela obremperou com a sua mudez esperta, orelha fita, sem bulir nem
pestanejar, o que me deu a no��o de quanto era obediente e, porventura ainda, da
sua �ndole arrevesada. Os rapazes, pelo que acrescentou a seguir, eram uns
gerigotos que rodavam logo de manh� as suas ocupa��es, o mais velho, oper�rio da
Casa da Moeda e noivo duma oper�ria do estabelecimento; o chegante a este,
tip�grafo da Imprensa Nacional; o terceiro, encadernador; e o quarto n�o h� gera��o
sem pega e ladr�o - com pouca queda para a vida, ou muita queda, consoante os
prismas, vadio. Benedita ouvira sem dizer palavra; mas quando o seu homem abominava
do feitio do mais novo, vi o rosto contrair-se-lhe, sinal evidente de que aquele,
por ser o menos aproveit�vel, era com certeza o seu benjamim. E molestada com a
alus�o, se n�o pouco agradada da minha presen�a, hip�tese que me pareceu plaus�vel,
se bem que me desse garantias de discri��o precisamente o seu car�cter �cido e
dif�cil, se foi sem uma palavra nem um sorriso.
- A minha Benedita � este bocado de pau nogueira que ali v�. No fundo uma boa-
ser�s e fixe at� com uma navalha a picar-lhe as solas dos p�s.
Depois de breve sil�ncio, durante o qual se ouviu o peixe do almo�o a rechinar
na sert�, disse, indicando-me uma cadeira:
- Tenho-o aqui diante e ainda n�o acredito. O padre-mestre escreveu-me v�rias
cartas e at� me mandou um pr�prio. Um rela, coitado: �Procure-me o homem?
Encontrou-o? Pregunte por ele aos amigos, o Humberto Patarroxa, o Velhinha, um tal
Manfredo Bemposta... Constou-me que escrevia no Beija-Flor. Informe-se na redac��o.
� Qual, falei ao Humberto, falei ao Bemposta, falei ao Roli�a. Uns nem sequer deram
cavaco, outros desconfiavam de mim. Tomavam-me por bufo. Era tal a minha
apoquenta��o que nem o comer me servia de pr�stimo...
- Mas, afinal, que me quer o senhor padre-mestre? perguntei com certo
arreganho, molestado por aquela persegui��o implac�vel.
- Olhe que n�o � para seu mal. O padre-mestre tem sido para si mais que um
pai. Fique-o sabendo. Mas fique tamb�m sabendo que se lhe p�s aquela m�goa no peito
e ia dando com ele na sepultura. Os m�dicos chegaram a torcer o nariz.
Vendo-me de olhar p�vido, l�bios trementes, disse:
- Assim mesmo. Respeite-lhe a mem�ria, quando ele tiver passado as alpoldras,
fazendo desde j� por ser um homem. Agora ou�a. O senhor padre-mestre, que esbanjou
o patrim�nio enquanto era novo, na velhice deu em poupado, gastando como um pobre.
Aconteceu al�m disso receber a queijadazita dum sobrinho que faleceu sem herdeiros
directos. Como o seu passadio era acalcanhado, algumas migalhas lhe sobraram,
embora os seus rendimentos fossem poucos e trabalhando, pode-se dizer, de gra�a,
tanto para pobre como para rico. As suas economias em dinheiro montam a seiscentos
mil r�is, que no bem de alma disp�s a favor do meu amigo nestes termos: metade para
lhe ser entregue j�, outra metade depois da morte. Tenho em meu poder os trezentos
mil reis. Imagino eu que com tal legado teve em vista poder o senhor safar-se para
s�tio onde n�o chegue o bra�o da pol�cia. Para onde mais lhe convenha, o senhor
ver�. O dinheirinho est� a ouvir-nos no ba� e �s suas ordens, � s� abrir a boca.
A voz do homem, um tanto cava e descansada, o solene dos gestos, sobretudo o
espect�culo que um momento se desenhou � minha perspectiva de cerebral: o bom velho
deitado de casula e estola, ao estilo eclesi�stico, no caix�o hediondo, um caix�o
branco por dentro, negro por fora corri a cruz a amarelo de ovo a luzir de esconso
nas costas da tampa, tombada para tr�s, a sensa��o do v�cuo que se fazia na minha
vida, causaram-me um vagado que, se me n�o apoio � cama, daria comigo em terra. Em
seguida ao crispamento interior, veio-me uma crise de choro t�o convulso e
atribulado, que o agreste Taboso se enterneceu:
- O que Deus quer tem muita for�a. O melhor do pior, quanto a n�s, � aceitar
sem esparrame. Mas ainda n�o ouviu tudo: o padre-mestre deixa-lhe tamb�m a casinha,
a horta e os dois campinhos que possui em Arcozelo da Torre, por morte de Gertrudes
Folexa. Ela fica a usufrutu�ria.
- � justo - murmurei eu.
- �, sim senhor, mas a velhita n�o ter� muitos anos para se gozar do
beneficio. Est� acabadota, com os dias cheios. Aqui tem as cartas do padre-
mestre...
O fidel�ssimo Taboso entregava-me uma baralhada de cartas em seus
sobrescritos. Uma delas era de escritura diferente e Taboso acrescentou:
- Ah, esta � do senhor Bento Chinoca. O senhor Bento Chinoca torna tamb�m a
liberdade de o auxiliar no mau passo e pede desculpa de lhe mandar cem mil reis. De
empr�stimo, diz que � de empr�stimo, para o amigo o reembolsar quando receber a
rica queijada de seu tio Fome-Negra. Pronto...
O Taboso abria os bra�os naquele gesto amplo e congratulat�rio dos sacerdotes
ao fim da missa: _agora o menino coma, durma, e deixe soprar o furac�o. Quando lhe
parecer que serenou e pode retirar sem perigo, siga a sua rotina. Vou-me ver se a
paparoca est� adiantada que tenho de voltar � escola...
Depois do almo�o, um almocinho frugal de pobres, embora muito gostoso, tendo
reflectido sobre a viragem apertada da minha vida disse ao Taboso:
- N�o quero ir-me embora de Portugal sem tornar a ver o senhor padre-mestre,
se � certo, tanto mais, que o seu estado de sa�de � melindroso. Uma vez l�,
verei... talvez siga logo dali para Fran�a.
- Homem, se o reconhecem, encafuam-no de vez...
- Quem me reconhece? Em Lisboa, as probabilidades de que me reco-nhe�am n�o
s�o grandes. Fora de Lisboa, m�nimas. Olhe, senhor Taboso, fa�a o obs�quio de
chamar c� um dos meus amigos, Patarroxa ou Bemposta, aquele que se oferecer a talho
de m�o. Tenho umas contas a satisfazer, pequenos nadas a regular, e uma vez isso
feito, parto.
Deteve-se a olhar muito para mim, pesa que pesa, bem eu via, no entendimento
os pr�s e contras do meu prop�sito. Acrescentei, n�o se lhe suscitassem por l�
outras d�vidas quanto ao problema, visto sob a faceta da responsabilidade:
- Tanto um como outro s�o pessoas de inteira confian�a. Ponho as m�os no lume
por eles.
Forneci-lhe o endere�o e quando os seus passos de cinquent�o reboaram nos
ladrilhos do vest�bulo, come�ou com progressiva sanha, na cozinha, a tilintada do
lava-lou�a. Sentei-me no poial da janela, a testa contra a cortina fl�cida,
amodorrado a meditar. Para mim, acabava-se uma era e come�ava outra. Tornava-me
habitante dum mundo novo. Dentro de mim dava-se n�o sei que fen�meno de aera��o
espiritual que me levitava para l� dos costumados alicerces. Assim, ao mesmo tempo
que me pungia o acto de sacrif�cio e ternura de meu bom mestre, sentia grande
refrig�rio em se me oferecer rasgada e livre uma primeira avenida para o futuro,
Para onde me propunha eu endireitar carreira? Paris, certamente para Paris, fazer-
me homem ou deixar-me britar naquele almofariz de almas, jogando-me ao turbilh�o
das suas infinitas possibilidades. Estaria l� Estef�nia, talvez, mas era menos que
certo que ela fosse o �man que mais me atra�a. Salvo uma cat�strofe, dava corno
escolhido o meu porto de homiziado. Assim que beijasse a m�o que pousara t�o
benigna e tutelarmente na minha cabe�a de laparoto, ala!
Na Avenida passavam carruagens de todas de borracha, a trote picado das
horsas, tip�ias e carros tonitruantes, e, num dado momento, estrugiu grosso tropel,
o tropel mult�plice da cavalaria. E o meu esp�rito foi levado para a obra de
repress�o, empreendida pelo poder, com jugular o movimento que tinha por fim varrer
um regime podrido para a vala da hist�ria e tentar vida nova. Onde estariam os
denodados granadeiros que se dispunham a enfrentar comigo, � sombra do velho
castelo afonsino, o batalh�o da Guarda?
Cismando nas vicissitudes ludibriantes das coisas, com olho dormente via
revoar diante de mim casais de pombas, estas pombas prolet�rias da Biblioteca, do
Arco da Rua Augusta, dos Paulistas, do Carmo, de fraldilha verde-fusca, se bem que
soutach�e das cores do arco-�ris. Revoavam e libravam-se mansa-mente no ar
primaveril, e ainda seria mais c�modo reconstituir no c�u o seu voo vers�til do que
recriovelar na minha consci�ncia o fio emaranhado do devaneio. Dilatando a vista,
mais ao largo, as escarpas da Gra�a com as suas manchas calvas, os seus quintais,
onde anemizavam nespereiras, as suas casas de empenas suspensas, dir-se-ia sobre os
alcantis, afiguravam-se dignas de ser habitadas por gente pr�spera, gozando a vida,
e amando-se pelos retiros como nas quermesses flamengas. Os rapazinhos, l� em
baixo, que sa�am da escola com a bolsa a tiracolo ou a dar a dar, um mo�o de
carvoeiro ajoulado de acendalhas, os garotos berrantes: �Pa�s! C� est� o Pa�s!�, os
leiteiros, entortados sobre a ilharga, que sopesavam as latas da mix�rdia, a
hortaliceira obesa, o correeiro, os pequenos mesteirais de cara suja, pesco�o
taurino e olhos ladros, moviam tudo o que h� em mim de humano em condolente
simpatia. E assim fiquei horas meio t�rpido, meio narcotizado, penetrando-me do
mundo e do frio que descia muito capcioso com a tarde �lgida de Janeiro.
Quase ao acender das luzes, chegou Bemposta. A ofegar, contou do seu
sobressalto quando em casa do Zeferino Fernandes lhe disseram que eu tinha abalado
sem deixar endere�o. E, exultante ao ver-me em lugar seguro, exclamava:
- Ainda bem, ainda bem! Mas que houve? Que houve? N�o, n�o digas nada. A
explica��o, vou jur�-lo, est� na glosa daquele bispo de �vora: �Onde est�o elas?�
Elas, as saias. Cala-te, cala-te, n�o quero saber.
Depois de me tapar a boca, espadelando o ar com a m�o aberta, espapa�ou-se com
o corpanzil em peso morto na cadeira, que rangeu por todas as juntas:
- � diabo! Se o Taboso ouve, corre-me da casa para fora. Ainda n�o entrou? Ali
onde o v�em, adiposo e patudo, � um espertalh�o de marca. L� andou a estudar o modo
mais f�cil de me ca�ar e onde imaginas tu que se postou? Na esquina do Rossio
defronte da Maison Blanche. Quem vem da Baixa, quem vai, passa por ali
necessariamente. E, de facto, eu a subir a Rua do Ouro, e uma voz: �Psiu!, psiu! �
amigo, d�-me uma palavrinha!� Um grande fin�rio este teu patr�cio! Havemos de faz�-
lo, qu�?... Estuda a pasta que se lhe h�-de dar quando for proclamada a Rep�blica.
Eu andava sobre brasas. Primeiro, por causa da tua partida t�o romanesca da casa do
Fernandes; segundo, porque tinha urg�ncia de te falar.
- Tamb�m eu - disse, e dei-lhe a saber quanto o Jos� Taboso me comu-nicara sem
omitir os meus projectos de futuro. Ele esfregou as m�os de contente e incitou-me a
dar-lhe realidade:
- Pois claro, uma bela manh�, cedinho, quando a bufaria esteja ainda em vale
de len��is, largas daqui e vais tomar o comboio ao Cac�m. Homem, vai. j� deste a
tua quota para a revolu��o. Sa�res � rua em pleno d ia, expondo-te, era correres o
risco de seres abispado por um dos teus clientes da Parreirinha. Vai. Vai para
Paris, aqui j� nos n�o podes ser �til. Pode ser que v� ter contigo... se...
Suspendeu-se o tempo bastante para tomar f�lego e circunvagar pelo quarto
olhos desconfiados, que foram da porta para o tabique, do tabique para o tecto, do
tecto para a moradia em face, a cuja trapeira fosforejava nas meias-tintas do
anoitecer, como um pirilampo, uma blusa vermelha por baixo duma carinha chupada e
dum rolo de cabelos pretos de rapariga:
- Ningu�m nos ouve? Acenei que n�o era prov�vel, e ele ent�o revelou-me a
conjura toda. No dia seguinte, sen�o dias depois, o Pedro de Malas-Artes pateava.
Tinham-lhe garantido que era a maneira de arrancar a tropa para o movimento,
pronto. Era terr�vel; o absoluto era sempre terr�vel, de acordo. Mas n�o esquecesse
eu que a palavra de senha dada na v�spera � Guarda, � Pol�cia e at� � tropa de
linha fora: � Varrer, varrer a rua a ferro e fogo.,, Quando o poder salta as
barreiras, como poderiam responder os inconformistas? As pris�es estavam � cunha;
os jornais suspensos; os regimentos de preven��o, Asfixiava-se. Era o momento de
provar que ainda havia homens no sobado bragantino.
- Quem vai?
- Vai o Roli�a...
- O Roli�a...?
- Compreendo o teu engulho. O Roli�a � pai de filhos e filhos menores. Mas o
Roli�a n�o vira a cara. E ent�o n�s havemos de ir com t�o pouca sorte que deixemos
l� a pele? Vai o Roli�a, vai aquele rapaz do meu grupo que est� sempre a sorrir...
o loiro, e � levado da breca. V�o dois que tu n�o conheces, nem eu conhecia, e
fazem parte duma �cho�a�, dos Olivais. Confessam-se v�timas duma injusti�a do
Governo, e querem vingar-se. N�o sei. Parecem-me homens resolutos e a quest�o � que
d�em ao gatilho. O Patarroxa teima em acompanhar-nos, mas eu n�o aceito. Para
aquilo querem-se bons jarretes, tanto para dar o salto como para largar, e ele de
pernas � um ingerido. Depois, habituei-me a ver nele uma delicadeza de artista que
me parece digna de tanta considera��o como a fragilidade feminina. N�o,
decididamente n�o o levo. V�o os outros!
- Essas colabora��es da �ltima hora em regra d�o em vaza-barris...
- Amigo, foi o que se p�de arranjar. Vamos esper�-lo l� para as Avenidas
Novas; se o n�o pilhamos ali, pilhamo-lo pela certa no Terreiro do Pa�o quando
desembarque de Vila Vi�osa a fam�lia real. E ent�o atiramos ao monte. Faltam-nos os
bilhetes de acesso ao cais...
- N�o, n�o fa�am isso. Neste pa�s da l�grima ao canto do olho, fic�vamos
afogados num mar de prantos e comisera��es. Era um erro!
Bemposta baixou os olhos, e no seu sil�ncio julguei eu ver uma aceita��o das
minhas reservas. Depois, cofiando o bigode farto, muito preto com leves fa�scas de
ruivo, que, de par com o cabelo erguido da mesma cor, contribu�a para ampliar o
negror profundo dos olhos francos e leais, revelou-me, com certo engulho, que o
Roli�a estava em fazer testamento. Ele n�o, ele obstinava-se em supor que tinha
ainda muitos anos a viver. No entanto... no entanto fizesse-lhe eu o favor de
registar que semelhante passo o dava a rogo dos membros do Comit� Revolucion�rio
ainda em liberdade. Tinham-lhe prometido desencadear o movimento ap�s o feito. Com
isso contava. Ficava-lhe uma irm�zita na terra desvalida e pouco menos que �rf�. Se
pud�ssemos alguma vez lan�ar sobre ela um olhar protector...
N�o foi mais longe. Abra�ando-se a mim com ternura fraterna, n�o sei se para
esconder a emo��o, se na mira de que nos apart�vamos por muito tempo, se despediu
com palavras pressurosas, se bem que desopressas:
- Adeus! Tenho que me encontrar com o Humberto por causa dos bilhetes de
acesso � esta��o. Pode falhar a espera l� em cima... Adeus!
Da janelinha velada pela cortininha bamba, vi-o atravessar a rua mal
esclarecida, embrenhar-se nas sombras distantes, em direc��o � Rua da Gl�ria. E n�o
me palpitou que fosse a �ltima vez que o via, mas sim que nesta terra dessorada,
escumada pela aventura secular, o sezonismo das regi�es in�spitas, a fome de casa
paup�rrima, entregue ao padroado de Nossa Senhora da Concei��o, ainda havia febra
de gente.
XIII
XIV
......................................................................
Pouco depois da ceia, ainda se ouviam pelo povo rumores da lidairada, tropeou
� porta a �gua possante de Chinoca. Eu estava pronto. Beijei a m�o de meu bom
mestre e ele apertou-me contra o peito t�o cerrada e demoradamente que bem sentia
trazer aquele abra�o um adeus at� ao fim do mundo.
A boa Gertrudes enleou-se tamb�m a mim gemendo e chorando, E, chorando
l�grimas surdas, pus p� no estribo e piquei.
Um recrudescimento de cautela de parte de meu mestre impedira-me � noitinha de
chegar a S. Francisco. Agora que passava � beira, n�o resisti a bater � porta dos
Violas, dando como pretexto ao Frad�o trazer um recado de Am�lia. Saiu a choldra
toda da lura e a cordialidade correu a rego cheio. Celid�nia estacara no ser que eu
lhe conhecia. Era inalteravelmente a mesma em corpo, fragr�ncia, esbelteza e mais
que certo no cora��o. O mundo parara para a sua pessoa, como que insculpida numa
medalha; deixara passar tudo adiante sem se afligir; postara-se de guarda,
confiadamente, na rampa do caminho e l� tornava a ficar. A s�s com ela, tendo
compreendido, disse-lhe comovido mas faceiro, ao inv�s da evid�ncia:
- Esqueceste-te de mim?
- Nem um instantinho.
- E daqui em diante?
- Daqui em diante tamb�m n�o.
- Juras...?
- N�o � preciso jurar.
- Pois eu juro pela luz dos meus olhos que nunca te esque�o.
Mal a apertei ao peito, mas logo o fluido de seu corpo se infundiu no meu, n�o
apenas o que dimana da carne, mas o espiritual, carregado de todas as bondades que
h� nas almas, e de quantas belezas encerra o mundo na Primavera. O Frad�o, alarmado
pelo chinfrim desencadeado � porta dos Violas, op�s-se terminantemente a que
chegasse mais longe receber a b�n��o de meus pais. E rompemos a chouto rasgado, ele
� frente com a malinha suspensa do l�d�o, que era estafeta vigoroso e decidido,
pela estrada, que ia dar ao ex�lio, cheia de rectas amenas e de curvas em que fora
para mim uma del�cia vagabundear. Leva que leva, batendo aqui � porta duma taverna,
de que luzia uma grelha em jogatina de tresnoitados, a beber um dedal de
aguardente, estacando al�m a acender o cigarrinho na cava das m�os contra um
abrigo, deit�mos ao romper da manh� a Malpartida. O Frad�o foi acordar o professor,
seu parceiro de ca�adas, no prop�sito de lhe pedir gula para Aldeia del Obispo, j�
em terras de Espanha, e eu fiquei a bater o calcanhar de c� para l�, intanguido com
o grande tar� que fazia e desenovelava em bulc�es de n�voa o vapor que lufava das
narinas da horsa, muito afogueada com a marcha, e que, � r�dea, atr�s de mim,
copiava todos os meus movimentos com docilidade.
Debaixo do mesmo c�u l�vido e �lgido, apegadas a dobras iguais do terreno, as
duas aldeias - castelhana e portuguesa - olham-se atrav�s da linha divis�ria de
fronteira.
- A nascente � tudo espanhol; a poente tudo portugu�s e com a m�o em cutelo o
nosso arrais rachava o mundo em dois � laia do Tratado de Tordesilhas.
Abrira a madrugada com brancor de a�ucena e Malpartida mostrava o seu casario
negro e primitivo, com lama�al nas ruas, o �ncola s�rdido, e uma barb�rie
estrutural, a barb�rie em s�rie, � verdade que � sua beira in�meras cegonhas se
perfilavam est�ticas nos ninhos, derramando da coruta dos negrilhos n�o sei que
gra�a pante�sta e uma como que envolvente e estranha benignidade. Mas tais dons
vinham do c�u, n�o podiam ser averbados ao haver da terra.
A perder de vista a seara espraiava-se, quando n�o de pousio, de verde, um
verde prometedor de espigas gradas, embora aqui e al�m alampanhado pelo bafo bravio
da altitude, Mas que voragem absorvia o sangue do camp�nio? Que fatalidade
vinculava ao tornozelo do raiano, como ali�s ao de todo o alde�o portugu�s, a
grilheta de p�ria?
Por um caminho de p� posto, entre centeal e matas de pinheiros novos, fomos
bater para l� dumas alpodras � terra espanhola.
O h�mus era o mesmo, engendrado da eros�o da pedra corri a lia que lhe
carreavam os Invernos e o suor secular do homem. A natureza era a mesma, com
id�nticos oiteiros ossudos, imbu�dos de fil�ucia ib�rica, id�ntica renda de paredes
de campo para campo, aus�ncia de �rvores, e o desolado e agreste sil�ncio das
paragens alpestres. Os pr�prios horizontes afectavam comum ar asc�tico e boiava na
atmosfera o aroma de rosmaninho e vela-luz que ignora a separa��o geogr�fica.
Ah, mas que chica era aquela que passava rosada e sadia, o cavalo na sua mula,
tangendo um bando de poldros para o pasto? Que tio era aquele, teatral sim, mas t�o
seguro com o seu sapato de fivela e polaina, cinta larga de coiro, chap�u de aba
ancha, jaleco de alamares, verdadeiramente rei? E, al�m, o zagal que batia s�lidos
sapatorros atr�s da manada? Era Espanha, gente de Espanha; outra lou�a.
L� est� Aldeia del Obispo ao fundo da encosta, saraivada de branco, com o
macadame a correr pela campina, e um aspecto s�rio de aglomera��o ordenada e
progressiva; l� est�o sulcando o c�u claro, como as linhas do papel de m�sica,
suspensos de paralelogramos certos e espa�ados - os paralelogramos da civiliza��o -
os fios da electricidade, do telefone, do tel�grafo.
Desfila a prociss�o dominical, e distingo na turbamulta viva, euf�rica, ar de
rica ou remediada, os humildes e melanc�licos vultos da minha terra de xailinho
escuto e camisola de bata fechada at� o pome-de-ad�o. O odioso contraste transcorre
daqui, destes povil�us sem hist�ria, pelos badist�s tumultu�rios da �frica, os cais
de embarque das Am�ricas, as cidades tentaculares onde mourejam os deserdados.
Porqu�? Porque � que esta m� sina persegue ao �triste do lus�ada, coitado?� N�o
sei. Mas uma das ila��es a tirar ser� esta. desde tempos imemoriais que andam
faiscadas nesta terra as barras de comando. A trag�dia de Fevereiro �ltimo tem de
ser vista � luz pavorosa deste prisma.
E a que luz as outras realidades? Sim, porque a gente da minha terra, eu, meus
pais, os cavadores, os meus amigos, o meu esp�rito, o nosso esp�rito correm mundo
sob um cond�o de desdita e menoscabo!