Este documento apresenta um resumo de três frases de uma tese de doutorado sobre memórias de camponeses do Baixo Jaguaribe no Ceará. A tese contém entrevistas que exploram as relações dos camponeses com o meio ambiente, trabalho, festas e desafios como secas e enchentes. O trabalho busca preservar a cultura e modo de vida desses camponeses nordestinos.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA DOUTORADO EM HISTRIA
Atravessando Sertes Memrias de Velhas e Velhos Camponeses do Baixo-Jaguaribe-Ce.
Jos Olivenor Souza Chaves
Recife 2002 1
Atravessando Sertes Memrias de Velhas e Velhos Camponeses do Baixo-Jaguaribe-Ce.
Jos Olivenor Souza Chaves
2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA DOUTORADO EM HISTRIA
Atravessando Sertes Memrias de Velhas e Velhos Camponeses do Baixo-Jaguaribe-Ce.
J os Olivenor Souza Chaves
Orientador: Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr.
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Histria.
Recife 2002
Ficha Catalogrfica
C438a Chaves, J os Olivenor Souza. Atravesando Sertes: Memrias de Velhas e Velhos Camponeses do Baixo Jaguaribe-CE / Jos Olivenor Souza Chaves. Recife, 2002. 338p.
Orientador: Durval Muniz de Albuquerque Jnior Tese (doutorado) Universidade Federal de Pernambuco
Memrias de Camponeses; Serto; 3. Baixo Jaguaribe-CE; I. Albuquerquer Jr. Durval Muniz; II. Universidade Federal de Pernambuco; III. Ttulo.
4
Dedico este trabalho ao meu pai Oliveira [ in memorium] pelo exemplo de resignao e coragem
5
...procurei primeiro que tudo conhecer o povo e com ele identificar-me. Acompanhei-o passo a passo no seu viver, e ento, nos campos e povoados, no serto (...), ouvi e decorei seus cantos, suas queixas, suas lendas e profecias, aprendi seus usos, costumes e supersties; (...) e guardei dentro de mim os sentimentos de sua alma, com ele sorri e chorei, e depois escrevi o que ele sentia, o que cantava, o que me dizia, o que me inspirava...
Juvenal Galeno
6 Agradecimentos
Foram tantos momentos compartilhados com dezenas de pessoas ao longo da construo deste trabalho, que no seria possvel creditar cada um deles no espao que disponho. Mas gostaria de tornar pblico meus agradecimentos a todos aqueles que mais diretamente participaram de sua construo, encorajando-me das mais diversas maneiras. Agradeo a Deus, inteligncia suprema e causa primria de todas as coisas. minha famlia, cerne de minha vida, pelo apoio constante. Que o amor fraterno possa nos unir cada vez mais. Toda minha gratido ao Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr., orientador deste trabalho, que, com seu vasto conhecimento historiogrfico e sua aguada sensibilidade de pesquisador, muito contribuiu para seu desenvolvimento. no rito deste registro que torno pblico meu respeito e minha admirao pelo profissional correto e pelo intelectual de excelncia que voc . Aos professores Jorge Siqueira e Silvia Cortez, membros da Banca de Qualificao, pelas valiosas contribuies. Para mim, a simplicidade e a generosidade que caracterizam a personalidade de ambos, representam uma motivao e uma certeza de que podemos fazer da academia um lugar, tambm, de produo de valores humanos. professora Ivone Cordeiro, pelo incentivo e pelas valiosas contribuies. Quero que saiba que o Serto - de fato - Um Lugar- Incomum. Espero que a leitura deste trabalho possa lhe trazer boas recordaes dos sertes de sua meninice. Aos meus colegas de Doutorado, pela convivncia alegre que sempre marcou nossos encontros. Agradeo especialmente amiga Slvia Couceiro, por imaginariamente ter-me acolhido na cidade do Recife e ao amigo Clarindo, cearense desgarrado que encontrou na 7 Campina um Grande pouso. ... A Praia do Futuro, o farol velho e o novo... esto sempre a lhe esperar. Aos cearenses - Zilda, Sandrinha, Amlia, Hidelbrando e Clsia - que me acolheram na cidade do Recife e com quem mais diretamente compartilhei minhas saudades do Cear. Meus agradecimentos a todas as pessoas que contriburam diretamente na realizao da pesquisa de campo: Evanildo, Rafael e Elismar, em Jaguaruana; Lourdes, Carlinhos e Rogileuda, em Morada Nova; Mnica, em Limoeiro do Norte e Djacir, em Quixer. Aos amigos de Russas, meu muito obrigado a Elenir, Bernadete, Cristiane, Guacira, Neuciliano, Anglica, Liduna, Uel, Jarbas e Flvio. D. Terezinha e toda sua famlia meu abrao fraterno. Agradeo especialmente Elisngela e Vernica que, comigo, atravessaram tantos sertes. Ao meu amigo Gerson Jnior, antroplogo das guas marinhas e poeta que faz da paixo e do sonho sua arte de viver. Obrigado por tudo que aprendi com voc, durante nossa convivncia na cidade de Limoeiro do Norte, pelas viagens imaginrias que fizemos juntos e por nossas reflexes que sempre estreitaram as fronteiras entre a histria e a antropologia. Obrigado Marinina Gruska, pelo incentivo e pelas contribuies sempre pertinentes. Ao amigo Hidelbrando Soares, por sua competncia, seu profissionalismo e suas valiosas e decisivas contribuies. Espero que este trabalho possa de alguma forma auxiliar suas reflexes sobre a geografia cultural da regio do Baixo-Jaguaribe. minha amiga Cibele, Ser Humano capaz de iluminar qualquer mundo. Ao meu amigo Joo Rameres Rgis, legtimo filho do Vale do Jaguaribe. s amigas Zilda, Tacileide e Verinha, trs mulheres citadinas que pouco conhecem dos sertes que atravessei. Espero que este trabalho possa mostrar-lhes o quanto este espao diverso, plural. 8 Ao IMOPEC (Instituto da Memria do Povo Cearense) nas pessoas de Clia e Ftima Guabiraba. Malvinha, uma amante dos sertes e por quem tenho um profundo carinho. Aos meus colegas professores do curso de Histria da FAFIDAM/UECE, que permitiram, em meio a tanta carncia, meu afastamento para cursar o doutoramento. Ao Programa Institucional de Capacitao Docente da Universidade Estadual do Cear PICDT/CAPES/UECE, pela concesso de bolsa durante a realizao do Doutorado em Histria, na UFPE. Ao grande amigo Jorge Fernandes, pelos exemplos de pacincia, serenidade e f. Obrigado por acreditar em mim e por lembrar-me sempre que a vida uma luta, menino sem que tenhamos que desanimar, pois nunca estamos ss. Que o Mestre Jesus lhe abenoe. A Fabiano e Isa, amigos solidrios, pelo apoio incondicional que vocs me deram no momento de finalizao deste trabalho. Que a fora do amor possa uni-los cada vez mais e que a poesia desse amor possa inspirar um sem nmero de novas canes. Sou eternamente grato a vocs dois. Meu obrigado todo especial Andria Coelho Ramos, pela pacincia, pela compreenso, pelo incentivo, pela ajuda constante e por tudo que aprendi e dividi com voc nestes ltimos anos. Agradeo vida que possibilitou nosso encontro. Por no conseguir traduzir em palavras minha emoo, deixo meu corao e meu sentimento pedir a Deus que lhe abenoe hoje e sempre. Agradeo, enfim, a todos aqueles que se dispuseram a contar-me suas histrias de vida. Com vocs sorri, chorei e aprendi um pouco mais sobre os sertes e muito sobre a vida. Que Deus lhes conceda sade, descanso e paz de esprito.
9 SUMRIO L LI I S ST TA A D DE E F FO OT TO OS S ...................................................................... 11
R RE ES SU UM MO O / / A AB BS ST TR RA AC CT T .............................................................. 12
I I N NT TR RO OD DU U O O Os primeiros passos.................................................................... 13
P PR RI I M ME EI I R RA A P PA AR RT TE E Quando eu morrer cansado de guerra, morro de bem com minha terra....... 37
PRIMEIRA PARADA O campons e o mundo natural............................................................. 45
SEGUNDA PARADA O campons e o trabalho............................................................. 75
TERCEIRA PARADA O campons e a mata.......................................................................... 110
QUARTA PARADA O campons e as guas........................................................................ 132
QUINTA PARADA Casas de farinha, toldas de cera, seres de trana, vaqueiros e comboeiros. 140
SEXTA PARADA O campons e as festas........................................................................ 164
S SE EG GU UN ND DA A P PA AR RT TE E Amarga que nem jil......................................................................... 185
PRIMEIRA PARADA O campons e as secas......................................................................... 187
SEGUNDA PARADA O campons e as enchentes.................................................................. 250
TERCEIRA PARADA O campons e as doenas..................................................................... 272
T TE ER RC CE EI I R RA A P PA AR RT TE E Toda vereda de roa vai descambar na cidade......................................... 288
PRIMEIRA PARADA O lugar serto..................................................................................... 290
SEGUNDA PARADA O no lugar - a cidade.......................................................................... 307
10
C CO ON NS SI I D DE ER RA A E ES S F FI I N NA AI I S S Entre Lembranas e Saudades...................................................... 322
F FO ON NT TE ES S e e B BI I B BL LI I O OG GR RA AF FI I A A ........................................................ 325
11 Lista de Fotos Foto 01 estiva do rio Jaguaribe no municpio de Jaguaruana...................................... 19 Foto 02 entrevista com o Sr. Joo Pereira Cunha Aude do Coelho-Jaguaruana......... 23 Foto 03 vista do Vale do Jaguaribe Chapada do Apod Quixer............................. 45 Foto 04 Sr. Chiquinho Pitombeira e D. Lourdes Riachinho Russas......................... 63 Foto 05 Sr. Antnio Eugnio na colheita do feijo: inverno de 1999 Pacatanha Chapada do Apod Jaguaruana..............................................
75 Foto 06 D. Ana Francisco Stio Tom Quixer..................................................... 86 Foto 07 Rio Jaguaribe no inverno de 1999 Jaguaruana.......................................... 107 Foto 08 vereda entre Lagoa Sta. Teresinha e Riachinho Russas............................... 110 Foto 09 Sr. Isac e D. Rosa Lagoa de Santa Teresinha Russas............................... 125 Foto 10 Aude do Barraco Santo Antnio Russas.............................................. 132 Foto 11 D. Estelita e famlia Lagoa de Santa Teresinha Russas............................. 138 Foto 12 casa de farinha Sap Limoeiro do Norte................................................ 140 Foto 13 farinhada: processo de torragem da farinha Sap Limoeiro do Norte.......... 142 Foto 14 Carnaubal Itaiaba................................................................................ 145 Foto 15 Sr. Joo Delfino Canto da Cruz Palhano................................................. 150 Foto 16 mulheres da comunidade do Canto da Cruz Palhano Tranando a palha da carnaba..................................................................
154 Foto 17 D. Luzia Pacatanha Jaguaruana............................................................ 155 Foto 18 o velho vaqueiro Joo Andr Jaguaruana.................................................. 160 Foto 19 D. Maria Pereira de Almeida Lagoa de Sta. Teresinha Russas.................... 165 Foto 20 D. Altina Delfino Canto da Cruz Palhano................................................ 169 Foto 21 Sr. Amaro Alto do Ferro Itaiaba......................................................... 172 Foto 22 Sr. Pedro das Neves aps entrevista Vazantes Morada Nova.................... 176 Foto 23 vereda entre Lagoa Sta. Teresina e Riachinho Russas................................ 187 Foto 24 D. Altina no momento da entrevista Stio Lima So Joo do Jaguaribe....... 205 Foto 25 Sr. Raimundo Mendes e esposa D. Eullia Aldeia Velha Tab. do Norte........ 217 Foto 26 Sr. Francisco Vieira Aldeia Velha Tabuleiro do Norte................................ 238 Foto 27 inverno de 1999 - Chapada do Apod Jaguaruana.................................... 250 Foto 28 Sr. Joo Pereira Aude do Coelho Jaguaruana........................................ 272 Foto 29 casa do Sr. Antnio Eugnio da Silva Pacatanha Chapada do Apod Jaguaruana................................................................
290 Foto 30 terreiro da casa de Sr. Antnio Eugnio Pacatanha Jaguaruana................. 293 Foto 31 Sr. Onofre e D. Maria Jlia Lagoa de Santa Teresinha Russas................... 294 Foto 32 Cidade de Russas 1994.......................................................................... 307
12 RESUMO
Articulando memria e experincia pessoal, procurei acompanhar o curso ordinrio das experincias registradas pelas memrias de velhas e velhos camponeses da regio do Baixo- Jaguaribe-CE, objetivando expressar a pluralidade de sentidos que os camponeses atribuem aos sertes em que nasceram e cresceram. Assim, atravs da Histria Oral de vida, estabeleci outros nveis de compreenso acerca das experincias vividas por esses sujeitos, que pudessem contrapor as interpretaes que absolutizam a seca como sendo a nica experincia vivida nos sertes do Cear. Quanto narrativa do trabalho, ela sugere ao leitor uma idia de travessia que se realiza por diversos pedaos de sertes e por vrias temporalidades que marcam o tempo da memria de meus entrevistados.
ABSTRACT
Articulating memory and own experience, i tryed to follow the customary course of the registered experience by the memories of old countymen from the territory of Baixo-Jaguaribe CE, objectifying to express the aiming sense plurality that the countrymen assign to the hinterland where they had born and grown. So, through the Oral History of life, i set other comprehension levels about the experience lived by those men, who could compare the interpretation that make absolute the seca as the only lived experience in the hinterland of Cear. As forregard to the work narrative, it suggests to the reader an idea of crossing that complete itself in a lot of pieces of hinterland and period which marks the time in my interviewed memories.
13 Os Primeiros Passos
Atravessei a Rua, atravessei a vida Acreditei que era perto e fui l ver Luiz Gonzaga Jnior
Roteiro das boiadas que impulsionaram a colonizao da Capitania do Cear nos sculos XVII e XVIII, as ribeiras do rio Jaguaribe representavam a mais importante via de acesso por onde entraram as correntes migratrias oriundas das regies aucareiras da Bahia e Pernambuco. Ao encontrarem facilidade de gua e terras frteis, os primeiros colonizadores foram instalando, ao longo das vrzeas do Jaguaribe, currais para a criao de gado, dando incio, assim, prtica da pecuria extensiva. 1
Diferentemente das reas que foram ocupadas na ribeira do Jaguaribe com o criatrio de gado, os espaos alm vrzeas eram considerados territrios imprprios que serviam apenas como terras de recriao, ou seja, livres para a pastagem do gado. No entanto, j no final do sculo XVIII, com a implantao do cultivo de algodo, esses espaos foram incorporados ao processo produtivo em funo da formidvel adaptao dessa cultura s condies naturais prprias da regio. Concomitante ao cultivo de algodo, tanto nas reas de caatinga como na chapada do Apodi, o uso das terras estava associado prtica de uma agricultura de subsistncia. 2
No entanto, a partir da segunda metade do sculo XIX, a extrao da cera de carnaba se tornou a mais importante atividade econmica desenvolvida nas vrzeas do Jaguaribe, particularmente no seu baixo curso. Esta atividade, juntamente com a produo de algodo, constituiu-se na principal alavanca impulsionadora da
1 Cf. Valdelice Carneiro Giro. Da Conquista e Implantao dos Primeiros Ncleos Urbanos na Capitania do Siar Grande e Jos Borzacchiello da Silva. O Algodo na Organizao do Espao. In. Simone Souza (Coord.). Histria do Cear. Fortaleza: Fundao Demcrito Rocha, 1994. 2 Cf. Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e reorganizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte Ce. Dissertao de Mestrado em Geografia apresentada a UFPE. Recife: 1999. pp. 40, 42 e 43. 14 economia da regio, 3 motivando, assim, a formao de uma elite poltica e econmica. Contudo, verifica-se, a partir de meados do sculo XX, o declnio da produo de cera de carnaba no cenrio econmico do Estado. Segundo Hidelbrando Soares, este declnio coincide com o processo de modernizao da agricultura brasileira proposto pelo Estado e fundamentado na lgica da integrao nacional: No baixo Jaguaribe esse processo de modernizao da agricultura se materializou atravs do planejamento e execuo de projetos e programas que visavam a implantao de uma agricultura irrigada, favorecida pelas boas condies edafo-climticas e de recursos hdricos, voltada para a produo de alimentos para o mercado nacional. (...). 4
Embora essas informaes sejam importantes para a compreenso do contexto histrico da regio do Baixo-Jaguaribe, o interesse desta investigao reside em estabelecer, atravs da histria de vida de velhas e velhos camponeses, 5 nveis de compreenso acerca das experincias 6 vividas por esses sujeitos, que possam contrapor as interpretaes que absolutizam a seca como sendo a nica experincia
3 At meados do sculo XIX, a regio do Baixo-J aguaribe era composta apenas pelos atuais municpios de Aracati (1747) e Russas (1766). No entanto, a partir de 1865, inicia-se o processo de desmembramento destes municpios como se pode verificar no quadro a baixo: Municpio Ano de Emancipao Origem Aracati 1747 - Russas 1766 - Unio 1865 Aracati Limoeiro 1868 Russas Morada Nova 1876 Russas Tabuleiro do Norte 1957 Limoeiro do Norte So Joo do J aguaribe 1957 Limoeiro do Norte Alto Santo 1957 Limoeiro do Norte Quixer 1957 Russas Palhano 1958 Russas Ibicuitinga 1988 Morada Nova
4 Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e reorganizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte Ce. op. cit. p. 12. Voltarei a essa questo na primeira parte do trabalho, mais especificamente no seu segundo captulo. 5 Embora reconhea que a expresso campons seja bastante genrica, foi com ela que alguns dos entrevistados se auto-denominaram. Desta forma, gostaria de ressaltar que utilizarei, ao longo deste trabalho, esse conceito para identificar os sujeitos da pesquisa. Numa caracterizao geral, podemos defini-los como produtores rurais que praticam uma agricultura de sequeiro, independente de terem ou no a posse da terra. Portanto, inclumos nessa categoria no apenas os pequenos proprietrios, mas, todos aqueles que, sob condies especficas, tenham acesso ao uso da terra - rendeiros e moradores, por exemplo. 6 Utilizarei o termo experincia no sentido indicado por Thompson, ou seja, como elemento estruturador da vida e da conscincia social que se realiza e se expressa, por exemplo, nos sistemas de parentesco e costumes. Cf. E. P. Thompson. O Termo Ausente: Experincia In. A Misria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1981. p. 189. 15 vivida nos sertes do Cear. Para isto, foi preciso compreender o quanto este espao parece ser mesmo a alma de seus homens. 7 Se isso verdade, e creio que o seja, foi-me preciso vivenci-lo de forma mais intensa, de maneira a me permitir v-lo, no apenas como um espao fsico, mas sim, como um lugar de mltiplos significados. Desta forma, a nsia de encontr-los, de conhec-los, motivou a realizao desta travessia pelo sertes do Baixo-Jaguaribe. 8
Ao mesmo tempo que me sentia estimulado a abandonar o asfalto e passar a percorrer as muitas veredas de roa que encontrava pelo caminho, sabia que esta no era a nica travessia que eu deveria fazer; havia uma outra mais longa: a travessia do tempo. Para isto, precisava viajar um pouco mais pelos caminhos da vida dos homens e mulheres daqueles sertes. Assim, adentrar ao mximo na finitude das memrias dos meus depoentes, mais do que qualquer outro meio, parecia ser o meu ponto de partida. 9
7 Carlos Rodrigues Brando. Memria/Serto: cenrios, cenas, pessoas e gestos nos sertes de Joo Guimares Rosa e de Manuelzo. So Paulo: Editorial Cone Sul/Editora UNIUBE, 1998. 8 A idia da travessia pelos sertes do Baixo-J aguaribe, veio-me da leitura de Carlos Rodrigues Brando. Memria/Serto. op. cit. Nesta obra, Brando, ao mesmo tempo que faz uma leitura de Grande Serto: Veredas, obra de J oo Guimares Rosa, refaz, ele prprio, a travessia pelo serto das Gerais, anteriormente feita por Rosa, que, em muito, encareceu a importncia das veredas para a compreenso das experincias sertanejas. De maneira geral, as comunidades onde foram realizados os trabalhos de campo, situam-se, geograficamente, em reas de Plancie Aluvial, ou seja, reas de vrzeas constitudas por solos de aluvio resultante da ao dos rios; Caatingas, caracterizadas por solos de baixa fertilidade natural, alm de baixos ndices pluviomtricos e de Chapada, mais precisamente a Chapada do Apodi, o mais rebaixado dos planaltos sedimentares do Cear. Cf. Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e reorganizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte Ce. op. cit. pp. 38, 40, 42 e 43. Gostaria de ressaltar, tambm, que ao longo do trabalho utilizarei a expresso serra do Apodi, em vez de Chapada do Apodi, em razo de ser esta a forma como as pessoas da regio do Baixo-J aguaribe se referem a esse lugar. O mapa (p. XX) mostra a diviso territorial da microrregio do Baixo-J aguaribe e a localizao, por cada municpio, das comunidades onde realizei a pesquisa de campo. 9 Utilizando como metodologia de pesquisa a histria oral, sob a forma de histrias de vida, realizei quarenta e uma (41) entrevistas com homens e mulheres de faixa etria acima de sessenta anos. Alm do critrio da idade, a seleo dos sujeitos da pesquisa obedeceu, ainda, a critrios de ordem espacial e econmica, ou seja: camponeses(as) residentes na zona rural, que tivessem na chamada agricultura de sequeiro, aquela que depende exclusivamente das chuvas, sua principal fonte de sobrevivncia. Ao final de cada etapa da pesquisa de campo, era realizado, por mim, o trabalho de transcrio das entrevistas respeitando a riqueza e a singularidade da linguagem utilizada pelos depoentes. Aps a transcrio de todo material colhido na pesquisa, fiz um cruzamento das entrevistas com o objetivo de mapear o universo temtico proposto pelas mesmas. Alm das 41 entrevistas realizadas, procurei, durante toda a pesquisa de campo, constituir um acervo iconogrfico que pudesse retratar os sujeitos da pesquisa, as diferentes paisagens dos sertes, bem como cenas do cotidiano vivido na regio. A revelao deste acervo, no entanto, constitua-se num momento de partilha entre familiares, amigos e curiosos, das experincias vividas por mim a cada etapa da pesquisa. Portanto, alm de documentar o que estava vendo, tinha o intuito de compartilhar toda aquela experincia. Assim, ao longo deste trabalho, farei uso, sempre que possvel, deste acervo, para poder contar mais do que vi e vivi durante toda a travessia pelos sertes da regio do Baixo-J aguaribe. 16
17 Deste modo, fui adentrando em tempos idos e pedaos de cho que ficaram grudados na alma daqueles camponeses. Assim, ao narrar suas histrias, parece que eles as retiram do prprio corpo, das prprias veias, do fundo da alma. So histrias que brotam com a marca do sentimento e que atravessam vrias temporalidades. 10
Por isso, iniciei a travessia do tempo sabendo que no poderia fazer de cada histria narrada apenas uma estao de ociosa paragem. Ao menos, seria oportuno, antes de prosseguir na travessia, procurar em cada uma delas identificar os cenrios, as personagens, as situaes dramticas ou divertidas, enfim, o que foi vivido e hoje lembrado, ou, o que foi vivido e hoje encontra-se perdido nas zonas do esquecimento. Portanto, era preciso estar sempre em movimento cruzando tempos, espaos e memrias. Pois, na arte de lembrar e narrar, uma histria sempre puxa outras histrias, com novas paradas, novos cenrios e novas personagens. Contudo, muitas vezes, para chegar naquilo que me era importante, precisava acompanhar a longa e densa travessia do tempo. Assim, deixando-se guiar pelas lembranas, como querendo saber mais sobre si mesmos, os meus narradores, a cada histria que narravam, atravessavam muitas outras. Era preciso o tempo todo estar voltando ao pretrito do que hoje o passado, assim como ao presente; porque, para se compreender o que se vive agora, necessrio recorrer s coisas de outrora. 11
Durante a travessia, os camponeses, que me faziam cmplice de suas histrias, iam tecendo, em cada narrativa, as linhas
10 Os marcos cronolgicos, pouco rgidos, foram delimitados a partir das prprias experincias de vida dos sujeitos da pesquisa. Desta forma, considero as vivncias anteriores e posteriores tanto a seca de 1915 como a cheia de 1974 como as principais referncias temporais da pesquisa. 11 Segundo Walter Benjamin, num certo sentido, a narrativa uma forma artesanal de comunicao. Ela no est interessada em transmitir o puro em si da coisa narrada como uma informao ou um relatrio. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retir-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mo do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de comear sua histria com uma descrio das circunstncias em que foram informados dos fatos que vo contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa histria a uma experincia autobiogrfica. Cf. Walter Benjamin. O Narrador. In. Obras Escolhidas. So Paulo: Brasiliense, 1985. p. 205. 18 de seu passado infinito. 12 Desta forma, cada vez mais estimulado pela polifonia de suas lembranas, fui conhecendo muitos sertes, antes sequer imaginados. Assim, o serto ia se transformando num campo de inesgotveis possibilidades, fazendo-me compreender que no seria possvel defini-lo precisamente, muito menos torn-lo mensurvel, pois o serto antes um lugar do pensamento, do sentimento, do desejo da alma. Ele possui o tamanho que o pensamento lhe concede. No entanto, para melhor conhecer a diversidade das situaes experienciadas nestes sertes, foi preciso atravessar no apenas o serto de areia seca que, no dizer de Gilberto Freyre 13 , chega a ranger debaixo dos ps, paisagens duras que chegam a doer nos olhos; mas foi preciso, igualmente, atravessar o serto invernoso do massap, da argila, do humus gorduroso, cuja terra pegajenta e melada.
Neste momento, recordo, por exemplo, que em uma das etapas da pesquisa de campo, no municpio de Jaguaruana, quando estava a caminho da comunidade da Pacatanha, fui surpreendido por uma grande chuva que fez correr um rio de lama, obrigando-me a abandonar a motocicleta em que viajava na companhia de um amigo e caminhar o restante do percurso, atolando ps e pernas, justamente nesta terra pegajenta e melada de que fala Freyre. Ao atravessar, pois, este serto visguento, imagem antpoda do outro, de terra dura, de areia seca, percebi o quanto h de proximidade entre este serto e a zona da mata estudada por Freyre. Alis, no perodo invernoso, torna-se muito difcil o trajeto
12 Segundo Alessandro Portelli, (...) informantes so historiadores, de certo modo; e o historiador , algumas vezes, uma parte da fonte. Cf. Alessandro Portelli. O que faz a histria oral diferente. In. PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP n 14. So Paulo, SP, 1997. p. 38. 13 Gilberto Freyre. Nordeste. 6.ed. Rio de J aneiro: Record, 1989. pp. 41 e 42. Segundo Durval Muniz, quando se trata da institucionalizao sociolgica da regio Nordeste e de sua inveno, Gilberto Freyre tem, no seu livro Nordeste, sua principal contribuio. Reconhecendo a diversidade interior ao prprio Nordeste ao se referir ao outro Nordeste de areias rangentes e escaldantes, Freyre tece uma unidade imagtico-discursiva que toma como base o Nordeste aucareiro, j que a regio de terras duras e secas seria mais propcia para servir de base a um discurso cuja estratgia fosse a denncia das condies sociais da regio. O Nordeste do acar serve mais prontamente para seu projeto de resgate de um passado de poder e riqueza que viesse compensar exatamente os problemas sociais e a decadncia crescente dessa rea do pas. Terra que se deixava marcar mais facilmente pelos rastros da tradio. (...). Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. A inveno do Nordeste e outras artes. Recife: FJ N, Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 1999. pp. 99 e 100.
19 de qualquer veculo por esta regio, uma vez que os caminhos ficam intransitveis; alm do que, a estiva, 14 que serve de ligao entre as duas margens do rio Jaguaribe, destruda e submersa toda vez que o nvel das guas do rio se eleva. Lembro-me, perfeitamente, do drama que vivi ao atravessar os cento e vinte metros de comprimento da estiva num momento em que as guas do rio j estavam praticamente cobrindo-a. Ao chegar em uma das margens, por volta das 19:00 horas, percebi que o nvel das guas havia subido consideravelmente.
(Foto 1 estiva do rio Jaguaribe no municpio de Jaguaruana)
Confesso que fiquei bastante receoso de fazer aquela travessia, pois a estiva, construda de pedra e areia, no mede mais do que trs metros de largura, os quais, em alguns pontos, j haviam sido destrudos pela fora das guas. Era noite, e uma chuva fina tornava ainda mais difcil ver-se o cho de areia e pedra. Os faris do carro apenas conseguiam focalizar as guas chocando-se com as pedras. O momento de maior apreenso, porm, foi quando um dos pneus caiu dentro de um buraco e o carro estancou. Neste momento, enquanto meu corao pulava descompassadamente, minhas pernas pesaram tanto que pareciam imveis; pois, temia que, quando desse nova
14 Estiva uma espcie de estrada que faz a ligao entre as duas margens do rio J aguaribe. 20 partida no carro, o pneu ficasse cada vez mais preso nas pedras. Felizmente isto no aconteceu. Movido por um receio indescritvel, consegui guiar o carro, em primeira marcha, at a outra margem do rio. Esta, entre outras agruras vividas na pesquisa de campo, fez-me, por algumas vezes, perguntar a mim mesmo: o que estou fazendo aqui? No obstante, este questionamento era circunstancial e estril, pois estava imbudo da certeza de que era preciso vivenciar aqueles locais, usar o arquivo dos ps, como nos sugere Simom Schama, 15 pois, s assim, correndo risco, aventurando-me em busca das experincias vividas nestes espaos, seria possvel chegar ao passado daqueles que se dispuseram a contar-me suas histrias de vida. Assim, por tratar-se de algo no realizado e pronto, torna- se impossvel pensar e traduzir os sertes por inteiro. Contudo, na companhia de velhas e velhos camponeses que tive a felicidade de conhecer ao longo da travessia, percorri vrias temporalidades 16 e conheci diversos pedaos de sertes guiado pela bssola de suas memrias. Muitas vezes percebia que um ou outro dos entrevistados resolvia demorar-se um pouco mais nalgum lugar do passado, limitando-se a olhar, em silncio, paisagens familiares e queridas que h muito haviam sido deixadas para trs; mas, que, com muita fora, ainda, falava-lhes ao corao calando fundo dentro do peito as palavras. Embora sensibilizado e imvel por alguns instantes, um sentimento de curiosidade pelo mundo do outro dominava-me de tal maneira que as minhas perguntas serviam de contributo para que eles pudessem mergulhar cada vez mais fundo no rio de suas vidas. No entanto, preciso no perder de vista a grandeza do serto. Porque l assim: quanto mais se percorre as veredas de roas,
15 Simon Schama. Paisagem e memria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 33 e 34. 16 Segundo Antonio Torres Montenegro, (...) O tempo da memria o tempo da experincia de um perodo de vida, de atividade profissional, poltica, religiosa, cultural, afetiva... que nos arrebata e condiciona quase que inteiramente, nos fazendo perceber e reconstruir a realidade de uma determinada maneira. Realizar uma entrevista sobretudo a tentativa de visitar com o entrevistado esses territrios diversos, que se relacionam e se comunicam atravs de uma lgica para ns desconhecida. Cf. Antonio Torres Montenegro. Histria oral, caminhos e descaminhos In. Revista Brasileira de Histria So Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 13, n 25/26, set-92/ago-93. p. 60. 21 mais serto chega at ns. como se o serto no fosse um lugar certo; como se ele estivesse em toda parte, de tal forma que quando menos se espera, mesmo quando j se tem traado o rumo da travessia, ele chega e oferece uma outra direo a ser seguida. Mesmo sendo longa e densa a travessia do tempo, os camponeses, ao narrarem as suas vivncias, revelaram como estas so sumariamente carregadas de sentidos e de sentimentos. Desta forma, farei um esforo infinito para no deixar escapar os sentidos dos gestos que falam; dos sentimentos que foram silenciados por no ter sido possvel traduzi-los atravs das palavras, mas cujos significados foram to bem guardados pelas expresses que os prprios sentimentos marcavam em suas faces. Para isto, foi preciso no fechar os olhos, nem tampouco o corao, pois atravs do corao que mais facilmente percebemos o invisvel da vida e do mundo.
Os olhos lem a vida e o mundo. Definem suas cores, traam suas foras, dimensionam seus movimentos. Os olhos e o visvel. Mas o corao que percebe o invisvel da vida e do mundo. Penetra nos seus mistrios, aprofunda suas tramas, inventa seus sentimentos, descobre a magia talvez absurda, que envolve a aventura humana. O visvel e o invisvel fazem parte da Histria, so inseparveis, se o historiador quiser tentar compreender o significado dos labirintos, construdos pelos homens, no deve fechar os olhos, nem tampouco o corao. Ele no, apenas, avista as esfinges, mas deve procurar decifrar seus enigmas, mesmo que se perca nas infinitas trajetrias dos homens, nas aparncias mltiplas que o jogo das relaes sociais estabelece para encobrir os desencantos e as frustraes. A tarefa do historiador imensa, necessariamente incompleta, pois os enigmas sempre exigiro novas leituras, dependendo do tempo e do espao em que so / foram / sero produzidos. 17
Ademais, o contato direto com os sujeitos da pesquisa fez- me refletir sobre o significado que a experincia vivida na pesquisa de campo teve no apenas para minha formao como historiador, mas, sobretudo, para minha formao como pessoa. Assim, ao mesmo tempo em que me encantava com os sertes que iam se descortinando minha volta, reconhecia que o contato direto com os mais simples dos
17 Antnio Paulo Resende. (Des) encantos modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de vinte. Recife: FUNDARPE, 1997. p.13. 22 sertes possibilitava-me experimentar tanto a diferena cultural e social que nos separava, quanto a proximidade de princpios e valores que nos unia. 18
Desta forma, ao longo de toda a travessia, fomos construindo uma relao afetiva baseada no dilogo, no respeito e na valorizao do outro. Conquanto mantivesse sempre uma relao dialgica com meus amigos de travessia, 19 foi possvel exercitar a arte de saber ouvir, to fundamental aos historiadores que trabalham com a oralidade. 20 Assim, fui aprendendo, a cada dia, a respeit-los,
18 Gostaria de ressaltar que o contato direto com os sujeitos da pesquisa no implicou a fixao de residncia em nenhuma das comunidades em que realizei a pesquisa de campo, embora soubesse que esta convivncia diria me possibilitaria uma posio melhor quanto observao dos seus fazeres cotidianos. Conquanto no tenha fixado residncia, pude experienciar este convvio cotidiano quando fiquei, por trs dias, hospedado na casa do casal Antnio Eugnio e D. Luzia. Localizada na Pacatanha, no alto da serra do Apodi, a casa do velho casal de camponeses guarda, em boa medida, as caractersticas que marcam a maior parte das casas daqueles que foram por mim entrevistados: casas de taipa, construdas a partir de uma armao de madeira, cujos espaos vazios so preenchidos com barro. Em muitas delas, v-se, facilmente, o madeiramento da taipa descoberto. Poucas so as casas rebocadas, ou seja, alisadas, e pintadas. Todas so, no entanto, cobertas com telha de cermica, seguras por velhos caibros de madeira que so na cozinha enegrecidos pela fumaa liberta do velho fogo de lenha. Quanto ao mobilirio, este pouco varia: encontra-se, geralmente, bancos, uma mesa, bas para guardarem roupas e mantimentos, alm de muitos retratos de santos e de polticos da regio decorando as paredes da pequena sala. Algumas, no entanto, possuem uma cama de casal, um guarda- roupa e um armrio para louas. A energia eltrica j chegou em algumas das comunidades, possibilitando, assim, no apenas a substituio da lamparina pela luz eltrica, como, em uma ou outra casa, a aquisio de uma geladeira e de uma televiso. As condies de higiene so muito precrias. As residncias no possuem banheiros e a gua que consumida geralmente vem de um poo ou cacimbo. Quando estive hospedado na casa do Sr. Antnio Eugnio, tomvamos gua de um cacimbo em que um corujo estava pondo seus ovos. Ao descer para mat-lo, o filho do seu Antnio Eugnio retirou no apenas o corujo, que virou, para mim, objeto fotogrfico, e para a crianada, objeto de brincadeira, como tambm ratos e outros insetos. No incio da pesquisa de campo, sobretudo na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, procurei entrevistar todos os velhos (homens e mulheres) residentes nesta comunidade. No entanto, como iria realizar a pesquisa em nove municpios da regio do Baixo-J aguaribe, passei a selecionar os entrevistados. Para isto, antes de fazer uso do gravador, mantinha contatos informais com os mais velhos, objetivando perceber a facilidade de rememorao dos mesmos. Algumas vezes minha tarefa foi dificultada pelas atividades que muitos ainda desenvolvem na roa. Por ocasio da minha estadia na casa do Sr. Antnio Eugnio, junho de 1999, vrias vezes pude acompanh-lo a seus locais de trabalho, ocasies em que aproveitava no s para conversar com ele, mas tambm para observ-lo na execuo de suas tarefas, chegando, inclusive, a participar de algumas delas. 19 Quando utilizo a expresso amigos de travessia, estou me referindo a todos queles que foram por mim entrevistados. 20 Apesar de ter trabalhado com um grande nmero de depoentes, 41 no total, apenas dois mantiveram-se numa postura mais reservada quando da realizao da entrevista. Portanto, a grande maioria, mesmo no momento da entrevista, mantiveram uma conversao descontrada como ser possvel verificar ao longo deste trabalho. Esta constatao, por sua vez, contraria a imagem clssica do campons rude, construda, em grande medida, por Graciliano Ramos, na qual o campons s sabe que no sabe de nada, que nasceu pra sofrer, para mansar brabo, curar feridas e consertar cercas, ou seja, remendar os buracos da grade de sua prpria priso de letras. Cf. Francisco Fabiano de Freitas Mendes. Tudo era seco: Fome, Fala e Poder em Vidas Secas. Monografia de Graduao em Histria apresentada a UECE, Fortaleza: 2000. p. 72.
23 apreciando-lhes e reconhecendo, em muitos deles, as qualidades de carter, de honestidade e de fora moral to raras nos dias de hoje. (Foto 2 entrevista com o Sr. Joo Pereira Cunha Aude do Coelho-Jaguaruana)
Decerto, no encontrei grandes dificuldades em transpor as barreiras da desconfiana que normalmente marcam as relaes entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa. Na verdade, as desconfianas foram sendo vencidas com naturalidade, uma vez que procurei ao longo de toda a pesquisa agir com a mxima espontaneidade, partindo sempre do princpio de que, embora entre ns houvesse diferenas, aquelas pessoas, com as quais eu estava convivendo, mereciam respeito e afeto. Assim, ao mesmo tempo que procurava esmiuar detalhes de suas vidas atravs de minhas perguntas, procurava, por outro lado, estabelecer uma conversa mais informal na qual eu tambm expunha um pouco da minha pessoa, da minha vida, da minha histria. Dessa maneira, o trabalho de campo significou, acima de tudo, uma oportunidade singular para que eu pudesse, no exerccio da tica, relativizar valores e conceitos. 24 Segundo Alessandro Portelli, o respeito pelo valor e pela importncia de cada indivduo constitui-se numa das primeiras lies de tica para os historiadores que trabalham com a oralidade.
(...). Embora possamos ser doutores em qualquer matria entrevistando analfabetos, na situao de campo so eles que tm as informaes e, gentilmente, compartilham-nas conosco. Manter em mente esse fator significa lembrar que estamos falando, no com fontes - nem que estamos por elas sendo ajudados -, mas com pessoas. A questo no que tipo de expresses j consagradas pelo uso empregamos em nossa abordagem; as boas maneiras so meramente a manifestao externa de respeito genuno. Caso contrrio, poderemos repetir aprender, em vez de estudar, o quanto quisermos, mas nossos interlocutores com certeza no se deixaro enganar. 21
Quanto travessia, essa percorreu sempre o curso ordinrio das experincias registradas pelas memrias de homens e mulheres absolutamente comuns, as quais fizeram-me ver o quanto a vida cotidiana dos sertes engloba prticas diversas que so, no dizer de Michel de Certeau, artes de fazer. Nesse sentido, os fazeres comuns da vida cotidiana, por serem, ao mesmo tempo, formas de resistncia e prticas de reapropriao, possibilitaram-me ler de outra maneira o espao do serto, fazendo-me ver o quanto a idia de lugar-comum uma realidade vazia. Portanto, estimulado pelas reflexes de Certeau, busquei apreender no espao vivido alguns aspectos da inventividade que as artes de fazer camponesa revelam. Para Certeau, so as prticas e experincias efetivadas pelos sujeitos que constrem o espao. 22 Sendo assim, no dizer de Bachelard, o espao convida ao, e antes da ao a imaginao trabalha. Ela ceifa e lavra. 23 Essa idia de espao como lugar praticado, ainda compartilhada por Armand Frmont. Segundo Frmont, os homens apreendem desigualmente o espao que os rodeia, uma vez que habitar no a nica maneira de nos situarmos. Todos os
21 Alessandro Portelli. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexes sobre a tica na histria oral. In. PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP n 15. So Paulo, SP, 1997. p. 25. 22 Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrpolis, RJ : Vozes, 1994. 23 Gaston Bachelard. A Potica do espao. So Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 31. A exemplo de Bachelard, Simon Schama nos esclarece que a nossa percepo transformadora que estabelece a diferena entre a matria bruta e paisagem. Cf. Simon Schama. Paisagem e memria. op. cit. p. 20. 25 atos da vida, particularmente os que se repetem, implicam certas localizaes de formas, de signos, de valores, de representaes, e, por conseguinte criam lugares. 24
Embora reconhea a dificuldade em analisar e descrever o cotidiano campons, no posso esquecer que cada individualidade o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditria) de suas determinaes relacionais. Sendo assim, estou atento ao risco de cair em homogeneizaes que venham descaracterizar as prticas cotidianas dos camponeses do Baixo-Jaguaribe. 25
Contudo, estou consciente de que no poderei contar mais do que uma pequenina frao do que ocorreu no passado pessoal e coletivo de cada um dos entrevistados, uma vez que impossvel se percorrer toda a imensido do passado. Desta forma, por haver uma diferena entre os acontecimentos passados e os relatos colhidos sobre esses acontecimentos, no se torna possvel recuperar e recontar precisamente o verdadeiro passado.
Primeiramente, nenhum relato histrico consegue recuperar a totalidade de qualquer acontecimento passado, porque seu cotidiano virtualmente infinito. A narrativa histrica mais detalhada assimila apenas uma frao mnima at mesmo do passado relevante; o prprio fato de o passado ser passado impede sua total reconstruo. Grande parte das informaes sobre o passado jamais foi registrada, e a maior parte do que sobrou perdeu-se. 26
Desta forma, a nica premissa, que absolutamente dedutvel ao historiador, a de que o passado realmente aconteceu. Nesse sentido, a histria diz respeito capacidade que as pessoas tm de transmitir para seus semelhantes sua prpria vivncia. Assim, s possvel construir uma imagem do passado a partir dos restos que ele nos legou. Todavia, do acmulo de acontecimentos que se verifica cotidianamente, muito mais matria chega zona do esquecimento do
24 Armand Frmont. A regio, espao vivido. Coimbra - Portugal: Livraria Almedina, 1980. p. 133. 25 Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. op. cit. p. 38. 26 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. In. PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP n 17. So Paulo, SP, 1998. p. 111.
26 que at ns. Isto significa dizer, em princpio, que no possvel histria onde no h o registro. Por outro lado, ainda, preciso considerar que o passado representa um conjunto de acontecimentos e situaes, tornando-se, assim, impossvel traduzi-lo atravs apenas de um relato. Segundo David Lowenthal, nenhum relato pode ser comparado ao passado em razo do fato desse no mais existir. Assim, s possvel julgar a veracidade do relato comparando-o com outros registros e no com os acontecimentos em si. 27 Portanto, o papel do historiador assemelha-se ao do fotgrafo, uma vez que no consegue retratar toda a paisagem, fazendo, de sua narrativa histrica, apenas uma histria sobre o que aconteceu. Contudo, preciso se ter claro que toda ao humana tem o desejo de se projetar para o futuro. Desse modo, todo documento, independente da sua natureza, carrega em si essa mesma inteno. Assim, quando estamos diante de um arquivo, por exemplo, os documentos ali arquivados projetam para o futuro uma determinada expectativa pessoal ou coletiva do que se gostaria que fosse o futuro. O que ocorre, no entanto, que embora se possa encontrar no passado vrios projetos de futuro, apenas um efetivou-se como presente. O historiador, portanto, tem que se despir de uma certa idia de presente, para poder investigar com mais lucidez o passado, tendo como pressuposto bsico o fato de que esse passado algum dia foi presente com vontade de ser futuro. Este o enigma que o passado nos coloca e que o historiador deve estar disposto a decifrar. Em outras palavras, o historiador tem que estar consciente de que a verdade do presente representa uma verdade muito provisria e, ainda assim, sujeita a mil impasses, a mil controvrsias. Portanto, o documento, entendido aqui no seu sentido mais lato, representa a forma pela qual os homens buscam perpetuar a sua
27 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. op. cit. p. 111.
27 prpria experincia. Nesse sentido, do ponto de vista documental, o depoimento oral possui o mesmo princpio do registro escrito, o qual se traduz no desejo da projeo e da permanncia; ou seja, toda pessoa que se disponha a falar dela prpria, j projeta, em si mesma, a dimenso da permanncia. Neste caso, o discurso produzido pelo depoente, nada mais do que o resultado da objetivao do seu mundo. Dessa forma, o depoente representa, nele prprio, o registro, o documento. Assim, torna-se imperioso ao historiador, relativizar o fato de que o documento escrito possua maior confiabilidade do que o depoimento oral. Por outro lado, ainda, o historiador no deve apenas se apoiar nos documentos que foram intencionalmente elaborados pelos homens, uma vez que estes costumam deixar rastros, indcios que comprovam a sua existncia. Um outro fator que limita o conhecimento do passado, e, por isso mesmo deve ser considerado, diz respeito ao fato de estarmos presos s nossas prprias estruturas; ou seja, o passado que conhecemos ou vivenciamos est sempre dependente do nosso prprio presente. Desse modo, por sermos produto do passado, o passado que conhecemos no passa de um artefato nosso. Nesse sentido, esclarece Lowenthal:
Acima de tudo, a passagem do tempo que desgasta o passado limita nossa compreenso deste, pois tudo que vemos filtrado por lentes mentais do presente. Diferentes pressuposies e modalidades de discurso limitam tanto a compreenso do historiador quanto a sua capacidade de comunicao com outros de outras pocas. 28
Uma outra questo importante a ser pensada, diz respeito aos silncios da histria, j que nem todo passado conseguiu, com sucesso, projetar-se enquanto futuro. No entanto, o passado atua diretamente no presente, embora seja comum se pensar que o passado representa, simplesmente, aquilo que j se passou. O que ocorre, muitas das vezes, que o passado est encoberto pelo vu do
28 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. op. cit. pp. 113 e 114.
28 silncio. Nesse sentido, impretervel ao historiador investigar os silncios da histria, procurando apanhar aquilo que o passado carrega de esperana para o futuro. Para isto, o presente, por ser essa agitao permanente de um passado dominante, representa o lugar ideal para se ressignificar os passados que foram silenciados. Embora o silncio no seja diretamente observvel, ele no representa o vazio. Assim, podemos senti-lo, por exemplo, no nvel da percepo. Segundo Eni Orlandi, o silncio est l (no sorriso da Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas grandes extenses, nas pausas). No entanto, para torn-lo visvel, preciso observ-lo indiretamente por mtodos (discursivos) histricos, crticos, des-construtivistas. 29
Contudo, se por um lado a histria no consegue recuperar a imensido que o passado, por outro, ela representa mais que o passado; uma vez que tanto a percepo tardia deste, quanto seu anacronismo do forma s interpretaes histricas. Explicar o passado no presente significa, pois, lidar no apenas com novas percepes, novos valores e novas linguagens, mas com acontecimentos ocorridos aps a poca examinada. 30
No que diz respeito questo da verdade histrica, as bases do pensamento histrico contemporneo, ao contrrio do que pensavam os historiadores do sculo XIX, no concebem mais a idia que atribui histria um estatuto de verdade eterna. Assim, a noo de verdade concebida pela moderna teoria da histria, tem como princpio bsico a idia de que a verdade mvel historicamente. Se a verdade mvel historicamente, a histria uma atribuio de sentidos e um lugar do poder. Ela est sempre em busca de uma nova interpretao para o passado; o que a torna, por assim dizer, uma experincia racional. Assim, diante da infinitude do passado, o historiador que delimita o seu tamanho.
29 Eni Puccinelli Orlandi (org.). As Formas do Silncio: no movimento dos sentidos. 4 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. p. 47 30 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. op. cit. p. 115. 29 Na verdade, estamos sempre cercados e preenchidos pelo passado, pois este se refere tanto ao mbito da histria quanto ao da memria. Assim, ao mesmo tempo que temos conscincia que o passado coexiste com o presente, sabemos que se distingue dele. 31
Embora intimamente conhecido, o passado inacessvel na sua totalidade. Nesse sentido, seu carter depende de como ele apreendido. A memria, por sua vez, representa a base sobre a qual est fundada toda conscincia do passado. Assim, atravs das lembranas, torna-se possvel recuperar a conscincia de acontecimentos anteriores, distinguir as temporalidades do ontem e do hoje, bem como confirmar que j se viveu um passado. Todavia, assim como a histria, a memria tambm residual.
Por mais volumosas que sejam nossas recordaes, sabemos que so meros lampejos do que j foi um todo vivo. No importa quo vividamente relembrado ou reproduzido, o passado se torna progressivamente envolto em sombras, privado de sensaes, apagado pelo esquecimento. 32
Entretanto, a vida est impregnada de memria. Assim, dedicamos grande parte do nosso presente a rememorao de algum momento do passado. Segundo Lowenthal, apenas a concentrao numa ocupao imediata pode impedir o passado de vir espontaneamente mente. Desse modo, durante o tempo em que passamos despertos, so poucas as horas que so livres de recordaes ou lembranas. 33 No entanto, embora o passado possa vir espontaneamente nossa mente, as memrias que foram produzidas ao longo da pesquisa de campo constituem-se em memrias voluntrias; uma vez que elas foram, em grande medida, pensadas e articuladas para me serem ditas. Contudo, isto no significa dizer que
31 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. op. cit. pp. 65 e 66. 32 Idem, ibidem. pp. 74 e 75. 33 Idem, ibidem. p. 77. 30 as memrias voluntrias no estejam carregadas de memrias involuntrias. 34
Conquanto o passado relembrado seja tanto individual quanto coletivo, a memria como forma de conscincia absolutamente pessoal. Nesse sentido, Lowenthal lembra que precisamos das lembranas de outras pessoas tanto para confirmar as nossas prprias quanto para lhes dar continuidade. Desta forma, relembrar o passado torna-se fundamental para nosso sentido de identidade.
Relembrar o passado crucial para nosso sentido de identidade: saber o que fomos confirma o que somos. Nossa continuidade depende inteiramente da memria; recordar experincias passadas nos liga a nossos selves anteriores, por mais diferentes que tenhamos nos tornado. (...). A perda de memria destri a personalidade e priva a vida de significado. 35
Assim, ao atravessar os muitos tempos da memria atravs de suas recordaes, meus depoentes pareciam trazer o passado de volta vida. Desse modo, por existir simultaneamente com o presente, o passado, muitas vezes, parecia mais presente que o prprio presente. Na verdade, o contedo destas recordaes no representa a traduo literal do passado recordado; uma vez que o ato de recordar implica na ampliao de determinados acontecimentos, bem como na reinterpretao destes luz da experincia subseqente e da necessidade presente. 36
Portanto, no processo de interpretao dos fragmentos de memria e de sintetizao dos relatos colhidos, foi preciso estar atento para no considerar as memrias um discurso mais verdadeiro, mais prximo do que teria sido, supostamente, a verdadeira histria. Os relatos colhidos representam apenas um ponto de vista sobre o real, uma singularidade num dado campo discursivo e no uma realidade
34 Sobre memrias voluntrias e involuntrias ver: Durval Muniz de Albuquerque J r. Violar Memrias e gestar a Histria: Abordagem a uma problemtica fecunda que torna a tarefa do historiador um parto difcil. In. Clio Revista de Pesquisa Histrica da UFPE - n 15. Recife, Universitria, 1994. 35 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. op. cit. p. 83. 36 Idem, ibidem. pp. 92 e 97 [grifo do autor]. 31 individual, uma totalidade em si mesma. Dessa forma, por estar sujeita a constantes deslocamentos, as memrias no podem ser tomadas como a conservao pura do passado. 37
Portanto, se a memria no representa a conservao pura do passado, ela no pode ser entendida como sendo a histria em si mesma. Nesse sentido, Durval Muniz estabelece uma clara distino entre memria e Histria.
As memrias falam de outros apenas enquanto caminho para falar do prprio indivduo, a Histria trabalho de indivduos que querem conhecer o outro, interpret-lo. As memrias nascem de uma relao consigo mesmo, a Histria nasce de uma relao com o outro, com a alteridade. As memrias portanto constrem identidades, a Histria violenta identidades para descobri-las diferentes internamente. 38
Ao estabelecer, por sua vez, a diferena entre Histria e memria, Lowenthal esclarece que esta diferena no est apenas no modo como o conhecimento do passado adquirido e confirmado, mas tambm no modo como este conhecimento transmitido, preservado e alterado.
A preservao tambm distingue o conhecimento histrico. Considerando que a maioria das lembranas perece com seus portadores, a histria potencialmente imortal. De fato, preservar o conhecimento do passado uma das raisons dtre fundamentais da histria: tanto os relatos orais quanto os arquivos tm sido h muito preservados contra os lapsos da memria e o tempo devorador. A histria tambm menos aberta a modificaes do que a memria: as lembranas mudam continuamente para corresponder s necessidades presentes, mas o registro histrico resiste, at certo ponto, a distores. evidente que a histria continuamente revisada para dar conta de acontecimentos subseqentes e para ser compreensvel s novas geraes, mas os documentos escritos preservam virtualmente os dados como eles foram originalmente. 39
Assim, ao contrrio da memria, a histria o resultado da interveno dos conceitos no processo de elaborao de um passado que coexista com o presente do historiador. Sendo assim, a histria no
37 Durval Muniz de Albuquerque Jr. Violar Memrias e gestar a Histria: Abordagem a uma problemtica fecunda que torna a tarefa do historiador um parto difcil. op. cit. p. 40. 38 Idem, ibdem. pp. 49 e 50. 39 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. op. cit. p. 111. 32 passa de uma interpretao a posteriori do fato, de uma violao na medida em que o historiador est sempre emitindo juzos de valor sobre a vida de diferentes grupos e pessoas; os quais, quase sempre, buscam as diferenas uma vez que o passado na Histria construdo como uma diferena do presente. 40
Portanto, a experincia que vivi na pesquisa de campo, foi bastante significativa na medida que me possibilitou refletir sobre a viso tradicional que se tem da histria, a qual informa que esta matria lida exclusivamente com o passado e com os mortos. No entanto, atravs da interpretao da memria de pessoas vivas, percebi, de forma mais amide, que passado e presente perdem sua linearidade ao mesmo tempo em que se renem, produzindo uma nova dimenso temporal. Cabe ressaltar, ainda, que as histrias de vida, por serem infindveis, caracterizam a fonte oral como uma fonte de pesquisa incompleta, porm, viva. Nesse sentido, o dilogo nunca ser exaurido. As histrias recordadas so carregadas de subjetividade, no sendo, por isso mesmo, a traduo literal do passado porque so adaptadas s representaes atuais. 41
importante esclarecer, tambm, que a metodologia do trabalho foi sendo construda no processo da investigao e no anterior a ele. A cada etapa da pesquisa de campo, em virtude sobretudo da riqueza temtica que as entrevistas ofereciam, sentia-me estimulado a refletir sobre os objetivos do trabalho, revendo, assim, os passos percorridos at ento. Na verdade, no iniciei a pesquisa de campo tendo prontos os supostos do trabalho, embora tivesse como principal referncia a idia de juntar indcios suficientes para compor
40 Durval Muniz de Albuquerque Jr. Violar Memrias e gestar a Histria: Abordagem a uma problemtica fecunda que torna a tarefa do historiador um parto difcil. op. cit. pp. 48 e 49. 41 Segundo Alistair Thomson, (...) As histrias que relembramos no so representaes exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem s nossas identidades e aspiraes atuais. (...). Cf. Alistair Thomson. Recompondo a Memria: Questes sobre a relao entre a Histria Oral e as memrias. In. Projeto Histria: Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP. n 15. So Paulo, SP, 1997. p. 57.
33 outras memrias dos sertes que parecessem ou no inslitas a j cristalizada idia de serto lugar-comum da seca. Contudo, logo nas primeiras entrevistas, alguns temas se tornaram recorrentes enquanto a outros pouco se fazia referncia. Desta forma, na medida em que fui identificando alguns temas importantes para a construo do trabalho, passei a sugerir aos entrevistados, para que pudessem elaborar um discurso, os temas sobre os quais, ao meu ver, eles tinham muito a dizer. A cada descanso que fazia na travessia, procurava olhar o passado sempre das janelas que me eram abertas pelas falas dos entrevistados. Atravs das mltiplas janelas, algumas mais carcomidas pelo tempo, outras guardando ainda as cores, os cheiros e sabores do passado, procurei ver no apenas as aes dos homens, mulheres e crianas dos sertes, mas, tambm, as aes do Estado, da Igreja e das elites no cotidiano e no espao vivido dos camponeses. Muitas das vezes, porm, foi preciso buscar em outras fontes de pesquisa, especialmente nos jornais e nos Livros de Tombo da parquia de Russas, bem como na prpria historiografia, outros ngulos que me fizessem compreender o conjunto das situaes experienciadas por aqueles que me guiaram na travessia dos sertes do Baixo-Jaguaribe. Do ponto de vista metodolgico, a busca de outros suportes de pesquisa, possibilitaram-me inferir o quanto as fontes orais e escritas no so mutuamente excludentes, embora cada uma delas requeira instrumentos interpretativos diferentes e especficos. Aos historiadores, no apenas aqueles que trabalham com a oralidade, portanto, interessa compreender que a depreciao assim como a supervalorizao das fontes orais terminam por cancelar as qualidades especficas, tornando estas fontes ou meros suportes para fontes tradicionais escritas ou cura ilusria para todas as doenas. Segundo Alessandro Portelli, o nico e precioso elemento que as fontes orais tm sobre o historiador, e que nenhuma outra fonte possui em medida igual, a subjetividade do expositor. (...) Fontes orais contam-nos no apenas o que o povo fez, 34 mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez. (...). 42
Hoje, aps a concluso da pesquisa de campo, retorno s narrativas colhidas, buscando encontrar nelas os registros das emoes vividas por todos aqueles que compartilharam comigo no apenas seus dramas e incertezas, mas, sobretudo, suas alegrias e esperanas. Assim, ao folhear as pginas que condensam os fragmentos de suas memrias, percebo o quanto fascinante o passado dessas pessoas. Decerto, parte desse fascnio reside, justamente, no fato desses narradores, que fizeram parte do passado, ainda estarem presentes guardando com eles, para alm das marcas objetivas, os processos subjetivos que marcaram o passado pessoal e coletivo de todos eles. Ao longo, pois, de toda a travessia realizada pelos sertes do Baixo-Jaguaribe e pelos vrios tempos da memria de meus depoentes, foi possvel perceber que os discursos produzidos pelos sujeitos desta pesquisa nasceram da prpria vivncia camponesa marcada pela normalidade dos invernos, ou pelos fenmenos da seca e das grandes invernadas. Cabe ressaltar, no entanto, que esta vivncia, esta experincia de vida ainda transmitida atravs da oralidade, manifestando-se, tambm, em atitudes e comportamentos. Portanto, os captulos que compem o corpo deste trabalho esto fundamentados numa estreita articulao entre memria e experincia pessoal, na medida em que se reconhece que o ato de relembrar constri a memria da experincia e esta coletiva. 43 Gostaria de ressaltar, ainda, que, se durante a pesquisa de campo foram os camponeses que me guiaram na travessia, nesse momento eles sero por mim guiados. Enquanto narrador, sou agora uma das personagens e o contar da histria parte da histria que est sendo contada. 44
42 Alessandro Portelli. O que faz a histria oral diferente. op. cit. p. 26 e 31. 43 Estefnia Knotz C. Fraga. (Apresentao). In. Clia Toledo Lucena. Artes de lembrar e de inventar: (re) lembranas de migrantes. So Paulo: Arte & Cincia, 1999. 44 Alessandro Portelli. O que faz a histria oral diferente. op. cit. p. 38.
35 Na primeira parte da travessia que est dividida em seis paradas, seguiremos o itinerrio das prticas cotidianas que marcam a normalidade da vida camponesa. Na primeira parada, procuro perceber a relao subjetiva que os camponeses mantm com a natureza. O olhar busca apreender a maneira pela qual os mais simples dos sertes lem os sinais de inverno ou de seca - que a natureza lhes anuncia. Nas trs paradas seguintes, o olhar volta-se para a importncia que a terra, a mata, o rio, os audes e as lagoas tm na experincia de vida dos camponeses. Esses espaos so depositrios de desejos, prazeres e encantos que derivam dos sentidos que lhes so, cotidianamente, atribudos, pois na terra onde constri seus pequenos roados para o cultivo do feijo, do milho, das melancias, dos jerimuns... componentes bsicos da sua alimentao; na mata o lugar onde encontram a caa; e, nos rios, audes e lagoas que praticam as suas atividades pesqueiras, sobre as quais, com muita espirituosidade, destacam a sua dimenso ldica. A quinta parada encerra a travessia pelos sertes do trabalho. Nesta parada, procuro recompor pedaos do cotidiano de trabalho nas casas de farinha; nos locais de produo da cera de carnaba; nos seres de trana onde se produzia, com a palha da carnaba, bolsas e chapus; alm do cotidiano de trabalho de velhos vaqueiros e comboieiros. A sexta e ltima parada acontece nos sertes das festas de padroeiros, de casamento e dos sambas. Na segunda parte da travessia, privilegio as situaes que quebram, por assim dizer, a normalidade do cotidiano campons. Atravessaremos, pois, os sertes das secas, das cheias e das doenas. Na primeira parada, embora no me proponha a analisar a produo historiogrfica sobre a seca, procuro mostrar, a partir de algumas referncias, como, historicamente, construiu-se uma memria sobre o serto que o iguala seca. Por outro lado, a partir das memrias colhidas, procurei estabelecer um contraponto s imagens que os vrios discursos das elites cristalizaram em torno do serto nordestino. Na segunda parada, alm de procurar descrever as experincias vividas 36 nos perodos das cheias, procuro perceber como estas aparecem, nos discursos das elites da regio, acopladas mesma lgica dos discursos da seca. Na ltima parada, fao uma descrio da epidemia de malria que vitimou a regio do Baixo-Jaguaribe principalmente nos anos de 1937 e 1938, quebrando, assim, a normalidade do cotidiano campons. Na terceira e ltima parte da travessia, procuro refletir sobre a relao campo e cidade a partir dos significados que meus amigos de travessia atriburam a esses dois espaos. Na primeira parada, procuro descrever, a partir da noo de espao vivido, o apego que os camponeses demonstraram ter ao mundo rural. Por ser o contraponto desse lugar identitrio, no dizer de Marc Aug, a cidade abordada, na segunda parada, como um no-lugar para a maioria dos camponeses entrevistados. 45
Gostaria de ressaltar, desde j, que a travessia rica de surpresas, assim como, as situaes que foram vividas pelos narradores em cada um dos sertes revisitados por suas memrias. Espero, sinceramente, que as imagens dos sertes reencontrados pelas lembranas dos depoentes no representem a sua traio. Com esse desejo, pois, iniciaremos a travessia pelos sertes do Baixo-Jaguaribe.
45 Marc Auge. No-Lugares: introduo a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994. p. 51. 37 O campo o livro aberto da natureza, sem paginas vedadas, sem palavras subentendidas; (...), expondo-a sem vu aos olhos sem venda. Antnio Sales
Conquanto o mundo moderno tenha projetado a idia de uma natureza objetivada e externa ao prprio homem, a natureza possui uma srie de dimenses que transcendem a essa suposta racionalizao, objetivao da natureza. Portanto, essa diviso, fundamental no pensamento moderno, que separa o homem da natureza, d a idia de que a humanidade se faz na contramo da natureza, ou seja, quanto menos natural mais humano, mais civilizado. Contudo, na medida em que procurei compreender a maneira pela qual meus depoentes estruturam seus mundos, percebi que h uma indeterminao entre a natureza e este grupo de camponeses. Na verdade, os camponeses com os quais realizei esta pesquisa so pessoas que se pensam parte da natureza, que ainda esto, por assim dizer, imersos na natureza. Assim, no relato de suas memrias, a natureza no aparece objetivada, coisificada, mas, sim, humanizada; com a qual eles se comunicam e se relacionam afetivamente. Entretanto, no podemos pensar a relao homem, natureza e histria sem antes dizer que a perspectiva do conhecimento, que se tornou hegemnica a partir dos pressupostos tericos do Iluminismo, props a diviso entre sociedade e natureza. Por isto, foi bastante comum aos historiadores, de um modo geral, trabalhar dicotomicamente a cultura e a natureza. Portanto, a concepo de natureza passiva, subtrada da separao entre sujeito e objeto, dificilmente pode ser articulada com a cultura. 46
Contudo, verificamos que o desenvolvimento sem precedentes da pesquisa histrica nas duas ltimas dcadas tem
46 Cf. Telmo Marcon. "Cultura e Natureza: modos de vida caboclos do Goio-em (SC)". In. Projeto Histria: revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP. N. 18. So Paulo EDUC, 1999. pp. 319 e 320 e Maria Antonieta Antonacci. "Reservas Extrativistas no Acre e biodiversidade: relaes entre cultura e natureza". In. Projeto Histria n 18. op. cit. pp. 192 e 193. 38 estimulado, cada vez mais, a superarmos as concepes que colocam como plos opostos a cultura e a natureza. Para isto, preciso considerarmos a necessidade de atribuir novos sentidos relao homem, natureza e histria. Assim, visando expor os pressupostos que fundamentaram as percepes, os raciocnios e os sentimentos dos ingleses no incio do perodo moderno frente ao mundo natural, Keith Thomas destaca a importncia da relao homem/natureza para a reflexo dos historiadores em particular:
(...). O predomnio do homem sobre o mundo animal e vegetal foi e , afinal de contas, uma precondio bsica da histria humana. A forma como ele racionalizou e questionou tal predomnio constitui um tema vasto e inquietante, que nos ltimos anos recebeu bastante ateno por parte dos filsofos, telogos, gegrafos e crticos literrios. O assunto tem igualmente muito a oferecer aos historiadores, pois impossvel desemaranhar o que as pessoas pensavam no passado sobre as plantas e os animais daquilo que elas pensavam sobre si mesmas. 47
Desta forma, a natureza no deve ser pensada como plo oposto cultura, histria; ao contrrio, as concepes de natureza sempre foram produto das relaes dos povos com o mundo natural, em diferentes perodos. Desta forma, podemos dizer que a prpria natureza no em si mesma organizada, as leis que vemos na natureza a nossa inteligncia que as coloca. Assim sendo, a natureza histrica, porque ela significada pelos homens, ela construda pelos homens; no sendo, portanto, um dado original anterior ao prprio homem. 48
Compreendendo que a natureza no vazia de histria, procuro, nesta primeira parte do trabalho, elaborar uma interpretao das atitudes e sensibilidades dos camponeses do Baixo-Jaguaribe em
47 Keith Thomas. O homem e o mundo natural: mudanas de atitudes em relao s plantas e aos animais, 1500-1800. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 19. Segundo Thomas, verifica-se na Inglaterra entre os sculos XVI e XVII, uma mudana de sensibilidade em relao natureza. Contudo, o interesse pelo ambiente natural e as preocupaes com a relao entre o homem e as outras espcies so vistos como fenmenos recentes. 48 Segundo Durval Muniz, (...) Os objetos e experincias so produtos de nosso modo de experimentar, determinadas no tempo e no espao. Ou seja, se o verdadeiro o feito, demonstrar algo por meio de sua causa caus-lo. (...) Ns ordenamos e organizamos a causa. (...). Durval Muniz de Albuquerque J r. Histria: a arte de inventar o passado. s/d. p. 7. (mimeo). 39 relao s formas pelas quais exprimem o mundo natural. Nessa relao subjetiva com a natureza, podemos pensar o cu, a terra, a mata, os rios, os audes e as lagoas como elementos que integram a sua vida cotidiana, com quem compartilham o viver em todas as suas dimenses. 49
Segundo Bachelard, os espaos localizam-se, tambm, em nossas intimidades, uma vez que nosso inconsciente permanece nos locais onde nossas lembranas se concentram. 50 Nesse sentido, as relaes das pessoas com os lugares so tanto objetivas quanto subjetivas. Assim, o modo pelo qual as pessoas se apropriam dos espaos, transitam entre eles, vivem e atribuem significados, est ligado s necessidades do presente e aos hbitos, tradies e usos de tempos- espaos de outrora. Portanto preciso reconhecer a historicidade de espaos comuns para que se possa perceber a memria que as pessoas guardam deles, no que dizem respeito, no apenas s lutas cotidianas pela sobrevivncia, mas tambm, para o refinamento de seus talentos e habilidades. 51
Desta forma, a compreenso e a relao, que os camponeses tm e mantm com a natureza, est mediatizada pela experincia/cultura, no sendo possvel, portanto, pens-la como algo anterior ao homem, mas como uma natureza culturalizada. Assim, interpretar os sentidos que os mesmos atribuem aos modos de viver e trabalhar historicamente constitudos em seus espaos, possibilita-me perceber que os mesmos estabeleceram uma relao afetiva com o lugar e, mais precisamente, com o mundo natural que os cerca. Apreender e interpretar tais sentidos, possibilita-me refletir sobre as injunes entre espao e cultura, ou seja, como os espaos camponeses so, histrica e culturalmente, constitudos e como, a
49 Maria Antonieta Antonacci. "Reservas Extrativistas no Acre e biodiversidade: relaes entre cultura e natureza". In. Projeto Histria n 18. op. cit. p. 196. 50 Gaston Bachelard. A Potica do espao. op. cit. p. 29. 51 Denise Bernuzzi Santanna e Yara Aun Khoury. "Espao, J ustia Social e Culturas". In. Projeto Histria n 18. op. cit. p. 13.
40 partir da relao que os camponeses mantm com o mundo natural, expressam uma cultura que lhes tm permitido constituir modos de vida junto a uma natureza muitas das vezes inspita. Contudo, mais do que viverem juntos a essa natureza, eles esto integrados a ela de tal forma que se torna possvel identificar traos que marcam seus corpos, que do densidade aos seus costumes e que fornecem elementos para comporem seus valores e imaginrios. As memrias, colhidas junto a velhas e velhos camponeses, me fez pensar a natureza e o espao no como dados estticos, mas como processos em construo. Segundo Telmo Marcon, para pensarmos positivamente a relao cultura e natureza, no podemos desvincular a cultura da natureza e os sujeitos do espao.
A natureza e o espao no podem ser tomados, portanto, como dados estticos, precisam antes ser pensados como processos em construo. Essa perspectiva permite questionar toda uma tradio de reflexes e pesquisas desenvolvida por historiadores, gegrafos e antroplogos, entre outros, que desvincularam a cultura da natureza e os sujeitos dos espaos. Para repensar positivamente a relao cultura e natureza necessrio romper com a tradio que toma o espao como um dado a priori, independentemente da interveno dos sujeitos com seus costumes e tcnicas e que desconsidera as transformaes nele ocorridas, para pens-lo como construo social. 52
Pensando, pois, o espao como uma construo social, que Ivone Cordeiro Barbosa, apoiada em grande medida nas obras de Raymond Williams 53 , Keith Thomas 54 e Simon Schama, 55 procura refletir sobre a relao homem/natureza no serto do Cear, concebendo as maneiras de pensar o social e a natureza como atos de cultura. Assim, Ivone Cordeiro trabalha com o pressuposto de que a idia de serto foi e ainda construda; e no como um lugar j dado. Para isto, se contrape idia de lugar-comum atribuda ao serto cearense, ao
52 Telmo Marcon. "Cultura e Natureza: modos de vida caboclos do Goio-em (SC)". In. Projeto Histria n 18. op. cit. p. 321. 53 Raymond Williams. O campo e a cidade: na histria e na literatura. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. 54 Keith Thomas. O homem e o mundo natural: mudanas de atitudes em relao s plantas e aos animais, 1500-1800. op. cit. 55 Simon Schama. Paisagem e memria. op. cit. 41 mesmo tempo que procura v-lo como espao de ambigidades, de diferentes experincias e de variadas possibilidades de leitura. 56
Com essa perspectiva, procurei, atravs da oralidade de velhas e velhos camponeses atentar para os significados que eles atribuem aos espaos em que vivem, no apenas ao descrev-los, mas ao se pensarem como sujeitos histricos integrados vida social, bem como para as formas pelas quais expressam seus dilogos e intercmbios com a natureza. Para isto, no processo de desenvolvimento da pesquisa de campo, fui percebendo a necessidade de articular o tempo, o espao e as experincias de vida dos sujeitos da pesquisa, traduzidas em seus valores e modos de viver e produzir. Segundo Armand Frmont, a percepo uma das relaes mais fundamentais entre os homens e o espao em que vivem.
Porque, se o comportamento difere profundamente de acordo com as idades, os sexos, as situaes, os caracteres, como mostramos, se os espaos vividos, centrados em cada pessoa, so to numerosos, variados, multiformes quanto o podem ser os homens, a composio dessas percepes, desses comportamentos, no por isso regida pelo acaso absoluto: o espao vivido tambm parte integrante do condicionamento social. (...). 57
Portanto, no podemos pensar o espao natural como dado esttico, mas, como processo cujo tempo marcado por transformaes. Desta forma, faz-se necessrio, recuperar a dimenso de sua historicidade, para que possamos v-lo para alm das sombras que encobrem as suas linhas, embora estas sejam imaginrias, bem como escutarmos as falas no ouvidas, uma vez que no nos so endereadas atravs das palavras. Para isto, preciso um olhar atento, perspicaz, sobre as pessoas, os lugares e os objetos, como querendo decifrar o que no
56 Ivone Cordeiro Barbosa. Serto: um Lugar-Incomum: o serto do Cear na literatura do sculo XIX. Rio de J aneiro: Relume Dumar; Fortaleza, Ce: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado, 2000. pp. 20, 25 e 33. 57 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 109. 42 est exposto, o que se encontra nos esconderijos 58 da memria, dos sentidos e dos sentimentos. Mas, que muitas das vezes, num simples gesto que fala, numa simples palavra que escapa, em meio ao silncio, possibilita estabelecer um nvel maior de compreenso acerca do passado. Portanto, quando retorno regio do Baixo Jaguaribe, um prazer olhar as cidades; os campos; as vrzeas; a serra do Apodi; os rios, principalmente o Jaguaribe; os audes e as lagoas e poder ver para alm das paisagens do presente, as paisagens do pretrito. Paisagens, estas, recolhidas de textos antigos inscritos na memria de velhas e velhos camponeses cujas narrativas foram construdas a partir das suas experincias de vida e das lembranas de outros tempos vividos por seus familiares e amigos. So paisagens nascidas da experincia e das relaes que eles mantm com o meio fsico. Reter a fala, muitas das vezes espontnea e farta, desses homens e dessas mulheres significa, pois, compreender a direo sobre a qual pousam os seus olhares, atravs dos quais, podemos tambm dirigir nosso olhar para os locais que foram palco de vivncias reveladoras de dificuldades, de dramas e de tristezas, mas, tambm, de sonhos, desejos e amores poticos. Desta forma, suas histrias de vida constituem a melhor via de acesso compreenso e anlise da relao deles com o mundo natural, visto que o cotidiano campons tem, nessa relao, a principal referncia para sua organizao. Nesse sentido, acompanhar a historicidade dessas pessoas significa acompanhar a prpria historicidade do espao, uma vez que no tomamos o ambiente, em que vivem, como objeto, mas, como algo dotado de significado, como algo que culturalmente elaborado. Assim sendo, a forma pela qual, em suas narrativas, desenham e pintam os ambientes guardados pelas memrias, coloca ao
58 Esta expresso foi tomada de emprstimo Antonio Torres Montenegro. Histria oral e memria: a cultura oral revisitada. 3 ed. So Paulo: Contexto, 1994. 43 alcance do nosso entendimento a maneira como se relacionam com a terra, com as plantas, com as rvores, com os animais, com os insetos, com as aves, com o sol, com a lua, com as estrelas, com o vento, com as guas, enfim, com todos os cenrios naturais que pertencem s suas experincias individuais e coletivas. Ademais, a relao que os camponeses tm com a natureza reveladora da arte de viver no campo. Esta relao permite compreender melhor a sensibilidade camponesa, bem como os costumes que lhes so comuns. Desse modo, em todas as entrevistas, foram-me descritas as modalidades de apreciao e contemplao da natureza, assim como os hbitos cotidianos que modelam e do densidade a essa relao. Embora, a recapitulao de suas memrias exprima quase sempre o prazer nascido das vivncias de outros tempos, os camponeses falam da paisagem no apenas luz do passado, mas referindo-se ao presente, comentando as transformaes que ocorreram bem como as que esto ocorrendo no campo, as quais se traduzem na diluio, por assim dizer, da prpria identidade do homem campons. Assim, vejo que passado, presente e futuro se modificam nos desenhos das paisagens descritas pelas memrias. Decerto, o campo constitui-se o lugar por excelncia para se efetuar a leitura da multiplicidade dos ritmos temporais. Em seus relatos de memria, os depoentes testemunham a imensido, ao lembrarem das paisagens de outrora - os rios, audes, lagoas, os roados nos perodos dos adjuntos, os pastos, as casas de farinha, os carnaubais, os caminhos por onde passavam os comboieiros... A partir de agora, iniciarei a travessia pelos sertes do trabalho, seguindo o itinerrio das prticas cotidianas que marcam a relao dos sujeitos desta pesquisa com o mundo natural. Observ-los em suas condies de vida significou ter acesso senha de entrada no seu universo cultural a fim de proceder a uma observao das particularidades de seus hbitos. Assim, orientado por suas falas e 44 costumes, foi possvel encontr-los observando as estrelas, o sol, a lua, o vento; no roado trabalhando, na mata caando, nos rios, audes e lagoas pescando; enfim, nos lugares de suas memrias. 59
59 Esta expresso foi tomada de emprstimo Pierre Nora, para quem o sentimento de continuidade com o passado torna-se residual aos locais de preservao da memria. Cf. Pierre Nora. Entre Memria e Histria. A problemtica dos lugares. In. PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps- Graduados em Histria e de Histria da PUC-SP. n 10. So Paulo, 1981. 45 Primeira Parada: o campons e o mundo natural. 60
Eu gosto tanto da natureza, que dou nutia at do vento Joo Andr Filho (Foto 03 vista do Vale do Jaguaribe Chapada do Apod Quixer)
Havia, porm, dias mais propcios palestra; um magro acontecimento tinha a virtude de dar que fazer s lnguas durante horas a fio. Estava- se no comeo do ano, e a questo - haver inverno ou no? - supria todas as deficincias de assunto. Uns confiavam que sim, outros temiam que no. Tinha-se feito a experincia das nove pedras de sal e dava chuva em fevereiro. Entretanto, as serras ao longe amanheciam cinzentas e a lua no tinha lagoa, o que era mau sinal de tempo. Em compensao, relampeara ao sul e o aracati j no soprava noite sobre a cidade, o que indicava aguaceiros prximos. 61
Antnio Sales, a par de sua sensibilidade, revela como o homem simples do serto est sempre atento para compreender a
60 Nesta travessia, onze foram os guias: J oo Delfino Bezerra, J os Gomes Barbosa (Zeca de Raiel), J oo Martins de Souza, Amaro Jos da Silva, Joo Andr Filho, Francisco Giro Sobrinho (Chicada), Raimundo Mendes Martins, Eduardo Soares de Lima, Onofre Augusto dos Santos, Euclides ngelo Cordeiro, Francisco Abel Lino (Chico Abel), Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira), Raimundo Sabino da Silva e Pedro das Neves Cavalcante. 61 Antnio Sales. Aves de Arribao. Rio de J aneiro: J . Olympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras. 1979. p. 17.
46 flutuao das estaes, buscando na natureza sinais que possam ajud- lo a perceber melhor se a prxima estao ser seca ou invernosa. Assim, atravs da observao da natureza, os camponeses desenvolveram todo um conjunto de sinais que pudessem anunciar o advento de um bom inverno ou de uma estiagem, tornando possvel, assim, a preveno de seus males. Desta forma, atravs dos sinais que a natureza oferece, os camponeses procuram ler os desgnios divinos; uma vez que, para essas pessoas, o inverno e a seca so manifestaes da vontade de Deus. Portanto, os sentidos que os depoentes atriburam natureza, demonstram o quanto esta possui um carter sagrado. De maneira geral, dois elementos de referncia marcam o cotidiano dos camponeses: o ciclo da natureza, com a sucesso das estaes do ano, e o ciclo das comemoraes litrgicas do catolicismo. Segundo Alda Brito da Motta, as regularidades da natureza e as regularidades da religio combinam-se em funo do trabalho rural, da atividade humana sobre a natureza. 62
Desta forma, os camponeses, por serem profundamente influenciados pelo catolicismo, tm em algumas datas comemorativas aos santos uma referncia para observarem o comportamento do clima no dia reservado quele santo, fazendo, assim, suas experincias para os meses de inverno. 63
A partir do ms de dezembro os camponeses comeam a fazer as suas experincias com vistas a saber se chover ou no no ano vindouro. A treze de dezembro faz-se a experincia de Santa Luzia, a qual tem como principal referente a observao de algumas pedrinhas de sal.
62 Alda Brito da Motta. Notas sobre a viso de mundo do campons brasileiro. In. Revista de Cincias Sociais, v. X, n 1-2, Fortaleza, 1979. p. 54. 63 Utilizo o termo inverno em seu sentido regional, ou seja, para o nordestino, de modo geral, o inverno est diretamente associado ao perodo de chuvas na regio que, no caso do Cear, acontecem entre os meses de janeiro e maio. Essa forma prpria de caracterizar o inverno, representa, pois, o contraponto com a seca. 47 (...), muita gente tem a experina de trs peda de sal. Dia de Santa Luzia, bota numa talba trs peda de sal assim, num sabe? A, se no outo dia amanhecer escorrendo de uma peda pa outa um inverno muito bom; que num correr, seco. E teve um ano a que ela num escorreu e foi bom (risos). por isso que eu digo, eu num acredito nessas coisas, eu num acredito. Por isso que eu digo, tudo ... ... ... o camarada num advinha no, o segredo de Deus o camarada num advinha no. 64
Segundo Alfredo Macedo Gomes, um outro referente da experincia de Santa Luzia, consiste numa associao dos dias 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 do ms de dezembro com os meses do ano seguinte: 13-janeiro, 14-fevereiro, 15-maro, e assim por diante. O dia em que chover, indica que o ms associado ser de chuva; sendo assim indicativo de esperana. Caso passem aqueles dias sem chuvas, ser indicativo de um ano ruim, seco. 65
A rigor, quando o inverno comea escasso, os camponeses apelam para o dia 19 de maro, dia de So Jos 66 e data que marca a passagem do equincio, no qual se deposita a ltima esperana de inverno. No entanto, diferentemente das experincias de Santa Luzia, as quais pouco nos informam a respeito dos contedos de f ou de milagres que podem de uma forma ou de outra ser atribudos Santa, o dia de So Jos guarda significados mais precisos de renovao da f dos camponeses. 67 Cabe ressaltar, ainda, que as crenas em Santa Luzia e So Jos, entre outros, devem-se em grande parte Igreja Catlica na medida em que esta contribuiu para a fixao da idia de que a seca representava um castigo dado por Deus, em virtude dos pecados humanos.
64 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. Vivo e pai de dez filhos, o Sr. J oo Delfino mora na companhia de uma filha - com problemas mentais - e de uma cunhada. Apesar de possuir um pedao de terra que lhe permite plantar o feijo e o milho, o velho Joo Delfino tem na aposentadoria sua principal fonte de sobrevivncia. Quanto comunidade do canto da Cruz, encontra-se distante cerca de trs quilmetros da sede do municpio e est localizada nas margens do rio Palhano, o que permite, aos seus moradores, principalmente nos perodos de bons invernos, a prtica da pesca artesanal. 65 Alfredo Macedo Gomes. O imaginrio social da seca e suas implicaes para a mudana social. Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE. Recife: 1995. p. 190. 66 Padroeiro do Cear, So Jos simboliza a esperana de chuvas regulares nos sertes do Cear. A passagem do equincio, no entanto, serve de prenuncio para os metereologistas avaliarem a configurao do mapa pluviomtrico para poderem caracterizar as possibilidades de inverno ou de seca. 67 Alfredo Macedo Gomes. O imaginrio social da seca e suas implicaes para a mudana social. op. cit. pp. 191 e 193. 48 Assim, a Igreja Catlica, enquanto instituio social, acaba contribuindo ideologicamente para a manuteno da hegemonia social e da estrutura de poder, sobretudo nos perodos de seca, atravs da assistncia espiritual oferecida, por exemplo, pela celebrao de novenrios em honra do Patriarca S. Jos, bem como pela realizao de preces coletivas e de procisses.
Ano de N. Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e setenta e nove. Comea mais um tempo de incertezas na jornada de nossa vida paroquial. As perspectivas de chuvas escassas, pelo menos entrada do ano novo. (...) Em fevereiro apenas algumas chuvas escassas prenunciaram grandes revezes na agricultura. A festividade de N.Sra das Candeias proporcionou motivao para concorrncia de preces populares em prol das aflies dos pobres. Em maro, celebrou-se o novenrio em honra do Patriarca S. Jos com splicas por melhores chuvas. Algumas chuvadas ligeiras com vento e sintomas de seca declarada pela prpria natureza. 68
Tanto a celebrao do novenrio em honra de So Jos, Padroeiro do Cear, como a festividade em homenagem a N.Sra das Candeias representam uma possibilidade de acesso aos ensinamentos religiosos, cujos princpios so incorporados no cotidiano das vivncias camponesas. Por outro lado, ainda, a busca de uma relao entre os eventos da natureza e o calendrio religioso em prol do trabalho rural, traduz, clara e duplamente, a cadeia de devoes e a rede de bnos e obrigaes em que esto inseridos os camponeses. Para Durval Muniz, a influncia do catolicismo popular foi fundamental para a composio de uma personalidade, at certo ponto resignada, com a qual o homem pobre do serto enfrentava a pobreza, o sofrimento e os flagelos da seca. 69
Ao narrar as dificuldades vividas ao lado de sua famlia durante a seca de 1942, o Sr. Jos Gomes Barbosa ao mesmo tempo
68 Parquia de Russas - Livro de Tombo n IX. p. 46. 69 Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877 a 1922). Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UNICAMP. Campinas-SP. 1988. p. 113.
49 que demonstra a alterao sofrida pelo cotidiano campons marcado pelo trabalho agrcola em virtude da crise climtica, nos d exemplo da resignao e da esperana que o campons tem em Deus. Em sua narrativa, o velho Zeca de Raiel, como mais conhecido, contou-me da disposio que sentiu de ir simbora po Amazona 70 na companhia do seu irmo e compadre Petronlio. Decidido a conquistar a Amaznia, seu Zeca de Raiel vendeu tudo quanto tinha, ou seja, trs reizinha, um cavalim e uns quato burrim. Na verdade, seu Zeca s tinha ficado com o galo do terreiro que era para comer na hora de sair, n?. No entanto, apesar de estar tudo preparado para a primeira parte da viagem, que era at Fortaleza, a qual seria realizada no misto de Luizim Cabao, seu Zeca foi convencido por um outro irmo o Raimundo a desistir de to longa e incerta viagem. As razes apresentadas pelo irmo, eram, na verdade, muito simples, porm, de muito significado na cultura camponesa. Segundo seu irmo Raimundo, estava to bunito pa riba, rapaz, truvejando acul pa riba, duma hora pa outa Deus manda. Persuadido pelo discurso e, sobretudo, pela esperana do irmo, seu Zeca de Raiel decidiu: eu num vou mais no, acabou-se a minha viagem. Eu vou ficar aqui, confiar em Deus, e ns escapa aqui mermo no Arraial. (...). A, eu fui l pra Petronlio. Cheguei l, eu digo: - (...), compade, eu resolvi num ir mais po Amazona no, eu vou ficar po aqui, confiar em Deus que a gente escapa. A, ele ficou int concordado. 71
70 Devido as complicaes econmicas decorrentes da Segunda Guerra Mundial, que colocava para os pases aliados o problema do abastecimento de borracha, produto de suma importncia na fabricao de veculos, pneus e armamentos em geral, sua obteno transformou-se numa questo fundamental para o Brasil. Com isto, segundo os discursos oficiais, os seringais da Amaznia precisavam, com a mxima urgncia, ser povoados. Essa necessidade, fez o governo criar em novembro de 1942 o SEMTA (Servio Especial de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia), embora a emigrao para o Norte j houvesse sido iniciada, sob a coordenao do Conselho de Imigrao e Colonizao do Brasil em cooperao com a Delegacia Regional do Trabalho. Segundo Frederico de Castro Neves, o objetivo do SEMTA era alistar e recrutar trabalhadores para a Batalha da Borracha. A especial coincidncia de tais efeitos e necessidades da guerra com a ecloso de mais uma seca fez com que a sede do novo rgo fosse sintomaticamente instalada em Fortaleza, onde mais facilmente se poderiam encontrar flagelados candidatos a seringueiros. A propaganda, vai ser um importante aliado so SEMTA na mobilizao dos flagelados da seca. Alm dos programas radiofnicos dirios, era comum v-se, pelas ruas de Fortaleza, os desfiles dos soldados da borracha. Este tipo de manifestao pblica contribua, em grande medida, para a formao de uma adeso em massa emigrao para os seringais da Amaznia. Cf. Frederico de Castro Neves. A Multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. Rio de J aneiro: Relume Dumar; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto. 2000. pp. 148, 149 e 150. 71 Embora seu irmo Petronlio tenha prosseguido com a idia de ir para a Amaznia, muito mais por influncia da mulher, no chegou a ir alm de Fortaleza; uma vez que ele resolveu ficar morando nesta cidade, onde arranjou emprego num curtume e botou os filhos para estudar e vender verdura nas ruas. Passados cinqenta e oito anos, Seu Zeca fez questo de ressaltar, com orgulho, que Adelita, filha do seu 50 Segundo Maria Aparecida Junqueira, 72 a partir da segunda metade do sculo XIX, um novo modelo eclesial catlico, o ultramontanismo, de razes conservadoras, comeou a ser implantado no Brasil com vistas a reproduzir, nas mais distantes clulas paroquiais, a rigidez hierrquica que, segundo os pontfices romanos, desde Gregrio XVI at Pio XII, constitua-se na fora mantedora da unidade da Igreja. No obstante, essa rigidez hierrquica, engendrada por uma concepo medieval do universo, que recusava, inclusive, o contato com o mundo moderno, no foi capaz de por fim ao catolicismo popular como nos esclarece Junqueira.
O catolicismo popular permaneceu vivo em amplas camadas da populao, nos subterrneos religiosos populares que no entendiam o latim, mas que continuaram entoando-o nas trezenas em louvor a Santo Antnio ou no ms de Maria, repetindo as ladainhas, numa circularidade entre a cultura erudita e a cultura popular. Continuou presente, no devocionrio de todos aqueles que encontram no divino um lenitivo para o seu sofrimento e uma esperana para seus desejos. O sentido da vida, do trabalho, do amor, da famlia, da morte, que para muitos brasileiros est ligado a um campo simblico religioso, faz com que populares, cujas clivagens culturais no so coincidentes com sua estratificao social, sejam refratrios a distinguir o sagrado do profano, relutando em separar o que para eles sempre fora uma homenagem completa e ambivalente. 73
Embora o ordenamento ultramontano, que buscava a unidade de toda a Igreja Catlica, tenha sido uma utopia, no se pode desconsiderar que este provocou mudanas nas prticas do catolicismo brasileiro. Todavia, como observa Junqueira, 74 as outras formas de religiosidade se confrontaram e as camadas populares no se constituram em receptculo passivo. Ao contrrio, nos discursos camponeses, ficou
irmo Petronlio, hoje advogada e juza. J os Gomes Barbosa (Zeca de Raiel), 82 anos. Entrevista gravada na comunidade do Tracoen, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. Morando no Tracoen h cerca de trinta anos, o Sr. Zeca de Raiel vive na companhia de sua esposa Marieta. Em sua entrevista, revelou que comprou, com ajuda do seu filho Garcia que tinha vindo embora do Rio de J aneiro, um terreno que lhe permite criar algumas cabeas de gado, bem como plantar o feijo e o milho. A exemplo dos demais entrevistados, o velho casal sobrevive da aposentadoria que recebe. A comunidade do Tracoen, uma espcie de vila, encontra-se distante cerca de oito quilmetro da cidade de Itaiaba. 72 Maria Aparecida J unqueira Veiga Gaeta. A Cultura Clerical e a Folia Popular. In. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 17, n 34, 1997. pp. 185 e 186. 73 Idem, ibidem, p. 199. 74 Idem, ibidem, p. 199. 51 evidente as trilhas e as astcias, por eles utilizadas, no sentido de adequar os textos e discursos religiosos s suas experincias de vida. 75
As conversas cotidianas, sobretudo aquelas realizadas boquinha da noite, quando o cu do serto quase sempre fica espanado de nuvens, projetam um conjunto de saberes metereolgicos alicerados sobre experincias passadas trazidas - muitas das vezes - dos antigos. Nas lembranas contadas, esto contidas aquelas que foram transmitidas pelos mais velhos, o que sempre garante, a essas conversas, um vnculo entre passado e presente. Nesse sentido, atravs dos relatos colhidos, foi-me possvel perceber indcios deste processo de transmisso oral e de sustentao da memria familiar transmitida de gerao a gerao nas conversas em famlia cujo mote principal o repisar de velhos causos.
(...), meu pai ele era velho experiente. Pois bem, papai era um homem experiente, ele tinha aquelas base dele s vezes pelos planetas, s vezes tambm pelos insetos, as rvores, e ele sempre dizia alguma coisa sobre o tempo, quando o tempo era mais favorvel e quando o tempo era infavorvel. Eu me lembro muito em 42 quando chegou a dizer a ns mais velhos, os trs rapazes, que podia caar que o ano ia ser seco, (...). Eu tambm com a tradio que vem dos meus pais eu vinha prestando, prestando ateno no (...) sair do sol do dia de Natal, a barra do dia de Natal, a lua cheia de janeiro se ela ia sair coberta n, tambm isso um sinal e traz tambm a uma f para o inverno. Agora hoje, a gente vendo que as coisas tudo t mudando eu j tou me apegando muito pelas aves, e pela formiga, e pela abelha. 76
75 Segundo Michel de Certeau, a cultura (...) se desenvolve no elemento de tenses, e muitas vezes de violncias, a quem fornece equilbrios simblicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou menos temporrios. As tticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vo desembocar ento em uma politizao das prticas cotidianas. Cf. Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. op. cit. p. 45. 76 J oo Martins de Souza. Entrevista gravada na comunidade do Peixe, no municpio de Russas, no dia 19 de maro de 1997. Pai de dez filhos, dos quais apenas cinco esto vivos, o Sr. J oo Martins aposentado e proprietrio de cinco hectres de terra onde costuma plantar, no perodo do inverno, feijo e milho. Dentre seus filhos, quatro (mulheres) moram na cidade de So Paulo e um (homem) prximo de sua casa. Distante dezoito quilmetro da cidade de Russas, a comunidade do Peixe dispe de energia eltrica, de um posto de sade, de uma escola de ensino fundamental e de uma caixa dgua que abastece a comunidade. Distante da rea de influncia do rio J aguaribe, a comunidade do Peixe tem no aude do Barraco, cerca de seis quilmetros de distncia, o reservatrio de gua mais prximo.
52 A fala do Sr. Joo Martins de Souza revela como os camponeses interrogam o futuro a partir de um conjunto de saberes construdos ao longo de suas experincias de vida, atravs da observao sistemtica de vrios elementos da natureza. Desta forma, a natureza e a percepo humana no so campos distintos; mas, inseparveis. Afinal, como diz Simom Schama, a natureza selvagem no demarca a si mesma, no se nomeia, e, tampouco, venera a si mesma. Nesse sentido, a presena do homem, com toda a sua bagagem cultural, faz- se sentir no prprio ato de identificar o local. 77
Desse ponto de vista, pude perceber que a prtica sistemtica de observao do movimento dos astros (o sol, as estrelas, a lua), das rvores, dos insetos, dos passaros, do vento..., essa diversidade de fenmenos observados presentes na fala do Sr. Joo Martins, representa, em grande medida, a base do conhecimento campons a respeito no apenas das possibilidades de ocorrncias de chuvas ou de seca, mas, do prprio espao em que vive. Ademais, no contexto da cultura camponesa, o meio ambiente faz-se presente na constituio de hbitos, valores e costumes construdos e reconstrudos nas prprias vivncias cotidianas. Desta forma, podemos dizer que o cotidiano campons tanto no que diz respeito sua regularidade marcada pelo trabalho agrcola - quanto naquelas situaes em que se observa uma quebra dessa normalidade perodos de grandes secas ou pelos grandes invernos -, est condicionado aos ritmos da natureza. Como observa Charles d Almeida Santana, a intimidade do homem do campo com a natureza no significa a comprovao de sua inferioridade.
Para desagrado de alguns autores, as evidncias com as quais lidei, durante toda a pesquisa, no autorizam a leitura dessa intimidade do
77 Segundo Simon Chama, (...) se a viso que uma criana tem da natureza j pode comportar lembranas, mitos e significados complexos, muito mais elaborada a moldura atravs da qual nossos olhos adultos contemplam a paisagem. Pois, conquanto estejamos habituados a situar a natureza e a percepo humana em dois campos distintos, na verdade elas so inseparveis. Antes de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem obra da mente. Compe-se tanto de camadas de lembranas quanto de estratos de rochas. Cf. Simon Schama. Paisagem e memria. op. cit. pp. 16 e 17. 53 homem do campo com a natureza como comprovao de sua inferioridade. Muito pelo contrrio! exatamente na sintonia possvel entre o homem e o meio ambiente que a inteligncia do trabalhador adquire visibilidade. (...). 78
O conhecimento emprico desenvolvido em torno do ambiente natural que os cercam, traduz-se em vrias outras experincias de inverno ou de seca. Assim, os camponeses tambm costumam acordar mais cedo, ao alvorecer do dia de Natal e do primeiro dia do ano, para observarem no nascente a existncia ou no de uma barra escura que venha cobrir uma grande extenso do horizonte. A presena da barra, significa o prenncio de uma boa estao invernosa; caso no se apresente, cria-se uma expectativa que vai ocorrer uma seca. Portanto, a experincia consiste na observao das barras de Natal e de ano novo respectivamente. 79
Indagado se tinha alguma experincia de inverno, o Sr. Amaro Jos da Silva diz ter apenas a experincia do sol de janeiro, a qual consiste em observar se o sol, nos primeiros seis dias do ano, surge alto no nascente. Caso isto acontea, ser um forte indicativo de que o ano ir ser bom de inverno. Contudo, o velho Amaro observa que esta no era a experincia primeira.
(...). A experincia primeira, o povo num tinha essa do sol, era s do nuvuar, chover, passar librina de chuva naqueles seis dia. Aquele que nuvuava mais, o inverno era maior; o que nuvuava meno, o inverno era meno. 80
No obstante, em sua longa narrativa, seu Amaro contou que passou a realizar esta experincia que consiste em observar se o
78 Charles dAlmeida Santana. Farturas e Venturas camponesas: trabalho, cotidiano e migraes: Bahia 1950-1980. So Paulo: Annablume, 1998. pp. 37 e 38. 79 Alfredo Macedo Gomes. O imaginrio social da seca e suas implicaes para a mudana social. op. cit. p. 196. 80 Amaro J os da Silva, 90 anos. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferro, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. Vivo, o Sr. Amaro reside, sozinho, numa pequena casa de taipa e sobrevive, basicamente, da aposentadoria que recebe. Distante cerca de seis quilmetros da cidade de Itaiaba, a comunidade do Alto do Ferro por estar localizada dentro da rea de influncia do rio J aguaribe - cerca de cinco quilmetros de distncia do seu leito -, encontra-se cercada por centenas de carnaubeiras que compem a mata ciliar que margeia todo o leito do rio.
54 sol, nos seis primeiros dias do ms de janeiro, surge alto no nascente, a partir do ano de 1963 enquanto trabalhava l na casa do Z Maria, l no Camorim, cozinhando o p, que era extrado da palha da carnaba, para a fabricao da cera de carnaba. Segundo seu Amaro, nos primeiros dias do ms de janeiro deste ano, o dia amanhecia com o sol limpo que s o corao de Maria, que num tinha nuvem pra canto nenhum. De acordo com a experincia primeira, o dia amanhecer evidenciando o azul celeste do cu, sem nenhuma nuvem que pudesse, ao menos, servir de sombra, representava um forte indcio de que o ano seria escasso de chuvas.
E eu cozinhando a minha cera. Eu digo: - seu Antnio, o prximo ano seco, para o ano seco. Ele disse: - porque voc diz isso? Nosso Senhor vei lhe dizer? No! Voc conversou com Deus? No, mas ! Olhe a experincia do sol a e o dia. O sol limpim, alvo, mas alvo que a gente olhava assim num agentava um pedacim. Eu digo: , esse ano seco. Ele disse: - no, seco no. A, passei o ferro cozinhando todo dia, todo dia, a acabei o meu. Na semana, fui comear no dele. Quando deu seis dia, tudo alvo o sol, tudo... todo os seis... num teve... teve algum dia que apareceu umas nuvem branca praqui e pracol bem longe uma da outa. E eu dizendo o vi, seco. (...). Voc t doido!
No entanto, o dono da casa de cozinhamento de cera, o Sr. Z Maria, no s questionava a validade desta experincia, como afirmava que seu Amaro iria concluir o trabalho de cozinhamento do p utilizando-se da gua da chuva que se acumularia num barreiro prximo casa onde seu Amaro estava trabalhando.
Quando foi o derradeiro dia do cozinhamento do p, eu digo: - se apronte... E o vi dizendo: - voc ainda vai acabar o meu cozinhamento aqui... Tinha um barreiro por o lado de baixo da casa de cera, tinha um barreiro grande que inchia d'gua, n? Voc... A gente passava meses cozinhando cera l pelo inverno com gua desse barreiro. Voc ainda vai acabar o meu cozinhamento aqui com gua desse barreiro.Eu digo: compade, eu acho que no. Porque eu num vi um sinal aqui que eu achasse bom pa inverno.
Todavia, confessa o velho Amaro, quando foi bem pelo dia sete de janeiro comeou a chover com tanta intensidade que foi necessrio parar com o cozinhamento do p da palha da carnaba, em virtude de 55 no ter colocado uma quantidade maior de lenha, que seria utilizada no forno, para dentro da casa.
Nesse dia mermo, quando foi bem pelo dia sete de setembro, como , de janeiro, pegou a juntar-se umas nuvem que nem t essa por ali, mas mais escura, num era branca assim no, e foi se ajuntando rapaz, mas veio um p d'gua , um p d'gua de jeito. Choveu, choveu, quando acabou de chover o barreiro chega tava despejando assim pa dento do cercado dele. E eu l, rapaz, era tanta chuva que eu parei o cozinhamento mode a lenha. Eu num sabia que ia chover daquele jeito, a lenha que tinha butado pa dento de casa era pouquinha. Ai, eu digo: - no, eu parar que eu num vou buscar lenha pa butar de baixo; e mermo, num pudia butar que a boca do forno era assim po lado de fora, butava por fora. A, quando a chuva passou l vem o vi todo satisfeito, todo contente, diz: - Ah! rapaz, eu num lhe disse que voc ia terminar essa minha era com chuva, vai chuver e muito. Dessa vez, choveu at o fim do ms. Choveu, que fez gosto. Mas, choveu mermo. Foi inverno.
Segundo o Sr. Amaro, se nos seis primeiros dias do ano o sol surgir alto no nascente, nem que seja im janeiro chove. Esta certeza, no entanto, decorre da observao continuada do sol de janeiro que o Sr. Amaro vem experenciando desde 1963. Tambm comum nas noites escuras do serto, a sua gente sair ao terreiro da casa para observar a luz silenciosa da lua e das estrelas, enquanto conversam sobre fatos geralmente sobrecarregados de incidentes e com a mincia de detalhes que lhes peculiar. 81 Entre um assunto e outro, procuram no cu estrelado, a presena dos planetas, do Sete-Estrelo, das trs Maria, do Cruzeiro do Sul, dos trs Reis Magos e da estrela D'Alva, a qual, dentre os astros, a que possui um maior significado na cultura camponesa, uma vez que representa um planeta de muita influncia no destino daqueles que a observam.
Eu tenho umas coisa que sempre me regia um pouco de inverno, tenho os praneta, n? Tenho os praneta que... Melhor, um praneta predificado que no mente pra inverno, num mente mermo no, a nossa estrela D'Alva. Ela, ela num mente no. Agora quem quiser que se dirija por ela, quem quiser que tenha idia dela. Se eu tenho, porque j truce da minha mininia que via meu pai e padrinho, o dito padrim que eu tava dizendo a voc, que ele (...) orientava a gente que a estrela D'Alva era o
81 Segundo Domingos Olympio, os sertanejos ladinos so, em geral, admirveis narradores, de imaginao acesa, fecundos em descrio, cujos menores incidentes so debuxados com vigor. Cf. Domingos Olympio. Luzia-Homem. EDIOURO Coleo Prestgio. p. 106. 56 praneta que dizia como era o inverno. Eu me regia munto pa... vim entendendo, passei pa adulto e fiquei com ela em mira, n? Quando pra num haver inverno, (...) a estrela D'Alva diz a gente; ela d o sentido como , t vendo? Ela num... o regime dela de. A estrela D'Alva no sul, tanto faz t no nascente como no inverno pa... pa... pa seca ela num mente no, num mente no poente no tem inverno no Nordeste porque Deus num quer. Que tem muntos anos que eu tem... digo eu, meus pai, padrinhos, muntos sculo que j vinho trazendo essa experina, n? (...). Ela pode sair, ela pode sair no sul, ela pode passar e se apresentar aqui na entrada da noite no sul num estirado ligeiro... Toda noite ela descendo para o norte, ora, quando ela tiver em mei de camim j pode pegar o inverno. Mas, se ela prantar-se l num tem inverno porque Deus num quer; mas num tem mermo e pronto. A uma garantia, j sabe. (...). A natureza muito importante. (...). Um praneta governar o Nordeste, sost. A chuva dada por Deus, mas voc j sabe que tem um praneta que governa. Olha, muito importante, n? (...). Um praneta governar o Nordeste, sost. A chuva dada por Deus, mas voc j sabe que tem um praneta que gonverna. 82
Interessante observar na fala do Sr. Joo Andr Filho a certeza que ele e os camponeses, de um modo geral, tm de que a estrela D'Alva no mente. No entanto, essa certeza ele traz no s da sua vivncia, mas de outros tempos quando na sua meninia recebia do pai e do padrinho os ensinamentos de que o Nordeste governado por essa estrela, pois ela que d o sentido de inverno e de seca conforme a sua localizao. O segredo dessa experincia est em saber se a estrela D'Alva se apresenta no incio da noite governando no poente ou no nascente. Caso ela governe no poente tem-se a certeza de que o ano seguinte ser bom de inverno; caso governe no nascente, o ano ser seco. Nas entrevistas, as referncias aos planetas foram com freqncia recorrentes. Estes so tomados como sinal que prenuncia o que os camponeses podem esperar da prxima estao de acordo com a localizao no espao celeste. Assim como as estrelas que parecem brilhar com mais intensidade na sombra imensa que o cu campons, a lua, quando aparece erguida no horizonte, torna-se no s objeto de contemplao
82 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 18/08/1999. Pai de quinze filhos, o Sr. Joo Andr reside, na companhia de sua esposa e de alguns filhos, na cidade de J aguaruana desde 1979.
57 para as almas amorosas que em sua luz se banham e segredam seus amores, mas igualmente interrogada sobre as possibilidades de inverno para o ano vindouro.
Da lua cheia, fazendo... fazendo barra trs dia, no tem chuva naquele ms. Por isso, que eu t com medo desse [ano de 2000]. Foi bem fraquinha a lua na barra, (...). E a barra de nascimento, tambm os antigo tinha essa experincia da barra de nascimento, n? Esse ano, esse ano teve boa. Tudo isso t bom, cad? 83
Todavia, no s os astros representam um pressgio confivel para os camponeses. Tambm so muitas as experincias em que as rvores esto presentes como base emprica para as suas observaes.
Eu tenho a histria da carnaba. Que a carnaba carregando... tinha tambm essa histria da carnaba. Tinha a histria da arueira. Mas, da arueira, eu num sei se algum viu ela carregada, n? A gente tudo, a gente tinha essa... Agora uma que eu gostava muito de prestar a ateno era o juazeiro. O juazeiro, num t mais nem... num t mais nem ramano, num t mais nem caindo a folha do... do... a folha velha (...). Do pau d'arco eu tambm num sei , aqui tambm num tem. Acabaro com tudim, n? Mas, diz o rapaz que pra... justamente pra acol tem inverno, pra banda daquela serra da acol, do Olho D'gua. Pra acol tem inverno. pra acol tem muito, fulor muito pau d'arco. Mas, aqui ningum tem mais. 84
Atravs da renovao cclica das rvores, a natureza anuncia sinais que so apreendidos e interpretados pelo homem do campo como anunciadores ou no do que eles chamam de um bom tempo, um tempo de fartura. Nesse sentido, esto sempre atentos para observarem o perodo em que floram e carregam as carnabas, as arueiras, os juazeiros, os pau d'arcos, entre outras rvores. Com efeito,
83 Francisco Giro Sobrinho (Chicada). Entrevista gravada na comunidade da Palestina, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. Proprietrio de cinqenta hectares de terra e de algumas cabeas de gado, seu Chicada, entre todos os entrevistados, foi um dos que apresentou melhor condio de vida. Quanto comunidade da Palestina, encontra-se distante cerca de sete quilmetros do centro da cidade de Morada Nova e composta por algumas poucas casas situadas a menos de dois quilmetro de distncia do leito do rio Banabui. Dentre as poucas casas existentes na comunidade, uma pertence ao seu Chicada, onde mora com sua esposa, e outra a sua filha. 84 Francisco Giro Sobrinho (Chicada). Entrevista gravada na comunidade da Palestina, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
58 quando as rvores ganham nova folhagem sinal que a natureza est se renovando, o que representa um bom sinal para o prximo inverno. Uma vez isso no acontecendo, despertada a ateno dos camponeses para a descontinuidade da lgica que eles atribuem natureza e sobre a qual se fundamenta e se sustenta o seu conhecimento. Essas prticas que tomam as plantas como observatrio da inconsciente proliferao da vida, tm como propsito a revelao da sorte humana a qual pode ser prevista pelas plantas. No obstante, o grau de percepo e de comportamento que os camponeses tm diante das plantas, em geral, corresponde tambm produo e transmisso oral de um amplo saber acerca das propriedades benficas das mesmas. 85 comum se observar entre os camponeses o conhecimento e as prticas voltadas para a cura de doenas atravs de rezas e da manipulao de remdios caseiros, como chs, ungentos e simpatias, produzidos com ervas cultivadas em grande medida no prprio terreiro da casa. A capacidade que os camponeses possuem de apreender e decifrar os pressgios que emanam da natureza, demonstra o quanto a experincia de vida desses sujeitos est forjada numa forte relao com o mundo natural, que chega a estabelecer uma intimidade entre a natureza submetida ao trabalho humano e os homens sujeitos aos ritmos da natureza. 86
Segundo o Sr. Raimundo Mendes Martins, um outro indcio bastante confivel o movimento das formigas principalmente no final do ano. Neste perodo, quando as formigas comeam a construir os seus formigueiros mais prximos dos baixios um sinal de que o ano vindouro vai ser escasso de chuvas. Doutra forma, quando elas comeam a subir, a se colocarem em um terreno mais alto, significa que o tempo ser favorvel ao inverno.
85 Keith Thomas. O homem e o mundo natural: mudanas de atitudes em relao s plantas e aos animais, 1500-1800. op. cit. pp. 85, 86 e 90. 86 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 213. 59 Antigamente, o camarada tinha muita experincia. O camarada andava... Hoje no... O camarada andava com um nego, o arrieiro do comboio. O nego chegou no arranche, a o senhor mandou ele ajeitar os bicho. Depois, ele chegou: - Patro, t bom de ir pidir o dono da casa pa guardar o comboio. - Mas, o tempo limpo desse jeito? - Num t dizendo, num t mandando guardar. A, o home foi s... guardou. Pidiu o caixo pa guardar o comboio. A, mais tarde, chegou um no meio do terreiro. A, o nego disse: - O Sr. vai deixar o comboio a no meio do terreiro? - Vou, num vai chover de jeito nenhum; t limpo, n? - Num sei no! Quando deu de madrugada, aja gua (risos). A experincia do nego, viu? A, o patro dele... - Que experincia voc tem nego? - Rapaz, eu vi as furmiguinha carregando os fi prum canto, pra outo, carregando os fi, carregando os fi; sinal de chuva logo, . E mermo! Quando voc ver as furmiguinha carregar os fi, levar pra outo canto, sinal de chuva mermo. S num sabe ns, mas, os inocente sabe. 87
Os movimentos das formigas, das aves, das abelhas so indicativos de que haver ou no um bom inverno. O Sr. Joo Martins de Souza, 88 por exemplo, afirma que nunca viu um ano favorvel inverno sem uma grande presena de abelhas nas proximidades das casas e dos roados. Em contrapartida, quando o inverno vai ser escasso, as abelhas tendem a fugir, a migrar. No obstante, as experincias transcendem as fronteiras do territrio campons. O Sr. Eduardo Soares, 89 por exemplo, lembra que
87 Raimundo Mendes Martins, 92 anos. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000. Entre todos os entrevistados, o Sr. Raimundo Mendes foi um dos que mais se emocionou no processo de rememorao de seu passado, sobretudo quando relembrou as dificuldades que viveu ao lado de seus pais nas secas de 1915 e 1919. Proprietrio de dois hectares de terra, o seu Raimundo mora em uma pequena casa de alvenaria na companhia de sua esposa Eullia, 94 anos de idade, sobrevivendo, ambos, da aposentadoria que recebem. A comunidade dipe de energia eltrica e encontra-se distante cerca de quatro quilmetros da cidade de Tabuleiro do Norte, estando, ainda, localizada na rea de influncia do rio Jaguaribe, numa distncia de aproximadamente sete quilmetros do seu leito. A origem da comunidade da Aldeia Velha est num antigo aldeamento indgena que foi institudo aps a chamada Guerra dos Barbaros (1687-1692), com o objetivo de reunir os fragmentos das diversas tribos derrotadas. 88 J oo Martins de Souza. Entrevista gravada na comunidade do Peixe, no municpio de Russas, no dia 19/03/2000. 89 Eduardo Soares de Lima, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 28/08/1999. Natural de Redeno-Ce, o Sr. Eduardo veio morar na antiga Lagoa das Bestas, hoje Lagoa de Santa Teresinha, em dezembro de 1965. Morando com sua esposa e dois filhos numa pequena casa de alvenaria - a maioria das casas da comunidade so de taipa seu Eduardo possui quarenta e oito hectares de terra onde planta feijo e milho, alm de criar algumas cabeas de gado. Uma pequena parte de sua propriedade ocupada pela famlia de D. Estelita Crispim Gomes. Embora esteja na condio de moradora, a famlia de D. Estelita no paga qualquer tipo de renda pela ocupao e produo das terras. Distante cerca de dezesseis quilmetros da cidade de Russas, a comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, por estar situada numa rea de caatinga, tem na falta dgua seu principal problema. Em virtude da falta dgua, os moradores tm cavado poos profundos que, quando muito, fornecem gua salobra que no serve nem para o consumo dos animais. Como soluo para esse grave problema, foi construda uma grande cisterna que, de forma irregular, abastecida com gua trazida da cidade por carros-pipa. A comunidade dispe de energia eltrica e possui ainda uma capela onde so realizadas missas a cada dois 60 j no ms de dezembro ou no comeo de janeiro, h entre os moradores da Lagoa de Santa Teresinha, onde mora no municpio de Russas, um interesse em saber quem, entre eles, vai praia. Segundo o Sr. Eduardo, os pescadores sempre dizem algo sobre o prximo inverno. Nesse sentido, vinha do mar a esperana que o Sr. Onofre reservava para o inverno de 2000.
(...), mas eu t pensando que... eu t pensando que para o ano vai ser inverno, muita gente que tem experincia diz. (...). Tive, sabo agora vai fazer oito dia que tive no mar, na Marjolanda, tive l. A, eu perguntando a ele, a jangada ... a jangada tudo no mar assim andando, quando saiu, negoo de duas hora eles saro, o peixim aquela migalha. - Ei, por qu que esse peixe deu bem pouquim? Ele disse: - sabe por qu? Porque o peixe t adivinhando chuva, num t saindo no. T rendo? (risos) jangadeiro! Eu digo, cad o peixe rapaz? ele disse: - no porque o peixe est cirmando de vim a beira-mar , n? Por certo t se guardando por l, esperando a aigua, n? (...). 90
J o Sr. Euclides ngelo Cordeiro, 91 por sua vez, tem o mar como referncia para as suas experincias de inverno a partir da observao do primeiro dia do ano. Para este campons, se o dia de ano amanhecer trovejando para dentro do mar muito difcil ter um bom inverno. A confiana nessa experincia est ancorada nos ensinamentos recebidos do seu av materno o velho Rufino Cordeiro. Entretanto, essa prtica de observar e decifrar os sinais que a natureza sugere acerca do futuro, que foi passada de gerao a gerao atravs da oralidade, tem em grande medida perdido a sua fora. Para Walter Benjamin,
a difuso da informao decisivamente responsvel pelo declnio da narrativa. Diferentemente da comunicao
meses. A exceo das famlias do Sr. Eduardo, da D. Estelita e do Sr. Valdemar, praticamente todas as outras famlias moradoras da comunidade so negras e tm algum grau de parentesco. Segundo os moradores mais antigos, era comum os casamentos acontecerem dentro do prprio universo familiar, ou seja, o casamento entre primos. 90 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. Casado com D. Maria J lia dos Santos e pai de dez filhos, o Sr. Onofre reside, com sua esposa, numa pequena casa de taipa. Embora tenha herdado dos pais um pedao de terra, no qual realiza seu trabalho agrcola, ambos sobrevivem da aposentadoria que recebem. 91 Euclides ngelo Cordeiro, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. Casado e pai de quatro filhos o Sr. Euclides vive da aposentadoria que recebe, uma vez que no trabalha mais na agricultura. Distante cerca de quarenta quilmetros da cidade de Russas, a comunidade da Lagoa Grande dispe de energia eltrica, de um posto de sade, de uma escola de ensino fundamental e de um desalinizador de gua. 61 de massa, que se caracteriza pela vericabilidade e pela inteligibilidade da informao, a arte da narrativa est em evitar explicaes. Assim, o extraordinrio e o miraculoso so narrados com a maior exatido, mas o contexto psicolgico da ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser, e com isso o episdio narrado atinge uma amplitude que no existe na informao. 92
Mesmo entre os mais velhos, que so por assim dizer os guardies dessa memria, verifica-se que a importncia atribuda a essas experincias nos dias atuais cada vez menor. No entanto, a falta de credibilidade se justifica pela prpria mudana dos tempos.
A minha experienciazinha do mato, n? Mas... Oi, Deus disse que quando o povo quisesse saber mais do que ele, mudaria os tempo. A, as experincia do mato t tudo... Oi, tamandu, (...), quando voc pega ele no vero, mata muito gordo... peba gordo, um sinal de tempo ruim. E, esse ano, pegaro, teve noite de matarem dois tamandu grande e muito gordo. E os peba, diz que era gordo que parece que era cevado em casa. A, eu digo: o ano vai ser escasso. Ta, o inverno bom. Agora, que vem de vero dirmantelado. 93
Por sua vez, o Sr. Francisco Giro Sobrinho diz que apesar de gostar de prestar ateno nas coisas dos antigos, essas no esto mais valendo nada.
Home, eu gosto de prestar a ateno s coisa dos antigos. Mas, hoje num t valendo nada. Porque esse ano, pelos antigo, que eles dizia que chovendo na... na primeira semana da primeira sexta-feira do ms, chuvendo na quinta-feira... na quarta-feira de cinza, os antigo tinha isso, n? Pudia butar pote na goteira que enchia toda noite. Cad? Chuveu tudo nesse dia, chuveu tudo nesse dia, tudo chuveu muito. E at agora tem sido muito fraco, mais muito. 94
92 Cf. Walter Benjamin. O Narrador. In. Os Pensadores. op. cit. p. 203. 93 Francisco Abel Lino (Chico Abel), 84 anos. Entrevista gravada na comunidade do Bixopa, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. O Sr. Chico Abel proprietrio de quarenta e seis hectares de terra, aproveitados tanto na agricultura como na explorao do carnaubal, ou seja, na venda das palhas da carnaba para a produo artesanal de cera, chapus, bolsas... Distante cerca de vinte e oito quilmetros da cidade de Limoeiro do Norte, o distrito do Bixopa est localizado numa rea de caatinga. Alm da agricultura, seus moradores tm explorado, como fonte de renda, as pedreiras que cercam o centenrio aude do J atob, situado ao lado da tambm centenria igreja de So Jos. Em virtude da gua do aude ser salgada, a comunidade abastecida no perodo do vero por carros-pipa e no inverno com a gua das chuvas acumulada em cisternas. Alm da igreja, a comunidade possui uma escola de ensino fundamental, um posto de sade e dispe de energia eltrica. 94 Francisco Giro Sobrinho (Chicada). Entrevista gravada na comunidade da Palestina, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 62 O que de fato essas experincias apresentam em comum, que todas constituem um conjunto de conhecimentos pautados na observao e na decifrao dos sinais de vida e de morte que a natureza lhes anuncia. Noutros termos, os camponeses tm na relao com a natureza, a base principal para a organizao de suas vidas. 95
Indagado se gostava de observar a natureza, o Sr. Joo Andr revela que este hbito talvez seja seu maior entretenimento. Assim sendo, o amide contato que tem com a natureza est expresso no apenas na alegria de cuidar da terra, prepar-la, seme-la e acompanhar o crescimento das plantas; ou, ainda, no prazer que sente ao ver as brincadeiras ou brigas dos animais; mas, sobretudo, no conhecimento emprico que desenvolveu, ao longo da sua experincia de vida, na observao do vento.
Ah! Claro. Pra ver o que t se passando. Aquelas coisa que eu vejo eu digo, eu digo meu Deus num era pra ser daquele jeito no, mais oia como que t o negoo, minino. (...). Aquelas coisa e tal... Eu gosto tanto da natureza, que dou nutia at do vento. O vento... quando o vento t do... do sul para o norte eu digo: , o vento j mudou hoje. Eu conheo pelo jeito do vento. Oi o vento j... Oi, a o vento j mudou num t hoje de norte a sul no, t de sul a norte. Oia o quanto eu gosto da natureza (risos), que at do vento eu dou nutia, at do vento eu dou nutia. Por isso, eu lhe digo. o vento, chama-se o vento do Aracati, n? E aqui o sul, o vento do sul empurrando pro Aracati. Quando ele est assim, eu digo oi a, o vento uma hora dessa era pra ser do Aracati para o sul; mas oia, ainda t no sul, vindo do sul e tal. D f, last um bucado de... de... de animal, de gado brincando ou at mesmo brigando, e eu parado olhando os animais se escamuando. Tudo coisa da natureza. E eu fico olhando, aquilo pra mim um prazer de ver aquilo (risos). Nasci, nasci ou num nasci para o campo? Nasci pro campo, n? 96
Todo esse apego que o Sr. Joo Andr demonstra ter pela natureza, justifica, por assim dizer, a tenso que atravessa toda sua fala quando refere-se aos espaos do campo e da cidade. Ao afirmar que nasceu para morar no campo, seu Joo Andr desqualifica as
95 Ao discutir o senso comum como um sistema cultural, Geertz diz que os argumentos do senso comum no se baseiam em coisa alguma, a no ser na vida como um todo. O mundo sua autoridade. Cf. Clifford Geertz. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrpoles, RJ : Vozes, 1997. p. 114. 96 J oo Andr Filho, 73 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 18/08/1999.
63 experincias vividas no espao da cidade, expressando, assim, sua resistncia ao mundo citadino. Morando na cidade de Jaguaruana desde 1979, o velho Joo tem procurado consumir as prticas da cidade, investindo-se de uma maneira de agir que possa combinar essas prticas com as experincias vividas no campo. 97
A propsito do vento, assim como o Sr. Joo Andr, o Sr. Chiquinho Pitombeira diz que j no mais o mesmo. O vento forte, em pleno ms de outubro, estava deixando gelada as noites sertanejas. Esse novo vento, diferentemente do Aracati, 98 soprava mais forte e mais frio. Na verdade, trata-se do vento Leste que, de agosto a novembro, principalmente no litoral cearense, consegue atingir grandes velocidades. (Foto 04 Sr. Chiquinho Pitombeira e D. Lourdes Riachinho Russas)
97 Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. op. cit. p. 42. Voltarei a essa questo, na ltima parte deste trabalho. 98 Segundo Otaclio Colares, o vento do Aracati, um "vento forte que, partindo da cidade do litoral leste do Cear que lhe d o nome, percorre parte do serto cearense, servindo de refrigrio s populaes de cidades, as quais, noite, sentam-se s caladas, esperando a sua passagem, para se recolherem, depois". Cf. Antnio Sales. Aves de Arribao. op. cit. p. 17. 64 Rapaz, eu vou te dizer, eu num t mais achando mais vento t me servindo. Isso aqui quando seis hora, voc num agenta o frio. Vou assistir um tero sentado naquela cadeira detrs dessa porta e da outa, quem chega aqui na sala num me ver que eu t l. Mas, por causa do vento fri. E mais tarde uma coisinha, l na calada, eu num agento de jeito nenhum. E gostava dum ventozim, mas desse jeito, gelado desse jeito. Ave Maria, t fraco de sangue. Mas, porque fri mermo. 99
Por outro lado, o vento do Aracati parecia trazer, em sua brisa e em seu som melodioso, uma razo geral vida. Razo pela qual as mes ficavam nas caladas com seus filhos at a hora em que este vento passasse. Vento que parecia representar uma espcie de beno para as crianas.
Nunca mais eu num vi vento do Aracati. Porque o vento do Aracati diferente desse vento. um vento mais educado, um vento que tem hora de passar, . Antigamente, (...) tinham uma histria de vento de Aracati. (...). As mulheres, as me de famlia tinha aquela hora da noite, de sete hora da noite at nove. (...). Essas mulher daqui de cima tudo tinha essa histria de esperar pelo vento do Aracati. Seja l que hora fosse da noite, s ia pra dento de casa depois que o vento do Aracati chegasse, podia chegar de dez hora, de oito ou de mais. Quando o vento do Aracati chegava, aquelas criana tomava aquele vento ai que elas iam simbora pra dento de casa deitar as criana pra dormir. Mas, hoje, eu ainda num dei f de vento do Aracati esse ano, tem no. um vento mais... num com essa friage a no. Ele tem assim um fresco assim como seja um vento do mar, ele tem aquela frescura dele como se fosse um vento do mar (...).
Ao contrrio do vento do Aracati, que todos habitualmente esperavam para banharem-se com a frescura liberta do mar que o vento trazia em suas asas; o vento de agora, no dizer do depoente, um vento bandido, pelo qual ele no mais espera.
Esses outo vento, chega uma hora dessa, faz esse vento fri. Mais tarde, faz fri que eu num agento, num agento no, tem que entrar pra dento de casa. Eu num espero por esse bandido no. s vez eu fecho a porta de baixo, o vento to forte que balana aquela banda (...) a eu fecho essa de baixo e ele to forte que ele ainda entra pra detrs da porta, impurra, ele impurra essa banda de tijolo (...).
99 Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitmbeira), 86 anos. Entrevista gravada no Riachinho, municpio de Russas, no dia 22/10/1999. Distante seis quilmetros da Lagoa de Santa Terezinha e vinte e dois da cidade de Russas, a casa em que o Sr. Chiquinho Pitombeira mora na companhia de sua esposa, Maria de Lourdes Almeida, 92 anos, revela o poder econmico que o velho Pitombeira herdou dos pais. Alm da ampla casa de alvenaria onde moram, a casa de farinha, que abriga em seu interior um velho carro- de-boi, possibilita-nos inferir sobre o papel social que desempenhava na regio a famlia Pitombeira. A casa no dispe de energia eltrica e possui ao lado uma grande cisterna para o armazenamento de gua. 65 Esse vento em excesso, no apenas fez o Sr. Chiquinho Pitombeira mudar seus hbitos, uma vez que ele gostava de receber um ventozim na calada de sua casa at certas horas da noite, como exerceu todo o seu poder sobre a sua imaginao na medida em que ele, ao caracterizar o vento de bandido, expressou-o em seu estado colrico, ou seja, aquele capaz de estar em toda parte e em nenhum lugar. 100 Em outras palavras, a presena furiosa desse vento bandido, representaria, por sua vez, a criminalizao da natureza. O fato importante a se considerar, em tudo isso, os camponeses terem desenvolvido, ao longo de suas experincias de vida, uma maneira singular de expressar as suas sensibilidades diante do mundo natural; atravs da apreenso e da decifrao dos sinais que, segundo os depoentes, de uma forma ou de outra, indicam a sorte de todos. Por sua vez, essa forma de olhar a natureza me permitiu conhecer muitos dos pressupostos construdos a partir da relao cultural que eles mantm com a natureza. No obstante, conquanto os camponeses descartem muitos dos pressupostos do passado, torna-se difcil para os mais velhos do campo deixarem de ver o mundo natural a partir destes saberes, dessas prticas. Ao mesmo tempo em que expressam a falta de confiana nos pressgios que a natureza lhes oferece, deixam transparecer o quanto a natureza reflete o estado de esprito em que vivem, bem como as suas emoes. Contudo, no pretendo, aqui, fazer um inventrio do que foi perdido; mas uma explorao do que ainda podemos encontrar. Nesse sentido, o modelo alternativo de olhar a paisagem, proposto por Schama, leva em conta a complexidade de mitos, metforas e alegorias, cujo rbitro a memria. 101
100 Segundo Bachelard, todas as fazes do vento tm sua psicologia. De acordo, pois, com a psicologia proposta por Bachelard, o vento se excita e desanima, grita e queixa-se, passa da violncia aflio. Cf. Gaston Bachelard. O Ar e os Sonhos. Ensaio sobre a imaginao do movimento. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 232. 101 Simon Schama. Paisagem e memria. op. cit. p. 24. 66 Assim como Schama, a idia no contestar a realidade de mudanas que se verifica no campo, mas sim, mostrar como os modos de viver dos camponeses esto organizados a partir de uma fora que une a cultura e a natureza. Entretanto, se, no presente, a relao dos camponeses com o mundo natural tem-se alterado, porque nem todas as geraes relacionam-se com a natureza da mesma forma, em virtude de suas posies serem efetivamente histricas. 102 Desta forma, pude apreender, nas experincias vivenciadas por estes sujeitos, que os modos de viver e de se relacionar com a natureza tm se construdo e transformado no prprio tempo. Portanto, como j foi dito, a compreenso e a relao que os camponeses tm e mantm com a natureza esto mediatizadas pela experincia/cultura. Nesse sentido, os espaos em que vivem so resultados da percepo e dos significados atribudos por esses sujeitos atravs das suas prticas e experincias. Assim sendo, podemos dizer que toda cultura, por mais simples que seja a sua organizao e os conhecimentos sociais disponveis, cria modos de explicao da vida passada e presente, os quais justificam o seu lugar no mundo. 103 No que diz respeito a cultura camponesa, ela tem na arte de observar a natureza uma forma de exprimir as transformaes que esto ocorrendo no s no espao natural, mas, nas prprias relaes sociais historicamente construdas no serto. Segundo o Sr. Joo Andr Filho, uma parte das coisa do mundo num mais a natureza que era. Assim, ao longo da sua experincia de vida, seu Joo afirma j ter observado uma srie de mudanas na natureza.
A natureza mudar, um negco munto importante, n? Voc j sabe que muda a natureza? As coisa da natureza muda? Muda, muda que eu j
102 Segundo Simon Schama, (...) Nem todas as culturas abraam natureza e paisagem com igual ardor, e as que abraam conhecem fases de maior ou menor entusiasmo. O que os mitos da floresta antiga significam para uma cultura europia nacional pode se traduzir em algo totalmente diverso em outra cultura. (...). Simon Schama. Paisagem e memria. op. cit. p. 25. 103 Alfredo Macedo Gomes. O imaginrio social da seca e suas implicaes para mudana social. op. cit. p. 178. 67 encontrei, eu j encontrei coisa da natureza que num era daquele jeito e parece que nunca tinha sido e mudou pra outa forma. (...). Porque a gente espera dum jeito, porque era pa ser daquele jeito... coisa da natureza, rapaz, num tem bom, ali num mente... e mentir. 104
Desde o tempo da sua mininia, revela o Sr. Joo Andr, ouvia dizer que determinados insetos s apareciam se houvesse inverno; no entanto, tem sido comum, nos ltimos anos, a presena destes insetos no espao vivido dos camponeses, embora as estaes chuvosas tenham sido fracas, quase secas.
(...), na minha mininia... diz que os inseto, umas qualidade de inseto que s aparecia se houvesse... se tivesse inverno, se no tivesse o inverno num aparecia; eu j encontrei dum ano desse pra c, j encontrei ano fraco, quase seco e aquelas coisa que s vinha em ano chovedor, ano de rama, s... s aparecia ano de rama e naquele ano fraco daquele jeito...
Segundo a percepo do Sr. Joo Andr, a prpria terra tem progressivamente evidenciado as mudanas ocorridas na natureza. A idia de uma natureza mentirosa, sugerida pelo velho Joo, onde a terra passa a negar tudo que ela produzia em abundncia, est diretamente associada a no preservao dos valores morais tradicionais. Desta forma, segundo a percepo camponesa, muito mais do que a seca, o desregramento dos costumes e o aumento do pecado em virtude do pouco temor a Deus, seriam, de fato, os principais responsveis pelas mudanas verificadas na natureza.
(...) a gente prantava, fazia uma pranta, a gente s prantava uma cova de melancia, s uma, se voc possusse gado pra dar melancia podia prantar mais. Mas, pra... pra seu consumo s prantasse uma cova porque sobrava. (...) c apanhava aquela melancia, botava numa sombra tanta dava, porque dava munta. Os girimuns, s prantava uma cova de girimum. Dadonde voc ia botar girimum? Num tinha quem comprasse tanto dava, nera? Quer dizer que a terra desapareceu, a terra num dar mais isso no, acabou-se. C pranta dez cova de melancia e num prova. da natureza, n? da terra! (...), justamente a palavra que Deus disse: para o fim a terra negarei o po. A gente prantava uma quantidade de feijo, precisava de prantar pouco porque apanhava... apanhava tanto feijo que num tinha em que botar. Hoje, a gente pranta aquele canto medonho pra fazer aquele feijo do consumo. A terra t negando o po ou num t? A terra t negando tudo, a terra
104 J oo Andr Filho, 73 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 18/08/1999. 68 nega tudo. Eu alcancei os cercados criar, aonde num trabalhava, aquela inquantidade de capim mimoso, ns chamava capim mimoso, ficava arriado (...) quando havia inverno. Hoje, quando passa o inverno, o cercado boa parte s escalvado, num... num cria mais no. i, a terra negando tudo em cima dela, n? da natureza. Justamente foi a palavra que Deus disse: para o fim a terra negaria o po.
Segundo o Sr. Joo Andr Filho, desde o comeo do mundo a natureza nunca havia mentido; no era coisa da natureza mentir. No entanto, se isso hoje acontece, justifica-se muito mais por uma confirmao dos sinais profetizados por Deus; e, muito menos, por uma outra dinmica imposta ao espao natural, a qual tem provocado a completa integrao deste ao mundo do artifcio; 105 ou, mesmo ainda, em decorrncia da prpria ao predatria dos camponeses junto natureza, a qual pode ser traduzida em grande medida nas prticas do desmatamento e das queimadas. Portanto, apreendendo apenas os efeitos e no as causas das mudanas ocorridas na natureza, o Sr. Joo Andr procura explicar tais mudanas a partir da ilustrao de uma histria que, segundo a temporalidade subjetiva do velho depoente, remonta ao comeo do mundo. Conta-se, nessa histria, que Deus havia revelado aos seus apstolos os sinais que Ele daria quando se aproximasse os finais das coisa do mundo.
Inxiste at uma histria que So Pedo era um apstolo de Deus, nem sei se certo, mas, que inxiste essa histria do comeo do mundo. (...). Senhor, quando que o mundo tem fim? A ele disse: - Pedo o mundo num tem fim, as coisa do... as coisa do mundo ter os finais. Quando a terra negar o po, j ser um sinal do fim do mundo; quando o pai desconhecer filho e filhos desconhecer os pai, j ser os sinais; quando as mulhere forem dona do mundo, Pedo, ser os sinais. Eu vi, eu t vendo tudo isso! Meu fi, a terra tamo vendo, pa todo mundo v, negou o po. S ns do campo que sabe o quanto a terra paralisou, negou o po duma vez segundo o que era, n? 106
105 Referindo-se a situao do espao natural nesta passagem de milnio, Laymert Garcia dos Santos diz que ele no est acabando como espao natural. Pois ele ainda existe. Todavia a sua existncia retrabalhada e inscrita numa dinmica que no tem mais nada a ver com a dinmica natural. Trata-se de um espao que aparentemente continua o mesmo mas que no mais o mesmo, pois suas determinaes vm de fora, do artifcio. Cf. Denise Bernuzzi Santanna e Yara Aun Khouri. "Biodiversidade, Sociodiversidade e Excluso" - Entrevista com Laymert Garcia dos Santos. In. Projeto Histria n 18. op. cit. p. 262. 106 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 18/08/1999. 69 O primeiro sinal, portanto, seria revelado pela me-terra, quando esta perdesse as caractersticas que a associam aos mistrios do corpo materno, 107 ou seja, a sua capacidade de fecundao e de nutrio, passando a negar ao homem o po que o alimenta. O segundo sinal seria dado pela famlia, quando esta apresentasse a desarmonia entre pais e filhos. Cabe ressaltar que, para as comunidades camponesas, as relaes familiares representam um ponto de referncia importante para a organizao de seus modos de vida, uma vez que na famlia que se encontra a base das normas de comportamento social, baseadas no respeito e na honra. A desagregao das relaes familiares representa, pois, um distanciamento dos cdigos cristos desabonadores aos olhos de Deus.
No meu tempo, o tempo de seu pai e outos mais, quando foi que a gente viu falar que um fi dava o meno um empurro num pai? Nunca ouve no! Se ele num tava gostando do pai, butava a rede num saco e ia imbora. Era, num discutia com pai no. Hoje um fi t batendo a mo num revver atirando num pai, um pai atirando num fi. Ser que quando ele atira num pai, ele sabe que pai? T l que Deus disse que quando disconhecesse... ele disconhece (...) quer dizer que ser os finais, eu acredito que seja isso, n? Porque no antigamente num havia, antigamente num havia isso.
Por outro lado, a desagregao familiar pode ser compreendida, tambm, como resultado do processo de pauperizao vivenciado pelos camponeses, fruto da explorao econmica que tem, em grande medida, substitudo as relaes baseadas na solidariedade e sentimento por relaes de interesse, gerando, com isso, conflitos crescentes dentro das famlias. 108
O terceiro sinal expressaria a inverso dos papis sociais, historicamente construdos e assumidos por homens e mulheres, nos quais os homens sempre mantiveram o papel de destaque, de domnio e de poder. No contexto domstico a posio do pai a mais privilegiada, exercendo toda autoridade sobre a mulher, os filhos e, por
107 Cf. Armand Frmont. A Regio, Espao Vivido. op. cit. p. 49. 108 Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo (1877 a 1922). op. cit. p. 112. 70 extenso, sobre todo o espao familiar. Com a inverso destes papis, as mulheres passaram a ser, no dizer do velho Joo Andr, as dona do mundo.
(...), quando as mulhere forem dona do mundo, ser os finais. A, a gente indo parar pra olhar, Ave Maria que fosse toda mulher, mas 90% da mulher so dona do mundo. Elas to fazendo o que quere, quem manda ela mermo, num tem essa histria no. Elas anda do jeito que quer, anda do jeito que querem andar, o que vinher na boca elas diz num olha nem pa trs, pode t quem tiver, ver o final do tempo (...). Justamente as palavras que Deus disse: - ento-se Pedo ser os finais das coisa do mundo quando isso tudo acontecer. (...). Se for certo isso, s parece ter sido porque ns tamo vendo o que a histria diz e o comeo... Ns tamo vendo a terra negar o po; o pai disconhecer filho e filho disconhecer pai; as mulher ser dona do mundo (...). Por isso eu lhe digo que eu t com medo, t chegando o medo em mim que adeps de dois mil o qu que vai aparecer. (...). T to nervoso com a vinda... a vinda de depois de dois mil que ver o que vai vim. Pode at ir frente. Ah! quisera Deus que fosse.
Marcado por um profundo significado bblico, o discurso do Sr. Joo Andr expressa a capacidade que tem de traduzir suas experincias de vida luz das profecias que os mais antigos contavam a respeito do fim do mundo. Trata-se, na verdade, de uma reinveno da concepo bblica referente consumao dos sculos, seguramente transmitida na poca das Santas Misses, e reveladora de uma maneira prpria de ler, pensar e viver. Disseminada no Nordeste pelos capuchinhos, desde meados do sculo XIX, as Santas Misses eram encontros para prticas e pregaes religiosas de grande relevncia para a populao dos sertes nordestino.
Era, era aqueles pade pregano. (...) Nesse tempo havia religio, o pessoal se confessando, ouvindo toda noite aquelas palavra bunita que eles dizia. Hoje em dia, num tem quem... num tem mais quem der valor. Hoje im dia, num tem quem quera ir para missa, num ? No senhor, hoje em dia o pessoal quer a vaidade, n? E, portanto, eu acho munto disconforme a vista de antigamente como eu via. Havia aquelas Misso bunita; era oito dia, dez dia que eles passava numa cidade, n? Mais era munto bunito, o pessoal toda noite indo pa Igreja resar, se confessar. Hoje em dia num tem... Quem que fala mais em confisso hoje em dia? Num tem quem quera mais, poucas pessoas que... que... que se dirige a Igreja, n? 109
109 Raimundo Sabino da Silva (Cor), 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no dia 02/02/1999. Seu Cor mora com sua esposa numa pequena casa de 71 Segundo Gilmrio Moreira Brito, por se tratar de sujeitos constitudos na oralidade, as pregaes e leituras eram assimiladas no apenas pela voz e sons, mas, sobretudo, pelos gestos: O envolvimento das pessoas no tipo de pregao a que estavam acostumadas no era apenas de ouvir, mas, principalmente, de ver as expresses fisionmicas, corporais, gestuais. 110
Dessa maneira, a presena dos referenciais apocalpticos na fala do seu Joo Andr, leva-nos a considerar, ainda, o quanto os camponeses foram receptivos a preceitos normativos da religio catlica na medida em que ganharam ressonncia, com sentido prprio, em seu cotidiano. 111
Situado entre a cultura clerical e a oralidade, o catolicismo popular representa um modelo de leitura do mundo que aparece como resultado da integrao entre os espaos natural, sobrenatural e humano. 112 Esse mundo integrado, fechado, constitudo por uma dimenso terrena e outra divina, vai sendo internalizado de diferentes maneiras atravs de uma rede de circulao de idias e princpios religiosos que acabam sendo elementos fundantes das relaes de convivncia e sociabilidade numa regio marcada pelos signos da pobreza e da injustia social. 113
taipa. aposentado e possui um pedao de terra onde planta feijo, milho e melancia. Distante vinte e dois quilmetros da cidade de J aguaruana, a comunidade da Pacatanha tem hoje um aspecto de abandono. Em 1999, das vinte e cinco casas de taipa existentes na comunidade, doze encontravam-se abandonadas por seus moradores que passaram a viver numa rea de assentamento prxima Pacatanha. Das treze casas que continuavam habitadas, seis eram por familiares do Sr. Antnio Eugnio e do seu irmo Raimundo Sabino da Silva (Cor). A comunidade no possui luz eltrica e o acesso a gua precrio. Fora do perodo chuvoso, quando acumulam gua das chuvas em pequenas cisternas, os moradores da Pacatanha dependem da gua fornecida pelos carros-pipa que s no perodo do vero, e de forma irregular, conseguem trafegar pelas veredas que do acesso serra. Utilizam-se, tambm, da escassa e salobra gua armazenada nas cacinbas e cacimbes no apenas para tomar banho, lavar roupas e loas, e dar de beber aos animais, mas para o prprio consumo familiar, quando o carro-pipa atraza o abastecimento ou as guas das chuvas no so suficientes para suprir as necessidades da famlia. Mesmo funcionando precariamente, a comunidade dispe de uma pequena escola que possibilita as crianas terem acesso as sries iniciais do ensino fundamental. 110 Gilmrio Moreira Brito. Pau de Colher: na letra e na voz. So Paulo: EDUC, 1999. pp. 188, 215, 216 e 217. 111 Idem, ibidem. pp. 159 e 171 [grifo meu]. 112 Alda Brito da Motta. Notas sobre a viso de mundo do campons brasileiro. op. cit. p. 59. 113 Sobre o imaginrio de grupos sociais organizados a partir de experincias de religiosidade no serto nordestino, ver: Gilmrio Moreira Brito. Pau de Colher: na letra e na voz. op. cit. Nesse trabalho, o autor, partindo de um conjunto diversificado de fontes, incluindo depoimentos orais, analisa o movimento de Pau de Colher, no municpio de Casa Nova-BA, que foi extinto em janeiro de 1938 pelas polcias militares dos Estados do Piau, Pernambuco e Bahia. 72 Portanto, toda e qualquer alterao na rotina do cotidiano campons vivida como crise e interpretada de forma mstica e fatalista, atribuindo estas mudanas a castigos divinos ou a catstrofes naturais, como a seca. Segundo Durval Muniz, h, no imaginrio campons, uma profunda identificao entre os mundos social e natural. Nesse sentido, toda mudana social vista como catstrofe, como alterao do natural da existir uma identificao, entre a catstrofe da seca, mudana do natural, com as mudanas sociais em curso. 114
Portanto, ao observar os marcadores da fala do Sr. Joo Andr, vejo que traduzem um sentimento pelo serto que revelador da tenso entre um lugar que lhe possvel, representado pela nova fisionomia, nitidamente urbanizada, do serto, e o lugar desejvel representado pelo paraso perdido, ou seja, pelo mundo rural tradicional marcado pelas mensagens evanglicas e por laos de honra e solidariedade que tornavam o mundo mais perfeito e mais justo. Em seu relato, o Sr. Joo Andr disse no ter muito o que comentar, apenas olha para o mundo rural e lembra o que este representava no passado e o que representa hoje. O tempo que as memrias dos camponeses identificam como sendo o tempo de antigamente, era marcado pelo respeito entre as pessoas, por relaes de ajuda entre os vizinhos e por um equilbrio da natureza. Ao contrrio do tempo de antigamente, no seu dizer tudo azavesso hoje, tudo o contrrio, aparecendo aquelas coisa que ningum nunca pensou. um tempo cujos costumes e valores no encontram mais sustentao e legitimidade nas prticas de religiosidade. O Sr. Joo Delfino Bezerra, 115
por exemplo, lembra que no passado as pessoas pensavam mais em Deus e tinham por prtica rezar durante o dia e noite, pedindo graa a Deus. Segundo o depoente, isso fortalecia os laos familiares, as
114 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo (1877 a 1922). op. cit. pp. 107 e 108. 115 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 73 tradies e as formas de viver em harmonia no mundo social e com o mundo natural. Em todas as entrevistas foi possvel perceber que o tempo da calma, da tranqilidade e do equilbrio com a natureza parece ter chegado ao fim. Nesse sentido, a forma pela qual os camponeses interpretam as mudanas verificadas no campo fez-me ver, em primeiro lugar, que estas se processam antes de tudo nos princpios da honestidade e do trabalho que norteiam a formao moral do campons e sobre a qual constrem a sua auto-imagem, ou seja, as mudanas no acontecem objetivamente no espao natural, mas, no prprio homem atravs da crescente corrupo dos seus valores culturais, bem como dos cdigos morais que delineavam os contornos da sua personalidade camponesa.
Eu gosto da natureza, exatamente, eu gosto da natureza. Nasci e me criei na natureza e morro na natureza. E, gostando mais graas o meu bom Deus. (...). Essa natureza tem mudado munto. Porque munto diferente dessa natureza de hoje, pra natureza daqui a vinte ano ou trinta ano pra trs muito diferente. No o ar do tempo! O ar do tempo o mermo, o mundo o mermo, n? Mas, o movimento do povo muito diferente, muito diferente. Tudo t mudado! O pessoal mais vi dizia, que quando fosse no fim das era, no fim dos tempo, a roda grande rodava dento da piquena. E ns tamo nesse tempo, ns tamo nesse tempo que a roda grande t rodando dento da piquena, n? , e por isso que eu digo, t mudado, t mudado, muito mudado. , assim mermo. 116
emblemtico, na fala do velho Pedro das Neves, uma identificao do tempo presente como sendo um tempo marcado pela violncia, pela falta de honestidade e de disposio para o trabalho. Segundo as memrias dos entrevistados, o conjunto dessas caractersticas expressa bem as mudanas dos modos de viver e de se relacionar com as pessoas e com a natureza em particular; afinal de
116 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. Vivo, aposentado e pai de trs filhos, o Sr. Pedro das Neves mora na companhia de uma cunhada numa pequena casa de alvenaria na comunidade Vazante distante trs quilmetro da cidade de Morada Nova. Em virtude da proximidade da sede do municpio, a comunidade dispe de luz eltrica e gua.
74 contas, esta no vazia de histria, e, por isso mesmo, no deve ser pensada como um plo oposto cultura e histria. A travessia prosseguir, agora, pelos sertes do trabalho. Nestes, a atividade agrcola assume papel fundamental, pois atravs dela que o campons estabelece, num sentido simblico, mas ao mesmo tempo real, sua relao com o mundo natural. A terra, para o campons, representa o elemento mais importante desse mundo, pois dela que se retira, praticamente, todos os bens acessveis aos camponeses.
75 Segunda Parada: O campons e o trabalho 117
Toda vida fui destabefado pa trabai Joo Pereira Cunha (Foto 05 Sr. Antnio Eugnio na colheita do feijo: inverno de 1999 Pacatanha Chapada do Apod Jaguaruana)
Nos sertes do trabalho, o dia comea logo cedo. Desde quando os primeiros raios solares abenoam o dia nascedouro, transmitindo mensagem de vida, os camponeses esto a postos para o trabalho. H sempre muito servio por fazer. Sendo, assim, homens, mulheres e crianas precisam madrugar para estar no terreiro da casa fazendo uma coisa ou outra; no curral tirando o leite das vacas; no aude buscando uma carga dgua; no cercado preparando a terra para o plantio ou j cuidando das plantas. Nos depoimentos colhidos ao longo de nossa travessia, os sertes do trabalho foi lurgar-comum onde todos resolviam demorar-se um pouco mais. Desta forma, as narrativas foram sempre o resultado da evocao das lembranas individuais, familiares e coletivas atravs
117 Nesta travessia, quinze foram os guias: Onofre Augusto dos Santos, Joo Pereira Cunha, Ana Francisca do Esprito Santo, Rosa Maria de Almeida, Luzia Maria da Silva, Amaro J os da Silva, J oo Delfino Bezerra, Pedro das Neves Cavalcante, Raimundo Nonato da Costa, Maria Rocha Pereira, Altina de Moura Lima, J oo Miguel de Souza, Joo Andr Filho, Antnio Eugnio da Silva, Euclides ngelo Cordeiro. 76 das quais, procuraram traduzir as experincias do trabalho, sinalizando para uma identidade expressa na forma da linguagem e dos comportamentos. As experincias do trabalho significam marcos importantes para a estruturao do tempo e para a ordenao do sentido da vida dos camponeses. Assim, dos depoimentos orais coletados, procurei deter-me na apreenso do significado que o trabalho tem em suas vidas. Assim, para interpretar os sentidos que os camponeses atribuem aos modos de viver e trabalhar, historicamente constitudos em seus espaos, foi-me preciso compreender que a forma pela qual o cotidiano campons se estrutura tem como referncia no apenas as relaes de forte coerncia com pessoas do mesmo grupo social, mas, sobretudo, as relaes que os mesmos mantm com a natureza, com a terra, com a mata, com os rios, audes e lagoas. Assim, a maneira como os camponeses da regio do Baixo- Jaguaribe tm historicamente estruturado as suas vidas, est profundamente vinculada aos limites e potencialidades desse espao regional. Apesar de no ter realizado um estudo quantitativo, no foi difcil perceber, nas entrevistas e na prpria pesquisa de campo, que a agricultura responsvel pelo envolvimento de uma grande parcela da populao camponesa, alm de ser a atividade mais comprometida e dependente dos ciclos da natureza. Embora essa seja uma constatao geral e, talvez, at mesmo bvia, no o que se percebe nas representaes que a literatura produziu sobre o serto cearense. Tomando como ponto de partida para a sua Tese de Doutoramento a literatura produzida sobre o serto do Cear no perodo de 1865 a 1903, Ivone Cordeiro Barbosa identifica que a agricultura permanece como acessria na maior parte dos romances por ela trabalhados. Segundo a autora, poder-se-a falar da produo de um certo silncio que pode ser pensado como sintoma e resultado da 77 profunda desqualificao que historicamente tem sofrido a atividade agrcola no contexto das experincias sociais no campo.
118
Mesmo que a agricultura no seja uma atividade acessria economia camponesa, como ficou evidente nos depoimentos colhidos, constata-se a partir da dcada de 1960, e especialmente dos anos de 1970, uma intensificao da poltica estatal de capitalizao do campo, visando a modernizao do meio rural. No obstante, segundo Maria do Carmo B. Ferraz, essa poltica de modernizao, patrocinada e empreendida pelo Estado, atuou no sentido de reforar a grande propriedade, ampliando, desse modo, o poder dos grandes proprietrios rurais e consequentemente a situao de dependncia do trabalhador sertanejo, expressa tambm no plano poltico. 119 Desse modo, as transformaes econmicas processadas no serto nordestino, nas trs ltimas dcadas, no significaram melhoria das condies de vida e de trabalho do homem pobre do campo, nem muito menos produziram mudanas nas estruturas de poder local. Ao contrrio, como observa Maria Antnia Alonso de Andrade, esse processo tem produzido efeitos de concentrao fundiria, valorizao da terra e expulso do homem do campo em todas as regies e municpios nordestinos. 120
No que diz respeito regio do Baixo-Jaguaribe, esse processo de modernizao, que estava diretamente associado s polticas de combate aos efeitos das secas, deu-se a partir dos programas de implantao de uma agricultura irrigada na regio. Assim, a construo do aude Ors, cujas obras foram concludas em 1961, representava, segundo o discurso oficial, um dos grandes vetores de desenvolvimento do Cear, uma vez que iria transformar o mdio e o Baixo-Jaguaribe num grande plo de desenvolvimento agrcola. Aps a construo do aude Ors e a criao do Grupo de Estudos do Vale do Jaguaribe (GEVJ), uma iniciativa da SUDENE, do DNOCS e do Governo
118 Cf. Ivone Cordeiro Barbosa. Serto: Um Lugar Incomum. op. cit. pp. 119 e 120. 119 Maria do Carmo B Ferraz. Oligarquias rurais: reflexes sobre o serto nordestino. In. Relaes de Trabalho & Relaes de Poder: Mudanas e Permanncias Vol. 1. Mestrado de Sociologia UFC, Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais (NEPS), Fortaleza: 1986. pp. 361 e 362. 120 Maria Antnia Alonso de Andrade. Relaes de Trabalho e Relaes de Poder: Perfil de duas reas Geopolticas. In. Relaes de Trabalho & Relaes de Poder: Mudanas e Permanncias Vol. 1. Mestrado de Sociologia UFC, Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais (NEPS), Fortaleza: 1986. p. 239. 78 Francs, efetivaram-se, ao longo das dcadas de 1970 e 1980, vrios projetos de desenvolvimento para a regio que tinham por base a agricultura irrigada. 121
O Permetro de Irrigao de Morada Nova (PIMN), instalado em 1970, marca o incio dos grandes projetos de irrigao no Cear. Assentado na plancie aluvial do Banabui, o PIMN representou a primeira grande referncia de uma agricultura moderna na regio. Trs anos aps a instalao do PIMN, o DNOCS conclua, em 1973, o estudo do mega-projeto de irrigao do Baixo-Jaguaribe que abrangeria os municpios de Limoeiro do Norte, Russas, Jaguaruana e Aracati. Segundo a previso do DNOCS, a construo deste permetro de irrigao, que seria o maior j implantado por este rgo governamental, teria suas obras iniciadas em 1976 e concludas em 1979. Entretanto, o projeto no chegou a ser implantado, o que gerou um clima de incertezas e uma paralisia econmica na regio. No obstante, o DNOCS implanta, em 1977, mais um permetro pblico de irrigao desta vez no municpio de Jaguaruana. Em 1980, no entanto, surge o Programa de Valorizao Rural do Baixo e Mdio Jaguaribe (PROMOVALE), dentro de uma outra metodologia e de um outro arranjo institucional. Diferentemente do mega-projeto de irrigao que previa a desapropriao das terras de vrzeas do rio Jaguaribe, o PROMOVALE tinha como meta abranger uma rea de vrzea maior do que a prevista para o grande permetro, sem, contudo, promover qualquer tipo de desapropriao. A prioridade passava a ser, portanto, a pequena irrigao privada. Segundo o discurso do Governo Federal, a pequena irrigao privada era uma das mais econmicas formas de expanso da produo agrcola, sem os transtornos da desapropriao de terras. O PROMOVALE levou, pois, o Governo Estadual a iniciar um trabalho de eletrificao rural na rea de sua abrangncia. Assim, entre 1979 e 1980, um grande nmero de propriedades ao longo do rio Jaguaribe
121 Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e reorganizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte Ce. op. cit. pp. 18, 19 e 20. 79 foram eletrificadas. Dentre os municpios do Baixo-Jaguaribe, Limoeiro do Norte foi um dos mais beneficiados pelo programa de eletrificao rural. Todo este processo de reorientao da poltica de irrigao iniciado no final da dcada de 1970, veio a ser concretizado em 1981 quando entra em vigor o Programa Nacional de Aproveitamento Racional de Vrzeas Irrigveis (Provrzeas Nacional). Dada as condies naturais de solo e gua serem bastante favorveis agricultura, o Provrzeas Nacional via as reas de vrzeas como estratgicas para o aumento da produo brasileira de alimentos. A partir de 1989, inicia-se uma nova poltica de modernizao agrcola na regio, com o funcionamento, no municpio de Limoeiro do Norte, da 1 etapa do Projeto de Irrigao Jaguaribe-Apodi; e, mais recentemente, do Projeto de Irrigao Tabuleiros de Russas. Cabe ressaltar que essas duas reas, chapada do Apodi e tabuleiros pr-litorneos, constituem-se, hoje, em espaos prioritrios da nova poltica de modernizao agrcola que o Estado vem desenvolvendo na regio. 122
No obstante a implantao de todos esses projetos de agricultura irrigada na regio do Baixo-Jaguaribe, cumpre lembrar que o tipo de agricultura praticada pelo grupo de camponeses pesquisado, caracteriza-se por ser uma agricultura de sequeiro, ou seja, aquela que depende exclusivamente das chuvas. Neste tipo de agricultura, voltada principalmente para as necessidades da famlia, predomina, alm do trabalho familiar, a baixa produtividade em virtude da no utilizao de tecnologias mais modernas. 123
122 Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e reorganizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte Ce. op. cit. pp. 20, 21, 22, 23, 24, 41 e 42. O projeto de irrigao Tabuleiros de Russas foi outro grande empreendimento do Estado iniciado em 1995, e, ainda, em fase de execuo. A 1 etapa, que prev a irrigao de uma rea de 10. 666 hectares, localiza-se margem esquerda do rio J aguaribe, entre a confluncia do rio Banabui e a cidade de Russas, rea situada entre os municpios de Russas, Limoeiro do Norte e Morada Nova. Esse novo espao produtivo ser voltado para a fruticultura e olericultura, com a utilizao da irrigao por asperso convencional e por gotejamento. Das culturas previstas no projeto destacam-se: o algodo, abbora, abacaxi, citrus, feijo, maracuj, melancia, milho, soja e uva. A captao da gua ser feita na margem esquerda do rio Banabui, a montante da barragem de derivao do permetro de Morada Nova, distante 20 Km da rea a ser irrigada. Cf. Idem, ibidem. p. 152. 123 Diferentemente da agricultura de sequeiro, praticada pelos sujeitos desta pesquisa, a agricultura irrigada se caracteriza pelo alto padro tecnolgico e repousa sobre lotes organizados impositivamente em comunidades rurais integradas. Utiliza, alm da mo-de-obra familiar, mo-de-obra assalariada e/ou 80 Assim, o conjunto das histrias ouvidas muito se refere memria do trabalho na terra, assim como ressalta que a sua organizao tem por base a famlia - como veremos mais adiante. Antes, porm, preciso dizer que o tempo do trabalho todo preenchido por atividades rurais, cuja marcao feita pelo calendrio agrcola comum regio, ou seja, pelo tempo do plantio, da limpa e da colheita que marcam os seis primeiros meses do ano. No perodo do vero, agosto a dezembro, os camponeses, sobretudo aqueles que moram nas reas de influncia dos rios, onde se concentram os grandes carnaubais, transformam-se em mo-de-obra para ser utilizada tanto nas reas onde predomina a atividade extrativista como nas agroindstrias instaladas principalmente na serra do Apodi. Quanto aos camponeses que habitam as regies de caatinga, geralmente empregam-se no corte da madeira para abastecer de matria prima as indstrias de cermicas da regio. De acordo com o calendrio agrcola comum regio, geralmente no ms de dezembro, na doce esperana de um bom inverno, que os camponeses brocam os roados. Este trabalho consiste na limpeza do terreno atravs do corte dos galhos e das ramas. Em seguida, deixam passar alguns dias para que o sol possa secar todo o arvoredo derrubado. A partir da, segundo Gustavo Barroso, ateia-se fogo dando incio a queima dos mais altos montes de galhos, as rumas de folhios, as touceiras de capim amarelo, cuidando em que no encrue, isto , que no queime somente aqui e ali, por falta de vento que atice o fogo ou por no estar ainda o mato bem seco. 124
O Sr. Onofre Augusto dos Santos, por exemplo, inicia o trabalho de preparao da terra para o plantio ainda no ms de dezembro. Contudo, o plantio das sementes s realizado quando a terra estiver bem molhada, geralmente depois das primeiras chuvas do
flutuante. Cf. Maria Antnia Alonso de Andrade. Relaes de Trabalho e Relaes de Poder: Perfil de duas reas Geopolticas. op. cit. pp. 234 e 235. 124 A propsito da falta de vento, Gustavo Barroso diz que expediente comum entre os camponeses chamar o vento atravs de um longo e demorado assobio. Cf. Gustavo Barroso. Terra de Sol ( Natureza e costumes do Norte). 5 ed. Rio de J aneiro: Livraria So J os, 1956. pp. 53 e 54. 81 ms de janeiro; caso contrrio, as sementes no se desenvolvem em virtude da quentura do solo.
Cumeo a ajeitar em dezembro vai int uns diazim de janeiro, n? Que quando chegar chuva, pranto logo. S pranto quando molhar, n? Enquanto num mia num pode... pode prantar. Porque s vez como eu digo, s vez a gente pranta na chuvinha fraca a escalda todim, n? Num nasce, escalda. Agora der uma chuva boa, que a gente ver que nasce, prantar. Aqui um ano eu tive muito feijo e muito mi, porque eu cumecei ajeitar a terra no cumecim de dezembro. A, quando foi ali nos diazim de... a bem pelo dia 10, dia 12 de janeiro cumeou o inverno bom, a eu prantei. Isso foi ano trasado, deu uma chuva boa a eu prantei, deu legume bom. 125
Evidentemente, esses perodos de preparo da terra e plantio no so rgidos, ocorrendo variaes em virtude de algum imprevisto - doena ou morte de algum membro da famlia, por exemplo - ou, como mais comum acontecer, a demora no incio das chuvas. De modo geral, os camponeses tm na plantao do feijo, do milho, da melancia e do jerimum a sua principal atividade agrcola. No entanto, o Sr. Onofre revelou que de todas essas culturas, a da melancia a que ele mais gosta; sobretudo porque d paisagem do campo uma beleza esttica que enche os olhos do velho Onofre.
Pranto feijo, milho, a pranta que eu gosto mais melancia, gosto muito, melancia gosto muito. Ano trasado eu fiz uma pranta de melancia, l em casa eu queria que voc visse a melancia era isso; (...), s po gosto mermo. Quando chega l em casa, eu pego dou uma, dou duas, dou trs... ta, uma melancia pa voc levar. Mas, mermo s po gosto, porque eu acho bonito, dou valor, dou o maior valor.
Seu Onofre explica, ainda, que quando se planta no ms de janeiro o feijo e o milho, e o perodo chuvoso inicia-se logo em dezembro, no ms de maro tem-se, no seu dizer, muito legume pra colher. Quando isto ocorre, comum os camponeses realizarem uma nova plantao para ser colhida provavelmente no ms de maio.
A pranta, toda pranta, uma pranta minha eu nunca vendi um caroo, nunca, nunca vendi um caroo, nem mi, nem roa. , prantando em
125 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. 82 janeiro e tendo umas chuva boa, pelo meno o ... o ... o feijo e o milho... janeiro, fevereiro e maro, no ms de maro j tem muito legume; d pra colher. (...), chovendo no ms de dezembro, chovendo bem em dezembro, o cara pranta em dezembro quando for... dezembro, janeiro, fevereiro, maro, quando for em maro pode prantar de novo que d, d.
Quanto cultura da mandioca, esta sendo plantada em janeiro, necessita de um perodo mais longo para a sua colheita que ocorre geralmente no ms de julho. No entanto, para que se tenha uma boa produo de farinha, preciso que a estao chuvosa seja favorvel. Se por acaso houver escassez de chuvas, a planta num pega; caso ocorra o contrrio, ou seja, um rigoroso inverno, haver uma diminuio na produo de farinha uma vez que as roas ficaro brejadas.
Agora a roa, mandioca, a farinha da mandioca, o caba prantando ela em janeiro, quando for janeiro, fevereiro, maro, abril, maio, junho, julho, em julho pode arrancar. Por aqui, tem muito desse servio. A pranta sai uma coisa medonha sendo um bom inverno; agora num sendo, num sendo num pega.
Assim, aps as primeiras chuvas do ano, o penhor da vida fica confiado guarda fiel da terra fecunda. A cinza molhada, serve de adubo para a terra. Pronto o roado, preparadas as sementes, os camponeses ento comeam o plantio tomados de sonhos e de expectativas de prosperidade no ano que se inicia. 126 Nesse sentido, a relao que os camponeses mantm com a natureza apresenta-se muito mais prxima a uma situao de possibilidade do que a algo dado e previsvel; uma vez que a experincia camponesa constitui-se em grande medida na expectativa que os mesmos tm em torno das manifestaes da natureza - inverno ou seca.
126 Segundo Gustavo Barroso, depois de prontos os roados, era prtica comum entre os camponeses fincarem uma grande vara rematada por uma caveira de boi ou por um chifre junto da cerca. Para Barroso, esta prtica representa "um ltimo resqucio de velhos cultos e velhas supersties da humanidade, da crena em poderosos talisms que atraem sobre os vegetais e animais a abundncia e a vida; (...)".Cf. Gustavo Barroso. Terra de Sol ( Natureza e costumes do Norte). op. cit. pp. 54 e 55.
83 O processo pelo qual realizam o plantio bastante simples. Em primeiro lugar, um campons tendo por instrumento de trabalho uma enxada, vai cavando as covas. Acompanhando-o, quase sempre segue a mulher e os filhos que vo lanando as sementes dentro das covas e cobrindo-as com a terra que empurrada com um dos ps. Planta-se freqentemente o feijo, o milho, a melancia, o jerimum, a mandioca, o algodo... Encerrado o plantio, os camponeses ficam at o perodo da colheita fazendo o que eles chamam a limpa dos roados. 127
Dentre os cereais cultivados, o feijo o preferido pelos camponeses, tendo como uma das razes seu rpido crescimento. Ademais, prprio da cultura camponesa cultivar os produtos de subsistncia que asseguram a sobrevivncia imediata da famlia. A famlia constitui-se, pois, em uma unidade de produo fundamental, tendo em vista que as prprias necessidades impostas pelo viver no serto reforam os laos de solidariedade familiar. Assim, estando normalmente voltado para a subsistncia da famlia, o trabalho na agricultura emergiu na lembrana dos depoentes como sendo uma atividade de carter familiar, na qual todos estavam inseridos desde a infncia. Atravs dos fragmentos de suas memrias, foram aflorando os fatos vividos em meio a um cotidiano de trabalho que pouco a pouco, foi sendo refeito.
Comecei a trabaiar eu era to novo que papai cortava certo tipo de madeira a, e eu num pudia carregar (...) saa arrastando. A, cortava pracul, praqui, pracul, e eu vinha arrastando. Quando era mais tarde, tinha aquele bucado; vinha, encontrava, butava na ruma. A vim vindo, fui me dedicando nessa... nessa vida, nessa vida, nessa vida. Um pouco mais, j era mais (...) j cortava... Eu passava de semana inteirinha no mato, a, era um rapaizim bem novim, semana inteirinha no mato. Nesse tempo, tinha una, tinha tudo, mais eu num tinha medo, s eu e Deus e um cachorrim que eu criava, viu? Passava o dia cortando madeira, quando era ditardizinha era s... batia a pueira, cumia a alguma coisa e ia pa rede, viu? De noite eu tava acordado, que quando dava f o cachorro acuava, eu ia pr l, s vezes era um tatu, um tamandu, uma coisa que ele acuava. Saa do rancho, ia caar e acuava, viu? (...). Quando era de manh, os minino, meus irmos, iam buscar as madeira que eu cortava, viu? Porque l num dava pa durmir com (...). Todo dia eles bem cedim iam l, pegava a madeira que eu tinha
127 Gustavo Barroso. Terra de Sol ( Natureza e costumes do Norte). op. cit. pp. 54 e 55. 84 cortado, deixava gua pra mim, cumida. E, assim, fui levando a vida, fui indo, fui indo, fui indo. A, depois fui tomando mais uso da razo, e... e... e trabaiando, butando roado, butando roado, tudo, (...). Pa trabaiar, hoje que eu num presto mais pra nada; mas, toda vida fui distabefado pa trabaiar. Mas, trabaiava mermo, butava roado, fazia safra boa. Depois me casei, fui tomar conta da minha casa, quebrei as perna de papai porque eu era o chefe de... que ajudava papai no maxo possive. Mas, nunca disprezei ele no, viu? 128
Embora algumas etapas do trabalho na roa fossem executadas quase que exclusivamente por homens, como o caso da broca dos roados, as mulheres participavam intensamente do plantio, da limpa e da colheita como afirma, a seguir, D. Ana Francisca do Esprito Santo. No entanto, essa participao era vista como uma ajuda ou como uma continuao de suas atividades domsticas e, como tal, no revestido de muita importncia, contrariamente ao que pensam elas prprias. 129
Trabaiava, tambm. Tambm alimpava de inxada e colhia. Apanhava feijo, quebrava mi, assim tivesse, e algodo. No tempo de algodo, era de dento do cercado apanhando algodo. 130
Ao referir-se ao tempo de algodo, D. Ana Francisca deixa entrever a importncia que essa cultura tinha na vida dos pequenos produtores rurais. Muito mais do que os outros produtos agrcolas o feijo, o milho, a mandioca... -, geralmente produzidos para a prpria subsistncia do grupo familiar, o algodo, como produto comercial, tinha um outro valor e uma outra destinao. Assim, com o produto da
128 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista realizada no Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. Pai de quatorze filhos, o Sr. J oo Pereira reside sozinho numa pequena casa de alvenaria construda em 1998 em substituio a velha casa de taipa. Sua esposa, Maria Rocha Pereira, mora na cidade de J aguaruana em companhia de alguns de seus filhos. Proprietrio de trs hectares de terra, seu J oo cultiva feijo, milho e melancia. A comunidade do Aude do Coelho, composta por oito casas, situa-se no sop da serra do Apodi, distante dezessete quilmetro da cidade de J aguaruana. As casas no dispe de energia eltrica e o abastecimento dgua feito, de forma precria, por carros-pipa que, no perodo do inverno, fica interrompido em virtude das veredas, que do acesso comunidade, ficarem intransitveis. O pequeno aude que d nome comunidade, permanece seco a maior parte do ano. 129 Maria Anglica Motta-Maus. Trabalhadeiras e Camarados: relaes de gnero, simbolismo e ritualizao numa comunidade amaznica. Belm: Centro de Filosofia e Cincias Humanas/UFPA, 1993. p. 84. 130 Ana Francisca do Esprito Santo, 94 anos. Entrevista gravada na comunidade do Cercado do Meio, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000. D. Ana mora na companhia de duas filhas solteiras: Maria da Conceio, 60 anos, e Ana Rosa, 72 anos, que vive numa cadeira de rodas. Outros dois filhos, um homem e uma mulher, moram prximos sua casa. Segundo D. Ana, 85 venda do algodo comprava-se, entre outras coisas, a roupa e o calado para a famlia, alm de possibilitar a quitao de alguma dvida. Segundo Hidelbrando Soares, a atividade algodoeira invadiu a regio desde a bacia do Jaguaribe at a Chapada do Apodi.
Com a implantao do cultivo do algodo enquanto uma atividade comercial, no final do sculo XVIII no Cear, os espaos alm vrzeas so incorporados ao processo produtivo em funo da formidvel adaptao da cultura as condies do semi-rido. A atividade algodoeira invadiu a bacia do Jaguaribe, contudo, a lavoura do algodo herbceo, mais dependente da umidade, distribui-se principalmente na Plancie Aluvial, enquanto o algodo arbreo ocupava os tabuleiros pr- litorneos, a Depresso Perifrica e a chapada do Apodi no baixo Jaguaribe. 131
Apesar de ter sido considerado o ouro branco do Cear, o algodo tem hoje um baixo ndice de produtividade e uma reduzida rea cultivada. 132
Hoje, com noventa e quatro anos de idade, D. Ana Francisca no lamenta tanto os anos que passaram, mas, as dificuldades que tem enfrentado por no poder mais andar e nem enxergar como antes L, os anos, esse a num voltam no. Mas, o meno a vista eu achava bom. Se no passado o espao vivido estendia-se para alm das fronteiras de sua casa; no presente, o espao da velhice tem-se restringido exclusivamente ao interior desta. 133
Hoje que num... num sou mais nada. Porque num sendo assentada, as minhas pernas no anda. Eu sou paralizadazinha, as minhas pernas inchada e duente, durmente. Eu, me pondo em p, s fico se for
poder olhar pra uma banda e outa e ver sua famlia, seus pertencente, para velha depoente, sua maior riqueza. 131 Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e reorganizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte Ce. op. cit. pp. 40 e 41. 132 Segundo Rejane Vasconcelos Carvalho, a crise algodoeira se configura no decrcimo dos ndices de produtividade do algodo cearense: no perodo de 1947 e 1963, o ndice de produtividade do algodo no Cear foi de 350 kg/h, caindo no perodo de 1969 a 1973 para aproximadamente 200 kg/h. No que se refere a rea cultivada, o algodo cearense teve sua fase urea de expanso entre 1958 e 1965, atingindo percentual mdio anual de crescimento de 10,9%, seguindo-se porm uma fase de ntido declnio de 1966 a 1973, quando o percentual anual de crescimento foi de apenas 3,8%. Cf. Rejane Vasconcelos Carvalho. O Estado e os programas de apoio pequena produo. In. Revista de Cincias Sociais vol. X. n 1 e 2. Fortaleza: 1979. 133 Sobre a psicologia do espao vivido na velhice, ver: Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 26. 86 agarrada. Eu boto esse pano aqui, pra agarrar aqui pra puder me segurar assim em p. Num sendo, num ando pra ir ali.
(Foto 06 D. Ana Francisca Stio Tom - Quixer)
Assim como D. Ana Maria do Esprito Santo, D. Rosa Maria de Almeida revelou que desde criana trabalhava na agricultura ajudando aos seus pais e que o casamento com o Sr. Zacarias Francisco de Almeida, em 1955, no representou para ela uma ruptura do espao infantil; uma vez que continuou a trabalhar na agricultura. No obstante, dois anos aps o casamento, quando comeou a constituir famlia, D. Rosa Maria passou a se dedicar mais s tarefas relativas casa e maternidade dos filhos do que as do trabalho na roa.
Toda vida, desde o tempo dos meus pais. Papai era agricultor, criou ns tudim na agricultura. E, depois me casei, vim pra c do mermo jeito. Quando eu me casei, eu comecei... eu me casei em 55 e tive o primeiro minino em 57, mas, quando eu casei ns fazia era assim: ns ia po cercado, eu deixava a panelinha no fogo, a eu ia po cercado mais ele. Quando chegava s onze hora, ali j tava cunzido aquele feijo, j tava cunzido. Ns cumia, ia dar gua os bicho que toda vida ns criemo, a 87 ns voltava de novo, chegava s seis hora. A quando foi 57, a eu cumecei a ter famia, a pronto, a j fui trabaiando mais em casa. 134
Todavia, to logo fosse possvel, a me retomava os trabalhos na roa mesmo que, para isto, fosse preciso levar a criana em sua companhia e deix-la deitada em uma reidinha armada numa barraca que o Sr. Isac construa para esta finalidade. Foi assim, desdobrando-se no comprimento das funes de dona de casa, de me de famlia e de trabalhadora da roa, que D. Rosa Maria de Almeida revelou ter criado todos os seus filhos.
A, quando os minino crescero mais, a eu levava era tudo po cercado. Arrumava uma reidinha na barraca que ele fazia no cercado, era os minino deitado e ns trabaiando. E eu criei os meus fi tudim assim.
Portanto, de acordo com os relatos de memria de D. Rosa Maria, as mulheres desempenhavam as suas funes tanto em casa como no cercado, embora sua participao fosse compreendida como sendo meramente de apoio quelas desenvolvidas pelo homem. De maneira geral, o que fica evidente nos discursos coletados que a atuao da mulher est relacionada esfera domstica, ao mesmo tempo em que se assinala uma total ausncia da atuao masculina nos trabalhos da casa. D. Luzia Maria da Silva, moradora da Pacatanha, comunidade rural localizada em cima da serra do Apodi e distante vinte e dois quilmetro da cidade de Jaguaruana, informou que s sai de casa para ir a uma Missa, a uma festa da Igreja ou mesmo fazer alguma compra na cidade, quando sua filha Lena, j casada, pode assumir as tarefas da casa.
Ficando s os home em casa, num resove nada. Precisa cunzinh um cumer, but uma gua... Ta, eu onte sa, ela se discuidou, cheguei as galinha tava com sede, a o pote tava seco, as pombinha tambm tava
134 Rosa Maria de Almeida, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. Casada com o Sr. Zacarias Francisco de Almeida, D. Rosa teve quatorze filhos, tendo criado onze deles.
88 com fome... A, eu t assim, (...) quando ela sai eu fico, sai uma fica a outa. 135
A participao masculina nas atividades domsticas tidas como atribuio feminina - cozinhar, lavar e passar as roupas do marido e dos filhos; providenciar o abastecimento de gua nos potes para o consumo de todos; fazer a limpeza da casa e do terreiro, alm de cuidar dos animais domsticos - s se faz sentir circunstancialmente, quando a mulher tem necessidade de ajuda. A atuao do homem, via de regra, compreende a esfera externa, ou seja, d-se para alm das fronteiras domsticas e da prpria comunidade. 136
D. Rosa Maria fez questo de ressaltar em sua entrevista, que criou todos os seus filhos no mesmo sistema em que foi criada, ou seja, trabalhando religiosamente todos os dias da semana era muier, era home, era tudo -. No entanto, quando chegava o perodo de matricul- los na escola, processava-se uma alterao no horrio de trabalho de modo a permitir-lhes freqent-la.
Quando chegava o tempo de ir pa escola, a... a eu no - agora t em tempo dos minino ir pa escola, vou deixar mais o cercado. A, chegava aquela hora... estudava de manh e quando estudava da mei dia pa tarde, passava de manh at dez hora no cercado a vinha tumava banho, almoava, a ia pa escola. E assim, graas a Deus, criei os meus fi tudim. Hoje eu t sozinha mais ele, que esse rapaizim que entrou a que meu neto, s ns trs dento dessa casa. Graas a Deus criei os meus fi tudim, hoje to tudo nas suas casas. Ns trabaiamo muito, trabaiei muito mais ele. Meus fi nunca tivero liberdade de pissuir uma baladeira no, pa matar passarim, pa andar pra cima e pra baixo que nem hoje eu vejo, no. Amanheceu o dia aqueles maiozim, eu me levantava cedo, dava a merenda dele, vo simbora. A ele chamava, acompanhava po cercado at aquelas hora de ir pa escola. 137
135 Luzia Maria da Silva, 73 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 02/02/1999. Casada com o Sr. Antnio Eugnio da Silva, D. Luzia teve quinze filhos. 136 Mesmo no tratando de uma comunidade rural nordestina, o trabalho de Maria Anglica Motta-Maus, sobre as relaes de gnero em Itapu, comunidade situada no interior da Amaznia, constitui-se numa boa referncia para este trabalho. Cf. Maria Anglica Motta-Maus. Trabalhadeiras e Camarados: relaes de gnero, simbolismo e ritualizao numa comunidade amaznica. op. cit. pp. 79 e 91. Ainda sobre relaes de gnero na Amaznia, ver: Cristina Scheibe Wolff. Mulheres da Floresta: uma histria: Alto Juru, Acre (1890-1945). So Paulo: Hucitec, 1999. 137 Rosa Maria de Almeida, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. 89 Por no existir nenhum grupo escolar, as crianas e jovens da Lagoa de Santa Terezinha, distante dezesseis quilmetros da cidade de Russas, tm que se deslocar, para cursar o ensino fundamental, cerca de dois quilmetros, at a comunidade do Peixe, e, o ensino mdio at a cidade de Russas. Quanto ao ensino superior, apenas a cidade de Limoeiro do Norte, distante trinta e seis quilmetro da cidade de Russas, possui uma unidade da Universidade Estadual do Cear UECE. imperioso perceber no depoimento de D. Rosa Maria, o valor que ela atribui ao trabalho como um meio de manter junta toda a famlia, dentro de uma coerncia dos valores morais e sociais. Por outro lado, a ociosidade representa, em sua fala, o declnio do trabalho como valor central da famlia.
Os meus fi nunca... sbado e domingo t certo, mas, na semana era ajudando ele [o pai]. Num criei meus fi vagabundando no, jogando bola. Isso no, eles viero jogar bola depois de home j refeito. Que nove, dez ano num tinha liberdade de jogar de bola no, porque se fosse jogar de bola como que ns ia criar s eu e ele trabaiando pum bucado de gente? Era muier, era home, era tudo, tudo no cercado. Eu tinha uma, que caba que num fosse bom, num ia com ela na inxada.
Portanto, assim como as mulheres, as crianas tambm participavam diretamente do trabalho na roa. Tanto os meninos como as meninas eram introduzidos desde muito cedo no cotidiano de trabalho da famlia, ocupando-se de pequenos servios, como, por exemplo, fazer pequenas compras no povoado mais prximo ou levar gua, muitas vezes acompanhada de um pedao de rapadura, para quem estava trabalhando na roa. A partir dos sete ou oito anos de idade, passam a ajudar na limpeza das plantaes, na capina do mato. Mesmo no se observando uma clara diferena quanto s atividades assumidas por meninos e meninas, no resta dvida que, na medida em que ambos iam crescendo, essa diferena ia-se fazendo sentir. Desta forma, enquanto os meninos dispunham de uma maior liberdade, no sentido de possurem uma maior mobilidade territorial, 90 em virtude das prprias atividades que a eles eram confiadas, as meninas eram logo introduzidas no esquema de atribuies caractersticas do seu gnero. A funo prtica dessa preparao das meninas para assumir suas funes domsticas, inclusive a responsabilidade de cuidar dos irmos menores, est em liberar, de certa forma, as mes para outras atividades, especialmente para os servios na roa. Mesmo a me no estando ausente de casa, as meninas prestam-lhe ajuda, ou mesmo executam em seu lugar os servios de limpeza da casa, de preparo dos alimentos, bem como da lavagem da roupa da famlia. Mesmo sendo preparadas para as funes domsticas, as meninas no deixam de participar dos trabalhos da roa. Cumpre lembrar, ainda, que qualquer especificidade que se possa notar nas tarefas assumidas pelas crianas, de ambos os sexo, est ligada aos seus futuros papis como adultos. 138
Com seus noventa anos de idade, e com muita espiriituosidade, o Sr. Amaro Jos da Silva foi reconstruindo as imagens de sua vida, tendo como primeira referncia as lembranas que guarda do trabalho na lavoura que realizava junto a seu pai.
Quando chegava assim... quando chegava o inverno, a papai me tirava da escola pa ajudar a ele trabaiar que era pobezim mermo, ajudar a trabaiar pa gente comer. Aquilo... agente fazia... ele fazia aquelas safra e eu piqueno ajudava a ele. Nesse tempo, eu tava ajudando s plantar semente, num pudia com a inxada, n? 139
Quando completou oito anos de idade, embora fosse ainda muito pequeno, seu Amaro passou a insistir junto a seu pai para que este lhe preparasse uma enxada adequada sua condio fsica, de modo a permiti-lo participar tanto do trabalho de capinao quanto da abertura das covas para o plantio das sementes.
138 Maria Anglica Motta-Maus. Trabalhadeiras e Camarados: relaes de gnero, simbolismo e ritualizao numa comunidade amaznica. op. cit. pp. 62, 63 e 64. 139 Amaro J os da Silva, 90 anos. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferro, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. 91 Quando eu... com oito ano a eu peguei a pidir uma inxada a ele. Ele: - 'no voc num pode com a inxada'. Eu digo: - no, uma inxadinha piquena. Papai, encaibe a inxada que trabalhava no outo ano. - 'No, mais voc num pode!' Mas eu pelejei, pelejei at que encaibou uma. A foi eu fiquei ajudando a ele, at ele morrer.
No entanto, embora seu pai fosse vagaroso, num era dessas pessoas que trabaiava ligeiro, seu Amaro no conseguia acompanh-lo no mesmo ritmo de trabalho. Decepcionado, o menino Amaro foi acometido por um profundo desestmulo a ponto de deix-lo coando a cabea enquanto seu pai continuava limpando a terra.
A, o vio encaibou a inxada, eu digo rumbora. Um pouco adiante, chegava l. Ele era trabaiador, mas era vagaroso, num era dessas pessoas que trabaiava ligeiro. E ele... Ns fumo alimpar eu mais ele, n? Chegava, ele tirava duas carreira, ele tirava duas carreira nessa moleza e eu num podia acompanhar o vio. Eu digo, t ruim desse jeito. Eu sei que nesse mermo ano, adepois pegou a me dar priguia com desgosto que ele tirava aquelas duas carreira e eu com uma. Peguei a dar uma pioiada na cabea, de vez em quando coar sem ter piolho. Ele se virava assim, - 'mas rapaz voc tem muito piolho' (risos). Eu digo: - tem no papai, isso porque ... os piolho... como ? Piolho tem mermo, porque morde. Mas, ele sabia que eu num tinha piolho no. Da l vem, l vem, l vem... A, quando eu ajudei, peguei a ajudar a ele mermo...
Contudo, no ano seguinte, j com nove anos de idade e um pouco mais de experincia, seu Amaro requisitou ao seu pai uma enxada de duas libras e meia para trabalhar. Animado com o novo instrumento de trabalho, com aquele gosto de trabaiar com aquela inxada nova, n? o aprendiz de agricultor passou a superar o velho agricultor que era seu pai.
No outo ano, quando foi com nove, eu pidi foi uma inxada de duas libra e meia; ele me deu. Quando foi com nove, eu j tava butando duas nele, n? Peguei l a inxada nova com aquele gosto de trabaiar com aquela inxada nova, n? Cheguei l, agarrei mais ele fui mimbora, fui mimbora e voltei, quando cheguei levei outa e cheguei igual com ele. Eu digo: H! Agora, agora eu aprendi (risos), agora o vi meu pai num passa outa mais no; e, fiquei dum jeito que num tinha ningum aqui que me acompanhasse na luta, no trabaio.
92 Ao atravessar essas paisagens to familiares, o velho Amaro contou-me, ainda, que seu pai praticava uma agricultura de vazante, 140
o que lhe permitia cultivar a terra, inclusive, no perodo do vero. A jornada de trabalho, que comeava logo cedo, estendia-se, geralmente, at ao meio dia. Todavia, havia dias em que seu pai largava o trabalho na vazante mais cedo, por volta das onze horas do dia, e encaminhava- se para o rio pa pegar aquele peixe pa trazer pra casa para a famlia toda almoar. Enquanto isso, sua me, na companhia de sua irm mais nova, ficava em casa trabalhando na produo de chapus feitos da palha da carnaba. Quando seu pai chegava em casa vindo do rio, sua me ia com aquele peixe concertar, ou seja, trat-lo; enquanto seu Amaro, obedecendo s ordens do pai, dirigia-se pa budega, pra ir cumprar um lito de farinha para comerem com o peixe.
Agora aqui sabe o qu que ele fazia pa... pa nos criar, pa ns... e criando ns? Era, ns passava trabaiando l na vazante at mei dia; dias, ele largava ali s onze hora ia pescar no rio, n? Pa pegar aquele peixe pa trazer pra casa pa ns comer. E mame, ficava em casa mais uma irm que eu... uma irm que do meu tempo, eu dum ano e ela de outo, n? Trabaiando fazendo chapu, acho que voc sabe o que sirvio de paia, sirvio de paia, trana de chapu. A quando ele chegava com o peixe, a mame ia com aquele peixe concertar e ele j me empurrava pa budega pra ir cumprar um lito de farinha. Nesse tempo, num era quilo era lito de farinha pa comer com aquele peixinho, n? Quando acabava de comer, de novo l pa vazante. Assim, l vem o negcio.
O fato emblemtico, nas lembranas do Sr. Amaro, de que desde criana, homens e mulheres do campo so introduzidos no trabalho artesanal da lavoura. Nesse sentido, os mais velhos do campo so, por assim dizer, os responsveis pelo repasse do domnio sobre um conjunto de conhecimentos e tcnicas que, somado s experincias de
140 A lavoura de vazante emprega um processo de rega inteiramente peculiar ao Nordeste. a cultura que o campons faz no leito dos rios e nas margens dos audes, medida que o nvel das guas vai baixando. Quando isso ocorre, o homem simples do campo aproveita no s a umidade profunda do terreno, mas ainda o limo fertilizante que fica depositado com o recuo das guas. Cf. Arrojado Lisboa. O Problema das Secas. Conferncia realizada em 25/08/1913. Publicada nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de J aneiro. Vol. XXXV, 1913. In. DENOCS. Pensamento e Diretrizes. Edio comemorativa do 75. aniversrio do DNOCS. Fortaleza, 1984. p. 22.
93 vida adquiridas com as prprias vivncias individuais, permitem-lhes prover sua subsistncia. Em todas as narrativas, as lembranas do trabalho esto diretamente relacionadas constituio da famlia. Assim, fica evidente o quanto todos os seus membros esto empenhados na produo da subsistncia da unidade familiar. O envolvimento de toda a famlia no trabalho agrcola pode ser interpretado em primeiro lugar como a no predominncia das relaes capitalistas no serto, nas quais predomina o trabalho assalariado; e, em segundo lugar como parte dos valores que compem a condio camponesa, pois demarca a autonomia, o controle e a administrao do trabalho e de sua produo. Contudo, muitas das vezes, a famlia no era em nmero suficiente para a extenso do trabalho no roado, na apanha do feijo, na quebra do milho, na desmancha da mandioca... Quando isto ocorria, apelava-se para a solidariedade e para o esprito comunitrio dos parentes e vizinhos para fazerem o adjunto. 141 Cumpre lembrar que os laos de solidariedade familiar representam uma afirmao dos valores sociais, baseados numa tradio 142 camponesa que vinha desde os antigos. Os adjuntos constituam-se na reunio dos parentes e vizinhos na casa daquele que estava necessitando do esforo coletivo para a realizao de um determinado trabalho. Assim, auxiliando-se mutuamente, os velhos camponeses iam vencendo as dificuldades do dia a dia.
De primeiro, a gente prantava o roadim, trocava dez dia cum os amigos mermo, n? (...). Digamo, era dez, eu butava dez home, t rendo? Dez home. A, quando... tudo trocado, t rendo? Eu ia um dia pa
141 Segundo Gnaccarini, (...) O multiro amplia a economia de subsistncia e a diviso natural do trabalho, inerentes ao sistema econmico-social do grupo domtico. O multiro, como toda forma de troca direta, efetiva o intercmbio em condies de ludicidade de uma maneira ritualizada. Cf. Jos Csar Gnaccarine. Latifndio e proletariado: formao da empresa e relaes de trabalho no Brasil rural. So Paulo: Editora Polis, 1980. p. 114. [grifo do Autor] 142 Segundo Durval Muniz, a tradio um princpio essencial de regulamentao do comportamento em certos tipos de organizao social, que ela implica em um julgamento de valor sobre o elemento transmitido, na crena em seu carter sagrado e inquebrantvel; no simplesmente a transmisso de elementos da vida social. Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877 a 1922). op. cit. p. 107. 94 um, um dia pa outo, um dia pa outo, um dia pa outo, at pagar os dez dia que eu ia trabaiar no meu. 143
Ao atravessarem os sertes do trabalho atravs de suas lembranas, meus amigos de travessia dificilmente se referiram a acontecimentos dos quais apenas eles prprios tomaram parte. Sendo assim, das lembranas individuais, emergiram sempre narrativas que revelam quanto so coletivos os fatos lembrados. Assim, ao se tomar como referncia os adjuntos, percebe-se a fora que alguns valores como a honradez, a tica do trabalho, a solidariedade e o esprito comunitrio, tm na estrutura de vida dessas pessoas. Portanto, a honestidade, que aparece em todas as narrativas atravs das mais variadas expresses, constitui-se numa condio necessria e modelar da vivncia social nos sertes do trabalho. Alis, como observa Gilmrio Moreira Brito, o prometido, o apalavrado combinado, acertado -, remete fora e confiana na palavra falada entre grupos articulados por tradies orais. Assim, de diferentes modos, suas memrias possibilitam compreend-los enraizados na fronteira entre o letrado e a oralidade. 144
De modo geral, os depoimentos colhidos reproduzem narrativas minuciosas sobre o cotidiano de trabalho nos dias de adjuntos. No foi sem emoo, que o velho Pedro das Neves restabeleceu as lembranas de um adjunto que participou, no ano de 1949, nas terras do finado Antero. O Sr. Pedro conta que o adjunto era para arrancar o mato que havia crescido em meio plantao de mandioca. Em sua narrativa, seu Pedro ressalta a quantidade de homens sessenta e trs que trabalhou neste adjunto; bem como, a fartura de comida preparada pela patroa do finado Antero juntamente com aquelas companheira dela l, que moravam incostado, vizim, n.
Eu fui um adjunto numa mandioca velha... Oi, mandioca de fazer farinha, n? O senhor sabe. L no finado Antero nos Pocim, tinha sessenta e trs enxadeiro, n? Operrio, tudo nas inchada limpando a onde a mandioca velha. Nove palmo, duma carreira pa outa, o mato
143 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 144 Gilmrio Moreira Brito. Pau de Colher: na letra e na voz. op. cit. p. 185. 95 dessa altura aqui, um evano. Teve muitos operrios, que durante o dia, num tirou uma carreira porque num tinha nego de cortar; era de ponto duma ceica a outa, feita. E o cercado, a roa era grande, nera? Teve muitos que num tirou uma carreira, n? E, dento desses sessenta e trs home, ns almuncemo e jantemo no patro, que era o finado Antero, o dono. Ningum num viu cor de feijo cunzinhado, era carne, queijo, qualhada. Nesses sessenta e trs home, ningum num viu cor de feijo, almoo e janta. Merenda? Rapadura, saboga via preta, com farinha na merenda. As bacia no meio do ceicado, n? Mas, no almoo e janta, foi carne, queijo com rapadura. A, a negada cumeu at deixar. 145
No obstante os laos de solidariedade presentes em agrupamentos compostos por parentes e vizinhos, a descrio que o Sr. Pedro das Neves faz do adjunto que participou nas terras do finado Antero, no ano de 1949, sinaliza na direo que nos faz compreender o carter paternalista presente naquele tipo de relao social em que estava inserido o trabalho coletivo, ou seja, o adjunto. Conquanto o Sr. Antero no tenha sido caracterizado, no discurso do Sr. Pedro das Neves, como um pequeno proprietrio, uma leitura atenta, desse mesmo discurso, revelar o lugar social que seu Antero ocupava dentro das relaes de poder local. Como um pequeno proprietrio de terra, capaz de reunir sessenta e trs enxadeiro, trabalhando na limpeza do mato que crescia em meio sua plantao de mandioca, o patro Antero, atravs de seu paternalismo expresso na fartura de comida colocada disposio dos trabalhadores, demonstra o carter familiar que as relaes de dominao pessoal assumem no apenas nos sertes do Cear, mas em todo o interior nordestino. Segundo Csar Barreira, a dominao dos proprietrios to familiar quanto desconhecida ou imperceptvel pelos dominados. E pelo fato de ser familiar parece natural e eterna. 146
Efetivamente, essa veia familiar que mascara a dominao pessoal, justifica, por assim dizer, a saudade que o velho Pedro das Neves demonstra sentir quando recorda, no o dinheirim que recebeu da viva
145 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 146 Csar Barreira. Conflitos Sociais no Serto: trilhos e atalhos do poder. Tese de Doutorado. So Paulo, USP, 1987. p. 30. Citado por: Ivone Cordeiro Barbasa. Da Terra de Ningum Terra dos Homens: Experincias, lutas e representaes dos posseiros da Serra da Ibiapaba-Ce. Dissertao de Mestrado apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Cincias do Desenvolvimento Agrcola da UFRRJ . Itaja Rio de J aneiro, 1990. p. 63. 96 do Sr. Antero, como pagamento pelo seu dia de trabalho, mas a fartura de comida que foi colocada, igualitariamente, disposio de todos. Ademais, as relaes paternalistas caracterizam-se pelo tratamento aparentemente igualitrio entre indivduos de classes sociais diferentes. No entanto, esclarece Durval Muniz, esta cooperao paternalista traz em si um grande potencial de conflito, j que ao se considerarem iguais, abre-se perspectiva para que se passe da cooperao ao conflito, sempre que sejam desrespeitados os valores e normas costumeiras que regem estas relaes. 147
Torna-se imperioso atestar, mais uma vez, que o que qualificava este tipo de trabalho era a solidariedade na qual ele era realizado. Assim, a fora do trabalho coletivo representada pela soma da fora de trabalho de cada indivduo participante do adjunto, reduzia as dificuldades daquele que estava necessitando do concurso coletivo para brocar um roado, para fazer a limpa da terra, para realizar a apanha do feijo, na desmancha da mandioca, entre outras atividades. Em suas narrativas, meus depoentes deixaram entrever que o cardpio do almoo e do jantar representava a grande surpresa do dia. Assim, aquele que era beneficiado pelo adjunto, tinha a responsabilidade de providenciar a merenda, o almoo e o jantar para todos que estavam trabalhando. O Sr. Raimundo Nonato 148 lembra que nos adjuntos que reuniam um grande grupo de trabalhadores era comum matar uma criao, um porco; enquanto aqueles em que o grupo era menor, matava-se apenas algumas galinhas, coisinha fraca, no seu dizer. A narrativa do Sr. Pedro das Neves revela, ainda, a preocupao deste narrador em ressaltar, com certo tom de heroicidade, a sua destreza para o trabalho. A necessidade de pautar pelo tom pico a vida cotidiana de tempos passados esteve quase
147 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877 a 1922). op. cit. pp. 108 e 109. 148 Raimundo Nonato da Costa, 95 anos. Entrevista gravada na comunidade Canafstula de Baixo, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. Casado duas vezes, o Sr. Raimundo Nonato foi pai de quatorze filhos com sua primeira esposa e de dez com a segunda. Aos noventa e cinco anos de idade, seu Raimundo sobrevive, juntamente com sua esposa, da aposentadoria que recebem. Distante cerca de vinte quilmetros da cidade de Limoeiro do Norte, a pequena comunidade da Canafstula de Baixo est situada numa rea de caatinga, na margem esquerda da estrada de rodagem que leva ao distrito do Bixopa.
97 sempre presente nos depoimentos coletados, no se constituindo, portanto, numa singularidade do Sr. Pedro das Neves.
Foi im quarenta e nove, eu era solteiro. Uma inchadinha... Oi, uma inchada de duas libra. Eu, mais dois amigo meu, a nossa inchada tinha gume assim, tinha gume assim e tinha gume assim; tinha gume de todo lado, n? Pa todo lado que nis aoitava, cortava mato, n? Eu e ele, nis trs samo com as trs carreira. Mas, teve foi muito que s tiraro a metade da carreira, ficava no meio. Mas, nis era campeo, era os trabalhador, era caba inchadeiro, n? Tiremo as carreira fora, foi muito pouco que saram com as carreira fora. 149
Alm de evidenciar a centralidade que o trabalho possui na vida camponesa, o relato de memria do Sr. Pedro das Neves nos faz entrever tanto sua destreza para o trabalho como a existncia, no universo masculino, de relaes de competio entre os camponeses. Com isso, as relaes tradicionais, de modelo patriarcal, baseadas na solidariedade entre parentes e vizinhana, passam a ser mediatizadas mais por interesses do que por sentimentos. De maneira geral, j desde o final do sculo XIX se observa, embora de forma lenta, o rompimento das relaes tradicionais imperantes no campo, seja em funo da introduo de novas relaes de mercado, que desorganiza a produo familiar, seja pela introduo de novas formas de relaes de trabalho, ou pela prpria intensificao do seu ritmo. 150 Todavia, a partir dos anos de 1970, h uma ntida acelerao no processo de rompimento das prticas de solidariedade camponesa, provocada por uma poltica estatal de capitalizao do campo, que tinha como principal fundamento a criao de espaos que melhor abrigassem a lgica e a dinmica capitalista. 151 Em sua experincia concreta, os camponeses tm vivenciado de forma ambgua tanto a necessidade de manterem as relaes tradicionais de solidariedade mtua quanto a presena de
149 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 150 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877 a 1922). op. cit. pp. 117 e 118. 151 Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e reorganizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte Ce. op. cit. p. 18. 98 elementos ideolgicos negadores dessa experincia camponesa. 152 De todo modo, segundo Durval Muniz, a quebra do modelo tradicional de organizao camponesa, que tem na famlia seu ncleo principal, deixa os camponeses mais vulnerveis ainda a qualquer modificao trazida a suas vidas pela ocorrncia de infortnios, como as secas. 153
De acordo com o depoimento do Sr. Joo Delfino Bezerra, o tempo presente possibilita melhores condies de trabalho aos camponeses que no possuem um pedao de terra para realizar sua prpria plantao, uma vez que no regime de parceria, que se baseia na cesso da terra pelo proprietrio para ser cultivada por outro agricultor, este j recebe a terra arada, ou seja, pronta para o plantio. No obstante, o velho Joo Delfino lamenta o fato dos mais jovens no terem mais a mesma disposio para o trabalho na agricultura como ele tinha no seu antigamente.
Agora, hoje, tem um bucado de rapaz que num trabaia: - eu num vou trabai que pranta num d futuro, pranta num d futuro; vou prant um roado, arrancar rama de mandioca pos outo? Eu digo: - rapaz, rapaz num d futuro num prant. Hoje o camarada... Hoje que t bom do camarada prant, porque (...) os dono de terra (...) d as terra aradada po camarada prant, rapaz, e o camarada num quer, rapaz. Voc num t vendo que o tempo mudou muito, rapaz. H eu no antigamente, que eu achasse quem me desse isso; (...) eu escangarava, rapaz. Porque no outo tempo, que eu fazia isso, eu pricisava brocar, derrubar o pau, incoivarar, ceicar, pa prant, e eu dando da terrinha, assim, um alqueire de farinha de renda. E, agora, o camarada d a terra cultivada, tudo, e o camarada num pode porque diz que num tem futuro, rapaz. 154
No discurso do Sr. Joo Delfino, para alm da sua indignao com o fato dos jovens no quererem mais trabalhar na agricultura, observa-se, curiosamente, uma falta de percepo quanto ao sentido das transformaes ocorridas no serto, principalmente nas trs ltimas dcadas, efetivadas pela insero deste espao no mercado capitalista, alterando profundamente as relaes de trabalho no campo.
152 Ivone Cordeiro Barbosa. Da Terra de Ningum Terra dos Homens: Experincias, lutas e representaes dos posseiros da Serra da Ibiapaba-Ce. op. cit. pp. 202 e 203. 153 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877 a 1922). op. cit. p. 118. 154 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 99 Diferentemente das relaes tradicionais pautadas num regime de cooperao, os camponeses se vem obrigados a um ritmo de trabalho muito mais intenso, tendo que obedecer, muitas vezes, a ordens, horrios e regras, alm de estarem sujeitos a um salrio baixo e incerto. Por outro lado, se no se vem totalmente envolvidos pelas relaes do trabalho assalariado, acham-se, ao menos, submetidos a contratos de parceria ou de meiao, que lhes retiram a maior parcela de suas produes. Portanto, ao contrrio do que pensa o Sr. Joo Delfino, podemos compreender o fato de, no presente, haver um bucado de rapaz que num trabaia, como uma atitude de resistncia que se expressa no no querer prant um roado ou arrancar rama de mandioca pos outo. Portanto, expressa atravs das experincias individuais, a histria dos sujeitos desta pesquisa foi quase que totalmente voltada para o trabalho. Assim, ao reconstrurem em suas narrativas a histria de suas vidas, os depoentes demonstraram no s uma autoconscincia individual, mas, tambm, uma conscincia que coletiva. Desta maneira, a histria de suas vidas acaba sendo, de uma forma ou de outra, a histria de seus pais, avs..., uma vez que o passado encontra- se ancorado nos referenciais familiares marcados pelo tempo da fartura e da ventura. Procurando, pois, acompanhar a marcao desse tempo de fartura e de ventura, opto por demorar-me um pouco mais na travessia daqueles invernos, cujas emoes revividas, durante o processo de rememorao, fizeram emudecer muitos dos meus amigos de travessia. Embora, durante toda a travessia, as lembranas dos sertes das secas tenham sido sempre recorrentes, mostrando o quanto as secas servem de marcador temporal para organizao da vida dessas pessoas, as lembranas dos bons invernos foram as que mais importncia e mais fora tiveram em suas narrativas. Assim, atravs de seus relatos de vida, meus amigos de travessia, fizeram-me conhecer ainda mais a beleza dos sertes dos invernos. Em cada cena, que ia se 100 desenrolando no fio condutor de suas memrias, surgiam, carregados de sentido, os lugares da memria. Estes lugares, alm de revelarem imagens de um cotidiano de muita fartura, refletiam com muita nitidez seus sonhos e desejos. Recordando o tempo dos bons invernos, os velhos narradores foram redesenhando antigas e exuberantes paisagens de uma natureza em festa. Pois, esta natureza que tem mais vida e que pulsa com mais fora em suas memrias. Muitas vezes, emocionei-me ao v-los tentando traduzir as alegrias vividas, durante as estaes chuvosas, por saberem da fartura que o bom inverno traria. Nestes momentos, procuravam juntar as palavras a gestos discretos; como se quisessem serenar as emoes. Foi assim, envolvido num clima de profunda emoo, que vi um ou outro dos depoentes, voltando o rosto para os lados, tentando inutilmente impedir que as lgrimas fluissem. Revendo as cenas de terna felicidade que lhe marcaram a vida na casa de seus pais, D. Maria Rocha Pereira sentia dentro de si momentos de indescritvel emoo. Ao atravessar essas paisagens, to caras s lembranas de sua infncia, D. Maria representou esse passado como sendo um tempo marcado exclusivamente pela fartura.
Ah! O inverno l... teve muito inverno bom l, muita fartura. Papai tinha um aude l, quando chuvia era... no inverno, tinha a fartura do inverno, n? E, no vero, tinha fartura da pranta do aude que a gente colhia, (...), a gente prantava tudo naqueles moiados, n? (...). A casa de papai foi uma casa de fartura, muito leite, muito, ele tinha muito gado nesse tempo. 155
importante ressaltar, ainda, que durante toda a travessia pelos vrios tempos da memria das velhas e velhos camponeses, que se dispuzeram a contar-me suas histrias de vida, as lembranas da terra estiveram sempre relacionadas fartura dos bons invernos. Desta
155 Maria Rocha Pereira, 67 anos. Entrevista realizada na cidade de J aguaruana, no dia 18/08/1999. Casada com o Sr. Joo Pereira Cunha, D. Maria Rocha, me de quatorze filhos, reside na cidade de J aguaruana desde 1968, embora seu Joo Pereira continue morando, sozinho, nos trs hectares de terra que possuem no Aude do Coelho. Morando na companhia dos filhos solteiros, D. Maria aposentada e tem instalada no quintal de sua casa uma pequena tecelagem onde se fabricam redes de dormir. 101 forma, guardando na memria as reminiscncias que o pai contava a respeito do inverno de 1922, o Sr. Joo Pereira Cunha passou a record-lo com a emoo de um reencontro.
O papai disse que foi invocado, porque comeou... entro janeiro seco, sem d um pingo de chuva; fevereiro seco, sem d um pingo de chuva. Sim! Vinte e dois. o papai cuntava muito bem essa histria. Sem d um pingo de chuva, janeiro e fevereiro. A, o pessoal tudo no apelo: - dia de So Jos. A, vem dia de So Jos seco, sem d um pingo de chuva. A, o pessoal, o pessoal ismurecero, viu? O pessoal ismurecero. O papai disse, que no dia vinte e seis de maro, assim negoo de nove horas do dia, a diz ele que o tempo assim meio cizudo. A, tinha muita rama de batata prantada na areia, diz ele que era batata, nesse tempo tinha tanta batata na areia que era quais sem forma. Todo mundo tinha muita pranta, num tinha esse negoo de soltar gua, n? O pessoal aproveitava as vazante tudo, a era muita batata. A, foi arrancar uma carga de batata mais um irmo dele, a, olhou, viu... viu uma nuvizinha, viu que era bem istreitinha, chega era azulzim o tempo chuvendo nesse ano. Sei que s deu pa arrancar uma carga. Botou dois saco, uma carga im riba duma barreira se iscurregando todim. Papai disse que... Com que? Com oito dia o rio disinquietou gente dos baixo, viu? Em vinte e dois. 156
Ao rememorar a grande cheia ocorrida na regio jaguaribana no ano de 1924, D. Altina de Moura Lima destacou, em seu relato, que no passado era comum colher-se boas safras de feijo. Nesse sentido, D. Altina recordou a capacidade inventiva de seu pai, em criar meios para armazenar a produo de feijo, por ele colhida, em anos de bons invernos.
Deu... deu, num empatou. Matou muita coisa que tinha nos baixo, n? Mas, o que tinha nos canto mais alto, deu pra fazer. E, muita gente plantava, adepois da molhao plantava, n? A, havia... havia muita coisa, num faltava legume, no. Nesse tempo, Ave Maria, o povo plantava qualquer um pedacim de feijo, num tinha esse barulho de espurgar, nem nada. Sei que l em casa, papai apanhava feijo que as vez... Inda uma vez, ele apanhou muito feijo, a, fez um paiolzinho assim, no canto da casa, bem numa parede assim pra outa. Um paiolzinho mermo de barro, t vendo? Invarou, como quem invara puma casa, n? E tapou. E, butava uma camada de areia, butava uma de feijo, butava outa de areia, de feijo, encheu esse paiolzinho. Agora, areia peneradinha na urupemba. Porque, quando a gente quiria cumer tambm, a penerava que era pra areia num ter peda, num ficar peda no feijo. A, do mermo jeito. Me lembro, que ele guardou tanto feijo
156 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade do Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 102 nesse paiol. Um paiol com areia (risos). As coisa tudo era muito diferente dagora, n? Ave Maria, nem se compara. 157
Em sua travessia pelos sertes dos invernos, o velho Joo Pereira Cunha demorou-se um pouco mais nas lembranas de outros bons invernos. Assim, falou-me, ainda, do trabalho e da fartura de feijo e de melancia que sua famlia colheu no inverno de 1933.
A, era chuva de dia e de noite l (...) 33, a foi ele vei simbora. 158 Fez as impreita com os vizim de roado, que ele tinha l pa prantar. (...). Papai arrumava a semente, papai prantava o roado deles, pa quando ele viesse tirar a pranta dele j t nascida. O vi fez uma terrada boa, a tumemo umas (...) tambm ns prantemo... ele prantou um feijo muito ligeiro, cedo cumeou a butar. Meu irmo, eu vi melancia vingar dento dum roadim piqueno, como nunca na vida eu vi daquele jeito. Ns... ns tirava... papai dava, quem chegava papai dava. Vinha gente l das vaige, ia buscar... ia buscar de carga, ia que papai dava. (...). Feijo, feijo quando cumeou a butar, papai dizia assim: 'o meu era que sobrava, quando todo mundo tiver a cada qual vai cumer do seu, vai cumer do seu. Tinha dia de (...) quato vez, mais. Mas, po poucos dia, a esbanjou mesmo, esbanjou pa todo mundo.
Entretanto, se para o Sr. Joo Pereira Cunha a fartura, proporcionada pelo inverno e pelo trabalho, fora, em outros tempos, uma realidade, no presente, constitui-se apenas numa lembrana do passado: A coisa era de fortuna. Hoje, que ningum num v mais essas fortunas. Porque a gente pranta... eu pranto, hoje eu t prantando cinco tanto, num vejo fartura que eu via, que ele [seu pai] fazia viu. Desta forma, seu Joo Pereira encontra-se vivendo um temor instintivo e impreciso de que todas as paisagens, que revelam a harmonia do campons laborioso com a terra fecunda, estejam apenas no passado. Este sentimento experienciado pelo velho Joo Pereira, traduzido pela saudade das paisagens de outrora, deixa entrever as fraturas, as mudanas que vem se processando no campo em virtude, sobretudo, da modernizao da
157 Altina de Moura Lima, 96 anos. Entrevista gravada no Stio Lima, no Municpio de So J oo do J aguaribe, no dia 11/04/2000. Viva e me de cinco filhos, D. Altina mora numa pequena casa de alvenaria na margem direita da estrada que liga a cidade de So J oo do J aguaribe a BR-116. Aposentada e proprietria de seis braas de terras, que equivalem a menos de um hectare, mantm uma pequena criao de cabras num cercado ao lado direito de sua casa. 158 O pai do Sr. Joo Pereira Cunha estava trabalhando na construo da rodagem, atual BR-116, iniciada no ano de 1932 como medida de emergncia para minorar os efeitos da seca. 103 agricultura camponesa efetivada pelo Estado a partir de meados do sculo XX. Deste perodo em diante, a importncia da grande propriedade foi reforada ao mesmo tempo que a agricultura de subsistncia tornou-se uma atividade cada vez mais acessria, aumentando, assim, a situao de dependncia do campons. Tecidas com os fios da felicidade e da abundncia, as imagens de outrora foram ainda desenhadas pelas memrias do Sr. Joo Miguel. Ao ser indagado a respeito do que representava para ele restabelecer a lembrana do passado, o velho Joo Miguel respondeu:
Tem umas parte boa, porque nesses tempo que havia inverno, tinha muita fartura, num sabe? Agora, era mais difio os dinheiro, sabe? Porque os sujeito tinha aqueles legume, s vez vendia, s vez vendia, ficava po gasto, n? Tinha muito leite nesse tempo, muito queijo, s vez a gente vendia esse queijo, s vez a gente ficava pa cumer no vero, n? Eu achava bom, agora dinheiro que era mais difio, n? Tinha aquela safra de mi, de feijo, agora o que a gente vendia mais era algodo, num sabe? Nesse tempo, a gente prantava algodo, num tinha esse tal de bicudo que aparece hoje im dia, n? Dava muito algodo. 159
Atravessando os vrios tempos de sua memria, o Sr. Joo Pereira Cunha, referindo-se as era de quarenta, disse que o inverno de 1940, apesar de ter tido um intervalo de quarenta dias sem chover, ainda iscapou muita pranta. No obstante, depois que as chuvas recomearam, tornou-se difcil o trabalho de amanho da terra. Quarenta deu uma chuvadas aqui na nossa regio. A gente prantou, a prantinha nasceu, ficou bunitinha, a, o sol bateu im riba. Mas, passou quarenta dia sem chuver e iscapou muita pranta. Mas, tambm, quando (...) chuveu de novo, a, chuveu que tinha dia que a gente num pudia trabaiar com chuva, viu? Quarenta, lembro muito disso, viu? 160
159 J oo Miguel de Souza, 80 anos. Entrevista realizada na comunidade do Divertido, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. Mdio proprietrio, dono de trezentos hectares de terra, o Sr. Joo Miguel mora na companhia de sua esposa numa casa de alvenaria marcada tanto pela simplicidade quanto pela hospitalidade de seu alpendre. O velho Joo Miguel, que tem apenas um filho morando na cidade de Fortaleza, sobrevive com sua esposa da aposentadoria que recebem; uma vez que no se utiliza mais do trabalho agrcola, nem muito menos da criao de gado, atendo-se, apenas, a uma criaozinha de bode. Apesar de no mais utilizar a terra com fins agrcola, seu J oo Miguel disse que de certos tempos pra c no tem mais arrendado suas terras para que outros agricultores pudessem explor-la. Quanto pequena comunidade do Divertido, distante cerca de quarenta quilmetros da cidade de Russas, dispe de energia eltrica e de um dessalinizador que retira o sal da gua tornando-a prpria para o consumo. 160 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade do Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 104 Restabelecendo a lembrana dos bons invernos, o Sr. Joo Andr Filho, com muita sensibilidade e lucidez, prosseguia atravessando os meandros de seu passado. Ao relatar a estao chuvosa de 1950, seu Joo Andr lembrou que, nos dois primeiros meses deste ano, a inquietao foi geral entre todos que moravam na serra do Apodi, em razo de no se ter configurado a estao chuvosa. Os enunciados que do visibilidade inquietao vivida pelos camponeses no perodo que antecede o incio das chuvas, por se repetirem regularmente no discurso campons, tornaram-se cdigos fixos de leitura atravs do cordel, da literatura, da msica... 161
Apesar da inquietao motivada pelo atrazo das chuvas, o velho Joo Andr, com as esperanas renovadas na experincia da estrela dalva, empenhou-se, ainda no ms de fevereiro, na preparao de sua terra com vistas a iniciar logo o plantio. Quando foi no dia sete de maro, o inverno chegou; a, acochou no Nordeste todo. E, haja inverno. Choveu o resto de maro, choveu abril praticamente todos os dias. Mesmo sensibilizado pelas emoes que experimentava, o velho Joo prosseguia afinado em suas lembranas:
Me lembro como se fosse hoje, o vi Z de Abreu disse pra mim: - Joo Andr, quantas chuva chuveu em abril? - Eu digo, num sei no, sei que todo dia dava num sei quantas chuvas. A, ele foi e disse: - aps eu tenho anotado noventa e trs chuva no ms. ia, quando vinha ele curria anotava l, n? 162
Entre muitas imagens do passado reveladas ao longo da travessia, algumas parecem estar emolduradas na memria daqueles que as revelaram. Essa foi a sensao que tive ao iniciar, na companhia do velho Antnio Eugnio, a travessia pelos sertes durante o inverno de 1959. Assim, a lembrana que guarda da primeira chuva deste inverno representa a maneira intimista com a qual viveu este tempo de
161 Segundo Durval Muniz, no processo de inveno do Nordeste, foi preciso (...) ordenar uma visibilidade e uma dizibilidade que se tornassem cdigos fixos de leitura, ordenando, assim, um feixe de olhares que demarcassem contornos, tonalidades e sombreados estticos. (...). Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. A Inveno do Nordeste e outras artes. Recife: FJ N, Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 1999. p. 67. 162 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade J aguaruana, no dia 18/08/1999. 105 fartura. O velho narrador lembra que, no dia quatorze de janeiro de 1959, estava arranchado embaixo de uma imburana na companhia de alguns amigos cortando macambira. O dia permanecia claro e quente, sem nenhum pressgio de chuva. No entanto, quando foi por volta das quatro horas da tarde, viu-se que saa uma chuvinha mermo detrs desse serrote ali, mermo detrs do serrote. De repente, o cu ficou nublado e os troves e relmpagos anunciaram que aquela chuvinha iria prosseguir com mais intensidade. Resolveram, ento, voltar para o rancho e cuidar de botar o peixim no fogo. Contudo, a chuva no foi to paciente assim:
(...). A, cheguemo no rancho, fizemo um fogo, que botemo o baldinho no fogo a comeou a leblinar (risos). Comeou a leblinar e ns arrochemo fogo nesse balde. Quando o balde ferveu, no ferveu nem que prestasse, ns fizemo esse cumer. Pra acabar de cumer, foi andando assim por de baixo dos pau, cumendo com a mo porque com culher no agentava mais, tanto... tanto tava chuvendo. A, acabemo, ajuntemo as vazia e se acoitemo no tronco dessa imburana por debaixo dos pau e deixa chuver, deixa chuver, e ns acoitado ali, chuvendo. (...). Quando foi assim, negcio de sete hora da noite, mais ou menos, o tempo serrado e o trovo gemendo, eu fui e disse ao minino: - vocs sabe duma coisa, rambora, rambora que essa chuva num passa no. (...). A, fomo derramemo a gua, tudo, quando acabemo, peguemo as lata e as vazia que tinha, butemo as redes dento do surram e butemo nas costas e tiremo. (...). Tiremo de cabea fora, fomo chegar l em casa no sei nem que hora foi quando ns cheguemo no crrego do marinho. O crrego tava, j passemo nadando, j; tanta gua tinha. (...). Quando cheguemo em casa, entremo pra dento, armemo as redes, se deitemo, chuveu int de manhazinha, chuveu int de manhazinha. Quando amanheceu o dia, era tudo alagado. A, pronto, nesse dia, em casa, ns no tiramo mais macambira e o inverno comeou. (...). Mas, foi ano de fartura, foi ano de fartura. Que havendo um tempo seco, no ano que h inverno que h fartura: algodo, milho, feijo, de tudo tinha ali. 163
Assim, ao relembrarem os sertes dos invernos, o tempo e o espao da fome e da misria parecem, ao menos, excludos do mapa da memria de meus amigos de travessia. Ainda com nosso olhar parado diante da ntima contemplao das paisagens felizes do inverno de 1959, darei eco fala e, num sentido lato, aos sentimentos de
163 Antnio Eugnio da Silva, 80 anos. Entrevista gravada na Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. Casado com D. Luzia Maria da Silva e pai de quinze filhos, o Sr. Antnio Eugnio vive na companhia de sua esposa e de um neto numa pequena casa de taipa. Alm da aposentadoria, principal fonte de renda do casal, seu Antnio Eugnio tem uma pequena criao de gado e de cabras e, no perodo do inverno, planta, em sua prpria terra, o feijo, o milho e a melancia. 106 prazer e alegria que o Sr. Joo Pereira Cunha expressa quando relembra este inverno.
Quando bateu cinqenta e nove, foi o ano mais santo que eu j vi. Por isso, que eu t na esperana teja alguma coisa esse ano, porque sempre a era de nove sempre boa, t nessa esperana. A, o ano foi bom, viu? Eu tava todo folgado: uma ruma de saca de farinha, saco de farinha dgua, farinha branca; lata de querosene; saco de acar; arroba de caf e um trocadozim, um trocadozim no bolso. Chegou o inverno todo baludo, num precisei de patro e fiz uma safra boa. Ah! Meu Pai do cu, se eu tivesse o gosto de fazer produo esse ano que eu vi na minha casa im cinqenta e nove, eu j me considerava o maior milionaro. 164
A revelao desse desejo veio acompanhada de um profundo silncio, somente interrompido pela agradvel sonoridade que o vento produzia ao balanar os galhos de folhas pequeninas e verdes de uma velha quixabeira, na qual estvamos a nos proteger da quentura do sol. Embora permanecesse absorto em suas lembranas, num ato de total retrospeco, aquele silncio era-me revelador da mais pura emoo sentida ao revisitar, pelos caminhos invisveis da memria, aquele passado de riqueza traduzido na fartura da lavoura. Decerto, aquela emoo no nascera de uma simples imaginao inventiva; mas, da pura satisfao de reviver aquele ano de 1959, o ano mais santo por ele j visto. Com efeito, ainda, aquela emoo devolvia- lhe a esperana esta, baseada na cultura camponesa de observar a natureza de que o ano de 1999 fosse igualmente favorvel agricultura.
164 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista realizada no Aude do Coelho, no municpio de J aguauana, no dia 01/02/1999. 107 (Foto 07 Rio Jaguaribe no inverno de 1999 Jaguaruana)
A rememorao dessa fartura que foi o inverno de 1959, assim como a necessidade de viv-lo novamente, tornou-me possvel efetivar uma leitura da multiplicidade dos ritmos temporais. Ou seja, na medida em que o capitalismo industrial, de uma certa forma, deslocou no tempo e no espao as atividades agrcolas, associando-as ao passado, 165 observo como essas atividades que so centrais, urgentes e necessrias para a sobrevivncia do homem, persistem com um poder extraordinrio atravs do trabalho, das idias, dos sonhos e desejos no s por parte do Sr. Joo Pereira Cunha, mas, por certo, de todos aqueles que tive o prazer de acompanhar em suas travessias. Estes depoimentos, mostram muito mais do que a lembrana de um passado feliz. Projetam um olhar retrospectivo e nostlgico na direo de um tempo que continua pintado em auto- relevo num canto de suas memrias, cuja necessidade de t-lo parece fortalecer-lhes o nimo.
165 Raymond Williams. O Campo e a Cidade: na histria e na literatura. op. cit. pp. 12 e 13.
108 Com a mesma emoo que recordou o inverno de 1959, o Sr. Joo Pereira Cunha falou-me do inverno de 1972. Embora no tenha sido dos mais regulares, chegando mesmo a ser insuficiente em muitos municpios do norte, centro e centro-sul do Estado, o inverno de 1972 foi favorvel em praticamente toda a regio do Baixo-Jaguaribe. Desta forma, no houve maiores prejuzos na lavoura. 166 Assim, ao recordar o inverno de 1972, o velho Joo Pereira descreveu a fartura de milho e feijo que ele colheu na companhia de seus dois filhos.
Setenta e dois, pelo menos aqui, pa ns, houve inverno. A gente trabaiava com medo, assombrado, assombrado porque as era, toda era de dois era fraca. Mas, no senhor, chuveu, deu, deu pa criar tudo. Setenta e dois. Ah! Meu Pai do cu, se esse ano eu fizesse o ligume do tanto que eu fiz im setenta e dois. Apanhei cento e dezesseis arroba de algodo. Milho, meu irmo, fiz uma safra de milho. Eu tinha dois jumento com dois jogo de cauar, ns morava acul, eu mais meus dois minino, ns ia pro roado, (...), todo dia ns trazia; at que ns aburrecemo. Eu disse: - Meu fi, vamo mais levar isso de carga, no. Vamo quebrar, fazer uma ruma aqui, falar com a carroa. (...). Isto ns tendo, j tinha ingordado uns pouco de porco, uns cevado com milho. A muier, deitava (...) criava muita galinha nesse tempo. Era, era muita galinha, gostava muito de milho, viu? Mas, ainda bati setenta e tantos sacos de milho, viu? Feijo, chega nem te digo, viu? 167
Ao atravessarem, pois, estes perodos de fartura, meus narradores traziam no olhar a alegria da volta e o prazer do reencontro. Quanto a mim, permanecia quase sempre envolvido pelo desejo de que aquelas paisagens, por um instante apenas, pudessem de novo materializar-se. Assim, poderia ter refrescado o calor, por exemplo, nas guas da Lagoa Grande, quando esta sangrou pela ltima vez no inverno de 1985. Pois, como ressaltou o Sr. Euclides ngelo Cordeiro, essa lagoa tando cheia uma riqueza, um mar dgua muito bonito.
Ouve muito inverno bom nas era de trinta e quato. No tempo que eu morava l [No Capim Grosso/Russas], foi dois inverno muito grande. E da, vem pra c... Aqui na Lagoa Grande, teve quarenta muito grande, inverno; oitenta e cinco, brejou at como se diz a cabea do soc, aqui. At aqui nessa casa, no canto dessa casa, brejou im oitenta e
166 Parquia de Russas, Livro de Tombo n. IX, p. 02. 167 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade do Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 109 cinco. Teve uns inverno muito bom tambm. Essa Lagoa tando cheia, uma riqueza. Ela j incheu em quarenta e quato; ela incheu em quarenta; ela incheu em setenta e quato ela incheu... Tombm era um mar dgua muito bunito aqui. Em oitenta e cinco, incheu tombm que sangrou, alagou. Oitenta e cinco, houve um inverno muito grande. 168
Gostaria de ressaltar, ainda, que os perodos de fartura revividos ao longo de suas travessias foram construdos, quase sempre, em oposio ao tempo presente. Nesse sentido, passado e presente representam tempos distintos: o primeiro, aparece muitas vezes atravessado pelo nostlgico tempo das farturas e o segundo, pelas vicissitudes de um tempo marcado pela escassez. Desta forma, na travessia dos mltiplos tempos da memria, que memria do vivido e no simplesmente do idealizado, o serto dadivoso dos invernos apareceu traduzido em imagens de saudades e de desejos. Seguindo sempre o itinerrio das prticas cotidianas que marcam a normalidade da vida camponesa, atravessaremos, agora, algumas trilhas abertas por aqueles que, de maneira ldica, apropriavam-se das possibilidades que a mata lhes oferecia atravs da caa de algum animal.
168 Euclides ngelo Cordeiro, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 110 Terceira Parada: o campons e a mata. 169
Tudo tinha com fartura por esses mato Zacarias Francisco de Almeida
(Foto 08 vereda entre Lagoa Sta. Teresinha e Riachinho Russas)
Alm de possibilitar a prtica da agricultura, fonte de, praticamente, todos os bens acessveis aos camponeses, o espao campons oferece outras condies naturais que influenciam as relaes entre o homem e a natureza. Assim, ao mesmo tempo que desenvolvem uma lavoura de subsistncia, os camponeses tinham por prtica cotidiana o exerccio da caa do tatu, do peba, do pre, do tamandu... Nesse sentido, ao narrar as dificuldades enfrentadas nos primeiros anos da sua vida de casado, o Sr. Joo Andr Filho ressalta que apesar de passar o dia trabalhando, possua disposio para noite ir ao mato atrs de alguma caa.
169 Nesta travessia, doze foram os guias: J oo Andr Filho, Zacarias Francisco de Almeida (Isac), Francisco Abel Lino (Chico Abel), Estelita Crispim Gomes, Maria J lia dos Santos, Onofre Augusto dos Santos, Pedro das Neves Cavalcante, Antnio Ribeiro de Souza, Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira), Eduardo Soares de Lima, Rosa Maria de Almeida e Amrico Simo de Freitas. 111 Eu comecei a minha vida pobre, sem nada; para o tempo que eu sa de l eu num era mais pobre, pra... segundo o que eu cheguei, n? Mas que eu fazia o seguinte: trabalhava o dia todo sozinho. As crianas, o mais vi tinha quatro ou cinco ano. Trabalhava o dia todo e a disposio no faltava no. noite, no toda noite; mas sempe, sempe possua um cachorro bom... noite ia caar; ora, pra amanh num tinha despesa de carne... amanh a carne amanhecia l... que nem a histria matuta: amanhecia dipindurada, nera? ... i trabalhava, a mulher s vez, s vez dizia pra mim: Joo, rapaz, tu no de ao no. Passa o dia trabalhando e caar de noite... no porque precisa; deixa eu ir. Saa, antes da meia noite tava chegando com caa, porque tinha munta; o cachorro era bom. 170
Casado desde outubro de 1954, o Sr. Joo Andr sentiu-se envergonhado ao relatar que iniciou sua vida de casado na Lagoa da Salsa, uma comunidade rural localizada em cima da Chapada do Apodi, ou, como ele mesmo chama, em cima da serra, prantando um feijozim numa terra arrendada do prprio sogro. Contudo, em 1979, quando deixou a Lagoa da Salsa para ir morar na cidade de Jaguaruana, seu Joo Andr revelou que j no havia mais necessidade de prolongar sua jornada de trabalho at o perodo da noite, quando saa para caar na mata a mistura do almoo do dia seguinte. Neste perodo, ele j possua, com o esforo do seu trabalho, uma maromba de gado, munta criao e duas propriedade, ou seja, dois terreno grande.
Mas que eu comecei assim... quando foi pra terminar, eu no precisava mais. Quando foi c pra frente, quando perto de onde eu deixei l as minha propriedade, no precisava mais eu fazer isso, porque de tudo eu tinha; tinha o dinheiro pra comprar carne amanh; se quisesse misturar as carne, (...) tinha um chiqueiro pra escolher, aonde quem comeou caando de noite pra beber o caldo, n? Histria velha, n? Mas que achei bom, por isso.
Depositrio de uma viso positiva do trabalho, o velho Joo Andr apresentou-se como uma pessoa sempre disposta a qualquer tipo de trabalho honesto. Assim, quando v um homem no campo trabalhando, garantindo, com o suor do seu rosto, o seu bem estar material e de toda a sua famlia, o velho Joo Andr no consegue dimensionar a alegria que sente e pede a Nosso Senhor Jesus Cristo pa cobrir ele de felicidade.
170 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 03/02/1999. 112 A quando eu vejo o homem trabalhador, se eu pudesse... meu Deus! meu grande amigo o homem trabalhador, quando eu vejo o homem no campo trabalhando, eu num tenho nada pra dar a ele, mas eu tenho: entendo muita coisa, pedir a Nosso Senhor Jesus Cristo pa cobrir ele de felicidade. Porque eu sofreu da vida, eu sofreu da vida da agricultura, sem nada, ne? Trabalhar o dia todo, sempe, sempe noite, passar at umas hora da noite no mato atrs de matar uma caa qualquer, (...) peba, tamandu; quando matava um, aquele (...) pronto amanhecia o dia em casa, ia trabalhar de novo, mas que tinha carne (risos) disposio; muito bom, n?
Enquanto narrava-me com entusiasmo seus sofrimentos, suas vitrias, suas conquistas, o Sr. Joo Andr demonstrava como impressionante a centralidade que o trabalho tem na vida dos camponeses; uma vez que era possvel garantir, atravs do trabalho, o bem estar da famlia. Portanto, a imagem que o campons constri do trabalho est associada a uma positividade; alm do que, representa tambm uma obrigao dada por Deus. 171
Embora o Sr. Joo Andr ressalte sua disposio para o trabalho, este compreendido no apenas pelas tarefas realizadas durante o dia, mas, igualmente, pela necessidade que sentia de ir mata, no perodo da noite, atrs de alguma caa que pudesse servir de alimento para sua famlia no dia seguinte; em praticamente todas as entrevistas foi possvel perceber esta atividade associada a um momento ldico em que os camponeses usufruem da noite, do sono da mata, na aventura da caa. Ademais, prprio da cultura camponesa apropriar-se, de maneira ldica, das possibilidades de recursos que a natureza lhes oferece como meio de sobrevivncia. Assim, a aventura noturna pela mata, em busca do complemento alimentar, ou, mesmo, do nico alimento para o dia seguinte, antes de ser considerada apenas uma obrigao, representa um momento de lazer, de prazer. Segundo Jos Csar Gnaccarine, a ludicidade presente nas relaes de trabalho dos camponeses revela-se, entre outras coisas, (...) na amizade estreita que une o produtor gleba, que cultiva e sua moradia, aos animais, aos seus companheiros de trabalho, e em especial Natureza. (...). Embora a noo de
171 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de astcia e de angstia. a seca no imaginrio nordestino - de problema soluo (1877-1922). op. cit. p. 131. 113 tempo assimilada pelo homem do campo no possa em nenhum sentido ser comparada com a noo de tempo do trabalhador industrial, por esta ser marcada pelo ritmo da racionalidade, a dimenso ldica presente no trabalho campons no deve ser compreendida como desvalorizao do trabalho, ou como um ato que significa imprevidncia, indisciplina e irresponsabilidade, como pensa o autor acima referido. 172 Segundo Thompson, a noo de tempo que surge nesses contextos descrita pela prpria orientao das tarefas: (...) na comunidade em que a orientao pelas tarefas comum parece haver pouca separao entre o trabalho e a vida. As relaes sociais e o trabalho so misturados e no h grande senso de conflito entre o trabalho e o passar do dia. (...). 173
Nesse sentido, em suas narrativas, os camponeses revelam o lado ldico desse trabalho, atravs de um conjunto de imagens que d visibilidade aos prazeres que so vivenciados em suas relaes com a natureza do lugar. Desta forma, a terra no lhes oferece apenas a possibilidade de plantar os seus roados e colher as suas safras de feijo, milho, melancia, jerimuns, mandioca... A terra lhes oferece tambm os frutos das rvores, as caas do mato, as guas e os peixes dos rios, audes e lagoas. Enfim, na relao com a terra que homens, mulheres e crianas do campo encontram as mais diversas formas de apropriao dos recursos da natureza. Mesmo no sendo marcada pela regularidade, a aventura da caa era vivida independente da estao climtica, ou seja, era experienciada com prazer tanto nos meses de inverno quanto nos perodos de seca; como bem ressaltou o Sr. Zacarias Francisco de Almeida, acostumado que foi a dormir pelos caminhos, na mata, atrepado no pau esperando veado.
Caava de noite, eu saa daqui com a espingarda, saa puraqui, cansei de durmir no mei dos camim atrepado no pau esperando viado, s e
172 Cf. Jos Csar Gnaccarine. Latifndio e proletariado: formao da empresa e relaes de trabalho no Brasil rural. op. cit. pp. 146 a 151. 173 E. P. Thompson. Costumes em Comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. So Paulo. Companhia das Letras. 1998. pp. 271 e 272. 114 Deus. Quando eu chegava l em casa, l no Tabuleiro, as luz tinha se apagado, s vez as luz se apagava ainda, a minha vida era essa. Era, era de noite caava peba, era... Era, o tempo, agora eu fao como o outo, num tinha... tanto fazia ser no inverno como na seca, porque eu gostava, gostava mermo. 174
Segundo o velho Isac, h de se considerar, ainda, que no passado no se via a misria que hoje, desnuda, est estampada pelos sertes a fora. Segundo a narrativa do velho depoente, os camponeses, em suas relaes com a natureza, no encontravam dificuldades em retirar da terra, da mata e da gua, o necessrio para a subsistncia de todos. Assim, quando necessitavam da lenha para alimentar o fogo do fogo era em torno da prpria casa que a encontravam; quando resolviam dar uma volta pela mata na companhia de um bom cachorro farejador, logo voltavam com algumas caas que serviam de alimento para toda a famlia; quando a volta, por sua vez, era em torno das lagoas e no na mata, no havia dificuldades tambm em encontrar um cgado, uma marreca, ou qualquer outra ave aqutica com a sua eterna msica, que como um hosana perene da estao bendita 175 do inverno; quanto aos bichos que criavam, porcos, galinhas, no tinham a preocupao em aliment-los pois estes eram criados soltos pelos matos.
Que nesse tempo, nesse tempo, agora eu fao como o outo, num havia misera de coisa ninhuma, num havia no. Porque se a gente precisasse dum pau era no terreno que ia cortava um pau e os bicho a gente criava no mato, os porcos a gente criava no mato sem... sem dar de comer. Tinha essas lagoa, isso era tudo por dento dos mato, era tudo por dento dos mato. Eu conheci isso aqui, agora eu fao como o outo, a gente s andava por vareda, num tinha camim pa ningum andar no. Hoje, hoje num tem nada. Ns saa daqui pa ir caar bem ali, era uma passada medonha que ns dava; ensinar cachorro pegar tatu, pegar peba, era. (...). Ningum via misera de farinha como se v, ningum via misera de feijo como se v, tudo tinha com fartura por esses mato, tudo tinha. Uma caa, voc saa daqui... Eu me casei aqui, quando eu me casei eu saa daqui, ta ela de tistimunha, eu saa daqui prali, agora eu fao como o outo, era bem ali, quando dava f chegava com quato,
174 Zacarias Francisco de Almeida (Isac), 84 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. Casado com D. Rosa Maria de Almeida e pai de onze filhos, seu Isac proprietrio de noventa e dois hectares de terra que herdou de seus pais. Apesar da idade, o velho Isac continua trabalhando na agricultura. 175 Cf. Antnio Sales. Aves de Arribao. op. cit. 115 cinco nambu em casa. Saa pa lagoa matava um cgo, matava uma marreca e tudo era assim. Eu criava os porcos, criava os porcos aqui, criava uma criao era solto no mato ningum dependia nada daquilo no, era s um chiquerim pa butar elas e pronto. Hoje, pra se criar um bicho desse, s vez precisa fazer... Nesse tempo, agora eu fao como o outo, a gente era, era outa coisa de hoje, .
Portanto, as memrias do visibilidade ao espao e ao tempo das experincias vividas pelo trabalhador rural, presos que esto a seus hbitos cotidianos de viver no mato e de tirar do mato atravs da caa o complemento alimentar, muitas vezes, indispensvel, juntamente com a farinha de mandioca, sobrevivncia de toda a famlia. Desse modo, foi possvel perceber, nas narrativas colhidas, uma certa regularidade discursiva no que diz respeito ao fato de que uma boa caa servia como prato principal tanto no almoo como no jantar. O Sr. Francisco Abel Lino, por exemplo, contou-me que certa noite um tal de Raimundo Maia, um comerciante da cidade de Limoeiro do Norte, que estava a caminho do Barraco de Santo Antnio, no municpio de Russas, arranchou-se na casa de seus pais para dormir. Na hora em que foi ser servido o jantar, o Sr. Raimundo Maia dirigiu-se para a mesa e fartou-se comendo a carne de duas emas que seu Abel havia caado na noite anterior, pensando que estava comendo a carne de um boi gordo, dada semelhana entre ambas as carnes.
Mas, era umas ema via que dava, s a carne tirada da ossada, dez quilo ns pesemo dessa ema. E era gorda! E a, tinha um tal de Raimundo Maia, que sempre passava com uma carga pro Palhano, e chegou l em casa e se arranchou-se pra durmir; e, no outo dia, ir pra l pro Barraco, que o aude do governo aqui. A, chegou... Quando Nelson chegou nesse dia, tinha carne de ema e era a panelada no fogo. A, quando foi de noite meu pai disse: - Raimundo... era um tal de Raimundo Maia, ele era daqui de Limoeiro vamo, vamo jantar. Vamo! A, entrou l pra mesa. A, essa carne dessa ema, ela... Mas, ver carne de gado, a gordura do mermo jeito. E, ele comeu e num sentiu que num era carne de gado. Mas, ele dizendo: - Tio Abel, mais boi gordo. O meu pai disse: - mais era muito gordo (risos). A, quando acabou de comer, o meu pai perguntou: - Seu Raimundo, o que foi que voc comeu? Que carne era essa? Ele disse: - Era de boi, era de boi seu Abel. Era nada, seu Raimundo, voc comeu foi carne de ema. 176
176 Francisco Abel Lino (Chico Abel), 83 anos. Entrevista gravava na comunidade do Bixopa, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000.
116 Entretanto, segundo o Sr. Abel Lino, h todo um conjunto de procedimentos que so necessrios na hora de preparar a carne de determinados animais de caa. Sendo assim, o Sr. Abel Lino revelou o segredo para se retirar, da carne da ema, a catinga que lhe inerente; deixando-a, por assim dizer, mais saborosa. Segundo a experincia do velho Abel, o segredo est em escaldar a carne. Para isto, preciso pisar um pouco de carvo vivo, o carvo aceso, n?; em seguida, recolher o p do carvo, enrol-lo em um pedacim de pano novo e coloc-lo dentro da gua, junto carne, antes de ser levada ao fogo para ser cozida.
Mas a, sabe o que ns fazia pra escaldar a carne? A gente pegava um taxo grande, butava a carne todinha dento, pegava um retaio, um pedacim de pano novo, pisava o carvo vivo, o carvo aceso, n? Ns butava no pilo e pilava. Fazia uma troxinha desse... do p do carvo e bota dento da gua. A catinga da carne, passava todinha pro carvo. Ensinaro isso, passou todinha. Voc comia, dizia: Oi! Carne de gado. Porque muito parecida, a carne de ema a merma coisa de carne de gado. da merma gordura, do mermo jeito; e, a carne do mermo jeito.
Considerando que a caa era um hbito mais comum aos homens do serto, pude verificar que a participao da mulher ocorria de forma mais espordica. Assim sendo, dentre as mulheres que eu entrevistei apenas uma, D. Estelita Crispim Gomes, tinha alguma aventura ligada caa para contar. As demais, demonstraram um certo temor em andar pelo mato no perodo da noite: eu nunca cacei. Ave Maria! Que eu tinha muito medo de cobra. No momento em que D. Maria Jlia fez essa revelao, seu esposo, o Sr. Onofre Augusto dos Santos, interveio dizendo que D. Maria Jlia gostava de caar era o seu rastro com medo que ele fosse pa casa de alguma gata. Mesmo na narrativa de D. Estelita, nica depoente a narrar alguma aventura ligada caa, ficou evidente que esta atividade era muito mais atribuio dos homens do que das mulheres. Depois de ser convidada pelo filho para acompanh-lo numa de suas aventuras pela mata, D. Estelita recebeu a sentena: Rumbora me, isso n coisa pra senhora no! No entanto, para nossa depoente, andar na mata 117 representava uma espcie de terapia que a impedia de ficar com os nervo duro.
A caa? Agora a caa eu... eu ainda inventei de caar mais meu caula. Nas Melancias, tinha muita caa, n? s vez, ns saa de noite: - rumbora me, d uma volta nos mato. - Rumbora! Ele tinha um cachorro muito bom. Tinha dias que a gente matava, tinha dias que num matava, n? A, dava umas volta, a gente se sentava no mei do mato, a lamparina acesa. E s vez, a gente... no dia que matava, a gente voltava cedo, no dia que num matava a a gente voltava cedo tambm. - Rumbora me, isso n coisa pra senhora no. ! tem que andar que pro mode num ficar com os nervo duro. 177
Por outro lado, a sua sensibilidade emotiva no tratamento dos bichos revelava a ela prpria que seu carter afetivo no era condizente com aquela atividade, por mais ldica que ela fosse. Assim, concluiu D. Estelita: nam, se pro mode eu ter pena e chorar com pena dos bicho, ramo simbora pra casa. No entanto, D. Estelita destaca em sua narrativa o prazer e a necessidade que sentia em andar na mata durante noite na companhia do seu filho ou de seu marido. Ao rememorar as caadas de outrora, na companhia do seu esposo, D. Estelita narrou aquela que seria a sua ltima aventura de caa na mata, vivida numa noite ainda mida, logo aps o fim das chuvas de inverno.
, mais meu marido mermo l nas Melancias eu ainda cacei tambm. Uma noite ns samo pra caar e tinha parado de chover, n? A, ns tinha um cachorro bom, a ns fumo caar noite, boquinha da noite. Deixei os menino tudo dormino, e ele: - voc vai deixar esses menino dormino, essa menina se acorda a. - No, mais ela t mais essa menina a, que era essa mais via, ela num vai se acordar assim fcil no! Ns samo, quando o cachorro tirou uma caa , l vem, l vem pra nossa percura a imburacou. A, eu tive pena, eu chorei com pena nesse dia. Ele comeou a cavar e comeou a tirar os bichim deste tamanho, era tatuzim, o corim, o cascuzim bem molim, eu butando na saia, n? Mode o cachorro e o cachorro doido pra tirar. No, esse aqui voc num vai comer, no. Mais a gente, porque naquele tempo a gente era tolo, n? Todo mundo disse, que se eu tivesse levado pra casa, eu tinha criado com leite. Que tinha muito leite nesse tempo, (...) a, ns num levemo, tirou trs bichim. Eu digo, caa a via que t embaixo, ele
177 Estelita Crispim Gomes, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999. Morando numa velha casa de taipa, com seu esposo e com alguns filhos e netos, nas terras do Sr. Eduardo Soares de Lima, D. Estelita, juntamente com sua famlia, sobrevive da aposentadoria que ela e o marido recebem. Embora no tenha a posse das terras onde mora, D. Estelita no est obrigada a pagar renda ou partilhar a produo, por exemplo, de feijo feita por ocasio do inverno; como tambm no tem que dar dias de servio ao dono da terra. 118 passou a mo s deu s lama. Diz ele que era uma lama to medonha, que quando ele arrastava a lama, o brao, a lama vinha at aqui. Mas, todo mundo diz que ela... ela... ela... ela tava embaixo na lama. Eu digo, Ave Maria! um bicho ter forgo desse jeito, n? A, os bichim pequeno, eu tive pena e num levei pra casa. Tinha um barranco assim mode um buraco, eu fui coloquei de novo, mandei ele colocar, se a via sasse pegava os bichim. A, ns fumo embora; nam, se pro mode eu ter pena e chorar com pena dos bicho, ramo simbora pra casa. Mas, era to engraadim, os casquim bem, vermeim parecia assim um... um pebinha quando a gente tira do buraco. A, ns fumo imbora. A, eu... dexemo de caar, fui mais pro mato no. Eu gostava, Ave Maria eu achava to bom andar assim no mato, caar, bom caar de noite.
O sentimento de prazer proporcionado pela relao que D. Estelita mantinha com a natureza nas noites em que ia caar na companhia do marido ou do filho, dimensiona o quanto a atividade da caa representa um momento ldico na vida dos camponeses. No entanto, para alm dessa relao de prazer vivida junto natureza, devemos considerar o carter autnomo dessa atividade; ou seja, eles a realizam na hora e da maneira que querem. Liberdade e autonomia do trabalho so, pois, valores bsicos que se encontram historicamente internalizados na cultura camponesa, estando, ainda, assentados em oposio ao valor dominante da explorao. 178
Recuando um pouco mais no tempo de suas memrias, num segundo D. Estelita parecia recordar-se de todos os momentos que j vivera. Nesse retrospecto minucioso, deixou-se conduzir docilmente pelas lembranas que a levava at s caadas que seu pai realizava, quando moravam nas Cacimbas do Amor. Expressando em seu rosto toda a nostalgia vivida ao rememorar as aventuras do pai pelas matas da regio, D. Estelita no escondia a satisfao em poder dizer que seu pai era caador fino.
Meu pai era caador, meu pai era caador fino, tinha espingarda. Ele morando nas Cacimba do Amor... Tem um tal de moc, n? Um bixo deste tamanho, o senhor eu acho que num conhece no, maior do que um pre, bem vermei, ele chegava com a cintura cheinha daqueles bicho. A, ns dizia: papai e a gente come isso? 'Come, isso aqui uma caa boa'. De fato que era mermo. Pelava na gua quente, o corim
178 Ivone Cordeiro Barbosa. Da Terra de Ningum Terra dos Homens: Experincias, lutas e representaes dos posseiros da Serra da Ibiapaba-Ce. op. cit. pp. 58 e 59. 119 ficava to limpim, v coro de porco quando a gente pela. A me butava no fogo, ns comia aquela caa, achava to bom. Era, papai matou muito. Papai tanto matava veado, como matava esse porco espim, num tem esse porco espim? Papai chegava com os coro dos bicho pra ns v, ele vendia num sabe? s vez tirava o pedao da ureia pra ns v, pra conhecer. Veado, ele matava veado tambm, matava peba, um tatu bola que ele diz que fica que nem um cco. bom, caa boa. Agora eu mermo, depois que peguei doena, eu num como no, essas coisas no.
Como ressaltei anteriormente, a caa uma atividade essencialmente masculina. Embora esteja ausente do ato de caar, a mulher participa na cozinha de sua casa, domnio tido como seu, do restante do processo, uma vez que a ela confiada a tarefa de preparar a refeio de sua famlia. Talvez por ser uma atividade essencialmente masculina, alguns entrevistados construram uma narrativa incisiva, feita sem cortes, sem evitar a riqueza de detalhes, das suas aventuras pelas matas, na caa de algum animal. No entanto, o que mais se sobressai, em toda essa riqueza de detalhes, so os tons picos atribudos s aventuras vividas pelas matas nas noites do serto de outrora. Reconhecendo, pois, a riqueza lingstica e a potica dessas narrativas, peo licena para transcrever, na ntegra, a envolvente narrativa que o Sr. Pedro das Neves fez ao descrever, dentre as muitas caadas que realizou, duas em particular. A primeira, na companhia de um amigo, o finado Chico Cndido; e, a segunda, na Serra da Volta, na companhia de seu cunhado.
Ah! cacei, cacei muito. Eu fui uma noite uma caada, mais um amigo, o cachorro, ali negcio de doze e meia, de doze e meia pra uma hora da madrugada, ns vimo foi o bicho passar correndo e os cachorro correndo atrs, dento dum moitagal medonho, e o bicho chega parece que fazia vim... vim... vim... correndo e os cachorro correndo atrs, dois cachorro, n? Com pouco tempo, os cachorro acuaro: p... p... p... Cheguemo l, era dento dum moitagal medonho, os cachorro ciscando, os cachorro ciscando... A eu fui, cheguei assim, prantei a mo no buraco, era chei de foia; eu prantei as mo dento do buraco puxando as foia pra trs, puxando as foia pra trs. Que quando eu butei assim a mo, entrou assim mais uma coisinha a mo, quando eu dei f foi pa... O bicho me agarrou mermo aqui assim, quando me agarrou... Oi! Suquiei a mo pra trs, a o camarada disse: - O que foi? - Rapaz, o bicho me pegou. O sangue desceu aqui no meu dedo. Rapaz, o bicho lhe pegou? Ele disse: - rapaz, voc doido, isso uma cascavel, valha- 120 me Nossa Senhora! Finado Chico Cndido. Valha-me Nossa Senhora. Eu digo: - no, tenha calma, o bicho pintado, o bicho pintado. - Ora, uma cascavel! - No, pera a home. A, eu sai mexendo aqui, a eu fui com essa outa mo, fui ajeitando, fui ajeitando, quando dei f o bicho meteu dos p bateu aqui; eu pa! Eu peguei, peguei. O bicho roncando aqui, roncando aqui... E ele foi s dizer: - tatu medonho, rapaz! E eu agarrado no tatu aqui. A, ele foi, s agarrou o tatu, quebrou o pescoo do tatu e eu fiquei ali. Tem outa coisa! e, eu fui ajeitando o buraco, fui ajeitando o buraco, quando descobri um bicho pintado. Eu digo: pa, um bicho pintado aqui que um medonho. A, fui tirando as foia do buraco, fui tirando as foia do buraco, a o bicho sugigou, o bicho sugigou aqui. Quando o bicho sugigou, eu agarrei, imprensei o bicho dento. Rapaz, voc ainda... No! eu agora tiro. E eu fui puxando o bicho, fui puxando, agarrei mermo nos garguelo. Era um tejo, que era um medonho. Esse tejo foi quem me mordeu, viu rapaz? foi esse tejo, que me mordeu. E, fim de conta, eu tirei trs tejo desse buraco, dois camaleo e um tatu. E agora, como foi o fim da histria? O negcio, que o tatu vinha muito aperriado, entrou na casa do camaleo e do tejo, n? Entrou na casa, eles estavam dento, n? O tatu ficou de banda, o tejo ficou na frente, quando eu enfiei a mo ele se assuziou com a entrada do tatu, n? Quando eu enfiei a mo ele me agarrou, n? A, pronto! Se fosse outo esmorecido, j ia logo morrer, foi uma cascavel, n? E eu no! No, vamo ver o negcio como que , n? Se eu arrastar uma cascavel, arrasta pra fora ns mata, n? Cad? Matemo um tatu, trs tejo e dois camaleo nesse buraco s, n? A, foi uma feira, foi uma caada medonha, n? E por isso eu digo. 179
No mesmo flego e com o mesmo tom pico, seu Pedro das Neves seguiu narrando a aventura vivida na Serra da Volta, ao mesmo tempo que demostrava um conhecimento minucioso dos animais do mato, simples animais de caa.
Outa vez, eu fui uma caada mais um cunhado meu, mas ele ainda era solteiro, na Serra da Volta. E diziam que por l tinha ona, num ? E os cachorro num achava nada, e os cachorro num achava nada num matagal medonho no baixil da serra, uma altura medonha os pau, n? Quando eu dei f, os cachorro tava acul acuado, os cachorro tava acuado. Arrastemo pra l, que quando ns cheguemo l, era uma catinga, era um mau cheiro medonho. Eu, vixe Maria! Os cachorro acuado dento da moita e ns s via o ribulio do bicho dento da moita. A, eu disse pro camarada: sabe duma coisa? a ona! , meu amigo, pra que eu disse isso. Quando eu disse uma ona, quando eu dei f o home meteu o p na carreira por dento do mato e l vai. E eu, agora eu fao como diz o dito, num havia de ficar s, corri atrs. Que isso fulano? Que isso fulano? Barra a fulano! Barra a! At que mais l na frente, ele esbarrou. Quando esbarrou, vamo o meno chamar os cachorro, vamo meno chamar os cachorro, os cachorro ainda ficou acuado. A, ns chamemo os cachorro, quando foi um pedao, os cachorro deixaro l, viero. E ele, desse jeito: - a ona, a ona, vamo
179 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
121 correr... Com medo! a ona. Mas, ningum num sabe o que era. Pudia at muito bem num ser a ona, porque s tinha uma catinga medonha, n? Ns sentia. Dizem que o bicho fedorento, n? Eu num sei! Mas, ns num vimo nada fora essa zuada dos cachorro e ele achando que era ona, n? A gente via nas areia era o rasto da bicha, n? Pudia at ser, n? Mas, ningum num sabe como era.
Assim como o Sr. Pedro das Neves, um outro depoente, o Sr. Francisco Abel Lino, faz transparecer que naqueles tempos, mais do que hoje, a vida cotidiana no serto era pautada pela diversidade de animais de caa at ema ns peguemo - e pela heroicidade de sua gente.
Caava! Tinha uma pareia de cachorro, que eu num rolava no. Era peba, era tatu, era tamandu, at ema ns peguemo. De noite ns caando, eu mais outo companheiro, os cachorro acuaro um tatu, ns tava cavando. A, os cachorro sairo assim, que com pouco tempo l vem o trupelio de l pra c e o cachorro granindo. A, tinha... O meu companheiro era um tal de Dedim. Tava dento dum valado cavando um tatu, a ema, uma ema, o cachorro vinha correndo atrs da ema, a ema chegou, prantou-se em riba dele que ele derrubou l fora do buraco. E eu gritando: pega a ema Dedim, uma ema! Os cachorro derrubaro, assim pertim. A, peguemo duas nessa noite. Mas vi, ns butemo num jumento no outo dia essas ema amarrada no jui, uma dum lado, outa douto e atrevessemo numa cangaia, o pescoo vinha arrastando no cho. 180
No decorrer da pesquisa de campo, foi impressionante perceber a sagacidade que parece ser inerente a todos os velhos camponeses. Dotado de uma sensibilidade aguada pela e para a natureza o Sr. Antnio Ribeiro de Souza, ao ser indagado se gostava ou no de caar, respondeu demonstrando todo seu senso de observao, fruto de sua experincia de vida.
Munto! Tatu, peba, at viado. Hoje, a vista num d mais no. Mas, tambm passou uma caa eu sabia se era macho ou se era feme. O veado, o veado ainda hoje eu cubando, eu vendo, t muito difcil aqui, mais eu cubando o rasto dele eu sei se macho ou se feme. Sabia! Enquanto a vista der eu sabia. Uma rez se era um bezerro, pelo rasto eu sabia se era um bezerro ou se era uma bezerra. 181
180 Francisco Abel Lino (Chico Abel), 83 anos. Entrevista gravada na comunidade do Bixopa, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. 181 Antnio Ribeiro de Souza, 73 anos. Entrevista gravada na comunidade Brito, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. Em virtude da proximidade da cidade de Itaiaba, localizada nas margens do rio J aguaribe, a comunidade do Brito, distante trs quilmetros, dispe de energia eltrica e de gua encanada. 122 Conhecedores do mundo natural que os cerca, os camponeses possuem, muitas vezes, uma terminologia prpria e extremamente rica para classificar a fauna do lugar. Desta forma, conseguem normalmente distinguir com uma impressionante riqueza de detalhes os animais de caa pelos rastros, pelo sexo, pela anatomia, pelos excrementos... 182
A propsito desta sagacidade, Gustavo Barroso descreve o quanto o campons um observador de primeira ordem.
Uma manh, estava sentado porta quando chegou um vaqueiro perguntando notcias de um animal sumido. Antes que le dissesse que casta de bicho procurava, o velho indagou: - 'Ser uma bsta torta do lho direito, castanha escura, de saia comprida?' O outro respondeu afirmativamente. Ergueu-se, deu as indicaes do lugar onde ela pastava. Ento perguntei-lhe se tinha visto a bsta. Disse-me que no, porm andando a cavalo muito cedo, de madrugada, pelas vrzeas, vira rastos de um animal de fora. Sabia que era uma gua, porque no pisara na urina, que era cega do lho direito, porque a pastagem da vereda s estava comida do lado esquerdo, que tinha o rabo comprido, porque deixara fios agarrados s tiriricas rasteiras, e sses fios eram castanhos- escuros... 183
Na verdade, a forma pela qual os camponeses se relacionam com o mundo natural que os cerca, tem a ver com sua capacidade de observao. Portanto, para interpretar os sentidos que os camponeses atribuem natureza e, mais especificamente, aos modos de viver e trabalhar historicamente construdos em seus espaos, foi necessrio estar atento para perceber como aplicam toda a sua perspiccia no apenas na lavoura, mas igualmente na caa e na pesca. Atento, portanto, maneira sbria e educada de falar do Sr. Chiquinho Pitombeira, observei um fulgor de tristeza no olhar quando este revelava que alm da falta de invernos que dificulta natureza continuar seu trabalho incessante de mutao e progresso na manuteno do equilbrio de suas foras e de preservao da vida; o
182 Keith Thomas. O homem e o mundo natural. op. cit. p. 84. 183 Gustavo Barroso. Terra de Sol ( Natureza e costumes do Norte). op. cit. p. 141. 123 homem tem constantemente agredido e depredado a natureza no respeitando - no seu dizer - o tempo dos bichos:
Eu posso dizer, num h inverno pra haver prosperidade. Tem uns que respeita os bicho, tambm precisa haver prosperidade, o tempo dos bicho nascer. Num vo matar os bicho deixa a pra ver, mas outos do jeito que sair (...). 184
D. Estelita, por sua vez, avalia que quando veio morar na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, o seu genro chegou a matar animal de caa praticamente no terreiro de casa to fechado era os mato a.
Tinha, tinha muito mato aqui. porque brocaro muito. Isso aqui, tudo isso aqui era mato, no ano que eu cheguei pra morar aqui era mato. Aquele meu genro, no ano que ns cheguemo aqui ele ainda matou caa aqui, to fechado era os mato a. Ele morava nessa casa a do mei, num tem uma casa de taipa a no mei, n? Ele morava ali. Tinha um cachorro muito bom, o cachorro saa quando ele via era o latido do cachorro, chegava l era uma caa. 185
Embora estivessem sempre valorizando os tons picos de suas caadas, embalados, talvez, pelo entusiasmo de suas narrativas, observei, entre alguns camponeses, uma conscincia de que o desmatamento tem provocado uma acentuada diminuio das caas: Por o tempo, rapaz, parece que vai se acabando. Aonde a gente tira que num bota, se acaba, n? ! Munta gente e os mato pouco, , munta gente e os mato pouco. 186
Segundo o Sr. Zacarias Francisco de Almeida, hoje praticamente no existe mais caa; o que existe, no seu dizer, uma sementinha no mundo pelejando pa viver j, n? Ao cabo de alguns instantes, enquanto repetia com uma sombra de tristeza no olhar a pergunta cad a madeira?, o Sr. Chiquinho Pitombeira, conservando a conscincia do presente, faz entrever a
184 Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira), 86 anos. Entrevista gravada no Riachinho, no municpio de Russas, no dia 22/10/1999. 185 Estelita Crispim Gomes, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999. 186 Eduardo Soares de Lima, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 28/08/1999. 124 pretrita paisagem, do lugar, na qual procurava ao menos um reflexo, um resqucio.
O povo j devorou suas madeira, tudo que tinha nas terra, acabou-se como as madeiras. Tava vivendo era disso, dessa arrumao, ir no mato cortar a madeira; o qu... acabou-se isso hoje. Quem que tem madeira mais hoje? (...). O cercado caiu tudo, porque num tem mais madeira, tem no. Tambm pegou esses inverno, se houvesse pelo meno inverno bom a madeira tambm num tava morrendo, os madeiral era tudo chei de madeira. Quem que v hoje? Voc vem dacul pra c s toco, garrancho, estrada por cima de serrote. Cad, das Bestas pra dento, cad a madeira? Cad aquela chapada de cho que tem ali, que vai sair na Russa, aquilo era chei de mato. Tudo (...) tirava lenha, cad hoje? Cad essa lenha hoje? Num sei por donde eles vo agora, tirar lenha. 187
Se a paisagem de outrora era a que lhe enchia os olhos do esprito, as paisagens do presente oferece-lhe o espctro da destruio, da morte. Portanto, ao se efetivar a leitura das memrias do Sr. Chiquinho Pitombeira, o que se observa que elas no registram apenas situaes buclicas, uma vez que a paisagem, no dizer de Simon Schama, nem sempre mero local de prazer. 188 Por outro lado, o que fica evidente nas memrias do velho Pitombeira o fato dos camponeses ao mesmo tempo que articulam todo um discurso de amor natureza, de identificao com a natureza, de gostar do mato, so obrigados a ter uma relao predatria com a natureza, independente da estao ser seca ou chuvosa. Indagado a esse respeito, o Sr. Isac demonstra ter total clareza dessa relao predatria ao afirmar que os prprios camponeses contriburam, tirando madeira, para a destruio da paisagem nativa da regio.
Porque ns acabemo, n? Tirando madeira, ns tiremo tudo. , pra vender, fazia caivo. Sim, de seca e de inverno, fazer caivo, n? Fazer caivo. Ns cortava a madeira, fazia o caivo, a a vender l na rua numa carrocinha, ia vender l. E, quando era solteiro no, eu cortava madeira, estacote, estaca, pra vender o finado Pedo Cio Mato que eu acho que j morreu j, l da Vrzea. Ele comprava um mieiro por cinco
187 Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira), 86 anos. Entrevista gravada no Riachinho, municpio de Russas, no dia 22/10/1999. 188 Simon Schama. Paisagem e memria. op. cit. pp. 28, 34 e 35. 125 mil ris, um mieiro de estaca, um mieiro de estacote, cumprava por cinco mil ris, ele comprava e era dinheiro. 189
Em seu depoimento, D. Rosa Maria de Almeida, esposa do Sr. Isac, lembra, com uma riqueza maior de detalhes, que paralelo ao trabalho na agricultura, principalmente, durante as dcadas de sessenta e setenta, ela e o seu Isac trabalhavam durante toda a semana, inclusive no turno da noite, na produo de carvo. Aos sbados, toda a produo da semana era transportada numa carroa at a cidade de Russas a onde era vendida. (Foto 09 Sr. Isac e D. Rosa Lagoa de Santa Teresinha Russas)
s vez, os minino tudo piquininim durmindo, nis dois num... butava pa durmir e nis ia fazer carvo, nis dois. E eles tudo durmindo, nis dois ia durmir onze hora da noite, doze hora, fazendo carvo, imalando aquele carvo todim, cobrindo, tocando fogo pa no outo dia nis ter, ir po mato cortar madeira pa tornar a fazer outa carrada. Quando era dia de sbo, ele saa daqui mais um pererecazinha com as carrada medonha de carvo pa vender im Russa, im carroa. E eu ficava. E, po ltimo, os minino foram crescendo, eu ia mais os minino e ele ficava fazendo
189 Zacarias Francisco de Almeida (Isac), 84 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. 126 carvo. Eu ia, fazia a feira, nis j sabia onde ia depositar aquele carvo. A, quando nis... Os minino... Eu tinha um que era bem, bem inteligente, o mais vi, a: - me, a me fica a, que eu vou fazer, vou cumprar as coisa. A, eles cumprava de tudo. Nis butava nessa carroa, disabava. Chegava aqui uma hora, duas hora da tarde. Eu criei quais tudo desse jeito, quais tudo mermo desse jeito. 190
Portanto, alm da lenha, da estaca, do estacote, da vara... outro produto de origem florestal bastante utilizado na regio o carvo vegetal, produto oriundo da carbonizao da lenha, cujo mtodo predominante o do forno-trincheira. O Sr. Amrico Simo de Freitas, por sua vez, revelou que durante as dcadas de sessenta, setenta e oitenta trabalhou torando madeira (escoramento, caibro e linha) para ser vendida em Fortaleza. A partir da dcada de oitenta, no entanto, passou a se dedicar exclusivamente extrao da lenha para abastecer ao mercado local do municpio de Russas.
Eu vendia na Furtaleza, tinha l os meu patro. Eu cortava aqui, ele mandava passar a semana carregando, quando era no sbo eu ia buscar o dinheiro pa pagar os trabaiador aqui. Eu trabaiava com dez, doze, quinze e at com vinte home, eu trabaiava. Quando era sbo, eu ia trazia aquele dinheiro pa fazer aquele pagamento, graas a Deus. (...) trabaiei muito, tirei muita madeira na terra do Edson Queiroz e era desse jeito, eu tirava madeira de todo canto. (...). A, passemo, passou- se pa essa lenha. A, pronto, deixemo de ir pra Furtaleza (risos). Que a lenha s daqui pra Russa, daqui pra Russa. 191
Como procurei demonstrar, principalmente a partir dos relatos dos Srs. Chiquinho Pitombeira e Isac de Almeida, as memrias avaliam o desmatamento de forma paradoxal: de um lado, revelam que o grande culpado a ruindade do tempo traduzida pela falta de invernos; de outro, o prprio campons na medida em que se acha obrigado a retirar da mata a sua sobrevivncia. No entanto, o que explica o fato do campons tornar-se cada vez mais dependente da natureza o
190 Rosa Maria de Almeida, 64 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. 191 Amrico Simo de Freitas, 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. Morando na companhia da esposa e de um filho deficiente, o Sr. Amrico lamenta no poder mais trabalhar na agricultura. Quase cego, o velho Amrico sobrevive, no seu dizer, apenas do bom emprego (aposentadoria) que o gonverno lhe deu. 127 processo de pauperizao a que ele foi submetido ao longo de todo o sculo XX, e, mais particularmente a partir da dcada de 1970, quando o Estado patrocinou a modernizao do meio rural, o que significou maior concentrao fundiria, maior valorizao da terra e expulso do homem do campo. 192 Portanto, como observa Durval Muniz, o que tem causado a pauperizao camponesa so as relaes de explorao vivida no campo e no a ruindade do tempo como pensam muitos camponeses.
(...). No mundo tradicional, o homem tinha acesso aos bens de consumo produzidos por ele prprio, agora, com a maior parcela de tempo dedicada a uma produo comercial, na sua prpria terra ou trabalhando para um patro, se v obrigado a recorrer cada vez mais ao mercado, o que o torna dependente de relaes invisveis, tecidas pelas mercadorias, que o tornam quase sempre, cada vez, mais pobre. Esta pauperizao imputada, ento, s oscilaes da natureza e ausncia de domnio sobre ela. A seca causadora da misria, do empobrecimento, e no as relaes de explorao a que esto submetidos. 193
No obstante, embora os camponeses consigam estabelecer uma certa historicidade para as transformaes ocorridas na paisagem natural da regio, preciso destacar que estas transformaes se processaram com mais nfase a partir das dcadas de 1970 e, mais particulamente de 1980. Durante este perodo, verifica-se em toda a regio do Baixo-Jaguaribe, principalmente no municpio de Russas, a expanso do nmero de pequenas olarias e de indstrias de cermica. O quadro a seguir mostra o nmero de cermicas existentes em cada um dos municpios onde foi realizada a pesquisa de campo.
192 Maria Antnia Alonso de Andrade. Relaes de Trabalho e Relaes de Poder: Perfil de duas reas Geopolticas. In. Relaes de Trabalho & Relaes de Poder: Mudanas e Permanncias. op. cit. p. 239. 193 Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877 a 1922). op. cit. p. 117. 128 MUNICPIO N DE CERMICAS Russas 68 Alto Santo 12 Limoeiro do Norte 09 Palhano 07 Quixer 06 Morada Nova 04 Jaguaruana 03 So Joo do Jaguaribe 03 Itaiaba 02 Tabuleiro do Norte 02 TOTAL 116
Segundo dados fornecidos pelo IBAMA, o municpio de Russas concentra aproximadamente 25% das cermicas existentes em todo o Estado do Cear. Devido, pois, grande concentrao da indstria cermica, cerca de 83,4% do consumo de energticos florestais do municpio so utilizados nesse setor industrial. 194
Desta forma, embora ainda seja possvel encontrarmos grandes reas de caatinga e de mata nativa na regio do Baixo-Jaguaribe, certo que o processo de expanso da indstria cermica contribuiu em grande medida para a destruio de grande parte das reservas de madeiras existentes na regio. Todavia, se por um lado as cermicas, ao consumirem produtos florestais como fonte de energia, so agentes de poluio e incentivadoras de desmatamentos, por outro, proporcionam gerao de empregos, aproveitamento da mo-de-obra local, fatos que garantem um aumento da renda familiar de diversas famlias de trabalhadores rurais que exploram a floresta para sua sobrevivncia. Em seu depoimento, o Sr. Amrico Simo de Freitas oferece uma viso da dinmica desta explorao.
Aqui, tem um bucado de gente que corta lenha. Tem um fio meu, tem um genro ali que trabaia com vinte tantos home, trinta, dois caminho,
194 Cf.. Enlia da Cruz Moraes Braid (Coord.). Diagnstico Florestal do Estado do Cear. Fortaleza: PNUD/FAO/IBAMA/SDU/SEMACE, 1993. p. 25.
129 mora bem a. Tem dois caminho, uma mercede e um chevrolet. todo dia duas, trs carrada por semana. S um carro, s, tem dia que d trs carrada de madeira. Mas, eu mermo deixei de trabaiar. Agora num sou nem... Como se diz? Num trabaio nem de roado mais, que num agento. Trabaiar agora aqui dento de casa, os fi dando uma coisa, outo d outa e eu vou vivendo. 195
Segundo D. Estelita Crispim Gomes, muitos camponeses passam a semana trabalhando no corte da madeira, retornando para casa somente na sexta-feira ou no sbado. Alm de venderem a madeira para as cermicas, as pessoas que trabalham nesta atividade tambm estabelecem um regime de troca por tijolos e telhas com o objetivo de construrem casas de alvenaria; deixando, para trs, as velhas construes de taipa. Desta forma, no s o madeiramento do telhado como a alvenaria e as telhas parecem compensar os prejuzos causados natureza pelo desmatamento. Nesse sentido, as casas representam um composto de fragmentos dos tempos antigos, ou seja, nelas sobrevivem os vestgios que o tempo no conseguiu apagar. Todavia, a ocupao da mo-de-obra na atividade florestal sofre um arrefecimento de suas atividades no perodo chuvoso correspondente aos meses de janeiro a junho. Neste perodo, em razo da mo-de-obra estar quase que totalmente absorvida pelo subsetor agrcola, as olarias chegam praticamente a encerrar suas atividades, enquanto as cermicas reduzem em at 50% a sua capacidade produtiva. S a partir do segundo semestre que a atividade florestal volta a crescer, pois os agricultores iniciam os desmatamentos atravs das prticas do destocamento, da retirada de lenha e madeira, da retirada de ramos e vagens para forragem - visando ao preparo do solo para a prxima safra agrcola. No obstante, quando ocorre perodos de estiagens, o subsetor florestal em grande medida absorve a mo-de-obra do subsetor agrcola. 196
195 Amrico Simo de Freitas, 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 196 Cf. Enlia da Cruz Moraes Braid (Coord.). Diagnstico Florestal do Estado do Cear. op. cit. p. 37. 130 Entretanto, como j foi demonstrado atravs dos prprios relatos de memria, os desmatamentos no obedecem exclusivamente a fins comerciais. Em termos gerais, verifica-se que o nvel de autoconsumo de produtos florestais contribuem significativamente para satisfazer s necessidades familiares, tanto nas atividades de produo agropecuria (forragem para o gado, construo de cercas), como nas domsticas (energia para cozinhar, para fabricao de materiais de construo). Portanto, trata-se, basicamente, de uma produo de subsistncia, objetivando o autoconsumo. Segundo dados fornecidos pelo IBAMA, aproximadamente 2/3 da produo de lenha so autoconsumidos, e o restante destina-se venda. 197
Contudo, se at o incio da dcada de 1990 a principal maneira de explorao dos recursos florestais consistia na extrao de todo o material lenhoso, sem nenhum compromisso com a terra; tem- se notado, hoje, uma preocupao mais constante com a reposio florestal para a prpria garantia dos recursos florestais. Esta nova prtica de desmatamento, que no consiste na derrubada integral da rvore, tem por objetivo o reflorestamento natural da rea desmatada, num espao de tempo equivalente a mais ou menos dois anos. Na verdade, essa nova estratgia atende tanto aos interesses do proprietrio da terra quanto do extrator de lenha, uma vez que no interessante para quem vende a mata em p ou mesmo arrenda ter que reinvestir no seu reflorestamento; da mesma forma que no se torna vantajoso para quem arrenda, por um certo perodo de tempo, uma determinada rea de mata, ver exauridos todos os seus recursos naturais, inviabilizando, por conseqncia, a atividade que lhe mais rentvel, ou seja, a comercializao da madeira. Portanto, ao mesmo tempo em que os camponeses extraem da mata seu complemento alimentar, atravs da prtica da caa, mantm, tambm, uma relao de explorao atravs da produo de vrios produtos de origem florestal. Na verdade, essa produo est
197 Cf. Enlia da Cruz Moraes Braid (Coord.). Diagnstico Florestal do Estado do Cear. op. cit. p. 21. 131 intimamente relacionada com as demais atividades que compem o sistema econmico-social do contexto rural, ou seja, em outras palavras, a produo florestal complementa a agricultura e a pecuria nas mais diversas aes de trabalho e manejo. Deixando para trs as trilhas abertas pelos camponeses caadores, sem, no entanto, deixar de seguir o itinerrio das prticas cotidianas que marcam a normalidade de suas vidas, atravessaremos, agora, algumas paisagens que expressam a relao que os camponeses mantm com os rios, audes, lagoas...
132 Quarta Parada: o campons e as guas. 198
Na poca de quarenta, (...), eu vivi mais dento dgua do que dento de casa Raimundo Delfino Filho
(Foto 10 Aude do Barraco Santo Antnio Russas)
Como j foi assinalado, outra atividade reveladora dos modos de viver e produzir da gente do campo a pesca, que, embora seja uma atividade ocasional do pequeno agricultor, quase sempre restrita aos perodos de bons invernos, bastante representativa da experincia social dos camponeses do Baixo-Jaguaribe. Todavia, de todas as comunidades rurais em que realizei a pesquisa de campo, foi na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, que obtive o maior nmero de relatos sobre a relao dos camponeses com as guas; ao mesmo tempo que, paradoxalmente, obtive o menor nmero de relatos sobre a relao com a mata. Decerto, isto se justifica em razo da Comunidade do Canto da Cruz ser localizada nas margens do rio Palhano. Assim, era nas guas e no na mata, que os camponeses, muitas vezes, encontravam o alimento
198 Nesta travessia, cinco foram os guias: Raimundo Delfino Filho, J oo Delfino Bezerra, Altina Delfino dos Santos, Maria Sinh de Souza e Estelita Crispim Gomes. 133 necessrio sua subsistncia; da mesma forma que era nas guas e no na mata onde viviam, sobretudo no perodo dos bons invernos, quando o rio passa a correr, momentos de prazer, de descontrao, enfim, momentos de pura ludicidade. A verdade que a gua, em vrios relatos de memria, aparece como o principal elemento a compor a paisagem fsica e cultural da regio. Assim, procurei, nesta parte do trabalho, ver mais de perto o significado das guas, especialmente, das guas dos rios - Jaguaribe, Palhano, Quixer e Banabui -, riachos, audes e lagoas na vida econmica, social e cultural da regio. Como j foi salientado, do ponto de vista econmico, os rios, audes e lagoas constituem-se em importantes reservas de peixes, das quais os camponeses retiram seu complemento alimentar. Assim, ao rememorar algumas das dificuldades que enfrentou para assegurar a subsistncia de sua famlia, no ano de 1940, o Sr. Raimundo Delfino Filho procurou mensurar a importncia que o rio Palhano teve em sua vida neste perodo.
Se... Na poca de quarenta mermo, se eu for fazer a conta, eu vivi mais dento d'gua do que dento de casa. Eu ia... houve inverno, n? A, as condies num prestava nesse tempo, eu ia, a famia toda dento de casa, grande, eu trabaiava no roado. Quando dava as trs hora da tarde eu vinha mimbora, s vez ainda ficava gua na cabaa. Trabaiava... trabaiava... trabaiava as 06 hora, quando era as 11 hora eu saa assim no mato caando umas fruita de cardeiro. Voc conhece o que cardeiro? Aps cardeiro um bicho espinheto. S caando as frutinha de cardeiro, cumia aquelas frutinha de cardeiro por l e vinha mimbora. A eu chegava aqui, chegava aqui, o fogo apagando, as mui fazendo os chapu, fazendo as trana, custurando. O fogo apagado, eu chegava aqui s trs hora pra quato eu chegava aqui, em casa. A eu pegava a tarrafinha mida, a eu ia pro rio e tava correndo, tinha inverno, tava inverno, tava inverno. Eu ia pro rio, butava aquela chama e pescava por ali. Quando chegava com aquela colnia de pato, assim, piabinha, essas coisa, quando chegava com aquela colnia de pato aqui, eu... a mui inda ia pra budega cumprar farinha, do chapu pra discubrir aquela coisinha. , comprava a farinha na budega. Ia trocar por farinha, por gnero, n? 199
199 Raimundo Delfino Filho, 87 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999. Na minha ltima visita casa do Sr. Raimundo Delfino, no dia 17/07/2001, fui informado por uma de suas filhas que ele havia falecido trs dias antes. Na poca em que realizei a entrevista, seu Rimundo Delfino dividia com uma filha e um cunhado, com problemas mentais, a velha casa de taipa 134 O Sr. Joo Delfino Bezerra, por sua vez, relatou que o pescado alm de servir como um importante complemento alimentar, constitua-se tambm numa fonte de renda para a famlia. Desta forma, se a terra gerava, por exemplo, o feijo e a mandioca, da qual se fazia a farinha, o rio lhes dava a oportunidade de conseguirem, atravs da venda do peixe, algum dinheiro.
Eu gostava de pescar e mermo era... era obrigado porque ns tinha cumer, mas num tinha o dinheiro, t compreendendo? Ns tinha, , ns tinha tudo dento de casa, tinha feijo, tinha a farinha, mas num tinha o dinheiro; porque a gente num ganhava, n? Ningum num ganhava isso assim, agora o cumer tinha, mas dinheiro no. A, era o jeito o camarada ir percurar no rio, n? Pra cumer. 200
Todavia, muito mais do que um nvel de trabalho marcado pela regularidade, a pescaria vista pelos entrevistados em sua dimenso ldica, como uma descontrao ainda visvel no rosto expressivo daqueles que a rememoram. Assim, ao recordar o tempo de suas pescarias, o Sr. Joo Delfino Bezerra fez questo de ressaltar que gostava de pescar sempre na companhia de um grupo de amigos e que o tipo de pesca praticada no necessitava de anzol, landu ou tarrafa; 201 pois a sua pescaria era de mo, o que, por sua vez, proporcionava um espetculo esttico admirvel.
Eu nunca deixei, agora vim pegar a tarrafa num dia... num tempo desse pra c, t rendo? A minha pescaria era de mo, s pescava de mo, s pescava de mo. Mas meu irmo, ns ajuntava aqui oito, nove pessoa, entrava dento dum poo, era um balanar d'gua bonito (risos), era um balanar d'gua bonito; no instante o peixe chegava a ... a nossas mo. 202
em que morava. Sem poder mais trabalhar na agricultura, o velho Raimundo tinha na aposentadoria sua nica fonte de renda. 200 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 201 Utenslios de pesca usados, com maior freqncia, por aqueles que praticam atividades de pesca nos rios, audes e lagoas da regio do Baixo-J aguaribe. 202 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 135 Em sua relao com as guas, os camponeses elaboram uma imagem de si, na medida em que inventam um conjunto de prticas - A minha pescaria era de mo, s pescava de mo - e do significados aos recursos naturais que o meio lhes oferece. A presena de rios, audes, lagoas e poos, sobretudo, nas reas de influncia dos rios, sugerem, por assim dizer, relaes mais afetivas entre os camponeses e o mundo natural. Por outro lado, por no praticarem uma economia monetarizada, as tarefas dirias que do maior visibilidade a integrao do campons com a natureza parecem se desenrolar, pela lgica da necessidade, diante dos olhos do pequeno lavrador. 203
Assim como o Sr. Joo Delfino, sua irm D. Altina Delfina dos Santos fora despertada pela fora de um passado que ainda vibra dentro do seu ser. Tomada por uma vertente de emoo, D. Altina relembra as pescarias que realizava na companhia das amigas.
Graas a Deus, era minha, era minha save e guarda era a minha tarrafa. O marido num sabia pescar, eu pegava o vistido, vistia, nesse tempo num usava essas cala no, a gente tinha era o vistido pa vistir. (...). Eu chegava com o uru 204 de peixe, piaba... Nunca, graas a Deus, eu cheguei do rio com a bolsa seca. Pegava peixe bom! Mas tambm aquele pobe que passava, que me pidia, eu nunca negava, eu dava. Um home me tirou o retrato eu pescando dentro do buraco, ele disse: - dona, se ponha em p, bote a tarrafa na cabea. Eu pus im p, butei a tarrafa na cabea, ele se rindo, a tirou o meu retrato. Mais aqui no Paiano num saiu no, saiu na Furtaleza; quem conheceu l foi a Jula da Rufina. (...). (A sua foto saiu no jornal?) Saiu, diz ela que saiu, num sei se foi aqui nessa, num sei no, foi l na Furtaleza. A quando ela viu o Jajo ela disse: 'Jajo a Altina passou aqui com a tarrafa na cabea, cunheci ela todinha, todinha e os home ainda se rindo'. Pescava de noite era de anzol. Eu ia distana duma lgua, pescar de anzol. Levava a lamparina, levava a tarrafa, ia mais de oito pessoa mais eu, mais quem dava as piada pa pescar era eu. Quando ali, o sol ia querendo se por, pantava a tarrafa pa riba era no instante, pantava, era piaba a com fartura. A todo mundo, tava com saco aqui no pescoo, um saco pa butar as piaba pa de noite butar a mo. A, quando eu... eu acabava de pescar ele istendia as piaba, o meu irmo istendia as piaba, a quando tava bem durinha, aquela piaba rola, aquela piaba lisa que num tem iscama, aquela piaba o peixe num gosta, s cumia aquela que tinha iscama, a... Mas, quando ns vinha, era uma rodana de trara, cada uma trara. Ia pescar de linha solta, chegava l tacava essa linha ia l perto do, dos poo fundo, quando eu via era a carreira da trara, pra l e
203 THOMPSON, E.P. Costumes em comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. op. cit. p. 271. 204 (...) uru, funda bolsa de malha tecida com palhas de carnaba. Cf. Domingos Olympio. Luzia-Homem. op. cit. p. 19. 136 pr c e eu puxando s cuendo a linha e ela puxando, quanto mais ela puxava mais ela se interrava, mais ela se farfava. Mais quando eu vinha era a bolsa cheia graas a Deus. Pesquei muito, de dia pescava..., nunca faltou peixe na minha casa no. (Isso era no rio?) Era no rio, era no rio. Aqui ns entrava dento do rio ia sair longe. Voc conhece as Peda? (conheo) Apois, nis ia pescar ali, at perto das Peda. E ns vinha, tudim, tudim. 205
Embora a atividade da pesca fosse uma atividade subsidiria agricultura, ou seja, um elemento de apoio no que se refere necessidade de proviso de alimentos, ela emergiu no processo de rememorao dos entrevistados que a tiveram como uma experincia marcante em suas vidas, como atividade ldica, diferentemente do carter exaustivo atribudo s tarefas caseiras. De modo geral, as pescarias constituam-se em oportunidades de sociabilidade tanto para os homens quanto para as mulheres, pois no existia ocasio melhor para se conversar, bem como para se fazer circular novidades e mexericos. Portanto, muito mais do que a caa, que uma atividade essencialmente masculina, a pesca era uma experincia social que envolvia um grupo maior de pessoas, geralmente, composto por familiares e amigos. Assim, no se verifica na prtica da pesca uma diviso social fundamentada na questo de gnero. As mulheres, assim como os homens, participavam normalmente de todas as tarefas que estavam de alguma forma ligadas s atividades da pesca, desde a captura do peixe at o ato de prepar-lo para a refeio da famlia. Embora no houvesse uma diviso social fundamentada na questo de gnero, a ponto de D. Altina assumir sozinha a atividade da pesca, visto que seu marido no sabia pescar, seu irmo, o Sr. Joo Delfino fez questo de esclarecer que sua esposa nunca foi pa pescaria de anzol no, nunca foi no. Seu Joo achava que, por ser de noite e pelo fato de sua esposa no saber nadar, era arriscado iscurregar e cair dentro dgua: tem eu pa pescar, tem eu pa pescar, num pricisa voc pescar no. V-se,
205 Altina Delfino dos Santos, 84 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. Viva e me de dezesseis filhos, D. Altina Delfino aposentada e vive na companhia de alguns filhos. 137 nesse caso, que a posio do Sr. Joo Delfino de autoridade sobre a esposa. Freqentemente, a posio do marido era no contexto domstico a mais privilegiada. Ao recordar as pescarias de outrora, D. Sinh 206 ressaltou o quanto gostava de pescar de anzol, no perodo da noite, na companhia de suas amigas: gostava de anzol! Pescava de noite, ns subia de rio a riba. E, ajuntava um bocado, ns ia. At uns ano desse, ainda se pescava. No entanto, ao se referir ao presente, D. Sinh, ao mesmo tempo que lamenta o fato das pessoas que moram na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, pouco se dedicarem atividade da pesca, ironiza dizendo que o pessoal agora enriqueceram, num tem mais gente pobe no, pobe j houve. Por outro lado, responsabiliza os ano ruim, sem invernos regulares, pela falta de peixe nos audes, o que justificaria a ausncia das pessoas no exerccio da pesca. Na parte detrs de sua pequena casa de taipa, D. Estelita, sentada em sua cadeira de rodas, apreciava sua pequena roa semeada de feijo, enquanto procurava em suas lembranas recordar os tempos felizes de outrora. Ao narrar cenas de terna felicidade que marcaram sua vida, era com grande dificuldade que D. Estelita conseguia dissimular seu real estado de esprito. Conquanto os olhos estivessem perdidos na distncia, a expresso do seu rosto revelava aos presentes que sentia dentro de si momentos de indescritvel emoo.
Pescava porque tinha vontade de pescar, inda hoje eu tenho vontade, assim mermo sem andar. s vez eu digo assim, leve eu l po beio do aude do seu Itamar com uma vara pra v se eu num pego peixe. Eu pego sim, me sentar l num canto l eu pego peixe. Eu tenho fora nas mo, n? Ainda durmente as minha mo, n? Mas, eu tinha era vontade. pa! Onde mame vai? Eu digo, ora isso conversa, eu sei pescar. Pescava e achava bom. Mais aquela minina do... do... mais a Francisca, a muier do compade Osmar, ns pescava de landu, pegava cada uma trara que num tinha tamanho. Ela dizia assim: - me vamo sair daqui, que isso aqui num trara no, pode ser alguma cobra
206 Maria Sinh de Souza, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. Separada do pai dos seus trs filhos, D. Sinh vive sozinha numa pequena casa de alvenaria decorada com alguns objetos que seu filho lhe mandou de So Paulo, onde mora. Suas duas outras filhas moram na cidade de Palhano. Aposentada, D. Sinh ainda produz chapus e bolsas com a palha de carnaba.
138 preta. Eu digo, que conversa quem j viu cobra desse jeito (risos), cobra tem dente mas no desse jeito, n? Eu pescava muito. 207
(Foto 11 D. Estelita e famlia Lagoa de Santa Teresinha Russas)
Assim como D. Estelita, alguns depoentes pareciam reviver novamente as emoes guardadas, no apenas na memria, mas tambm nas marcas que a atividade da pesca deixou presentes no corpo daqueles que a praticavam. Na verdade, o corpo representa o lugar da experincia vivida, cujas palavras lhes d existncia e significado. Nesse sentido, o Sr. Joo Delfino ao relembrar as pescarias, que realizava na companhia de alguns amigos, chama ateno para as marcas que as piranhas deixaram em uma de suas mos.
Ah, dimais. Minha pescaria era de mo, de mo, eu num pescava de tarrafa no, eu pescava de mo. Eu saa aqui, saa boca da noite, t rendo? Eu, o cumpade Chico da Cacau, o Alon, ia pum poo chamado claro, uma chulapa medonha, ns chegava l caa dento do buraco pescando, saa meia noite. Mas quando saa, tudo com sua bainha de peixe, t rendo? Isso aqui que voc t rendo foi piranha, piranha cumeu a carne da mo todinha, t rendo? Quando eu sa, merguei que sa, era um encarnado de sangue medonho. A eu fui po seco, curri po pio,
207 Estelita Crispim Gomes, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999. 139 passei o pio, infrerguei, infrerguei, a vim mimbora pra casa. (A folha do pio?) O leite, o leite do pio. A, chegou, a muier pisou a quinaquina, a eu botava po riba, t rendo? O p da quinaquina, num sabe? A foi sarando. O p, o p da quinaquina, que a quinaquina p e pisa, num sabe? A passava po riba. Mas, graas a Deus, fiquei bom. Pesquei muito, pesquei muito. , quando tinha peixe no rio. Pescava mais era de noite, porque de dia a gente ia pro sirvio, t rendo? Num tinha tempo, nera? A a gente chegava do sirvio s 4 hora, a cumia, n? A quando descansava o comer... A de noite... Quando fosse de manh, tava com a boia feita pra comer. 208
Nas narrativas de memria dos camponeses, algumas vezes o corpo serviu como um referencial para aflorar as mais diversas lembranas das experincias vividas por estes sujeitos sociais. Assim, a memria, uma vez sedimentada no corpo, procura preservar o passado; possibilitando, desta forma, uma apreenso mais viva do seu cotidiano. 209 Segundo Maria Anglica Maus, a histria no passa ao largo do corpo; ao contrrio, o corpo marcado pela histria e a histria tem no corpo, seu cenrio privilegiado. 210
Embora o capitalismo esteja levando para o campo com o seu desenvolvimento a (re) produo de um mundo fragmentado e em fragmentao, onde a forma mercadoria reina e a subjetividade massacrada por produtos e smbolos para torn-la dcil e suscetvel a uma sociedade voltada para o consumo ou para o desejo cotidiano de consumir, 211 os camponeses ainda no deixaram de ver o mundo natural como um reflexo de si prprios. Portanto, como j foi assinalado, mais do que viverem junto natureza, os camponeses integram-se a ela de tal forma que possvel identificar traos que marcam seus corpos, que do densidade a seus costumes e que fornecem elementos para compor seus valores e imaginrios.
208 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 209 Edinlia Maria Oliveira Souza. "Cruzando Memrias e Espao de Cultura: Dom Macedo Costa - Bahia (1930-1960). In: Projeto Histria n18. op. cit. pp. 372, 373, 374 e 375. 210 Maria Anglica Motta-Maus. Trabalhadeiras e Camarados: relaes de gnero, simbolismo e ritualizao numa comunidade amaznica. op. cit. p. X. 211 Antnio Paulo Resende. Desencantos modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de XX. op. cit. p. 16. 140 Quinta Parada: casas de farinha, toldas de cera, seres de trana, vaqueiros e comboeiros. 212
(Foto 12 casa de farinha Sap Limoeiro do Norte)
As recordaes, em conjunto, permitiram ainda recompor pedaos do cotidiano de trabalho nas casas de farinha, nos meses de desmanchas. Ao rememorarem este cotidiano de trabalho, os velhos camponeses deixaram entrever a importncia da mandioca e das casas de farinha em suas vidas: a primeira, por ser um componente bsico de sua alimentao e a segunda, por ser um importante espao de socializao. A distncia do tempo parecia apagar-se nas lembranas. Assim, pouco a pouco foram sendo refeitos os elos invisveis, que ainda prendem todos aos felizes tempos das farinhadas. At os anos de 1970, as casas de farinha, uma espcie de indstria rstica, onde se processava o beneficiamento da mandioca para a produo da farinha, mantiveram sua importncia na economia rural. Entretanto, a partir da
212 Nesta travessia, quatorze foram os guias: Raimundo Mendes Martins, Pedro das Neves Cavalcante, Francisco Abel Lino (Chico Abel), Francisco Giro Sobrinho (Chicada), Raimundo Nonato da Costa, Francisca Delfina da Costa (Chiquinha), J oo Delfino Bezerra, Egilda Delfino Nascimento, Altina Delfino dos Santos, Luzia Maria da Silva, J oo Miguel de Souza, Joo Andr Filho, Antnio Ribeiro de Souza e Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira). 141 dcada de 1950, 213 com a construo de grandes rodovias interligando as vrias regies do pas ao Sudeste, observa-se uma maior dinmica na distribuio e na circulao de produtos como o arroz e o macarro que, aos poucos, passaram a ocupar, ao lado da farinha, lugar certo na mesa do homem simples do campo. Ao atravessarem, pois, em suas lembranas os restos de um passado no muito distante no tempo, os entrevistados pareciam catar nas runas e nos entulhos do passado as paisagens que ainda se fazem presentes em suas saudades. Se os seis primeiros meses do ano, por coincidirem com o perodo chuvoso na regio, so reservados prtica da agricultura de subsistncia, o vero marcava, no calendrio agrcola da regio, o tempo das desmanchas, que aconteciam, geralmente, nos meses de junho, julho, agosto e setembro. Logo aps a colheita, reuniam-se os trabalhadores na casa de farinha, um vasto telheiro sustido por colunas de madeira ou alvenaria, 214 para dar incio ao rstico processo de fabricao da farinha. A mandioca era normalmente raspada por um grupo de mulheres que, sentadas ao cho, usavam como instrumento de trabalho uma faca. Em seguida, a mandioca era cevada (moda) e lavada para a retirada da goma; s ento, era prensada fazendo escoar o sumo txico prprio da mandioca e levada para ser torrada num grande forno de alvenaria. Alguns dos amigos de travessia relataram ter trabalhado grande parte de suas vidas nas casas de farinha. O Sr. Raimundo Mendes, por exemplo, revelou ter trabalhado quarenta e cinco anos torrando farinha a cabo de rodo: ali, Manel de Z Manel, eu torrei quarenta... cente... cente e vinte alqueire de farinha numa jornada. A, eu cumeava de
213 Segundo Manuel Correia de Andrade, o Brasil s aps 1950 com a construo de grandes rodovias que ligaram as suas vrias regies ao Sudeste, pde deixar de ser um conjunto de ilhas culturais e econmicas dispersas para se tornar um continente a gravitar economicamente em trno de um plo So Paulo. Cf. Manuel Correia de Andrade. Espao, Polarizao e Desenvolvimento (A teoria dos plos de desenvolvimento e a realidade nordestina). So Paulo: Brasiliense, 1970. p. 73. 214 Gustavo Barroso. Terra de Sol (Natureza e Costumes do Norte). 5 ed. Rio de J aneiro: Livraria So J os, 1956. p. 58. 142 madrugada, trabaiava at as nove hora da noite, dez hora. 215 O velho Pedro das Neves, por sua vez, disse ter torrado massa durante vinte e dois anos de sua vida: todo dia eu torrava quato alqueire de farinha. De sabo pa domingo, eu torrava oito. (...). Cansei... torrava quato no espai do dia, quando terminava a, ia fazer beiju, tapioca... 216 De maneira geral, a produo de farinha no se destinava comercializao, atendendo, basicamente, ao consumo familiar.
(Foto 13 farinhada: processo de torragem da farinha Sap Limoeiro do Norte)
Conquanto o aviamento peculiar a uma casa de farinha fosse de um todo rstico, tornando ainda mais penoso o trabalho daqueles que participavam, durante semanas da produo de farinha, principalmente os responsveis em mexer a farinha junto ao calor constante do forno, as lembranas que meus depoentes guardam das casas de farinha deixam transparecer os momentos de terna felicidade vividos nos perodos das desmanchas. Na verdade, a casa de farinha
215 Raimundo Mendes Martins, 92 anos. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000. 216 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 143 no representa apenas o espao do trabalho, mas, tambm, o espao do lazer, da festa e das paiaada como to bem recordou o velho Chico Abel, que, embora no tenha participado de nenhuma festa, propriamente dita, disse que era comum, na ltima noite da desmancha, ter uma pessoa pra cantar uns romano.
Festa mermo em casa de farinha, nunca, eu nunca vi. Agora, assim, uma cantoria, um caba com uns verso, uns romano pra cantar, a, eu achava bom. 217
No entanto, o Sr. Francisco Giro Sobrinho, ao rememorar os dias de desmanchas que participou, revelou ter tomado parte em muitos forrs na casa do pai daquela que hoje sua esposa.
Quando acabava, l na casa dela a, do pai dela, quando acabava a rapa da noite o caba ia danar, ia danar. Tinha o vi, esse mermo vi que era sofoneiro que nis brincava na casa dele, ele ia pra l levava o fole, era um forr medonho de noite (risos). Ainda tive de brincar umas pouca de noite l ainda. 218
Para alm da descrio do funcionamento de uma casa de farinha no perodo das desmanchas, revelando a diviso do trabalho ali existente, o depoimento do velho Pedro das Neves celebra, de forma eloqente, a convivncia dos tempos do trabalho e do no trabalho. No dizer do velho Pedro, o trabalho nas casas de farinha, que envolvia pessoas de vrias faxas etrias, era um movimento beleza, era um festival.
Era muito divertida. Era roda de mo, n? Dois puxador puxando na roda, n? A rapadeira rapando, trs, quato, cinco rapadeira, n? O prenseiro prensando a massa, n? O forneiro torrando a farinha, n? Os carregador carregando a mandioca, butando dento da casa de farinha. E, era um movimento beleza. De noite, se cumia beiju, tapioca, n? Os rapaziada, as moa, vinha pa casa de farinha ajudar rapa; era um festival. Toda noite, a rapaziada... s vez, quando terminava a rapa, havia um toquezim de violo, a, nis brincava uma brincadeirazinha at dez hora, onze hora, n? 219
217 Francisco Abel Lino (Chico Abel), 83 anos. Entrevista gravada na comunidade do Bixopa, municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. 218 Francisco Giro Sobrinho (Chicada). Entrevista gravada na comunidade da Palestina, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 219 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 144 Portanto, se as casas de farinha em outros tempos constituam-se em espaos de vivncias que registram o trabalho e o no trabalho, este marcado nos discursos dos camponeses pelos momentos ldicos vividos principalmente no perodo de encerramento das desmanchas, no presente, em razo da crescente diminuio desses espaos de produo econmica, bem como de sociabilidade camponesa, representa o lugar da memria, o espao da saudade; embora ainda seja possvel se encontrar pelos sertes do Baixo- Jaguaribe pequenas casas de farinha que, no entanto, no tm mais o mesmo significado que tinham no passado, sobretudo como espao de ludicidade, de festa. Diferente dos tempos antigos, caracterizados pela sociedade tradicional camponesa, na qual trabalho e lazer no se dicotomizavam, no presente no se verifica mais essa harmonia, por assim dizer, entre trabalho e lazer. Por outro lado, ainda, a facilidade de se encontrar no mercado local a farinha comercializada de outras regies, alm da presena de outros gneros alimentcios na mesa camponesa, como o arroz e o macarro, justifica a diminuio das casas de farinha na regio, uma vez que no se torna mais necessrio o tradicional armazenamento, em grandes caixes de madeira, da farinha produzida nessas rsticas casas.
* * *
145 A exemplo do trabalho nas casas de farinha, o trabalho com a palha da carnaba foi tradicionalmente desenvolvido na regio do Baixo-Jaguaribe. Estendendo-se pelas reas de influncia dos rios Jaguaribe, Banabui, Quixer e Palhano, a carnaubeira foi, at fins da dcada de 1950, o principal elemento a impulsionar a economia jaguaribana. 220
(Foto 14 Carnaubal Itaiaba)
O processo de revalorizao dos espaos relativos mata- ciliar, ou seja, dos espaos cobertos por carnaubais, tem sua origem na segunda metade do sculo XIX, com o desenvolvimento do extrativismo vegetal, atravs da extrao do p cerfero para a produo da cera de
220 Segundo Pe. Antnio Thomaz, da carnaubeira tudo se aproveita: O tronco o mouro, a trave, a cumeeira, o altar e o leito conjugal; o palmito o alimento; a raiz, a medicina; a palma o abano, o chapu, a esteira, a parede e o teto da casa; a cra a tocha primitiva, isto , a luz, a orao, a viglia, na noite quieta e pura do homem nordestino... Tudo, na carnaubeira, prestante e amigo. Nenhuma rvore mais dadivosa e fecunda. Ela, sozinha, alimenta, abriga, veste, ilumina e consola as gentes... como uma deusa familiar que a tudo acode. Como o filho da terra, onde nasce, ela se d toda a quem a cultiva com amor e resguarda com cime... Da copa, ocilante e brincalhona, raiz, sria e profunda, a carnaubeira um holocausto vegetal, uma oblao da gleba ao homem que a possui. Citado por Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onas. Fortaleza-CE: Assis Almeida, 1997. p. 83.
146 carnaba. Em razo da grande valorizao da cera de carnaba no mercado internacional, o chamado ciclo da cera de carnaba vai, efetivamente, integrar a regio do Baixo-Jaguaribe no mercado capitalista internacional. Segundo Hidelbrando Soares, esta atividade vai-se manter hegemnica at meados do sculo XX, quando se observa o processo de substituio da cera vegetal pela cera sinttica.
O auge desse processo de valorizao da cera de carnaba no mercado internacional foi, efetivamente, a primeira metade do sculo XX. Da dcada de 60 em diante, o que se observou foi um processo de substituio, na indstria, da cera vegetal pela matria-prima sinttica e, consequentemente, o incio de um movimento de desvalorizao da cera de carnaba no mercado internacional. Esse movimento se tornou crnico no incio da dcada de 70, quando essa atividade se tornou praticamente invivel para a maioria dos produtores, devido a evoluo decrescente dos preos internacionais de um lado e a manuteno dos custos de produo de outro, este ltimo provocado pela no modernizao do processo produtivo. 221
Assim, durante o perodo ureo do ciclo da cera de carnaba, a Plancie Aluvial do Baixo-Jaguaribe tornou-se uma rea extrativista por excelncia. Para os grandes e mdios proprietrios dos municpios de Limoeiro, Russas e Unio, ou seja, para aqueles que possuam entre 43 e 72 hectares de terras, ou, ainda, entre 43.000 e 72.000 ps de carnaba em estado produtivo, a cera de carnaba representou um importante meio de enriquecimento. Dada a lucratividade econmica desta atividade, os senhores dos carnaubais, como assim os chamou Soares, dificilmente se dedicavam explorao agrcola. Desta forma, a criao de gado e o cultivo do algodo, por exemplo, tornaram-se atividades acessrias para estes proprietrios. Como observa Soares, aos moradores ou rendeiros era permitido, no mximo, a explorao das terras, onde no houvesse a presena de carnaubais, com o cultivo do algodo, do feijo, do milho e da
221 Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e (re)organizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte-Cear. op. cit. p. 64. 147 mandioca; exigindo-se, ainda, o pagamento de uma renda pela utilizao da terra. 222
Portanto, a presena ou no da mata-ciliar de carnaubal, definia o uso da terra no perodo que corresponde ao ciclo da cera de carnaba. Se por um lado, a extrao do p cerfero era a principal atividade nas propriedades que possuam grandes reas de carnaubais; por outro, naquelas em que a presena da carnaba no era dominante, a explorao agrcola constitua-se na mais importante das atividades. Uma outra caracterstica relativa s propriedades que no eram possuidoras de grandes carnaubais, diz respeito forma pela qual se dava a explorao agrcola destas reas: nas grandes propriedades, priorizavam-se, mais comumente, a associao entre culturas de carter mais comercial como, por exemplo, o algodo e as frutas, e aquelas mais voltadas para o consumo familiar como o feijo, o milho e a mandioca; enquanto, nas pequenas propriedades, cultivavam-se, basicamente, estes ltimos produtos que so os componentes bsicos da alimentao camponesa. 223
Devido pequena dimenso de suas terras, proprietrios e familiares ficavam, praticamente, ociosos durante alguns meses do ano. Isto fazia com que essa mo-de-obra fosse utilizada nas reas onde predominava a atividade extrativista. Segundo Soares, a esses pequenos proprietrios juntavam-se, ainda, aqueles que no dispunham de nenhum pedao de terra, constituindo-se, desta forma, em moradores, rendeiros ou trabalhadores diaristas nas grandes propriedades. Diferentemente das outras atividades agrcolas, que tinham no arrendamento da terra uma prtica recorrente, na atividade extrativista havia uma preferncia, por parte dos proprietrios, em estabelecer uma relao monetria com os trabalhadores, em vez de lhes oferecer uma parte da produo.
222 Hidelbrando dos Santos Soares. Agricultura e (re)organizao do espao: a rizicultura irrigada em Limoeiro do Norte-Cear. op. cit. p. 65. 223 Idem, ibidem. p. 66. 148 Entre meus amigos de travessia, alguns disseram ter trabalhado tanto no corte da palha da carnaba quanto no cozinhamento do p que dela era extrado. Em seu relato de memria, o Sr. Pedro das Neves, por exemplo, disse ter cortado muito olho com uma vara de nove brao, altura medonha.
Com a cera da carnaba... Eu nunca trabalhei, im cera de carnaba. Agora, vendi muito. Cortava, levava, tinha o fazedor de cera, n? Eu levava o p. O meu sogo tinha um carnaubal, s vez ns juntava umas palhazinha, que a gente juntava nos carnaubal dos outo. Ns juntava, levava, lascava, fazia o p. A, levava pra oficina, fazia trs, quato, cinco kilo de cera. Quando era no domingo, levava pra vender; fazia a ferinha. Eu fiz muita... eu fiz muito isso. Ajudava, a palhinha da carnaba ajudou a muito pobe, n? 224
Ao recordar os sertes do trabalho, o Sr. Raimundo Nonato da Costa, revelou ter trabalhado muitos anos conzinhando borra para fabricao da cera de carnaba. Ao fazer uma breve descrio do processo de produo da cera, o velho Raimundo Nonato, assim como vrios outros depoentes, deixou entrever o perigo que representava essa atividade, pricipalmente no momento de coar, em um pano, a cera quente.
Trabaiei muito conzinhando borra, conzinhei muita borra pra tirar a cera. Esprimia... (...). Conzinhava o p, assim num tacho desse tamanho ou numa lata, quando acabar butava um pano. Tinha assim uma caixa, assim, a, butava o pano. A, derramava, quando acabar cobria. A, butava um cepo assim, desse tamanho, ou, maiozinho assim. E, a, o fuso cheio de rusga. A, trucia, trucia, se trocesse demais, estourava. Que eu tenho at esse p queimado e a mo; que um paieiro tava... ns tava cuando uma cera num pano, e a ele foi com o entravamento pelo, pelo a boca do pano, queimou esse p aqui e a mo. No dia que era pra ir pra festa de... que havia, no tempo que vinha Bispo fazer festa a em Limoeiro. 225
Como j ressaltei anteriomente, a partir da dcada de 1960, inicia-se uma progressiva desvalorizao do preo da cera de carnaba;
224 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 225 Raimundo Nonato da Costa, 95 anos. Entrevista gravada na comunidade da Canafstula de Baixo, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000.
149 em virtude, principalmente, do aparecimento dos produtos sintticos, que passaram a substituir os produtos naturais no mercado internacional. Passado o auge do ciclo da cera de carnaba, os proprietrios que ainda conservam, por assim dizer, seus carnaubais, praticamente no investem mais na produo da cera de carnaba. Segundo o Sr. Francisco Abel Lino, as carnabas ainda hoje compem a paisagem dos seus quarenta e seis hectares de terra. No entanto, afirma que tem sido mais conveniente vender o carnaubal em p, uma vez que a margem de lucro contabilizada no compensa o trabalho de explorao da cera de carnaba.
Mas, ainda hoje, ainda tenho o carnaubal. Morreu muito e j tiremo... T aqui, linha, foi tirado l. Essas linha dessa casa, foi tirada l. Tem muita carnaba e j dei muito o povo. Mas, ainda tem muita. Mas, eu fao vender o carnaubal. O caba paga trs real o mieiro, n? 226
* * *
Entretanto, a palha da carnaba no serviu apenas de matria prima para a fabricao de cera de carnaba. O manuseio da palha constitua-se, especipalmente no municpio de Palhano, numa atividade obrigatria de praticamente toda a famlia em perodos de seca, principalmente como tarefa adicional atribuda mulher. Nesse sentido, foi que D. Francisca Delfina da Costa lembrou que durante a seca de 1919, com apenas sete anos de idade, j trabalhava de dia e de noite na trana da palha da carnaba costurando chapu pa cumer uma xcara de farinha. 227
Assim como D. Francisca, o Sr. Joo Delfino Bezerra, tinha seus olhos perdidos nas lembranas de tempos mais distantes. O velho Joo, corao apertado pelas emoes que revivia, procurava conter as
226 Francisco Abel Lino (Chico Abel), 83 anos. Entrevista gravada na comunidade do Bixopa, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. 227 Francisca Delfina da Costa (Chiquinha), 87 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999. Viva e com a vista bastante prejudicada em virtude de um cancer que j se proliferou por outras partes do rosto, D. Chiquinha mora numa pequena casa de alvenaria ao lado da casa de sua filha e sobrevive da aposentadoria que recebe.
150 lgrimas ao falar do seu sofrimento e, especialmente, do sofrimento de sua mulher durante a seca de 1958.
(Foto 15 Sr. Joo Delfino Canto da Cruz Palhano)
Na verdade, a razo daquela emoo estava ancorada na dor da separao que a morte recente de sua esposa tinha lhe cravado no peito. Portanto, seu relato representa um misto de pena, gratido e amor para com aquela que foi sua companheira durante tantos anos.
por isso que eu digo, eu sufri muito na minha vida. E minha muier, minha muier, coitadinha, trabaiava aqui im cinqenta e oito pa... Quando o sol, quando o sol tava perto de se pr, ela se sentava nesse mermo cantinho a, fechava a janela, a noite todinha custurando chapu. Quando a barra vinha culariando, o mi de paia dela j estava escaiado. Butava de baixo do suvaco, aqui, ia v meia garrafa de leite 151 com uma lgua l no Coigo, ia v com uma lgua pa criar a famia, t rendo? 228
Por outro lado, foi com rosto expressivo e transbordando de alegria, que D. Maria Sinh de Souza rememorou os seres de trana que participava quando jovem, sobretudo nas noites em que o cu, espanado de nuvens, permitia que o serto ficasse envolto na luz prateada da lua. Os seres de trana possuem, pois, um grande significado para os moradores da comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, uma vez que essas reunies, que envolviam familiares, parentes e amigos, tinham por objetivo aumentar a produo familiar de chapus e bolsas, possibilitando, assim, a aquisio de algum dinheiro com a venda do produto, ou, como pareceu ser mais comum, troc-lo por aqueles gneros de que mais necessitavam. Por outro lado, os seres de trana constituam-se em oportunidades de sociabilidade para aqueles homens e mulheres - que se dispunham a ver entrar a madrugada tranando habilmente as palhas da carnaba.
s vez, nis se ajuntava mais na casa do... do Nel, era casado o meu irmo. A, nis ia pro terreiro, ela tinha trs moa e l em casa era duas, e, s vez, se ajuntava umas do Cndido, meu irmo. Eu sei que se ajuntava ali um bucado; a, nis trabaiava at de madrugada. E era cantando no terreiro, a lua clara, n? E, era cantando. E, quando era ali por umas zora, nis ia simbora pra casa (risos). Era muito bom naqueles tempos, eu achava. Mas, hoje em dia bom, mais num como nos outos tempo que a gente nova. Vez, os rapaz tambm ajudava a fazer trana mais as moa. Eu, eu nunca namorei, num gostava no. 229
A rememorao dessas vivncias deixou claro que a produo de chapu era feita em pequenas unidades familiares. O processo produtivo baseava-se especialmente na habilidade das mulheres em trabalhar com a palha da carnaba, utilizando instrumentos como faca, agulha e linha para costurar os chapus. Cabe
228 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 229 Maria Sinh de Souza, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 152 ressaltar, todavia, que a habilidade que as mulheres da regio do Baixo-Jaguaribe demonstram ter no manuseio da palha da carnaba fruto da sua prpria experincia de vida e no um processo natural. Segundo Sylvia Porto Alegre, a produo artesanal que sobreviveu aos avanos do capitalismo industrial no apenas uma atividade isolada, que por motivos circunstanciais ainda persiste, sobretudo, nas regies mais pobres do pas. Assim, ao contrrio do que se costuma supor, o trabalho produzido artesanalmente, bem como o contigente de artesos existentes, tem tido um papel bem mais significativo ao longo do processo histrico. No resta dvida que as dcadas seguintes ao incio do processo de industrializao, ou seja, a partir dos anos de 1920, representaram um novo momento de ruptura no processo histrico das relaes de trabalho no Brasil. Nesse processo, diante da ideologia da modernizao, do desejo de superao do atraso por parte das teorias desenvolvimentistas e industrializantes, a figura do arteso ficou submersa num profundo obscurecimento, embora no tenha deixado de existir, principalmente, nos lugares onde as condies estruturais no mudaram tanto e onde a sobrevivncia do trabalhador continuou a depender desses meios precrios de sobrevivncia. Como ressalta Porto Alegre, o prprio Estado vem constatando, h algumas dcadas, a importncia do artesanato como meio de sobrevivncia de amplas camadas da classe trabalhadora, especialmente no Nordeste. Tem havido, tambm, por parte dos setores de mercado envolvidos de diferentes maneiras com a indstria do turismo, um interesse pelos produtos artesanais, principalmente por aqueles que guardam caractersticas marcadamente regionais. 230 As mulheres da comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, que ainda trabalham produzindo os mais diversos objetos com a palha da carnaba, criaram uma espcie de associao que, atravs da CEART (Central de Artesanato), comercializam seus produtos nos locais de venda de
230 Cf. Maria Sylvia Porto Alegre. Arte e Ofcio de Arteso: histria e trajetrias de um meio de sobrevivncia. Tese de Doutorado, USP, 1988. pp. I, II, III, 245 e 246. 153 artesanato na cidade de Fortaleza. Alm da comercializao dos produtos, a CEART tem procurado diversificar a produo atravs de cursos, bem como imprimir um controle de qualidade sobre a produo. Todavia, apesar de haver um incentivo por parte do Estado e de setores comerciais ligados atividade turstica, visvel a explorao sofrida pelos artesos no que diz respeito ao valor que os atravessadores pagam pelos produtos adquiridos junto a eles, muitas das vezes reunidos em associaes. Alm de ser muito baixo, o pagamento s chega s mos dos artesos depois que toda a produo vendida para os consumidores. Segundo os relatos colhidos, a participao dos homens, na diviso social do trabalho, no era decisiva para a realizao ou no dos seres de trana. Todavia, mesmo que os rapazes no participassem efetivamente do trabalho de confeco dos chapus, D. Egilda Delfino do Nascimento revelou que a presena deles era quase certa nas noites em que aconteciam os seres de trana.
Ia rapaz, ia rapaz, tudo conversando, tudo namorando na maior gaiatice do mundo, era. S pra namorar com os olho, namorava com os olho, num com as mo no. Hoje em dia, que a pessoa... uma coisa medonha; no meu tempo, num tinha esse namoro acochado desse jeito no. Era a pessoa aqui e o rapaz acol, era. 231
Entretanto, segundo D. Altina Delfino dos Santos, embora os rapazes namorassem s com os olhos, no ficavam de braos cruzados vendo ou admirando a namorada tranar com habilidade a palha da carnaba. Assim, as moas faziam o comeo de uma trana e dava para o namorado continuar; e, se num quisesse, a moa deixava (risos). 232
Diante do contedo dos depoimentos citados, ressalto, mais uma vez, que os espaos do trabalho e do lazer no aparecem
231 Egilda Delfino Nascimento, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. Viva e me de onze filhos, D. Egilda mora na companhia de sua filha Ftima, 44 anos. Aposentada, ajuda a filha na trana da palha da carnaba para a produo de chapus e bolsas. 232 Altina Delfino dos Santos, 84 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 154 separados nos relatos de memria de meus amigos de travessia. Por no possurem uma lgica estritamente capitalista, na qual o tempo do trabalho caracteriza-se por sua intensidade, a jornada de trabalho nos espaos das casas de farinha e dos seres de trana, por exemplo, marcada pela porosidade do tempo que permitia, alm das conversas alimentadas, muitas vezes, por histrias de outros tempos, a presena da msica, dos versos e dos namoros. Segundo Milton Santos, 233 com a globalizao o lazer artesanal, aquele entranhado na sociedade, cede lugar ao lazer industrial globalizado, autonomizado. Esse processo de autonomizao do lazer, por sua vez, transformou-o numa indstria, cujo sistema relativamente fechado e autosustentado. imperioso dizer, ainda, que no s o trabalho domstico que surge com maior intensidade na memria das velhas camponesas. Ao contrrio, o trabalho feminino no estava exclusivamente reduzido ao espao domstico; estando, elas, portanto, envolvidas nas atividades da roa, das casas de farinha, alm das atividades na produo de chapus e bolsas de palha para serem vendidas no comrcio das pequenas cidades da regio. (Foto 16 mulheres da comunidade do Canto da Cruz Palhano tranando a palha da carnaba)
233 Cf. Milton Santos. Lazer popular e gerao de empregos. In. LAZER numa sociedade globalizada: Leisure in a globalized society. So Paulo: SESC/WLRA, 2000.
155 Contudo, ao atravessarem os sertes do trabalho, especialmente as claras noites dos seres de trana, minhas depoentes deixaram refletir o tempo feliz de um passado vivido com muitas dificuldades, mas tambm, com muitas alegrias. No obstante, como j ressaltei anteriormente, no se pode homogeneizar as experincias camponesas. Nesse sentido, ressalto que nem todas as narrativas, relativas ao trabalho com a palha da carnaba, possuem esse mesmo contedo. Portanto, voltar-se para o passado nem sempre representa mergulhar na ntima contemplao daquelas paisagens que se interiorizam no fundo da alma, como a querer proteger-se da prpria seletividade da memria. Assim, atravessar os vrios tempos da memria pode significar, antes, desnudar as marcas que os sofrimentos do passado deixaram presas no corpo e na alma.
(...). Pra mim o tempo o de hoje, o passado s, s deixou muito foi marca de sofrimento. (...). Me deixou muitas marca pesada nas minha costa, rapaz. Me lembro mais l, quero mais l o passado, muitas marcas pesada. Essa histria da gente trabaiar demais pra viver, no; acaba com a sade da gente, acaba com a resistncia, a gente fica abatida. Na minha opinio, quando a gente trabaia muito que passa mais ou menos, tudo bem; mais um trabaio, passa fome, a gente j... como eu passei muita fome trabaiando me lembro. Num quero relembrar o passado no, num me d prazer recordar o passado e sofrimento por sofrimento, t bom. E j, j passou, passou. 234
(Foto 17 D. Luzia Pacatanha Jaguaruana)
234 Luzia Maria da Silva, 73 anos. Entrevista gravada na Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, municpio de Jaguaruana, no dia 02/02/1999. 156 Embora os camponeses sejam vistos como pessoas dispostas a enfrentar qualquer tipo de trabalho, por t-lo como algo positivo, associado moralidade, e, portanto, inimigo dos vcios, o relato de memria de D. Luzia Maria da Silva deixa transparecer o quanto a sua vida foi duramente marcada pelo sofrimento e pelo trabalho rduo. No obstante, em muitos casos, ter trabalho, significou a maior alegria de suas vidas; em contraposio, a falta dele revelou-se como a grande perda. * * * Afora estas atividades mais voltadas para a agricultura, que envolvia a produo artesanal de farinha de mandioca, e para o extrativismo vegetal, atravs da extrao do p cerfero para a produo da cera de carnaba, assim como para a produo artesanal de bolsas e chapus de palha, outras atividades foram rememoradas na travessia pelos sertes do trabalho. O Sr. Joo Miguel de Souza, por exemplo, disse ter trabalhado trinta e cinco anos de vaqueiro campiando. 235
Segundo o depoente, at o incio da dcada de 1960, o gado era, praticamente, criado solto pelo mato. S a partir deste perodo, que foi cercando, foi cercando, foi diminuindo essas coisas.
Andei muito aqui nessa beira de praia; de Aracati pra c, isso aqui eu j andei tudo atrs de gado. Porque os gado daqui, isso tudo era solto a gente soltava os gado aqui, naquela rama, os gado descia aqui pra baixo, a bater na beira da praia. Quando era assim im agosto, a ns ia juntar, fazia aquela junta. Juntava um magote de vaqueiro. Ns tivemo de passar ms no mundo juntando gado, num sabe? Saa de l com gado, ns trazia duzentas e tantas rs, trezentas, era assim; a, vinha ispaiando por esses fazendeiro, n? Porque ns ia assim, pegava de todo o mundo, n? Aonde ns encontrava pegava, n? Trazia. 236
235 Segundo Capistrano de Abreu, entre outras atividades, cabia ao vaqueiro amansar e ferrar os bezerros, bem como cur-los das bicheiras. Para cumprir bem com seu ofcio vaqueiral, escreve um observador, deixa poucas noites de dormir nos campos, ou ao menos as madrugadas no o acham em casa, especialmente de inverno, sem atender s maiores chuvas e trovoadas, porque nesta ocasio costuma nascer a maior parte dos bezerros e pode nas malhadas observar o gado antes de espalhar-se ao romper do dia, como costumam, marcar as vacas que esto prximas a ser mes e traz-las quase como vista, para que parindo no escondam os filhos de forma que fiquem bravos ou morram de varejeiras. Cf. Capistrano Abreu. Captulos da histria colonial (1500/1800). 7. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Publifolha, 2000. pp. 153 e 154. 236 J oo Miguel de Souza, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Divertido, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 157 Segundo seu Joo Miguel, os fazendeiros tinham a preocupao de ferrar o gado pa quando fosse atrs, o sujeito, ou seja, o vaqueiro, no ter muitas dificuldades em identificar a quem pertencia. Alguns fazendeiros assinava nas ureia [orelha], butava aquele sinal como mecanismo de identificao do animal. A esses cuidados, somava-se a lealdade dos vaqueiros que, no dizer de Gustavo Barroso, 237 tinham a obrigao moral de dar notcias das rezes que encontravam pelas ribeiras, matas e caatingas. Esta mesma obrigao moral, de que fala Barroso, ficou, de certa forma, expressa no relato de memria do seu Joo Miguel, quando revelou que os vaqueiros prestavam conta dos animais que, por alguma necessidade, tinham de ser abatidos antes de chegarem s suas fazendas de origem.
Se matasse uma rs, a ns... se fosse nossa, ns vendia e ficava pa cumer, num sabe? E sendo das outa fazenda, a gente apurava e entregava o dinheiro ao patro, entregava l pro dono, era assim. Tivemo de matar gado de Russa aqui, aqui perto do Pirangi, ns matemo aqui, de Russa, a a gente vendia e trazia o dinheiro entregava o home, n? Era bom rapaz, nesse tempo era bom.
Embora o relato do seu Joo Miguel parea ter sido tecido apenas com os fios da imaginao, ele est, seguramente, vinculado a uma tradio oral que, segundo Jos Csar Gnaccarine, acreditava no carter sagrado das relaes entre os camponeses, no sendo preciso nenhum aparato coator baseado em direitos.
(...) Na tradio oral era corrente a crena em que o vaqueiro, tendo encontrado um animal perdido sem que lhe reconhea o dono o manter entre os seus sem que, contudo, o venda nem utilize em trabalho algum, deixando-o morrer de velho. Tambm era crena corrente que se fmea e venha a procriar, o vaqueiro apartar de quatro crias uma para si, segundo os costumes, separando as trs restantes, as quais por de lado do mesmo modo que o animal achado. Assim tambm nas relaes com o proprietrio das terras, pois que este, segundo a tradio oral, estaria to seguro quanto o prprio vaqueiro de que nunca se violar a percentagem. (...). 238
237 Gustavo Barroso. Terra de Sol (Natureza e Costumes do Norte). op. cit. p. 45. 238 J os Csar Gnaccarine. Latifndio e proletariado: formao da empresa e relaes de trabalho no Brasil rural. op. cit. p. 142. Essa obrigao moral, talvez tenha sua origem nos sacramentos catlicos. Segundo Capistrano de Abreu, muito tempo viveu essa gente entregue a si mesma, sem figura de ordem nem de 158
Segundo o velho Joo Miguel, os vaqueiros eram sempre muito bem recebidos nas fazendas onde se arranchavam; embora, algumas vezes, a comitiva de vaqueiros no fosse to pequena. Seu Joo Miguel, por exemplo, disse ter feito parte em comitiva composta por at quatorze vaqueiros. Eram os chamados vaqueiros do Paiano.
Ah! Rapaz, l ns era, como se diz, bem acolhido, num sabe? A gente chegava naquelas fazenda, a gente num gastava nada, num sabe? Tinha rao para os cavalo, cumida pra gente, tudo. Era, ns fiquemo muito cunhecido no mei desse mundo, ficava cunhecido. Aonde ns ia, j sabia: os vaqueiro do Paiano, n? A, era bem tratado. (...). s vez tinha... s vez tinha festa, ns ia. Era bom, rapaz. Achava bom comostodo.
Todavia, hoje praticamente inexiste a profisso de vaqueiro, em virtude do cercamento das propriedades. Apenas os fazendeiros que possuem em suas terras as chamadas mangas, ou seja, reas de mata localizadas dentro da prpria fazenda, que, quase sempre, tm um vaqueiro que campeia dentro da manga, n?.
Mas, sa pra fora num sai, que os bicho num sai mais, n? Naqueles tempos no, saa e tinha que ir atrs, tinha que ir atrs e como se diz, o caba aonde achasse tinha que pegar, no mato, no limpo, aonde achasse tinha que pegar; porque se no, num trazia, n? Tinha que pegar. 239
Ao narrar suas lutas e vitrias na caa aos boi brabo, o Sr. Joo Andr Filho contou-me um dos causos vivido por ele, no tempo em que, no seu dizer, tinha a arte do vaqueiro. 240 Em sua narrativa, o velho
organizao. Como eram catlicos e a igreja obriga freqncia dos sacramentos, naturalmente qualquer vigrio ou algum mais animoso, mais zeloso ou mais cpido saa de tempos em tempos a desobrigar as ovelhas remotas. Depois da instalao do arcebispado da Bahia, criaram-se freguesias no serto, enormes, de oitenta, cem lguas e mais. Ali era cobrado o imposto meio civil meio eclesistico do dzimo. Os dizimeiros que o arrematavam, depois de ter feito a experincia, preferiram deixar a outros o trabalho de arrecadao: um dos fazendeiros ou qualquer pessoa capaz do interior em seu nome ia pelos vizinhos recolher os bezerros dizimados, pois a paga realizava-se em gnero; depois de alguns anos, trs ou quatro conforme a conveno, prestava contas: cabia-lhe pelo trabalho um quarto do gado, exatamente como aos vaqueiros. Cf. Capistrano de Abreu. Captulos da histria colonial (1500/1800). op. cit. p. 157. 239 J oo Miguel de Souza, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Divertido, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 240 Segundo Capistrano de Abreu, o vaqueiro tem pelo exerccio nas fazendas de gado tam inclinao que procura com empenhos ser nela ocupada, consistindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o 159 Joo Andr fez questo de enfatizar a selvageria de um boi que ele se dispusera a pegar nas terras de um home, que, mais tarde, viria a ser seu sogro; ao mesmo tempo que exaltou a sua prpria coragem, determinao e destreza. Este tipo herico, tambm compartilhado por outros depoentes que exerceram a atividade de vaqueiro, era possuidor de alguns atributos que lhes serviam de caractersticas: a sensibilidade auditiva, o olhar sagaz, a coragem, a altivez e a fora. 241
L na hora que dissero que ia um heri espetar..., butaro at o apelido de heri. Chegamo l, tinha tanta gente, homes e mulhere, (...), o morador, os dois vaqueiro que eram acostumado correr atrs e perder a carreira. Cheguei l, munto novo, forte, ele foi... eu preguntei: - E agora, e o boi? Disse: - A vaca t batendo chucai ali pertinho, o boi num larga a vaca, t ali perto. Samo pra l, ficou a multido de gente pra ver a carreira, pra ver o risultado. (...). Sost existir um home pra tudo, n? Meu filho, quando eu me lembro dum negoo daquele; a pior coisa que eu vi na minha vida. Acredita? Foi o sirvio maior que eu me achei na minha vida foi aquele. (...). Fomo pra l, os dois vaqueiro. Eu digo: - Vem c, quando o boi v a gente o que que faz? Disse: Falta passar pu riba da gente pra correr pra l, pa ladeira da serra, que sabe que a gente num desce junto com ele, j t salvo. (...). Eu digo: - E agora? Ele disse: - No corre pa ladeira ningum. Num d pa pegar daqui pra l, a gente perdeu a carreira. Foi passando perto, j tarra de manga tomada, aprontei o cavalo pra cima e a vai me deitando po dibaixo da... do pau, dos pau, me deitando, e (...) olhei vinha um vaqueiro perto de mim, s um, a dispois passei o visto, num vinha mais nem um, j curria sozim. Correndo pa l, pa serra. Quando chegou na serra, da carreira que o boi foi, desceu de serra abaixo. Eu, empurrei o cavalo em cima, serra a baixo, e a vai o dirmantelo. Adiante, eu pude pegar a cauda do... do boi, enrolei, encostei o cavalo, munto prtico, encostei o cavalo em cima do boi, a, vai... o boi tinha hora que dicia de coca, sentado, to apique era a serra. Vem c, um cristo desse pensava o que na vida? (risos). (...). Descemo a serra, pegaro... Tinha um bebedor assim, que era onde ele bibia de vero, o boi sabia, que vivia l, da carreira que foi, correu em procura da cerca, do porto, entrou no bebedor. Risquei o cavalo... Ele entrou, ficou l no fim. Fiquei parado, dei f veio o dono do boi de ps no assro, que ns vinha arriando tudo, um melapinto verde, um catingueral, ns vinha tirando tudo. De longe eu via ele dizer assim: - Ah! Meu Deus, se eu soubesse que aquele rapaz era doido daquele jeito, nunca que eu tinha mandado ele vim pegar boi; vou encontrar ele morto. (...). Voltamos pa trs, quando chegamo l na casa, j estava vendo a multido de gente. Chegaro... Eu cheguei, meu Deus do cu, esse povo era munto grito,
nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem de fazenda, so ttulos honorfico entre eles. Cf. Capistrano de Abreu. Captulos da histria colonial (1500/1800). op. cit. p. 154. 241 Cf. Ivone Cordeiro Barbosa. SERTO: UM LUGAR-INCOMUM: o serto do Cear na literatura do sculo XIX. op. cit. pp. 116 e 117. Segundo a autora, h um sem nmero de verses e poesias em torno da luta cotidiana de caa aos bois bravios nas matas e caatingas, que apontam sempre na perspectiva de enfatizar a selvageria do gado, para, a partir da, exaltar a coragem, determinao e destreza dos vaqueiros. Cf. p. 129. 160 munta palma. Eu vou lhe dizer, o mulheril que tinha l, quase me derrubava do cavalo (risos), agarrado com a gente. 242
(Foto 18 o velho vaqueiro Joo Andr Jaguaruana)
Segundo o Sr. Antnio Ribeiro de Souza, quando terminava de ajuntar os bichos, era comum haver, naquele dia, uma derruba pa quem quisesse. Assim como acontecia geralmente ao trmino dos adjuntos ou das desmanchas nas casas de farinha, a ajunta do gado era ocasio propcia para a realizao de uma festa: Era, as festas era essa. Quem quisesse brincar o dia inteiro, era o dia inteiro e num tinha histora de pagamento de nada no. 243 Mais uma vez, fica evidente que na sociedade tradicional camponesa, trabalho e lazer no se dicotomizavam. Segundo Alda Brito da Motta, o mundo campons o mundo do valor de uso, das atividades de utilidade imediata, em que as atividades ldicas, com aspectos freqentemente
242 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 18/08/1999 243 Antnio Ribeiro de Souza, 82 anos. Entrevista gravada na comunidade do Brito, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. 161 estticos, tm sempre um emprego inseparvel da rotina do trabalho ou do ritual religioso. 244
* * *
O trabalho nos comboios, que transportavam mercadorias de outras paragens, foi outra atividade rememorada por alguns de meus amigos de travessia. O comboio era composto por uma tropa de animal conduzidos por uma pessoa comumente chamada de tangerino, alm do tropeiro que era o responsvel direto pelo comboio. Os carros de boi eram, tambm, outro meio de transporte utilizado na comercializao de mercadorias entre os ncleos rurais. Segundo o Sr. Chiquinho Pitombeira, de longe se ouvia os gemidos das grandes rodas de madeira dos carros de boi. 245
De acordo com os relatos de memrias que foram colhidos junto aos velhos comboeiros, uma viagem de ida e volta entre Morada Nova e Cascavel, por exemplo, demorava cerca de nove dias. A lentido dos animais e a pssima qualidade das picadas, ou seja, das estrada por mei do mato justificavam a demora para se vencer as distncias que separavam a regio dos lugares onde comumente os comboios se abasteciam. Entre os lugares que foram recordados pelos velhos comboieiros, destaca-se Cascavel como sendo, talvez, o mais importante ponto de abastecimento de gneros como a farinha e a rapadura. Alm dos Tabuleiros do Cear, como era mais conhecida a litornea cidade de Cascavel, os velhos comboieiros tambm transportavam mercadorias das cidades de Baturit, Mulungu e
244 Alda Brito da Motta. Notas sobre a viso de mundo do campons brasileiro. In. Revista de Cincias Sociais. op. cit. pp. 54 e 55. 245 (...) E l vai o carro-de-boi, puxado por algumas juntas de boi, pachorrento, chiando, arrastado pela estrada que ele mesmo abria, no massap. Feito do rijo pau darco, rodas macias com chanfraduras semilunares ou losangulares, arrastavam enormes cargas de mercadoria sustentada, lateralmente, pelos fueiros fincados, na mesa de madeira pentagonal, plantaforma que, excepcionalmente, era utilizada pelas moas levadas, no carro-de-boi, para as feiras e festas da igreja. As juntas (havia carros-de-boi com at doze juntas) eram presas umas s outras pelo cambo ligado ao cabealho, a partir da primeira junta presa ao carro, chamado bois de coice. Os carros-de-boi foram o nico meio de transporte de cargas, juntamente com os comboios de burros, durante toda a poca colonial vindo at o sculo vinte, quando aparece o caminho, no tendo sido, ainda, totalmente eliminado. Chegava a pecorrer cerca de trinta quilmetros por dia, em poca de vero. Cf. Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onas. op. cit. p. 88. 162 Aracoiaba localizadas na regio serrana do macio de Baturit. De Baturit, por exemplo, transportavam, geralmente, arroz, caf, milho, s bitanga mermo de casa, no dizer do Sr. Francisco Giro Sobrinho. Quando estavam em trnsito pelas picadas abertas no meio do mato, os comboieiros faziam longas caminhadas durante a maior parte do dia. Ao acordarem ainda pela madrugada, os comboieiros, antes de prepararem os animais para reiniciarem a viagem, faziam um cafezim e comiam um negoo qualquer que fosse. A primeira parada do dia acontecia por volta das dez horas da manh, em algum lugar que tivesse gua para darem de beber aos animais e para fazer a bia, n?
A gente levava a mercadoria da viagem todinha. Era carne, era... Alguma vez a gente levava feijo tambm, pra... pra num cumer s carne, n? A gente butava um feijozim no fogo. Era carne seca, carne de boi. A gente comprava essa carne na Aracoiaba, n? A carne l era umas manta bonita, gorda, tinha a gordura de... um dedo de gordura na carne. Era boa, gostosa. A gente conzinhava e cumia, n? Uma noite o sono pegou, ficou tudo... todo, todo cumer perdido, todo cumer perdido. No foi perdido, porque a gente cumemo bem cedim, no outo dia. noite o sono pegou tudim (risos). Era bem seis que andava nesse tempo. Tudo pegou no sono, o derradeiro que pegou no sono fui eu, viu? 246
Segundo o Sr. Francisco Giro Sobrinho, quando anoitecia o grupo de comboieiros procurava se arranchar no prprio mato. Alm do frio e do sereno da noite, acontecia, s vezes, dos comboeiros e animais passarem a noite assombrados com a presena de alguma ona em torno do rancho.
Era, ns arranchava no mato. Quando no arranchava no mato, ns arranchava numa casa que tinha... que tinha alpende; a, a gente arranchava-se tambm. No mato, amarrava a rede nos pau. A, na noite de sereno, frio, que tinha vez que a madeira amanhecia o dia pingando, viu? Uma vez, passemo a noite todinha acordado com uma ona esturrando bem pertim. Voc sabe aonde os Pato, num sabe? Ainda hoje, quando eu passo l, me lembro disso. (...). A uma noite, passou toda a noite fazendo fogo e a bicha chega fidia, bem pertim. Os animais tudo assombrado, vieram tudo pra encostado do fogo, os animais, n? A, a gente tinha muita lenha, muita madeira, a gente quebrava l perto
246 Francisco Giro Sobrinho (Chicada). Entrevista gravada na comunidade da Palestina, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 163 do fogo, s pertim, pra no sair por ali pudia ela t esperando, n? Era seis; um, ainda durmiu, ainda. Que era mais durminhoco.
Afora as dificuldades cotidianas, seu Chicada, como mais conhecido o Sr. Francisco Giro Sobrinho, revelou que aqui e acol tinha uma paquerazinha. Solteiro, poca, o velho Chicada disse que sempre que pudia, quando achava uma, tinha que fazer a discarga, n? Alm do seu Chicada, outros velhos comboieiros relataram algumas experincias que foram vividas por eles, ou, por algum de seus familiares, no tempo em que se comboiava pelas veredas de roa a caminho de alguma cidade. No entanto, seguiremos outro intinerrio; uma vez que a prxima parada de nossa travessia, ser nos sertes das festas.
164 Sexta Parada: o campons e as festas. 247
Im tempo de moa, eu chorava pum um samba; num vou minti Maria Jlia dos Santos (Foto 19 D. Maria Pereira de Almeida Lagoa de Sta. Teresinha Russas)
No decorrer da travessia, quando os fatos comearam a emergir e a vida comeou a fluir em todas as suas dimenses, o passado foi sendo visitado de forma nostlgica pelas lembranas de tempos e espaos marcados pela coexistncia de uma realidade de dificuldades e de sonhos. Se os camponeses, em seus processos narrativos, construram, de um lado, a paisagem dos sertes secos e tristes, de outro, acenderam as luzes no apenas sobre os sertes dos bons invernos e das farturas, mas sobre os sertes das alegrias de suas festas. Assim, evocando o tempo das festas, velhas e velhos camponeses lembraram das brincadeiras e do tempo em que eram jovens. Embora as lembranas das festas dos santos padroeiros, do Natal e da passagem de ano no tenham sido to detalhadas quanto os sambas, por exemplo, elas aparecem como sendo um dos principais divertimentos de grande parte dos entrevistados. Entre essas festas,
247 Nesta travessia, onze foram os guias: Maria J lia dos Santos, Pedro das Neves cavalcante, Francisco Abel Lino (Chico Abel), Estelita Crispim Gomes, Altina Delfino dos Santos, Francisca Delfina da Costa (Chiquinha), Euclides ngelo Cordeiro, J oo Delfino Bezerra, Amaro J os da Silva, Rosa Maria de Almeida e Onofre Augusto dos Santos. 165 notadamente as dos santos padroeiros, foram de modo geral as mais lembradas.
Eu num perdia a festa de Nossa Senhora do Rusaro; de So Sebastio; congresso, que tinha uns congresso, num sabe? s vez as passiata; a bandeira; as nove noite de novena; tero; as novena de So Bento no Tabuleiro, que chamava Tabuleiro da Bicina, que era aonde nis morava, que hoje im dia Bela Vista, aonde nis morava era So Bento. Mas, a vez tinha festa l na rua; a gente ia festa de So Sebastio, de Nossa Senhora do Rusaro im janeiro e So Sebastio em oitubro. A festa de mai, ms de mai todim de novena. tanto, que meu povo l em Fortaleza tudo crente; mas, eu mermo num sou no, nunca gostei disso no. 248
Na mesma linha discursiva do depoimento da D. Maria Jlia, as festas religiosas aparecem no relato do velho Pedro das Neves como um dos momentos mais importantes e significativos da vida individual e comunitria da regio no passado. Assim, ao descrever o cenrio ldico da festa do Divino Esprito Santo, o Sr. Pedro no apenas chama a ateno para a beleza da festa, mas, sobretudo, para o acontecimento social no qual as famlias tinham a oportunidade de reforarem seus laos de amizade e de obrigao religiosa.
A festa do padroeiro Divino Esprito Santo era os fogo medonho, era muito festeiro. Era balo, era fogo de roda, era fogo de lgrimas, era uma beleza, n? Hoje, se acabou tudo isso, num tem mais nada disso. De primeiro, era carrocel nas festas pa se brincar, era tudo, tinha aquilo pa se brincar, nera? Rurgia o fogo de lgrima... Na hora da missa, era um popoqueiro feio, fugueto, fogo de lava, balo, tudo tinha no ar, nera? Bonito, nera? Na missa do Divino Esprito Santo, n? 249
Alimentado por um forte catolicismo, o Sr. Pedro das Neves lamenta a descaracterizao, no presente, da festa do Divino Esprito Santo; assim como critica a proliferao de outras religies.
E hoje? Num se v mais nada disso, n? Por que? Religio acabou-se, meu filho, religio acabou-se. Num tem mais religio no, num tem mais religio no. To bom que nosso padroeiro, to bom que o
248 Maria J lia dos Santos, 72 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/10/1999. 249 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 166 Divino Esprito Santo. Existe esse nego de crente, pa, coisa medonha! Num ixiste essa lei, ixiste, sim, pa terra. Mas, pa Deus num ixiste essa lei de crente no. Lei de crente, lei de Jeov, lei de seu fulano, lei de seu sicrano como ixiste; eu t canso de debater com esse povo. E, num ixiste essa lei cumpade e nem cumade, num ixiste no. Oi, Deus s deixou uma lei, a catlica apostlica romana, mas essas outa lei, tudo inventada por home.
Ao crer que Deus s deixou uma lei, a catlica apostlica romana, o Sr. Pedro das Neves revela o quanto seu discurso depositrio de uma tradio catlica que secularmente tem influenciado as vises de mundo dos camponeses. Portanto, mesmo com a emergncia, nas ltimas dcadas, de outros credos religiosos no espao campons, o catolicismo popular permanece vivo em amplas camadas da populao rural. De modo geral, as imagens do respeito, da devoo, da humildade, do ldico, da praa enfeitada com barracas para a realizao do leilo, do povo se divertindo nas quermesse, dos fogos de artifcio... foram tecidas pelo rememorar alegre dos entrevistados. So imagens representativas da tradio religiosa da regio, na qual as festas dos padroeiros ganham destaque por serem um dos principais acontecimentos da vida individual e comunitria, principalmente, dos que habitam as zonas rurais. Ao rememorar as festas promovidas pela Igreja Catlica, o Sr. Conrado revelou que em seu tempo de jovem gostava muito de ir s festas de igreja, s quermesses, aos leiles que se realizavam tanto no Quixer, quanto nas Flores, no municpio de Russas. Ao atravessar, em sua narrativa, as festas em homenagem ao Patriarca So Jos, o Sr. Francisco Abel Lino relembra o quanto essas festas eram divertidas no passado. Nas imagens rememoradas, o velho Abel descreve a festa do dia dezenove de maro tomando como referncia duas temporalidades que, embora distintas, esto ligadas pela dimenso telrica deste acontecimento religioso e social. Na primeira, representada pelo seu tempo de criana, aparecem as imagens sequenciadas das pessoas chegando a cavalo para participarem dos festejos em honra do padroeiro So Jos; do dinheiro 167 que ganhava para cuidar dos animais daquelas pessoas, que se arranchavam em sua casa; e das broas que comprava com o dinheiro que ganhava por este servio prestado:
Chegava uma pessoa conhecido, pra se arranchar l im casa, pra vim passar a noite na festa, um canto pra guardar as arriao, uma cela e um cavalo, n? E, eu ganhava pra d gua o cavalo, butar no cercado, d banho e ir buscar pra entregar aqueles amigo. Ganhei muito dinheiro! Nesse tempo, um cruzado, que era uma muedinha, um cruzado, dois tes, um tosto... Mas, minino chorava por esse dinheirim. Que voc cumprava broa, que era muito grande, dava quais um almoo. 250
Na segunda temporalidade, o tempo da festa marca a fase adulta em que o Sr. Abel j levava a famlia para a festa e procurava interter os minino comprando-lhes uma tal de folgosa para comerem.
Eu me lembro a primeira, depois deu casado com Ana. Nis viemo uma festa aqui no Jatob, nis trazendo a famia, parece que tinha cinco ou era quato. Nis trucemo dento de uns cauar, num jumento. Butemo a cangia, butemo os cauar e butava dois, dois num cauar e dois nouto; e, um no meio, na cangaia. E, vinha pra festa. A, pegou uma noite de chuva. Vi, mais nis j sofremo. Por Deus, era na casa dum cunhecido. Juntemo, era como uma marreca, ajuntou a ninhadazinha tudo ali no canto e passemo. Passou quais a noite chuvendo e nis l. Eu cumprava uma tal de folgosa pra interter os minino, e bolo, p-de-moleque era o pau que truava nessa festa.
A festa religiosa, em homenagem ao padroeiro, uma celebrao que tem seu carter originalmente sagrado. Desta forma, mesmo sendo uma festa que se realiza todos os anos, ela no implica apenas em recordaes, mas tambm em expectativas. Portanto, embora seja entendida como uma tradio, as festas religiosas sempre se realizam num clima de renovao espiritual, no qual cada campons tem a oportunidade de comungar, com todos da comunidade, suas splicas por melhores chuvas. Nesse sentido, era comum no passado as festividades de N. Sra. das Candeias e de So Sebastio, por exemplo, bem como o novenrio em honra do Patriarca So Jos, proporcionarem
250 Francisco Abel Lino, 83 anos. Entrevista gravada na comunidade do Bixopa, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. 168 motivao para a ocorrncia de preces populares em prol de suas aflies diante da eminncia de uma nova estao seca.
A entrada do ms de janeiro vieram as expectativas de inverno com bastante otimismo para a maioria da populao. Na ausncia do vigrio os Revmos. Pes. Jesutas realizaram a festa tradicional em honra de So Sebastio e rezou-se no novenrio para alcanar do glorioso Martin um bom tempo. 251
Segundo Clia Toledo Lucena, as festas religiosas no mexem exclusivamente com o lado ldico das pessoas, ela lida com os aspectos do conformismo humano e busca consolo na soluo dos problemas ligados ao meio fsico e rural. 252 Portanto, mais do que um momento de sociabilidade, as homenagens e devoes expressas por meio das festas de santos padroeiros tinham a fora de renovar os princpios religiosos atravs dos sacramentos, das procisses, dos cantos... Desta forma, os preceitos normativos da religio catlica ganhavam ressonncia no cotidiano campons, na medida em que eram, com sentido prprio, internalizados por cada indivduo. Entre as festas que foram mais recordadas, as de casamento tiveram uma importncia de destaque nas lembranas de meus amigos de travessia. Embora no acontecessem com tanta freqncia, as festas de casamento aparecem nos relatos como uma oportunidade que os camponeses tinham de transformar o espao do serto no espao da festa. Assim, ao relembrarem a celebrao do casamento religioso, alguns justificaram a simplicidade ou mesmo a no realizao da festa; enquanto outros reviveram as alegrias, as curiosidades e as farturas da festa de seus casamentos. A doena de algum membro da famlia, apresentou-se como um dos principais empecilhos para a no realizao dos festejos de casamento. Atribuir doena as razes que justificam a no realizao da festa de casamento uma maneira tanto de sublimar como de
251 Parquia de Russas Livro de Tombo n VII, referente ao ano de 1958. 252 Clia Toledo Lucena. Artes de lembrar e de inventar: (re) lembranas de migrantes. So Paulo: Arte & Cincia, 1999. p. 99. 169 explicar as carncias que, porventura, possam se envergonhar. D. Estelita Crispim Gomes lembra que no dia do seu casamento a sua me estava doente e, por esse motivo, no houve festa. No entanto, relembra que seu pai matou, alm de algumas galinhas, um grande porco para o almoo dos convidados: no ano em que eu me casei, tinha muita fartura dento de casa. (...). Tinha muita galinha, finado papai matou um porco muito grande e teve muita comida, tinha muita gente. 253
Um outro motivo apresentado pelos depoentes para a no realizao da festa de casamento, diz respeito prpria falta de condies dos noivos para oferecer ao menos um almoo para os convidados. D. Altina Delfino dos Santos revela que s se casou porque o namorado foi trabalhar em uma desmancha e lhe comprou de presente um vestido e um par de sapato, o que lhe deixou muito feliz, pois os seus ps nunca havia sequer calado um par de sapato. No dia do casamento, logo cedo, os noivos mais a comitiva formada pelos familiares, padrinhos, e convidados, seguiram de cavalo at a cidade de Russas onde realizou-se a cerimnia. (Foto 20 D. Altina Delfino Canto da Cruz Palhano)
253 Estelita Crispim Gomes, 69 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999.
170 D. Altina lembra, ainda, que na frente da comitiva seguia um animal conduzindo um ba que levava duas roupinha dento, s pa dizer que levava essa caiga de ba. Quando chegaram na igreja, no entanto, ela disse ter ficado surpresa com a quantidade de noivos reunidos para a celebrao comunitria. Em razo deste fato, para ela inusitado, D. Altina foi tomada por uma vontade incontrolvel de rir; o que lhe rendeu uma certa repreenso do padre: a, o padre foi disse pra mim. - a senhora t muito alegre! - Eu disse, graas a Deus (risos), eu t alegre porque eu vejo essa fartura de gente. A, me d vontade de me ri, v batizado. Quanto aos festejos, em homenagem ao seu casamento, ficou resumido a cinco quilos de farinha e a trs quilos de carne. 254
Na verdade, praticamente todos os relatos de memria, a respeito das festas de casamento, obedeceram a uma certa regularidade discursiva. Nesse sentido, uma das imagens mais recorrentes, sobretudo nas narrativas femininas, foi a do casal de noivos, acompanhados por familiares e amigos, indo a cavalo para a igreja. De forma emblemtica, D. Francisca Delfina da Costa revelou que, na poca do seu casamento, no era muito comum um carro naquelas paragens. De qualquer forma, narra a depoente de oitenta e nove anos:
Seu Lucas (...) arrumou o carro pa levar eu e uma irm dele que ia casar, a finada Corma. (...). Ele queria que eu fosse, mais eu tinha medo; num v, num v, pelejou, v no. A, me albriguei a ir a cavalo, em riba dos cavalo. (...). Foi de manh, foi na Russa. No amanhecer do dia, no amanhecer do dia nis samo tudo a cavalo; e, fumo e viemo. 255
Diferentemente das grandes cidades do Brasil, que desde o incio dos anos de 1920 j tinham, irreversivelmente, incorporado sua paisagem o automvel, chamando ateno de todos com seu fonfonar e
254 Altina Delfino dos Santos, 84 anos. Entrevista gravada no Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 255 Francisca Delfina da Costa, 87 anos. Entrevista gravada no Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999. 171 provocando sedues e desejos nos citadinos, 256 nos sertes, essa fascinante inveno da modernidade, ainda era algo inusitado que provocava, em muitos, espanto e medo. Indagado se as festas de casamento aconteciam tambm em pocas de seca, o Sr. Euclides ngelo Cordeiro respondeu que no eram as condies do tempo seca ou inverno que determinavam a realizao ou no dos festejos nupciais. Segundo o depoente, mesmo num ano que no fosse favorvel ao inverno, aquelas famlias que reuniam melhores condies gostava de fazer aquela festa; era um banquete medonho, era uma animao medonha. 257
Desse modo, dos divertimentos do serto, excetuando-se os sambas, as festas de casamento emergem na memria dos mais velhos como uma das mais concorridas no passado. No processo de rememorao destas festas, foi comum os entrevistados entregarem-se ao sentimento nostlgico do passado, experienciando novas emoes. Foi assim, com uma alegria contagiante e com um brilho singular que refletia em seus olhos, que D. Maria Jlia narrou de maneira expontnea a festa do seu casamento.
De l do Tabuleiro da Bela Vista pra c, pa esse lugar, foi a cavalo. A, que quando chegou, muito cumer, muita festa, a, nis dancemo. A, que quando foi hora, nis deixemo a festa l e fumo durmir, nis dois. Fumo passar a luz... a lua, a lua de mel (risos). Tem mais nada pa contar no (risos). 258
Ao contrrio de D. Maria Jlia, que quando foi hora da lua de mel deixou a festa s para os convidados, o Sr. Joo Delfino, 259
embalado pelo som contagiante da sofona, deixou-se levar pela alegria da festa at o amanhecer do dia.
256 Antonio Paulo Resende. (Des) Encantos Modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de vinte. op. cit. p. 61. 257 Euclides ngelo Cordeiro, 80 anos. Entrevista gravada na Logoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/2000. 258 Maria J lia dos Santos, 72 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/10/1999. 259 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 172 Ao atravessar tempos e espaos diversos, refazendo com a conscincia do presente os caminhos do passado, o Sr. Amaro Jos da Silva fez uma grande escala no tempo marcado pelo seu casamento. Ao fazer uma descrio pormenorizada do seu casamento, o velho Amaro revelou ter vivido um grande drama antes de resolver fazer a travessia para o mundo dos homens casados, pois o que motivava a sua vida era continuar namorando, danando, saltando praqui e pracul. Na verdade, o casamento representava uma esquina da sua vida, que era foroso dobrar, transpor. E era com uma prima minha, e num fazia vergonha a mim e nem eu a ela, n? Quer dizer, que nesse tempo, eu num era fei que nem hoje no (risos), era mais famoso. 260
(Foto 21 Sr. Amaro Alto do Ferro Itaiaba)
260 Amaro J os da Silva, 90 anos. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferro, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. 173 Morando na companhia dos pais at o dia do seu casamento, seu Amaro apega-se a dois motivos para justificar por que resolveu transpor esta esquina difcil que era o casamento em sua vida. O primeiro deles, era uns pensar meio atrapaiado de se amigar; o segundo, o respeito que devia ao pai. No obstante, o seu drama continuou at o p do altar. No entanto, recorro ao prprio Amaro para que ele mesmo possa narrar o prximo ato.
A, nis fumo casar. Quando foi pa sa l de casa, com pouco fizero um choror danado, trancaro ela l dento do quarto, l. E o caminho aqui na porta cheio de gente esperando pa casar im Jaguaruana, n? E, ela l. E, eu chamando: - rumbora, rumbora porque o chof aqui t avexado, j t ficando de noi... de tarde, muito de tarde. Foi que ela saiu, de l pra c. Quando ela vinha saindo, ainda inchugando os olho, rapaz, me deu uma raiva (risos). Voc sabe duma coisa? Esse casamento num vai d certo no! L, eu num disse nada, mais sa com aquele plano: quando passar... que a casa de papai assim mais pa riba da casa dela, quando passar l eu deso do carro, eu deso do carro e num vou mais casar, no. Oi que essa mulher, eu... eu... me garant tanta coisa e agora com uma pena desse povo que nis vamo morar tudo pertim, isso num vai d certo, no (risos). A, quando o carro parou no terreiro de papai, e eu fui entrando pa dento de casa: papai, diga a que eu num vou mais casar, no. (...). A, eles ficaro l naquela conversinha, a, ele me chamou: - Rapaz, voc t fazendo um papel muito fei. - Eu digo, ora papai, ela saio de l chorando com pena do povo de l; e, eu sa daqui, eu quero tanto bem a vocs e num sa daqui chorando, n? - No, mais voc vai, voc vai casar. Rapaz, quando o vi disse voc vai casar, eu... eu ismurici. Mas, o jeito que tem; o vi mandou, o jeito que tem ir. Aquela obedincia medonha. A, ele foi e disse assim, bem alto mermo pa eles v: - Se voc num quiria casar, tivesse dito l na casa, l na casa da moa; no trazer um caminho cheio de gente desse aqui pa minha... pa chegar aqui ainda, ainda num querer ir. No, rapaz, vai. Eu digo, pronto, acabou. A, eu fui naqueles plano ruim at chegar l na Jaguaruana; disposto, quando o pade perguntasse (...) se aceita o noivo e a noiva... A, at quando eu cheguei l nos ps do pade, ainda tive... ainda ia com esse mal pensado de dizer que no. Mas, rapaz, quando o pade olhou pa mim (risos), a eu afroxei, n?
Para melhor compreender o drama vivido pela noiva do seu Amaro, quando ela teve que deixar o espao familiar para ingressar em uma nova fase de sua vida, apoio-me nas reflexes de Armand Frmont, para quem as relaes do homem com o espao combinam-se numa experincia vivida que varia de acordo com as idades da vida. Apesar do espao vivido da criana prefigurar em larga 174 medida ao do homem adulto na medida em que este prolonga, alarga, estabiliza, adensa de experincias mltiplas o espao da infncia, a dupla experincia do trabalho e do casamento representa uma descontinuidade do espao das primeiras idades. Para Frmont, na passagem da adolescncia para o universo dos adultos, o trabalho representa uma descontinuidade importante, pois introduz as contingncias da economia de produo, ou seja: motiva deslocaes, temporrias ou definitivas. Abre para novas relaes sociais, ao mesmo tempo que cria estritas obrigaes. Nesse sentido, o espao adulto no apresenta apenas um alargamento do espao infantil, mas tambm afetado por rupturas, onde a do casamento apresenta-se como sendo a mais universal e a mais significativa, pois efetua-se para ambos os cnjuges (ou para um ou outro) uma espcie de rasgo do espao infantil, o acesso a novos lugares da vida, um desdobramento mais ou menos bem assumido das relaes parentais. 261
Retomando a narrativa do casamento do seu Amaro, veremos que ao convidar sua ex-namorada para a festa do seu casamento, o velho Amaro quis fazer do ltimo ato de seu drama, uma comdia.
Na minha festa do casamento, (...) eu fui convidar ela po casamento; ela chamava-se Raimunda. Eu digo: - Raimunda... Ela era danadeira, danava como todo. A, eu digo: Raimunda, vamo po meu casamento; l, voc num vai ser mau recebida, no. - No, vou no que eu tenho vergonha! A, eu digo: eu garanto passar a noite... A minha muier num danava, n? (risos) ela num danava. Eu te garanto passar a noite danando contigo e namorando contigo, a derradeira vez. - No, vou no, eu tenho vergonha. Eu digo: , isso a na vergonha eu num sei no, eu mermo num tenho no (risos). Mas, rapaz, esse nego desse casamento, me fez uma soltura; que eu ao lado de papai era preso, nera? Eu s fazia o que ele quiria at vinte ano, n? Mas, quando eu me vi solto, a muier muito boa, muito distinta, e eu me mit na farra praqui e pracul, e praqui e pracul, e ela me tratando bem, me zelando bem pra tudo, pas festas; e, o que aconteceu po fim, foi... eu num larguei ela no, nunca tive vontade de largar ela no, mas, me deu um disassossego de pissuir muier po fora, que eu arranjei um bucado delas. 262
261 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. pp. 27 e 28. 262 Amaro J os da Silva, 90 anos. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferro, no municpio de Itaia, no dia 05/04/2000.
175 Na verdade, esta imagem que o Sr. Amaro revela de si prprio, serve de emblema para caracterizar outras narrativas que investem na afirmao da masculinidade como um dos atributos mais positivos dos sertanejos. 263
Ainda com relao s festas de casamento, ao atravessar os sertes de Morada Nova, fui informado que no passado era comum em todas as festas de casamento haver uma disputa pelo leno da noiva. A brincadeira, acontecia antes dos noivos e convidados chegarem casa da noiva. Assim, dois cavaleiros se perfilavam, cada um segurando em uma das pontas do leno, para ver quem permaneceria com o leno, aps a disparada dos animais. Aquele que chegasse casa da noiva com o leno na mo, alm de ser festejado pela bravura, recebia como prmio uma garrafa de vinho da noiva. Demonstrando muita saudade desses tempos felizes, o Sr. Pedro das Neves relembrou a poca em que corria segurando im punta de leno.
Corri munto im punta de leno, leno da noiva, n? (..). A, butava dois cavalo, um pegava na ponta do leno e o outo nouta, partia, n? O cavalo que fosse mior, tumava o leno da noiva, n? Saa vuando, n? (...) pa chegar l na casa do dono da... do pai da noiva com o leno da noiva, n? Quando chegava com o leno, a tinha vinho, vinho da noiva, nera? Pra d aquele camarada que chegava com o leno da noiva. (...). Mas, isso era bom, meu filho, isso era bom. (...). Era, o camarada que chegava na frente tinha uma bravura medonha, n? 264
Com os olhos perdidos na distncia e na rememorao do passado, o velho Pedro das Neves deixou-se levar pelas lembranas que atravessava o seu pensamento, fazendo-o retornar ao dia do seu casamento.
Eu casei no dia vinte e hum de agosto de 1950, vinte e um de agosto de 1950, eu me casei. Padre Assis que fez meu casamento, na matriz de Morada Nova, na parquia. Fomo de ps, acompanhamento de ps, os noivado. A noiva, era com um vistido bem cumprido, branco, de vu e
263 Sobre essa questo ver: Durval Muniz de Albuquerque J r. Quem frouxo no se mete: violncia e masculinidade como elemento constitutivos da imagem do nordestino. In. PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP n 19. So Paulo, SP, 1999. 264 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Varzantes, municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 176 grinalda e duas criana, duas mininazinha agarrada alevantando o vistidim dela pra ela puder andar, n? Nis de p, tudo de p. Quando nis cheguemo im casa do pai da noiva, foi um festival medonho, uma cumiduria medonha pra todo mundo. Sobrou cumida vontade, s num tinha era bebedeira. Bebedeira num tinha no, era s cumiduria. (...). O velho meu sogro num aceitava bibida.
Envolvido por uma forte emoo, o Sr. Pedro das Neves deixou-se traduzir pela saudade que sentia ao recordar no apenas o dia do seu casamento, mas, sobretudo, os quarenta e nove anos e oito meses que viveu ao lado da sua esposa. Seu pensamento, sem poder fixar-se no presente, vagava pelo passado recobrando os momentos felizes que passou ao lado daquela que desde os seus vinte e cinco anos de idade lhe fora amparo e dedicao. Em seu relato, talvez inconsciente, revelou o quanto o amor um sentimento profundo.
Eu gosto de me lembrar do passado e num me esqueo nunca; eu num me esqueo nunca do passado. tanto, que a minha patroa faliceu, hoje t com Deus, na hora quase das ltima dela, ela me convidou pa eu ir mais ela, n? E, eu chorando, disse pa ela: - minha filha, eu vou quando Deus quiser. Mas, que voc v hoje, quando Deus quiser eu vou tambm, n? A, ela ainda me respondeu, as lagrimazinha correndo aqui nos olho. - Meu velho, quando voc for v pa onde eu t. A, eu fui digo: - Quem sabe Deus, minha filha. Se Deus quiser e permitir, e, voc tiver o gosto, o prazer de ir pum canto bom; e, quando eu for, tiver tambm o mermo prazer, nis se junta, samo os mermo amor que samo aqui na terra, nis samo no paraso, n? E, com isso, meu filho, ela se... (Foto 22 Sr. Pedro das Neves aps entrevista Vazantes Morada Nova)
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Neste instante, o velho Pedro suspirou quase que imperceptivelmente, enquanto uma sombra de tristeza refletiu-se-lhe na fisionomia. A voz foi calada e as palavras morreram-lhe na garganta como se todas estivessem sido asfixiadas pela emoo. Seu silncio, fez-me sentir tambm uma profunda emoo que ainda me faz emudecer toda vez que recobro a lembrana daquela cena. Ao retomar a palavra de volta, ela surgiu-lhe no mais com a mesma fora de antes, veio embargada e acompanhada do brilho de uma lgrima que seu Pedro, discretamente, conseguiu reter dos seus olhos.
E, por isso, eu digo, num me esqueo nunca. Se eu viver cem ano, mais eu num me esqueo disso, de jeito nenhum. A covinha dela t l preparada l no cemitrio, eu mandei fazer engradado com o nome dela, as iniciais tudim, paguei o coveiro pa zelar tudim, t l que uma beleza. Por qu? Porque ela me zelou eu na terra, e me quiria muito bem. (...). Eu tenho certeza, que ela nunca foi mulher banduleira, ela nunca foi falsa a eu no nosso matrimnio. Toda vida foi a mulher exata comigo, uma mulher boa, nunca brigou, nunca briguei com ela, n?
Mesmo tomado pela emoo, foi com naturalidade que o velho Pedro das Neves adentrou o terreno das confidncias, reacendendo em toda sua plenitude, no ntimo do seu ser, o sentimento do amor sincero que o manteve, por quase cinqenta anos, ligado atravs dos laos de respeito, fidelidade e amizade quela mulher que representava em sua vida a concretizao mxima da felicidade. Confesso, no entanto, que a poesia daquele amor sincero fez-me permanecer, por alguns instantes, ruborizado de alegria e de emoo inconfessa. Ao continuar a travessia pelos sertes das festas, fui percebendo como esses acontecimentos representam um momento importante na vida dos camponeses. Deste modo, foi possvel compreender que, assim como as festas de casamento, os sambas 178 tambm sobrevivem enquanto memria possibilitando-os, desta forma, manterem vivo o vnculo com o passado. 265
No dilogo das memria sobre os sertes das festas, foi possvel perceber que tanto a memria masculina quanto a memria feminina apresentaram-se sempre fartas de lembranas a respeito dos sambas. Em ambas as memrias, os sambas representavam uma oportunidade no s para se danar, mas para se namorar. Assim, ao rememorarem com saudades os sertes das festas, algumas depoentes no tiveram nenhum tipo de constrangimento e passaram a narrar o tempo do namoro com muita espontaneidade. D. Rosa Maria de Almeida, por exemplo, contou que comeou a namorar com o Sr. Zacarias Francisco de Almeida com apenas quatorze anos de idade numa festa no Tabuleiro dos Negros, onde morava na cidade de Russas. Contudo, mesmo namorando com o Sr. Zacarias, D. Rosa diz ter gozado muito a sua mocidade at os seus dezenove anos de idade, quando resolveu casar-se com ele. Assim, mesmo namorando com o Sr. Zacarias, D. Rosa revelou-me um trato que fizera com uma amiga no qual ficou acordado que: o namorado que eu namorava, ela namorava, era. Se ela fosse pum canto namorava com ele, n? (...). A, quando eu ia que ela num ia, eu tambm fazia a merma coisa. Quanto ao seu Zacarias, D. Rosa comentou que ele tinha mais um cento de namorada e ela compreendia isso porque entendia que ambos precisava de um tempo para aproveitar mais desta vida; e, por outro lado, intendia que o que tem de ser , o que tem de ser , num tem quem tome das mos da gente, tem no, besteira, assim a pessoa saiba se controlar no cime. 266
Com a espontaneidade que inerente aos narradores por excelncia, D. Maria Jlia disse ter perdido a conta do nmero de namorados que teve na sua mocidade, uma vez que comeou a namorar com doze anos de idade. Quanto ao fato de ter casado com o Sr. Onofre Augusto dos Santos, atribui a uma mau palavra que disse.
265 Clia Toledo Lucena. Artes de lembrar e de inventar: (re) lembranas de migrantes. op. cit. p. 141.
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Os namorado eu nem conto. Os namorado eu nem conto porque s os que eu namorei eu num d veno a contar. Cumecei a namorar com quinze ano, com doze ano. E, era naquele tempo. Mais s deu a sorte pa esse da, mais foi uma mau palavra que eu disse, foi. Eu disse que Ave Maria de me casar com um nego da Lagoa das Bestas, casei com a venta... ca com a venta mermo... Ainda por Deus, que bom pra mim. As vez, ele ainda fala de arrumar muier, mais deixa ele arrumar. Eu disse a ele, que ele arrumar eu dava fim a ele. 267
Ao rememorar os namoros do seu tempo, D. Maria Jlia estabeleceu um paralelo entre os namoros do passado e os namoros do presente. Com isto, tornou claro o quanto o passado e o presente se entrelaam perdendo, por um lado, a sua linearidade e, por outro, ganhando uma nova dimenso temporal.
No tempo que eu namorava, se butava uma cadeira eu me assentava dum lado, ele se assentava douto. Ali, a lamparina acesa. Mas, hoje im dia, o pessoal s quer os iscuro, ou num ? Hoje im dia o pessoal... Ningum num via agarrado e hoje im dia voc v um namoro... Eu digo? C v um namoro, que agora eu fao como o ditado, que o home agarra a lngua da criatura chupa s falta (risos), o home agarra a lngua, . Hoje im dia, voc v um namoro, que eu sou via, mas tenho vergonha, eu tenho vergonha. Um dia eu fui, eu tava na rua, a eu fui pagar, a eu fui pagar a farmaa, a tinha um criatura agarrado na lngua da muier que a baba chega iscurria. Eu digo, vala minha Nossa Senhora! pecado medonho. Eu digo, cs sabe duma coisa, que eu pequei, eu pequei hoje, eu pequei hoje grande que eu tive muito tempo olhando. Porque no meu tempo, ningum num via isso; a, eu fiquei assim ispantada. A gente contar o que v, n? Cantar o que v e o que acontece. Hoje im dia, os namoro mei pesado.
Neste momento, seu esposo o Sr. Onofre Augusto dos Santos interveio dizendo que int a via come a lngua do vi (risos). 268 D. Maria Jlia, no entanto, respondeu dizendo:
Ave Maria, no tempo que eu namorava, se fosse pa chupa a minha lngua, fela da puta ninhum num chupava a minha lngua, que eu tinha muito medo de uma fitosa (risos), eu tinha muito medo duma fitosa
266 Rosa Maria de Almeida, 69 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. 267 Maria J lia dos Santos, 72 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/10/1999. 268 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999.
180 (risos). que hoje im dia, os namoro pesado, n? Muito diferente. Porque de primeiro, no tempo do meu pai, rapaz butava assim uma cadeira, a moa butava assim uma cadeira, mais hoje im dia os agarrado mei pesado. E, agarra logo a lngua, parece que quer cumer a pessoa viva, n? Agarra logo a lngua. (...). por isso que eu digo, no tempo... no meu tempo se fosse negoo de chupa a lngua do jeito que o povo chupa, eu num tinha me casado. Ave Maria, eu tenho muito nojo.
Na verdade, a travessia dos sertes das festas na companhia de D. Maria Jlia foi uma das mais leves e descontradas que fiz em toda a pesquisa de campo. Com uma memria fabulosa e uma capacidade de narrar absolutamente envolvente, D. Maria Jlia deixou- se levar pelas lembranas e pelas saudades dos sambas de outrora. No balano cadenciado da rede que tomou por acento, D. Maria Jlia foi descrevendo os sambas que participou no tempo de sua mocidade quando ainda morava no antigo Tabuleiro dos Negros. De acordo com sua narrativa, os sambas aconteciam geralmente na casa do seu pai ou de algum vizinho que reservava a salinha de barro para a realizao do samba. Segundo a depoente, em razo do piso da casa ser de barro, quando os cavaleiros e as damas estavam danando levantava aquela poeira, sendo preciso interromper por alguns instantes a dana para que algum pudesse aguar o piso; eliminando, desta forma, a poeira. Quanto iluminao do ambiente, esta era garantida por um farol ou mesmo pela luz da velha lamparina.
Os samba nis danava, passava a noite danando. Arrumava um namorado, eu, pelo meno, eu indo pum samba eu num sobrava. (...). Gozei muito a minha mocidade, gozei muito a minha mocidade e num t arrependida porque gozei muito a minha mocidade, graas a Deus.
D. Maria Jlia ressalta, ainda, que no passado no havia os dirmantelo que so comuns nas festas de hoje im dia. Ao ser indagada a respeito do que ela entendia por dirmantelo, D. Maria Jlia destacou a violncia como principal elemento de descaracterizao das festas do seu tempo de moa. Segundo a depoente, no passado uma moa num injeitava um cavalero no salo. Ela mesma tinha ordem do seu pai para 181 danar com qualquer cavaleiro que viesse convid-la para uma parte no salo. No entanto, ao contrrio do que ocorria no passado, as moas de hoje s quer danar se for com o prprio namorado; o que causa, no seu entendimento, muita confuso, muito dirmantelo.
(...). No tempo deu moa, que foi orde do meu pai, pudia t do jeito que tava. (...). Eu danava com sujo, eu danava com melado, eu danava com tudo. Agora, tando caindo no cho, (...) isso a eu num danava no. Mas, que eu visse que ele tava com... tava s queimado com passu aprumado, nis danava. Mas, hoje im dia, as moa s querem danar com namorado. (...). Mas, agora eu fao como o ditado, nis num injeitava no. Eu... eu... eu danava int com gente suja. s vez, muitas vez l im casa tinha um primo meu, que ele num zelava bem o corpo dele, ia com uma roupa inchuvaiada, passava a noite danando e eu danava com ele. (...). Nunca, nunca houve briga por causa de nis, de mim mermo no. (...). Mas, eu gostava de um samba, im tempo de moa eu chorava pum um samba, num vou minti.
Conquanto D. Maria Jlia tenha ressaltado que no era comum haver dismantelo nas festas do passado, o relato de memria do Sr. Pedro das Neves revela que um tal de Raimundo de Pedro de Ful costumava acabar com as festas na Rua do Fogo. Ao refazer as imagens que as lembranas guardaram da primeira festa que foi na rua do fogo, aos vinte e um anos de idade, o velho Pedro das Neves descreveu com uma impressionante riqueza de detalhes o duelo que teve com o valento Raimundo de Pedro de Ful. Na verdade, o duelo deu-se em razo do seu Pedro no ter permitido que a sua namorada danasse com Raimundo o valento. Tratava-se, na verdade, de uma minina de quatorze anos de idade que havia trabalhado durante trs semanas numa desmancha justamente na casa de farinha em que seu Pedro trabalhava puxando roda. Embora ainda no tivesse sido cortejada por nenhum rapaz em sua casa, em razo de no ser do agrado dos pais que ela namorasse, a minina abriu-lhe o corao e o convidou para ir sua casa na rua do fogo e, consequentemente, para a festa a qual provavelmente ela iria na companhia dos pais. Depois de ter sido muito bem recebido na casa dos pais da minina, o Sr. Pedro os acompanhou at a casa onde j estava acontecendo a festa. 182
Quando foi oito hora, oito e pouco, a se ajeitemo, a fumo pa festa; a festa j tava alta. Eu cheguei l, eu fui logo o coteiro. Butava um embrema no bolso da gente, pagava dez tes, butava o embrema. (...). A, comeou a festa, o tocador era um tal de Vicente do Junco, sofona via que era uma medonha. Comeou a festa e l vai, l vai, nis danando e danando, e brincando, e l vai... Quando terminava a festa tinha as bancada, nis se sentava nos banco... Rapaz, quando foi assim negoo de dez hora da noite, quando eu dei f, foi um cara n da cintura pa cima danando no mei de nis sem dama, com uma peixeira de doze pulegada no quarto, esfregando no mei dos cavalero. Primeira vez que eu tinha andado na rua do fogo! E esse cara era valento, tava acostumado a acabar festa, a festa s rodava at quando ele quiria; quando ele num quiria acabava com a festa, mandava o tocador ensacar a concertina... (...). Eu num sabia de nada, meu fi. Namorando com essa minina, eu querendo muito bem a ela. (...). Eu sentado assim encostadim o banco, e ela incostadim a eu, quando eu dei f l vem ele, l se vem; chegou encostado a ela disse: - Minina, essa parte agora voc vai danar comigo, n? A, ela foi e disse: - , eu t afigurada desse rapaz. A, ele disse: - Tem nada com afigurao no, voc vai danar comigo que eu quero. (...). A, ele disse po tocador: - Vicente, toca a um xote pa eu danar com essa minina. A, Vicente vi rebolou a sofona nos peito, quando abriu a bichona aqui (nesse momento, ele procurou imitar o som da sofona), pegou no brao dela, foi se levantando, a nis se levantemo nis trs do banco duma vez, n? Mas, quando nis se levantamo eu dei um colago nele, ele bufo, caio no cho. 269
Segundo a narrativa do Sr. Pedro das Neves, a disputa entre ele e Raimundo de Pedro de Ful foi parar no terreiro da casa. Em meio a toda confuso, e devido sobretudo a fama de Raimundo, a festa parecia haver se acabado. No entanto, ao retornar ao salo o Sr. Pedro deu ordem para Vicente continuar tocando a festa, alegando ter pago a cota para danar at o sol fora.
Eu voltei, quando eu cheguei, o tocador butando a sofona dento do saco. Eu digo: - Escuta, o senhor butando a sofona dento do saco uma hora dessa? - , acabou a festa! - Acabou-se a festa? Acabou-se no senhor, eu paguei dez tes o senhor, foi pa nis danar at o sol fora. O senhor vai tocar, e, nis vamo danar. - No, aquele rapaz valente, s tem a festa aqui at enquanto ele quiser, quando ele num quiser acaba com a festa. - No tem nada com valentia no, ele num tem nada aqui que ele num pagou nada, ele num tem nada aqui. Pode tocar! A, ele disse: - No, preciso primeiro eu saber do dono da casa pra mim tocar. Era um tal de Chico Cunha. A, eu digo: - Pode chamar esse Chico Cunha, dono da casa, que eu paguei foi pa danar. A, ele
269 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Varzantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
183 chamou, ele veio, chegou... - O que ? - Esse rapaz t dizendo que pa comear a festa. - Voc resolve a parada com o rapaz? Eu digo: - Resolvo, pode deixar comigo, pode tocar pa frente. A, o sofoneiro baixou o pau a tocar, a tocar, a tocar. A, comeou a chegar, e comeou chegar o povo e nis danando, e nis danando...
Contudo, por volta de duas horas da manh, quando tudo parecia normalizado, Raimundo de Pedro de Ful retornou festa do mesmo jeito, n da cintura pra cima, com a peixeira no quarto. Aproveitando o intervalo que Vicente havia dado na sanfona, Raimundo aproximou-se do banco onde seu Pedro estava sentado na companhia de sua namorada e deu incio a uma nova discusso entre os dois. No calor da refrega, o Sr. Pedro afirmou a sua condio de homem diante de Raimundo e de todos que assistia a intriga envolvendo Pedro das Neves e Raimundo de Pedro de Ful.
Eu num banquei camaleo sonhado pa voc no, moo. Agora, eu tombm nunca afigurei uma dama, pa um cara chegar e fazer como voc fez no. Voc sabe duma coisa? Eu sou home, eu afigurando uma dama quem dana com ela sou eu. Num um cara chegar, fazer como voc fez: - Voc vai danar comigo. No, voc num tem nada aqui, voc num pagou. Voc num tem nada aqui dento desse salo, voc ta de atrevido, peitudo, valento, dizendo que quem manda aqui voc. Quem manda aqui, somos nis que paguemo e tem direito na festa. Voc num tem direito a nada, voc pode ca fora do negoo aqui, que voc hoje aqui num manda no. Quem manda aqui hoje, sabe quem ? este rapaz aqui e nis tudo que somo os cavalero e paguemo. (...). Eu num quero barbaridade, eu quero brincar a noite inteira com meus amigo, com minhas amiga, tudo legal. No querer fazer barbaridade, como voc quer, n? Aqui hoje voc num faz, quem manda aqui somos nis. E, a, nis dancemo at o sol fora, com os poder dele. E, ele, foi imbora e pronto.
Segundo o velho Pedro das Neves, quando havia festa na rua do fogo que ele estava presente, Raimundo de Pedro de Ful no se apresentava disposto a acabar com a festa. Enlevado em seu discurso pico, seu Pedro revelou que as damas sentiam-se mais protegidas com a sua presena nas festas: ah! Hoje o fi de Chico Estevo, o Pedro das Neves, t, hoje num ai zuada que Raimundo num vem acabar festa. Raimundo de Pedro de Ful num acaba festa na rua do fogo que o Pedro das Neves t, num acaba. Entretanto, ao rememorarem os sertes das festas, meus amigos de travessia o narraram sempre em tons de nostalgia e de 184 romantismo. Foi assim, envolvido neste clima de nostalgia e de romantismo, que o velho Pedro das Neves fez grande parte de sua travessia pelos sertes das festas.
Havia as festas, nis ia pas festa danar, brincar, n? Tinha o tocador, nis pagava dez tes de cota e passava a noite brincando. Mas, era bom. Sabe por que era bom? Porque as damas... Nis, cavalero, era quem sustentava as dama a noite todinha, n? Ali, tinha aquelas cumiduria, tinha uma tal de... vim, garrafa de vim pa but na roda po cavalero derrib. Terminava a parte, o dono da festa pegava aquele vim ia d aquelas dama naqueles copim. Se a dama tava com fome, pudia se queixar o cavalero; o cavalero levava ela banca, dava de cumer a ela, voltava de novo pa danar.
Embora esse sentimento de nostalgia e de romantismo tenha sido comum a uma grande parte de meus depoentes, demonstrando, assim, possurem uma memria farta a respeito dos sambas, algumas de minhas interlocutoras, no entanto, relataram que quando jovens no participavam das festas danantes em razo da no permisso dos pais. Na verdade, a presena dos comportamentos tradicionais, no se fez sentir apenas nos relatos de memria das mulheres. Nesse sentido, em seus relatos, muitos dos entrevistados deixaram entrever toda a obedincia que deviam aos pais, ao revelarem que s iam a alguma festa ou mesmo casa da namorada se o pai desse a permisso. Antes de iniciarmos a segunda parte de nossa travessia pelos sertes do Baixo-Jaguaribe, gostaria de dizer que se por um lado as lembranas individuais chegaram apenas a compor pedaos do passado em meio a tantos outros que caram nas zonas do esquecimento, por outro, faz-nos perceber que tanto os sertes do trabalho como os sertes das festas sobrevivem enquanto memria possibilitando aos velhos camponeses manterem vivo o vnculo com o passado.
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Se na primeira parte do trabalho, atravs da memria, que memria do vivido, que experincia social, atravessamos a dimenso da vida cotidiana dos camponeses, a partir do seu recorte principal que o trabalho, nesta segunda parte atravessaremos as situaes que alteram o ritmo dessa cotidianidade. Para isso, elegi, dentro do universo temtico sugerido pelas memrias, as secas, as cheias e as doenas, como situaes que, em grande medida, desarticulam o cotidiano de trabalho dos camponeses da regio do Baixo-Jaguaribe. Todavia, isso no significa dizer, como veremos mais adiante, que os camponeses no se utilizam de outras tticas 270 que os possibilitem, de uma forma ou de outra, suprir a ausncia da prtica agrcola, provendo, assim, a subsistncia da famlia. Embora os camponeses se utilizem de outras tticas de sobrevivncia atravs, principalmente, da explorao do meio natural em que vivem, no resta dvida que as condies naturais influenciam diretamente na dinmica de seu trabalho, sobretudo daqueles que praticam uma agricultura de sequeiro, como o caso dos sujeitos desta pesquisa, uma vez que esse tipo de prtica agrcola depende exclusivamente das chuvas. Portanto, quando se configura a estao seca, no caindo chuvas suficientes para molhar o terreno antes e depois de realizado o plantio, a produo agrcola fica prejudicada, no sendo possvel colher, satisfatoriamente, a safra plantada. Por outro lado, tambm quando o inverno muito rigoroso, provocando principalmente as cheias dos rios Jaguaribe, Banabui, Quixer e
270 Embora vivam numa regio marcada pelo fenmeno da seca, interessante perceber como, nestes perodos, os camponeses da regio do Baixo-J aguaribe se reapropriam do espao natural, dentro de uma mobilidade ttica que, segundo Michel de Certeau, caracteriza muitas das prticas cotidianas. Essas tticas de sobrevivncia, por sua vez, desencaminham as verdades que dotam a seca do poder de paralisar tanto o espao natural como os homens que nele habitam. Cf. Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. op. cit. p. 47. 186 Palhano, a produo agrcola fica igualmente prejudicada, sobretudo, nas reas mais ribeirinhas. No que diz respeito a incidncia de alguma epidemia, como foi o caso da epidemia de malria nos anos de 1937 e 1938, percebe-se, tambm, uma alterao no cotidiano campons uma vez que a doena provoca um completo desequilbrio nas relaes de trabalho e produo. Conquanto tenha elegido as secas, as cheias e as doenas como sendo os principais recortes temticos nesta segunda parte do trabalho, no desejo reforar, aqui, a viso cclica da histria do serto, dividida em ciclos de flagelos e calamidades naturais. Embora a memria necessite de nomes e de nmeros, a fora e a resistncia das datas vm da relao entre o acontecimento e a polifonia dos tempos social, cultural e corporal, que pulsam sob a linha de superfcie dos eventos. Nesse sentido, o passado no se reduz s pontas de icebergs, que so as datas; 271 sendo preciso, pois, investigar mais a fundo e mais pacientemente as experincias de vida dos depoentes, diferenciando-as ou aproximando-as, de modo a evitar o tratamento homogeneizador, assim como para acompanhar melhor as diversas circunstncias vivenciadas por cada um dos entrevistados ao longo de suas travessias.
271 Alfredo Bosi. O tempo e os tempos. In. NOVAIS, Adalto (org.). Tempo e histria. So Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 19. 187
Primeira Parada: o campons e as secas 272
Passei muita coisa boa; mas, tumbm passei muita coisa ruim. Mas, graas a Deus, t trevessando. Maria Jlia da Silva (Foto 23 vereda entre Lagoa Sta. Teresina e Riachinho Russas)
Embora a seca aparea nos discursos dos meus amigos de travessia como elemento que faz parte do seu espao tradicional e cuja ocorrncia obedece a um tempo cclico, ela no representa a igualdade entre serto e seca to reiterada pela produo literria. Esta suposta igualdade, veiculada pelo discurso literrio, projeta as imagens da vida
272 Nesta travessia, vinte e um foram os guias: Antnio Eugnio da Silva, Raimundo Mendes Martins, J oo Miguel de Souza, Conrado J os da Silva, Altina de Moura Lima, Euclides ngelo Cordeiro, J oo Andr Filho, Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira), Francisco Siriaco Filho (Chic), Pedro das Neves Cavalcante, Ana Francisca do Esprito Santo, Raimundo Delfino Filho, J oo Delfino Bezerra, J oo Pereira Cunha, Eduardo Soares de Lima, Francisco Vieira da Silva, Estelita Crispim Gomes, Zacarias Francisco de Almeida (Isac), Amaro Jos da Silva, Amrico Simo de Freitas e Francisca Delfina da Costa (Chiquinha). 188 no serto sem seca e sem crise apenas para a dimenso de um delicioso sonho que logo ser interrompido pela realidade que a seca, pois o que recordado no uma condio, um outro momento da vida, no memria. 273 Ao analisar o discurso produzido pela literatura regional, Ivone Cordeiro Barbosa ressalta o fato de que esta literatura em grande medida contribuiu para a cristalizao, no imaginrio brasileiro, ao longo do sculo XX, da imagem do Cear trgico e doente e da ambigidade do morrendo e resistindo. 274
A produo literria do ltimo quartel do sculo XIX ao eleger o rural como objeto de suas preocupaes fez a escolha de lanar um olhar sobre o serto como o serto da seca. Com essa abordagem da experincia sertaneja criando uma igualdade serto=seca ficou suprimida e obscurecida qualquer outra possibilidade imaginria sobre esse serto, tornando-o monotonamente homogneo no tempo e no espao. 275
Segundo Ivone Cordeiro, os discursos produzidos em torno da seca, inclusive o acadmico, tm dificuldade em reconhecer outras experincias sertanejas que no seja a seca. No que diz respeito ao discurso acadmico, a autora toma como exemplo o rigoroso trabalho de pesquisa realizado por Durval Muniz 276 que procurou historizar o imaginrio nordestino sobre a seca. Para Ivone Cordeiro, Durval Muniz ao classificar como idealizao e como mitificao da realidade as imagens de fartura e de ventura demonstra uma certa dificuldade de romper com uma matriz explicativa que absolutiza a seca como sendo a nica experincia vivida pelos camponeses. Portanto, a crtica formulada por Ivone Cordeiro est sedimentada na concluso proposta por Muniz de que o discurso popular um discurso de exaltao do
273 Ivone Cordeiro Barbosa. SERTO: UM LUGAR-INCOMUM o serto do Cear na literatura do sculo XIX. op. cit. pp. 223 e 234. 274 Idem, ibidem. pp. 14 e 15. Sem pretender fazer do seu trabalho uma crtica literria, Ivone Cordeiro procura resgatar uma histria social do serto cearense a partir dos literatos do sculo XIX. Para esta autora, a construo do imaginrio sobre o serto do Cear est em grande parte formatado na literatura, na medida em que esta enfatiza a seca como elemento catalisador da vida social do serto. Apesar da fora dos discursos que enfatiza a seca como a dimenso essencial do viver no serto, as imagens de um Cear invernoso permanecem presentes na nossa cultura. Cf. p. 21 e 26. 275 Idem, ibdem. p. 187. 276 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877-1922). op. cit. 189 serto e do sertanejo, bem como um discurso de idealizao do passado e de repdio ao presente como forma de sublimar a realidade de misria, de explorao e de submisso vivida pelos camponeses. Compartilho, aqui, a crtica que Ivone Cordeiro destinou ao trabalho de Durval Muniz, pois acredito no tratar-se de uma idealizao pura e simplesmente. E justamente neste ponto, que me distancio da reflexo proposta por Muniz; uma vez que pretendo, com este trabalho demonstrar, a partir das memrias dos camponeses entrevistados, o quanto o serto um espao vrio, mltiplo e o quanto a seca tambm um acontecimento vrio e mltiplo. O que Muniz chama de idealizao do passado, nada mais do que uma outra forma de perceber o serto e a seca que nasce da prpria vivncia camponesa num serto tambm marcado pela fartura, pelo contentamento, pela alegria, pelas festas, enfim, pela ventura. Portanto, quando Muniz associa esses momentos pura idealizao do passado e do serto, ele est reafirmando a imagem dominante do serto que a imagem da misria, da tristeza, da dor e do sofrer. No obstante, mesmo que haja no discurso do campons uma idealizao do passado e do serto, devemos considerar que a idealizao um componente do prprio real. Nesse sentido, o real , em grande medida, fruto da idealizao, pois toda e qualquer viso de realidade est impregnada de idias, de sonhos, de desejos, e, portanto, de idealizao. 277
Contudo, Ivone Cordeiro lembra que apesar da fora dos discursos enfatizarem a seca como a dimenso essencial do viver no serto do Cear, as imagens do Cear invernoso permanecem presentes na nossa cultura e, de uma certa forma, tm sido
277 Segundo Clria Botlho da Costa, (...) o real , ao mesmo tempo construo e criao. Enquanto construo, uma realizao dos fazeres do homem, sujeito social de sua histria, do seu mundo e, enquanto criao, uma expresso dos sonhos, das utopias desses sujeitos sociais. Dimenses estas separadas apenas para compreenso didtica, pois a relao homem/natureza faz-se mediatizada por sua imaginao. (...) Cf. Clria B. da Costa. Uma Histria Sonhada. In Revista Brasileira de Histria. So Paulo, ANPUH/Humanitas Publicaes, Vol. 17, n 34, 1997. p. 141. 190 preservadas na produo cancioneira e pelos poetas populares atravs, principalmente, da literatura de cordel. 278
No obstante, como observa Ivone Cordeiro, a prpria utilizao por parte dos literatos de determinados mecanismos e recursos lingsticos como forma de afirmao do serto da seca, enfatizando o carter pobre, miservel e faminto deste lugar, dialeticamente, j revela o seu contraponto que o serto dos invernos; ou seja, o serto que traz de volta os bois gordos, os cavalos rolios, a populao farta, e as rvores frondosas e centenrias. 279
Esta prpria tenso veiculada pela produo literria no que diz respeito construo das imagens do serto, revela que as experincias vividas pelos camponeses no podem ser concebidas dentro de uma linearidade temporal marcada pela presena constante da seca. Segundo Ivone Cordeiro, esta aparente linearidade temporal, que marca a produo literria sobre a seca, quebrada quando revela a tenso entre a realidade seca e o desejo de um serto farto e venturoso vivenciado pelos personagens desses romances, ou seja, enquanto vivenciam uma situao de seca, o serto verde e farto emerge como uma lembrana configuradora da memria de um outro tempo, de um outro modo e de outras condies de vida. (...). 280
Assim, procurando no fetichizar a imagem do serto seco, Ivone Cordeiro procura, na chamada literatura da seca, indcios que venham compor outras experincias.
O que tambm tentei demonstrar que a experincia dolorosa e a imagem drstica da seca, subsumiu as imagens dos tempos normais do serto - do tempo do cultivo, da colheita, das festas e ritualizaes sociais -, empobrecendo a experincia social sertaneja no Cear, esvaziando-a da sua historicidade. Para as estruturas de sentimentos sertanejas a esperana e vivncia no inverno, pelas conseqncias que traz - permitindo a sobrevivncia no serto -, pode ser to importante quanto s conseqncias decorrentes da seca com o corolrio de misrias que acarreta. O que pretendi foi resgatar e valorizar, tambm,
278 Ivone Cordeiro Barbosa. SERTO: UM LUGAR-INCOMUM o serto do Cear na literatura do sculo XIX. op. cit. p. 21. 279 Ivone Cordeiro Barbosa. SERTO: UM LUGAR-INCOMUM o serto do Cear na literatura do sculo XIX. op. cit. p. 192. 280 Idem, ibidem. pp. 192 e 193. 191 esses aspectos da vida cotidiana, como centrais para a construo das estruturas de sentimentos e das sensibilidades referidas vida sertaneja. 281
Para isso, procurou localizar e identificar a produo literria relativa as percepes, os raciocnios e sentimentos da sociedade brasileira sobre o serto do Cear, com o propsito de discutir a construo da memria do serto, procurando entender, em primeiro lugar, os processos de produo da memria da seca, como memria construda sobre o serto. 282
Conquanto este trabalho esteja prximo ao de Ivone Cordeiro, no sentido de que tambm est imbudo do propsito de juntar os indcios necessrios composio de outras experincias camponesas que no seja apenas a da seca, o que diferencia, ambos os trabalhos, justamente o caminho percorrido na procura desses indcios. Assim, ao questionar por que a imagem da abundncia, da fertilidade, da fecundidade do serto do Cear causa tanto estranhamento e dada como falseamento da realidade ou idealizao, Ivone Cordeiro perseguiu a maneira pela qual as elites e, basicamente os literatos, construram uma determinada imagem do serto cearense que o iguala seca; ao mesmo tempo que procurou, na prpria literatura, mostrar como dialeticamente emerge, das imagens deste serto seco, o seu contraponto que o serto dos invernos. Assim como Ivone Cordeiro, que demonstrou atravs da literatura o quanto o serto um lugar- incomum, pretendo, atravs dos discursos camponeses, descrev-lo em sua pluralidade; ou seja, descrever as vrias faces que tem o serto. Para isto, preciso estar atento para interpretar o lugar da fala e do olhar de cada campons. Portanto, embora este trabalho esteja muito prximo aos de Durval Muniz e de Ivone Cordeiro, os quais me servem de apoio, ele se diferencia de ambos quando elege o discurso campons como um contraponto aos discursos das elites analisados tanto por
281 Idem, ibidem. pp. 204 e 205. 282 Ivone Cordeiro Barbosa. SERTO: UM LUGAR-INCOMUM o serto do Cear na literatura do sculo XIX. op. cit. pp. 22 e 23. 192 Muniz como por Cordeiro. Desta forma, este trabalho objetiva expressar a existncia de duas estratgias distintas na construo da memria da seca e do serto: se por um lado a memria das elites cristalizou um conjunto de imagens em torno do serto a ponto de igual-lo seca, tornando-o, por assim dizer, um espao aridamente homogneo; por outro, as memrias dos camponeses construram imagens da seca e do serto que so absolutamente plurais. Portanto, muito mais do que compreender a seca como um fato histrico e social cujas imagens e significaes variam no tempo e conforme o contexto social, como prope Durval Muniz, e, muito mais do que fazer emergir as ambiguidades do espao campons, como o fez Ivone Cordeiro, este trabalho pretende descrever a pluralidade que se experencia neste espao/serto, bem como os vrios sentidos que os entrevistados atriburam s secas, os quais a associaram, por exemplo, a um tempo de trabalho, de brincadeiras e de festas. Na verdade, tanto a festa como o trabalho fazem parte da vida dos mais velhos do serto. Desta forma, em muitas narrativas foi possvel perceber a coexistncia, na vida cotidiana dos camponeses, da festa e do trabalho. Nesse sentido, o relato de vida do Sr. Antnio Eugnio da Silva apresenta-se como emblemtico no s acerca do intercmbio das lembranas da festa e do trabalho, mas das lembranas da festa, do trabalho e da seca. Segundo o velho Antnio Eugnio, o ano de 1941 foi de muito trabalho para ele, em virtude deste ano no ter apresentado uma boa estao chuvosa. Na companhia do amigo Euclides Bernal, o Sr. Antnio Eugnio tirava todo dia seis carrada de macambira prum gado que tinha l na Barra. No final da tarde, depois de cortar e espalhar toda a macambira, ia tumar banho e, muitas vez, saa de casa e num jantava; tirava l pos Cadiais, dava assim uma lgua mais ou meno, onde passava a noite danando ao som do realejo e do reque-reque de Chico Cabral.
Agora, a festa o que era? Um realejo, um nego tocando realejo chamado Chico Cabral. Mas ali era um nego que tocava um realejo, um realejo grande. Aqui, era um reque-reque enganchado, aqui; e, o realejo, aqui 193 na mo e ele tocando reque-reque, tocando... passava a noite danando. A, tinha noite que eu saa de l de madrugada. A, quando eu chegava im casa, o minino tava butando a cangia no jumento pa ir po mato. Chegava, num cumia nem nada, s era saltar im riba do jumento, tirar macambira. Todo dia eu ia. Na noite que eu num aguentava mais, era s acabar de cortar a macambira, ia durmir. Mas teve muitos dias que tava cortando a macambira, soltava o faco, caa pa trs e pegava no sono (risos), tanto sono eu tinha. (...). A, na derradeira, no ms de janeiro de quarenta e dois (...), eu cheguei de madrugadinha, quando eu cheguei o minino tava butando a cangia no jumento pa ir po mato. Nesse tempo, tinha um balde de bombom deste tamanho de tampa, a gente trazia gua dento, dento do balde. No jumento que eu vinha, butaro o balde dento do cau. A, eu vinha na entrada do mato, pa entrar no mato, me deu um cuchilo, eu escapuli de riba do jumento, bati no cho, bateu no cho [o balde com a gua] caio na carreira, distampou, derramou a gua todinha. 283
Essa pluralidade de sentidos, atribuda ao cotidiano campons, faz-me utilizar, algumas vezes, ao longo deste trabalho, a palavra seca no plural no apenas porque elas so muitas ao longo do tempo, mas porque elas so muitas enquanto vivncias, enquanto experincias. Apoiado nessa compreeno, e tendo como referncia as histrias de vida de velhas e velhos camponeses, ficou evidente que as primeiras secas, aquelas que foram vividas ainda na infncia, so possuidoras de muitos significados, ao mesmo tempo em que se constituem em importantes marcadores temporais na vida dos camponeses. Desta forma, temos que considerar que essa marcao apresenta-se, muitas vezes, de forma distinta dada a multiplicidade de significados que podem ser atribudos a uma mesma seca. Para o Sr. Raimundo Mendes, por exemplo, s ocorreram duas secas medonha, a de 1915 e a de 1919, justamente as primeiras que ele experienciou.
J peguei duas seca medonha, quinze e dezenove. (...). Desde que eu me entendo no mundo, s vi duas seca. Num houve mais seca no, houve tempo escasso. Mas seca no. 284
283 Antnio Eugnio da Silva, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 284 Raimundo Mendes Martins, 92 anos. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000.
194 No entanto, a seca de 1932, para o mesmo Raimundo Mendes, significou apenas um tempo escasso, enquanto, para outros, que a tiveram como primeira experincia, foi uma seca medonha, trinta e dois. No obstante, para os que tiveram como primeira experincia a seca de 1932, o tempo escasso foi representado pela seca de 1958; que, no dizer de muitos dos entrevistados, foi uma seca favorvel. Na cultura camponesa, tempo escasso e seca favorvel significam, ao mesmo tempo, a ocorrncia de um tempo que, embora no tenha apresentado uma boa estao chuvosa, foi vivido sem muito aperreio, sem muita agonia, sem muito sacrifcio. Assim, dos relatos de memria que foram colhidos durante a realizao do trabalho de campo, foi possvel perceber que as imagens do serto dos invernos emergem de forma mais voluntria do que as imagens do serto das secas. Mais do que isso, meus amigos de travessia revelaram, atravs das suas histrias de vida, que o serto enquanto espao social absolutamente plural, embora tanto a seca como o inverno faam parte de suas vidas a ponto de constituir-se em importantes marcadores temporais. Entretanto, percorrer os caminhos da histria de homens e mulheres do serto, com o objetivo de recuperar as imagens e os significados que os camponeses tm construdo sobre suas experincias de vida, pareceu-me uma via significativamente frtil para se discutir os sentidos que foram historicamente construdos com vistas a produzir outras memrias que paream inslitas ou no, ao processo de homogeneizao da memria histrica 285 em torno da questo da seca.
285 Ao falar em memria histrica, no estou me referindo histria propriamente. Segundo Durval Muniz, a memria histrica composta de fatos convencionados como histricos que tm repercusses nas memrias pessoais e de grupos porque tm significado para eles, so aqueles fragmentos de Histria que so incorporados s memrias coletivas e individuais, servindo como marcos temporais. (...). Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. Violar Memrias e Gestar a Histria: Abordagem a uma problemtica fecunda que torna a tarefa do historiador um parto difcil. op. cit. p. 47. 195 Percebendo a grande lacuna terica existente na vasta bibliografia sobre a seca, 286 Durval Muniz empreende uma meticulosa pesquisa histrica e elabora um nvel de compreenso sobre a seca, no qual ela no representada apenas como fenmeno natural, mas, sobretudo, como um fato histrico e social cujas imagens e significaes variam ao longo do tempo e conforme o contexto social.
O que se percebe, portanto, que essa literatura, mesmo quando trata a seca como fenmeno com repercusses sociais e histricas, a toma apenas como um fenmeno natural, no abordando como um produto histrico de prticas e discursos, como inveno histrica e social, o que implicaria, ao se falar de seca do Norte, ou seca do Nordeste, no se est falando de qualquer estiagem, mas de um objeto imagtico- discursivo, cujas imagens e significados variam ao longo do tempo e conforme o embate de foras que a toma como objeto do saber. 287
Compreendendo que os marcos histricos so criaes/ invenes que visam esconder os conflitos sociais e que em cada momento histrico existem vrias propostas de futuro, Durval Muniz insiste na afirmao de que o ano de 1877 representa o momento em que a seca se torna um problema nacional e, nesse sentido, elabora a hiptese de que o marco 1877 foi construdo historicamente. Procurando entender o porqu da problematizao em torno deste problema, Muniz busca nos acontecimentos do perodo as pistas para compreend-lo. Para isso, o autor analisou os principais discursos em torno da seca, objetivando perceber o momento de inflexo para um novo discurso que a transformou em problema regional e nacional. Ao
286 Segundo Durval Muniz, esta vasta literatura pode ser dividida em trs momentos distintos: Um primeiro onde predominam as obras de autoria de intelectuais ligados s oligarquias nordestinas, quase sempre memrias, em que se procura dentro de uma viso positivista, factualista e cronolgica, arrolar todas as secas passadas, discutir suas causas e solues. Num segundo momento predominam obras de matriz tecnicista, cujos autores so quase sempre tcnicos ligados ou no s oligarquias da regio e que abordam o problema do ponto de vista estritamente tcnico, limitando-se discusso das causas do fenmeno e proposta de solues. Num terceiro momento surge um grupo de autores que possuem uma viso mais globalizante ou crtica acerca do problema, percebendo-o no apenas como simples fenmeno natural, mas pensando-o como um fenmeno com implicaes scio-econmicas e que apenas agrava distores presentes nesta estrutura social. Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877-1922). op. cit. p. 01. 287 Durval Muniz de Albuquerque Jr. Palavras que calcinam, palavras que dominam: a inveno da seca do Nordeste. In. Revista Brasileira de Histria. So Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 14, n 28, 1994. p. 111. 196 analisar os vrios discursos sobre a seca, Durval Muniz procura no localizar esses discursos dentro de uma hierarquia, pois compreende que essa hierarquia acabaria expressando uma falsa concepo de que um ou outro discurso conteria mais verdade ou menos verdade do que outros. Segundo Muniz, cada discurso visa produzir uma verdade, embora a potncia de verdade veiculada por cada discurso dependa muito das condies histricas que o cercam. Dessa maneira, nosso autor considera lcito o uso do discurso literrio tanto quanto o de qualquer outro discurso, pois todos estes participaram da construo da verdade sobre a seca, enquanto problema do Norte. 288
Durval Muniz chama-nos ateno para o fato de que as idias no so meros reflexos das estruturas econmicas e sociais, mas produes histricas que esto ligadas realidade social. Desta forma, a transformao da seca em problema acontece dentro de um processo conflituoso, onde diversos imaginrios se defrontam surgindo da uma sntese dominante.
No entanto, no ficamos a; foi necessrio que fizssemos uma anlise interna dos prprios discursos particulares, que percebssemos as alteraes que se davam ao nvel dos enunciados e dos conceitos, e como estes discursos embora ligados a uma estrutura social, possuem uma lgica interna, constituem um mundo discursivo, onde as lutas, as trocas e os conflitos tambm esto presentes. O mundo dos discursos se compe de uma multiplicidade de elementos discursivos, que so utilizados por diferentes agentes sociais, que com eles elaboram seus discursos tendo sempre em mente alcanar um objetivo, que poltico, que depende de luta. Por isso, consideramos toda formao discursiva como uma formao ttica, como fazendo parte de uma estratgia que permite um dado agente social alcanar um objetivo. 289
Partindo dessa compreenso, Durval Muniz procurou perceber como se originou um novo discurso em torno da seca e como este discurso foi transformado numa arma estratgica utilizada como
288 Durval Muniz de Albuquerque Jr. Palavras que calcinam, palavras que dominam: a inveno da seca do Nordeste. op. cit. p. 219. 289 Idem. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema soluo (1877- 1922). op. cit. p. 5. 197 argumento para a defesa dos interesses dos diferentes agentes sociais da regio nos entrechoques das lutas e conflitos sociais. 290
Depois de inferir a maneira pela qual surgiu este novo discurso sobre a seca, Durval Muniz conclui que ele foi elaborado a partir de enunciados e elementos discursivos presentes nos mais variados discursos, com um objetivo estratgico de tornar o fenmeno um problema nacional. Desta forma, os discursos passaram a ligar a seca a uma srie de outras questes de natureza econmica, sociais e polticas (trabalho, modernizao, controle social, etc...) deixando transparecer a preocupao que o momento histrico colocava para o cotidiano de toda a sociedade. Dentre os vrios discursos analisados por Durval Muniz, o discurso tradicional ou popular abordado como aquele que pr-existia ao momento em que a seca se tornou problema, embora viesse a sofrer modificaes a partir deste fato. De qualquer modo, esse discurso tradicional ou popular servir de matriz para a elaborao de outros discursos, no perdendo, com isto, a sua particularidade na medida em que representa uma viso alternativa dentro do conjunto desses discursos. O contedo do discurso tradicional ou popular sobre a seca foi gestado na vivncia do homem pobre do campo com este fenmeno, cuja experincia de vida foi sendo transmitida atravs da oralidade, foi sendo manifestada em atitudes e comportamentos, ou, como observa Muniz, atravs da literatura de cordel como uma manifestao da produo cultural popular. Portanto, por ser tambm um componente caracterstico do espao geogrfico em que vive o campons, a seca vai ser o ponto de partida para toda uma produo cultural e imaginria, que fundamentar toda a produo discursiva, principalmente as elaboradas
290 Segundo Durval Muniz, a formao do discurso da seca, que teve origem no ano de 1877 e as repercusses prticas que dele advieram, teve no governo de Epitcio Pessoa (1919 1922) o seu momento de glria pelas vitrias no plano nacional as quais podem ser traduzidas na repercusso que a seca teve em 198 pelas oligarquias, quando estas sentem a necessidade de politizar o fenmeno, transformando a seca no problema do Norte.
O discurso articulado em torno da seca pela classe dominante nortista, a partir de 1877, baseou-se numa viso tradicional de fenmeno, presente no discurso do homem pobre do campo, que convivia secularmente com o problema. Esta viso, no entanto, era compartilhada por todos os grupos sociais da regio, at que a conjuntura de crise vivida pelas classes dominantes colocasse para ela a necessidade de elaborao de um novo discurso que incorporasse os novos problemas enfrentados pela regio e que servisse de arma na luta poltica em termos nacionais. 291
Segundo Muniz, o fato do discurso tradicional projetar a imagem de um serto paraso e frtil antes da seca e considerar esta como a causadora de todos os males sofridos pelos camponeses, contribuir, em muito, para a elaborao de um novo discurso em torno do problema. Segundo Michel Foucault, no podemos imaginar que o mundo nos apresenta uma face legvel que teramos de decifrar apenas; ele no cmplice de nosso conhecimento; no h providncia pr-discursiva que o disponha a nosso favor. Nesse sentido, devemos conceber o discurso como uma violncia que fazemos s coisas, como uma prtica que lhes impomos em todo o caso; e nesta prtica que os acontecimentos do discurso encontram o princpio de sua regularidade. No obstante, esclarece Foucault, os discursos devem ser tratados como prticas descontnuas, que se cruzam por vezes, mas tambm se ignoram ou se excluem. 292 Atento as observaes de Foucault, busquei subtrair das memrias dos meus depoentes as regularidades e as singularidades discursivas sobre as secas. Entre as regularidades que foram observadas nos discursos produzidos por meus depoentes, destacam-se alguns aspectos relativos viso tradicional do fenmeno, a qual sugere que a seca, por ser um
nvel nacional e pelo volumoso carreamento de recursos e benefcios adquiridos para a regio e suas elites. Idem, ibidem. p. 10. 291 Durval Muniz de Albuquerque Jr. Palavras que calcinam, palavras que dominam: a inveno da seca do Nordeste. op. cit. p. 92. Ao analisar o discurso oligrquico, Durval Muniz deixa claro que este no seria simplesmente uma sntese dos demais discursos sobre a seca. O que ocorre, no entanto, que o discurso oligrquico se apropriou, quando necessrio, de elementos discursivos pertencentes aos outros discursos que servem de respostas para questes que so levantadas na batalha poltica que esta classe travava em nvel nacional e local. 292 Cf. Michel Foucault. A Ordem do Discurso. EDIES LOYOLA, So Paulo: 1996. pp. 52 e 53. 199 elemento constitutivo do espao em que vive o campons, seja considerada como um elemento natural que foi deixado por Deus e que, por isso mesmo, faz parte da prpria rotina do mundo em que vivem. Nesse sentido, o Sr. Joo Miguel de Souza, ao ser indagado a respeito do significado da seca, atribui a ela uma dimenso que absolutamente fatalista.
A seca? Rapaz, eu num sei no, rapaz. Eu tenho assim um pensamento que quando Deus formou o mundo ele deixou essas coisa tudo resolvido, sabe? tempo de inverno, tempo de seca, eu acho que ele j deixou tudo feito, j. ! Na minha mente , viu. Eu num tem estudo, num tem nada, mais no meu pensamento foi assim, n? 293
Desta forma, a naturalizao da seca, enquanto uma fatalidade, leva, por extenso, naturalizao da pobreza e da explorao, escapando, por assim dizer, compreenso e ao controle prprio do homem. Diante da sua prpria impotncia, o que lhe resta fazer sofrer com resignao e viver, com pacincia, as situaes limites pelas quais o ser humano infortunadamente venha experienciar em momentos de seca, j que esta uma lei da natureza que editada por Deus. Por outro lado, o depoimento do Sr. Joo Miguel revela uma alternncia entre as paisagens de inverno e de seca. Segundo Alfredo Gomes, h uma natureza religiosa na forma pela qual os camponeses classificam o tempo. Assim, o inverno, caracterizado pelo tempo bom, antecede ao tempo ruim, caracterizado pela seca; da mesma forma que a bondade antecede maldade e a inocncia ao pecado. 294
Um outro elemento, que central na imagem tradicional da seca, apresenta esta como sendo um castigo profetizado por Deus em virtude dos pecados humanos. Segundo Durval Muniz, diante dessa situao, o padre assumia o papel de intermediar a relao entre Deus
293 J oo Miguel de Souza, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Divertido, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 294 Alfredo Macedo Gomes. O Imaginrio Social da Seca e suas Implicaes para a Mudana Social. op. cit. pp. 141 e 142. 200 e o pecador. Assim, procurava orientar determinadas prticas como as preces coletivas, as procisses e as penitncias, as quais tinham por objetivo conquistar a misericrdia divina para os pecadores. A seca seria, portanto, o tempo propcio para a expiao dos pecados, uma vez que ela traz os sofrimentos necessrios carne humana, para a purificao das almas. 295
Conquanto a seca no aparea diretamente associada idia de castigo divino, parece-me ser emblemtico o depoimento que o Sr. Conrado Jos da Silva d a respeito das procisses que o Monsenhor Oliveira realizava entre Flores, no municpio de Russas, e Quixer no perodo de ocorrncia de seca.
No tempo de seca, como eu ia dizendo, no tempo de seca ele fazia promessa. Quer dizer, que fazia promessa pra com N. Sra. do Perptuo Socorro e o Corao de Jesus, So Jos, de l das Flores. N. Sra. do Perptuo Socorro e o Corao de Jesus vim de l das Flores im andor pro Quixer. Quando chegava no Quixer, pegava N. Sra., fazia o andor de novo de N. Sra. da Conceio e vinha aqui pra Ftima. A, tinha as cruz, de l do Quixer at chegar aqui. E, tinha as cruz arrudiando a igreja daqui. Era, era em cada cruz daquela um tero. E, era todo mundo de juei. Quando chegava numa cruz, se ajueiava todo mundo. Queimemo o juei! (...). queimou que parecia que tinha pegado, assim, um leo queimado, tinha passado (risos). 296
As procisses, na verdade, tinham por objetivo reconduzir os camponeses a Deus atravs da penitncia. Assim sendo, os caminhos da penitncia seriam os caminhos pelos quais os camponeses poderiam refazer o pacto quebrado com Deus, em virtude dos pecados cometidos ao infrigirem valores morais tradicionais. Era preciso, pois, agradar a Deus e, para isto, dever-se-ia corrigir as condutas e rezar para se acalmar a ira divina. Desta forma, segundo Durval Muniz, a Igreja procurava canalizar todo o potencial de revolta para prticas
295 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. pp. 94 e 162. 296 Conrado Jos da Silva, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade Tom, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000. Proprietrio de dois hectrios de terra, o Sr. Conrrado vive na companhia da esposa e de um filho numa pequena casa de taipa. Aps a trombose sofrida por sua esposa, seu Conrado cuida no apenas das funes domsticas da casa, como da esposa que no fala e no anda. Embora continue realizando os trabalhos agrcolas, o velho Conrado tem na aposentadoria, que ele e a esposa recebem, o meio de sobrevivncia. 201 msticas como as penitncias, os sacrifcios, as procisses, as confisses rogando a Deus a volta das chuvas. 297
A Igreja acreditava que em momentos de seca sua atuao deveria ir alm da ajuda material. Decerto, este tipo de socorro era necessrio sobretudo para aqueles que mais sofriam com os efeitos da estiagem. Todavia era preciso, acima de tudo, oferecer-lhes uma assistncia espiritual capaz de renovar a confiana em Deus, evitando, com isto, que o desespero tomasse conta de toda a populao. As prticas e o discurso da Igreja objetivavam, pois, justificar o porqu de tanto sofrimento, almejando que as pessoas se resignassem. 298
Para uma melhor compreenso das prticas e do discurso da Igreja, foi de grande utilidade a pesquisa realizada nos Livros de Tombo da Parquia da cidade de Russas. No obstante, a leitura das crnicas contidas nesses Livros, possibilitou-me conhecer, para alm dos exerccios litrgicos da Igreja, um pouco mais do cotidiano da populao deste municpio durante a seca de 1958 por exemplo.
Ano de N. Sr. Jesus Cristo de mil novecentos e cincoenta e oito. (...) Apesar de muitas preces do povo, o inverno ainda se fazia esperar. Muita tristeza e preocupao podia se perceber em todos os semblantes. Entra o ms de abril, muito seco e desanimador. O calor ansigia, digo, atingia ao clmax. Nada de chuva! Os exerccios da Semana Santa foram celebrados com muita tristeza e pouca esperana de chuvas. (...). Nas pregaes e exortaes insistiu-se muito na confiana em Deus diante da calamidade que comeava a trepidar os coraes. O ms de maro havia decorrido tristemente, de sorte que nada deixou, que merecesse relato nesta crnica. Fizemos insistncia pela frequencia assidua a santa comunho para alivio das amarguras da vida e o povo correspondem bem e, assim podemos anotar o movimento da parquia. No ms de janeiro, quatro mil e seiscentos comunho 4.6000 fevereiro, sete mil quatrocentos e cicoenta e oito 7.458 maro, quinze mil e trezentos comunho 15.300 abril, quinze mil e duzentos e seis comunhes 15.206. O ms de N. Senhora desponta tristonha para o mundo da natureza que nos cerca, todavia, o povo acorre a Igreja cheio de f na bondade da me do cu. Algumas chuvinhas metigam um pouco a situo. O Revmo. Pe. Abdon Valrio S.J. pregou durante todo o ms de maio. (...)
297 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. p. 95. 298 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. p. 161. 202 Em setembro tudo corria do mesmo modo. A parquia no pode sair do seu ritmo comum de assistncia espiritual. Tudo tem sido feito para satisfazer as necessidades espirituais do povo, no que no se poupa sacrifcios. (...). 299
Contudo, a Igreja no fazia do seu discurso apenas um canal de assistncia espiritual; mas utilizava-o para condenar tanto a imoralidade dos pobres que em virtude da seca haviam se tornado mendigos pena que muita gente (...), ficou acostumada a procurar o auxlio das famlias que deram exemplar assistncia aos pobres -, como tambm os ricos em razo da prtica de especulao tornada comum em perodos crticos de estiagem.
No ms de julho nada houve na parquia de excepcional. A seca acentua-se cada vez mais calamitosa. Muita desiluso diante da carestia da vida e desorganizao dos servios pblicos de emergncia. Enquanto isso os aproveitadores e atravessadores comeam a exercitar a atividade costumeira de explorar a misria do povo e assim comeam a indstria da seca. 300
Alm das crnicas paroquiais, encontramos na Literatura de Cordel registros do discurso tradicional sobre a seca, especialmente do discurso produzido pela Igreja Catlica. Como ressaltou D. Altina de Moura Lima, no passado era muito comum as pessoas da regio do Baixo-Jaguaribe noticiarem no apenas os acontecimentos mais importantes, mas muitas vezes, qualquer uma besteira utilizando-se do cordel como veculo de transmisso. 301 Embevecido, pois, por essa dupla
299 Parquia de Russas Livro de Tombo n VII. p. 55 e 61. Neste livro, se acham anotados os acontecimentos e documentos da crnica paroquial de Russas dos anos de 1955 a 1961. 300 Parquia de Russas Livro de Tombo n VII. p. 61. Referindo-se seca de 1942, Frederico de Castro Neves comenta que logo no incio do ano verificava-se uma certa inquietao por parte da populao rural, em virtude da carestia exorbitante j instalada desde os primeiros meses do ano. Segundo Neves, o adjetivo exorbitante utilizado pelos tcnicos do governo, pode significar uma impacincia com relao s foras do mercado de alimentos que, concomitante ao primeiro sinal de seca, permitia um aumento desenfreado de preos. Todo este clima, no entanto, demonstrava a necessidade de uma rpida e eficiente interveno governamental no mercado de alimentos e trabalho. Cf. Frederico de Castro Neves. A Multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 141. 301 Tinha muita gente, de qualquer uma besteira, meu nego, tirava uma grosa. Qualquer uma coisinha que havia, a, saia uma grosa. Disse que ali pelo Arraial (comunidade rural prxima cidade de Limoeiro do Norte), tinha um povo muito, assim, muito poeta, muito fcil de saber das coisa, tirar grosa. Depoimento de D. Altina de Moura Lima, 96 anos. Entrevista gravada no Stio Lima, no municpio de So J oo do J aguaribe, no dia 11/04/2000.
203 memria a memria do cordel e a memria de D. Altina -, ressalto a singularidade do seu depoimento no qual memria e fico aparecem colocados num mesmo plano, uma vez que uma possibilita a outra, ou seja, a memria alimenta o cordel ao mesmo tempo que o cordel trabalha a memria. Demonstrando ter uma memria privilegiada e ser uma narradora por excelncia, D. Altina, com uma habilidade impressionante, narrou a memria que guarda da seca de 1915 tomando como referncia a Literatura de Cordel. Segundo D. Altina, quando passou-se a seca, adeps, criaram uns verso intitulados de O ABC do Quinze, os quais, em um instante, a depoente passou a recordar e a cantar uns dois p para que eu pudesse ouvir e gravar. No seu dizer, era uma besteira que ela aprendera ainda quando criana. 302
- Agora chegado o tempo / de ns ir todo sofrer / a pobresa num tem mais / a onde se socorrer / Pede a Deus oniputente / por vida dos inocente / nos der fora pra romper. - Bom dia nos disse o quinze / com a cara esfarruscada / eu venho ensinar a todos / uma doutrina pesada / Pois quem Deus num conhecer / a virtude que quem perder / que a riqueza num nada. - Conhea que eu estou dando / um conselho bem moderno / para irem conhecendo / que existe um Deus eterno / Esses homens potentado / como tm dinheiro e gado / compre chuva e d inverno. Agora ... A, B, C... D, n? - Devemos pidir a Deus / que nos d grande lembrana / de amar e servir a ele / com boa perseverana / Pidimos de quando em vez / que venha um dezesseis / trazer alguma abundncia. , n? - Eu temo morrer de fome / porque uma morte feia / em falar no nome dela / foge os sangue nas veias / Aquela triste figura / vem mais bernal de cintura / mandando as vontade alheia. ... F.
302 D. Altina, lembra, que aprendeu a cantar O ABC do Quinze com um criatura que viajava em um carro de boi do vi Luiz de Z Medeiro. Ao demorar-se na Passagem de Russas, 302 este criatura viu um Padre cantando O ABC do Quinze. Curioso em aprender, ele pidiu um papel; quando voltou, deram o papel, ele trouxe, a ns aprendemo. Segundo D. Altina, em sua casa todos aprenderam a cantar O ABC do Quinze; mas, as outa, tudo j morrero. Tambm, num sei se fosse viva, sabia no. Em seu depoimento, D. Altina revelou que ainda chegou a estudar na Tapera com um tal de Joaquim Soares. Mas, que foi em casa mesmo que aprendeu a carta do ABC: Eu tinha muita memria, era uma coisa demais (risos), pra aprender as coisa. Ainda a propsito de O ABC do Quinze, uma outra depoente, D. Francisca Delfina da Costa, 87 anos, recordou, com muita dificuldade, alguns de seus versos. D. Chiquinha, como mais conhecida, disse que aprendera a cantar com sua me que sabia, na ponta da lingua, todo O ABC do Quinze. 204 - Fortuna tem quem contar / que o quinze se passou / quem romper esta travessia... Como ? Agora eu me esqueci do F. - Fortuna tem quem contar / que o quinze se passou / quem romper esta travessia... [Ah! Eu me esqueci desse pedao, uma coisa que eu sabia tanto. Ah!] ... quem romper essa travessia / num sabe como escapou / No temos que imaginar / que quem tiver de escapar / Deus do cu consignou. F e G. - Grande ribulio h / num povo sem procisso / uns pra escapar o gado / e outos pra escapar o po / Quinze veio de surpresa / d balao na riqueza / em homens de posio. G e H. - Honremos a seca de quinze / aps essa foi pesada / tememos o dezesseis / com sua nova chegada / Quinze veio carrancudo / chegou calado e sisudo / sem d promessa de nada. G... H... I. - Irmanado num povo / veio haver como sem falta / porque quinze quando veio / vinha arrancando os gravato / Aqui ningum se ilumina / tire os seus ps da botina / e cale minha alpergata. - J ns temos visto isto / no nosso quinze passado / homem de moeda grossa / que vivia do Estado / Deixai em casa os anis / calai alpergata os ps / e correi no coice do gado. - Kada esbafarida / muito mole e sem destreza / se eu num achar uma sombra / sei que morro com certeza / Fazendo muito mungango / sofra no pescoo a canga / em procisso com a pobreza. K e L. - Lamenta hoje o rico / ver o que tem se acabar / Os pobres tambm lamenta / sem terem com que passar / Mas eu sofro satisfeito / Deus me mostrar o jeito / at os meus dias chegar. L e M. - Muitos ricos de mal gnio / juntos com pobre malvado / quiria trazer o mundo / por si sozinho gonvernar / Quinze disse: e eu contesto / engano e manifesto / seja por mim iluminado. L e M. - No tem no mundo quem tenha / agora o prol no certado / tudo que faz perdido / tudo que pensa errado / Quem romper esta travessia / que gozar mais algum dia / ficar bem alembrado. [E eu rompi a travessia, n? (risos) Tar bem alembrada?] L, M e O - Orgulho andava no mundo / por toda parte espalhado / junto com ele espalhou-se / o mal da broca no gado / Pelo serto e pela serra / num mal comendo terra / morrendo seca no lado. O, P. - Parece que a seca trouxe / uma orde em avolante / de aoitar os fazendeiro / e quebrar os niguciante / No respeitar a patente / e a pele de major, tenente / tudo h de sofrer bastante. 205 A foi o P? P,Q. - Quinze veio deixar no povo / uma lembrana... / eu pedindo desculpa / da minha ignorncia / Que a presena me consume / que um corpo passando fome / me causa todas as lembranas. Q, R. - Rogante falava o povo / muito cheio de razo / s se falava em jogo / e em sucia vadiao / Quinze chegou em janeiro / como um forte dizimeiro / na fazenda do serto. R e S. - Senhores peo desculpa / se alguns tiver agravado / por minha ignorncia / deu num ser civilizado / Mas o homem que conhece / d o ser quem merece / desculpe se est errado. R, S e T. - Tantos que j tinham dito / vou vender minha boiada / vendo muito bem meus queijos / e apuro minhas qualhada / S se olhava o presente / no futuro outo momento / no se imaginava em nada. T, U. - Uma idia num havia / de um castigo aparecer / s se pensava em riqueza / em sua fazenda crescer / No havia imaginao / que era sujeito o serto / uma seca aparecer. U, V? ! - Veio gente do Iguatu / Crato, Cariri e Ic / Souza, Pombal e Catol / Pat, Mastir e Jiric / Este pobre do serto / tomai por estao / foram para Mossor. V, X. - Xora rico e xora pobre / afinal tudo xorou / porque quinze quando veio / muitos brabo ele amansou / Agora me digo eu / que dos castigo de Deus / nunca ningum se livrou. - Zombando vivia o povo / do Padre do Juazeiro / chamando ele afantico / criminoso e ventureiro / Ele nos dando o exemplo / que havia dez mandamento / e um s Deus verdadeiro . (...) e todos ns com certeza / No fim do mundo h de vim / o autor da natureza / julgar os vivos e os mortos / tomar as almas dos corpos e gozar de outra grandeza.
206 (Foto 24 D. Altina no momento da entrevista Stio Lima So Joo do Jaguaribe) Muito mais do que preservar esta fantstica memria e a historicidade destes versos, torna-se imperioso destacar o quanto a Literatura de Cordel serve de instrumento para a veiculao de um discurso tradicional sobre a seca; embora, em outros momentos, sirva para mostrar que o serto tambm o lugar da fartura e da ventura. Desta forma, os versos que compem O ABC do Quinze, acima transcritos, muito revelam do discurso produzido pela Igreja Catlica em torno da seca. Nesse sentido, apresentam a seca como o momento onde todos, indistintamente, sofrem: xora rico e xora pobre, afinal tudo xorou; como ensinamento de uma doutrina pesada para aqueles que insistem em no reconhecer a autoridade de Deus e no praticam as virtudes ensinadas pelo Cristo; como sendo um momento para todos lembrarem que Deus eterno e que a riqueza num nada, pois ela no compra a chuva nem mesmo produz o inverno. Em seu ABC, a seca de 1915 apresentada, pois, como um castigo de Deus pela super valorizao do poder temporal em detrimento do eterno poder de Deus; pelos homens estarem constantemente infringindo os valores morais mais tradicionais; bem 207 como pelo pecado da avareza pois uma idia num havia, de um castigo aparecer, s se pensava em riqueza, em sua fazenda crescer. No havia imaginao, que era sujeito o serto, uma seca aparecer. A seca seria, portanto, o tempo propcio para a expiao dos pecados e para o exerccio da resignao, pois quem sofre satisfeito, Deus lhe mostrar o jeito. O discurso da Igreja procurava, pois, ordenar a sociedade atravs de preceitos morais, objetivando torn-la um todo harmnico. Com isto, no se preocupava em questionar a diviso social, uma vez que a considerava um desgnio divino. 303 Ao analisar o discurso da Igreja sobre a seca, Durval Muniz parte da compreenso de que esta instituio social detm uma grande importncia, destacando-se, exatamente, por realizar um trabalho ideolgico que auxiliava a manuteno da hegemonia social por parte de uma certa parcela da classe dominante. Embora o discurso da Igreja fosse de matriz tradicional e j existisse antes da problematizao da seca, a partir de 1877 ano que marca o incio desta problematizao - sofrer uma srie de inflexes, pois, da viso da Igreja sobre o fenmeno, que a elite vai retirar aqueles elementos que se coadunam com a sua nova viso de mundo, mas tambm ir expurgar aqueles que no podiam mais ser aceitos por uma elite moderna. 304 Portanto, como ressalta Muniz, por ser um discurso que exerce influncia tanto nas concepes dos dominados como dos dominantes, sua anlise apresentou-se como essencial para a compreenso de sua influncia na construo do discurso da seca. Uma outra varivel da viso tradicional da seca presente nos discursos dos meus depoentes diz respeito concepo naturalista, na qual a seca e a misria da populao decorrem das condies naturais prprias da regio. Nesse sentido, o problema se resume exclusivamente na falta dgua, cuja a responsabilidade no mais atribuda ao destino, sorte, mas s prprias leis da natureza que
303 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. p. 163.
304 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. pp. 156 e 157. 208 escapam ao domnio e capacidade transformadora do homem. Segundo o discurso do Sr. Euclides ngelo Cordeiro, a seca uma dificuldade muito grande. Se o Cear num tivesse seca, seria muito melhor; porque a falta do Cear a gua mermo. 305
Portanto, embora a seca aparea no discurso campons como elemento que faz parte do seu espao e que obedece a uma sucesso cclica no tempo, no deixa de ser vista como um elemento de desordem da natureza. Assim, o campons identifica a seca como o elemento que perverte a rotina da natureza, que altera o ciclo natural da vida e que responsvel, sobretudo, por toda a ordem de sofrimentos que se experencia no campo. Em seu depoimento, o Sr. Joo Andr responsabiliza a seca pelo atraso do Nordeste e por todos os sofrimentos que os nordestinos cotidianamente enfrentam. Embora reconhea que hoje seja possvel utilizar, mesmo com a seca, o sistema de aguao na agricultura, essa prtica no se torna vivel em funo do alto custo com a implantao e a manuteno dos equipamentos.
Rapaz, a seca traz pra mim... a seca traz dificuldade no s pra mim, pra todos ns. A seca um negoo que atrasa o Nordeste; a seca um negoo que bota o nordestino pa trs em tudo por tudo. Porque hoje... Nesse tempo, num tinha aguao, mais hoje mermo com a seca, o caba faz a aguao. Mais que a dispesa que ele tem com a aguao, a produo da aguao quase num d. Por isso, eu lhe digo, a seca bota a gente pa trs em todo este sentido (risos). , a seca malvada; o nordestino sofredor na seca por via disso a. Porque a gente... a seca s traz... pela histora (...) a seca s traz misera. (...). A seca pssima, o nordestino sofredor na seca, nada presta, uma vida arruinada, uma vida fragelada (...) sei l, nada ele faz a tempo porque vive naquela agonia toda, ne? , ele sofredor, a seca um negoo munto ruim. Eu... eu tenho munto a contar de seca, porque eu fui munto sofredor j de seca, n? , eu j sofri muntas seca, anos secos aonde que eu pegasse ainda aquele tempo, eu hoje num frentava mais que... num tenho condies, n? A velhia... o tempo passou e eu fiquei velho (risos). , assim, foi assim. A gente... Um negoo munto sero, munto sero. 306
305 Euclides ngelo Cordeiro, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999.
306 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 03/02/1999. 209 Esse tipo de discurso, emblemtico da maneira pela qual o campons v o problema da seca, est vinculado diretamente ao discurso tcnico sobre a seca. Na verdade, trata-se de uma produo discursiva que tem sua origem na busca de respostas para o problema da seca, na medida em que busca compreender suas causas e oferecer- lhe solues. A influncia desse discurso, na formao do discurso da seca, reside na legitimao do saber cientfico numa sociedade que v a cincia como o saber verdadeiro e nico. O discurso tcnico- cientfico, pois, ao mesmo tempo que desqualifica o saber popular ou tradicional, se apresentar classe dominante regional como um importante instrumento para que ela torne seu discurso convincente em termos nacionais. 307 Por outro lado, ainda, ao fetichizar o problema da regio como sendo a excassez de gua, as elites deixam de considerar a questo fundiria como sendo uma das problemticas mais srias da regio. No discurso tcnico, a seca passa definitivamente a ser encarada como um fenmeno da natureza. Desta forma, a cincia colocava, como sendo perfeitamente possvel, a eliminao do fenmeno a partir de estudos cientficos e de observaes da natureza que oferecessem solues de carter tcnico. Contudo, no havia uma convergncia de opinies quanto a possibilidade da cincia oferecer solues para as secas. Assim, para uns era possvel a eliminao do fenmeno, enquanto para outros s seria possvel amenizar seus efeitos. O fato que o Brasil do final do sculo XIX presenciava uma disputa extremamente acirrada entre a Igreja e a cincia, na medida em que a primeira procurava combater o discurso tcnico sobre a seca, que buscava as causas do fenmeno na prpria natureza e no em manifestaes sobrenaturais como fazia a Igreja. Para esta, as alternativas entre inverno e seca no nasciam simplesmente dos efeitos
307 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. pp. 11 e 179. 210 naturais; ou seja, por trs dos fenmenos naturais, estaria a mo de Deus. Sem distanciar-se da viso naturalista dos Srs. Euclides ngelo Cordeiro e Joo Andr Filho, o Sr. Chiquinho Pitombeira apresenta a seca como resultado de outros fenmenos naturais como o desmatamento, a ausnsia de rvores e a falta de gua na superfcie para atrair a chuva, etc.
O dismatamento s ruim pra munta coisa. At as rvores, num tem mais rvore pa atrair a chuva. A, tudo pruveniente das rvores, sabe disso? Num o toco no, num a terra limpa no. As rvores atrai a chuva, atrai. rvore grande, rvore muito grande atrai chuva. Um aude grande atrai chuva, sequido no. O calor da terra pruviniente do abafamento, do calor da terra. 308
Essas causas apresentadas pelo seu Chiquinho Pitombeira para explicar o fenmeno das secas, classificada por Durval Muniz como viso ecolgica do fenmeno. Segundo a viso ecolgica, a seca pensada como conseqncia do desequilbrio causado na natureza pelo prprio homem em anos de depredao e devastao. Desta forma, como nos chama a ateno o velho Pitombeira, a ausncia das matas seria um fator importante para se explicar a baixa pluviosidade na regio, uma vez que elas seriam de suma importncia no processo de condensao de vapores, de reteno de um volume maior de gua, alm de servirem para o resfriamento da atmosfera. 309
Segundo a viso tradicional do fenmeno, a seca, por ser esse elemento de trauma para a natureza e para o prprio homem, causa inmeras transformaes no s na natureza, mas no prprio cotidiano do homem campons, uma vez que o tempo da seca marca tambm o tempo do no trabalho. Cabe ressaltar que em todas as minhas andanas pelo serto das secas, percebi que este serto emerge na memria de meus amigos de travessia dentro de uma pluralidade e
308 Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira), 86 anos. Entrevista gravada no Riachinho, no municpio de Russas, no dia 22/10/1999. 309 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. p. 200. 211 no como uma unicidade na qual as pessoas, da maneira mais repugnante, normalmente morrem de fome. Todavia, este serto foi densamente descrito nas paginas dos chamados romances naturalistas do final do sculo XIX, entre os quais destaca-se A Fome 310 de Rodolfo Theophilo.
O que diria se visse um pai no delirio famelico matar o filho para comer; uma desgraada mi, s ossos e pelangas, morta e resupina no meio da estrada, no seio uma creancinha esqueletica procurando sugar algumas gotas de leite do cadaver; um retirante animalizado, mettido numa gruta, alimentando-se da carnia humana que encontrava nos caminhos; uma creana encontrada em uma casa abandonada beira do caminho, fechada na camarinha, cahida de fome e chupada de morcegos, que lhe cobriam o corpo como um lenol negro; um desgraado retirante estirado na estrada, no marasmo da fome, sem foras para mover um musculo, cercado de urubs vorazes e famintos, que no esperam a morte da victima, mas a apressam, vazando-lhe os olhos com o bico adunco, como um espinho a enterrar-se-lhe na pupila dilatada e negra (a luz apaga-se e o banquete dos corvos comea); Joaquim Punar, um negro hediondo, feroz como uma hyena, Canind, no delirio da fome, comendo uma creana com mel de abelha?! 311
Apesar de terem sido casos eventuais, estas cenas aparecem em grande parte das narrativas literrias que tematizam as secas. Trata-se, na verdade, de um discurso repetitivo que estrategicamente contribuiu para a estereotipizao do serto nordestino. 312 Por outro lado, a subjetivao desse discurso estereotipizado possibilitou as elites da regio, principalmente, terem sua disposio imagens dramticas que em muito enriqueceu o discurso formulado em termos reivindicatrios em nome de uma populao castigada pelas secas. Contudo, imperioso ressaltar que a fome, diferentemente das secas, sempre constante em todos os Estados da
310 Rodolfo Theophilo. A Fome; Violao. Rio de J aneiro: J . Olympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979. Na seca de 1877, a secca-typo, eu precisava conhecer de viso um abarracamento de retirantes, precisava modelos para o romance A Fome -, que publiquei depois. Estudei detidamente a calamidade e a psychologia do faminto. A observao dos phenomenos me convenceu de que a miseria tudo dilue de bom na alma humana. Cf. Rodolfo Theophilo. A Seca de 1915. Fortaleza: Typ. Moderna Carneiro, 1919. p. 46. 311 Rodolfo Theophilo. A seca de 1915. op. cit. pp. 45 e 46. 312 Para Durval Muniz, (...). O esteritipo um olhar e uma fala produtiva, ele tem uma dimenso concreta, porque, alm de lanar mos de matrias e formas de expresso do sublunar, ele se materializa ao ser subjetivado por quem esteriotipado, ao criar uma realidade para o que toma como objeto. (...). Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. A Inveno do Nordeste e outras artes. op. cit. p. 20.
212 regio nordestina, servindo de suporte para sustentao das formas de polticas de combate s secas. No obstante o teor de dramaticidade presente na fala de alguns depoentes, em virtude dos sofrimentos vivenciados nos perodos de seca, observei que os camponeses atribuem uma pluralidade de sentidos seca, que nos impede de v-la dentro dessa unicidade historicamente construda. De acordo com a pluralidade de sentidos atribuda s secas, que aparecem, muitas vezes, como a manifestao de um tempo bom e alegre. Contapondo-se, ainda, viso tradicional que foi cristalizada em torno do serto nos perodos de seca, os discursos produzidos pelos camponeses revela-o no como o espao em que a natureza e o prprio homem ficam paralisados, mas como espao onde sempre possvel utilizar-se, de acordo com o lugar habitado, de outras tticas que tornem possvel a manuteno do cotidiano de trabalho. Assim, serenando o esprito de observador para no perder um s detalhe do que era narrado, deixei-me conduzir por tempos e espaos, supostamente to iguais na longa e densa travessia de suas histrias. A cada parada, em algum ponto de apoio marcado no tempo, faziam um retrospecto minucioso e eloqente de suas vidas. Assim, num instante, uns recordavam-se, por exemplo, dos momentos difceis, porm muitas vezes alegres, vividos durante as secas de 1915, 1919, 1932, outros, durante as secas de 1942 e 1958. 313 O fascinante que as emoes pareciam estar sendo revividas novamente a cada gesto e a cada entonao das palavras; embora, conservassem conscincia do presente, sentindo a experincia do hoje, analisando o ontem que j se findara. Diante da fadiga do percurso, senti que meu corpo e minhas idias imploravam descanso, pois a travessia realmente longa, sendo, vez ou outra, necessrio parar, no apenas para descansar, mas,
313 Este recorte cronolgico se justifica pelo fato das experincias vividas nessas secas terem sido as mais lembradas no processo de rememorao dos entrevistados. 213 sobretudo, para melhor refletir sobre a multiplicidade dos tempos atravs dos quais se realiza a atividade da lembrana; assim como para melhor juntar os gestos s palavras, compreendendo, neste universo, os plcidos silncios. Contudo, poderamos, eu e meus amigos de travessia, repousar na sombra de um alpendre nos meses de inverno onde normalmente corre um vento mido, frio, pelos sertes; ou, mesmo, na sombra de uma canafstula, de um juazeiro, ou de uma velha oiticica margem de uma lagoa de guas lmpidas onde voejam passaros de toda sorte, onde as garas levantam-se em branco e alto vo; ou, ainda, margem de um rio que desce banhando tudo que encontra pela frente, cobrindo as vrzeas e afogando os troncos de velhos carnaubais. Porm, o cansao no nos tomou com tanta benevolncia. Preferi mesmo foi apear a sol alto; um sol que talvez fosse de meio-dia, de um dia qualquer do ano seco de 1915. 314
Estava na companhia de Raimundo Mendes Martins, velho depoente ligado por longos fios da lembrana a este ano de 1915. Uma lembrana desmesurada que acabou esculpindo, para o presente, imagens do passado com fortes traos da experincia coletiva de todos que viveram esse tempo de seca. Nascido em vinte e cinco de agosto de 1908, ele tem na seca de 1915 o incio da marcao de seus referenciais familiares. Assim, com a mente voltada s lembranas caras da infncia, diante da evocao familiar das paisagens que
314 No dizer de Rodolfo Theophilo, a seca de 1915 encontra o Cear mortalmente ferido pela sedio de J oazeiro; movimento poltico que, em 1914, ps fim ao governo de Marcos Franco Rabelo. Insatisfeitos com a deposio de Nogueira Accioly da Presidncia do Estado, em 1912, depois de uma insurreio popular que durante trs dias transformou a cidade de Fortaleza em um palco de guerra, o grupo poltico ligado a Accioly, no qual destaca-se, entre outros, Floro Bartolomeu (maior expresso poltica de J uazeiro do Norte e amigo particular do Pe. Ccero) e Pinheiro Machado (chefe do Partido Republicano Conservador PRC), transforma, principalmente, o interior do Estado, numa verdadeira guerra civil, onde cidades eram invadidas e propriedade e casas comerciais saqueadas. O objetivo deste levante, era, pois, destituir do governo Estadual o Cel. Marcos Franco Rabelo. Cf. Rodolfo Theophilo. A Seca de 1915. op. cit. Sobre a deposio de Nogueira Accioly em 1912 e a Sedio de Juazeiro em 1914 ver: Rodolfo Theophilo. A Sedio de Joazeiro. Fortaleza: Ed. Terra de Sol, 1969; J oo Mendes de Andrade. A Oligarquia Acciolina e a Poltica dos Governadores In. Simone Souza (Coord.). Histria do Cear. Fortaleza: Fundao Demcrito Rocha, 1994; Virgnia Maria Tavares da Silva. Crise na Poltica dos Governadores: o declnio dos Accioly no Cear. Dissertao de Mestrado So Paulo, USP, 1982 e Aspectos da Crise poltica de 1912 no Cear. In. Simone Souza. op. cit.; LIMA, Marcelo Ayres Camura. A Sedio de Juazeiro e a Guerra Civil no Cear. In. Simone Souza. op. cit; Ralph Della Cava. Milagre em Joazeiro. Rio de J aneiro: Paz e Terra, 1976. 214 atravessava, o Sr. Raimundo Mendes recorda as dificuldades que viveu junto de sua famlia numa poca em que at as comidas agrestes estavam escassas: o xiquexique, a macambira e a mucun. Comidas agrestes, que ele mesmo faz questo de dizer que no lhes entrava.
Ns cumemo, a negrada cumero. Ali, na Catinga do Estreito, o xique- xique foi simbora todim; os caba cumero. cumer (...) a macambira eu... num me entrava. A cumida agreste, viu? Tem camarada que cumia e achava bom. 315
Segundo Rodolfo Theophilo, 316 era comum ouvir-se dizer da semelhana entre o xiquexique e a macaxeira. Semelhana esta no comprovada pelo Sr. Raimundo Mendes. De acordo com a descrio feita por Theophilo, do xiquexique escolhiam de preferncia as hastes mais novas, que privavam dos espinho, despresando o tecido cellular e s se utilisando da medulla que comiam assada. Uma outra substncia explorada do xiquexique, era o suco contido em suas clulas, o qual, depois de sugado, servia para mitigar a sede; embora deixasse, em pouco tempo, a pessoa enrouquecida. A macambira, por sua vez, segundo a descrio do mesmo autor, depois de cozida por algumas horas e secada ao sol, pisavam-na e da massa faziam beijs e mingos. Mas era a raiz da mucun, entre todos os tubrculos, o mais txico. Para preparar a farinha da mucun, era preciso reduzir massa as sementes, depois de privadas do duro involucro que as guarda. Depois de pronta e lavada em nove guas, a massa devia ser convenientemente espremida, antes de ser levada ao fogo para ser torrada fazendo-a tomar consistncia de farinha. Demonstrando ser conhecedora das propriedades nocivas da mucun, a me do Sr. Raimundo Mendes, cercava-se de todos esses cuidados quando ia preparar aquele pozim que, muitas vezes, representava o nico alimento do dia para toda a famlia.
315 Raimundo Mendes Martins, 92 anos. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000. 316 Rodolfo Theophilo. Histria da Secca do Cear (1877 a 1880). Rio de J aneiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 91. 215 Na seca de quinze, ia atrs dos carocim no mato, deste tamanho o carocim. Chegava, minha me pisava, quando acabar ia po beio do rio lavar im nove gua. Se lavasse im oito murria, porque veneno. Nove gua! Ns, as vez chegava a mei dia, ela pisava; ns ia cumer um bucado de madrugada. Assim mermo, aquele pedacim de po. Fazia aquele pozim, cumia por ali um pedacim de po quando ia drumi.
O Sr. Raimundo Mendes, ao falar da experincia vivida na seca de 1915, 317 no apenas se representa ao reviver os caminhos de sua infncia, mas compreende a funo que o tempo da seca lhe atribua atravs da autoridade de seu pai. Acompanhando o pai no papel de provedor do sustento da famlia, o menino Raimundo tinha por funo ser o apanheiro do vi, quando este saa corrigindo as mata tudim atrs da mucun ou de alguma outra comida agreste, que pudesse mitigar a fome da famlia. No obstante as dificuldades vividas naquele perodo de seca, por caber ao homem o controle e direo do grupo familiar, seu pai procurava na natureza todos os recursos que lhe possibilitasse exercer as atribuies que a ele eram reservadas no contexto da esfera domstica.
Quando foi a derradeira vez que ns fumo pa... pelejar atrs, subemo nuta que na Mata Redonda, na Pindoba, tinha era mucun l. Aqui, na madrugada... O apanheiro do vi era eu, t vendo? A, era bem de madrugada; a cheguemo l, corrigimo as mata tudim, num arrumemo um carocim pum remdio. Meu pai diz: - agora, Raimundo, que se faz? Chegar im casa com a mo adiante e outra atrs.
Diante de tamanha crise, onde at a mucun estava escassa, seu pai reflete: agora, Raimundo, que se faz? Chegar im casa com a mo adiante e outra atrs. Com os olhos marejando em lgrimas, o velho
317 Para Theophilo, a seca de 1915 no teve a mesma intensidade das ocorridas na segunda metade do sculo XIX. No quinze, observa Theophilo, verificou-se um menor deslocamento da populao rural para Fortaleza, diferentemente do que ocorrera, por exemplo, na secca-typo de 1877-79, quando mais de cem mil retirantes migraram para Fortaleza; a importao de gneros alimentcios foi consideravelmente menor; alm do que, nas serras e no litoral, o inverno, embora tenha registrado apenas pouco mais de 700 mm., foi suficiente para criar algum milho, feijo e mandioca. Cf. Rodolfo Theophilo. A Seca de 1915. op. cit. p. 30. Diferentemente de 1915, j nos primeiros meses de 1878, Fortaleza abrigava cerca de cem mil retirantes que continuavam a chegar, todos os dias, no estado mais lastimvel. No dizer de Raimundo Giro, cedo Fortaleza converteu-se na metrpole da fome. (...). O teatro da misria tornava-se visvel nas colunas dos diversos jornais. Seus autores exteriorizavam o medo da condio de ser habitante de um grande aglomerado urbano e de ver suspensa a sua identidade individual. Cf. J os Olivenor Souza Chaves. Metrpole da Fome: a cidade de Fortaleza na seca de 1877-1879. In. Seca / Simone de Souza; Frederico de Castro Neves (Org.). Tansio 216 Raimundo deu seqncia a sua narrativa expressando no apenas a soluo encontrada por seu pai, mas, sobretudo, a disposio e a autoridade com que ele se instituiu diante do Luiz, o suposto dono de um p de palmeira que o menino Raimundo, autorizado pelo pai, subiu para derrubar o cacho de palmeira, ou seja, a penca de coco. Disposto a mitigar a fome que a famlia estava passando, fazendo valer o direito de conservao, o mais sagrado de todos os direitos naturais, mesmo que para isto fosse preciso utilizar-se da fora, o pai do menino Raimundo sentenciou: meu amigo, eu tambm sou dono. Derrubou o cacho de palmeira minino?
Quando chegueno na... no Luiz, tinha um p de palmeira assim no terreiro. Meio valento! [o Luiz] -Raimundo, suba tire um coco naquele p de palmeira. Subi, truci, truci, truci, que era a moda gato, t vendo? Derrubei, o vi passou o faco, tava de vez. - Suba Raimundo, derrube o cacho de palmeira. Quando o faco bateu no cacho, o dono chegou na porta assim: - Ei, isso a tem dono! Meu pai diz: - Meu amigo, eu tambm sou dono. Derrubou o cacho de palmeira minino? A, derrubei o cacho de palmeira. Enrolou l a ponta, amarremo um cip, samo arrastando cabea a baixo. Tudo serra, l era serra, viu? A, quando ns cheguemo im casa, ele disse: - a, Sinh Maria. Meu pai, s chamava minha me Sinh Maria (...). A, fumo cumer. Os vizim ajudando, passando fume como ns, ajudando a acabou-se logo.
Essas recordaes, que o Sr. Raimundo Mendes selecionou em sua memria, so emblemticas da maneira pela qual os camponeses constroem, em suas narrativas, uma imagem do passado. Para eles, o passado no representa um tempo vazio, destitudo de significados; ao contrrio, a noo de tempo, construda a partir de suas experincias de vida marcadas pelas secas ou pelos invernos, demonstra o quanto so marcadamente afetivas a relao que os camponeses mantm com o tempo, assim como a leitura que fazem dele. Nesse sentido, o tempo qualificado pela presena humana e pela ao dos afetos e da imaginao. 318
Vieira... [et al.] Fortaleza: Edies Demcrito Rocha, 2002. (Coleo Fortaleza: histria e cotidiano). pp. 50 e 57. 318 Alfredo Bosi. O tempo e os tempos. In. NOVAIS, Adalto (org.). Tempo e histria. op. cit. p. 27.
217 Na quietude da pequena sala de sua casa, sem tirar os olhos da paisagem da infncia, o Sr. Raimundo Mendes continuava restabelecendo a lembrana do passado, dando curso travessia pelos muitos tempos e lugares de sua memria. De repente, foi despertado pela fora de um passado que ainda faz vibrar os acontecimentos vividos na zona rural de Baturit, durante a seca de 1919. De forma mais amide, passou a relatar a travessia de Baturit para Fortaleza realizada a p na companhia de seus pais e de um irmo mais novo.
(Foto 25 Sr. Raimundo Mendes e esposa D. Eullia Aldeia Velha Tab. do Norte) Enquanto relata as agruras do caminho, parecia colocar-se de novo em trnsito e ouvir um vaivm de vozes. A sombra de tristeza parada sobre seu olhar parecia, ainda, revelar que seu sofrimento era mais forte que a emoo do reencrontro com o mundo da infncia.
218 Decemo de cabea a baixo, passemo im Baturit ainda de noite. De p! A, fumo... fumo... fumo, passemo o dia num provemo nada. A, foi no outo dia, negoo de oito hora, uma casa im cima do alto: - Sinh Maria, agora eu vou pidir uma esmola pa dar de cumer essas duas criana! - Eu e cumpade Z. Cumpade Z era novim, e eu era minino, n? Chegou l, tava o paidego; pegou e disse: - Meu amigo, me d uma esmola pelo amor de Deus, pa d de cumer a uma criana que vem morrendo de fome! - Entrou pa dento, tinha uma chirquinha a de farinha, chegou e... esse deu bem na mo. - Ta, Sinh Maria, d uma coisinha a Raimundo e outa a Z. Que home que t aqui morre e num pede mais uma esmola. Pidi uma esmola um home, um capito, uma esmola pelo amor de Deus, vem duas criana morrendo de fome, ele d uma muchinha de farinha dessa -. A, com isso passemo o dia todim sem nada. Foi no outo dia, pertim da Fortaleza, no outo dia as sete hora... Nesse tempo, as estao era aquelas coisinha, n? Era duas casa, era trs... E a, dava uma cabea... L estava um caba tirando um coro dum boi. Ele disse: - Sinh Maria, hoje nis come! Chegou aonde tava o home, disse: - Meu amigo, vamo fazer um negoo. Voc me arrumar uma banda desse bode. - Pois no! - Dou-lhe uma foice novinha na hora. A, quando acabou, tratou o bode, cabou, prantou a faca tirou duas custela. -Pronto! A, marchou po saco de farinha, deu dois lito. A, meu pai entregou a foice. A, cumemo int incher a barriga. A, com isso fumo... fumo a Fortaleza. , quando chegou na Fortaleza num faltou mais nada, n? 319
Consciente de que as experincias camponesas no podem ser homogeneizadas, recorro s memrias de D. Altina de Moura Lima, que como poucas domina to bem as artes de lembrar e de narrar, 320
para demostrar o quanto ela atribui um outro significado seca de 1919. Segundo a sua interpretao, esta seca representa um acontecimento que foi vivido de forma absolutamente alegre.
Dezenove, foi muito bom. Dezenove foi uma seca, uma seca muito alegre, t vendo? O povo plantaro muito, papai mermo plantou muito milho; mas, deu todo... deu todo de meia. Ningum pastorou milho no. A, vinha muita gente de fora pra Lagoa. Dacul, da banda do riacho, umas fia... um povo de Raimundo Caetano, sabiam de muita brincadeira essas moa. Tinha duas moa e... e... tinha um rapaz tambm, Pedro Caetano, Mundico. E, a, esse povo boca da noite vinha l pra casa, pra casa de Caboco, que ainda era gente desse Caboco Xavier, que ainda era gente deles. A, brincavam muito: os casamento, era muitas coisas que elas brincava. Os casamentos era eles ir pra acul pra vim falar casamento (risos). Aqueles, que a pessoa desse, num ? Iam um magote de rapaz, a davam um a uma, outo a outa, outo a outa, aquele vinha falava casamento se no, no, num fosse a num achava nada ia simbora. A, voltava, a... H bom, ns brincava muito essas coisa. Ns
319 Raimundo Mendes Martins, 92 anos. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000. 320 Para Walter Benjamin, o que caracteriza os grandes narradores a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experincia, como numa escada. Cf. Walter Benjamin. O Narrador. In. Obras Escolhidas. op. cit. p. 215. 219 achava era muito bom, foi uma seca muito animada, num era ruim nadinha. Foi, foi seca mermo; foi toda seca. Houve uma chuva assim em fevereiro, uma chuva mei grande e pronto, num houve mais no. Mas, houve muito milho na lagoa, muita coisa, ningum passava fome no. Era at animado, ns achava era bom (risos). Achava era bom, porque tinha muito divertimento, n? Muita coisa, muito divertimento. 321
Ao se buscar identificar as diferentes significaes que os entrevistados atriburam as secas, preciso levar em conta que o espao geogrfico onde realizei a pesquisa de campo, no compreende uma unidade no que diz respeito aos seus aspectos fsicos; embora o serto nordestino tenha sido naturalizado como uma unidade espacial marcada tanto pela paisagem cinza, oferecida pela vegetao seca, como pelo cho rachado que chega a formar grandes sulcos na terra, tambm cinza e seca. Em virtude, pois, de no se tratar de uma unidade geogrfica, e sim de um espao composto por reas de vrzeas, de chapada e de caatinga, existe uma realidade mltipla de experincias e prticas que s se explicam se for levado em conta esses diferentes cenrios que compem a paisagem natural da regio do Baixo-Jaguaribe. Nesse sentido, as diferentes maneiras de significar as experincias que foram vividas durante a seca de 1919, tanto pelo Sr. Raimundo Mendes como por D. Altina, justificam-se pelas possibilidades de sobrevivncia que cada ambiente natural oferece. Ao contrrio da famlia do Sr. Raimundo Mendes, a famlia de D. Altina, por morar prxima a lagoa do Lima, no atual municpio de So Joo do Jaguaribe, tinha, certamente, maior acesso a gua, assim como maior possibilidade de plantar e colher alguma das culturas de subsistncia que normalmente alimenta a famlia camponesa o feijo, o milho, a mandioca... Portanto, em um perodo de seca, especialmente, o acesso a gua constitui-se num mecanismo de poder e de diferenciao social na medida em que, dialeticamente, a falta ou no da gua estimula ou evita a migrao.
321 Altina de Moura Lima, 96 anos. Entrevista gravada no Stio Lima, no municpio de So J oo do J aguaribe, no dia 11/04/2000. 220 Por outro lado, ao mesmo tempo que as lembranas de D. Altina nos mostra o aspecto do inusitado, do diferente, faz-nos ver a importncia que assume a dimenso ldica as brincadeiras, as fantasias, os sonhos... na experincia de vida desta mulher, em especial, e dos camponeses, para pens-los num sentido mais lato de suas vivncias. Assim, o entendimento de que a seca constitui um marcador temporal na vida dos camponeses sugere no apenas a representao do serto seco perpassado pela fome, pela falta dgua, pelas humilhaes, pela aridez do solo e das prprias pessoas...; mas, estimula outras maneiras de se conceber o serto das secas que possam comportar compreenso de que a seca muito mais do que uma questo climtica, inscrevendo-se na vida das pessoas como uma vivncia, como algo que afetiva e culturalmente vivido. A exemplo do Sr. Raimundo Mendes e de tantos outros amigos de travessia, D. Altina teve sua vida atravessada pelos espectros da seca climtica, que vem tornar mais aguda as dificuldades advindas de uma estrutura social que segrega, impiedosamente, a grande maioria da populao rural no s do Cear, mas de todo esse recorte espacial chamado Nordeste. Contudo, no se pode deixar de observar a dimenso ldica presente em sua narrativa, sem a qual suas histrias de vida dificilmente sero compreendidas. Diferentemente da maneira como o Sr. Raimundo Mendes recordou a seca de 1919, D. Altina utiliza-se de uma outra ttica na qual o serto da seca representando o lugar da misria, da fome, da tristeza, da dor, da finitude da vida, enfim, cede lugar ao serto da seca, onde sonhar faz parte do cotidiano de seus personagens. Todavia, necessrio enfatizar que no meu propsito negar que a histria de vida dessas pessoas compe-se, tambm, de dificuldades e de emoes tristes; uma vez que em torno da idia de sofrimento que se origina todo o imaginrio fetichizante do serto, enquanto lugar-comum da seca, da fome, da misria e, portanto, da tristeza. Contudo, estarei sendo extremamente injusto com os 221 camponeses se continuar a v-los como pessoas embrutecidas e derrotadas. Apesar de vrios audes e barragens terem sido construdos no Cear entre os anos de 1915 e 1919, que pretendiam formar uma barreira contra a falta dgua, 322 entre todos os depoentes que vivenciaram estas secas, apenas um, o Sr. Francisco Siriaco Filho, fez alguma referncia ao trabalho nas frentes de servios. Mesmo assim, trata-se de uma memria que foi herdada de seu pai, pois, como ele mesmo observa, era muito piqueno ainda, eu s tinha trs ano, quato na seca de 1919.
A, j o meu pai... Eu... Ele contava, que foi trabaiar na Faceira. Ele e o fio mais vi, o minino, sendo minino. Ele, ganhando dois mil ris, e o minino dois tes. Ele, todo sbo vinha da Faceira. Da Faceira pra c, com um saco na cabea, com mercadoria da semana. O que ganhava na semana, tirava todo no furnicimento e trazia na cabea. Mas, eu nunca fui a essa Faceira, no. (...), pegando as terras, num sei se ali Limoeiro ou j Russas. 323
322 Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 88. O processo de interveno do Estado no serto nordestino, ao longo do sculo XX, contribuiu para a formulao de um campo discursivo e de um conjunto de imagens capazes de institu-lo dentro de uma dizibilidade e de uma visibilidade que o iguala seca, que afirma sua impotncia e reserva ao seu povo a condio de eternos pobres coitados. Inicialmente, o termo Nordeste foi usado para designar a rea de atuao da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919 no governo de Epitcio Pessoa. Desta forma, de acordo com este discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita s estiagens e, por essa razo, merecedora de especial ateno do poder pblico federal. Portanto, como nos chama ateno Durval Muniz, o Nordeste , em grande medida, filho das secas. O incio de sua gestao, no entanto, tem como marco a seca de 1877-79, em virtude da grande repercusso que teve em nvel nacional e pelo considervel volume de recursos deslocados para o atendimento das vtimas do flagelo. Isso tudo, fez com que as bancadas nortista no Parlamento descobrissem a poderosa arma que tinham nas mos, para reclamar tratamento igual ao dado ao sul. Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. A Inveno do Nordeste e outra artes. op. cit. pp. 68 e 70. 323 Francisco Siriaco Filho (Chic), 85 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. Ao chegar na velha casa de taipa onde morava seu Chic na companhia de algumas netas e de um genro com deficincia mental, o encontrei cego e sentado numa rede, dentro de um pequeno quarto com pouca luminosidade, sem ventilao e com um cheiro desagradvel. Durante a entrevista, o velho Chic revelou-me que a dezessete anos se encontrava naquela situao. Embora tenha narrado a histria de sua vida, seus dramas e alegrias, a entrevista foi marcada pela singularidade expressa no canto e nas anedotas que seu Chic fez questo de contar. Entre as msicas cantadas pelo velho Chic destacam-se algumas que ele aprendeu ainda criana, alm de machinhas de carnaval e do tradicional brega Fusco Preto, deixando-me ainda mais surpreso. No silncio da noite, disse o velho Chic, num durmo. Da meia noite im diante, s me alembrando do passado. Me alembro do passado e do presente e de tudo. D pa eu pensar im tudo, a noite grande. Da meia noite at o amanhecer do dia, as hora muito maior do que essas do dia. (...) Eu passo a noite, pego no sono, acordo, passo at de manh tumando caf e fumando e cantando. Mas, cantando baxim, n? Bem baxim que as vez s resmungando e num tenho cansao. Destitudo de bens materiais possua, alm da velha casa de taipa, dez braas de terra que no chega a medir um hectare -, seu Chic era rico em alegria e resignao. No dia vinte e trs de abril deste ano, 2002, o velho Chic fez sua viagem de volta, como preferem dizer os mais velhos dos sertes quando se referem a morte. 222 Embora a seca seja considerada como um elemento de desordem da natureza, desarticulando, assim, o cotidiano de trabalho dos camponeses, sobretudo daqueles que praticam uma agricultura de sequeiro, como o caso dos sujeitos desta pesquisa, os camponeses se utilizam de outras tticas de sobrevivncia que vo desde as frentes de servios, patrocinada pelo Estado, at a explorao do meio natural em que vivem. Assim, ao reconstituir a paisagem da seca de 1932, atravs de fragmentos da memria de velhas e velhos camponeses, foi possvel perceber, em praticamente todas as entrevistas que realizei, que as lembranas em torno desta seca estavam diretamente associadas ao trabalho na construo da Transnordestina - rodagem que ligaria Fortaleza a Salvador, atual BR 116. 324
J em 1909, a antiga Inspetoria de Obras Contra as Secas - IOCS 325 incluiu, no programa de obras de seu primeiro regulamento, a construo no apenas de estradas de ferro, mas, igualmente, de estradas de rodagem. O certo, no entanto, que at 1919 a atividade
324 A construo de estradas, como medida de combate aos efeitos das secas, contribuiu diretamente para a urbanizao das cidades da regio na medida em que traziam capitais, saberes e mercadorias, incorporando as reas rurais aos padres produtivos e culturais do capitalismo mais avanado. Segundo Frederico de Castro Neves, os funcionrios oficiais que coordenavam a construo de barragens e rodovias, mesmo sem perceberem, tornavam-se dirigentes desse progresso, assumindo, por assim dizer, o papel de novos bandeirantes que transformavam no apenas a natureza, mas, sobretudo, as relaes sociais no campo. Cf. Frederico de Castro Neves. A Multido e a Histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. pp. 171, 172 e 174. 325 A Inspetoria de Obras Contra as Secas foi criada em 21 de outubro de 1909, pelo Decreto 7.619, no governo de Nilo Peanha. Segundo J os Batista Neto, nesta data, aprovado o Regulamento para a organizao dos servios contra os efeitos da seca. Para Batista Neto, a inteno do Estado de intervir de forma organizada no serto nordestino, obedecendo a uma hierarquizao das aes representava, noutros termos, a introduo de relaes jurdico-polticas capitalistas na regio. No que diz respeito a esta interveno, Batista Neto prope uma periodizao correspondente a trs momentos: o primeiro, marca um perodo de dez anos entre 1909 e 1919; o segundo, representa o quadrinio 1919-1922; e, o terceiro, corresponde ao perodo mais longo que comea em 1922 e prolonga-se at 1934. Para Batista Neto, o ano de 1909 representa um ponto de inflexo entre a manuteno de uma poltica assistemtica, aleatria e de aes episdicas e uma poltica de interveno sistemtica por parte do Estado no serto nordestino. Cf. J os Batista Neto. Como uma luneta invertida (interveno do Estado no semi-rido nordestino atravs do discurso ideolgico do IOCS/IFOCS 1909/34). op. cit. pp. 53, 57 e 58. Segundo Durval Muniz, a criao da IOCS representava a concretizao da institucionalizao das secas na medida em que esta instituio federal torna-se o local por excelncia da produo de um discurso regionalista que se exarceba medida que o Estado republicano, liderado pelas oligarquias paulista e mineira, as beneficia no que se refere s polticas pblicas. Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. A Inveno do Nordeste e outra artes. op. cit. p. 70. Sobre a institucionalizao da seca, ver ainda: Alfredo Macedo Gomes. O Imaginrio Social da Seca e suas Implicaes para a Mudana Social. op. cit. p. 76.
223 construtiva rodoviria foi compreendida, pela Inspetoria, como algo relativamente sem importncia. Todavia, foi a partir de 1932 que a obra rodoviria no Nordeste ganhou mais impulso e, consequentemente, mais notoriedade. Na seca de 1932, por exemplo, as obras rodovirias assumiram um carter de urgncia, em virtude do nmero excessivo de trabalhadores rurais que reivindicavam a instalao de frentes de trabalho em toda a regio Nordeste. Para se ter uma idia do grande contingente de operrios flagelados, basta dizer que em maro de 1932 este contigente era de apenas 7.000 pessoas, passando em novembro do mesmo ano para 220.000 em toda a regio. Desta forma, no seria possvel atender aos apelos de toda a regio, apenas com obras de audagem; uma vez que exigiam instalaes especiais e comportavam um nmero limitado de trabalhadores. Seria preciso, pois, a Inspetoria atirar-se de forma resoluta s obras rodovirias que apresentavam maior poder de absoro de mo-de-obra, constituindo-se, assim, num instrumento magnfico de socrro rpido e simultneo. 326
Na verdade, o contexto poltico do ps-30, cuja principal caracterstica era a centralizao do Estado, fez da seca de 1932 uma questo nacional ligada diretamente segurana pblica. Assim, vrios rgos oficiais, ligados assistncia social e pblica, envolveram- se de forma conjunta no emprego de estratgias de combate seca as quais procuravam fixar os camponeses no campo atravs de um conjunto de obras de infra-estrutura destinadas a resolver por um lado o problema dos transportes construo de rodovias - e, por outro, os problemas de acumulao dgua construo de audes e barragens. 327
326 DNOCS: Pensamento e Diretrizes. Edio comemorativa do 75. aniversrio do DNOCS. Fortaleza, 1984. p. 39, 51 e 52. 327 Embora esteja referindo ao perodo de Governo de Epitcio Pessoa (1919-1922), J os Batista Neto nos chama a ateno para pecebermos a dupla face uma moderna, outra conservadora do intervencionismo estatal no semi-rido nordestino. Na verdade, o que se configura como moderno em todo esse processo nada mais do que um intervencionismo econmico planejado. Por outro lado, o que prepondera neste processo de interveno justamente o seu carter conservador, ou seja, o beneficiamento de terras privadas atravs da construo de obras hidrulicas. No que se refere a construo de estradas, a preferncia pelas rodovias e pelo automvel indica que o modelo desenvolvido posteriormente pelo governo nacional-desenvolvimentista de Kubitschek e aprofundado pelo regime militar ps-64 j d seus primeiros passos em plena Repblica 224 Frederico de Castro Neves 328 observa, no entanto, que embora a seca de 1932 tenha surpreendido a todos pelo seu raio de ao, sua extenso e sua devastao, a interveno do Estado no se deu apenas no sentido de suprir destruio das colheitas ou ao colapso da economia. As estratgias de fixar os camponeses no campo, atravs do emprego de tais medidas, representava, com efeito, uma tentativa de impedir o deslocamento em massa dos camponeses para as cidades, principalmente para a capital do Estado Fortaleza, bem como para diminuir o poder de sua mobilizao. Assim, logo que o Ministro da Viao e Obras Pblicas, Jos Amrico, 329 percebeu a necessidade de organizar trabalho para a populao, visando mant-la em seus lugares de origem. 330 Desta forma, ao contrrio das secas anteriores, verifica-se, na seca de 1932, uma maior articulao entre os rgos federal representado pelo Ministrio de Viao e Obras Pblicas e pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), e estadual representado pelo Departamento das Secas, criado especialmente para o enfrentamento da seca de 1932. 331
Velha. Cf. J os Batista Neto. Como uma luneta invertida (interveno do Estado no semi-rido nordestino atravs do discurso ideolgico do IOCS/IFOCS 1909/34). op. cit. p. 128 e 139. 328 Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 117. 329 A participao do Nordeste no movimento de 30, f-lo ser contemplado com duas importantes Pastas Ministeriais no Governo Provisrio de Getlio Vargas. O Ministrio da Agricultura, com o cearense Juarez Tvora e o Ministrio da Viao e Obras Pblicas com o paraibano Jos Amrico de Almeida. Desta forma, sob a gesto de J os Amrico prepara-se um programa de interveno do Governo Federal para enfrentar, principalmente, a seca de 1932. Cf. J os Batista Neto. Como uma luneta invertida (interveno do Estado no semi-rido nordestino atravs do discurso ideolgico do IOCS/IFOCS 1909/34). op. cit. pp. 240 e 241. 330 Contudo, em 1932, quando a crise climtica se acentua, o que se verifica o surgimento de campos de concentrao em algumas cidades do interior do Cear, e, principalmente, em Fortaleza. Segundo Frederico de Castro Neves, os campos eram reas cercadas e vigiadas por homens armados, sob o comando do prprio Chefe de Polcia, na capital, e dos Prefeitos, que na poca eram oficiais nomeados pelo Interventor Federal no Estado. (...). Ao lado destes investimentos policiais, a religio tambm procura estar presente nos campos, garantindo a moral das famlias. Em Fortaleza, h em cada um dos campos uma capela improvisada. (...). Cf. Frederico de Castro Neves. Curral dos Brbaros: os Campos de Concentrao no Cear (1915 e 1932). In. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, ANPUH/Contexto, v.15, n29, 1995. p. 114. Ver ainda: Knia Sousa Rios. Campo de Concentrao do Cear: Isolamento e Poder na Seca de 1932. Fortaleza: Museu do Cear/Secretaria da Cultura e Desporto do Cear, 2001 e A cidade do sol sombra do fragelo. In. Projeto Histria: Revista do Programa de Estudos Ps-graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP vol. 19, 1999. 331 No entanto, o que se observa em todo o processo de interveno do Estado na regio do serto nordestino, atravs das vrias instituies IOCS, IFOCS, DNOCS, SUDENE -, que esta interveno esteve sempre cercada por uma concepo equivocada da regio, na qual esta aparece como sinnimo da seca e do atraso. Era preciso, pois, resolver-se o problema da seca uma vez que esta representava um impeclio ao progresso e ao desenvolvimento da regio e do prprio pas. Com isto, a seca deixou de ser um problema meramente 225
Assim, logo nos primeiros meses do ano, o Ministro da Viao e Obras Pblicas percebeu que urgia uma vastssima organizao do trabalho, para comportar os milhares de homens vlidos que ainda podiam dar alguma coisa de si, antes que fossem mais devastados pela fome e, para isso, um grande esforo deveria ser empreendido pelo governo. Mas essa percepo no foi elaborada em face da destruio das colheitas ou de um colapso da economia. As pretenses de controle da sociedade e de racionalizao das atividades estatais esbarravam numa crua realidade que os jornais j percebiam, temiam pelo pior e denunciavam que o exrcito sinistro de esfomeados marcha pelas estradas em demanda de Fortaleza. 332
Historicamente conhecido, o problema da misria no serto nordestino , decerto, muito mais um problema de ordem estrutural do que de irregularidade das chuvas, embora esta realidade de misria seja agravada em perodos de estiagens prolongadas. Assim, a formao desses grupos de trabalho, longe de resolver o problema das secas, apenas servia para diminuir a oferta de mo-de-obra na regio durante alguns meses; bem como contribua para a manuteno das estruturas de poder locais. Referindo seca de 1958, o vigrio Pedro de Alcntara deixou registrado, no Livro de Tombo da parquia de Russas, referente a este ano, que os administradores pblicos haviam transformado os seus mandatos em explorao demaggica com fins polticos inconfessveis. A partir das reconstrues que as memrias fizeram do passado, foi possvel voltar no tempo e aprofundar algumas das experincias que foram vivenciadas durante a seca de 1932. Para iniciar, pois, a travessia da seca de 1932, tomo como primeira referncia as lembranas que o Sr. Pedro das Neves guarda desse acontecimento vivido por ele aos sete anos de idade. Ao longo de nossa travessia, o velho Pedro das Neves foi fazendo desfilar continuadamente o cosmorama do seu passado, sem, no entanto, perder seu elo de ligao com o presente. A maneira pela qual construa
regional para ser um problema de carter nacional que exigia uma poltica planejada que permitisse um combate permanente ao flagelo. Esta naturalizao da regio como espao da seca e do atraso, tornou-a dependente das esmolas institucionalizadas atravs, sobretudo, dos recursos destinados para o combate seca. Cf. Durval Muniz de Albuquerque Jr. A Inveno do Nordeste e outra artes. op. cit. p. 74. 332 Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 117. 226 sua narrativa causou-me sempre uma feliz impresso, pois falava sempre com tanta veemncia e valor que parecia colocar a prpria alma em cada palavra e em cada gesto que fazia; como se estivesse procurando dar voz ao prprio corpo e dar um corpo, uma cor, um cheiro e um calor prpria voz. Assim, seu pensamento foi procura do passado, sem, contudo, demorar-se muito para encontrar seu pai saindo para ir trabalhar na construo da rodagem, uma obra de emergncia que, durante a seca de 1932, ocupou a grande maioria dos homens da regio do Baixo-Jaguaribe, alm de um considervel nmero de crianas do sexo masculino. Sobre essa imagem, imediatamente se sobreps a da sua me, coitada, comprando umas coisinhas na venda do finado Bileu para o pai pagar, quando voltasse do trabalho depois de um ms ou at mais de ausncia. Era uma poca de muitas dificuldades, cuja distncia no tempo parece no ter sido suficiente para impedi-lo de continuar sentindo o cheiro do sabo e ouvindo o som que sua me fazia lavando as roupas na casa do finado Z de Castro, um home que tinha mais uma condiozinha na regio. Como tambm no foi suficiente para apagar de sua memria a imagem do seu irmo mais novo, em sua companhia, pelos terreiros comendo aqueles miolinho de pau branco. Contudo, imperioso dar-lhe a palavra para que ele mesmo possa, com seu jeito prprio de falar, contar sua histria revelando os sentidos e os sentimentos que a rememorao de seu passado fez ressurgir novamente em seu corao.
Ento, o meu pai era muito pobrezim; tinha sete filho e as coisas era muito difcil. Ento, em trinta e dois, houve uma seca medonha, trinta e dois. No havia nada que o pobe comesse, e os pobe era tudo morrendo de fome. Aqui nosso chefe, com os poder de Deus, era o finado Bileu, nesse tempo pai do Dr. Manoel de Castro, n? Ento, arrumou sirvio a pelo Governo do Estado num sei como foi, e houve uma emergncia na Micaela, n? Os pobe saram, faziam aquelas turma daqueles feitor daqui e saram pa Micaela, pa ganhar dois mil ris por ms, n? E, esses dois mil ris que ele ganhava por ms, a mame, que era a mulher do papai, ficava im casa com ns. Comprava no finado Bileu aquelas coisinha, pa quando papai vier com aqueles dois mil ris pagar, aqueles dois mil ris. Mame ia, se fornicia... o que ela se fornicia, coitada?
227 Milho, milho pa ns cumer aquelas xiquinha de mi torrado em vinte e vinte... quato hora; fazia umas pipoquinha, n? A, ali ns cumia. Eu, mais um irmo mais novo que tinha, saia assim de manhazinha pos pau branco, caar aquelas caixa de pau branco. Tirava aqueles miolinho, quebrava na peda, ele tinha um miolinho dento a ns cumia at negoo de oito hora do dia. A, quando o sol esquentava, ns vinha pa casa. Chegava im casa, bibia um aguinha, pa esperar pa cumer aquele mi que mame dava pa ns cumer as pipoquinha; e, assim, era de vinte e vinte quato hora. Quando papai chegava, as vez ms, passava mais de ms, dois ms ele vinha c, n? Quando ele vinha casa, ele trazia aquele dinheirim, pagava no finado Bileu, que mame tirava esse miozim, um sabozim, uma coisinha que tirava, pagava. E, nisso a, trevessou a seca de trinta e dois. Eu, buchudim, talvez eu tivesse uns cinco ano, n? Vamo na hipte que eu tivesse mais, que vinte e cinco pa trinta e dois, n? Tinha sete ano, exatamente, sete ano. Mas, era como se diz, um buchudim que num tinha esforo de nada, n? Mau passado, coitadim. E a mame, deixava ns im casa e saa na casa de um home que tinha mais uma condiozinha, um velho, o finado Z de Castro, n? Batia roupa l no finado Z de Castro, desse pessoal, a mame ganhava uma coisinha. A, quando era de tardizinha, ela trazia as vez uma sobrinha de cumer, uma coisinha pa ns, ns cumia. Ela ganhava aquela minchariazinha, pa ir ajudando as coisa. E, assim, tirou a vidinha dele e a nossa com os poder de Deus. Foi desse jeito! 333
Obedecendo a um intervalo que geralmente variava entre uma semana, quinze dias, um ms, ou at mais, aqueles que trabalhavam na construo da rodagem, depois que recebiam a mercadoria no fornecimento, colocavam-na sobre a cabea e se dispunham a vencer, a p, as lguas de distncia que os separavam da famlia, que, muitas vezes, s tinha a macambira como alimento. Entretanto, havia casos em que a famlia ficava sem receber ao menos uma notcia daqueles que se aventuravam no trabalho da rodagem. Foi assim que D. Ana Francisca do Esprito Santo, 94 anos, diz ter ficado quando seu marido foi pra uma rodage, nesse mundo, pa banda de Chor. Tendo em vista a distncia que separa o atual municpio de Quixer e a cidade de Chorozinho ser de aproximadamente 150 km, e dada a escassez de transportes poca, possvel imaginar o grau de dificuldade enfrentada pelo esposo de D. Ana Francisca para enviar-lhe, no apenas notcia, mas, sobretudo, alguma ajuda em dinheiro ou em gneros alimentcios. Enquanto isso, sem poder receber qualquer ajuda do
333 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
228 marido D. Ana Francisca e suas duas filhas pequenas alimentavam-se, muitas vezes, da macambira que seu pai lhe levava num jumentim que tinha.
Em trinta e dois eu j tinha dois minino. Tinha essa e outa, que foi encostado a ela. Que hoje, t com a cabea branca do jeito da minha. E o home, foi pra uma rodage, nesse mundo, pra banda de Chor. Foi trabaiar no Chor. E, eu, fiquei com esses minino piqueno, l fora. Mas, num era aqui na Serra no. Era... Eu morava l fora. E quando ele veio em casa, tava com dois ms que tinha sado, trabaiando por esse mundo. E, eu, num tive nutcia dele. Num tinha, porque num vinha ningum de l e nem ele tinha por quem mandar nutcia e nem mandar nada. Saiu e chegou quando... quando deu certo. (...). Mas, eu tinha pai. O meu pai, morava era aqui na Serra. Ele morava ali pra dento, perto daqui. Ele tirava macambira aqui, nesses mato, butava num jumentim que tinha e levava pra eu l no Quixer; pra eu tratar e comer a massa mais os minino piqueno, os dois fio que eu tinha. 334
Alm da macambira, aqueles que no dispunham de outros recursos que os possibilitassem ter uma alimentao mais saudvel tinham, no palmito da carnaba, o alimento sempre abundante; em razo da grande reserva de carnaubais existente na regio, especialmente nas reas de influncia dos rios Jaguaribe, Banabui, Quixer e Palhano. Todavia, era preciso, antes, pisar o palmito at o ponto de poderem fazer uma especie de papa grossa quase indigerivel. Segundo o Sr. Joo Ivo Xavier, prefeito de Russas, alimentar-se de palmito de carnaba mesmo que comer p de serra. 335
Quanto ao trabalho nas frentes de servios, que foram instaladas para a construo da rodagem, consistia, basicamente, em cavar barro para fazer os barreiro, ou seja, a elevao da rodagem. Assim, enquanto uma turma de homens ficava cavando os barreiros, outra ficava responsvel em transportar, costa de jumento, o barro necessrio construo da rodagem. O Sr. Raimundo Delfino Filho, disse ter passado nove meses trabalhando neste servio de cavar e transportar barro para construo da estrada que ligaria Fortaleza a Salvador. No final dos
334 Ana Francisca do Esprito Santo, 94 anos. Entrevista gravada na comunidade do Cercado do Meio, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000. 335 Cf. O Povo, 10 de maio de 1932. p. 02.
229 nove meses, no entanto, passou a trabalhar na construo da ponte que passa sobre o rio Palhano, na altura da localidade de Pedras, no municpio de Russas. Segundo o Sr. Raimundo Delfino, para o trabalho de construo desta ponte, foram constitudas sessenta turmas, contando, cada uma, com vinte e cinco homens. Durante trs noites e trs dias essas sessenta turmas se revezaram nos trabalhos de construo da ponte do rio Palhano. Abro, aqui, um pequeno intervalo na narrativa para poder expressar uma singularidade percebida no ato de rememorar do Sr. Raimundo Delfino. A memria pessoal que ele guarda da seca de 1932 revelou um indcio da fora com que a imagem de filho glorioso do Nordeste, construda em torno do ento Ministro da Viao e Obras Pblicas, o paraibano Jos Amrico, comps o imaginrio do homem simples do interior do Nordeste. Para o velho Raimundo Delfino, a obra de construo da rodagem s foi possvel graas a presso de cabra marcho - que Jos Amrico fez sobre o Presidente Getlio Vargas.
Nesse tempo, o gonvernador o Vestdio Vargas. J viu falar no Vestdio Vargas? (...). Ele num quiria butar trabaio pa pobe no. A, ele... Apareceu um... Eu num sei como o nome dele. Ele chamava-se Z Amrico, n? Veio dar uma visita aqui. (O Ministro Jos Amrico?)Jos Amrico, veio dar uma visita aqui, nis todo. A, ele fez uma visita e foi falar com Vestdio Vargas. Chegou l, falou pa ele butar sirvio. Ele disse, que num ia butar no. voc bota ou saia que tem quem bote. Foi logo dizendo assim. voc bota ou saia que tem quem bote. Que ele num quis butar, viu? A, voc bota ou saia que tem quem bote. A, o caba ismureceu (risos). A, butou esse sirvio de Furtaleza a Russas, aqui pra So Paulo (...). Eu sei que ele agentou, agentou nove ms. Foi fechada mermo, com quais um ano. 336
Embora nenhum outro entrevistado tenha feito qualquer tipo de referncia atuao do Ministro Jos Amrico, durante a seca de 1932, o rememorar do Sr. Raimundo Delfino nos faz pensar o quanto sua memria est profundamente marcada por uma representao onde apenas um nico poltico interveio na realidade, favorecendo os interesses do conjunto dos trabalhadores do campo. Ao contrrio das lembranas dos trabalhadores 230 urbanos marcadas pela presena de Getlio Vargas, ou mais precisamente pelos benefcios que afirmam ter alcanado, as imagens de bondoso que as lembranas do velho Raimundo Delfino, trabalhador da roa, guarda no so do Presidente Getlio Vargas e sim do Ministro Jos Amrico. Segundo Antonio Torres Montenegro, a articulao mais ampla de um acontecimento histrico vivido pessoalmente e o encadeamento histrico exigem ou requerem nveis de elaborao e explicao que muitas vezes no se realizam para o conjunto maior da populao. 337 Mesmo tendo sido o nico a fazer referncia ao contexto histrico da poca, o discurso do Sr. Raimundo Delfino abre uma brecha para pensarmos a respeito da histria e de como ela inventada de acordo com o lugar social do sujeito. Sendo uma inveno, sem contudo ser uma fico, pura e simplesmente, a histria um lugar sem encontro marcado, pois o lugar do inesperado, das incertezas, das surpresas... nesse labirinto, onde reinam indivduos astusiosos, tticos, que o historiador deve encontrar a histria para namorar, sem, contudo, deixar de estar prevenido para acompanh-la em sua mobilidade que leva a destruio e a reconstruo das utopias. Retomando, pois, a narrativa das experincias vividas pelos meus amigos de travessia durante a seca de 1932, principalmente aquelas relativa ao trabalho de construo da rodagem, seguirei dando curso atravs da memria do Sr. Antnio Eugnio, meu primeiro depoente. Segundo o velho Antnio Eugnio, durante a seca de 1932 as casas ficaram quais limpa de homem; s ficava mulher e aqueles bichinhos piquenos, que no pudia trabaiar na construo da rodagem. Foi assim que seu Antnio Eugnio, por ser o mais velho entre os filhos, j na idade de quatorze anos, deixou a cidade de Unio 338 na companhia do seu pai
336 Raimundo Delfino Filho, 87 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999. 337 Antnio Torres Montenegro. Histria oral e memria: a cultura popular revisitada. op. cit. pp. 92, 103 e 106. 338 Antigo topnimo atribudo ao atual municpio de J aguaruana. No entanto, utilizarei sua antiga denominao, pois, do contrrio, estaria cometendo uma impreciso histrica uma vez que s a partir de 30 de dezembro de 1943 o municpio recebe a atual designao. 231 para tentarem uma vaga de cassaco 339 na obra da rodagem no municpio de Russas. Saram a p de Unio e quando chegaram em Russas, ficaram arranchados em baixo de uma mangueira que tinha assim, bem pertim do fornecimento. Passaram o primeiro dia arranchados em baixo dessa mangueira, sem nada, com fome, porque num tinha com que comprar e num tinha quem desse. Todavia, a coisa melhorou muito depois que comearam, pai e filho, a trabalharem na construo da rodagem.
Comecemo de Russas, de Russas pa... em busca da Fortaleza. Fomos at as Pedras. A, quando chegou nas Pedras, ns voltemo. Os outos foram pa frente, ns voltemo. Comecemo de Russas de novo, pro Limoeiro; fomos at o Espinho. Do espinho pra l, j tinha um outo bocado de gente trabaiando pra l. A, foi o tempo que o inverno pegou, a do Espinho ns voltemo. 340
Por ser menor de idade, o Sr. Antnio Eugnio revelou que ganhava apenas um mil e quinhentos ris, era o que eu ganhava. Mesmo assim, disse ter sido cortado do servio por diversas vezes: quando dava f, cortava. Eu vinha pro fornecimento, me alistava novamente. A exemplo do Sr. Antnio Eugnio, durante a seca de 1932, outras crianas, com idade entre dez e quinze anos, tornaram-se responsveis pelo sustento de suas famlias. Embora, houvesse uma determinao ministerial, 341 que proibia o alistamento de menores nas obras de combate aos efeitos da seca, sob a alegao de ser extremamente oneroso para o Estado. No entanto, infligindo a determinao ministerial, os menores apresentavam-se nas frentes de servios que eram abertas na regio, com o objetivo de se alistarem para aumentar a renda familiar que era, em fins de 1932, de meros dois mil e quinhentos ris a diria. 342
A, em trinta e dois, eu era minino. A, veio um feitor, alistou eu pa trabaiar na turma de minino, s minino. A, ns fumo ganhando... Oi!
339 Expresso comumente utilizada para designar os trabalhadores das frentes de servios. 340 Antnio Eugnio da Silva, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da serra do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 341 Determinao ministerial expressa em telegrama n. 1.163, de 25 de novembro de 1932. 342 J os Batista Neto. Como uma luneta invertida (Interveno do Estado no Semi-rido nordestino atravs do discurso ideolgico da IOCS/IFOCS 1900/34). op. cit. pp. 256 e 257. 232 Ainda me alembro, ganhando 1$500, 1$500, t rendo? Era o dinheiro dos minino, 1$500. Eu trabaiei, trabaiei... A, quando foi com pedao, com um ms ou dois, a veio um fiscal, a butou ns l pa gua Fria. A, ns fumo pa gua Fria. O feitor, com uma ruma de minino medonha, vinte e cinco minino; era uma copa de minino medonha, tudo brincando. A, quando ns chegamo l, s trabaiemo dois dias. A, veio outo fiscal, cortou o que foi de minino, cortou tudim. A, viemo simbora. A, cheguemo na Russa, a fumo tirar os ponto, t rendo? Eu ainda tirei mei saco de farinha, tirei carne via, tirei sabo, tirei aucar, tirei a rapadura, fiz uma arrumao medonha, t rendo? Da, butei no carro e truxe pa c. Nesse tempo, ns morava no Brito, incostado na Passagem. (Passagem de Pedras, era como chamava-se o atual municpio de Itaiaba). 343
Apesar dessa determinao ministerial, a direo da Inspetoria, pressionada pelas famlias alistadas, resolveu, por conta prpria, ignorar a referida determinao de 25/11/1932. Com isto, passou a alistar os menores cujas famlias fossem composta de no mnimo seis pessoas. Assim, diante da presso feita pelas famlias e da grande presena de menores nas frentes de servios, o Gabinete Ministerial resolveu acatar a posio tomada pela direo da Inspetoria. Segundo Jos Batista Neto, para se ter a importncia da medida, o percentual de menores sobre o total de alistados chega a representar 15% em toda a regio Nordeste. 344
Ao voltar para casa, depois de ter sido cortado pela ltima vez dos servios na construo da rodagem, o Sr. Joo Delfino encontrou sua famlia comendo piaba iscoteira, sem farinha que seu pai pescava durante a madrugada no rio Jaguaribe que , no seu dizer, o rio grande. Diante dessa cena, o menino Joo Delfino, voltando-se para o pai, disse: - Papai, c quer saber duma coisa, ramo simbora, ramo simbora pa l, chegar l o papai vai se alistar e vai trabaiar na rodagem. Aqui num o lugar da gente morar, no. O camarada cumer piaba iscoteira, sem farinha. Aqui num lugar no, rumbora. A, ele disse: - meu fi, mermo, nis vamo simbora. Quando foi no outo dia, se ajuntemo tudo e viemo simbora.
343 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 344 J os Batista Neto. Como uma luneta invertida (Interveno do Estado no Semi-rido nordestino atravs do discurso ideolgico da IOCS/IFOCS 1900/34). op. cit. pp. 256 e 257. 233 Conquanto fosse doloroso ter que abandonar suas moradias, a perda, por assim dizer, da esperana de poderem ser beneficiados com a assistncia advinda dos rgos governamentais, fazia com que muitas famlias camponesas tivessem a determinao de procurar, nas frentes de trabalho, um outro meio de sobrevivncia; mesmo que para isso, fosse preciso deixar, temporariamente, o espao vivido 345 onde muitas vezes nasceram e cresceram. Segundo os depoimentos colhidos, os caacos ficavam amontoados em barracas que eram cobertas apenas com ramas, com palhas, ou, quando muito, com lonas. No entanto, os pais que resolviam ir simbora para o beio da estrada levando toda a famlia, geralmente construam suas prprias barracas, como foi o caso da famlia do Sr. Joo Delfino.
, barraca de ramo. Cortava um bucado de ramo, cubria por riba, pronto. Cortava s as furquia, t rendo? Butava as travessa e butava a rama por riba, n? A, pronto; o camarada armava a rede e ia se deitar. Pegava sereno, pegava tudo.
Localizadas nas margens da prpria estrada de rodagem que estava sendo construda, esses abarrancamentos, por serem destitudos de qualquer infra-estrutura, contribuam, em grande medida, para a inobservncia dos hbitos de higiene cotidianos entre aqueles que se encontravam abarrancados. Os banheiros, por exemplo, ficavam bem prximos dos locais onde se encontravam construdas as barracas que abrigavam as centenas de trabalhadores. Segundo o depoimento do Sr. Joo Delfino, em virtude da seca, no havia pastagem para alimentar a tropa medonha de jumento que eram utilizados no trabalho da rodagem. Assim, quando era no perodo da noite, os jumentos faziam, da fava que os cassacos tinham por alimento dirio, sua refeio noturna.
345 O conceito de espao vivido, que ser melhor discutido na terceira parte deste trabalho, tomado de emprstimo a Armand Frmont. A Regio, Espao Vivido. op. cit. 234 Agora o cumer desses jumento, voc acha at graa, era a fava que a gente cumia, t rendo? Voc sabe, cumer, num tinha; a, o pessoal butava pra fora, nera? Era muita gente. De noite, piava naquele cagadeiro, l onde fazia o sirvio. De noite, a gente s via era o estalo t, t, t -, os bicho istalando as fava nos dentes, t rendo? E o istrumo do pessoal, era a fava purinha.
Quanto ao estado sanitrio da regio, no poderia ser dos melhores. Entre os fatores que contriburam diretamente para o surgimento de algumas doenas que passaram a grassar, sobretudo, nas frentes de servios, destacam-se: a recrudescncia da estao seca, a grande concentrao de pessoas, a inobservncia de hbitos higinicos e a falta de uma assistncia mdica as centenas de pessoas que se achavam abarrancadas. Dentre as doenas que foram lembradas, alguns entrevistados recordaram com mais pavor a epidemia de paratifo, em razo desta ter ceifado a vida de diversas pessoas, como ressaltou o Sr. Euclides ngelo Cordeiro.
Trinta e dois, entrou uma seca muito grande, muito ruim. A, ele (referindo-se ao pai dele) mandou ns trabaiar na estrada, nessa BR, l do Chor, na dirmatao dela. Vinha na dirmatao. Deu uma impidimia muito grande, l morreu diversas pessoas. Aquela tal de paratifo, uma doena que tinha, matava dipressa. Tinha uma febre medonha. 346
Segundo D. Altina de Moura Lima, as pessoas ficavam impossibilitadas de andarem em virtude da virulncia com que a doena se manifestava. Em razo da epidemia ter feito um grande nmero de vtimas, passou a ser comum ver-se, pelos caminhos, as vtimas da doena serem transportadas em redes; principalmente, aquelas que se encontravam trabalhando na construo da rodagem.
Vixe Maria! Morreu muita gente. Na rodage mermo, morreu muita gente. E veio passar muita gente duente dacul de baixo, das Flores, passava gente em rede que num pudia mais andar, num ? A, diciam com eles em rede. 347
346 Euclides ngelo Cordeiro, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 347 Altina de Moura Lima, 96 anos. Entrevista gravada no Stio Lima, no municpio de So J oo J aguaribe, no dia 11/04/2000. 235
Ademais, o descaso com a questo social, por parte dos rgos responsveis em gerenciar essas frentes de servio, era absoluta. Alm do atraso no pagamento dos trabalhadores das frentes de servio Diz que l, chegava aqueles dia que era pra haver paga, num aparecia dinheiro e deixa esperar pra quando aparecer, pra quando aparecer 348 -, verificava- se, ainda, a agiotagem e a corrupo na distribuio de vales e na venda de gneros alimentcios. 349
Segundo Frederico de Castro Neves, referindo-se seca de 1958, as verbas de emergncia, que eram liberadas a fundo perdido, foram permanentemente manipuladas por polticos, administradores ou comerciantes com o objetivo de tirar proveito poltico ou econmico da situao de crise.
(...). A chamada indstria da seca desenvolve-se em ritmo acelerado durante a seca de 58, em que a mobilidade dos retirantes era uma ameaa aos currais to zelosamente guardados pelos cabos eleitorais. O medo de perder os votos fazia com que os polticos se desdobrassem para conseguir obras ou algum donativo que assegurasse a presena dos seus eleitores nos municpios de origem. As obras valorizavam as terras atravs de um sistema de estradas e abastecimento dgua ou irrigao, mas nada era cobrado ao proprietrio, que, ao contrrio, deixava de pagar os salrios aos seus empregados, j que estavam todos alistados no DNOCS ou DAER e recebiam salrios do governo. Assim, um crculo vicioso se mantinha e tornava as reas do semi-rido cada vez mais vulnerveis seca. 350
Afora a experincia vivida por aqueles que se dispuseram a enfrentar os trabalhos na construo da rodagem, outras formas de trabalho foram experienciadas durante a seca de 1932, sobretudo, por aqueles que permaneceram em seus locais de origem. O Sr. Joo Pereira Cunha, por exemplo, revelou que, antes do seu pai ir trabalhar
348 Ana Francisca do Esprito Santo, 94 anos. Entrevista gravada na comunidade do Cercado do Meio, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000. 349 Cf. J os Batista Neto. Como uma luneta invertida (Interveno do Estado no Semi-rido nordestino atravs do discurso ideolgico da IOCS/IFOCS 1900/34). op. cit. p. 260.
350 Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. pp. 185 e 186. 236 na rodagem, o ajudava no corte da macambira. Contudo, depois que seu pai, acompanhado dos dois filhos mais velhos, resolveu alistar-se na obra de construo da estrada, j em fins de 1932, seu Joo, juntamente com seus irmos mais novos, ficaram em casa trabalhando na produo de trana de palha de carnaba, enquanto sua me costurava os chapus para serem vendidos; possibilitando-os, assim, comprar, no dizer do velho Joo Pereira, algum alimentozim pa gente cumer.
Ele [referindo-se ao pai] ia tirar macambira, me levava. Mas, eu que num trabaiava quais nada ainda. Juntava aquelas macambira. Tirava, e eu saia juntando a dento do saco. Mas, que eu num trabaiava no. Em trinta e dois, no. Eu num fui no, fiquei im casa mais mame fazendo trana, viu? E meus irmos mais piqueno, viu? Fazendo trana de chapu e mame costurando. Ns vendia e comprava algum alimentozim pa gente comer. (...). A, foi a rodage. Ainda passou quato dias e meio l, viu? Na rodage. Carregava muita terra im costa de animal, viu? Meu pai, sim senhor! Meu pai. Ele e dois irmo mais vio, meu. (...). A, era chuva de dia e de noite l, (...) trinta e trs. A, foi, ele vei simbora (...) pa prant roado. 351
Apesar do rigor que os poderes pblicos, principalmente atravs da imprensa, atriburam seca de 1942, que nos faz v-la como um acontecimento homogneo, os relatos de memria de meus amigos de travessia possibilitaram-me, por sua vez, perceber a pluralidade de sentidos que as vrias experincias vividas atriburam a este acontecimento - seca - no ano de 1942. Como ressaltou o Sr. Eduardo Soares de Lima, 352 as secas so conforme os tempo, conforme as condies da gente. Assim, ao mesmo tempo que para alguns a seca representou um momento de extrema misria, para outros, como o Sr. Pedro das Neves, foi uma beleza.
Quarenta e dois, eu me lembro. Que a seca de 42, pra mim, foi uma beleza. , a seca de 42 eu num passei penria, no. Graas a Deus, eu tinha as coisa, n?. 353
351 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada no Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 352 Eduardo Soares de Lima, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, 26/08/1999. 353 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000. 237
Para o Sr. Raimundo Delfino Filho, no entanto, se a seca de 1942 no chegou a ser nenhuma beleza, deu, ao menos, para ir se virando com o que se conseguiu colher na roa, haja vista ter cado algumas chuvinhas na regio; diferentemente da seca de 1932, quando teve que se alistar no trabalho da rodagem e passar a viver, juntamente com seus pais e irmos entre eles o Sr. Joo Delfino Bezerra , em uma barraca coberta com um bucado de ramo nas margens da estrada que estava sendo construda. Por outro lado, seu Raimundo Delfino ressaltou que no mato, nesse tempo, tinha caa e no rio tinha peixe.
Quarenta foi inverno, quarenta foi inverno. Quarenta e dois foi iscasso, seco, seco. (...). Dava aquela chuvinha, a gente prantava aquelas coisinha, a, pegava aquela coisinha e ia se virando. Deus dava um jeito da gente passar. Se virava no rio, pescando no rio; se virava no mato. No mato, nesse tempo, tinha caa e no rio tinha peixe. 354 [Caracterizar o espao morava prximo ao rio]
Tomando, pois, como referncia apenas esses dois fragmentos de memria, ressalto que, de modo geral, a seca de 1942 no significou, para os entrevistados, um tempo de muitas dificuldades, sendo, portanto, caracterizada como um simples ripiquete. Entretanto, como j foi assinalado, as experincias vividas no serto, sobretudo as relativas aos anos de secas, no podem ser homogeneizadas. Nesse sentido, o Sr. Francisco Vieira da Silva revelou que em virtude das dificuldades que enfrentou na seca de 1942, resolveu emigrar, 355 sozinho e a p, para o Estado do Piau. Antes, porm, trabalhou na construo de uma rodagem entre as cidades de Iguatu e Campos Sales ambas no alto Jaguaribe. Em sua narrativa,
354 Raimundo Delfino Filho, 87 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999. 355 Segundo Caio Prado J r., o processo migratrio nordestino se tornar particularmente ativo depois da grande seca de 1877-80, que despovoar o interior nordestino do Cear at a Bahia. As regies beneficiadas por esta emigrao sero o vale amaznico (graas extrao da borracha), o sul da Bahia (produo do cacau em progresso); finalmente e sobretudo S. Paulo, o grande plo de atrao. Cf. Caio Prado J r. Histria Econmica do Brasil. 7 ed. Atualizada, So Paulo: Brasiliense, 1962. p. 208. Citado por Denise Aparecida Soares de Moura. Andantes de Novos Rumos: a Vinda de Migrantes Cearenses para Fazendas de Caf 238 seu Francisco Vieira destacou, ainda, que, alm da seca, vivia-se, em 1942, um tempo de guerra uma guerra da Alemanha -; que muito dificultou sua travessia pelas estradas a caminho do vizinho Estado do Piau.
Era, foi seca horrorosa. Sa daqui pro Piau. No, ainda trabalhei na rodage a entre Iguatu e Campos Sales. Ainda trabalhei, uns dois ms nessa rodage. Da, eu fui pro Piau; sozinho. Era guerra, seca, o maior trabalho pa voc passar nas barreiras. Home num passava, rapaz novo num passava de jeito nenhum. Uma guerra da Alemanha, em quarenta e dois. Foi comeada em trinta e seis, foi acabada em quarenta e quato. Dez ano de guerra. 356
No Piau, seu Francisco Vieira permaneceu por seis anos. Durante todo esse tempo, morou em muitas currutelas e trabalhou na extrao da manioba, um pau que voc furando o p dele, ele vaza leite; o qual, segundo seu Francisco, utilizado como matria prima para fazer burracha. Do Piau, vazei pa Goiais de p. Passava o dia caminhando e noite arranchava nas fazendas, s de noite. No Estado de Gois, por sua vez, seu Francisco chegou a trabalhar numa mina de mica mica, um minrio de isolao; qualquer aparei que tiver luz eltrica, tem que ter ele - e a morar em vrias cidades, entre as quais destacou Porto Nacional e Miquelndia, como tendo sido as que mais gostou. Depois de cinqenta e um anos morando fora do Cear, seu Francisco retorna a Tabuleiro do Norte, no ano de 1993, j com a sade bastante debilitada. Alm de ser uma vtima do diabetes, seu Francisco revelou ter um caroo que, segundo ele, j tinha lhe tomado a boca do estmago todo.
Paulistas em 1878. In. Revista Brasileira de Histria dossi: travessia: migraes. So Paulo, ANPUH/Humanitas Publicaes, vol. 17, n 34, 1997. p. 130. 356 Francisco Vieira da Silva, 75 anos. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000. Segundo Frederico de Castro Neves, as formas de relacionamento envolvendo retirantes e autoridades, estabelecidas pelo regime do ps-30, iro permanecer, pelo menos em alguns aspectos, na seca de 1942. Todavia, a possibilidade do Brasil envolver-se na Segunda Guerra Mundial, apresentava-se como um elemento a fornecer caractersticas peculiares a este momento. Decerto, isto favorecia uma interveno direta no mercado de trabalho e alimentos, a exemplo do que ocorrera em 1932. Para Neves, o clima de guerra no deixou de favorecer o emprego de solues autoritrias, por parte do Estado, no enfrentamento dos efeitos polticos, sociais e econmicos de mais uma crise climtica no Nordeste. Cf. Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 141.
239 (Foto 26 Sr. Francisco Vieira Aldeia Velha Tabuleiro do Norte)
Deitado em uma rede, com a aparncia fsica denotando o estgio avanado da(s) doena(s), o Sr. Francisco falava com intervalos que eram, quase sempre, intercalados por excessos de tosse. Confesso, que cheguei a ficar arrependido de ter iniciado a entrevista, que no se prolongou por muito tempo. Certamente, foi a experincia mais sofrida que vivenciei em toda a travessia que realizei pelos sertes do Baixo- Jaguaribe. Ao retornar sua casa em meados do ms de julho de 2001, fui informado que seu Francisco Vieira da Silva havia falecido em maio do ano de 2000; portanto, um ms depois de me ter concedido o direito de registrar suas memrias. Em termos estatsticos, a seca de 1958, em relao seca de 1932, registrou um maior percentual referente populao afetada que subiu de 9%, em 1932, para 13% em 1958. Segundo Frederico de Castro Neves, a seca de 1958 alcanou tamanha repercusso que no s transformou a chamada questo regional em problema nacional, como, a partir de ento, o Nordeste passa a se configurar como um problema de segurana nacional. 357
Conquanto a seca de 1958 tenha tido uma grande repercusso em todos os setores da sociedade, ganhando, assim, o estatuto de grande seca, nos relatos de memria de meus amigos de
357 Cf. Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 179. 240 travessia, esta seca, ao mesmo tempo que significada pelo sofrimento, aparece como a significao, por assim dizer, de um tempo marcado pela normalidade de suas vidas. Segundo o velho Antnio Eugnio, que passou a seca cortando e vendendo macambira, o ano de 1958 foi seco, mas era boa.
A seca de 58 foi pra ns... foi muito boa. Foi seco, mas era boa. As coisa era favorvel. Feijo a pra comprar no faltava, carne no faltava, peixe era o que voc queria tinha. E foi uma seca boa que a gente passou, foi 58. Achei ela ruim no. 358
Das secas passadas, D. Estelita Crispim Gomes revelou que tem mais lembrana da seca de 1958. Contudo, em seu relato de memria, D. Estelita no ressaltou as agruras que normalmente aparecem descritas nos relatos sobre secas. Ao contrrio, D. Estelita fez questo de dizer que em 1958 foi muito bom.
Cinqenta e oito eu tem bem lembrana, muita lembrana mermo. At um resguardo eu passei, im 58. No 58, ns morava no Poo do Barro, foi a onde nasceu a me desse minino. Cinqenta e oito foi muito bom, muita gente achava rim; mas, eu achei bom. Porque pelo meno de peixo ns cumia munto, todo dia munto peixe; gua, que o aude era chei. Era uma beleza! 359
Se tomarmos como referncia a literatura, os jornais, os discursos polticos, e tantos outros que associam a seca a um tempo de misria e desgraa as mais diversas, estranho ver e ouvir camponeses - como o Sr. Antnio Eugnio, como D. Estelita... - falar de seca como muito boa ou de ano seco como muito bom. Que significado podem ter essas afirmaes, ainda mais quando so feitas por sujeitos que j haviam atingido a maioridade, ele com quarenta e ela com vinte e oito anos de idade, no sendo, portanto, mais nenhuma criana, nem mesmo adolescente? O que pude inferir, no entanto, da leitura que fiz dos vrios depoimentos produzidos na arte de rememorar o passado,
358 Antnio Eugnio da Silva, 81 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 14/09/1998. 241 que o inverno, para esses velhos camponeses, fartura independente da incidncia ou no das chuvas. O depoimento a seguir, do Sr. Joo Pereira Cunha, emblemtico no que diz respeito a essa associao fartura/inverno. Por outro lado, ainda, preciso considerar, sobretudo na experincia vivida por D. Estelita, a presena do aude que proporcionava, alm da fartura de gua e de peixe, a prtica da agricultura de vazante. Foi dando nfase as artes de fazer que manifestam igualmente a que ponto a inteligncia indissocivel dos combates e dos prazeres cotidianos que articula 360 - que o Sr. Joo Pereira Cunha recordou a seca de 1958. Segundo o velho Joo, na seca de 1958, embora os bichos no tenham tido o gosto de comer uma fia verde, em sua casa no subero o que foi priciso.
i! Cinqenta e oito, pr seca como eu t dizendo, bicho num teve gosto de comer uma fia verde. Mas, eu tratava as vacas de meu cunhado com macambira cunzinhada com sal, viu? Era leite... Todo dia quando o Sr. chegasse na minha casa, o Sr. quisesse jantar qualhada, tinha, viu? Sobrava, tinha seis minino j, j seis fi naquela poca, eles cumia leite, mas sobrava leite a. Meus fi num subero o que foi priciso, eu cumprava as coisa era de saco: saco de farinha, saco de acar e essas coisa toda. Criava um... um... Tinha um criar de bode at bom; a muier criava muita galinha, ns criava... ns criava porco, quem que sabia o que era priciso, n? Graas a Deus, no. 361
Embora a seca tenha para o velho Joo Pereira o significado de muito sofrimento, sua fala deixa transparecer as prticas de reapropriao do espao vivido quando diz: agora aqui a gente toda vida distroce seja o que for. Essas artes de fazer, mesmo remontando as astcias dos antepassados mais distantes, no podem estar dissociadas das experincias por ele vividas. Sem poder trabalhar na agricultura, em virtude da falta de chuvas, seu Joo Pereira passou a seca de 1958 trabalhando no corte
359 Estelita Crispim Gomes, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999. 360 Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. op. cit. p. 47. 361 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade do Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 242 da macambira para alimentar o gado do seu cunhado e, sobretudo, para ser vendida aqueles que, nas vrzeas, trabalhavam no fabrico da cera de carnaba.
A seca? Rapaz, o que significa s muito sofrimento (risos). Agora aqui a gente toda vida distroce seja o que for. Cinqenta e oito foi a seca mais seca que deu aqui nesse lugar, mais que num deu... o mato que nasceu, o mato uma foinha, mais o mato que nasceu no cho num ficou desse tame a, viu? (...). Seco, mais foi seco. Mais tambm tem uma coisa, ningum soube o que foi preciso no senhor. Naquela poca, quinhentos mil ris, viu, tivesse quinhentos mil ris pa voc ir a rua fazer a feira, pudia levar um jumento bom que voc... voc... voc num trazia a mercadoria que cumprava, viu. Todo os domingos eu tinha quinhentos mil ris. Eu vendia macambira a um home l dos Patos, Figueredo, iam buscar onde eu morava. Ele vinha buscar quarta saa quinta, vinha sbado pra sair domingo (...) l de frente da minha casa. Comecei a fazer um (...) justo com ele, setenta arroba pu semana. Trinta e cinco, sete, na quarta e quarenta no sbado. 362
Conquanto soubesse que sozinho no reunia condies para cumprir com o compromisso que assumira junto ao Sr. Figueredo, seu Joo Pereira resolveu fazer um justo com seu cunhado e compadre Z para juntos cortarem, na caatinga, a quantidade de macambira que havia negociado com o Sr. Figueredo.
Eu sabia que eu num tirava essa macambira, mais tinha meus cunhados. A, falei com o cumpade Z (...). (...) compade Joo nis tira. O gadim dele tambm pouco nesse tempo, nis tira. Pouco mais, haja gente querendo entrar no nosso justo, entrar, entrar. E o home dizia, o home dizia assim: - tanto vocs tire macambira, como eu compro. Rapaz, quando bateu o inverno pa cinqenta e nove, quando bateu o inverno, eles tava levando j duzentas e tantas arroba de macambira pu semana daqui, daqui. Mais tinha uma coisa, quando bateu a chuva num pricisou mais de macambira. Ele j tava levando duzentas e tantas arrobas de macambira. E eu dizia a ele: - Luiz, na semana tu num vai se preocupar com dinheiro no. Basta no sbado, quando tu vinher, tendo o que bom pa gente fazer a feira do domingo certo, certo. Todos os domingo nis tinha aquele total.
Desta forma, durante a seca de 1958, segundo o depoimento do Sr. Joo Pereira Cunha, os camponeses que moravam nas vrzeas do rio Jaguaribe ocuparam-se do corte da carnaba para o fabrico da cera; enquanto, aqueles que moravam na serra ocuparam-se
362 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada no Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 243 do corte da macambira, que era vendida para o consumo do gado daqueles que se beneficiavam da cera da carnaba.
Nis aqui, eu achava bom. Eles l se virava nas carnabas, cortava carnaba, fazia cera, e trazia e dava o dinheiro pa comprar macambira a nis, viu? (risos). Qualquer maneira, nis se refrigerava da carnaba tambm.
Portanto, essa dupla ttica de explorar a natureza do lugar, revela que a seca no chega a paralis-la de um todo. Assim, mesmo no sendo possvel o desenvolvimento da agricultura, por ser a atividade mais comprometida com a falta de chuvas, a natureza em volta lhes oferecia outras possibilidades de poderem adquirir recursos que os permitissem, todos os domingos, ir a rua fazer a feira. O Sr. Zacarias Francisco de Almeida, por sua vez, revela que j trabalhou muito cortando madeira e fazendo carvo para ser vendido na cidade de Russas. Conquanto esse trabalho lhe fosse comum tambm no perodo do inverno, ele revela que em poca de seca representava um bom inverno.
Hoje im dia eu... Pra mim eu num estranho mais no, n? Agora no comeo no, nas seca a eu estranhei muito que a gente num tinha custume, n? Nem nada. Hoje no, hoje a gente tudo... a gente vim a gente faz, n? Trabai de machado, cortei muita madeira de machado, munta mermo, fazia caivo pa vender. Era no vero e no inverno, j fiz muito. (...). Tudo na seca, agora eu fao como o outo, era um inverno bom. Porque tudo que a gente ia fazer tinha, tinha vantage. O camarada ganhava pouco, mais naquele pouco chegava pa fazer tudo, porque tudo tinha com fartura. 363
Atravessado pela idia de fartura, pois tudo que se fazia tinha vantage, o discurso do velho Zacarias est construdo em oposio s frugalidades atuais. Este tempo de fartura reimaginado pelo velho campons, metaforicamente transforma a seca num inverno bom, por ser sinnimo de fartura e no simplesmente de chuva.
363 Zacarinhas Francisco de Almeida, 84 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. 244 Por outro lado, ainda, muito mais do que mostrar, atravs do seu discurso, que a seca no paralisa todas as atividades produtivas do homem campons, seu Isac rompe com a idia de que ela uma permanncia: pra mim eu num estranho mais no, n? Agora no comeo no, nas seca a eu estranhei muito que a gente num tinha custume, n? Um outro depoente, o Sr. Amaro Jos da Silva, disse no ter se aperriado na seca de 1958. Segundo seu Amaro, na medida em que iam secando os poos no rio Jaguaribe, as pessoas que moravam mais prximas as suas ribeiras aproveitavam para fazer suas plantaes. Esse tipo de prtica agrcola, conhecida como lavoura de vazante, comumente desenvolvida no leito dos rios e nas margens dos audes medida que o nvel das guas vai baixando. Aproveita-se, assim, tanto a umidade profunda do terreno como o limo fertilizante que fica depositado no solo aps o recuo das guas.
Em 58, teve muita gente aqui, mas num se aperriemo demais, porque essas terras onde vai pu rio, (...) tinha um poo, a, o poo foi secando e a gente prantando. Inda deu muito capim. Peixe a, peixe mido, tinha peixe grande no, era peixe mido. 364
Portanto, os significados que os depoentes atriburam seca, atravs das imagens que descreveram em suas narrativas, estabelecem um contraponto com as imagens que a viso tradicional da seca cristalizou em torno do serto. Segundo essas imagens, em perodo de seca, o serto transforma-se num lugar sem movimento e num espao de desolao e de paralisia tanto da natureza como do prprio homem, j que a produo e o trabalho que os vinculam ficam paralisados. 365 Todavia, essa memria da agonia, da morte lenta de pessoas e animais em decorrncia da sede e da fome to fortemente explorada pela literatura naturalista - uma memria que pouco
364 Amaro J os da Silva, 90 anos. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferro, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. 365 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. pp. 92 e 93. 245 aparece nas histrias de vida daqueles que me guiaram pelos sertes do Baixo-Jaguaribe. Segundo a viso tradicional, a seca encerra todas as manifestaes de alegria e de canto dos camponeses na medida em que ela representa o lugar da tristeza. Assim sendo, a seca no significa apenas falta de gua, apresentando-se como sinnimo do choro, do desespero, da paralisia e da mudez. 366
Referindo-se ao discurso literrio, Durval Muniz diz que embora as obras que compe a literatura regionalista tenham vises distintas acerca de algumas questes, elas guardam entre si uma unicidade em relao imagem que passam da seca. Procurando apreender essa unicidade, Muniz revela que a seca abordada a partir do ponto de vista individual, representado nos vrios personagens que participam da trama das histrias. Portanto, a grande preocupao dos literatos era mostrar as repercusses ao nvel da psicologia individual, sem, no entanto, interessar as condies sociais que o indivduo pertencia.
A seca abria um vcuo de afeies, era a quadra das separaes, dos desencontros, de desgraas por amor, de violncia, da morte de entes queridos. A seca surge neste discurso literrio como aquele fenmeno que d origem a sentimentos como a saudade e a inveja e, ao mesmo tempo o momento de ocorrncia de injustias, de doenas, etc. Portanto, a seca vista aqui sobretudo pelas suas repercusses para o ser humano, tomado como indivduo na sua totalidade, material e espiritual. 367
H, todavia, uma enorme tenso se compararmos essas imagens que foram exaustivamente descritas pelos literatos do final do sculo XIX e incio do sculo XX, nas quais a seca provoca um vcuo de afeies e representa a quadra das separaes, dos desencontros, de desgraas por amor, de violncia, da morte de entes queridos..., com os relatos de memria dos entrevistados.
366 Idem, ibidem. p. 97. 367 Idem, ibidem. p. 229.
246 O Sr. Eduardo Soares de Lima, por exemplo, ao atravessar em sua narrativa os acontecimentos que experienciou durante a seca de 1932, quando trabalhou na construo da rodagem de Pacajus a Chorozinho, recordou, numa mesma relao, a seca, a morte e a festa.
Trinta e dois, eu me lembra munto como fosse hoje, num lugar chamado Bondu, Bongu, nis trabaiava a eu vi munto assim: uma barraca aqui, outa ali, outa acol, na beira da estrada, n? Um defunto aqui, uma festa ali; um defunto acol, uma festa acol; e era o pau rodando, uns cantando excelena, que hoje nem uso mais, e o tambor vi rodando e o pessoal danando, ligavo nada no. Eu vi munto isso em cinquen... em trinta e dois, ali naquele bicho... do Pacajus pra c, num lugazim que chama Bangu. Era seca e morte e festa, s o pessoal morrendo de doenal medonho. Morria... morreu munta gente em cinquenta... em trinta e dois. 368
De acordo, pois, com o relato de memria do seu Eduardo, possvel inferir a existncia de outras prticas vividas pelos camponeses em perodos de seca, que no aquelas descritas por Durval Muniz a partir das referncias oferecidas pelas obras literrias que tomaram por tema a seca. Outros relatos de memrias revelaram, ainda, que independente do tempo de seca, o serto da alegria permanece vivo atravs do canto, das brincadeiras e das festas. Nesse sentido, coloco mais uma vez em suspeita as interpretaes que representam o serto enquanto lugar-comum da seca e da tristeza. Pois, como to bem ressaltou o Sr. Amrico Simo de Freitas, o serto das festas era o serto de todo tempo.
Era de seca, de inverno, num tinha essa histria no. Im trinta, nis passemo no Barraco, foi um ano escasso, toda noite tinha uma festa (risos). Im trinta, toda noite tinha uma festa numa casa via que tinha l im riba do alto, toda noite nis brincava. Um tio meu era tocador, eu ajudava a ele bater um bumbo quando havia. Sei que era bom! 369
Ao recordar a seca de 1958, outra entrevistada, D. Francisca Delfina da Costa, revelou que, enquanto ficou em casa
368 Eduardo Soares de Lima, 78 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 28/08/1999. 369 Amrico Simo de Freitas, 79 anos. Entrevista gravada na Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 247 agarrada na trana da palha de carnaba, na companhia dos filhos menores, seu esposo e os dois filhos mais velhos foram trabalhar no aude do Barraco 370 em Russas. Porm, o que mais me chamou a ateno no depoimento de D. Chiquinha foi o fato de ela ter ressaltado que seu esposo ainda vinha era cantando, de longe ns avistava a voz dele cantando, quando vinha aos sbados em casa trazer a mercadoriazinha.
Passava a semana l. Quando era dia de sabo, ele mandava os minino, os dois minino, o Raimundo e o finado Joo; os minino vinha. Quando era na outa, os minino ficava e ele vinha de ps, de ps. Pois era meu fi, ainda vinha era cantando, de longe ns avistava a voz dele cantando, ele vinha cantando. Trazia a mercadoriazinha; a fava, aquela fava preta, e carne via. Aquele arroz preto, chamava boga, um tal de boga. Essas coisa que trazia do Barraco. 371
De acordo com os depoimentos que foram sendo tecidos com os fios da memria de velhas e velhos camponeses, o serto das festas atravessa tanto o serto dos invernos quanto o serto das secas. Assim, podemos contradizer as imagens que tornam homognea, no tempo e no espao, as experincias camponesas nos perodos de seca. Como foi possvel perceber, o espao campons no representa simplesmente o espao da seca, da misria e da tristeza, onde todas as manifestaes de alegria so paralisadas. Embora reconhea que a memria possui um nvel imaginativo em que operam a inveno, o desejo e a fantasia, 372 no acredito que o passado recordado pelos camponeses entrevistados nesta pesquisa seja pura idealizao nem apenas uma maneira de demonstrar o descontentamento com o presente. Assim, atravs de suas memrias, meus amigos de travessia fizeram-me perceber que as
370 O aude de Santo Antnio, ou aude do Barraco, como mais conhecido na regio, teve suas obras iniciadas na seca de 1919. Na poca, segundo o Sr. Chiquinho Pitombeira, carregava-se gua l do Peixe im dois carro de boi para fazer o alicerce do aude. Entretanto, s em 1929, dez anos aps o incio das obras do referido aude, foram concludos os trabalhos de sua barragem; cuja disponibilidade de armazenamento, segundo informao obtida no jornal O Povo de 15 de maro de 1932 - p. 07, ficou na ordem de 36 milhes de m de gua. Ainda segundo o velho Pitombeira, na seca de 1932, fizeram o encascamento da parede do aude at o nvel da cota sete. E, em 1958, como j foi assinalado, promoveu-se o alinhamento da parede da barragem. 371 Francisca Delfina da Costa (Chiquinha), 87 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999. 248 imagens da fartura, da ventura, da alegria, enfim, da vida, no representam apenas um sonho, uma inveno da imaginao camponesa. Na verdade, ao mesmo tempo que essas imagens representam aspectos da realidade cotidiana do serto, so centrais na composio dos seus sentimentos e de suas sensibilidades. Conceber, pois, o serto apenas como o lugar da seca que paralisa a natureza e o prprio homem, como o lugar da fome e da sede, da tristeza e da dor, do sofrer e do morrer, significa esvazi-lo da sua historicidade. Desta forma, o serto dos bons invernos e, sobretudo, o serto das festas no mera idealizao de um mundo que s existe nos sonhos de velhos camponeses. Todavia, preciso deixar claro, ao fazer essa afirmao, que no estou desconsiderando o fato da memria ter a fora de transformar o passado naquilo que posteriormente gostaramos que ele tivesse sido, dando eco a cenas desejveis e silenciando as indesejveis. 373 Decerto, muitos dos depoentes ao recordarem o passado, sobretudo os momentos de seca, produziram um esquecimento em relao aos sofrimentos, na medida em que deram maior nfase aos momentos de alegria. De todo modo, a atividade da lembrana, ao se realizar atravs da multiplicidade dos tempos, foi estruturando o cotidiano campons tendo como uma de suas principais referncias as secas. A percepo destes momentos, que se cruzam temporalmente, tornou possvel trabalhar o passado a partir de um tempo marcado pelas secas, o qual se explicou e ganhou consistncia a partir de suas prprias vivncias. Portanto, como procurei demonstrar ao longo deste captulo, as elites nordestinas tiveram sempre o interesse em manter viva a memria das secas, da misria, da fome, do sofrimento e da dor. Por outro lado, como j foi assinalado, os camponeses demonstraram, atravs dos relatos de suas memrias, o quanto so mltiplos os
372 Durval Muniz de Albuquerque J r. Violar Memrias e gestar a Histria. op. cit. p. 45. 373 David Lowenthal. Como conhecemos o passado. op. cit. p. 98. 249 significados que guardam do serto e das secas. Desta forma, contrapondo-se a essa memria construda pelas elites, os camponeses mantm viva uma outra memria, que a memria dos bons invernos, do trabalho, da fartura, da alegria, das festas e dos amores poticos. Nesse sentido, preciso compreender que imanente memria da seca escondem-se estratgias polticas distintas. Mesmo sendo plurais as paisagens do serto das secas, confesso que sou tentado pelo desejo de continuar a travessia. No entanto, no podia prosseguir sem antes ter registrado suas reminiscncias, as experincias por eles vividas junto aos seus familiares e amigos durante as secas que marcam o tempo de suas vidas. Pois, a partir destas experincias vividas, destas imagens que as lembranas esculpiram do passado, que construo minha narrativa.
250
Segunda Parada: o campons e as enchentes. 374
O inverno mior do que a seca Raimundo Delfino Filho (Foto 27 inverno de 1999 - Chapada do Apod Jaguaruana)
O tratamento que a elite nordestina deu aos problemas da regio ao longo do sculo XX, e ainda continua dando, transformou a seca no mais importante elemento de identificao da regio, a qual,
374 Nesta travessia, onze foram os guias: Raimundo Nonato da Costa, Francisco Rodrigues Pitombeira (Chiquinho Pitombeira), Ana Francisca do Esprito Santo, Altina de Moura Lima, Onofre Augusto dos Santos, Maria Pereira de Almeida (Lili), Francisca Delfina da Costa (Chiquinha), Egilda Delfino Nascimento, Joo Pereira Cunha, Joo Delfino Bezerra e Jos Gomes Barbosa (Zeca de Raiel).
251 segundo o discurso regional, a responsvel pela desorganizao da economia rural nordestina e, conseqentemente, pela pobreza e misria de sua populao. No obstante, como foi demonstrado na primeira parte deste trabalho, assim como no captulo anterior, o serto nordestino no pode ser concebido dentro de uma linearidade marcada pela presena constante da seca, que a tudo paralisa. Tomando como referncia a regio do Baixo-Jaguaribe, podemos dizer que, alm dos invernos regulares, as grandes invernadas tm, em grande medida, e, paradoxalmente, marcado as sensibilidades dos mais velhos do serto. De acordo com os depoimentos produzidos pelos sujeitos desta pesquisa, inferimos o quanto so equivalentes, na experincia de vida dos entrevistados, os eventos secas e cheias. Sendo assim, preciso, novamente, abrir o livro de suas memrias para compreender os sentidos que foram atribudos s experincias vividas nos perodos dos grandes invernos de 1917, 1924, 1960 e 1974, quando a regio do Baixo-Jaguaribe foi violentamente banhada pelas guas de seus rios, especialmente do Jaguaribe. Estas experincias, por sua vez, constituem-se em referncias fundamentais na marcao do tempo de suas memrias. * * *
Segundo Rodolfo Theophilo, o rigorosssimo inverno de 1917 foi um dos maiores que o Cear tem tido, principalmente no serto, onde cahiram chuvas diluvianas, trombas dgua, innundando tudo. 375 Apesar da grande quantidade de chuvas verificadas em Fortaleza durante os cinco primeiros meses de 1917, o rigor deste inverno, segundo Theophilo, fez
375 Para demonstrar a intensidade das chuvas neste inverno, Theophilo utilizou-se de dados estatsticos fornecidos pelo Presidente do Estado, em Mensagem pronunciada em maio de 1917. Nesta Mensagem, o Presidente do Estado detalhou a quantidade de chuvas cadas em Fortaleza entre os meses de janeiro a maio de 1917: Durante o mez de janeiro em que nas epochas normaes grande a estiagem, mesmo depois de manifestado o inverno, cahiram nesta capital 464 mill. de chuva, sendo ainda maior a quantidade cahida no interior. No mez de Fevereiro, ordinariamente secco, se apresentou com a cota de 267 mill.; no de Maro figurou a de 313; no de Abril ainda por anomalia apenas 182 mill. e at 31 de Maio a quanto alcanam estes 252 sentir-se muito mais no interior do Estado do que no litoral; diferentemente do inverno de 1899, quando o pluvimetro da cidade de Fortaleza atingiu a marca de 2.644 mm. Referindo-se, pois, a intensidade com que o inverno de 1917 alcanou o serto do Cear, Theoplhilo comenta:
No julgo assim pela innundaao do Aracaty. Esta cidade foi sempre alagada nos grandes invernos. Em 1866 eu estava no collegio e lembro- me dos horrores que contavam os collegiaes filhos daquella terra, da innundao daquelle anno. muito humano achar o dia de hoje peior do que o de hontem. O que determinou o rio Jaguaribe ter entrado naquella cidade e chegado a logares em que jamais attingira, foi o arrobamento de muitos audes em suas cabeceiras. 376
Entre as regies do Estado, a zona jaguaribana, sobretudo a parte que compreende o Baixo-Jaguaribe, foi a mais atingida pelo excesso das guas de 1917.
Me lembro, foi uma seca medonha... uma cheia medonha; derrubou casa. Tinha um criatura, que tinha umas casa, ficando assim pra baixo da rua, a dizia: - Ah! Caiu a casa de fulano; caiu a casa de sicrano.com pouco ele dizia: - Ah! Caiu a casa de fulano. Com pouco mais... Ah! Caiu a minha (risos). A dele foi mais... A, tinha um home, que eu chamava tio Raimundo Luiz, chorava porque a casa dele tinha cado. A, disseram assim: - Seu Raimundo, num chore no, que como Deus butou a cheia, tambm pode butar alimento pra voc levantar uma casa. Levantou mior do que a que tinha. Porque voc sabe, quem espera por Deus num cansa, no. (...). Eu conhecia essas casa tudim, ficou s os troo, s os troo. Isso a eu conto e num mentira, que eu me lembro, me lembro. 377
No apenas as cidades que ficam situadas prximas ao leito dos rios tiveram suas casas inundadas e destrudas como nos informou o relato do Sr. Raimundo Nonato da Costa; nos campos, as lavouras foram igualmente destrudas, e os criatrios de animais reduzidos, em virtude, principalmente, do avano das guas do Jaguaribe.
dados, tinha cahido 454 mill. de chuva, perfazendo um total de 1.680 mill., altura superior a quantos invernos registram as chronicas do Cear. Cf. Rodolfo Theophilo. A Seca de 1915. op. cit. p. 150. 376 Cf. Rodolfo Theophilo. A Seca de 1915. op. cit. pp. 113, 114, 149 e 150. 377 Raimundo Nonato da Costa, 95 anos. Entrevista gravada na localidade da Canafstula de Baixo, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. 253 A exemplo das secas, as cheias constituem-se num momento de quebra da vida cotidiana dos camponeses do Baixo- Jaguaribe, sobretudo, por interferir na normalidade do trabalho agrcola. Por outro lado, essa quebra no significa uma total paralisao das atividades agrcolas, uma vez que s as reas de maior influncia dos rios, especialmente do Jaguaribe, so as mais atingidas por suas enchentes. De qualquer forma, o que se verifica uma alterao no cotidiano de trabalho do campons que passa a viver, muitas vezes, da assistncia governamental e da caridade pblica, embora a estao chuvosa seja favorvel. Acoplada a mesma lgica dos discursos da seca, as imagens e os enunciados construdos em torno da cheia procuram reiterar a misria e os infortnios vividos pela populao. Portanto, dentro da mesma rede discursiva armada nos perodos de seca, nas grandes invernadas, as elites locais deitam a misria da populao embora tenham por propsito embalarem seus prprios projetos polticos. 378
Embora um ou outro dos meus amigos de travessia tenham relatado alguma experincia vivida durate a cheia de 1917, como foi o caso do Sr. Raimundo Nonato da Costa, um nmero maior de depoimentos me foi dado acerca da grande cheia de 1924 que, de forma indelvel, ficou marcada na memria dos mais velhos da regio. Antes, porm, de adentrar em algumas dessas memrias, recorro ao Livro de Tombo da Parquia de Russas, para apoiar-me um pouco nas memrias do Mons. Raymundo Hermes Monteiro sobre a
378 Diferentemente da calamidade de 1915 em que o Estado foi horrivelmente acossado pela secca-, a calamidade de 1917 foi conseqncia do excesso de chuvas em todo o Estado do Cear. Procurando, pois, atender aos clamores que chegavam dos mais distantes sertes, o Presidente do Estado, Dr. J oo Thom de Saboya e Silva, baixou o decreto n.26, de 20 de maro de 1917, abrindo um crdito da ordem de 20:000$000 como verba de socorros pblicos. Porm, achando insuficientes os recursos de que dispunha, recorreu ao Governo Federal solicitando auxlio para socorrer da miseria com que esteve a braos a populao das regies assim assoladas pela grande cheia. Atendendo, pois, a solicitao que lhe fra feita, o Governo Federal colocou, disposio do Estado, a importncia de 1000:000$000: Essa quantia foi distribuida pelos municipios, na proporo de suas necessidades e tendo-se em considerao a urgente restaurao da lavoura. Foram nomeadas comisses, que, de acordo com os syndicatos agricolas creados em diversos municipios, pozeram por obra as providencias que se fizeram precisas. Cf. Relatrio maro de 1916 a maio de 1917 - apresentado ao Ex. Dr. J oo Thom de Saboya e Silva Presidente do Estado. J . Saboya de Albuquerque Secretrio dos Negcios do Interior e da Justia. Fortaleza: Typ. Moderna, 1917. 254 cheia de 1924. Segundo os relatos escritos neste livro, o ano de 1924 comeou sem do cu cair uma s gota dgua. No obstante, contrariando a expectativa de seca que consumia a todos, a partir do dia 24 de janeiro passou a chover quase cotidianamente at o dia primeiro de julho deste mesmo ano.
(...). O rio Jaguaribe transbordou com impetuosidade submergindo as terras marginaes em uma altura e largura como nunca se vio nos maiores invernos at hoje conhecidos. Basta dizer que desde os taboleiros que fica ao lado da ponte da Cidade at o sop da serra do Apodi as canas navegavam sem interrupo como se fosse em um grande lago, com distancia de tres leguas e mais de uma extremidade a outra. Pelas ruas da cidade as guas corriam impetuosamente e o quadro da Matriz ficou coberto dgua, e somente pela frente das casas que ficam ao lado do nascente do quadro da Matriz no corria gua. Algumas casas da ponta da rua da Igreja de S. Sebastio, ao lado do sul, foram invadidas pelas guas; e outras mais no foram, devido a tapagens de tijolos com cimento, que, nas portas, fizeram os seus habitantes. (...). As familias salvaram-se trepadas em girau dentro de suas casas invadidas, sofrendo em fome e pedindo em gritos, socorro, at que aparecesse uma cana que as conduzisse para a serra, os taboleiros ou a cidade. 379
Segundo o Mons. Raymundo Hermes Monteiro, em virtude da afflio do povo, uma comisso de pessoas de destaque da cidade de Russas foi procur-lo, em sua residncia, a fim de pedir-lhe para telegrafar ao Presidente do Estado solicitando outros soccorros, alm dos trs contos de ris que j havia sido anunciado.
(...). Attendendo a afflio do povo, telegrafhei ao Sr. Arcebispo Metropolitano Dom Manuel da Silva Gomes, pedindo a este que, junto ao Presidente do Estado, intercedesse por ns; e logo depois o Sr. Presidente anunciou ao Prefeito desta cidade maiores soccorros. 380
O prprio Arcebispo Metropolitano, Dom Manuel, em momento to angustiante para ns, veio, sem fazer esperar, mitigar os nossos soffrimentos. O pae dos pobres, como ficou conhecido Dom Manuel, enviou, ao Mons. Raymundo Hermes, a quantia de trs contos de ris para que pudesse,
379 Parquia de Russas Livro de Tombo n IX. p. 46. 380 Idem, ibidem. p. 46. 255 juntamente com outras pessoas de sua confiana, distribuir entre os mais necessitados da freguesia de Russas. Alm da ajuda recebida de Dom Manuel, outras foram enviadas pela Associao Comercial, pelo vigrio geral e pelas senhoras de caridade de Fortaleza.
Recebi ainda de Fortaleza, para os inundados desta freguesia, a quantia de dois contos novecentos e cincuenta mil reis, sendo dois contos remetidos pela Associao Comercial, quinhentos mil reis recebidos do Exmo. Sr. Vigario geral e quatrocentos e cincuenta mil reis, enviados pelas senhoras de caridade, o que tudo destribui da forma acima indicada. 381
Mesmo estando em tratamento de sade na cidade de Fortaleza, o Pe. Zacharias Ramalho, paroco de Russas, arrecadou outros recursos que foram enviados ao seu digno irmo fharmaceutico Jos Ramalho, Prefeito da cidade. Antes de tomar esses discursos, que falam sobre a situao de afflio do povo durante a cheia de 1924, como documentos de uma verdade, preciso entend-los como construtores desta verdade. As cheias, assim como as secas, so acontecimentos produzidos, em grande medida, pela repetio regular de determinados enunciados que procuram no s dar visibilidade ao real como instituir outros reais. 382
Nesse sentido, por ser um tema capaz de emocionar, mobilizar e agenciar recursos financeiros, com vistas a amenizar os sofrimentos, a pobreza e a misria provocada pelos excessos das guas, as elites da regio jaguaribana mobilizam-se no sentido de converter a crise climtica representada agora pelas cheias dos rios que cortam a regio e no mais pela seca em um instrumento de presso, de apelo que justifica tanto as campanhas de arrecadao quanto a presena do Estado na regio. Portanto, com uma fora discursiva semelhante ao discurso da seca, os discursos em torno das cheias tendem a reificar as
381 Parquia de Russas Livro de Tombo n IX. p. 46. 382 Segundo Durval Muniz, os discursos no se enunciam, a partir de um espao objetivamente determinado do exterior, so eles prprios que inscrevem seus espaos, que os produzem e os pressupem para se legitimarem. Cf. Durval Muniz de Albuquerque J r. A inveno do Nordeste e outras artes. op. cit. pp. 23 e 24. 256 imagens de misrias e horrores que a regio, paradoxalmente, enfrenta. Seguindo mais ou menos o mesmo estilo de descrio do Mons. Raymundo Hermes Monteiro, alguns dos meus amigos de travessia descreveram, em suas narrativas, as conseqncias materiais e sociais provocadas pela intensidade das chuvas na regio do Baixo- Jaguaribe. Assim, mesmo dizendo no mais lembrar desses tempo, que a sua lembrana acabou-se, num mais como era, o Sr. Chiquinho Pitombeira revela que em razo da cheia ter sido muito cumprida, tudo era de nado. Assim, quando uma canoa ia resgatar alguma pessoa nas regies mais ribeirinhas encontrava-a geralmente em cima de um jirau com a gua bem perto dele, e o camarada as vez com a panelinha im cima do jirau pa cunzinhar num sei o que. Seu Chiquinho Pitombeira conta, ainda, que antigamente era contado o morador das ribeiras do Jaguaribe que no possusse uma canoa grande pa tirar um gado pa serra; 383 o que demonstra, por outro lado, a regular ocorrncia de bons invernos na regio. 384
Parece ser modelar, ainda, o depoimento dado por D. Ana Francisca do Esprito Santo, quando ela alcanou em sua rememorao, o tempo dos pesados invernos de 1917 e 1924. Segundo D. Ana Francisca, a cheia de 1924 foi grande e foi mais durvel do que a de 1917. Embora sua famlia tenha sido obrigada a abandonar temporariamente a casa onde moravam, em virtude do prolongamento da cheia do rio Jaguaribe, D. Ana Francisca ressaltou que ainda por Deus as guas no havia carregado sua casa. Contudo, uns p de cajarana e de ata, que seu pai havia plantado no terreiro as guas levaram tudim.
383 Francisco Rodrigues Pitombeira, 86 anos. Entrevista gravada no Riachinho, no municpio de Russas, no dia 22/10/1999. Segundo Lauro de Oliveira Lima, por causa das cheias era comum ao lado de cada casaro, na vrzea, debaixo de uma latada, existir uma canoa bem calafetada, cautela tomada mesmo em stios distantes da beira do rio. Cf. Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onas. op. cit. p. 66. 384 No dizer de Rodolfo Theophilo, o Cear uma terra incompreensivel; pois, quem viu a falta dgua em 1915 e v o excesso dgua em 1917 confirma o dizer do povo: aqui ou oito ou oitenta. Cf. Rodolfo Theophilo. A Seca de 1915. op. cit, p. 39. No entanto, apesar desta expresso - aqui ou oito ou oitenta - ser bastante popular entre os cearenses, a meu ver, ela no se adequa a marcao dos perodos de inverno, pois o que se observa, ao longo do sculo XX, por exemplo, a ocorrncia de vrias estaes chuvosas que no chegaram a atingir os excessos de uma cheia; bem como outras que, embora registrasse pouca intensidade de chuvas, no se traduziram em seca. 257
Ns... ns saimo de l, a casa ficou cheia dgua. Entrou com... maior que a de dezessete. Mas... mas, ficou a casa. S ficou, assim, as paredes da rabeira. Ainda por Deus, que num carregou a casa. As rvore que ns tinha, uns p de cajarana, que papai sempre prantava uma coisa por os terreiro: p de cajarana, tinha p de ata... Essas coisa assim, a cheia de vinte e quato carregou. Quando ns votemo pra casa da cheia, passou a cheia que ns voltemo, as rvore que ns tinha, a gua tinha levado tudim. Que a cheia foi grande, foi grande e foi mais durvel do que a de dezessete. Em dezessete, foi ligeira. Quando foi com quato dia, as gua j tinha baixado muito, muito, muito. Mas, em vinte e quato, rendeu muito. 385
Ao contrrio da experincia vivida por D. Ana Francisca, D. Altina de Moura Lima, olhos perdidos nas lembranas de sua vida na roa, descreveu, com muita originalidade, a experincia vivida durante a estao chuvosa de 1924. Em sua narrativa, D. Altina lembrou que embora tenha ficado perto da casa, perto da estrada a cheia de 1924, a exemplo da de 1917, no chegou a botar gua na casa de seus pais. D. Altina comenta que ainda chegou a ver seu pai pescando, dando lance perto da estrada. Eu, ainda me lembro de ver ele pescando ali pertim da estrada. Apesar da fartura dgua ter sido a realidade mais visvel, D. Altina, envolvida mais e mais pelas lembranas da grande cheia, relatou ter havido ainda muita fartura de legumes. 386
Conquanto D. Altina tenha ressaltado em seu relato de memria que nos canto mais alto ainda foi possvel a colheita de alguns legumes, segundo a crnica paroquial citada anteriormente, incalculveis foram os prejuzos verificados no s nas plantaes, como nos animais que morreram afogados e nas cercas destrudas, durante a cheia. 387
385 Ana Francisca do Esprito Santo, 94 anos. Entrevista gravada na comunidade do Cercado do Meio, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000. 386 Altina de Moura Lima, 96 anos. Entrevista gravada no Stio Lima, no Municpio de So J oo do J aguaribe, no dia 11/04/2000. 387 Segundo o Desembargador J os Moreira Rocha, Presidente do Estado, o rigor da estao chuvosa de 1924 no permitiu que o Estado atingisse o indice global da receita do exercicio de 1923, em virtude dos prejuzos causados, principalmente na lavoura, pelo excesso de chuvas: Se no exercicio de 1924 as inundaes que flagelaram o Estado, destruindo e retardando colheitas, no permitiram fosse alcanado o indice global da receita do exercicio de 1923, o maior que fra registrado no Cear, no impediram, no entanto, ultrapassasse a receita arrecadada a que fra obtida no exercicio de 1922 e de muito a que fra orada. Mensagem apresentada a Assemblia Legislativa do Cear, em 01 de julho de 1925, pelo Desembargador Jos Moreira Rocha, Presidente do Estado. Fortaleza: Gadelha, 1925. 258 Alm das cheias de 1917 e 1924, est presente nas memrias de meus amigos de travessia o grande inverno de 1960 que, igualmente, inundou a regio do Baixo-Jaguaribe. Depois do ano de 1959 ter apresentado uma boa estao chuvosa, propiciando, desta forma, uma excelente colheita e fazendo rios, audes e lagoas aumentarem seus nveis de gua, o ano de 1960 inicia-se sem nenhum sinal favorvel a inverno que pudesse animar o homem simples do campo. Contudo, a partir do dia cinco de janeiro comearam a cair as primeiras chuvas em todas as regies do Estado. 388
J no ms de maro, os rios Jaguaribe e Banabui corriam com grandes volumes dgua. Vrios eram, ainda, os riachos que no mais comportavam o excesso das guas que insistiam em alargar, para ambas as margens, sua extenso. Dezenas de audes, em vrios municpios do Estado, j haviam arrombado, alm de casas e casebres destrudos. Tendo em vista, pois, a intensidade com que as chuvas caam em todo o Estado, temia-se que em pouco tempo o inverno de 1924 fosse suplantado. No obstante, o grande temor vivido pelas autoridades locais e estaduais e, especialmente, pela populao do Baixo-Jaguaribe, residia na possibilidade de rompimento da barragem do aude Ors, ainda em construo, 389 em virtude das grandes chuvas cadas em sua bacia hidrogrfica. Diante do eminente perigo de rompimento da barragem, o Dr. Osmar Fontenele, chefe do Servio de Piscicultura do DNOCS, recebeu, na manh do dia 22/03/1960, telegrama informando- o a respeito da gravidade da situao no Vale do Jaguaribe e, mais especificamente, a situao da barragem do Ors.
388 Em Fortaleza, por exemplo, registrou-se, nesse dia, vinte e cinco milmetros de chuva. No dia seguinte, seis de janeiro, dia consagrado aos Reis Magos, as chuvas foram ainda mais copiosas. Com caractersticas bem prximas ao discurso literrio, o jornal O Povo assim descreveu a chegada das chuvas: Cairam as primeiras chuvas de 1960, na terra cearense. Foi o melhor carto de visita que os cus enviaram aos sertanejos nesta entrada de novo ano. Tudo se transformou. A natureza perdeu aqule aspecto carrancudo e tornou-se alegre e comunicativa. Transmitiu alegria ruidosa ao homem que labuta cotidianamente no amanho do solo. (...). O Povo, 13 de janeiro de 1960. p. 09. 389 As obras de construo do aude Ors, foram concludas no ano de 1961. 259 (...). No entanto, trombas dgua de mais de 250 milmetros, cadas na bacia hidrogrfica, motivaram a maior enchente, j observada. As quatro horas da madrugada de hoje, na ponte de Iguat, o Rio Jaguaribe marcava 35 ps, ou seja, aproximadamente onze metros e meio de lmina dgua. Houve, portanto, uma elevao de seis metros em menos de 15 horas. Apesar de no haver muita possibilidade de salvamento da barragem, somente poderemos informar, com preciso, dentro de vinte horas. (...). 390
Neste mesmo telegrama, pedia-se, ainda, a cooperao da imprensa, para que pudesse servir de canal de comunicao com as populaes afetadas pelas guas do rio Jaguaribe, principalmente aquelas que eram ribeirinhas ao grande reservatrio em construo, a fim de mant-las informadas a respeito da gravidade da situao, bem como recomendar a desocupao das reas mais crticas. Segundo Dom Aureliano Matos, primeiro bispo de Limoeiro do Norte, cujo bispado compreende toda a regio do Baixo-Jaguaribe, caso a barragem do Ors viesse a se romper, as cidades atingidas pela inundao ficariam reduzidas a menos de 50%, uma vez que as guas passariam pela regio com uma lmina de quatro a seis metros, conforme afirmavam os engenheiros. Todavia, mesmo que as cidades no fossem destrudas nessa proporo, segundo a avaliao de Dom Aureliano Matos, j era certo que as terras que compem o vale do rio Jaguaribe ficaria, por algum tempo, imprestveis para plantaes agrcolas.
A construo das cidades ameaadas foi toda feita de tijolo e barro. E no resistiro, por conseguinte, ao embate das guas. As enchentes quando pequenas, morosas, trazem grandes prejuizos, porm, deixam as terras fertilizadas. Mas nas propores desta, o vale ser varrido, ficando imprestvel, por algum tempo, para as plantaes. Desde agora, precisamos promover uma conjugao de esforos, maior ainda do que se fz at agora, para que possamos restabelecer, embora demoradamente, a normalizao da vida econmica e social da regio, no caso de que o arrombamento ocorra. 391
390 O Povo, 22 de maro de 1960. p. 01 e 02. 391 O Povo, 26 de maro de 1960, p. 08. 260 Ainda segundo O Povo, 392 a menos que as chuvas cessassem por alguns dias na regio compreendida pela bacia hidrogrfica do Ors, permitindo, com isto, a vazo, pelo tnel e pela galeria do aude, de grande parte da gua retida na barragem, seria possvel evitar-se uma grande catstrofe na regio do Vale do Jaguaribe. Diante da gravidade da situao, a 10. Regio Militar de Fortaleza iniciou, no dia 23/03/1960, o envio de tropas e viaturas para as reas ameaadas ou j atingidas pelas enchentes do rio Jaguaribe. Este tipo de interveno militar, freqentes em perodos de seca, consistia, basicamente, no fornecimento de alimentos, remdios, barracas e transportes utilizados na transferncia das populaes ribeirinhas, bem como de outras reas igualmente ameaadas pelas guas.
Diante da ameaa crescente de arrombamento do aude Ors, as populaes das cidades e varzeas do Baixo Jaguaribe, esto vivendo o maior drama de toda a sua histria. Como medidas de precauo e orientados pelas autoridades e o exrcito, essas populaes j abandonaram suas residncias, estando agora alojadas em vilas e stios localizados em terrenos mais elevados, onde ficaro a salvo das guas do Rio Jaguaribe. (...). 393
Das cidades mais prximas ao rio Jaguaribe, Russas, por estar situada em terreno mais elevado, era a que menos apresentava problemas com a enchente do rio Jaguaribe. Apenas com o rompimento da barragem do Ors que a cidade poderia ser inundada. Todavia, como medida de segurana, a populao deslocou-se para locais que apresentassem maior segurana. Segundo o jornal O povo de 25/03/1960, at ontem calculava-se que 1000 pessoas haviam deixado as margens do rio em Russas. A exemplo da cidade de Russas, a cidade de Quixer, por ter sido edificada num ponto mais alto, no estava sob o eminente perigo de uma inundao. Desta forma, a populao que morava nas
392 Idem, ibidem. p. 08. 393 O Povo, 25 de maro de 1960, p. 02. 261 vrzeas do rio Jaguaribe, pde ser deslocada tanto para a cidade, ficando alojadas em casas residenciais, no mercado pblico e em grupos escolares, como para as localidades mais prximas da serra do Apodi. No obstante, a cidade de Limoeiro do Norte, por ser uma espcie de ilha, em virtude de estar localizada entre dois braos do rio Jaguaribe e bem prxima ao rio Banabui, 394 estava em alerta geral. Na manh do dia 24 de maro, o vigrio geral da cidade, monsenhor Otvio Alencar Santiago, os capites do exrcito Arribamar e Frota Leite, bem como os membros da comisso de evacuao, procuravam, atravs do microfone da Rdio Vale do Jaguaribe, convencer a populao a deixar a cidade no menor espao de tempo.
(...). Por volta das 10 horas, quando chegaram as notcias desalentadoras e alarmantes do Ors, as pessoas que ainda se encontravam na cidade trataram de passar para a margem oposta do rio, conduzindo o pouco que podiam. Muita gente saiu s com a roupa do corpo. Assim, estabeleceu-se um verdadeiro Rush e dentro de poucas horas, Limoeiro do Norte tinha um aspecto triste: o comrcio fechado, as residncias abandonadas, a praa da Bandeira deserta. 395
Atravs dessa matria publicada pelo jornal O Povo, possivel inferir que muitas pessoas resistiram ao fato de terem que deixar o espao vivido - embora fosse, muitas vezes, miseravelmente vivido - por no quererem se desfazer dos lugares com os quais se achavam fortemente ligados - suas casas, seus caminhos... Assim como Limoeiro do Norte, Itaiaba era outra cidade seriamente atingida pelas guas das enchentes dos rios Jaguaribe e Palhano. Utilizando-se de canoas, a populao desta cidade fez a travessia do rio Jaguaribe para alojar-se, debaixo de rvores ou em casas de parentes, nas localidades de Barreira Vermelha parte mais alta do municpio -, Tracoen, Brito, Serra do Erer, entre outras.
394 O rio Banabui um afluente do rio J aguaribe, cujas guas dos dois rios se encontram nas proximidades da cidade de Limoeiro do Norte. 395 O Povo, 25 de maro de 1960, p. 02. 262 Segundo o jornal O Povo, 396 Jaguaruana era, entre as cidades do Baixo-Jaguaribe, a menos assistida pelos socorros enviados pelo Governo do Estado s populaes do Vale jaguaribano. Desta forma, alm da falta de gneros alimentcios, o municpio ressentia-se da falta de lanchas e botes que possibilitassem o transporte da populao para os Tabuleiros situados na margem esquerda do rio Jaguaribe. Para agravar a situao de abandono vivida por sua populao, o municpio de Jaguaruana encontrava-se incomunicvel com o resto do Estado, uma vez que a cidade estava sem telgrafo e no possua nenhuma estao de rdio amador. Em virtude, pois, das cheias do rio Jaguaribe engrossadas pelas guas do Banabui, calculava-se, em fins do ms de maro de 1960, que o nmero de desabrigados na regio do Baixo-Jaguaribe chegasse, aproximadamente, a cinqenta mil pessoas, as quais, por sua vez, comeavam a sofrer os efeitos da fome e das doenas. Certamente, este nmero veio a crescer depois que a barragem do Ors no suportou a presso das guas e rompeu-se inundando grande parte da regio do Baixo-Jaguaribe. A descrio das misrias e horrores, provocados pelo flagelo das guas, veiculada, principalmente, pelos jornais de Fortaleza, tentava compor a imagem de uma regio desolada e vida a receber a assistncia das instituies governamentais, bem como da caridade particular. Como medida emergencial-assistencialista, reforadora dos laos patrimoniais que sempre caracterizou os investimentos de socorro efetivados pelo Estado, o Governo, o Exrcito e vrios rgos administrativos estiveram mobilizados no sentido de enviar, para diversas cidades do vale jaguaribano, viaturas conduzindo vveres, leite em p, alimentos, medicamentos e vesturio para serem distribudos entre os desabrigados. Entre os acontecimentos que mais marcaram a memria daqueles que experenciaram a cheia de 1960 na regio do Baixo-
396 Idem, 28 de maro de 1960. 263 Jaguaribe, destacam-se, evidentemente, a presena do Exrcito na regio e o rompimento da barragem do Ors. Segundo o Sr. Onofre Augusto dos Santos, na cidade de Russas foi organizado pelo bataio do ixrcito, um acampamento medonho onde eram distribudos, a cada trs dias, os gneros alimentcios entre a populao mais atingida pelas enchentes. Em seu depoimento, o velho Onofre ressaltou a disciplina com que o Exrcito realizava a distribuio das mercadorias.
Ento-se o pessoal achava que isso l era negoo pa chegar e entrar, e coisa... Mas, num era assim. Ns passava trs dia, quando era no terceiro ns a, chegava l ele j sabia, j conhecia. 397
Apesar de haver um certo rigor na distribuio dos alimentos, segundo o relato do seu Onofre, os soldados do Exrcito reclamavam que havia determinadas pessoas que todos os dias se faziam presentes na fila da distribuio. Desta forma, seu Onofre revelou ter sido, certo dia, interrogado pelo comandante da operao de socorros, a respeito de um grupo de pessoas que sempre acompanhava os moradores da Lagoa das Bestas na hora da distribuio das mercadorias.
Nesse tempo, num era Lagoa de Santa Terezinha, era Lagoa das Bestas. Me diga uma coisa, esse pessoal tudo da Lagoa das Bestas? No, senhor! o pessoal que acompanha ns. No, mais num pode ser assim. Ns tamo dando a voc... porque ns tamo dando cumer a vocs de trs em trs dias, esse pessoal aqui todo dia t tirando, o pessoal todo dia tirando. A, ento ns... o Gonverno num pode aguentar desse jeito. A, o comandante: - T errado ou t certo? No, o senhor t certo. Agora voc vai apontar quem e quem num . T certo! A, apontei tudim. Esses caba num foro mais, nunca foro l mais no. (...). Enquanto teve cheia l, ns se fornecemo, n?
Embora os militares tivessem imposto uma lgica operatria que objetivava disciplinar a distribuio dos gneros alimentcios, os camponeses procuravam, de uma forma ou de outra, subverter a
397 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. 264 presena dessa lgica, por haver entre ela e os seus usurios, uma distncia facilmente percorrida pelas astcias daqueles que no se conformavam e, por isso mesmo, buscavam alter-la. Para Michel de Certeau, esses modos de proceder e essas astcias de consumidores compem, no limite, a rede de uma antidisciplina. 398 Quanto atitude do Sr. Onofre, de denunciar as tticas de consumo utilizadas por alguns camponeses, alm de demonstrar que elas no eram homogneas, indica a existncia de prticas de poder tacitamente construdas entre os soldados do Exrcito e os camponeses. Como medida de disciplina e de preveno ao aparecimento de algum surto epidmico na regio, as autoridades responsveis pela distribuio dos gneros alimentcios passaram a condicionar o fornecimento da mercadoria vacinao da populao que procurava os acampamentos do Exrcito a fim de receber os auxlios do Governo. No entanto, segundo o depoimento de D. Lili, Maria Pereira de Almeida, essa medida no foi bem aceita pela populao que, muita vezes, preferia no receber a mercadoria a ter que se submeter vacinao.
Quando eu cheguei l, s tira... Eu j tava na fila, s tira mercadoria quem vacinar; eu sa da fila vim imbora. Eu num vim sem nada, porque minhas irms me deram. 399
Essa resistncia expressa por D. Lili, que preferiu no receber a mercadoria a ter que se vacinar, pode ser encarada de forma ambgua, tecida ora com fios sombreados de ignorncia, ora com fios claros da liberdade, do livre arbtrio. Assim como tantos outros camponeses, D. Lili, ao se conformar, resistia; e ao resistir, se conformava. Noutras palavras, ao mesmo tempo que se conformava em no receber a mercadoria, resistia imposio da vacina por parte do
398 Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. op. cit. pp. 41 e 42.
399 Maria Pereira de Almeida (Lili), 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 22/10/1999. Viva e me de quinze filhos, D. Lili mora sozinha numa pequena casa de taipa, tendo, como vizinha, uma de suas filhas. Embora marcada pelo sofrimento, D. Lili conserva uma alegria que pde ser percebida todas as vezes que com ela estive. 265 Exrcito; e ao resistir a estratgia impositiva do Exrcito, se conformava em no receber a mercadoria de que tinha direito. 400 Levar em conta essa resistncia uma maneira de reconhecer as posies tticas que cada sujeito assume dentro das relaes de poder. No podemos pensar, pois, os sujeitos histricos caminhando sempre dentro da linha que os mecanismos de poder oferecem atravs das estratgias de disciplinarizao do tecido social. Essas linhas, na verdade, no comportam todos os atores sociais em virtude, justamente, da historicidade de cada indivduo. Ao contrrio de D. Lili, D. Chiquinha no resistiu a obrigao de ter que tomar a vacina dos ors para fins de receber a mercadoria. Todavia, em virtude de ter tomado a vacina, D. Chiquinha disse ter passado uma semana derrubada, ou seja, doente.
A do Ors eu via falar. Sim! Os Ors. Eu fui, que... Eu levei foi vacina, l. Que saiu a vacina, eu quais morro, tive foi duente, essa vacina dos Ors. Naquele tempo que tava dando cumer, n? As mercadoria, que s dava se se vacinasse. A, eu fui, fui obrigada. Era uma vacina no brao e a injeo no outo brao. Mas, quando a minha saiu, eu passei uma semana derrubada. 401
Enquanto D. Chiquinha relembrou a vacina dos Ors, sua irm, D. Egilda Delfino Nascimento, fez um grande esforo para relembrar uns versim dos ors. Como ressaltei anteriormente, ao narrar as memrias que D. Altina de Moura Lima guarda da seca de 1915, era comum as pessoas da regio noticiarem os fatos cotidianos utilizando a Literatura de Cordel como veculo de comunicao. Apesar do esforo para relembrar os versim dos Ors, D. Egilda apenas conseguiu trazer de volta, sua lembrana, alguns fragmentos destes versos. No entanto, justificou que quando estivesse sozinha, iria cantar todim.
400 Marilena Chau. Conformismo e resistncia. op. cit. p. 124. 401 Francisca Delfina da Costa (Chiquinha), 87 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999. 266 Meu castanho se acabou, foi a gua do Ors que levou. / A gua vai para o Limoeiro, Russas, Aracati / O prejuizo que ficou aqui, seu dot, foi a gua do Ors que arrombou , , ... Era bunito, mais eu me esqueci, rapaz. Voc num t vendo. Eu sou muito... No dia em que o Sr. sa, eu vou cantar todim. A gente se lembra, mas, nessa ocasio, num se lembra no. , meu fi. 402
Diferentemente da memria involuntria, que Duval Muniz chama de reminiscncia, a memria voluntria, traduzida pelo mesmo autor como lembrana, requer um tempo para organizar os estmulos, pois trata-se de uma recomposio do passado, no sendo possvel, nesse sentido, o seu acesso direto. A recordao pois um trabalho de organizao de fragmentos, reunio de pedaos de pessoas e de coisas, pedaos da prpria pessoa que biam no passado confuso e articulao de tudo criando com ele um mundo novo. 403
Embora a estao chuvosa tenha sido muito rigorosa em toda a regio do Vale do Jaguaribe, segundo o relato de memria do Sr. Onofre Augusto dos Santos, foi possvel plantar e colher nas terras altas. No obstante, nos baixo num deu nada no.
Essas terras daqui boa e ruim. Porque o inverno grande, l... Voc andou na minha casa, voc andou hoje de manh, l tem canto que inverno grande atola, atola, atola at os bicho. 404
Conquanto tenha sido possvel desenvolver nas terras altas algumas culturas agrcolas como o feijo e o milho, certo foi a difcil situao que as populaes dos vrios municpios tiveram que enfretar, em virtude da completa desorganizao da atividade agrcola e, portanto, da vida econmica da regio. Passados cinqenta anos da cheia de 1924 e quatorze da cheia de 1960 que provocou o arrombamento da barragem do aude
402 Egilda Delfino Nascimento, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999.
403 Durval Muniz de Albuquerque J r. Violar Memrias e Gestar a Histria. In. Clio. op. cit. p. 43. 404 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999.
267 Ors, a regio do Baixo-Jaguaribe seria mais uma vez inundada por outra grande enchente no ano de 1974. De acordo com a crnica paroquial assentada no Livro de Tombo n. VIII da parquia de Russas, os dois primeiros meses do ano de 1974 j anunciavam mais um colossal inverno na regio jaguaribana. Seguindo a regularidade dos meses de janeiro e fevereiro, o ms de maro entrou com seus cntaros cheios de gua. Em razo, pois, das grandes chuvas cadas em toda a regio do Vale do Jaguaribe no primeiro trimestre do ano, os sangradouros dos audes Ors e Banabui comearam a liberar um grande volume de gua. Logo, toda a populao jaguaribana comeou a estremecer, com o progressivo aumento do nvel das guas que corriam no leito dos rios Jaguaribe e Banabui. Entretanto, em meados do ms de maro, iniciaram-se os festejos em homenagem a So Jos com as alegrias do bom inverno ou menos do exagerado chuvoeiro, alm das comemoraes relativas ao qinquagsimo aniversrio da cheia de 1924. No dia 29 de maro, o riacho Araib, que passa dentro da cidade de Russas, registrou sua primeira cheia. No entanto, duas outras cheias, ocorridas nos dias 14 e 24 de abril, deixaram inundados alguns bairros da cidade, desabrigando, por conseguinte, diversas famlias que passaram a ter como abrigo a residncia dos padres Jesutas e alguns prdios pblicos do municpio. Segundo a mesma crnica paroquial, as guas respeitaram apenas a avenida Dom Lino e as demais ruas paralelas em direo ao bairro Bela Vista antigo Tabuleiro da Santa Cruz, ou, simplesmente, Tabuleiro dos Negros como era popularmente chamado.
As varzeas do Araib at o rio Jaguaribe tomaram, com excees dos altos lombos de terra, o aspecto amaznico! Gente a espirrar de suas casas em procura de abrigo! A cidade regorgitava de gente assombrada e faminta. 405
405 Parquia de Russas Livro de Tombo n. VIII, p. 10. 268 Sem dar nenhuma trgua, as chuvas continuaram a cair durante todo o ms de abril. Desta forma, nas ltimas semanas do ms das guas mil, 406 as guas dos audes e rios subiram assustadoramente e, como muita gente afirma, em alguns lugares atingiu as marcas de 1924, que foi a maior cheia da memria popular. 407
De todas as cidades do Baixo-Jaguaribe, apenas Russas teve o centro enxuto em toda a extenso da rodagem e da av. D. Lino em direo ao Tabuleiro. Por outro lado, as demais cidades da regio, de Limoeiro do Norte a Aracati, inclusive parte de Quixer e de So Joo do Jaguaribe, foram inundadas pelas guas dos rios, especialmente o Jaguaribe, que corriam com impetuosidade. 408
Segundo o relato de memria do Sr. Joo Pereira Cunha, a cidade de Jaguaruana ficou ligada zona rural do municpio atravs das guas.
Ave Maria! (...). Ali passei agarrado numa cerca que tinha assim, desse lado assim, gua pu o pescoo, gua de cheia, de cheia, gua de cheia. Ali, ali, mais o meno ali da Mundinha do Serrote, da casa do Serrote pa frente uma coisinha at o rio, voc num pisava im coisa seca, no. Era s dento dgua de cheia. Dali de ns, pegar canoa, pegar canoa l do outo lado do rio, a canoa ia por dento, por dento. (...). Ns, ns ia ali... Ns... ns... ns pega aqui no beio do mato a canoa, viu? Aqui no beio do mato, e... e... e ns pegar a canoa e barrava l no INPS, l dento da rua, viu? (...). gua, foi gua, foi gua. S que nesse tempo, num tinha esse audaral, viu? Hoje, no, as gua fica muito presa, fica muita gua presa. 409
Assim como ocorreu na cheia de 1960, a cidade de Russas tornou-se o centro operacional de assistncia das vtimas das enchentes ocorridas na regio do Baixo-Jaguaribe no ano de 1974. Desta forma, a cidade abrigou tanto o comando da base area da FAB, que ficou hospedado na residncia paroquial, como o comando das equipes da Marinha e do Exrcito que ficou hospedado na residncia do Prefeito
406 O ms de abril, geralmente marca o clmax das chuvas nos sertes do Cear. Assim, tornou-se comum o uso desta expresso. 407 Parquia de Russas Livro de Tombo n. VIII, p. 11. 408 Parquia de Russas Livro de Tombo n. VIII. 409 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade do Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999.
269 municipal, o Sr. Aurino Estcio de Souza. Quanto aos equipamentos utilizados na operao resgate, foram deslocados para a cidade de Russas muitos helicpteros e lanchas. A exemplo das medidas de combate s secas, historicamente marcadas pelos interesses poltico-eleitorais das lideranas locais, as elites polticas da regio procuravam manter sob seu controle o andamento das operaes de ajuda s vtimas das enchentes, com vistas a no quebrar o costumeiro padro paternalista de socorro aos pobres. Dessa maneira, o resgate das populaes mais ribeirinha, bem como a distribuio de alimentos eram oportunidades para se renovar os laos entre as lideranas locais e aqueles que viviam, especialmente, nas reas mais distantes da zona urbana. 410
Como medida de socorro s vtimas das enchentes, o Governador do Estado, Cel. Csar Cals de Oliveira Filho, autorizou a distribuio de roupas, alimentos, medicamentos e barracas de lona para abrigar as famlias que haviam perdido suas casas principalmente em conseqncia das cheias dos rios.
... At hoje, o Governo Estadual e o INAN j distriburam 327 toneladas de alimentos num total de 400 mil cruzeiros e a Secretaria de Sade enviou 137 mil doses de vacinas contra tifo e medicamentos diversos. 411
Das 327 toneladas de alimentos, o municpio de Jaguaruana foi contemplado com vinte e sete toneladas, alm de medicamentos, abrigos e barracas. Outras vinte e uma foram enviadas cidade de Limoeiro do Norte pelo Grupo Especial de Socorro s Vtimas das Calamidades Pblicas - GESCAP. No entanto, o municpio de Quixer, a exemplo de outros municpios, reclamava que a ajuda enviada pelos rgos oficiais no estava sendo suficiente para atender aos milhares de desabrigados daquele municpio.
410 Sobre as prticas de negociao entre os retirantes e as autoridades urbanas ver: Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. 411 O Povo, 22 de abril de 1974, p. 12. 270 Alm das medidas de socorro implantadas pelo Governo Estadual, a Igreja e voluntrios da sociedade civil procuravam participar da mobilizao que objetivava minimizar o sofrimento de grande parte da populao do Baixo-Jaguaribe. Desta forma, o Bispo Diocesano, Dom Pompeu Bezerra Bessa, ofertou parquia de Russas a quantia de Cr$ 1.100,00 (mil e cem cruzeiros) em benefcio das vtimas da cheia.
... Por essa razo foi organizada a caritas paroquial sob a coordenao de D. Maria de Ftima Pedregal para o atendimento s necessidades dos flagelados da cheia. Foi entregue coordenadora a quantia de Cr$ 2.000,00 por conta da oferta supra do episcopado e da parquia. Alm disso, a caritas paroquial organizou por imtermdio das Profas. Maria Gilvanize de O. Pontes e Eliete Pequeno e de Da. Zina Moreira Gonalves e Raimundo Simplcio da Costa uma distribuio de auxlio me aflita no valor de Cr$ 10,00 (dez cruzeiro) para cada uma. O total da distribuio foi de Cr$ 1.580,00 (mil quinhentos e oitenta cruzeiros). (...). 412
Embora fosse possvel analisar essas iniciativas como estratgias de controle e reproduo das relaes sociais baseadas no clientelismo e no paternalismo, prefiro v-las dentro de um sentimento de solidariedade para com as vtimas das cheias; uma vez que nessas ocasies comum ver-se a sociedade civil mobilizar-se no sentido de organizar campanhas de arrecadao e distribuio de donativos, procurando, assim, dar um sentido mais humanitrio s medidas de socorros empreendidas pelos orgos pblicos. 413
Segundo o jornal O Povo, 414 era grave a situao em todo o interior do Estado. No entanto, entre as cidades do Baixo-Jaguaribe, Itaiaba foi uma das que mais sofreu com as enchentes dos rios Jaguaribe e Palhano. Invadida pelas guas, Itaiaba teve cerca de dois teros de sua populao desabrigada. Uma outra cidade que ficou ilhada pelas guas do Jaguaribe foi Jaguaruana, que, em fins do ms de abril, j registrava mais de trs mil pessoas desabrigadas. Neste mesmo
412 Parquia de Russas Livro de Tombo n. VIII, p. 11. 413 Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 200. 414 O Povo, 22 de abril de 1974.
271 perodo, o saldo das inundaes na cidade de Quixer chegava a 250 casas destrudas e mais de mil pessoas desabrigadas. Limoeiro do Norte era outra cidade em estado crtico. Com sua zona rural bastante atingida pelas guas dos rios Jaguaribe e Banabui, Limoeiro contava com mais de dois mil desabrigados. Tabuleiro do Norte, por sua vez, alm dos quase trs mil flagelados, apresentava srios problemas nos meios de comunicao e de transportes em virtude das pssimas condies das vias de acesso ao municpio. Na cidade vizinha, So Joo do Jaguaribe, o nmero de desabrigados pelas enchentes era de aproximadamente oitocentas pessoas. De acordo com o GESCAP, o nmero oficial de desabrigados em todo o Estado do Cear, em fins do ms de abril, chegava a cento e doze mil pessoas. No entanto, a regio do Baixo-Jaguaribe foi, entre todas as regies do Estado, a mais seriamente atingida pelas guas. 415
Passados onze anos da cheia de 1974, a regio do Baixo- Jaguaribe voltou a ser inundada, por mais uma grande cheia, no ano de 1985. No entanto, a exceo do Sr. Antnio Eugnio que enalteceu a pessoa do ento Governador Gonzaga Mota, os demais entrevistados praticamente no atravessaram, em seus relatos de memria, as experincias vividas durante o perodo da grande invernada. Gostaria de ressaltar, ainda, que entre meus amigos de travessia, no h um consenso sobre qual dessas cheias foi a maior. Embora essa questo no se apresente como sendo de fato a mais importante neste momento, no posso deixar de recorrer a uma maica na carnaba l no p do serrote, ali, aonde a cheia tinha inchido, t rendo? 416 para chamar a ateno a respeito dos lugares da memria que ainda conservam vestgios da cheia de 1924, testemunhando, assim, a sua grandiosidade. Estes vestgios, que no se fizeram apagar com o tempo, so agora matria das lembranas do Sr. Jos Gomes Barbosa.
415 O Povo, 01 de maio de 1974, p. 12. 416 J oo Delfino Bezerra, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999. 272 Pra mim, a histora, foi a maior cheia. Agora, eles a diz que a cheia de oitenta e cinco foi mais. Mas, l pra ns, no. Que t a marca na porta, l donde era a casa via, do finado meu pai, t a marca na porta, a marca da cheia, viu? E, agora em oitenta e cinco, num butou l aonde tava a marca da cheia. 417
Embora na prxima parada de nossa travessia, as imagens do serto dos invernos continuem a ser exibidas, elas sero minimizadas em razo da agonia, da morte e da angstia que a epidemia de malria provocou em todos aqueles que atravessaram o serto das doenas. Terceira Parada: o campons e as doenas. 418
A malara, foi um mal medonho Joo Miguel de Souza
(Foto 28 Sr. Joo Miguel e esposa Divertido - Russas)
417 J os Gomes Barbosa, 82 anos. Entrevista realizada na comunidade do Tracoen, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000. 418 Nesta travessia, treze foram os guias: Euclides ngelo Cordeiro, Altina de Moura Lima, J oo Miguel de Souza, Joo Pereira Cunha, Antnio Eugnio da Silva, Raimundo Sabino da Silva (Cor), Onofre Augusto dos Santos, Francisco Abel Lino (Chico Abel), Eduardo Soares de Lima, Conrrado Jos da Silva, Raimundo Mendes Martins, Ana Francisca do Esprito Santo e J oo Andr Filho. 273 bastante comum se encontrar, na vastssima bibliografia sobre as secas, a correlao entre estas e o aparecimento de grandes epidemias, que, em muito, contribuem para ceifar a vida de parte da populao afetada pelo flagelo das secas. Rodolfo Theophilo, por exemplo, em seu estudo Varola e Vacinao no Cear, descreve, com impressionante riqueza de detalhes, o desenvolvimento da varola nas secas de 1877-79, 1888 e 1900. Segundo Theophilo, a varola era a companheira inseparvel das seccas e estas so por sua vez o mal congenito da terra cearense. 419
No obstante, como observa Baro de Studart, 420 fra das epochas de secca o Cear tem sido tambm accommettido de serias epidemias, como aconteceu em 1851 com a Febre Amarela, em 1862 com o Cholera e, mais recentemente, como pretendo demonstrar neste captulo, com a malria que, nos anos chuvosos de 1937 e 1938, vitimou grande parte da populao do Baixo-Jaguaribe. Embora o Sr. Euclides ngelo Cordeiro e a D. Altina de Moura Lima tenham feito alguma referncia epidemia de paratifo que grassou na regio do Baixo-Jaguaribe durante a seca de 1932, fazendo, por conseguinte, um grande nmero de vtimas, nenhuma outra grande epidemia, a exceo da malria, foi matria das lembranas de meus amigos de travessia. Desta forma, ao rememorarem o serto das doenas, a malria apresentou-se como elemento comum a todos aqueles que se dispuzeram a contar-me suas histrias de vida. Recolhendo, pois, alguma dessas lembranas, farei, a partir de agora, a travessia pelo serto das doenas. Gostaria de ressaltar, no entanto, que, assim como o fiz na travessia pelos sertes das secas e das cheias, nesta, utilizei-me, tambm, da fonte hemerogrfica para melhor estabelecer um nvel de compreenso sobre os efeitos que a epidemia de malria produziu na regio do Baixo-Jaguaribe durante os anos de 1937 e 1938. Todavia, imperioso ressaltar que a doena sempre a
419 Rodolfo Theophilo. Varola e vacinao no Cear. Fortaleza: Fundao Waldemar Alcntara, 1997. p. 5. 420 Guilherme Baro de Studart. Climatologia epidemias e endemias do Cear. Fortaleza: Fundao Waldemar Alcntara, 1997. p. 48. 274 experincia do limite que nem o corpo e muito menos as palavras conseguem traduzi-la em toda a sua extenso. como se o sofrimento provocado pela doena inscrevesse a morte no vivo. 421 Em outras palavras, quero dizer que no existe um discurso pleno sobre esse acontecimento, dado os limites da linguagem para falar dos infortnios do corpo.
(...), a populao est vivendo dias de angustia. No possvel descrever o que se passa no trecho compreendido entre Aracati e Morada Nova. 422
De modo geral, as narrativas colhidas so compostas por imagens que relacionam, especialmente, a doena e o trabalho, a fartura e a fome, a morte e a forma como eram enterrados aqueles que no suportaram a virulncia da epidemia. Os sentidos que essas imagens sugerem variam de acordo com as experincias vividas por cada sujeito. Nesse sentido, nas narrativas que os camponeses construram possvel perceber as mltiplas relaes que perpassam as vrias falas; fazendo com que estas falas assumam um significado de coletivo apesar do carter pessoal da narrativa. Durante os primeiros trinta anos deste sculo, podemos observar, a partir das informaes que se tem disponveis acerca da mortalidade e morbidade, que a presena da malria era extremamente freqente em todos os continentes, sobretudo entre as populaes rurais. 423
Segundo Lauro de Oliveira Lima, a epidemia de malria, sem precedentes na regio do Baixo-Jaguaribe, foi transportada para o Nordeste, em 1935, pelos navios franceses, que vieram a Natal numa viagem de
421 J acques Revel e J ean-Pierre Peter. "O Corpo: o homem doente e sua histria". In. J acques Le Goff e Pierre Nora. Histria: novos objetos. Rio de J aneiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A, 1995. p. 155. 422 Depoimento de um comerciante de Russas, publicado no jornal O Povo do dia 20de abril de 1938. 423 Rita Barradas Barata. Malria e seu controle. So Paulo: Editora HUCITEC, 1998. p. 18. 275 estudos metereolgicos, usando bales, com o objetivo de colher dados metereolgicos para estabelecer o trfego areo entre a frica e o Brasil. 424
No havendo um rigoroso estado de alerta, a malria entrou na regio jaguaribana no ano de 1937 e, em pouco tempo, converteu- se numa grande epidemia, apesar da Sade Pblica do Estado negar a virulncia do surto malrico na regio. No ano seguinte, quando a terrvel epidemia foi finalmente reconhecida, j havia milhares de enfermos entre as populaes urbana e rural. O Jornal O Povo, no dia 30 de julho de 1937, publica uma matria sobre o impaludismo no municpio de Unio 425 na qual o Prefeito da cidade, o farmacutico Antnio Freitas, relatava como sendo desolador o estado sanitrio do seu municpio, bem como o de Aracati.
Pode reafirmar pelo O Povo que o atual surto de impaludismo, naquela zona, muito mais grave do que se pensa. Rara a casa de Unio, fra da cidade, onde no h um ou mais doentes. E na prpria sde do municpio j se registram diversos casos. O comrcio e a lavoura vm sentindo, por sua vez, as conseqncias do mal, pois grande parte da populao est impossibilitada de exercer as suas atividades normais. 426
Ao narrarem as experincias vividas durante a epidemia de malria, os camponeses apresentaram uma relao direta entre a doena e o trabalho, na medida em que ressaltavam um conjunto de limitaes relativas capacidade vital daqueles que contraram a doena. Desse modo, relatam sobremaneira a incapacidade que sentiam para desempenhar as atividades cotidianas tendo em vista estarem acometidos por um mal-estar acentuado que provocava, entre outros sintomas, dores de cabea e a perda de apetite o que eram seguidos por acessos febris intermitentes ou contnuos como relembra o Sr. Joo Miguel de Souza:
A malara, rapaz, eu num t alembrado o ano, mais eu acho que foi im 37, teve uma malara. Aqui eu tive muito duente da malara, tremia
424 Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onas. op. cit. p. 455. Confira, tambm: Rita Barradas Barata. Malria e seu controle. So Paulo: Editora HUCITEC, 1998. p. 44. 425 Antigo topnimo atribudo ao atual municpio de J aguaruana. 426 O Povo, 30 de julho de 1937, p. 04. 276 rapaz, uma hora dessa assim dava um fri mais medonho do mundo com pedacim batia febre e o caba cumeava a tremer, tremia, tremia aquele pedao a miorava, tumava aquele ch de i, a tinha umas pilhazinha amarelinha chamava atrebina a gente tumava passava, n? E assim fui levando. Passei uns pouco de tempo, bem uns quato ms com essa duena. E quando eu miorei, fiquei bom a meu pai pegou, papai pegou, papai pegou, rapaz, que quais que morre, papai teve muito duente. 427
Os acessos da doena eram sempre acompanhados, num primeiro momento, da sensao de frio, nuseas, calafrios e vertigem, evoluindo para tremores intensos e generalizados atingindo temperaturas crescentes que mantinham a febre alta e o calor intenso durante trs ou quatro horas. Relembrando a intensidade da malria da qual o seu pai foi vtima, o Sr. Joo Miguel descreve um momento de acesso agudo da doena em que seu pai teve uma dessas vertigens.
Teve uma noite, rapaz, que o papai teve to duente; eu acho que era da febre, d aquela atrevalia, n? A ele me chamou, tava deitado na rede a ele me chamou; o que foi papai? Ele apontava assim pa cumieira da casa: - olha tem dois caba de Lampio atrepado acul atrs de me matar, num sabe? (risos). A eu dizia: - no papai. last, v buscar a vara mode eu cutucar. A, eu ia buscar a vara. Cutuca a! A eu cutucava num tinha nada, n? (risos). Mais quais que morre rapaz, ficou muito duente mais graas a Deus escapou. Mais aqui na Ribeira, teve casa de morrer trs pessoa, n? Da malra! Teve muita gente que morreu. 428
O Sr. Joo Pereira Cunha, lamentando no ter no momento uma pessoa do seu tempo para confirmar o seu depoimento, lembra que todos em sua casa, exceto ele, foram acometidos da doena. Em razo disso, ele passou a cuidar dos doentes da casa, embora lhe faltassem conhecimentos e recursos para amenizar a crise vivida por seus familiares.
Eu lutava com esse povo, eu fazia caldo pa esse pessoal, l im casa parecia um hospital, s se via gente chorar, s se via gente gemer, s, , era assim. E eu bataiando, e eu lutando com esse povo, e eu, ficou eu na Lagoa Vermelha que num teve malara. 429
427 J oo Miguel de Souza, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Divertido, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 428 J oo Miguel de Souza, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Divertido, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 429 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada no Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 277
Os ataques de malria provocavam reduo da capacidade de trabalho e consequentemente perda da produtividade, em razo do tempo do trabalho ter passado a ser regido pela doena. Nesse sentido, o Sr Antnio Eugnio recorda que apesar de ter sido acometido pelo surto da malria a exemplo de todos da sua casa, continuou a desempenhar, mesmo com dificuldade, as tarefas cotidianas at o sofrimento irromper no limite mximo de si mesmo.
Meu servio era dentro de casa, pro rio pescando, praqui pracul. Quando foi adepois, ela bateu em cima de mim e eu tremia comostodo. Quando deixava de tremer pegava a tarrafa e vinha pro rio pescar, s isso. E l vai, l vai. Depois, rapaz, no deu mais no! Depois eu ca mesmo que no tinha jeito. Tremia por desgraa, quando acabava de tremer caa dentro de uma rede e ficava como morto dentro de uma rede, febre como o diabo a no podia trabalhar. A! pra encurtar a histria, quase que eu vou me embora que ela deu forte mermo. 430
A memria do trabalho subtrada dos depoimentos colhidos, confunde-se em grande parte com a memria que se tem da epidemia de malria. Isto se explica, em virtude do tempo do trabalho no ser marcado nem pelo relgio, nem pelo calendrio agrcola, e sim pela doena. Nas lembranas do Sr. Raimundo Sabino da Silva as imagens do trabalho so acompanhadas dos acessos da malria.
Foi a doena mais pesada que eu peguei na minha vida. (...), voc amanhecia, acordava bomzim, como eu cansei de ir pus mato trabaiar, ficava perto de casa, cansei de ir, levava uma cabaa d'gua chega l dava malara a eu caa dibaxo duma sombra. Podia, eu bibia cinco lito (...), o senhor beber cinco lito d'gua, d'gua era dento de pouco tempo. Sei que com aquela febre medonha, aquela nsia medonha voc tomava aquela gua a que quando, a ia miorando. Quando voc miorava uma coizinha, com licena da palavra, a voc botava aquela gua todinha pra fora, a voc miorava uma coizinha. Quando era no outo dia as merma zora, era o mermo panco e assim a gente sofreu a uns oito ms, de seis a oito ms, uma coisa assim. 431
430 Antnio Eugnio da Silva, 81 anos. Entrevista gravada na Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 431 Raimundo Sabino da Silva (Cor), 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 02/02/1999. 278 Como parece ser comum no serto, no foi a seca o elemento de desorganizao econmica e social nos anos de 1937 e 1938, e sim a epidemia de malria que vitimou cerca de 34.425 pessoas em toda a regio. Diante desse enorme contingente de pessoas acometidas pela doena, faz-se necessrio ressaltar que s no municpio de Unio foram inscritas para tratamento 23.566 pessoas, conforme dados fornecidos pelo Jornal O Povo do dia 22 de abril de 1938. 432
importante explicitar, ainda, que essa desorganizao pde ser sentida diretamente na agricultura, que se fez refletir as conseqncias do mal, pois grande parte da populao ficou impossibilitada de exercer as suas atividades normais, malgrado os anos de 1937 e 1938 terem sido anos de invernos regulares. No obstante a epidemia de malria ter limitado as condies da fora de trabalho dos camponeses, minimizando a sua produtividade e, consequentemente provocando uma menor intensidade na produo agrcola, os depoimentos colhidos teceram a imagem da fartura neste perodo, a qual compartilhada por todos.
Teve inverno, teve inverno, inverno. Por Deus que im ns abateu l im casa, j as pranta j tava tudo pegado j, viu. Primeiramente, foi um dia cumeou com (...) Chico meu irmo mais vio morrendo o corpo foi simbora l pr fora, ficou. Pois foi outo, e foi indo, e foi indo e eu ficando mais o Dionsio meu irmo. Ns assim, ficou s eu e ele. Ns trabaiando no roado. O papai e outo pessoal im casa tudo aduecero, tudo duente l fora. E eu, at que um dia, dia desse eu fui caar, fumo caar de noite, matemo dois tatu. O tatu verdadeiro era uma caa assim como nem uma galinha, uma caa que num tem carrego de jeito algum viu. A (...) deixar l im casa, deu as hora dele chegar e nada, e nada, e nada. Nessa brincadeira, meu senhor! Esperei at ditardizinha ele num foi, a digo assim: Dionsio fez foi (...), a fui mimbora pr fora. A quando eu cheguei l fora tava arriado, arriado, a dor de cabea, dava febre com a dor de cabea (...) era um sofrimento, dava febre medonha. Ora tava morrendo, tremendo, se acabado de frio; outa hora era pegando fogo. Era assim, viu. Duena horrive. Acabou com muita gente nesse lugar. (...). Ave Maria, meu fi, num gosto nem de me alembrar! Sufri muito,
432 Em virtude da dimenso que o surto epidmico ganhava na regio do Baixo-J aguaribe, Herclio Costa e Silva, telegrafista da cidade de Limoeiro, redigiu uma comdia denominada O Mosquito da Malria, que foi encenada, no Teatro Moderno, no domingo, 29 de setembro de 1938, tendo como atores a elite cultural da cidade. O objetivo era esclarecer o povo que no acreditava no mosquito transmissor. Cf. Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onas. op. cit. p. 455. 279 chorei s, muitas vezes chorava muito l puro o roado. (...), ia olhar as pranta pur l, eu me lembrava de ver to pouco dia era ns tudim de magote, o papai, tudim, ns tudo dento do roado e eu me achar sozim numa situao daquela vendo a hora morrer um (...). Era, era, era poca de tristeza mermo viu. 433
A memria que o Sr. Onofre Augusto dos Santos guarda da malria est efetivamente associada s fartas lembranas do inverno de 1938: a malara foi um mal medonho, . Mais tambm foi inverno. Por um instante, o velho depoente passou a recordar aquelas paisagens to conhecidas dos seus olhos em outros tempos: essas lagoa tudo inchero, tinha peixe por todo canto, pa onde voc ia tinha peixe. 434 Apesar do carter agudo da epidemia de malria que vitimava a todos na regio neste perodo, o velho Onofre recortava para si mesmo aquelas paisagens pretritas navegando em suas saudades pelas guas calmas das lagoas de ento. Ao rememorar esse mesmo passado, o Sr. Antnio Eugnio recolhe as j dispersas lembranas e nos conta que apesar do inverno e da fartura, por exemplo de melancia, a fome campeava ao lado da doena.
Foi nada meu irmo, foi ano bom de inverno, bom de inverno, melancia, o cercado era auvim. A no, no coma que faz mau, no coma que faz mau. Carne de porco tambm, que nesse tempo Z Vana matava muito porco e era uns porco grande, no carne de porco tambm num coma no que faz mau. Nada fazia mau, nada fazia mau! Mais o povo tudo arricioso, o cercado era auvim de melancia, a no tinha quem comesse com medo e num fazia mau no, nada fazia mau. Agora o qu? A gente s vivia doente e a tinha medo de comer, mais num fazia mau no. Mais foi um ano bom de inverno, mais a gente doente de que servia? Tinha o comer e no podia comer! 435
A memria, por ser uma construo social, est constantemente sendo reelaborada. Partindo desta compreenso que percebo, na narrativa do seu Antnio Eugnio, como o presente serve
433 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada na comunidade do Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 434 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. 280 de parmetro para a reconceitualizao do passado; ou seja, hoje ele avalia os discursos acerca da malria que foram construdos no perodo e que dizem respeito, sobretudo, ao medo coletivo de comer determinados alimentos, quando diz que nada fazia mau, nada fazia mau!. Contudo, faz-se necessrio esclarecer que os discursos variam de acordo com as experincias vividas por cada sujeito. Nesse sentido, o medo justificava-se em razo das conseqncias advindas da ingesto de alguns alimentos como ressalta o mesmo depoente.
Nesse tempo tinha fartura, o inverno foi bom, mais ningum no podia comer no, porque o povo era no, no coma. A com licena da palavra se voc comesse e se voc sentisse ela, o Sr. comesse um pedao de melancia, uma banana assim que desse pr voc comer, com pouco tempo, com licena da palavra, que voc provocasse voc adormecia os dentes tudim de to azedo que saa. Uma coisa sem forma rapaz! era azeda que sei l como diabo era aquilo. E tinha uma coisa, quando saa era aquela colda amarela, parecia assim uma tinta. Era, a bicha era nojenta. A gua , gua voc bibia tambm tem uma coisa, a gua voc podia carregar, chegava ali o povo carregando um baldo desse de litro voc bibia, chega, a com pouco era s beber e botar pr fora azeda que chega adormecia os dentes, a bicha era nojenta. 436
Paradoxal a esses discursos, o depoimento que o Sr. Onofre Augusto dos Santos d, quando justifica o mtodo pelo qual ele curou a sua doena. Segundo o depoente, no foram os comprimidos de atebrina que provocaram o seu restabelecimento, mas sim as melancias quentes que comeu no roado.
Agora eu iscapei a malara, eu tinha a malara iscapei, iscapei fcil da malara porque eu num tumei remdio no, tumei atrebina, atrebina eu tumei, mais eu curei a malara com melancia quente, no roado, cumendo. Cumendo melancia quente iscapei. Porque ela tambm tinha um nego, ela tinha um nego, o camarada fosse, o camarada fosse ter resguardo com ela murria logo, murria logo porque num cumia, n? A malara era to grande que caa a pele da lngua todinha e num pudia cumer, , num pudia cumer, caa a pele da lngua. um mal medonho, d uma febre horrive. A malara dava uma febre medonha. 437
435 Antnio Eugnio da Silva. 81 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 436 Antnio Eugnio da Silva. 81 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 437 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. 281
Da mesma forma, comendo melancia quente no roado, o Sr. Francisco Abel Lino disse ter se curado da malria. Segundo seu Chico Abel, alm da malria ter provocado fastio no povo, quando vinha um mdico, orientava uma dieta na qual no se podia comer quase nada; a no ser, caldo de arroz. 438
L em casa tinha um gado, ns tirava o leite todim. Enchia uma panela muito grande de leite, panelona de barro. Nesse tempo, usava era panela de barro. A, cunziava o leite. Eu, passava o dia oferecendo leite a esses duente. Que a malara, deu fastio no povo. A, esse povo era um fastio, num tinha quem quizesse beber esse leite. (...). Truce uma sacada de mi, cheia. Cheguei, fui fazer cumer pra esse povo. Relar, fazer canjica pra d o povo. Ora! Uma canjica de leite, n? Era bom. Num tinha quem quizesse. E bem... A, meu pai... Eu contando a histria, meu pai disse: - Oi! Amanh vai buscar uma melancia pra mim. Que j sei que o remdio dessa malara fruta, melancia. A, eu fui mermo. No outo dia, fui e comi melancia l, e truce melancia pro vi. E, ele cumeu, miorou, e, a, os outo tudo cumia. E, cajarana. Eu digo: - Oi! Ningum vai mais fazer dieta aqui nessa casa. pra cumer, o que aparecer pra cumer. A, levantei tudim, num morreu nenhum da malara, n? Levantei tudim. 439
Segundo o depoente Eduardo Soares de Lima 440 , no foi a malria que matou um nmero considervel de pessoas na regio, mas a fome que passaram, embora os roados estivessem recobertos de feijo, melancias, batatas, jerimuns... haja vista os anos de 1937 e 1938 terem apresentado uma boa estao chuvosa como foi assinalado anteriormente. Assim como seu Eduardo, o Sr. Conrado Jos da Silva acredita que a fome fez, igualmente, a sua ceifa ao lado da molstia.
Na malara, me lembro como se fosse hoje. Na malara, eu j era rapaz, j. No tempo da malara, foi ano de muita fartura: feijo, mio, nesses cercado, melancia, jirimum. Mas, quem que ia cumer? Num tinha quem cumesse. No, ningum cumia no. Morreu tanta gente, morreu tanta gente no tempo da malara. Mas, morreu de fome. (...). Arroz? Arroz, era butado no fogo, quando ele cunzinhava, passava... quando ia butar no fogo, lavava em duas gua, butava na panela com um bucado
438 Segundo Lauro de Oliveira Lima, (...) no incio da peste, os curandeiros locais aconselhavam rigorosa dieta aos doentes (...). Cf. Lauro de Oliveira Lima. Na Ribeira do Rio das Onas. op. cit. p. 455. 439 Francisco Abel Lino (Chico Abel), 83 anos. Entrevista gravada na comunidade do Bixopa, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000. 440 Eduardo Soares de Lima, 78 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999. 282 dgua, quando ele ia acochando, ia pulando, tumava aquele caldo. Era s... Despejava numa urupemba. J tinha uma urupemba de passar aquele feijo, aquele arroz; s bibia o caldo. A, quando... Aquela carne era butada no fogo, quando ela cunzinhava, era passada na urupemba, s bibia o caldo. (...). Leite? Leite era cunzinhado trs vez. Butava no fogo, quando ele subia, tirava pro lado, tirava aquela nata, quando ele baixava, butava de novo. Quando ele subia, tirava pro lado, tirava aquela nata. Tirava a nata trs vez do leite, pra poder ns beber uma coisinha. (...). A, eu mandei essa minha irm butar feijo, uma panela de feijo no fogo, feijo novo. Eu mandei ela butar. Quando ela butou, eu mandei ela jogar po de mio dento e fazer um piro. Piro de po de mio, com feijo e nata de leite. Comi, chega fiquei logo...Quando foi nesse dia, eu num tremi, no outo dia de manh eu num tremi mais e acabou-se. Tava morrendo era de fome, era. 441
Preocupados com o avano da epidemia de malria em toda a regio do Baixo-Jaguaribe, o Sr. Raimundo Mendes Martins e a sua esposa, D. Eullia, resolveram emigrar para o municpio de Baturit, onde residiam alguns de seus parentes, com medo que a malria fizesse de vtima o magote de minino que tinham. Iniciada a viagem, na primeira parada para prepar o almoo, D. Eullia comeou a sentir os sintomas da doena; tinha pegado a malara. Segundo o Sr. Raimundo Mendes, D. Eullia foi sofrendo no camim durante toda a viagem; quando dava aquela hora, batia a sezo danada. Por dois meses, D. Eullia sofreu com febres e com fortes dores de cabea, alm, claro, do tremor que os acessos da doena provocava em seu corpo. Nada sirvia; at que um dia, quando ia cidade de Baturit comprar algum remdio, seu Raimundo Mendes foi interrogado por um velho amigo de nome Pompeu: Meu amigo, pra onde vai nessa carreira? Respondendo, pois, a indagao que seu amigo lhe fizera, seu Raimundo disse-lhe: Vou comprar remdio pa muier, que uma sezo danada e t com dois ms de sezo. Ao tomar conhecimento da situao em que se encontrava D. Eullia, Pompeu vi, recomendou que seu Raimundo lhe desse, como remdio, o ch da folha da manga marac:
- Ora, rapaz! Talvez voc tenha no terreiro da casa, tenha, um remdio pra ela. Que ? Basta voc d dois ch a ela de manga marac; ela fica
441 Conrado Jos da Silva, 76 anos. Entrevista gravada na comunidade do Tom, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000.
283 boa. Eu cheguei, disse a ela, a curri pa caar. Foi, fui torrar massa. A, os minino tudo era piqueno. Raimunda... Nem, v na carreira ali no p de mangueira, traga um bucado de foia pa me fazer um ch pa mame. Ela fez o ch, mas, tava tremendo, num bebeu. Quando parou, miorou, bebeu. No outo dia, deu bem fraquim. Bebeu outo ch, pronto, desapareceu. Ch da manga, da foia, marac. o remdio. 442
Em seus relatos de memria sobre a epidemia de malria, meus amigos de travessia deixaram entrever, ainda, a maneira como eram realizados os enterros na regio. Nesse sentido, farei brevemente uma descrio desses enterros, chamando ateno para alguns procedimentos que julgo terem sido intensificados em razo, sobretudo, da grande quantidade de bitos ocorridos neste perodo em virtude da epidemia de malria. Tendo em vista que as medidas oficiais no foram proporcionais extenso da epidemia e, por outro lado, os perodos de chuvas terem sido bastante acentuados, sendo necessrio ainda considerar que o nmero de doentes contava-se aos milhares, sobretudo, nas zonas rurais e que eles achavam-se impossibilitados de viajar para os centros urbanos dada as condies das estradas no serem favorveis, alm dos sentidos construdos em torno da doena os quais j foram minimamente comentados, verificou-se um aumento substancial no nmero de vtimas fatais. O Jornal O Povo do dia 20 de abril de 1938 publica uma matria sobre O Impaludismo no Baixo Jaguaribe na qual informa que na cidade de Russas em apenas oito dias foram assinaladas sessenta mortes, sem falar nos cemitrios localizados em povoados distantes. Na mesma matria, pde ser encontrada ainda a narrativa de um acontecimento que torna possvel estabelecer um nvel de compreenso acerca da singularidade daquele momento do qual o vigrio da mesma cidade pde experenciar como testemunha ocular.
442 Raimundo Mendes Martins, 92 anos. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000.
284 O vigrio, Padre Vital, com uma dedicao de apstolo, fra atender a um dos inmeros chamados para confisso. Em viagem, avistou um pobre homem que tombara sobre um lamaal, beira da estrada. Socorrendo-o, o bondoso sacerdote constatou que se tratava de um acesso de impaludismo. E soube que o infeliz era o unico de sua casa que se conservava com sade e por isso vira at a cidade comprar uma mortalha para a sogra. No caminho, a molestia o atacara daquela forma traioeira e impiedosa... Isso prova que somente com as visitas domiciliares poder ser atenuada a situao. 443
Segundo o Sr. Onofre Augusto dos Santos, se no fosse a Providncia Divina teria morrido a maior parte da populao do municpio de Russas neste perodo. Dada a grande quantidade de bitos no municpio, o velho Onofre relata as dificuldades que se tinham para se carregar os cadveres. Segundo ele, j para o final da epidemia, eram os jumentos e algum outro caminho que passaram a fazer os transportes dos cadveres da zona rural para o cemitrio da cidade. No municpio de Unio, como assinalei anteriormente, mais de 23.000 pessoas foram acometidas pela doena. Em seu depoimento, o Sr. Joo Pereira Cunha narra que todos os dias era grande o cortejo de mortos que vinham dos Afogados, do Rancho Fundo, de Santa Luzia, da Lagoa Vermelha..., para o cemitrio da cidade. Ele ainda lembra que aquelas famlias que tinham uma melhor condio social, quando morria algum de seus membros, mandavam fazer um caixo para enterr-los. Por outro lado, aqueles que no possuam meios econmicos, realizavam os seus enterros tendo por base uma msera rede que, certamente, servia-lhe em vida. Cabe aqui apenas destacar que uma leitura mais atenta da memria do Sr. Antnio possibilita perceber as prprias contradies sociais, vividas na regio neste perodo, que se revelam no modo de como eram enterrados os seus mortos. Com o desenvolvimento espantoso da malria e com a taxa de mortalidade atingindo percentuais inimaginveis, a populao encontrava-se em estado de alerta, pois rara foi a casa em que a
443 O Povo, 20 de abril de 1938. 285 doena no se alojou. Segundo D. Ana Francisca do Esprito Santo, 444 s quem morava aqui na serra, num teve malara, no. No obstante, quem morava l fora, do Quixer pra l, pra varge, pra banda da varge, era pirigoso ser ferruado pelo musquito da malara, que, segundo D. Ana Francisca, s picava as pessoas no perodo da noite, uma vez que, durante o dia, eles era oculto. Assim, por conferir proteo relativa aos indivduos isoladamente, tornou-se comum ao povo de l do baixo, a onde era perseguido, o uso de mosquiteiro como medida preventiva picada do mosquito. 445
Com efeito, aqueles que tinham seus corpos picados pelo mosquito, muitas vezes no se demorava para terem suas vidas ceifadas; no lhes sendo possvel traduzir os momentos agonizantes em que sentiam os seus corpos, finitamente mortais, cada vez mais se apagando. A morte do pai narrada pelo Sr. Antnio Eugnio sintoniza a dimenso dessa tnue distncia entre a vida e a morte.
E meu pai trabalhava l no finado Herculano, bonzinho, no sentia nada, a quando foi um dia de manh amanheceu o dia se sentindo que estava doente, dizendo ele que estava doente. A, no sei se era uma gripe, no sei de que ele estava doente, que a tomou uma pilha do mato foi, tomou uma pilha de mato, foi e tomou uma pilha com pouco tempo ele sentiu que queria tremer, ele disse: - rapaz, a malara que quer me dar! A foi e tomou a pilha da malara, uma tal de apebina, foi s tomar, no mais que ele aturou, se ele aturou uma hora, aturou muito dentro da rede. A quando eu dei f, a ele pegou a se remexer s o que fez foi um gestozim na boca, a ali ele liquidou, a morreu. Ele j tinha uns 70 anos, era meio velho! Era um velho forte, ele trabalhava muito. 446
A morte, efetivamente, uma problemtica que ultrapassa a linguagem. Ela, na verdade, representa o inverso da linguagem. Nesse sentido, quero chamar a ateno para a linguagem do corpo quando este chega no limite da sua existncia: (...), a ele pegou a se remexer s o que fez foi um gestozim na boca, a ali ele liquidou, a morreu. (...). Contudo, parece claro que no desaparecimento do corpo este ainda
444 Ana Francisca do Esprito Santo, 94 anos. Entrevista gravada na comunidade do Cercado do Meio, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000. 445 O mosquito transmissor da malria cientificamente denominado de anpheles gambiae.
446 Antnio Eugnio da Silva, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 286 consiga ao menos emitir uma palavra; que embora pertena ordem daquelas que so indizveis muito embora de uma forma ou de outra procuremos escut-la em meio ao seu silncio. 447
No municpio de Unio, segundo o Sr. Joo Andr Filho, houve muitas pessoas que morreram e no tiveram quem pudesse carregar os corpos para o cemitrio, o que obrigava a polcia a realizar tal tarefa. Dos Cardeais para a Jureminha, j na fase final da epidemia de malria, o Sr. Antnio Eugnio lembra que havia apenas duas pessoas para carregar os defuntos: o Joaquim Nenm e o Joo da Luzia. Recorro memria do Sr. Raimundo Sabino, no entanto, para descrever o modo como eram conduzidos os corpos das vtimas que moravam na zona rural para o cemitrio.
Nesse tempo se carregava numa rede, num pau, num sabe? Dois a diante, dois atrs ns pegava. Vem vindo l dos Cardeais ou l da Jureminha, fosse l donde fosse, aqueles quato tinha que vim botar a baxo na casa de Antnio Severiano, a tomava um forgozim. A chegava no sumitero tinha um caixo das alma como se diz, n? A gente butava dento aquele caixo a levava de volta, vinha pu sumitero tirava aquela pessoa na rede butava dento a cova e guardava o caxo. A, vez quando ns chegava im casa, j tinha outo. Quem tava miorzim uma coisinha era pa carregar os outos e era assim, um sufrimento medonho. 448
Quanto ao sepultamento, abria-se uma pequena vala sobrepondo uns sobre os outros os cadveres, de modo que os ltimos ficavam bem prximo da superfcie da terra. Este servio era feito de forma acelerada, pelo fato de ser grande o nmero de mortos por dia.
Nesse tempo no era caixo, era rede. Morria s era amarrar os pe da rede, levava pro cemitrio. Quando chegava no cemitrio l era s butar no cho, o coveiro cavava a cova rebolava dento. Tinha cova de botar dois, era desse jeito. (...), era s chegar amarrar os pe da rede, botava uma ponta nas costas um na frente outro a trs, passaram foi dias nesta penria. 449
447 J acques Revel e J ean-Pierre Peter. "O Corpo: o homem doente e sua histria". In. J acques Le Goff e Pierre Nora. Histria: novos objetos. op. cit. pp. 153 e 154. 448 Raimundo Sabino da Silva (Cor), 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 02/02/1999. 449 Antnio Eugnio Da Silva, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 287 Entretanto, antes de prosseguirmos na travessia, gostaria de ressaltar que apenas o Sr. Raimundo Sabino fez referncia ao caixo das almas, ao passo que todos os outros depoentes referiram-se apenas rede como nico esquife possvel queles que tiveram os seus corpos mortos pela malria. A minha preocupao em fazer essa observao, se inscreve muito mais na idia de chamar a ateno para a singularidade expressa no depoimento do seu Raimundo Sabino, do que desconsiderar a veracidade da sua fala. A rigor, a questo da verdade no depoimento oral precisa ser pensada levando em considerao que os exerccios da memria foram nosso esprito a fazer um vai-e-vem entre acontecimentos, tempos diferentes e lugares distintos. Com isto, no devo concentrar minha preocupao em saber se o entrevistado falou ou no a verdade no momento da realizao da entrevista. Contudo, imprescindvel, ao historiador que trabalha com oralidade, estar atento para perceber qual a verdade construda pelo entrevistado e porque ele construiu de uma forma e no de outra. Depois de atravessarmos, nesta segunda parte do trabalho, os sertes das secas, das cheias e das doenas - situaes que em muito desarticulam o cotidiano de trabalho do campons, embora no paralise todas as relaes de trabalho e produo desenvolvidas na regio -, a travessia prosseguir, agora, pelos espaos do campo e da cidade, buscando apreender os significados que os entrevistados atriburam a esses dois espaos.
288
Gosto mais dos mato, tem mais custume nos mato; nunca morei em cidade Joo Andr Filho
Embora tenha cruzado solitariamente muitas veredas de roa, foi na companhia de velhas e velhos camponeses que realizei a travessia por diversos lugares cujas lembranas fez aproximar tanto a saudade do desejo como a hostilidade do esquecimento. Assim, ao longo da travessia, com o pensamento voltado s lembranas do passado, alguns depoentes foram revendo cenas de terna felicidade que lhes marcaram a vida na medida que descreviam, do espao feliz de outrora, as imagens carregadas de farturas e venturas. Outros, no entanto, descreveram com imagens de hostilidade alguns espaos do passado que foram vividos com muitas dificuldades. Portanto, das narrativas colhidas, procurei recuperar como matria para minha reflexo as prticas/vivncias que consubstanciam uma forma de estar e representar o lugar em que vivem e/ou viveram meus depoentes. Assim, a partir de suas experincias de vida, os camponeses demonstraram o quanto so marcadamente afetivas as relaes que eles mantm com o lugar, assim como a leitura que fazem do mesmo. Nesse sentido, a exemplo do tempo, o lugar qualificado pela presena humana e pela ao dos afetos e da imaginao. Decerto, as imagens rememoradas no representam um composto de idias tranqilas, nem muito menos idias definitivas. A 289 rememorao de qualquer espao vem sempre acompanhada e enriquecida por novas imagens. 450 Desse modo, movidos pelo desejo e pela imaginao, muitos de meus interlocutores produziram uma interpretao pessoal ao rememorarem os lugares de outrora. No entanto, no entrelaamento das memrias, reconstri-se a imaginao coletiva dos lugares cujas imagens da fartura e da ventura sobrepem- se s imagens da misria e da desventura. Nesse sentido, meus depoentes tm nas secas e nos invernos, um marcador espacial de excelncia, na medida em que tanto as secas como os invernos representam uma vivncia atravs da qual organizam no apenas as noes de espao e de tempo, mas suas prprias vidas. No obstante o mundo rural esteja sendo redesenhado no que diz respeito tanto a seus aspectos naturais como culturais, a maneira pela qual cada campons interpretou os espaos vividos possibilita uma leitura sempre afetiva do espao. Ao reconstrurem, pois, seus territrios, os camponeses tm como principal referncia, no apenas um simples espao geogrfico, mas os diversos sentidos e significados que a ele so atribudos. Sendo assim, podemos pensar que o espao no existe concretamente; o que existe, de fato, o lugar, sendo, portanto, o espao um lugar significado. Michel de Certeau, 451 em sua obra A Inveno do Cotidiano, trabalha com a idia de bipolaridade entre as categorias espao e lugar, para pensar o espao real vivido como resultado de uma construo efetivada pelos sujeitos a partir de suas prticas e experincias. Certeau procura definir, pois, o espao como um lugar praticado, ou seja, como resultado de prticas sociais, e o lugar como um conjunto de elementos que coexistem dentro de uma certa ordem.
450 Gaston Bachelard. A potica do espao. op. cit. p.19.
451 Michel de Certeau. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. op. cit.
290 Compreender, pois, os dispositivos afetivos, muitas vezes tenuamente articulados, presentes no olhar dos camponeses, parece- me ser uma maneira de compreender o quanto meus amigos de travessia esto culturalmente enraizados nesse lugar-serto. Nesse sentido, a travessia realizada na companhia de velhas e velhos camponeses pelos lugares que guardam nas lembranas, possibilitou- me chegar a alguns desses dispositivos afetivos, os quais podem ser traduzidos nas formas do desejo, do prazer e da repulsa em relao aos espaos do campo e da cidade. Primeira Parada: O lugar serto.
452
Nasci pra morar na roa, nos matos, na histria matuta Joo Andr Filho
(Foto 29 casa do Sr. Antnio Eugnio da Silva Pacatanha Chapada do Apod Jaguaruana)
Apesar da produo discursiva em torno das secas ter construdo uma srie de imagens clssicas que do visibilidade natureza do serto, como sendo uma natureza indcil na qual o sol
452 Nesta travessia, onze foram os guias: Onofre Augusto dos Santos, Maria J lia dos Santos, Raimundo Sabino da Silva (Cor), Pedro das Neves Cavalcante, Zacarias Francisco de Almeida (Isac), Euclides ngelo Cordeiro, Rosa Maria de Almeida, Antnio Eugnio da Silva, Joo Miguel de Souza, Luzia Maria da Silva e Estelita Crispim Gomes. 291 sempre inclemente, a terra sempre estorricada, seca e causadora de sofrimentos, em que a cor da paisagem sempre a cinza, onde s o mandacaru, o juazeiro e o papagaio so verdes, 453 os camponeses tm uma forte vinculao com o lugar como parte integrante da sua prpria identidade social e cultural. Nesse sentido, ao longo da travessia, busquei apreender os significados que meus depoentes atriburam aos lugares, onde moram ou moraram, muito mais pelo prisma dos elementos culturais e sociais do que pelos aspectos fsicos, geogrficos, econmicos, ou demogrficos. Segundo Armand Frmont, as bases econmicas ou demogrficas no permitem perceber a totalidade das relaes que unem os homens aos lugares. Assim, para avanar no conhecimento das relaes que os homens mantm com os lugares que constituem uma determinada regio, ser preciso, pois, modificar a perspectiva de estudo a despeito dessa relao. Para isto, no entanto, faz-se necessrio compreender que o homem no um objeto neutro no interior da regio como nos chama a ateno Frmont. Nesse sentido, o processo de apreenso dos espaos acontece desigualmente na medida em que as transparncias da racionalidade que envolvem a relao dos homens com a regio so pertubadas pelas inrcias dos hbitos, pelas pulses da afectividade, pelos condicionamentos da cultura e pelos fantasmas do inconsciente. 454
O espao vivido produz, pois, as realidades regionais cujos componentes so administrativos, histricos, ecolgicos, econmicos, e mais profundamente, psicolgicos. Desta forma, a regio no um objeto com realidade em si, mas um espao vivido. Nesse sentido, preciso capt-la onde ela existe, ou seja, na maneira pela qual os homens a vem.
453 Segundo Durval Muniz, o romance de trinta foi, em grande medida, responsvel pela instituio dessas imagens clssicas em torno da seca. Cf. Durval Muniz de Albuquerque Jr. A Inveno do Nordeste e outras artes. op. cit. p. 121. 454 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 16 e 17. 292 A regio, se existe, um espao vivido. Vista, apreendida, sentida, anulada ou rejeitada, modelada pelos homens e projectando neles imagens que os modelam. um reflexo. Redescobrir a regio pois procurar capt-la onde ela existe, vista pelos homens. 455
Portanto, imperioso compreender que as relaes do homem com o espao no expressam dados que so imanentes ou inatos. Ao contrrio, essas relaes combinam-se numa experincia vivida que, de acordo com as idades da vida, se forma, se estrutura e se desfaz. Desta forma, o espao vivido deve integrar uma dupla dimenso do tempo que se caracteriza no tempo histrico e no tempo pessoal; assim como deve integrar, tambm, o movimento que representa o deslocamento no tempo e no espao. 456
Objetivando, pois, neste tpico, discutir as relaes entre meus depoentes e o(s) lugar(es) que de uma forma ou de outra permanecem vivos em suas memrias, recorro, ainda, Ecla Bosi, 457
para lembrar que as paisagens so imagens de um real indefinido e mvel que se estendem tanto fora como dentro de ns. Dessa forma, ao atravess-las, torna-se impossvel separar a memria do sonho e a memria do vivido. Consciente, portanto, dessa tnue relao entre memria e sonho, e memria e vivido, encontrei, na noo de espao segundo Gaston Bachelard, um outro caminho possvel para pensar as dimenses culturais na produo do espao. Segundo Bachelard, o espao vivido com todas as parcialidades da imaginao.
o espao percebido pela imaginao no pode ser o espao indiferente entregue mensurao e reflexo do gemetra. um espao vivido. E vivido no em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginao. 458
455 Idem, ibidem. p. 17. 456 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 23 e 26. 457 Ecla Bosi. ir. Lembrar. In. Carlos Rodrigues Brando. Memria serto: cenrios, cenas, pessoas e gestos nos sertes de Joo Guimares Rosa e de Manuelzo. op. cit. p. 7. 458 Gaston Bachelard. A potica do espao. op. cit. p. 19. 293 Porm, foi a noo de espao vivido desenvolvida por Armand Frmont, que me possibilitou melhor compreender o apego que, de modo geral, meus amigos de travessia demonstraram ter em relao ao mundo rural, o qual est enraizado numa vivncia cultural que, por vezes, parece servir de identidade nica entre os camponeses e o lugar que habitam. Este, decerto, no representa simplesmente o espao, mas o local onde nasceram; onde comearam a vida e aprenderam a ver o mundo; onde criaram laos afetivos com a famlia, com a vizinhana e com a prpria natureza. Todo esse enraizamento, como observa Frmont, revela o quanto os lugares pertencem aos homens e os homens pertencem aos lugares. 459
Este sentimento de pertena que une os homens aos lugares, e, mais especificamente, os camponeses ao espao rural, est em grande medida marcado pelo valor sentimental que estes atribuem terra, pois esta no representa um simples pedao de cho; compreendendo, assim, o territrio familiar que foi, muita vezes, herdado dos antigos. Entretanto, mais que uma simples extenso de terra, o territrio familiar demarcado pelo espao da casa, do roado, dos currais, dos chiqueiros, enfim, por todos os espaos com os quais se encontram afetivamente ligados.
459 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. pp. 176 e 177. 294 (Foto 30 terreiro da casa de Sr. Antnio Eugnio Pacatanha - Jaguaruana)
Assim, mergulhado em suas saudades, o Sr. Onofre Augusto dos Santos falou-me do pedao de cho em que mora como se fosse o seu mundo, o nico mundo que herdara dos seus pais e que lhe ficara para sempre grudado na alma. Cheio das paisagens do passado, o depoente no conseguiu esconder o quanto dolorida lhe ficava a alma, ao lamentar o que o tempo fizera dos muito farelo deixados por seus pais. 460
E a vai... vai se acabando assim mermo, vai se acabando assim mermo. por isso que hoje, como eu t lhe contando assim, o meu pai, minha me que era irm do pai... do finado a do compade Z, deixou muito farelo e no fim num ficou com nada. Deixou muito farelo de coisa, mas, no fim num ficou com nada. Se acabando... vai se acabando divagazim assim, vai indo se acaba. Se acaba, porque hoje como j dito, donde se tira e num bota, nada vai pra frente no. Se aqui houvesse um inverno bom, se houvesse uns dois ou trs ano de inverno bom, aqui era muito bom de... de... de se viver. Mas, do jeito que vai no. 461
460 Segundo Marilena Chau, (...) diante da impotncia presente e da falta de esperana num futuro melhor, o passado opera como referencial para o imaginrio elaborar a diferena temporal, fazendo do passado um outro tempo possvel. Cf. Marilena Chau. Conformismo e Resistncia. op. cit. p. 157. 461 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. 295
(Foto 31 Sr. Onofre e D. Maria Jlia Lagoa de Santa Teresinha Russas)
Atravessando um pouco mais o rio de sua vida, D. Maria Jlia descreve com muito zelo e com mais riqueza de detalhes os farelo deixados pelos pais de seu esposo. Por um instante, passou a rever toda aquela terra que fora um dia rica e poderosa. Terra que embora hoje se apresente como decadente, como terra do j teve, encontra-se inscrita na memria dos que nela viveram todas aquelas paisagens relativas a um tempo de fartura, todos os aspectos materiais que compunham a riqueza da terra, assim como no poderia deixar de ser todas as figuras humanas que naquele lugar fizeram histrias.
Ave Maria! Aqui quande... eu chorava... no tempo que eu namorava com ele, eu chorava pra vim pra c. Que era lugarzim bom, lugar rico. Na casa do meu sogro, eu vinha passiar, l de noite assim a gente via era o alvo, a era os paiol da farinha. E hoje em dia quem t esse povo? Os curral chei de gado, o curral do meu sogro era chei de gado. Era de duas, quais duas lata de gs tirava de leite. A minha casa comeou a gotejar no ano que eu me casei, minha casa comeou a gotejar; a, ele disse assim: - Maria Jlia, ns vamo l pra casa do papai passar uns dia enquanto endereita essa casa. A, ns fumo. A gurdura... butaro ns num quarto, a gurdura do queijo caa na berada da minha rede. E hoje em dia a gente num v mais isso, pode cumer um queijo se cumprar, pode cumer uma quarte de queijo se cumprar. Meu sogro muito... meu sogro, agora eu fao como o ditado, num era rico no mais era bem 296 rimidiado, bem arrimidiado. Era paiol de farinha, curral de gado, chiqueiro de ovia de dizer que num era s... s trinta ovia no. Munta ovia, ele matava de duas, trs na semana. Quando ele matava, ele era gente muito boa, num foi porque morreu no, mas era gente muito boa pra mim. (...). Este Onofre, agora eu fao como o ditado, possua tanto gado; mas, hoje em dia, i. Se acabou assim, tempo de seca, eles aqui, n? Mas aqui, aqui... aqui era lugar rico. Sabe como era lugar rico, tinha era uma casa de farinha, tinha era uma casa de farinha. Era um lugar rico, eu chorava pra vim pra c. E hoje, agora eu fao como o ditado, num saio porque o canto deu viver aqui. 462
Ao contrrio do Sr. Onofre, que herdou dos pais a terra em que mora, o Sr. Raimundo Sabino da Silva, assim como o seu irmo o Sr. Antnio Eugnio da Silva tiveram que comprar na dcada de 1960 o pedao de terra onde moram na Pacatanha, localizada no alto da serra do Apodi, no municpio de Jaguaruana. Seduzido pela boa fertilidade das terras da serra, seu Cor, como mais conhecido, relata a maneira pela qual veio morar na terra que hoje lhe pertence.
Eu vim... eu vim... eu vim... eu cheguei aqui no dia 15 de janeiro de sessenta e quatro, dia 15 de janeiro de sessenta e quatro, onze hora da noite eu cheguei aqui. Eu vim aqui trabaiar, um homem dono dessa terra... eu vim aqui trabaiar, ele (...) esse roado aqui... A, eu tenho muita vontade de morar aqui; que eu via as terra boa da gente trabaiar, n? A um dia, ns conversando, eu digo: eu queria que achar um fi de Deus que me desse uma morada aqui que eu vinha mimbora pra c. Ele disse: 'voc vinha mermo?' Eu digo, vinha. 'Aps eu lhe dou, dou uma morada l fora na estrada'. Nesse tempo, a estrada era aqui. A, eu levantei uma casa ali aonde tem esses pein de pau. A, com a continuao do tempo aqui, com dez ou doze ano ele foi simbora pa Fortaleza e quiria vender essa terra. A, eu comprei essa terrinha. A, inda hoje eu t morando aqui. 463
A ida para serra, primeiro como morador e depois como proprietrio da terrinha onde mora at hoje, significou para seu Cor ter melhores condies de trabalho e de vida, embora, no primeiro momento, ainda estivesse atrelado ao dono da terra, ou seja, numa condio de sujeio que est, necessariamente, ligada ao fato de ser ele um morador da terra do patro.
462 Maria J lia dos Santos, 72 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 25/10/1999. 463 Raimundo Sabino da Silva (Cor), 79 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, no municpio de Jaguaruana, no dia 02/02/1999. 297 Este sentimento de pertencimento aos lugares que muitas das vezes so habitados desde a infncia, revelou-se com toda fora quando o Sr. Pedro das Neves ressaltou que nunca quis saber de negcio de morar de cidade no. Abandonar a caatinga, representava, para o velho Pedro das Neves, deixar para trs o prprio universo familiar, ou seja, o espao onde seu pai sempre morou; por outro lado, representava, ainda, abandonar o espao do seu trabalho, a terra que lhe garantia o sustento.
Eu quiria mermo morar como eu moro, assim, no interior, pa puder trabaiar. Na cidade que que a gente fazia? Vou nada! Eu... Toda vida eu fui home de morar nas catinga. Morava... Meu pai morava nas catinga, eu morava nas catinga e hoje comprei essa propriedadizinha com os poder de Deus, eu ainda muito novo pa trabai, com os poder de Deus pa trabaiar. 464
Dentro, pois, das relaes que unem os camponeses ao mundo rural, o espao familiar, aqui entendido como aquele que alimenta, protege e tranqiliza, a expresso que melhor dimensiona o enraizamento destes ao espao vivido do serto. Simbolicamente, o espao agrrio dos camponeses se confunde com os mistrios do corpo materno, atravs das imagens da fecundao, da nutrio e da proteo.
O primeiro espao o do seio materno. (...). Em seguida, na metamorfose do corpo, a adolescncia exprime-se tambm por uma mutao do espao. Entre o desenvolvimento do corpo e do espao existe uma quase-solidariedade. O ninho materno ao mesmo tempo invlucro, proteo, nutrio, comunicao... No continuar o espao a ser sempre um pouco isso? 465
Para Armand Frmont, a demonstrao desta simbologia ganha o mais absoluto sentido quando o homem se acha deslocado num espao que j no o seu de origem. Nesse sentido, tomando um homem citadino como exemplo, Frmont diz que este no se aventura na
464 Pedro das Neves Cavalcante, 74 anos. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
298 floresta, onde no se sabe encontrar o caminho, onde as rvores so annimas e onde o seu corpo se sente estranho, vulnervel, angustiado. 466
Embora as percepes e as pulses sejam individuais, a criao das formas do espao quase sempre obra coletiva. Como anteriormente foi assinalado, as relaes do homem com o espao combinam-se numa experincia vivida, a qual varia de acordo com as idades da vida; ou seja, o espao vivido, desde a mais tenra idade, um espao social. Nesse sentido, Frmont chama a ateno para a necessidade de sabermos distinguir os componentes presentes na atividade representativa deste espao social.
A apreciao mais delicada ainda a que deve distinguir na actividade representativa a parte respectiva do prtico e do afetivo, do funcional e do mgico, do material e do mental. Todos estes componentes se encontram na criana e provavelmente no adulto; (...). 467
Assim, na maneira pela qual o Sr. Pedro das Neves representou o espao social da caatinga, fica evidente tanto o apelo ao recurso afetivo Meu pai morava nas Catinga... - quanto ao recurso da funcionalidade do espao Eu quiria mermo morar como eu moro, assim, no interior, pa puder trabaiar -. Em seus relatos de memria, os camponeses demonstraram o quanto forte o sentimento de localidade entre eles. Nesse sentido, o Sr. Zacarias Francisco de Almeida qualifica o espao do campo como um espao bem definido, cuja extenso abrange a casa, o roado, a mata, enfim, os espaos do descanso e do trabalho.
Eu gosto do campo, . Eu gosto do campo, que aqui, agora eu fao como o outo, eu amanheo o dia sei pa onde que eu vou. Amanhece o dia, eu me arrumo, vou po meu roado, po meu... cortar madeira, pa minhas luta. Ir pa rua, ir pa rua fazer o qu? Eu num vou beber, num tenho dinheiro pa brincar, num tenho dinheiro... E aqui a vida outa, pa gente que mora aqui, muito diferente mermo, muito diferente. 468
465 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. pp. 47 e 48. 466 Idem, ibidem. p. 50. 467 Idem, ibidem. p. 27.
468 Zacarias Francisco de Almeida, 84 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. 299
Se na fala do seu Isac, as fronteiras do campo aparecem tecidas de forma inequvoca na forte coerncia dos hbitos, o espao da cidade desenhado com traos que demonstram caractersticas distintas do meio rural, ou seja: espao do no-trabalho e do desregramento social. Segundo Raymond Williams, o imaginrio social, motivado pelas atitudes emocionais dos homens, define o espao do campo como lugar da subsistncia e o espao da cidade como lugar das aventuras humanas. Outros significados, no entanto, so atribudos a ambos os espaos, a partir de conotaes positivas e negativas. Em sua positividade, o campo passou a ser associado a uma forma natural de vida de paz, inocncia e virtudes simples; enquanto cidade associou-se a idia de centro de realizaes de saber, comunicaes, luz. No obstante, as associaes negativas construdas em torno destes dois espaos, representa, por um lado, a cidade como lugar de barulho, mudanidade e ambio, e, por outro, o campo como lugar de atraso, ignorncia e limitaes. 469
Assim como seu Isac, o Sr. Onofre Augusto dos Santos disse que morando na cidade os filhos teriam cado logo na brincadeira e na brincadeira num vai. Paradoxalmente, a vida na cidade, segundo o velho Onofre, mais dispendiosa; ao mesmo tempo que deixa a pessoa preguiosa. curioso perceber, no entanto, que esta representao da cidade como o lugar do no-trabalho, a mesma que os citadinos tm quando o olhar inverso.
Eu morando na rua eu fico priguioso, eu aqui num fico priguioso no. O dia amanhece, eu j t na minha luta. Eu indo pa rua, s me levanto com sol alto. Chego da rua, amarro a rede, s me levanto o sol j alto. 470
Embora reconhea que a vida na cidade em muitos aspectos mais fcil do que no campo, o Sr. Onofre conta que tem prazer de
469 Cf. Raymond Williams. O Campo e a Cidade: na Histria e na Literatura. op. cit. p. 11. 300 morar na Lagoa de Santa Terezinha mesmo no tendo as facilidades de antigamente.
i, da hora que voc passou l im casa, eu trabaiei at agora. Eu s vim ter... Eu s vim agora, porque eu me vexei. Porque s pa d gua os bicho l... Eu butei cinco carga dgua pa d gua pos bicho l.
Um outro aspecto relativo ao espao da cidade, que foi destacado nas entrevistas, apresenta esta, como sendo o espao da violncia. Segundo o Sr. Euclides ngelo Cordeiro, muito comum escutar no rdio a notcia de que um assaltante matou um velho de sessenta ou setenta anos para roubar-lhe a mincharia que ele tem no bolso, que num vale nada, num d nem pra ele tumar uma cerveja. Diante de toda essa violncia, que ningum sabe intender, que seu Euclides confessa no querer morar na cidade. 471
Referindo-se as cidades industriais, Raquel Rolnik nos mostra que os componentes da violncia urbana transcendem aos aspectos da criminalidade meramente. Ela seria, noutros termos, a expresso clara da cidade dividida que faz seus habitantes viverem em um estado de tenso permanente.
(...) A violncia urbana (dos crimes e mortes, dos acidentes de carro, da destruio da natureza, da precariedade da habitao, das exploses de revolta) a expresso viva do carter contraditrio da cidade industrial ela , ao mesmo tempo, potncia de criao e destruio, catalisadora de energia e mquina de morte. (...). 472
Segundo D. Rosa Maria de Almeida, no campo, diferentemente da cidade, ainda possvel armar-se uma rede e dormir de forma tranqila sem ter quem bata na porta da gente. No obstante, muito mais do que expressar a tranqilidade vivida no campo, D. Rosa Maria de Almeida ressaltou o quanto os mais velhos do serto se
470 Onofre Augusto dos Santos, 77 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. 471 Euclides ngelo Cordeiro, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 472 Raquel Rolnik. O que cidade. 2. edio. So Paulo: Brasiliense. p. 81 e 82. 301 reconhecem no espao em que vivem, uma vez que deste espao que eles retiram, atravs do trabalho agrcola e da criao de animais e aves, a subsistncia de toda a famlia.
A minha vida aqui mais tranquila, mais discansada do que l. (...). Aqui voc arma a rede, dorme tranquilo num tem quem bata na porta da gente. E l, se num for uma coisa bem sigura, os prprios vizim mermo faz mal a gente. E aqui no, aqui nis cria, nis come, nis... ajuda muito a nis, n? E l, a gente indo pa rua, pricisa acabar com tudo, porque s vai l cumer, n? S vai l cumer e durmir, porque na rua ele num tem o que fazer e aqui no. Aqui, amanhece o dia ele vai pa uma luta dele, eu fico aqui, eu vou praqui, eu vou pracul, e, assim, a gente t passando, n? Na rua diferente, na rua s se voc tiver... tem que ser tudo cumprado, n? E aqui uma galinha, uma coisa, outa, a gente cria, j tem o intertimento mermo da vida da gente, n? E l no, diferente 473
Desta forma, o espao rural, enquanto espao vivido, apresenta-se como o lugar conhecido, como lugar sem imprevistos, portanto, lugar da segurana quanto ao futuro e quanto reproduo da prpria vida, lugar onde os deslocamentos se do sem esforo, sem que sejam previamente programados, sem longa perda de tempo. Ao contrrio do ambiente rural, como observa o Sr. Antnio Eugnio, a cidade representa a perda da espontaneidade, o espao do retraimento mesmo quando as possibilidades fsicas do campons se mantm elevadas.
Enquanto eu puder me bulir por aqui, eu no vou, . Eu vejo muitos vi que trabaiava aqui na serra, vi rebusto que andava daqui pra acol, deram pra morar na rua, chegou na rua, se tinfiaram de vez dento da rede, j morreram quais tudo. Porque o primeiro sinal, a pessoa vi se tinfiou dento de uma rede, no tem pra onde ir, endurece o joelho, endurece tudo, pronto, nutiliza e morre; como muitos tm morrido. Uns pouco que eu conheci, que foram pra Barauna, j morreram tudim. Se eles tivessem aqui, ainda tavam andando. Eu vou ficar por aqui mermo. 474
Segundo o depoimento do velho Antnio Eugnio, os camponeses enfrentam grandes dificuldades de adaptao no espao da
473 Rosa Maria de Almeida, 69 anos. Entrevista gravada na Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999. 302 cidade. Dentre as razes que podem explicar essas dificuldades, encontra-se a diminuio da sociabilidade dessas pessoas, uma vez que o espao social restringe-se pela prpria separao de parentes e amigos que continuaram residindo no espao de origem. Assim, em virtude da diminuio do raio de sociabilidade, so poucos os locais onde os camponeses se reconhecem no espao da cidade. Como ficou evidenciado em muitos depoimentos, a igreja e o espao da feira representam o local aonde mais os camponeses se reconhecem quando esto na cidade. Seu Antnio Eugnio, por exemplo, relatou que quando vai passar dois ou trs dias numa barraca que ele possui na cidade de Jaguaruana, sobretudo no perodo de comemorao dos festejos em louvor a N. Sra. SantAna, o que ele mais estranha no ter para onde ir alm da igreja.
s vezes eu saio daqui, vou ali pra festa, passo dois dias, trs, por l, quando no domingo no tem pra onde ir. Vou pra missa, quando vem da missa vou pra casa. A, quando chego im casa, pronto, me toco dento de casa, num tem pra onde ir. Saio de tardizinha de novo, pra ir pra Igreja de novo. Ano passado eu fui, terminou a missa vim pra casa, a, fiquei dento de casa, me deitei, quando foi negcio de duas horas mais ou menos, eu digo: - Vou pra rua. Fui pra rua, cheguei l foi mermo que entrar pra dento dum cemitrio; no via ningum, s via solido. (...). Eu vou morar l numa porra dessa, vou nada. (A festa ocorre sempre na ltima semana do ms de julho)
No obstante, mesmo continuando a viver no espao de origem, ou seja, no campo, o espao da velhice normalmente vivido como um retraimento s avessas de todo o espao conquistado ao longo da vida. No entanto, para muitos camponeses, cujo sentimento de pertencimento ao lugar bastante forte, ter que abandonar o espao vivido, significa, para eles, acelerar todo o processo de retraimento. Foi por esta razo, que o Sr. Joo Miguel de Souza, juntamente com sua esposa, desistiram de ir morar em Fortaleza.
A, quando foi depois, tem um dotor l que eu me trato, um dia ns fumo l pa esse dotor. Peguemo a conversar, eu, o Neto e ele. A ele foi
474 Antnio Eugnio da Silva, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 15/09/1998. 303 e perguntou: - o senhor tem vontade de morar aqui? Eu digo: - No dotor, eu num tinha no. Agora meu minino, peleja muito. Eu j t assim quais querendo vim. A, ele bateu no Neto, disse: - Rapaz, num traga seu pai praqui no, num traga praqui no. Aqui bom t certo, mais ele chegando veve preso, num sabe? Num sai pa canto nenhum e a vai maltratando a ele e a arriscado morrer mais depressa do que l. Ai, Neto foi e concordou. A, resolvi e num fui mais no. Posso ir, mais se eu tiver como se diz (...) que eu num possa mais fazer coisa nenhuma, o jeito que tem ir, n? Mais enquanto eu puder me mexer puraqui, num vou no. 475
Portanto, o espao vivido da velhice obedece a um retraimento natural, no qual o espao de sociabilidade restringe-se tanto em funo do desaparecimento de parentes e amigos do convvio cotidiano, como pelas alteraes que se processam nas relaes com os mais jovens, alm, claro, das mudanas que naturalmente ocorrem no corpo. Segundo Armand Frmont, (...) no comboio, o casal de pessoas idosas chega muito antes da hora da partida, receia ter-se enganado na linha, vive na angstia da prxima paragem, prepara-se para descer muito antes da hora. As distncias-tempo complicam-se, alongam-se, tornam-se um peso. (...). 476
No que se refere s alteraes nas relaes com os mais jovens, ficou evidente, em praticamente todos os relatos de memrias de meus amigos de travessia, que o campo, e mais especialmente, o espao da casa representa, ainda, o espao da calma e da tranqilidade. Foi ressaltando esse espao da calma e da tranqilidade, que D. Maria Jlia disse preferir morar nos mato do que na cidade por no gostar de muito influena, no; embora tenha nascido e vivido, at os seus vinte e trs anos de idade, no antigo Tabuleiro dos Negros na cidade de Russas.
Dou muito valor no. Nasci e me criei l, mais num dou muito valor no. Dou muito valor aqui os mato, porque aqui calmo. Num gosto de t im muito influena, no. Eu num vivo de samba, mas, l uma vez, eu vou olhar uma festa. Mais de dizer que eu t... Ta um raidim, mais eu pouco eu abro ele; num gosto de zuada no. E de primeiro, no meu tempo, era mais calmo no Tabuleiro. E agora, chei de casa, aqui e
475 J oo Miguel de Souza, 80 anos. Entrevista gravada na comunidade do Divertido, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999. 476 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. pp. 33 e 34. 304 acul uma televiso, uma... Eu num gosto de televiso, num dou muito valor a televiso, no. A, eu gosto daqui porque mais calmo. 477
Em seu depoimento, D. Maria Jlia deixa entrever o quanto a insero social no representa a vida toda, da mesma forma como o espao social no todo o espao vivido. 478 Assim, se no passado, no tempo de sua juventude, D. Maria Jlia chorava pum um samba, no presente, ela prefere dividir a solido de sua pequena casa de taipa com o seu esposo Onofre, ou, quando muito, desfrutar do convvio familiar na casa da sua filha Graa.
Aqui, s eu e ele. Ele vai pu ali, pu a casa da Graa, ali pu a Capela, t um pedao. Quando eu vejo que o sol t mais fri, eu vou. Quando chega aqui, ainda... ainda t com ar de dia, com ar de dia a gente t puraqui. Quando eu acabo de rezar... Eu nunca deixei de rezar dento da minha casa, ta meu ruzarim. i, meu ruzarim no punho da rede. Quando eu acabo de rezar, me deito, boto um bucadim de fumo no cachimbo, fumo, ali cumeo a me balanar, quando def eu t durmindo, quando def eu t acordada, quando def o galo canta, quando def o dia amanhece a eu me levanto. A eu vou fazer um ch pra ele, vou fazer um caf pra mim, assim. A, se eu puder eu barro a casa, se eu num puder eu num barro.
A casa para os velhos camponeses representa, pois, um espao nico pelas suas mais simples significaes. Ao mesmo tempo que abrigo e lar, a casa representa o universo da intimidade, o lugar do descanso e da tranqilidade. A cidade, por sua vez, representa o inverso dessas significaes, ou seja, o espao da confuso e da zuada como ressalta D. Luzia Maria da Silva.
No, gosto no. Gosto no rapaz, que a coisa cheia de confuso; zuada pra c, zuada prali, pra acul. S gosto mermo t assim num canto isolado, quanto mais isolado mior. Eu acho muito bom aqui, porque quando assim de noite, a gente se deita num tem zuada e a cidade no, num d pra mim. No sei como que eu... Eu tem duas fia que mora na rua, na cidade, eu nunca, muito difio eu ir pa durmi l porque eu num me dou com zuada. Logo tem essas televiso, tem gravador, as minina abre de noite vo at de... pedao da noite, aquela zuada medonha (risos). D pra mim no, eu quero aqui mermo. No dia que eu me deito cedo, imbora que eu num durma, porque eu
477 Maria J lia dos Santos, 72 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Teresinha, no municpio de Russas, no dia 25/10/1999. 478 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 36. 305 tenho uma perca de sono danada, mas eu quero t sussegada num canto, num quero t com zuada, ouvindo zuada no. 479
Ademais, o universo familiar da casa representa a negao do tempo e da morte, pois, os antepassados continuam a ela associados. Isto, decerto, d a segurana e a satisfao do enraizamento. 480
Segundo Bachelard, no somente no presente que reconhecemos os benefcios da casa. Ao contrrio, como explica o autor de A Potica do Espao, os verdadeiros bem-estares tm um passado o qual se localiza em todas as diversas moradas de nossa vida, uma vez que nessas moradas que guardamos os nossos tesouros dos dias antigos. 481
Foi assim, associando memria e imaginao, que D. Estelita Crispim Gomes, ao narrar a histria de sua vida, evocou as lembranas de sua antiga morada nas Melancias.
Rapaz, eu tenho mais saudade... O que eu tinha mais... Tinha saudade e ainda tem vontade de morar l, nas Melancias. Que o aude bem pertim, quando enche uma fartura dgua, . A morada nas Melancias era muito bom, que eu tenho... que eu tinha muita vontade de morar; mas, o marido num quer mais morar l, no. Porque ele num tem mais condio de trabaiar, ele num... ele num trabaia mais im roa. (...). Nas Melancias eu achei... Eu adorei nas melancias. E era lugar bom da gente morar, era e muito bom. Fartura de gua, de peixe, vazante pa quem tem prosperidade de trabaiar... , tudo muito fcil acul. 482
O serto, enquanto espao vivido, se revela, pois, como um espao associativo por excelncia. Segundo Armand Frmont, nas sociedades tradicionais os lugares distinguem-se menos por uma funo do que por uma associao de funes. 483 Nesse sentido, as imagens que as lembranas de D. Estelita recortam da poca em que morou nas Melancias so compostas por um ambiente muito mais amplo do que o
479 Luzia Maria da Silva, 73 anos. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, localizada em cima da chapada do Apodi, no municpio de J aguaruana, no dia 02/02/1999. 480 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 130. 481 Gaston Bachelard. A Potica do Espao. op. cit. p. 25 e 26. 482 Estelita Crispim Gomes, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999. 483 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 136 e 137. 306 espao fsico da casa, ou seja, nas Melancias tinha-se a fartura de gua, de peixe, alm das vazantes, que possibilitavam a atividade da agricultura mesmo no perodo do vero. A casa do campons pode ser, pois, apresentada numa quase infinidade de tipos de expresso. Desta forma, alm das virtualidades j referidas, outras se combinam e oferecem, igualmente, uma melhor compreenso deste espao, ao redor do qual, na maioria das vezes, renem-se a maior parte das funes. Dessa maneira, a casa ao mesmo tempo que lugar de habitat, ela est estreitamente associada, sobretudo nos perodos de invernos, acumulao de gua nos rios, audes e lagoas, assim como terra fecunda que possibilita o trabalho agrcola. Assim, nas narrativas colhidas, foi possvel perceber que as demarcaes de espao fsico revelam-se como espaos de experincias que os qualificam e os historizam. 484
484 Ivone Cordeiro Barbosa. SERTO: UM LUGAR-INCOMUM o serto do Cear na literatura do sculo XIX. op. cit. p. 34. 307
Segunda Parada: o no lugar a cidade. 485
A, morando na cidade, fora, t passando pela vida sem viver Joo Andr Filho
(Foto 32 Cidade de Russas - 1994)
485 Nesta travessia, quatro foram os guias: Estelita Crispim Gomes, J oo Andr Filho, J oo Pereira Cunha e Maria Rocha Pereira. 308 No resta dvida que as cidades desempenham um papel privilegiado na estruturao do espao na medida em que elas concentram o essencial dos servios indispensveis ao funcionamento de uma economia de troca. Nesse sentido, embora no se possa perceber a totalidade das relaes que unem os homens aos lugares tendo apenas como referncia as bases econmicas ou demogrficas, no posso deixar de fazer algumas consideraes acerca do jogo das foras econmicas, enquanto um elemento importante na apreenso do espao vivido. Desta forma, no que diz respeito aos fluxos de mercadorias, efetuam-se numa via de mo dupla, ou seja, para a cidade e a partir da cidade. Para a cidade convergem os produtos agrcolas com a finalidade de, por um lado, satisfazer as necessidades da populao urbana, e, por outro, ser novamente expedida. O que parte da cidade, no entanto, so produtos de consumo ou de equipamento necessrios aos que habitam o espao rural. 486
No que diz respeito as trocas de servios no materiais, ou seja, os fluxos de informaes, estes exercem, assim como as trocas de mercadorias, um papel importante na estruturao do espao urbano. Entre as muitas atividades que so concebidas como sendo essencialmente urbanas destacam-se: os servios administrativos, responsveis tanto pela regulao entre o Estado e a populao, quanto pela regulao entre a sociedade global e a sociedade regional e local; os servios sanitrios, responsveis pela manuteno da sade da populao; os servios escolares e de informao, pois permitem a transmisso do saber e a sua difuso espacial; os servios prestados pela rede dos bancos, os quais asseguram o fluxo de capitais; alm,
486 Segundo Raquel Rolnik, a organizao da economia urbana est baseada na diviso de trabalho entre campo e cidade e entre diferentes cidades. Quando esta diviso do trabalho se estabelece, a cidade deixa de ser apenas a sede da classe dominante, onde o excedente do campo consumido para se inserir no circuito da produo propriamente dita. Desta maneira, o trabalho de transformao da natureza iniciado no campo e completado na cidade, passando o campons a ser consumidor de produtos urbanos e estabelecendo-se ento a troca entre cidade e campo. Cf. Raquel Rolnik. O que cidade. op. cit. p. 27. 309 ainda, dos servios de lazer que possibilitam a recreao do esprito e do corpo. 487
Embora todas estas atividades estejam presentes nas cidades que compem as sedes dos nove municpios pesquisados, elas se diferenciam no que concerne ao nvel de excelncia dos servios prestados populao. No que diz respeito aos servios de sade, embora todas as cidades possuam, ao menos um hospital mantido pelo municpio, as cidades de Limoeiro do Norte e Russas destacam-se em relao s outras cidades do Baixo-Jaguaribe por oferecer populao de toda a regio um nmero maior de especialidades clnicas e odontolgicas. No que se refere instruo pblica, todas as cidade da regio possuem escolas ligadas rede municipal e estadual de ensino, bem como estabelecimentos particulares, a exceo da cidade de So Joo do Jaguaribe. As cidades que apresentam um maior nmero de escolas privadas, no entanto, so: Limoeiro do Norte, com oito escolas; e Russas, com seis. Quanto aos servios bancrios, apenas as cidades de Russas, Limoeiro do Norte e Tabuleiro do Norte, possuem mais de uma agncia bancria. J em relao aos estabelecimentos comerciais e industriais, embora haja uma semelhana geral em torno destas atividades, algumas cidades apresentam traos especficos no desenvolvimento de suas funes econmicas. No que se refere ao setor industrial, os municpios de Jaguaruana, Limoeiro do Norte e Quixer tm como principal atividade econmica a agroindstria. 488
Jaguaruana destaca-se, ainda, como um dos principais plos produtores de redes de dormir do Estado do Cear. Afora a agroindstria, destacam-se, na regio, dois outros setores industriais: o setor
487 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. pp. 63 e 64. Para Rolnik, a relao morador da cidade/poder urbano pode variar infinitamente em cada caso, mas o certo que desde sua origem cidade significa, ao mesmo tempo, uma maneira de organizar o territrio e uma relao poltica. Assim, ser habitante de cidade significa participar de alguma forma da vida pblica, mesmo que em muitos casos esta participao seja apenas a submisso a regras e regulamentos. Cf. Raquel Rolnik. O que cidade. op. cit. pp. 21 e 22.
488 As agroindstrias instaladas na regio do Baixo-J aguaribe so: J asa, Melo Doura, Agroindstria Baquit e Ipioca no municpio de Jaguaruana; Empresa Tropical de Irrigao de Hortalias, Del Monte e Agripec no municpio de Limoeiro do Norte; Del Monte no municpio de Quixer.
310 caladista, que se encontra instalado no municpio de Russas atravs das fbricas da Dakota Nordeste e da Lukre; e o setor de laticnio instalado no municpio de Morada Nova atravs de uma unidade da Parmalat. Conquanto se possa, do ponto de vista campons, caracterizar a cidade como um no-lugar, em virtude de no haver um reconhecimento identitrio, os mais velhos do serto demonstraram possuir uma sensibilidade mais geral em relao a este espao. Embora essa sensibilidade no possa ser de modo geral traduzida nas formas do desejo e do prazer, ao menos, suscita-lhes o reconhecimento da funcionalidade do mundo citadino no que diz respeito, por exemplo, aos aspectos da assistncia mdica e educacional. Portanto, a viso que os camponeses tm da cidade orientada por uma relao paradoxal baseada na repulsa e na necessidade. Nos relatos de memria, que meus depoentes fazem de suas experincias de vida, revelam o quanto a noo de espao est associada dimenso das relaes entre os homens. Nesse sentido, embora alguns depoentes tenham demonstrado em suas narrativas que suas experincias de vida so marcadas pela mudana de ambiente e pelo conflito gerado por novas relaes culturais, percebe-se a permanncia de traos significativos da vivncia rural resistindo mudana, por entenderem que viver na cidade significa adequar-se a uma dinmica absolutamente diferente da que vivem no campo. Portanto, neste tpico, pretendo discutir a maneira pela qual meus depoentes interpretam o espao da cidade, tomando como referncia a discusso de Marc Aug sobre os lugares e os no-lugares. Nesse sentido, na medida em que o mundo rural pode ser definido como um lugar identitrio, relacional e histrico, caractersticas que segundo Aug demarcam o lugar antropolgico, a cidade, por ser o 311 contraponto desse lugar, se definir, para grande maioria dos camponeses entrevistados, como um no-lugar. 489
Segundo o discurso tradicional, a seca, por ser um elemento de trauma para a natureza e tambm para o prprio homem, representa a causa que obriga, por assim dizer, os camponeses a terem que deixar sua terra, deixar seu espao, deixar, portanto, seu universo, para se lanar ao desconhecido, quele espao difuso e impreciso. 490
No entanto, apesar da seca alterar o cotidiano dos camponeses, os discursos que foram colhidos na pesquisa de campo, diferentemente do discurso tradicional, pouco associaram a seca idia de fuga, de busca de novos lugares e de nova vida. Na verdade, meus depoentes demonstraram uma srie de outras tticas utilizadas na manuteno da vida, as quais passaram a compor o cotidiano dessas pessoas sobretudo nos perodos de secas. Contudo, no posso negar que a seca representa um importante marcador espacial na vida dos camponeses de um modo geral. Somada aos problemas de ordem estrutural, a seca, em grande medida, responsvel pela perda do espao vivido, do lugar querido. Sobre essa caracterstica nmade dos camponeses, D. Estelita Crispim comenta que seus pais migraram do interior do Rio Grande do Norte para Fortaleza e depois para as Melancias, no municpio de Morada Nova, em busca de melhores condies de vida.
J, j andei muito. J andei muito, j. Tanto depois de casada, como im solteira. Meus pai morava noutos canto, n? Porque ele num achava bom ande vivia, n, a, caava outo canto quando ele milhorava das condies. Era, era por causa das secas. Era assim, desse jeito. E de Fortaleza pra c, pras Melancias, foi por causa de duena, n? Tirou ns que tava vendo a hora morrer. E mame tambm, e mame tambm num era sadia no, vivia duente. A, foi o causo dele ter tirado tambm
489 Reservamos o termo lugar antropolgico quela construo concreta e simblica do espao que no poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradies da vida social, mas qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. (...), o lugar antropolgico, simultaneamente princpio de sentido para aqueles que o habitam e princpio de inteligibilidade para quem o observa. Marc Auge. No-Lugares. p. 51. 490 Durval Muniz de Albuquerque J r. Falas de Astcia e de Angstia: a seca no imaginrio nordestino de problema a soluo. op. cit. pp. 93 e 94.
312 ns, foi por causa de mame, era muito duente. E eu sei que as coisa assim mermo, o caba anda, anda, anda, quando daf o caba tem que parar, n? O caba num pode viver s andando no mundo, tem que o caba fazer um paradeirozim um pedao. 491
No entanto, se no discurso de D. Estelita as secas e as doenas aparecem como as responsveis pelo fato dos camponeses se verem obrigados a abandonar, mesmo que temporariamente, o espao vivido pelo qual se acham afetivamente apegados, no podemos responsabilizar a seca por todo o processo de mudanas que tem ocorrido na vida camponesa; uma vez que ela apenas agrava as desigualdades sociais que as estruturas de poder, excessivamente excludentes, fazem reinar no somente nos sertes cearense, mas, nos sertes nordestinos de um modo geral. Apesar dos anos de 1942 e 1943 terem sido no dizer do Sr. Joo Andr - escasso, quase seco, no foi propriamente a seca climtica, e sim a seca que se revela no prprio homem, que o deixa seco como o patro de Fabiano, personagem criado por Graciliano Ramos em seu romance Vidas Secas, a responsvel pela volta de Joo Prego para o Norte do pas. Joo Prego era um senhor que morava no Curralim da Barra, local onde residia a famlia do Sr. Joo Andr nos anos escasso, quase seco de 1942 e 1943. Embora tivesse nascido na Amaznia - o pai dele tinha vindo de l em mil e oitocento... -, Joo Prego, ao ver a mobilizao por parte do Governo e o conseqente movimento das pessoas procurando se alistar como soldados da borracha, 492
revelou para o pai do seu Joo Andr que enquanto tivesse macambira
491 Estelita Crispim Gomes, 69 anos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999.
492 Segundo o Sr. J oo Andr, a medida encontrada pelo governo para socorrer as localidades que mais tinham sido atingidas pelos efeitos da estiagem, foi soltar as pessoas pai de famia com a famia toda - que estivessem dispostas a emigrar para a Amaznia. A, dipois, os americano inventaro de vim buscar a rapaziada; a, foi que foi gente. Em seu depoimento, ao recordar algumas das pessoas que emigraram para Amaznia neste perodo, seu J oo Andr criticou a soluo encontrada pelo governo de fornecer passage para os miserave poderem ir pu Amazona como medida de combate seca. Em sua avaliao, o velho Joo Andr ressaltou que era munta falta de intidimento. Porque eu acho, que o gonverno do Estado era po mode ele ter tomado as providena de no ter deixado o povo dele sair pra outo... outo canto, nera? Ao governo, contudo, interessava menos o povo dele e muito mais o esforo de adequar o 313 pra mim, pa meus neguim chupar no voltaria para a Amaznia; nasci l, mas num vou. Entretanto, Joo Prego teve um desgosto, sentiu-se mal, injuriou-se com a falta de caridade da esposa de um compadre seu, que se negou a trocar um peixe por um pouco de farinha, embora tivesse em sua casa, armazenada num caixo, doze alqueires de farinha.
Ele [ Joo Prego] pescava no rio da Barra. Quando, um dia, ele foi pescar matou um bucadim de peixe. A, num tinha farinha pa comer com peixe. (...). A a mulher fez, pegou o peixe, escolheu e mandou pa casa do compade dele, pa trocar pu farinha. Que l o home era impresaro, era rico, munta farinha. A, a criana foi com o peixe pa trocar. Ele, ficou na mente dele trazer a farinha, trocar pu peixe. Chegou l, a dona da casa... o velho num estava em casa, o dono da casa... quem tava era a dona da casa, disse pa criana, pu burreguim: - meu filho, hoje j viero deixar peixe aqui; eu num quero, no. A ele foi... bichim voltou pa trs com peixim. (...). Esse impresaro a gente conhecia, caixo de farinha que pegava... naquela poca, era surro de farinha, carregava em costa de burro; era surro... caixo que pegava vinte e quato surro de farinha o caixo, vinte e quato; doze, doze alqueire, entendeu? (...). Bichim voltou pa trs, voltou com o peixe... morrendo de fome. (...). Quando voltou o minino com o peixe, ele foi disse (...), foi e disse pa mulher: - mulher, tu conserta esse peixe, bote no fogo, esmague e d o caldo as crianas... Vixe Maria! triste, n?... que eu vou a rua, vou ver se tem passage. Se tiver passage, t me alistrando hoje. (...). Quando chegou, se alistrou; voltou pa trs, na merma tarde, no mermo dia... mulher, ajunta a troadinha vamo butar dento um saco, vamo durmir l im Unio... Que nesse tempo, era Unio... vamo durmir l, pa de madrugada ns sa (...) no pau-de-arara pra Fortaleza, pro curral. Ajuntaro os trocim, viero, chegaro aqui, passaro a noite, quando foi amanh pela manh, subiro no pau-de-arara e foro embora. 493
pas s necessidades que as conjunturas nacional e internacional lhes sugeria. Foi assim que munta gente da regio do Baixo-J aguaribe emigrou para a Amaznia nos anos de 1942 e 1943. 493 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 03/02/1999. A primeira parte da viagem, que tinha como destino Fortaleza, era feita em um pau-de-arara que saa da cidade de Unio, muitas das vezes, de madrugada. Era preciso, pois, aos que am embarcar, sobretudo aqueles que moravam na zona rural do municpio, dormirem noite no prprio local do embarque, ou seja, debaixo de um p de tamarino grande onde as pessoas se arranchava. Depois de uma viagem demorada e cansativa, em virtude do desconforto do transporte e das pssimas condies das estradas de rodagem, os socorridos da seca, quando chegavam em Fortaleza, eram levados para uma casa que foi apelidada, segundo o velho J oo Andr, de curral. Tratava-se, na verdade, da hospedaria Getlio Vargas, que, segundo Frederico de Castro Neves, foi inaugurada no dia 15 de maro de 1943, objetivando atender a dois planos estratgicos do governo brasileiro naquele momento: controlar a mobilidade da populao retirante durante as secas e participar efetivamente do esforo de guerra aliado com a produo da borracha amaznica. Cf. Frederico de Castro Neves. A multido e a histria: saques e outras aes de massas no Cear. op. cit. p. 151. Conquanto, fosse apelidada de curral a hospedaria Getlio Vargas representava, ao menos, o destino certo para aqueles que tinham os seringais da Amaznia como destino e faziam escala em Fortaleza. No entanto, ao chegarem no Norte eram soltos como se fosse animais: Um caba que foi, adipois voltando, disse: - No, seu Joo, l ningum tinha padrim no. A gente chegava l, eles... saia... a gente mermo quem saia se oferecendo aqueles... aqueles... aqueles povo, home de propriedade chei de dinheiro, bando de siringal. (...). S sei, que com poucos dia, ningum sabia o que era fome; tinha comer. Mas, que a gente sofria munto, l. J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 03/02/1999. Sobre a 314
Ferido em sua honra, agredido pela desfeita de sua comadre, humilhado pelo poder de uma pessoa que ele estava acostumado a considerar igual as demais, mas que, naquela situao, mostrava-se, to somente, como uma desagregadora dos laos de compadrio e de solidariedade que caracterizam as relaes sociais no campo, Joo Prego resolveu refazer a travessia de volta para a Amaznia, dizendo: adeus, Unio, 494 se a minha alma tiver vergonha, aqui ela no vem mais. 495
Mltiplas so, pois, as situaes que levam os camponeses a abandonarem seu lugar, seu espao, seu universo, pois assim que vem a terra onde vivem. Mesmo tendo um apego exagerado ao seu lugar, alguns dos personagens desta travessia tm suas experincias de vida marcadas pela mudana de ambiente e pelo conflito gerado por novas relaes culturais. No entanto, mesmo vivendo no espao da cidade, percebe-se, no cotidiano desses camponeses citadinos, a permanncia de traos significativos da vivncia rural. Nesse sentido, o relato do Sr. Joo Andr Filho, ao mesmo tempo que informa a respeito das contingncias que o levaram, juntamente com sua famlia para a cidade de Jaguaruana no ano de 1979, expressa o seu apego vida do campo, como se nenhum outro mundo, alm do rural, pudesse existir dentro dele. Assim, mesmo morando na cidade a mais de duas dcadas, o espao rural continua sendo, por assim dizer, objeto de contemplao e de desejo para o velho Joo Andr.
hospedaria Getlio Vargas, ver tambm: M Neyra de O. Arajo. A Misria e os Dias. (Histria Social da Mendicncia no Cear). So Paulo, Hucitec, 2000. 494 Antigo topnimo atribudo ao atual municpio de J aguaruana. 495 Segundo Gnaccarini, o certo que, embora sempre esperanoso em que a retribuio seja observada, quem d sempre acha que deu de menos e, inversamente, que recebe sempre acha que recebeu demais. O que d nunca cumpre suficientemente sua obrigao, o que recebe nunca merece suficientemente a ajuda a que tem direito. Tal a regra do bom-tom; a infrao destes padres acarreta ressentimentos profundos e duradouros. (...). Cf. Jos Csar Gnaccarini. Latifndio e proletariado: formao da empresa e relaes de trabalho no Brasil rural. op. cit. p. 134. [grifo do autor] 315 Peguei olhar pr amanh, pro que eu possua: munta criao, uma lomba de gado, munta propriedade e tal. E peguei a olhar pr aquilo e lembrando: meu Deus, isso aqui hoje e num amanh! Com vida minha se no tem futuro pr minha famlia, tem pra mim eu sou velho mermo - no tempo que num era velho, mais j tinha idade -, mais pr minha famlia num tem futuro; porque graas a Deus num faltava nada pr eles, mais com a continuao o que vai ser dessa multido de gente? Digo, vamo partir pr outa coisa, morar, passar uns dois ano l na cidade prumode desarnar esse povo, o meno pr aprender assinar o nome. A, a mulher achou que era vantage - mermo, tal e tal-. A, mandei, mandei a famlia pr c, ficaro aqui, butaro na escola n, tudim. (...). E eu fiquei l nas propriedades, s aguentei dois ano (risos). Fico nada, aqui! Vou mimbora, vou pr casa. Eu deixo isso aqui, vendo uma parte de... de... de troo e tal; e vou ficar... fico l e fico aqui, de fato! (...). Mais, o caso da famlia, eu hoje me acho aqui; que eu num nasci pr morar im cidade. 496
Apesar de morar na cidade de Jaguaruana desde o ano de 1979, as dificuldades de adaptao so crescentes o que provoca, por extenso, a diminuio de sua sociabilidade. Em seu depoimento, o velho Joo Andr diz no se acostumar com o dismantlo do pessoal pelas ruas correndo, gritando, falando palavro, jogando bola... Desse modo, morando na cidade sem gostar, seu Joo Andr diz estar passado pela vida sem viv-la.
Porque eu num nasci pra morar im cidade. No, num nasci. ia, ia o meu sangue. ia, eu num nasci pra morar im cidade no. Nasci pra morar no suburbo, nasci pra morar na roa, nos mato e tal, na histria matuta. Nasci pra morar nos mato, num foi im cidade. A, morando na cidade fora, t passando pela vida sem viver (risos). Eu t passando pela vida sem viver, porque quando a gente t num canto que num t gostando e sem poder se arretirar daquele canto, t passado pela vida sem viver; ou num ? (...). Ai de mim se num tivesse familha, porque j tinha arribado a mais tempo. Mas, que tem familha, n?
fascinante perceber, no depoimento do Sr. Joo Andr, que apesar da alterao radical sofrida na sua vida em funo da mudana para a cidade, ainda sobrevivem nele os sentimentos de amor ao mundo rural no qual nasceu, cresceu e tornou-se homem; de amor ao trabalho e a tantas outras formas de viver que caracterizam a vida no campo.
496 J oo Andr Filho, 72 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 03/02/1999. 316 Se eu num tivesse uma propriedadizinha ali, pr lutar com gadim e tal, eu logo tinha vindo mimbora, voltado l pr minha serra, morar sozinho. (...). Vinte anos, fazer vinte ano; num moleza! muitos dia n? Mais eu num me alcostumo no. Eu passo quais o dia l no ponto, n, junto com os bicho, tangendo pr l; tapando buraco duma cerca; tangendo pra qui, pr acol, mais num gosto de rua no. Sost n, nascer esse povo assim! Apois eu sou deles (risos). Mais que tive uma familha graas a Deus, fro estudar. Morrendo hoje deixo uma familha tudo lendo, pr que melhor! Tenho gente, diversos empregados. , empregados do saber. i, j muita coisa; se eu fico l, n?
Desse modo, os espaos do campo e da cidade no podem ser separados em temporalidade e espacialidade, uma vez que homens e mulheres, em seu dia-a-dia, articulam o passado com o presente, na medida em que, no espao da cidade, procuram reinventar hbitos e costumes que lhes eram peculiares no ambiente rural. 497
Mesmo reinventando no espao da cidade, hbitos e costumes peculiares ao ambiente rural, o Sr. Joo Andr revelou o quanto forte o desejo de voltar a morar na serra, de ficar l nos mato, por no gostar da cidade. Em seu depoimento, o velho Joo Andr falou, com uma sombra de tristeza no olhar, do mal estar que as relaes sociais experenciadas na cidade lhe causam. 498
Deus abene a nossa cidade, mais eu num gosto da cidade. Eu gosto... Eu vou lhe dizer uma coisa pra voc: ainda antes de onte, eu tava dizendo pa muier: - Se eu fosse... se tivesse sade, voc, a gente, (...) ns ia l pa essa terra que tem a do outo lado do rio, ficar l nos mato. Porque l nos mato, eu num quizesse t dento de casa, a eu ia olhar os animais que tem e andar por dento dos mato como foi a minha vida; porque toda a vida eu gostei. Mas, nunca gostei da cidade. Eu sou to assim com a cidade, que eu tem esses ano todim, difio eu butar uma cadeira na calada pa me sentar um poquim. Eu boto l na rea que tem por trs, pa num t vendo o movimento. (...). Que eu t vendo aquele desapovo do povo, aquela falta de... de... de respeito, aquela, aquela disonestidade e tal. Por isso eu digo, eu num nasci pra morar im cidade. Porque eu vejo uma coisa daquela num risisto, fico disiguado e eu num vendo nem ouvindo t mior pra mim. T ou num t? melhor. tanto que eu boto a cadeira na calada, ali, um pedacim, logo eu t levando a
497 Clia Toledo Lucena. Artes de lembrar e de inventar. op. cit. p. 20.
498 Segundo Antonio Paulo Resende, as mudanas que o ritmo veloz da modernidade provocam, sobretudo no espao da cidade, no acontecem sem perplexidade e resistncia de muitos. Referindo-se a cidade do Recife da dcada de vinte, Resende diz que nem todos se sentiram seduzidos pelas invenes modernas, pela renovao dos hbitos, por uma concepo de tempo que exigira mais pressa, pela ruptura com prticas de convivncia social enraizadas. Cf. Antonio Paulo Resende. (Des) Encantos Modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de vinte. op. cit. p. 57 317 cadeira l pa rea detrs, ficar l. Porque s fao ouvir naqueles beco aquelas conversa, mas, num t vendo, s fao ouvir, n?
Este conflito vivido pelo velho Joo Andr no espao da cidade revela o quanto so fugidias as polaridades que marcam o lugar e o no-lugar. Como ressalta Aug, o lugar nunca completamente apagado, da mesma forma que o no-lugar nunca se realiza totalmente. 499 Portanto, a permanncia de todo esse legado de sentimentos, faz com que os mais velhos do campo no queiram abrir mo, sem nenhuma resistncia, do espao vivido que cada um deles construiu ao longo de suas vidas. Dessa forma, apegado por laos afetivos ao espao rural, o Sr. Joo Pereira Cunha, ao contrrio do Sr. Joo Andr, no acompanhou a sua famlia para a cidade de Jaguaruana em fins da dcada de sessenta. Apesar dos seus setenta e oito anos de idade, continua residindo, sozinho, em sua pequena casa localizada no Aude do Coelho, a dezessete quilmetros da cidade de Jaguaruana. Assim, no calor das recordaes mais antigas, seu Joo Pereira falou da solido em que vive no presente.
N vida pa cristo no, viu. N vida pa gente no. A gente mora assim porque a gente topa tudo, n? topa tudo, mais coisa tristonha viu. N vida a gente viver s no, viu! Aqui, aqui porque a minina a sempe, toda vida, hoje porque vocs to aqui elas to cismada sem saber quem ; ainda vem aqui hoje ainda, num sabe? elas sempe gosta de vim aqui. Ispanam a casa, a faz um caf, faz uma coisa; a gente sempe distrai qualquer coisa. Eu s vez vou tambm pouco pu meus trabaio pr acul, mais que num vida pa gente no; anoitecer ou amanhecer numa casa a gente sozim, muito, muito triste viu. 500
Em meio s lembranas do passado, sobretudo quelas relativas ao mundo do trabalho, o velho Joo Pereira lamentava no possuir mais tanto vigor fsico para trabalhar como antes. Com a viso j bastante prejudicada, ele diz estar mais prximo do fim da vida. Na verdade, talvez pouco tenha o que olhar para frente, embora tenha
499 Marc Auge. No-Lugares. op. cit. p. 73 e 74. 500 J oo Pereira Cunha, 78 anos. Entrevista gravada no Aude do Coelho, no municpio de J aguaruana, no dia 01/02/1999. 318 muito o que olhar para trs. Nesse sentido, a distncia do tempo parecia apagar-se nas suas lembranas, de tal forma que o mundo de solido vivido no presente fosse, por alguns instantes, repovoado pelas gentes do passado; pelas vozes e sons do passado; pelos cenrios do passado. Apesar de lamentar a solido em que vive, seu Joo Pereira diz compreender o fato da sua esposa, D. Maria Rocha Pereira, preferir morar na cidade; embora ela tenha nascido, se criado e ficado quais via morando no Aude do Coelho. No obstante, revela, tambm, que no se acostuma na cidade em virtude do hbito que as pessoas tm de dormirem tarde, o que faz permanecerem com as luzes acesas at altas horas da noite.
A muier nasceu e se criou, ficou quais via morando nesse lugar; mais hoje ela num qu mais vim pr c (...) de jeito algum. E eu num tiro razo no. A, eu num me acostumo l. Aqui eu tenho isso viu, anoitece eu num sei, sei, sei durmir no claro no; tinha a luz ali, uma lamparina, enquanto eu t na luta fazendo as arrumao, uma coisa, quando pa eu durmir apago a luz, viu. L fora num vai, vai... Ta, esse moo a vai mais o outo, vai pa... vai pa... vai pa... vai pa Limoeiro s chega de dez pa onze hora; enquanto isso a luz acesa, a casa todinha, a eu num sei durmi no claro de luz viu. Pronto, eu num me dou l de jeito algum.
Mesmo lamentando o fato do Sr. Joo Pereira continuar morando sozinho no Aude do Coelho, D. Maria disse no ter mais vontade de voltar a morar na serra, embora gostasse muito do lugar no tempo em que morava l. Alm de no ter mais vontade de voltar a morar na serra, D. Maria revelou no poder abandonar seus filhos, sua casa, nem muito menos o trabalho na pequena tecelagem de redes instalada na parte detrs de sua casa.
Ah! Meu irmo, eu tenho a maior pena dele. Mas, ele num quer t mais a gente aqui na rua; eu num tenho o que fazer, n? Mas, que eu tenho pena. s vez... Pela minha vontade, ele vinha simbora morar mais a gente aqui na rua. Que eu acho que o canto dele aqui, mais que ele num quer vim. Num posso obrigar ele vim a fora, n? Pa chegar aqui, todo tempo ficar falando. (...). Quando ele vem, ele fala muito: - Eu vou ficar numa coisa dessa, ningum dorme de noite, zuada at meia noite. Num tem jeito,(...) eu num posso abandonar meus fi aqui, minha 319 casa, meu movimento, esse trabaio de fio [Fio de algodo utilizado na produo de rede] e tudo, n? 501
Em seu relato, D. Maria destacou, ainda, a vida de sacrifcio que as pessoas que moram na serra, principalmente as mulheres, enfrentam. Assim, conservando as imagens do lugar atrasado e com poucas possibilidades para o trabalho, D. Maria Rocha referiu-se, com insistncia, a uma permanente situao de dificuldades que no a faz enxergar perspectivas de mudana.
Mas o mais, como se diz, morar na Serra muito sacrifcio como voc sabe, n? Voc viu l a situao do povo. Mas, no tempo que a gente morava l as coisa era mais fcil, havia inverno, n? Havia fartura tambm. (...). Agora a vida l da Serra dura, muito difcil de a gente viver l, a gente trabaia no pesado. A mui l num tem sade, porque todo mundo trabaia no sol, na... apanhando feijo, algodo, fazendo tudo. Mais a vida l dura, num mole no. Desta forma, importante perceber, alm das imagens que meus depoentes construram do campo e da cidade, as justificativas que deram para a mudana do espao rural para o espao urbano. Entre as justificativas apresentadas, posso destacar, de modo geral, as facilidades que a vida urbana proporciona. Cabe ressaltar, no entanto, que a referncia a essas facilidades apresentou-se, de forma mais regular, nos depoimentos das mulheres. 502
Nesse sentido, movida pelo desejo de poder oferecer aos seus filhos uma outra oportunidade de vida, D. Maria viu-se obrigada a mudar para a cidade de Jaguaruana em 1968, com o objetivo claro de possibilitar aos seus filhos ingressarem na escola de maneira mais regular.
Casei muito nova, com dezessete ano, n? Tive uma ruma de fi, 14 fi ainda (risos). Mas, graas a Deus num me arrependi porque tudo so bom pra mim, tudo so bom filho e me sinto muito sartisfeita com isso. Eu morei esse tempo todim na Serra, at... Ns viemo pra c im
501 Maria Rocha Pereira, 67 anos. Entrevista gravada na cidade de J aguaruana, no dia 18/08/1999. O municpio de Jaguaruana um dos principais centros de produo de redes de dormir do Estado do Cear.
502 Clia Toledo faz essa mesma constatao ao analisar o processo de migrao de um grupo de sitiantes de Barbacena MG, para a periferia da cidade de So Paulo, no incio dos anos de 1960. Cf. Clia Toledo Lucena. Artes de lembrar e de inventar. op. cit. p. 45. 320 sessenta e oito. A, a gente foi obrigado a mudar por causa da escola dos munino, nera? L num tinha escola, a gente sofria muito pos minino estudar l. (...). Quando a gente chegou, ainda era muito difio. Os meus fi ainda era piqueno, ainda, uma parte deles. Mas, a gente tinha, a gente trazia um poquim de ricurso da... da... das prantao, n? Do gado, a gente criava gado, criava criao e tudo. A, o negoo, a gente butou pa estudar e foi miorando e todo mundo querendo alguma coisa, n? Que meus fi, nenhum, nunca ficou nenhum reprovado um ano; todos os ano eles passava. s vez, ficava assim de recuperao, n? Mas, nunca ficou um fio meu assim im escola dum ano po outo, no. A, foi miorando, n? Foi todo mundo trabaiar, todo mundo foi.
Apesar das dificuldades experenciadas no incio da vida na cidade de Jaguaruana, em razo sobretudo dos filhos serem ainda pequenos, D. Maria confessa que na cidade, como se diz, as coisa foi mior, n? Hoje, D. Maria diz se sentir muito sartisfeita por ver todos os seus filhos trabalhando e, principalmente, por alguns ter concludo um curso de graduao na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos, na cidade de Limoeiro do Norte. 503
Mas, eu tinha a maior vontade de ver eles estudar e graas a Deus tive bom proveito da vida deles; porque eles vieram e quiseram mermo, n? Hoje im dia, tem quato pa ser formado, n? E tem trs cumeando tambm. Se Deus quiser eles vo conseguir.
As esperanas e a valorizao depositadas na instruo revelaram-se, ainda, em outras falas. De um modo geral, o desejo de poderem ver seus filhos e netos se qualificando significou para os entrevistados maior mobilidade social. Como ressaltou o Sr. Joo Andr Filho, morrendo hoje deixo uma familha tudo lendo, pra que melhor! Tenho gente, diversos empregados, (...) empregados do saber. Sobre a relao campo e cidade no discurso campons, gostaria de ressaltar, ainda, que ao mesmo tempo que os mais velhos do campo cultivam um sentimento de repulsa cidade, o campo, muita vezes, no passa de um espao do desejo localizado apenas na memria. Trata-se, cada vez mais, de um lugar cuja descrio fruto das experincias vividas em pocas passadas, bem como da sua
503 A Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM) uma unidade da Universidade Estadual do Cear.
321 idealizao. Ao narrarem suas histrias de vida, meus amigos de travessia falaram sempre do serto que eles tm dentro deles, demonstrando, desta forma, o quanto o serto parece mesmo ser a alma de seus homens. Assim como todas as sociedades, o campo, evidentemente, no se constitui num espao imutvel. Desta forma, no podemos entend-lo separado por fronteiras estanques do espao da cidade. O contato entre esses dois espaos exprime-se por mudanas, conflitos, movimentos, mutaes... que demonstram o quanto o campo j no o lugar onde todos imaginam se conhecer. As suas distncias, os seus rudos, os seus ritmos, as suas trilhas, as suas cores, os seus esquecimentos, as suas lembranas, mudam ou parecem mudar com mais velocidade. As pessoas sobretudo as mais velhas - vo se sentindo, aos poucos, aprisionadas por um cotidiano mais largado do passado, com os olhos fascinados ou intimidados pelo novo. 504 Isto nos faz compreender que muito mais importante do que buscar a homogeneidade desta geografia, torna-se fundamental buscar suas descontinuidades. 505 Todavia, este assunto para uma outra travessia.
504 Antnio Paulo Resende. (Des) Encantos modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de vinte. op. cit. p.72. 505 Armand Frmont. A regio, espao vivido. op. cit. p. 159. 322
Entre lembranas e saudades.
Agora terminou, j to cansado. s outa vez, quando voc vier, a eu tenho outas histra pa contar. Joo Delfino Bezerra
Ecoam-se suspiros cansados. Enfim... depois de tantas paradas chegamos ao final de nossa longa travessia. Para aquele que acha que viu tudo, devo assegurar que muitas outas histra ficaram por ser contadas e muitos sertes ficaram por ser descritos. So sertes que vivem dentro de cada um dos meus narradores e que, agora, esto vivos tambm dentro de mim. Pois, narrador e pesquisador, se no se completam (?), ao menos esto os dois presos, atados, num mesmo fio. 506 Foi justamente assim, preso, atado, empurrado para dentro das narrativas como se fosse parte integrante das histrias, que me senti durante a travessia que realizei pelos sertes do Baixo-Jaguaribe. Apesar dos suspiros cansados, necessito de um pouco mais de flego pois desejo olhar para trs, avistar o passado, as experincias vividas durante minhas andanas por esses sertes de terra seca e molhada, quente e empoeirada, pegajenta e melada. 507 Muitas foram as
506 Carlos Rodrigues Brando. Memria/Serto. op. cit. p. 161. 507 Expresso tomada de emprstimo a Gilberto Freyre. Cf. Gilberto Freyre. O Nordeste. op. cit. p. 41. 323 situaes vividas na tentativa de estilhaar o unssono em torno dos sertes do Cear. Para isso, mais do que atravessar diversos pedaos de sertes e as vrias temporalidades que marcam o tempo da memria de meus amigos de travessia, foi preciso buscar o olhar direto, o testemunho - sem intermedirio - que o campons d de si mesmo. Da matria recolhida de suas memrias, procurei, pois, construir minha narrativa, tendo o cuidado, aqui e ali, para no perder de vista os significados que os prprios camponeses atribuem s suas experincias e s suas vivncias, bem como a maneira pela qual tendem a reinterpretar suas experincias passadas no contexto em que vivem no presente. Acompanhar, pois, o curso ordinrio de suas experincias, ao mesmo tempo que me fez ver o quanto vida nesses sertes comporta prticas e situaes diversas, possibilitou-me colocar em dvida os discursos que historicamente tm homogeneizado os mltiplos significados de que so detentores esses espaos. Neste trabalho, a vida se tornou Histria. Para isso, procurei, no ato de narrar, interpretar as experincias de vida - de velhas e velhos camponeses - que aos poucos foram voltando superfcie desse poo sem fundo que a memria. Muitas outras, no entanto, continuam submersas espera de algum que possa, numa conversa, mesmo informal, traz-las de volta superfcie. Aqui fica o apelo queles que se dispem a irem ao encontro dessa gente mida. Do lugar de minha experincia, posso testemunhar que para alm do labor acadmico, encontraremos, no grande patrimnio que a memria, uma fonte inesgotvel de reflexes sobre nossa prpria vida, fazendo-nos voltar para dentro de ns mesmo. O narrador, diz Ecla Bosi, tira o que narra da prpria experincia e a transforma em experincia dos que o escutam. 508
508 Ecla Bosi. Lembranas de velhos. 3. Ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 85.
324 Vivemos envolvidos em um turbilho de pequenas coisas, motivados a continuar tocando a vida sempre para a frente. Poucos so os que tm o hbito de olhar a prpria experincia, o que foi feito e o que se deixou de fazer. Quase sempre precisamos que algum ou algo, muitas vezes uma dificuldade, nos empurre nessa direo. Sou agora compelido a olhar para trs, no para perguntar-me se faltou dizer alguma coisa, pois sei que muito ainda h para ser dito, mas para compartilhar algumas, entre muitas lembranas que ficaram emolduradas em minha memria. Jamais esquecerei os abraos que recebi; os apertos que minhas mos receberam de tantas outras mos calejadas por uma vida de trabalho; os beijos que velhas e velhos camponeses deram em minha cabea, na hora em que me cobriam de beno; os rostos queimados pelo sol e enrugados pelo tempo, a expressarem a alegria do nosso reencontro... So lembranas afetivas que representam, para mim, a parte mais importante deste trabalho. Tenho a certeza de que a rica travessia pelos sertes do Baixo-Jaguaribe poderia ter sido narrada de diferentes maneiras; entretanto preferi cont-la a partir dos temas que as memrias dos entrevistados recortaram no processo de rememorao das mesmas. Se no foi a melhor maneira de contar, pois sei que vrios aspectos abordados merecem ser aprofundados, ao menos espero que possa instigar a realizao de novos projetos de pesquisa. Entre lembranas e saudades, num instante, passei a olhar as dezenas de fotos e de fitas onde se encontram gravadas inmeras histrias de vida, onde se misturam sofrimentos, alegrias, sonhos, saudades, amores, canto e poesia. So histrias carregadas de significados que do sentido vida de dezenas de velhas e velhos camponeses que tive o prazer de conhecer durante a travessia pelos sertes do Baixo-Jaguaribe. Alm das dezenas de fotos e de fitas, tenho diante de meus olhos o gravador, meu principal instrumento de trabalho, meu ouvido artificial, com o qual colhi as inmeras histrias. Colher essas histrias, foi minha atividade principal, minha satisfao 325 interior, pois sabia que, mais do que intrprete dessas histrias, num sentido, estava furtando, da bagagem da morte, fotos e fitas gravadas, possibilitando, assim, que meus amigos de travessia continuassem vivos.
F Fo on nt te es s e e B Bi ib bl li io og gr ra af fi ia a
I Fontes Orais
Altina de Moura Lima. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 11/04/2000.
Altina Delfino dos Santos. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999.
Amaro Jos da Silva. Entrevista gravada na comunidade do Alto do Ferro, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000.
Amrico Simo de Freitas. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999.
Ana Francisca do Esprito Santo. Entrevista gravada na comunidade do Cercado do Meio, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000.
Antnio Eugnio da Silva. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, no municpio de Jaguaruana, no dia 15/09/1998.
Antnio Ribeiro de Souza. Entrevista gravada na comunidade do Brito, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000.
Conrado Jos da Silva. Entrevista gravada na comunidade do Tom, no municpio de Quixer, no dia 12/04/2000.
Eduardo Soares de Lima. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999. 326
Egilda Delfina Nascimento. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999.
Estelita Crispim Gomes. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999.
Euclides ngelo Cordeiro. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999.
Eullia Mendes. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000.
Francisca Delfina da Costa. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999.
Francisco Abel Lino. Entrevista gravada na comunidade do Bixop, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000.
Francisco Giro Sobrinho. Entrevista gravada na comunidade da Palestina, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
Francisco Rodrigues Pitombeira. Entrevista gravada na comunidade do Riachinho, no municpio de Russas, no dia 22/10/1999.
Francisco Siriaco Filho. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
Francisco Vieira da Silva. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000.
Joo Andr Filho. Entrevista gravada na cidade Jaguaruana, nos dias 03/02 e 18/08/1999.
Joo Delfino Bezerra. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999.
Joo Martins de Souza. Entrevista gravada na comunidade do Peixe, no municpio de Russas, no dia 19/03/1997.
Joo Miguel de Souza. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa Grande, no municpio de Russas, no dia 23/08/1999.
Joo Pereira Cunha. Entrevista gravada na comunidade do Aude do Coelho, no municpio de Jaguaruana, no dia 01/02/1999.
Jos Benedito de Almeida. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999. 327
Jos Gomes Barbosa. Entrevista gravada na comunidade do Tracoen, no municpio de Itaiaba, no dia 05/04/2000.
Luzia Maria da Silva. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, no municpio de Jaguaruana, no dia 02/02/1999.
Maria Jlia dos Santos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/10/1999.
Maria Lourdes Almeida. Entrevista gravada na comunidade do Riachinho, no municpio de Russas, no dia 25/10/1999.
Maria Pereira de Almeida. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 22/10/1999.
Maria Rocha Pereira. Entrevista gravada na cidade Jaguaruana, no dia 18/08/1999.
Maria Sinh de Souza. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 27/10/1999.
Onofre Augusto dos Santos. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 21/10/1999.
Pedro das Neves Cavalcante. Entrevista gravada na comunidade Vazantes, no municpio de Morada Nova, no dia 08/04/2000.
Raimundo Delfino Filho. Entrevista gravada na comunidade do Canto da Cruz, no municpio de Palhano, no dia 26/10/1999.
Raimundo Mendes Martins. Entrevista gravada na comunidade da Aldeia Velha, no municpio de Tabuleiro do Norte, no dia 10/04/2000.
Raimundo Nonato da Costa. Entrevista gravada na comunidade da Canafstula de Baixo, no municpio de Limoeiro do Norte, no dia 13/04/2000.
Raimundo Sabino da Silva. Entrevista gravada na comunidade da Pacatanha, no municpio de Jaguaruana, no dia 02/02/1999.
Rosa Maria de Almeida. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 25/08/1999.
Valdemar Pereira da Silva. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999.
328 Zacarias Francisco de Almeida. Entrevista gravada na comunidade da Lagoa de Santa Terezinha, no municpio de Russas, no dia 26/08/1999.
II Jornais
O Rosrio (Aracati) 31/10/1915; 13/10 - 27/10 10/11 24/11 08/12 e 26/12/1917.
Jornal Pequeno (Aracati) 25/02 e 18/03/1917.
O Povo (Fortaleza) 1932; 1937; 1938; 1958; 1960; 1974; 1985.
III Relatrio/Mensagem/Livros De Tombo
Relatrio maio de 1916 a maio de 1917 - apresentado ao Ex. SNR. Dr. Joo Thom de Saboya e Silva. J. Saboya de Albuquerque Secretrio dos Negcios do Interior e da Justia. Fortaleza: Typ. Moderna, 1917.
Mensagem - apresentada Assemblia Legislativa do Cear em 1 de julho de 1925, pelo Desembargador Jos Moreira Rocha, Presidente do Estado. Fortaleza: Gadelha, 1925.
Livros de Tombo N V - VII - VIII - IX X: Parquia de Russas.
IV Livros, Teses De Apoio E Obras Literrias
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Dissertação - Confraria Da Esquina: O Que Os Homens de Verdade Falam Entre Si em Torno de Uma Carne Queimando Uma Etnografia de Um Churrasco Numa Esquina Do Subúrbio Carioca. Rolf Malungo de Souza