Jaze para Tópicos Especias
Jaze para Tópicos Especias
Resumo
Vou contar uma história. A história das histórias que minha mãe me contava na
minha infância. Elas me encantavam.
Permeadas por saberes ancestrais, lembranças, cheiros, cores e sons através
delas comecei a conhecer a cidade onde nasci, Salvador, estado da Bahia, e sua história
cultural, social, geográfica, musical... Sobretudo do período que compreendia as
décadas de trinta a sessenta do século passado. De todos esses elementos presentes e
fascinantes, os sons eram os que mais me chamaram a atenção; sobretudo os produzidos
por conjuntos musicais que popularmente eram chamados de jaze naquela época.
Quando ouvia a palavra me perguntava: O deve ser isso? De onde vem esse nome? Eles
já não existiam mais quando era criança. Mas eles, os jazes, estavam bem vivos na
memória da minha mãe e de outras pessoas com as quais conversei sobre eles. No
decorrer destas conversas vislumbrei a possibilidade de, através da história desses
conjuntos, entender ambiente de um período: o trânsito social dos músicos, as relações e
construções de identidade, as relações de gênero (tanto a invisibilidade da mulher
quanto a visibilidade do homem) e a construção da história através das histórias de vida
das mulheres que ouviam e dos homens que tocavam.
O que era o jaze?
Construção de identidade
1
Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA. Salvador, 2008.
conhecidas como vienenses também. Estilos musicais estes que expressavam na época o
que Wade (2000) chama de identidade social e resitência política em outros países. O
merengue, por exemplo, é citado por Hernandéz (apud Wade, 2000) como estilo
escolhido para símbolo nacional na República Dominicana durante seu período
ditatorial. Segundo Moura (2009) durante a Revolução Cubana, vários músicos
emigraram de Cuba para os Estados Unidos. Lá, orquestras foram formadas misturando
música caribenha e o jazz em voga na nação estadunidense de então. Mistura presente
na bebida Cuba libre, um “mix” de rum, tradicional caribenho e coca-cola, criada nos
Estados Unidos. Segundo depoimentos preliminares e as memórias de minha mãe era
essa mistura que os jazes da cidade expressavam na música que tocavam, no nome que
carregavam. Com uma pitada de samba. Numa primeira análise é possível afirmar então
que a apropriação deste repertório por parte dos integrantes do jaze tem a marca da
identidade de uma época.
Foi com essa afirmação tácita que minha mãe, durante uma das primeiras
entrevistas, recebeu minha pergunta sobre a participação de mulher no jaze. Ainda
complementou dizendo que pai nenhum gostaria de ver a filha tocando junto com vários
homens. “Naquela época, as mulheres não tocavam em público; as mulheres só tocavam
em família!”, complementou. Já havia notado a ausência de mulheres no corpo de
instrumentistas do jaze em fotos da época às quais tive acesso. Schiebinger (2001)2 nos
apresenta a teoria da complementaridade sexual que colocava a mulher como oposto
complementar do homem. Então, ao homem era concedidos o público, racional; à
mulher restava o privado e o doméstico. A teoria seria aplicada na tentativa de eliminar
a competição entre homens e mulheres na esfera pública. Assim, mesmo sendo
considerada dotada de talento, era vetada sua participação em apresentações públicas
fora de suas casas, fora da vigilância paterna sobretudo. E mesmo sua participação nos
bailes de clube onde os jazes se apresentavam não era bem vista, ainda que
acompanhada por seus pais ou maridos.
Mas às mulheres era permitido escutar. Entre suas lembranças, minha mãe
guarda os muros do Clube Palmeiras da Barra de onde ela e minhas tias ouviam o jaze
2
Schiebinger, Londa. O feminismo mudou a ciência? EDUSC, 2001.
tocar, sem vê-los. Também os ouvia através do aparelho de rádio que ficava da sala da
casa de meus avós maternos. Identifico aí a criação de uma relação acusmítica3a entre
elas e o jaze. Na impossibilidade de participar como instrumentista do conjunto musical
e de ir a um baile por medo de ser apontada como “mulher de pouco valor”, nas
palavras de minha mãe, as mulheres tinham o rádio como principal aliado.
Memórias são o alimento da história. É com ela e através dela que são escritos
os caminhos percorridos pel(as)os indivídu(as)os. Histórias de vida são relatos de
memórias, da construção da história por movimentos individuais inseridos ou não em
3
Este termo, cunhado pelo compositor e teórico Pierre Schaffer para explicar a relação que se estabelece
entre nós e as fontes sonoras como rádio e gravações, no impedimento de vermos os objetos sonoros
originais, foi citado por Mello (2006) em seu artigo sobre as relações entre homens e mulheres
explicitadas na música das flautas kawoká nos rituais Wauja.
coletivos. E o relato dessas memórias resignificam o passado e suas ações, dando
movimento, vida e continuidade naquilo que foi, causa do que hoje acontece.
Meihy (1998) afirma que história oral de vida é a narrativa das experiências de
vida de uma pessoa. Como já afirmado, os primeiros relatos que tenho sobre o jaze me
chegaram aos ouvidos pela boca de minha mãe. Sua contribuição nestes primeiros
passos do projeto tem sido de suma importância. Não só suas lembranças estão e estarão
expressas aqui, como também as de minhas tias e tios. Suas histórias de vida junto às
suas sensações expressas em silêncios, sorrisos e olhares serão o meu fio condutor nessa
pesquisa.
Referências
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. SILVEIRA, Renato da (trad.). Salvador:
EDUFBA. 2008;
MEIHY, José Carlos Seibe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola.
1998;
MELLO, Maria Ignez Cruz. “O ciúme-inveja na música e nos rituais Wauja”. in:
SANDRONI, Carlos (ed.), Antrhopológicas, vol.17, ano 10, Recife: UFPE. 2006, p. 66-
80;
MOTA, Milton. Notas sobre a presença da música caribenha em Salvador, Bahia. in:
Revista Brasileira do Caribe, vol. 09, n. 18, Brasília: ISSN. 2009, p. 361- 387;