O Camponês e Seu Corpo
O Camponês e Seu Corpo
O Camponês e Seu Corpo
2006
Em suas leis, Plato considera que no h no mundo calamidade pior para a cidade que dar liberdade juventude para modificar a forma dos trajes, dos gestos, das danas, dos exerccios e das canes. Montaigne, Ensaios, I, xliii.
Se os dados da estatstica e da observao autorizam estabelecer uma estreita correlao entre a tendncia para permanecer solteiro e a residncia nos hameaux2; se a perspectiva histrica
Bruna Gisi. No original: Le paysan et son corps, presente em Bourdieu, 2002, p. 110-129. A traduo para o ingls, de Loc Wacquant e Richard Nice, foi utilizada para cotejo com o texto original e como fonte das notas da presente verso (cf. BOURDIEU, 2004, p. 579-598). As notas de rodap sem indicao so de autoria do prprio Pierre Bourdieu. Outra verso do artigo foi anteriormente publicada sob o ttulo Clibat et condition paysanne [Celibato e condio camponesa] (BOURDIEU, 1962a, p. 32136). Reviso final: Adriano Codato.
2 Pequenos agrupamentos de casas de fazenda na zona
rural francesa, em torno de um bourg, isto , de uma cidadezinha ou vilarejo, que o autor menciona logo a seguir (nota de L. Wacquant).
Recebido em 25 de outubro de 2005 Aprovado em 19 de novembro de 2005
permite considerar, com base na oposio entre o bourg e os hameaux, a reestruturao do sistema de trocas matrimoniais como uma manifestao da transformao global da sociedade; ento resta determinar se um aspecto dessa oposio que estaria em uma correlao mais estreita com a tendncia para permanecer solteiro, e por quais mediaes o fato de residir no bourg ou nos hameaux, bem como as caractersticas econmicas, sociais e psicolgicas vinculadas a esse fato, pode atuar no mecanismo das trocas matrimoniais; resta determinar como a influncia da residncia pode no se exercer da mesma forma sobre os homens e as mulheres, e se existem diferenas significativas entre as pessoas do hameau que se casam e as condenadas a permanecer solteiras; enfim, resta determinar se o fato de ter nascido no bourg ou no hameau condio necessitante ou condio permissiva do celibato.
Rev. Sociol. Polt., Curitiba, 26, p. 83-92, jun. 2006
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namento das relaes de gnero, por volta do mesmo perodo, na regio de Barn, cf. BOURDIEU, 1962b, p. 307331 (nota de L. Wacquant).
4 A cidadezinha a que Bourdieu refere-se pelo nome de
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camponeizado. Optou-se pelo adjetivo rstico devido a seu sentido etimolgico (rural, campestre) e a seu sentido figurado (rude, grosseiro, inculto, incivil) (N. T.).
7 O esporte oferece outra ocasio para se verificarem essas
anlises. Na equipe de rgbi, esporte urbano, encontram-se quase exclusivamente os citadinos do bourg. Tambm
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Alm disso, a aparncia (la tenue) imediatamente percebida, em particular pelas jovens, como smbolo da condio econmica e social. De fato, a hexis corporal , antes de tudo, signum social10. Talvez isso seja verdadeiro particularmente no que se refere ao campons. Aquilo que se denomina jeito campons , sem dvida, o resduo irredutvel de que mesmo aqueles camponeses mais abertos ao mundo moderno, isto , mais dinmicos e inovadores em sua atividade profissional, no chegam a se livrar11. Ora, nas relaes entre os sexos, o primeiro objeto da percepo a hexis corporal como um todo, em si mesma e, ao mesmo tempo, a ttulo de signum social. Por menos desajeitado, mal barbeado, mal vestido que seja, o campons imediatamente percebido como hucou (coruja), pouco socivel e grosseiro, sombrio (escu), desajeitado (desestruc), carrancudo (arrebouhiec), s vezes grosso (a cops grouss), pouco amvel com as mulheres (chic amistous dap las hennes) (P. L.M.). Dele se diz o seguinte: ney pas de hre, ou seja, ao p da letra, ele no de feira (para ir ao festival, vestia-se o que se tinha de melhor), ele no bem apresentvel. Assim, particularmente atentas e sensveis, devido a toda sua formao cultural, aos gestos e atitudes, aos trajes e ao conjunto do comportamento (tenue), prontas para deduzir a personalidade profunda a partir da aparncia (apparence) exterior, as moas, mais abertas aos ideais da cidade, julgam os homens segundo critrios que lhes so alheios; avaliados segundo esse padro, eles so desvalorizados.
66% dos solteiros no sabem danar (contra 20 % dos casados); apesar disso, um tero dos solteiros vai aos bailes.
nesse caso, como no baile, os estudantes e os carrrens [moradores da cidadezinha] so preparados, por todo seu aprendizado cultural, a participar de um jogo que exige no apenas fora, mas tambm destreza, astcia, elegncia. Ao assistirem s partidas desde a primeira infncia, eles tm noo do jogo antes mesmo de jog-lo. Os jogos que antigamente se realizavam nas festas (lou die de Nouste-Dame, em 15 de agosto, festa do padroeiro da vila), lous sauts (os saltos), lou jete-barres (o lanamento de barras), a corrida, o boliche, exigiam, antes de mais nada, qualidades atlticas, dando aos camponeses oportunidade para mostrar seu vigor.
8 Curt Sachs (Weltgeschichte des Tanzes, Berlin, 1933,
das tcnicas corporais, pareceu prefervel registrar a imagem que os moradores da cidade fazem do campons e que, para o bem ou para o mal, ele tende a introjetar.
11 Toda uma categoria de solteiros corresponde a essa
citado por Mauss (1973, p. 380)) ope as sociedades feminilizadas, em que se costuma danar requebrando, no mesmo local, s sociedades cuja precedncia masculina, em que se teria prazer no deslocamento. Pode-se arriscar a sugerir que tal averso dana, apresentada por muitos jovens camponeses, poderia explicar-se por sua resistncia a uma espcie de afeminao de toda uma imagem profundamente arraigada de si e de seu corpo.
9 P. C.: 32 anos, natural de Lesquire; residente no bourg; casado; educao: nvel secundrio; pequeno empresrio; entrevistas em francs e, em alguns momentos, em bearns.
descrio. Ba. um rapaz inteligente, com um fsico atltico, soube modernizar sua fazenda, que tem uma bela propriedade. Mas jamais soube danar de forma conveniente (cf. acima, no corpo do texto, outra declarao de P. C. sobre Ba.). Ele sempre se ps a observar os outros, como em uma noite dessas, at duas da manh. o caso tpico do rapaz a quem faltaram oportunidades para se aproximar das moas. Nada o impediria de encontrar uma esposa: nem sua inteligncia, nem sua condio financeira, nem seu fsico (P. C.). Co. danava de forma conveniente, mas sem que jamais tivesse podido e isso apenas por sua classe fazer um convite a outras moas, seno s camponesas, para uma dana (P. C.). Cf. a seguir, no corpo do texto, as declaraes de P. C. sobre o caso de Pi.
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natural que o encontro do campons com uma jovem leve esse mal-estar ao paroxismo. Primeiro porque, para o campons, a ocasio em que se experimenta, mais intensamente que nunca, o embarao em relao a seu prprio corpo. Alm disso, em virtude da separao entre os sexos, uma jovem toda cercada de mistrio.
Pi. participou das excurses organizadas pelo vigrio da parquia. Quase no iam praia por causa dos mais, provocantes. Eram excurses mistas, com as moas do mesmo movimento, a JAC13. Esses passeios, muito raros, um ou dois por ano, so feitos antes do servio militar. Nessas excurses, as moas s ficavam entre si, fechadas em sua roda. Apesar de cantarem juntos algumas vezes e participarem de algumas brincadeiras tmidas, tem-se a impresso de que nada pode acontecer entre os participantes. No campo no existe amizade entre as moas e os rapazes. S se pode ser amigo de uma moa quando j se teve uma amizade e se sabe o que seja isso. Para a maioria dos rapazes, uma moa uma moa, com tudo aquilo que as moas tm de misterioso, com essa enorme separao entre os sexos e um fosso difcil de transpor. Uma das melhores maneiras de se aproximar das mulheres, a nica maneira no campo, o baile. Depois de algumas tmidas tentativas, de um aprendizado que no o levou a danar nada alm de java, Pi. no insistiu mais. Eles vo atrs de uma vizinha, algum que no se atreve a recusar ao menos uma dana. Danar uma ou duas vezes por baile, ou seja, de quinze em quinze dias ou de ms em ms pouco, muito pouco. Com certeza, pouco demais para que se possa ir a bailes mais distantes com alguma chance de sucesso. assim que se vira um desses que fica olhando os outros danar. Fica-se olhando os casais at duas da manh; depois se volta para casa pensando que esses casais se divertem bastante; assim que se aprofunda o fosso. Quando se tem como projeto se casar, a situao fica grave. Como se aproximar de uma moa que o agrada? Como achar a oportunidade, sobretudo quando no se um atirado? S no baile. Fora do baile, sem chance... Como puxar uma conversa e lev-la para um assunto embaraoso? Mil vezes melhor danando um tango... A falta de relaes e de
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As normas culturais que regem a expresso dos sentimentos contribuem para dificultar o dilogo. Por exemplo, o afeto entre pais e crianas exprime-se muito mais por atitudes e gestos concretos que por palavras. Antigamente, quando ainda se colhia com foice, os ceifeiros avanavam em fileiras. Meu pai, que trabalhava ao meu lado, quando via que eu estava exausto, colhia na minha frente, sem dizer nada, para me aliviar14. No faz muito tempo, pai e filho passavam por certo desconforto ao se verem juntos em um caf, sem dvida porque podia ser o caso de algum contar histrias despudoradas na presena deles ou de tocar em assuntos licenciosos, o que causava, em ambos, um desconforto insuportvel. O mesmo pudor dominava as relaes entre irmos e irms. Tudo que da ordem da intimidade, da natureza, banido das conversas. Mesmo que o campons goste de contar ou de ouvir as anedotas mais picantes, ele extremamente discreto em relao a sua prpria vida sexual e, sobretudo, afetiva. De maneira geral, os sentimentos no so temas sobre os quais o campons fica vontade para falar. A inabilidade verbal, que vem se juntar inabilidade corporal, vivenciada no desconforto tanto do rapaz como da moa, sobretudo quando ela aprendeu, nas revistas femininas e nos romances de folhetim, a linguagem estereotipada do sentimentalismo da cidade.
Para danar no basta saber os passos, colocar um p na frente do outro. At isso, para alguns, no to fcil. Tambm preciso saber conversar um pouco durante a dana e depois. Enquanto se dana, preciso ser capaz de falar de outra coisa alm dos trabalhos agrcolas ou do tempo. E no
Se as mulheres so muito mais aptas e mais dispostas que os homens para adotar os modelos culturais urbanos, tanto corporais como indumentrios, isso se deve a diversas razes convergentes. Em primeiro lugar, elas so bem mais motivadas para adotar os modelos culturais urbanos que os homens, uma vez que a cidade representa para elas a esperana da emancipao. Em conseqncia, elas do um exemplo privilegiado daquela imitao prestigiosa de que Mauss falava (MAUSS, 1973, p. 369). O atrativo e a influncia exercidos pelas novas tcnicas e pelos novos produtos em prol do conforto, pelos ideais de civilidade e pelas diverses oferecidas pela cidade, devem-se ao fato, em grande parte, de que neles se reconhece a marca da civilizao urbana, identificada, correta ou incorretamente, civilizao. A moda vem de Paris, da cidade, o modelo se impe de cima. As mulheres aspiram fortemente vida citadina e essa aspirao no sem razo, pois, segundo a prpria lgica das trocas matrimoniais, as mulheres circulam de baixo para cima. Portanto, do casamento, antes de mais nada, que elas esperam a realizao de suas expectativas. Ao porem todas as esperanas no casamento, elas so fortemente motivadas para se adaptar, adotando a aparncia da mulher urbana. Alm disso, as mulheres so preparadas, por toda sua formao cultural, para estar atentas aos detalhes exteriores da pessoa e, mais particularmente, de tudo que se refere apresentao (tenue), nos diferentes sentidos do termo. Elas tm, como que de maneira estatutria, o monoplio do juzo de gosto. Essa atitude encorajada e favorecida por todo o sistema cultural. No difcil ver uma menina de dez anos discutir com sua me ou suas amigas o corte de uma saia ou de uma blusa. Esse tipo de comportamento rejeitado pelos rapazes, na medida em que desencorajado mediante sano social. Em uma sociedade dominada pelos valores masculinos, tudo contribui, em contrapartida, para favorecer a postura tosca e grosseira, rude e belicosa. Um homem muito atento a seus trajes, a sua aparncia ( tenue ), seria considerado muito
14 A.B.: 60 anos, natural de Lesquire; residente no bourg; casado; educao: nvel secundrio; entrevistas em francs e, em alguns momentos, em bearns.
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mento em geral. nesse domnio que se revela melhor a cegueira cultural dos homens em relao a certos aspectos da civilizao urbana. A maioria dos solteiros veste a roupa confeccionada pelo alfaiate da cidadezinha. Alguns tentam vestir conjuntos esporte. Eles se atrapalham na combinao das cores. Na famlia, s quando a me atualizada ou, melhor ainda, quando as irms mais abertas moda se ocupam da questo, que se vem camponeses bem vestidos (P. C.) De maneira geral, o fato de ter irms s pode aumentar as chances de casamento para um rapaz. Por meio delas, pode-se conhecer outras moas; ocorre tambm de ser possvel aprender a danar com elas.
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20 Ficando em casa mais tempo que os homens, as mulheres escutavam o rdio muito mais. 21 Na traduo para o ingls, a cano regional, coletada em Lasseube em 1959, apresentada nos seguintes termos:
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de solteiro aparece cada vez mais como fatalidade, deixando de parecer imputvel aos indivduos, a seus defeitos e imperfeies.
Quando os solteiros so de uma famlia grande, as pessoas procuram desculpas; sobretudo quando a influncia familiar vem se somar influncia de uma personalidade forte. As pessoas dizem: uma pena, fulano tem uma bela propriedade, inteligente etc. Se fulano tem uma personalidade forte, ele termina se impondo, apesar das circunstncias, caso contrrio, ele se v diminudo (A. B.).
Pode-se ver, de maneira mais concreta, no relato de uma vizinha que foi fazenda de dois solteiros, um de quarenta anos, outro de trinta e sete, ajudar a pelar um porco.
Dissemos a eles: Que baguna! Essas aves (aquets piocs)! Nada de lavarem a loua! Uma sujeira! No sabamos para onde olhar. Colocamos eles para fora e falamos: Vocs no tm vergonha!? Em vez de se casarem... Ns que temos que fazer esse trabalho... Falta uma esposa para fazer isso. Eles baixaram a cabea e saram. Se h uma daune, mulheres, vizinhas ou parentes, vo l para ajud-los. Mas, quando no h esposas, elas tm que resolver tudo (M. P.-B.).
Antigamente, o solteiro no era jamais considerado verdadeiramente um adulto pela sociedade, que distinguia claramente as responsabilidades deixadas aos jovens, isto , aos no-casados, como, por exemplo, a organizao das festas, e as responsabilidades reservadas aos adultos, tais como o conselho municipal23. Hoje, a condio
Ballad of the shepherd Fair shepherdess, will you give me your love? I will be forever true to you. You quaymi mey u bet hilh de pays (I would rather take a good peasants son) Why, shepherdess, are you so cruel? Et bous mouss quet tan amourous? (And you, sir, why are you so amorous?) I cannot love all those fair ladies E you mouss quem fouti de bous (And I, sir, give not a damn for you) (nota de L. Wacquant, a partir da verso publicada em 1962).
22 Cooprative dutilisation du matriel agricole: coope-
O fato de 42% das fazendas de solteiros (dos quais 38% so camponeses pobres) estar em decadncia, em comparao com apenas 16% das fazendas cujos proprietrios so casados, mostra uma evidente correlao entre a situao da fazenda e a condio de solteiro. Contudo, a decadncia da propriedade pode ser tanto efeito como causa da condio de solteiro. Vivenciada como uma mutilao social, a condio de solteiro determina, em muitos casos, uma postura de resignao e de renncia, conseqncia da falta de futuro a longo prazo. Pode-se verificar, mais uma vez, em um testemunho:
Fui visitar Mi. na vizinhana de Houratate. Ele tem uma casa de fazenda bem conservada, cercada por pinheiros. Perdeu o pai e a me, mais ou menos, em 1954 e, hoje, deve estar com uns 50
noturnas. J se viram muitos jovens de m fama mudar subitamente de comportamento e, como se diz, entrar na linha. Ca. freqentava todos os bailes. Ele se casou com uma moa mais jovem, que nunca tinha sado. Tiveram trs filhos em trs anos. Ela nunca sai, apesar de morrer de vontade. Ele nunca pensou em lev-la ao baile ou ao cinema. Tudo isso acabou. Eles nunca vestem uma roupa melhor (P. C.).
rativa local, estabelecida em 1956, para aquisio de maquinrio agrcola (nota de L. Wacquant).
23 O casamento marca uma ruptura no curso da vida. Do
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nada por uma necessidade que pesa sobre toda a classe camponesa. O celibato dos homens vivenciado por todos como indcio da crise mortal de uma sociedade incapaz de assegurar aos primognitos, depositrios do patrimnio, mesmo aos mais inovadores e mais audaciosos, a possibilidade de perpetuar a linhagem. Em resumo, uma sociedade incapaz de proteger os prprios fundamentos de sua ordem e, ao mesmo tempo, de adaptar-se de maneira inovadora. CONCLUSO As moas no querem mais vir para o campo.... Os juzos da sociologia espontnea so essencialmente parciais e unilaterais. Sem dvida, a constituio do objeto de pesquisa, como tal, supe tambm a escolha de um aspecto. Mas uma vez que o fato social se d, seja ele qual for, como pluralidade infinita de aspectos, uma vez que ele aparece como teia de relaes a ser desembaraada uma por uma, essa escolha no pode no se considerar como tal, no pode tomar-se como provisria e ser relegada pela anlise de outros aspectos. A tarefa primeira da sociologia , talvez, a de reconstituir a totalidade a partir da qual se pode descobrir a unidade entre a conscincia subjetiva que o indivduo tem do sistema social e a estrutura objetiva desse sistema. O socilogo se esfora, de um lado, para recobrar e compreender a conscincia espontnea do fato social, conscincia que, por essncia, no reflete sobre si; e, de outro lado, ele se esfora para apreender o fato em sua prpria natureza, graas ao privilgio que lhe confere sua situao de observador que abdica de agir sobre o social para pens-lo. A partir da, ele se obriga a reconciliar a verdade do dado objetivo, que sua anlise lhe permite descobrir, e a certeza subjetiva daqueles que vivem esse dado. Quando o socilogo descreve, por exemplo, as contradies internas do sistema de trocas matrimoniais, mesmo quando essas contradies no afloram, como tais, conscincia daqueles que so vtimas delas, ele nada mais faz que tematizar a experincia vivida desses homens que concretamente experimentam essas contradies sob a forma da impossibilidade de se casar. Se o socilogo se probe de concordar com a conscincia que os sujeitos constroem sobre suas situaes e de tomar ao p da letra a explicao que eles do a elas, ele considera essa conscincia com muita seriedade para tentar descobrir seu fundamento real, s se dando por satisfeito quando consegue abarcar na unidade de uma compreenso a verda-
O drama do solteiro , muitas vezes, redobrado pela presso da famlia, desesperada por v-lo permanecer nessa situao. Dou bronca neles diz a me de dois filhos, j mais velhos, que ainda no se casaram falo assim: Vocs tm medo das mulheres! Vocs passam o tempo todo bebendo! O que vocs vo fazer quando eu no estiver mais aqui? No posso, eu, cuidar disso para vocs!25. Outra senhora, dirigindo-se a um amigo de seu filho: Voc precisa lhe dizer para encontrar uma mulher. Ele devia ter se casado ao mesmo tempo em que voc! terrvel, pode ter certeza. Estamos sozinhos, ns dois, como dois perdidos (relatado por P. C.). Sem dvida, todo solteiro, por uma questo de honra e de orgulho, procura dissimular o desespero da situao, buscando talvez em uma longa tradio de celibato as fontes da resignao que lhes indispensvel para suportarem uma existncia sem presente nem futuro. De todo modo, o celibato a ocasio privilegiada para se verificar a misria da condio camponesa. Se o solteiro, para expressar seu infortnio, diz que a terra est arruinada, porque no pode se furtar a compreender sua condio de celibatrio como determi-
mas confirmam as concluses dos prprios solteiros. Eles no tem gosto pelo trabalho. H uns cinqenta nessa situao, eles no se casam. So uns sacos de batata. Se voc quiser beber com eles na carrre... A terra est arruinada (B. P.).
25 Viva A.: 84 anos, natural de Lesquire; moradora de um
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Pierre Bourdieu ocupou a cadeira de Sociologia no Collge de France, onde dirigiu tambm o Centro de Sociologia Europia e editou a revista Actes de la recherche en sciences sociales at sua morte em 2002. Ele autor de vrios livros clssicos em Sociologia e Antropologia, incluindo La Reproduction: lments dune thorie du systme denseignement (com Jean-Claude Passeron; 1970), Esquisse dune theorie de la pratique (1972), La Distinction: critique sociale du jugement (1979), Homo Academicus (1984) e Les rgles de lart: gense et structure du champ littraire (1992). Dentre seus estudos etnogrficos esto: Le dracinement: la crise de lagriculture traditionnelle en Algrie (com Adbelmalek Sayad, 1964), Algrie 60: structures conomiques et structures temporelles (1977), La misre du monde (1993) e Le Bal des clibataires: crise de la societ em Barn (2002).
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BOURDIEU , P. 1962a. Clibat et condition paysanne. tudes rurales, v. 5, n. 6, p. 32-136, avr. _____. 1962b. Les relations entre les sexes dans la socit paysanne. Les temps modernes, n. 195, p. 307-331, aot. _____. 2002. Le bal des clibataires. Crise de la socit paysanne en Barn. Paris : Seuil. _____. 2004. The peasant and his body. Ethnography, v. 5, n. 4, p. 579-598, Dec. HALBWACHS , M. 1955. Esquisse dune psychologie des classes sociales. Paris : M. Rivire. MAUSS, M. 1973. Sociologie et anthropologie. Paris : PUF. PELOSSE, J.-L. 1956. Contribution ltude des usages traditionnels. Revue internationale dethnopsychologie normale et pathologique, Tanger, v. I, n. 2, 2me trimestre. PULGRAM , E. 1959. Introduction to the Spectography of speech. New York : Mouton. TROUBETZKOY, N. S. 1964. Principes de phonologie. Paris : Klincksieck.
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 26: 133-135 JUN. 2006 THE PEASANT AND HIS BODY Pierre Bourdieu (Collge de France) Based on a study of his childhood village of Barn in southwestern France in the 1960s combining social history, statistics, and ethnography, the author shows how economic and social standing influence the rising rates of bachelorhood in a peasant society based on primogeniture through the mediation of the embodied consciousness that men acquire of this standing. The scene of a local ball on the margins of which bachelors gather serves to highlight and dissect the cultural clash between country and city and the resulting devaluation of the young men from the hamlet as urban categories of judgment penetrate the rural world. Because their upbringing and social position lead them to be sensitive to tenue (appearance, clothing, bearing, conduct) as well as open to the ideals of the town, young women assimilate the cultural patterns issued from the city more quickly than the men, which condemns the latter to be gauged against yardsticks that make them worthless in the eyes of potential marriage partners. As the peasant internalizes in turn the devalued image that others form of him through the prism of urban categories, he comes to perceive his own body as an em-peasanted body, burdened with the traces of the activities and attitudes associated with agricultural life. The wretched consciousness that he gains of his body leads him to break solidarity with it and to adopt an introverted attitude that amplifies the shyness and gaucheness produced by social elations marked by the extreme segregation of the sexes and the repression of the sharing of emotions. KEYWORDS: bachelorhood; marriage; peasantry; habitus; village culture; gender relations; Barn; France. * * *
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 26: 139-141 JUN. 2006 LE PAYSAN ET SON CORPS Pierre Bourdieu (Collge de France) Appuy sur un travail sur la ville o il a pass son enfance (Barn, dans le sud-ouest de la France), effectu dans les annes 60 et o il runit histoire, stastistique et ethnographie, lauteur explique comment les positions conomiques et sociales influent dans la croissance du taux de clibat dans une socit paysanne construite sur la primognuture, grce la mdiation de la conscience incorpore que les hommes acquirent de leur position sociale. La scne dun bal rural o les clibataires forment bande part permet dclairer et de dpouiller le choc culturel entre la campagne et la ville et la dvalorisation des jeunes campagnards qui en dcoule lorsque les catgories urbaines de jugement pntrent dans le monde rural. Comme leur ducation et leur position sociale les rendent plus sensibles la tenue (allure, habits, attitude, comportement) et les rapprochent des valeurs urbaines, les jeunes filles retiennent les valeurs culturelles originaires de la ville plus aisment que les jeunes hommes, ce qui oblige ceux-ci se faire valuer par des mtres que les dvalorisent aux yeux dventuelles conjointes. son tour, le paysan incorpore limage sans prestige que les autres, appuys sur des catgories urbaines, ont de lui. Il commence donc percevoir son propre corps comme un corps empaysanns trs marqu dactivits et dattitudes associes la vie rurale. La mauvaise conscience quil a de son corps lamne rompre la communion entre lui et son corps et adopter une attitude introvertie qui accentue la honte et la maladresse engendres par des relations sociales imprgnes dune profonde sgrgation des sexes et du refoulement du partage des motions. MOTS-CLS : clibat; mariage; paysannerie; habitus; culture locale; relations de genre; Barn. * * *
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