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Revista da biblioteca
Mrio de Andrade
1. 2
Sumrio
RBMA 69:
Obscena
04 De dentro para fora
06 Pelo buraco da fechadura
10 Toninho Mendes fala
18 Entrevista Marcatti
32 Os infortnios de Sade e as prosperidades de Justine, Clara Carnicero de Castro
38 Puta, putus, putida, Eliane Robert Moraes
50 A Retrica das putas de Ferrante Pallavicino, Edmir Mssio
59 Notcia da poesia colonial chamada Gregrio de Matos e Guerra,
Joo Adolfo Hansen
68 Alma de crno e outros espritos malditos em Pessoa, Carlos Pittella-Leite
80 Os telescpios e o sexo no Japo, Agns Giard
86 Sobre Ethers, de Esther Faingold e Tunga, Luiz Armando Bagolin
92 Hilda Hilst nas lembranas e fotos de Fernando Lemos, Ceclia Scharlach
102 Poemas aos homens de nosso tempo Hilda Hilst em dilogo
110 Entre leos, essncias e fores, Maira Mesquita
122 Massao Ohno, Hilda Hilst e a busca da Poesia Total, Claudio Willer
130 O limbo de Hilda Hilst: teatro e crnica, Alcir Pcora
148 Glauco Mattoso, um perverso ao p da letra, Ronnie Cardoso
158 A Boca do Lixo e a Boca do Lixo no cinema, Eugnio Puppo
178 Meu pai morreu, Leo Lama sobre Plnio Marcos
[...]
Trabalho junto luz que canta
No por glria ou po
Nem por pompa ou trfco de encantos
Nos palcos de marfm
Mas pelo mnimo salrio
[..]
Dylan Tomas
1
O Inferno est dentro! Nas grandes bibliotecas, nas mais antigas ou tradicionais, para no dizer
conservadoras, o termo designa as colees sobre assuntos malditos, licenciosos, marginais, alm
dos lugares fsicos onde esses acervos devem permanecer confnados. De acordo com a defnio
do Dicionrio Larousse de 1877 o depsito jamais aberto ao pblico; o Inferno, coletnea de
todas as sem-vergonhices luxuriosas da pluma e do lpis. A ocultao a todo custo do segundo
livro da Potica de Aristteles, a Comdia, supondo-se que tenha sido escrita, e a condenao
morte daqueles que tentam conhec-la, o pano de fundo do romance de Umberto Eco, O nome
da rosa, que se passa dentro da torre labirntica de uma biblioteca. Em nosso presente, sob a assim
chamada realidade, o historiador Robert Darnton tem se dedicado, nos ltimos anos, a estudar
os infernos nas bibliotecas francesas, desvendando aos poucos os assuntos que at bem pouco
tempo eram considerados tabus para a sociedade, tais como o sexo e as drogas, a literatura ertica
e os livros de magia.
O nmero 69 (meia nove) da Revista da Biblioteca Mrio de Andrade quer desnudar o seu infer-
no, ensejando que tambm as demais bibliotecas pblicas brasileiras no mantenham restries
de carter moral, religioso ou outro qualquer, sobre temas, assuntos e objetos que integrem as
suas colees. De nossa parte, expomos neste nmero um dossi, central para o nosso intento,
sobre a obra e a vida de Hilda Hilst. Claudio Willer escreve sobre a relao de amizade entre o
editor Massao Ohno, cujo acervo pessoal foi recentemente incorporado ao acervo da BMA, e a
nossa querida senhora obscena. Alcir Pcora retira do limbo dois gneros pouco tratados em
sua obra literria: o teatro e a crnica, enquanto Maira Mesquita rel Da morte. Odes mnimas
em artigo intitulado Entre leos, essncias e fores. Ilustra esse dossi a bela mulher, Hilda, em
todo o seu esplendor, no ensaio fotogrfco de Fernando Lemos apresentado por Ceclia Scharlach ,
e que teremos integralmente exposto nas paredes da Biblioteca Mrio de Andrade por ocasio do
lanamento deste nmero da revista.
Em torno de Hilda diagramam-se outras obscenidades, em parte extradas do acervo da Mrio,
como o frontispcio da edio de Justine, de Marqus de Sade, livro pertencente ao nosso acervo
de obras raras e especiais, apresentada em Os infortnios de Sade e as prosperidades de Justine
por Clara Carnicero de Castro. Eliane Robert Moraes nos brinda com a etimologia da palavra
puta em Puta, putus, putida, artigo que se conjuga com A Retrica das Putas, de Ferrante Palla-
vicino, fnamente traduzida e aqui comentada por Edmir Mssio a partir de sua primeira edio,
proscrita j no sculo xvii. A retrica o campo em que grassam as explanaes de Joo Adolfo
Hansen em Notcia da poe sia colonial chamada Gregrio de Matos e Guerra, para a qual as no-
es de autoria formuladas nos sculos xix e xx so relativizadas ou tidas por insufcientes para
dar conta do corpus potico-satrico, mas tambm teolgico-poltico a receber aquele nome. O sa-
trico ronda tambm parte pouco conhecida da obra de Fernando Pessoa que se nos apresenta em
Alma de crno, comentada por Carlos Pittella-Leite, assim como sempre esteve em nosso grande
poeta maldito Glauco Mattoso, Um perverso ao p da letra, segundo Ronnie Cardoso. A relao
entre os instrumentos de ampliao da viso, como os telescpios, e a pornografa e o sexo tema
do breve, mas precioso artigo Os telescpios e o sexo no Japo, de mote antropolgico, de Agns
Giard, autora de LImaginaire rotique au Japon, livro tambm pertencente ao acervo da Biblioteca
Mrio de Andrade.
A cultura literria talvez tenha tido o seu pice no sculo xix, havendo atualmente uma mi rade de
outros gneros nos quais as letras so exercitadas. Os quadrinhos so alguns desses gneros, mui-
tas vezes ausentes ou vistos como desnecessrios em algumas bibliotecas. este o caso da Mrio,
que no conta em seu acervo com os gibis, tal como eram chamados por gente de minha gerao.
Obviamente, pretendemos mudar isso. Nesse sentido, prestamos um tributo a eles neste nmero,
reconhendo-os como marginais que no devem fcar margem das grandes bibliotecas pblicas,
pois enfeixam os leitores h pelo menos cinquenta anos. Toninho Mendes nos fala de sua expe-
rincia como editor de Angeli, Glauco, Laerte, dos irmos Chico e Paulo Caruso e outros, e Marcatti
compartilha a histria de seu percurso como apreciador, desenhista e roteirista desse gnero, que
conquista a cada dia novos leitores, particularmente os jovens. H em nosso acervo muitos livros de
artista, mas recentemente recebemos a ttulo de doao a obra Ethers, de Tunga e Esther Faingold,
que reproduzimos parcialmente na seo Fac-Smile. Trata-se no de um livro com poemas visuais,
mas de um livro sensual, em que h a transa dos desenhos com as palavras e, simultaneamente, as
ndoas e os vestgios desses contatos e contgios.
De boca em boca, do Boca do Inferno ao Boca do Lixo, a Biblioteca Mrio de Andrade presta
homenagem a um de seus vizinhos mais clebres. Montamos um pequeno dossi com fotografas
de Ozualdo R. Candeias mapeando as ruas da Boca em sua epca de auge, e de Jorge Bodanzky
mostrando-a arruinada hoje. O vigoroso ensaio acompanhado por um artigo de Eugenio Puppo
sobre A Boca do Lixo e a Boca do Lixo no cinema. Concluindo esta seo, no poderamos nos
esquecer de nosso eterno dramaturgo maldito, adorado por putas e vagabundos, mas tambm por
intelectuais, empresrios, polticos, jornalistas e senhoras castas: Plnio Marcos, lembrado sem
peias pelo seu flho, Leo Lama.
A tu leitor, que entras, recomendo: deixa a fora todo preconceito!
Luiz Armando Bagolin
Diretor
De dentro para fora
1
Thomas, Dylan. Em meu ofcio ou arte taciturna, Poemas reunidos (1934-1953). 1
a
ed. Traduo de Ivan Junqueira. So Paulo:
Editora Jos Olympio, 1991. Direitos autorais de David Higham Associates.
A nova gesto da Biblioteca Mrio de Andrade (bma) aproveita o
sugestivo nmero 69 (meia nove) da sua revista para assumir novos
posicionamentos. De um lado para outro, de baixo para cima, in-
vertendo os fancos e adotando diferentes posturas, a nova diretoria
arregaou as mangas e ps-se em movimento. Desenvolveu, nesses
primeiros meses, um grande plano de aes que promete colocar
a bma numa posio de ativa protagonista.
Nesse plano, alm de projetos de aquisio de mobilirio
adequado s inusitadas atividades que se pretende encorajar na
Biblioteca, queremos tambm nos dispor incessantes, para todos,
sem discriminao e a qualquer hora do dia ou da noite. bma 24
horas o projeto que inverte a imagem da biblioteca, transfor-
mando-a numa espcie de centro cultural. Sala de cinema, seo
de quadrinhos e um caf-bar so algumas das propostas que nos
seduziram e que prenunciam ainda mais noites quentes e vigorosas
para So Paulo.
No s a aparncia que importa nessa relao da Biblioteca com
o usurio; contedo tambm pode ser instigante e sedutor. Por isso, desenvol-
vemos um projeto de digitalizao de acervo que, quando implantado, preten-
de fertar pela internet com um nmero ilimitado de pessoas, abrindo nossos
recnditos para alm da capital paulista.
Esse esforo de descerramento no novidade. Em 1925, a cidade
de So Paulo se mostrou mais uma vez receptiva para as Letras com a inau-
gurao desta Biblioteca pelo amante das artes Mrio de Andrade. Essa paixo
de nosso eterno patrono se defagraria nos idos 1945, quando a Biblioteca seria o
envoltrio afetuoso da primeira coleo de artes da cidade, concebida por Srgio
Milliet. To formosa se mostrou a Coleo para a So Paulo dos anos 1940, que
acabou por atrair a ateno de inmeros artistas e intelectuais que, poca, corte-
javam-na diariamente.
Entre eles, Marcello Grassmann, artista de obra soturna, que frequentemente
metia seus dedos habilidosos por entre as folhas dos inmeros livros, desenhos e
gravuras de nossa Coleo. Hoje, seguindo ao mote do algarismo libidinoso que
Pelo buraco da fechadura
marca este nmero da Revista, invertemos a ordem e a dis-
posio dos elementos e fomos ns a metermos nossos dedos nos
papis de Marcello. Propondo uma nova entrada da Biblioteca no
centro das discusses artsticas da cidade, levamos, ao prdio da
Hemeroteca, uma exposio do jacar gravador, como carinhosa-
mente lhe chamava seu amigo de copo e de vida Paulo Vanzolini.
E visto que no temos vocao para a monogamia, j esta-
mos nos relacionando com outros artistas, de todos os gneros, que,
em breve, estaro animados em nosso meio.
Marcello foi o primeiro gravador a a ter sua obra exibida na
Biblioteca, mas no foi o primeiro artista. Antes dele, apresentou-se o
fotgrafo German Lorca, que, apesar de seus 90 anos, mostrou vigor
incomparvel. Com ele, contando com o apoio e a parceria da Im-
prensa Ofcial, a Biblioteca fez um deleitoso mnage no terrao, com a
participao ativa de mais de duzentas pessoas. Inaugurou-se, assim,
uma mostra de fotografas de Lorca que acompanhou o lanamento
do livro do incansvel fotgrafo da cidade. O rendez-vous, que abriu
para o pblico paulistano um antigo espao reservado a reunies
internas, agora denominado Terrao Mrio de Andrade, mostrou
como a relao j antiga entre bma e Imprensa Ofcial do Estado de
So Paulo permanece frutfera.
Sem muita cerimnia, no esperando nem mesmo que a coisa
esfriasse, deixamos que Lemos, companheiro de mesma gerao de Lorca, o
sucedesse em nossos espaos, numa exposio fotogrfca que no deixa nada
a desejar em relao precedente. Do outro lado das lentes do fotgrafo por-
tugus, ningum menos que Hilda Hilst numa sequncia delicada e bela.
De cima para baixo, do cu ao inferno, do belo ao grotesco, descemos
ao limbo acompanhados de Ozualdo R. Candeias e trouxemos a Boca do Lixo
para dentro da bma. Nessa mostra, elevam-se aspectos da boemia paulista dos
anos de 1960 e 1970 na zona que, poeticamente decadente, se tornaria o ponto
libidinoso da cidade.
E j que falamos em boemia e poesia, parece-nos oportuno trazer Vinicius
de Moraes mesa. Em comemorao aos 100 anos de nascimento de nosso saudoso
poetinha, fzemos, em parceria com a Companhia das Letras e o Paribar, uma noite
gastronmica regada ao som do trio Fancul Jazz, acompanhada de muito cachorro engarrafado
o usque, na linguagem do poeta.
Esse nosso sempre fel amigo canino, mas agora sem metforas, veio ter na Biblioteca em
outra oportunidade. Xico, o legendrio cachorrinho mexicano, apresentou-se no auditrio da
BMA ao narrar fabulosas lendas latino-americanas. O espetculo, produzido por Descobrindo
a Amrica Latina e idealizado pela artista mexicana Cristina Pineda, contou com a parceria
de importantes instituies, entre as quais a Claro e o Instituto Embratel, alm do Consu-
lado do Mxico no Brasil. Lendas da Amrica Latina Narradas por Xico trouxe de volta
a alegria das crianas Biblioteca. Os alunos da escola Brasil-Mxico vieram em peso
prestigiar a apresentao e foram os responsveis por principiar a discusso em tor-
no da necessidade de se abrir na bma um espao para a criana.
Assim, idealizamos uma sala infantil, projetada pelo escritrio
de design Ovo, que foi apresentada no primeiro dia do i Seminrio
sobre o Direito Infncia e Polticas Culturais para as
Crianas. O Seminrio, concebido por professoras da
Unicamp e puc-Minas, especialistas em pedagogia,
contou com a presena de representantes da Secre-
taria de Direitos Humanos, da Secretaria Municipal
de Cultura e do Secretrio Municipal de Educao
Csar Callegari. Ana Estela Haddad tambm manifestou
seu apoio. Miguel Arroyo, a maior autoridade em educa-
o infantil no pas, abrilhantou o evento e lanou as pedras
fundamentais para que a Biblioteca venha a se tornar ponto de
referncia em estudos sobre direitos da primeira infncia.
Acompanhando o i Seminrio sobre o Direito Infn-
cia e Polticas Culturais para as Crianas, voltamos nosso olhar aos
pequenos, mais precisamente ao menino Issa, um garotinho srio de 10
anos de idade que trabalha 10 horas por dia, seis dias por semana, conser-
tando equipamentos de artilharia e produzindo bombas e morteiros para o
Exrcito Livre da Sria, e realizamos a mostra fotogrfca Infncia em Confito.
As imagens, contundentes, so de autoria de Hamid Khatib, fotgrafo independente
que tem feito as mais eloquentes fotografas sobre a guerra na Sria.
A mostra, em parceria com a Reuters, rendeu inmeros elogios dos visitantes por explicitar
a realidade de uma infncia que, apesar de distante, nos familiar.
E como os direitos da populao tornaram pauta das discusses no pas a partir das mani-
festaes que se precipitaram s ruas em junho, deliberamos realizar o ciclo de palestras Democracia
na Histria. Com o objetivo de promover a discusso em torno de diversos modelos polticos demo-
crticos ou autoritrios, e sua relao com o Estado, o ciclo buscou promover a refexo, que apontou
as controvrsias sobre o tema, contribuindo para o fortalecimento de ideais democrticos. Grandes
nomes do pensamento brasileiro como os de Marilena Chau e Andr Singer palestraram para uma
vida audincia que exigiu a continuao do ciclo. Seu Mdulo iii vir em 2014.
'Nessa vertente, com o olhar em direo ao estrangeiro, ampliando os horizontes, assu-
mindo um papel de destaque na produo e na difuso da pesquisa no pas e estimulando o uso
adequado de lnguas extranacionais, a Biblioteca incitou os sentidos de seus usurios apresen-
tando-os aos alemes, russos e franceses. A Recepo da Poesia e da Prosa em Lngua Alem
no Brasil, Dia da Lngua e da Cultura Russa e Pesquisadores Franceses em So Paulo foram
eventos que marcaram o incio de uma relao concupiscente e antropofgica da bma com
povos e culturas exgenas.
Dessa importncia do outro para o desenvolvimento do indivduo foi con-
cebido Romance de Formao: Caminhos e Descaminhos do Heri; ciclo que
se props a apresentar o fascnio dos pressupostos que orientaram romancistas
no que toca o indivduo e sua formao, a partir dos sucessos e fracassos de
notrias personagens.
Clebres indivduos que, em certo sentido, tornaram-
-se formadores do carter do brasileiro foram protagonis-
tas da srie de palestras e apresentaes teatrais Re-
trovisor. Nela, Paulo Markun entrevista personagens
histricas em momento crtico de suas vidas, trazendo
ao palco Anita Garibaldi, Visconde de Mau, Plnio Sal-
gado e Mrio de Andrade.
Sou trezentos, sou trezentos e sessenta, disse Mrio, que, ml-
tiplo e indefnido, virava, girava e invertia, fazendo o diabo acontecer.
Assim hoje somos ns.
Fabrcio Reiner de Andrade
Supervisor de Planejamento
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Toninho Mendes
Antonio Mendes artista grfco, editor
e poeta. Nasceu em 30 de abril de 1954 em
Itapeva, mas j em 1960 mudava-se para So
Paulo. Foi morar no bairro da Casa Verde, a
cinco quarteires do rio Tiet: isso simples-
mente marcou o homem que sou, disse certa
vez. Marcou tanto, que escreveu uma ode ao
rio: publicada em 1980, Confsso para o Tiet
teve uma segunda edio para banca em 1992
e em breve se tornar encarte do livro Humor
paulistano, a histria da Circo Editorial (1984-
1995), a ser publicado pela editora do Sesi. E
a importncia do bairro vai alm: se no fosse
pela Casa Verde, Toninho no teria conheci-
do Angeli, e a histria dos quadrinhos no Bra-
sil poderia ter sido outra: a Circo Editorial
que durou de 1984 a 1995 poderia nem ter
existido. Essa icnica editora publicou mais
de cem revistas e quarenta livros de quadri-
nhos; foram publicaes que fzeram poca,
como Chiclete com Banana (de Angeli), Geral-
do (de Glauco) e Piratas do Tiet (de Laerte).
S essa histria j bastaria para colocar
Toninho defnitivamente no panteo dos
grandes nomes da hq brasileira. Mas ele no
para. Entre 2000 e 2010 comandou a Jacaran-
d Edio e Design, que produziu mais de
trinta livros de humor e quadrinhos para as
editoras Devir, Sampa, l&pm e Cia. das Le-
trinhas. Em 2010, criou a Peixe Grande, em
parceria com Franco de Rosa (editor da len-
dria pera Grfca) e com a Comix, para a
distribuio, com o lema um mergulho na
histria do humor, dos quadrinhos, da im-
prensa, da censura e da pornografa no Bra-
sil. Os livros que j saram pela editora so
prova disso: Quadrinhos sacanas os herdeiros
de Carlos Zfro, volumes 1 e 2, rememoran-
do a histria dos antigos catecismos (qua-
drinhos erticos quase clandestinos com os
quais os meninos costumavam saciar suas
curiosidades sexuais); Quadrinhos sujos II O
catecismo americano (1930-1950), coletnea
organizada por Gonalo Junior das revistas
pornogrfcas americanas Tijuana Bibles (a
nmero i saiu pela pera Grfca); O Vira
Lata, de Paulo Garfunkel e Libero Malavo-
glia, coletnea defnitiva das histrias do per-
sonagem que estreou em 1991, na i Bienal de
Quadrinhos, no Rio de Janeiro; Maria Ertica
e o clamor do sexo e A morte do Grilo, os dois de
autoria do jornalista Gonalo Junior, sobre
a imprensa de contedo ertico e conside-
rados subversivos durante o regime militar.
Publicaes
da Editora
Peixe Grande
fala
Neste ano, a Peixe Grande deve publicar apenas um ttulo, mas
como diz Toninho: publicamos pouco, mas defnitivamente. Tra-
ta-se de E depois, a maluca sou eu, primeiro livro de Mariza Dias Costa,
ilustradora de Paulo Francis na dcada de 1980 e de Contardo Calliga-
ris desde 1990 na Folha de S. Paulo. A histria dela incrvel: foi inter-
nada vrias vezes, por desequilbrio mental, quase morreu, est pesan-
do quarenta quilos, mas continua frme, batalhando e trabalhando.
um livro grande, com mais de duzentas pginas e todo colorido. Nele,
h uma entrevista/perfl com Mariza um rico depoimento narrando
sua longa trajetria, as internaes pelas quais passou, sobre sua rela-
o com a Folha, com Paulo Francis, as drogas, a misria e a loucura.
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Os catecismos
Nas dcadas de 1950 e 1960, no se falava abertamente sobre sexo,
no havia aulas ou uma plataforma ofcial que lidasse com o tema da
sexualidade. Ento, os catecismos tm uma importncia histrica e so-
cial muito grande. Foi com eles que muitas pessoas, hoje na faixa dos
50 aos 70 anos, tiveram seu primeiro contato com o sexo. Eu resol-
vi public-los por causa desses aspectos, e no necessariamente por-
que so grandes obras de arte, de desenho. O nome catecismo j
tem uma histria engraada: as revistinhas possuam o mesmo forma-
to dos catecismos da Igreja e, assim como os manuais religiosos, tam-
bm serviam para ensinar. Alm disso, as histrias so absurdamente
engraadas, elas extrapolam a questo do teso, de se voc vai querer
trepar por causa daquilo. So histrias muito loucas, com dilogos surre-
alistas do tipo quero comer seu cu na Lua. um verdadeiro absurdo!
Quadrinhos sacanas
Quando pensei nessa coletnea, tentei dar uma alternativa ao sempre lem-
brado Carlos Zfro: nas duas caixas, no h um desenho dele. Isso exigiu um
trabalho de garimpo, de pesquisador; fui buscar quem tinha, procurei co-
lecionadores. Mesmo sem ter o peso do nome de Zfro, tratei a publicao
com zelo, como obra de luxo: os desenhos receberam tratamento de ima-
gem, foram muito bem impressos em papel bom e encadernao cuidado-
sa. Eu digo sem medo de errar que, com o cuidado, o tratamento, o papel e
a impresso que a Peixe Grande deu, esse contedo nunca foi publicado.
A relacao com Goncalo Junior
O segundo livro da Peixe Grande de um dos maiores historiadores
de quadrinhos, Gonalo Junior. Ele j havia publicado pela Compa-
nhia das Letras A Guerra dos Gibis, que vai de 1933 a 1964. A continua-
o dessa histria, que envolveria o perodo da ditadura militar, ele fazia
questo que eu editasse. Veio, ento, o Maria Ertica. Nele, a concep-
o toda da editora se apresenta: voc tem a pornografa, a imprensa,
o jornalismo e a censura. O livro explica o que a Peixe Grande. Por
a, fala-se muito das peas censuradas, das msicas censuradas e dos fl-
mes censurados, no entanto, uma das maiores vtimas da censura foi a
histria em quadrinhos. Com a represso durante o regime militar,
muitas das editoras de hq fecharam. Dos gibis desenhados e publica-
dos por gente como o Claudio Seto O samurai, Maria Ertica etc. ven-
diam-se duzentos mil, portanto tinham mais penetrao, mais impacto.
O porque da Peixe Grande
Eu acho que o material de quadrinho, de imprensa, de humor sempre
foi visto, pelo que eu chamo de academicismo ofcial brasileiro repre-
sentados por usp, Unesp, Unicamp , com preconceito. As pessoas cis-
mam com um cara e deixam muita gente de fora; por exemplo, existem
trezentas teses sobre a poesia do Ju Bananre. J sobre o Belmonte, que
durante trinta anos publicou charges na Folha, fala-se muito pouco. Alm
disso, tem-se a impresso de que se trata de uma produo de segunda
categoria. Na vida cotidiana, muitas vezes, o material de quadrinhos e
de humor teve uma importncia to grande quanto a msica popular
ou a televiso. Na realidade, quem que l livro? Quem vai ao teatro
ou ao cinema? Vou dar um exemplo banal: bem mais fcil a pessoa
se lembrar das coisas do Mauricio de Sousa do que de outro tipo de ar-
tista mais conceituado. Por isso, a proposta da Peixe Grande fazer o
que nunca foi feito com esse material, trat-lo com muita seriedade.
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A morte do Grilo
Esse outro livro do Gonalo foi uma loucura, vai vender trezentos exem-
plares. Nenhum editor que est preocupado s em ganhar dinheiro tem
interesse em publicar um livro sobre o Grilo [Revista O Grilo, de quadri-
nhos underground, que circulou entre 1971 e 1973, quando foi proibida pela
ditadura militar]. A obra um documento vivo, de algo que realmente
aconteceu, conta a histria da ltima gerao romntica do jornalismo
brasileiro antes de as redaes comearem a ser regidas pelo comercial,
pelo prazo. o tipo de coisa que no sairia por uma grande editora.
O Vira Lata
Esse tambm um livro exemplar: foi escrito na priso, virou cult,
todo mundo falava, mas poucos tinham. Tem profundidade, o rotei-
ro muito poderoso, as histrias so muito bem escritas e muito cal-
cadas na realidade. O personagem se locomove num mundo veross-
mil, tendo em vista o presdio brasileiro. O Vira Lata provavelmente
a experincia mais bem-sucedida da aplicao do quadrinho de alta
qualidade dentro do processo educacional. Foi produzido na dcada
de 1990 para ser distribudo dentro da casa de deteno e ensinar os
prisioneiros a tomar cuidado com a Aids, com pico etc. A experin-
cia foi de muito sucesso, porque toda a primeira tiragem, destinada
banca, foi vendida. Depois, o Drauzio Varella, que conhecia o Paulo
[Garfunkel, autor], se interessou e bancou o projeto dentro da peniten-
ciria. A Unip pagou a impresso e o Paulo e o Libero [Malavoglia,
tambm autor] ganharam um pouco. Esse um exemplo de como traba-
lha a Peixe Grande, de modo um pouco mais fechado. No editamos
um monte de coisa, mas o que editamos para encerrar o assunto.
Contar a historia da Circo
Editorial um sonho realizado
Quando fundei a Peixe Grande em 2010, o fz porque achei que nin-
gum ia contar a histria da Circo Editorial. Pensei: vou contar essa hist-
ria porque estamos todos vivos, ainda temos uma boa amizade e ningum
mais vai falar sobre o quanto isso foi importante. Ento, a Peixe Grande
foi um carto de visita para viabilizar o que eu chamo de O livro da Cir-
co. O Jorge, que nosso cara comercial, comentou comigo: Toninho, se
ningum bancar at comeo de 2013, a gente banca, pois a histria me-
rece. Eu ia comear a fazer por conta prpria, mas o portflio da Peixe
Grande ajudou. O Rodrigo [de Faria e Silva, editor chefe], da editora do Sesi,
que conheci no lanamento dO Vira Lata, se interessou pelo projeto. Isso
tambm faz parte da magia da Circo, conseguir que a editora da maior
entidade empresarial do pas se interesse pela publicao de sua histria.
A parceria com o Sesi
Fazer, na minha editora, um livro sobre outra editora minha, sobre mim
mesmo, na minha opinio, fca uma coisa meio cabotina. Agora, sair uma
publicao dessa pelo Sesi uma espcie de chancela. Alm disso, d para
aproveitar melhor o material que tenho: o livro ter cerca de quatrocen-
tas pginas; mais de trezentas so quadrinhos. Ser um livro de peso. O
Captulo 1 escrito pelo Ivan Finotti, chama Um certo Toninho Mendes
e conta as origens da Circo; o Captulo 2 sobre a revista Chiclete com ba-
nana, escrito pelo Waldomiro [Vergueiro], da usp. O Captulo 3 do Nobu
Chinen, tambm da usp. O Captulo 4 escrito por Paulo Ramos, do Blog
dos Quadrinhos; o Captulo 5 de Marcelo Alencar.
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Humor paulistano
O Sesi est editando o livro da Circo no porque ele se chama O Livro
da Circo, mas porque se chama Humor paulistano A experincia da Circo
Editorial. O Captulo 6, escrito por mim e pelo professor Roberto Elsio,
da usp, tem vinte pginas apresentando uma tese: com a Circo Editorial
nasce o humor paulistano como marca na imprensa brasileira. Ou seja, o
livro defende uma ideia, e que no s minha. Conversei muito com o
Angeli e com o Laerte h bastante tempo. O Roberto Elsio fez, em 2004,
uma entrevista com todos ns, e escreveu um livro que esbarrava nesse
tpico, comeava a tocar nesse assunto. Quando vi que o projeto ia sair
mesmo pelo Sesi, convidei-o para escrever comigo sobre isso. O humor
paulistano de que falamos de bar, de mulher liberada, de drogas, mais
sarcstico. No um humor de praia, banquinho e violo. uma tese que
sei que vai gerar polmica. Com certeza, vai ter gente que no vai concor-
dar. Inclusive, j saiu uma matria na revista do Sesi sobre o livro e j teve
repercusso: Trinta anos de humor paulistano [disponvel em http://www.
sesispeditora.com.br/noticia/revista-ponto/trinta-anos-de-humor-paulistano].
Projetos futuros
Mas h um objetivo fnal da Peixe Grande. Estou pensando como viabi-
lizar isso: fazer um grande livro sobre a histria do quadrinho no Brasil,
com os desenhistas de A a Z. Um negcio que vai ter umas 1.200 pgi-
nas. Esse levantamento no existe no Brasil e uma ambio da Peixe
Grande. O projeto at que est adiantado, eu j tenho levantamentos,
sei como etc. S preciso ofcializar. um projeto muito grande para
a Peixe Grande fazer sozinha. Agora, eu acredito que a ltima ponta
da Peixe Grande outra coisa, ainda no sei muito bem o que pode vir
a ser. Ela vai deixar de ser s uma editora, vai virar um espao, outra
coisa. No vai ser mais papel, vai ser um espao, uma livraria, uma esco-
la. Mas quando digo uma escola, no uma escola nos moldes que se
imagina. Eu ainda no sei explicar direito. Um lugar com cursos vrios,
em diferentes momentos, com diferentes temticas: curso de roteiro;
como se adapta histrias, como se pinta. Tem um universo. Seria algo
em torno do que eu chamo de Planeta hq, quadrinho, charge, mang,
Batman, tudo. A Histria em Quadrinhos como um todo: os bonecos,
os flmes, os jogos. Acho que falta um lugar como esse. Mas um pro-
jeto bem para longo prazo, estou me mexendo devagar. Afnal, minhas
metas mais inditas so acabar o livro do humor e comear o projeto
da enciclopdia dos quadrinhos. A enciclopdia exige um esforo me-
nor, mas toma tempo e o retorno muito lento. S que tem muito mais
importncia e, talvez, as duas ambies se casem numa certa hora. R
E
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Marcatti
Entrevista
Francisco de Assis Marcatti nasceu em 16 de junho de 1962, em So Paulo,
na zona leste, onde cresceu, estudou, casou-se (aos 21 anos) e vive at hoje.
Fez escola de artes grfcas no Senai e trabalhou durante muito tempo como
produtor grfco, profsso que por alguns anos ajudou a pagar as despesas de
casa. Ao contrrio do que se possa imaginar do autor de Frauzio, Marcatti um
sujeito caseiro e bem tranquilo, mas gosta muito de conversar: nosso primeiro
encontro durou uma tarde toda. Sua esposa Tata (Ftima Pires) foi sua namorada
de adolescncia e, como disse uma vez em entrevista, uma scia de vida.
No incio de Frauzio, ela ajudava a colorir as capas e grampear as revistas.
Marcatti comeou a criar quadrinhos aos 14 anos, mas essa no sua fase preferida.
Na poca, segundo ele, os quadrinhos no tinham humor, eram depressivos. A
escatologia comeou em 1986, quando publicou Liber geral. Aos 24 anos, ele j
vivia exclusivamente de seus gibis, que imprimia numa ofsete de mesa Rex Rotary
modelo 1501 (hoje, usa uma Multilith 1250). Chegou a ter a prpria editora, a
Pro-C, e a publicar obras de outros autores, como a revista Over Doze, de Loureno
Mutarelli. Em 2005, publicou sua primeira graphic novel (quadrinhos com histrias
mais longas) pela Conrad. A mesma editora publicou, em 2007, A relquia, adaptao
da obra de Ea de Queiroz para a linguagem hq. Seu mais recente projeto, Coprlitos,
a reunio de toda a sua produo entre 1986 e 1992. Segundo apresentao
do projeto no site Catarse, comunidade para fnanciamento via crowdfunding, a
edio vai registrar como se moldou a verve do humor escatolgico e contundente
de Marcatti, que foi infuncia para toda uma gerao de novos quadrinistas.
No momento da entrevista, Marcatti j tinha rodado 710 exemplares da obra,
dos quais quinhentos sero comercializados e 210 iro para os apoiadores.
Ele mesmo vai grampear e encadernar os livros, no todos de uma vez, mas
conforme a necessidade. A experincia como produtor grfco e impressor de
seus prprios gibis fez Marcatti criar uma srie de aparatos que facilita o trabalho
artesanal de montar suas revistas. Isso no deixa, tambm, de ser uma diverso.
Caderno de
registro e
notas de
todas as HQ.
Pgina da hq
A relquia
(Conrad, 2007)
20 rbma 69 69 rbma 21
No Prefcio de Coprlitos, escrito pelo
amigo e tambm quadrinista Gualberto
Costa, aparece o nome de Robert Crumb
como uma de suas infuncias. isso mes-
mo? Eu me lembro de, em nossa primeira
conversa, voc dizer que no era muito f
do trabalho dele.
Eu reconheo o valor histrico de Robert
Crumb na trajetria dos quadrinhos under-
ground. No quero que parea um discur-
so de discpulo ingrato ou flho bastardo.
Eu no gosto dele como leitor. Isso tem
a ver com algo que remete, inclusive, aos
meus trabalhos iniciais o que a prova
cabal de que, sim, ele tinha muita infun-
cia sobre mim. Suas histrias so muito
arrogantes, so histrias muito dedo no
nariz, eu sei a verdade e estou lhe mos-
trando. um trabalho quase messinico,
ele devia montar uma igreja, e no fazer
histria em quadrinhos.
Voc acha que a escatologia de Crumb
serve mais para apontar o dedo para a so-
ciedade do que para rir dela?
Sim. aquela comparao que fz entre
Bukowski e Henry Miller. O Bukowski tem
os mesmos ambientes, as mesmas situa-
es, o mesmo universo do Henry Miller,
s que ele pe adjetivo. Ele diz que aquilo
sujo, nojento, asqueroso. Toda vez que
voc d uma opinio, voc deveria se bali-
zar. Ao mesmo tempo, isso pode ser uma
presuno. Eu no gosto muito dessa pre-
suno. Admito que existam grandes es-
critores que tm esse direito, e fao ques-
to de l-los. Mas d para perceber que
esses grandes escritores como Ea de
Queiroz no se arvoram nesse direito. A
crtica sutil, eles no se colocam na posi-
o de arautos. essa a minha grande cr-
tica ao Robert Crumb. Uma coisa voc
dizer que no gosta de algo ou discorda de
uma situao. Outra dizer que algo est
errado e que o certo voc quem sabe.
Isso complicado.
Ento, de quadrinistas, quem so suas
infuncias?
Tenho muita conexo com a coisa do hu-
mor, e do humor leve. Ns, como escrito-
res, como produtores de cultura, temos
uma relativa responsabilidade com aquilo
que escrevemos ou criamos. Mas essa res-
ponsabilidade no pode ser presunosa
como a de Crumb. O meu dilema justa-
mente gostar de coisas que sejam, ao mes-
mo tempo, leves e agudas. Gosto muito
do Hunt Emerson [quadrinista do under-
ground britnico conhecido pelos personagens
Alan Rabbit, Calculus Cat, Max Zillion e Alto
Ego], seu humor pura sacanagem, pura
diverso. Ele quase pueril, se no fosse
a sordidez das cenas; no tem uma coisa
conceitual, nada disso. Eu no gosto des-
se papo conceitual, principalmente em
quadrinhos. Gosto muito do humor con-
tundente, doloroso, desconfortvel, inc-
modo. Esse, para mim, o papel da hq,
mais do que propor coisas. Por exemplo,
eu sou f de carteirinha do South Park.
o politcamente incorreto na fgura de
crianas desenhadas com traos infants...
Isso, totalmente incorreto. E a alma pura
de uma criana fazendo as coisas mais
horrendas. Esse contraponto interes-
sante. O programa toca em assuntos que
so realmente profundos, srios, mas sem
a pretenso de propor alguma soluo.
Esse esprito leviano o que eu gosto nos
quadrinhos. Gilbert Shelton [desenhista e
roteirista americano. Fat Freddys Cat um de
seus personagens mais conhecidos] tambm
tem essa leviandade. Para mim, Shelton
o contraponto do Robert Crumb. Do meu
ponto de vista como leitor e como autor,
o Shelton muito mais underground do
que o Crumb. Ele revolucionou sem que-
rer revolucionar, fez o que sabia e gostava
de fazer. Era um doido varrido, e isso
o legal. Algumas histrias, inclusive, tm
fnal feliz. Eu costumo falar, das minhas
histrias mais recentes, que se no fossem
nojentas podiam estar na novela das seis
[risos]; se no fosse por umas coisas asque-
rosas, podia muito bem ser um folhetim
de banca de jornal. Uma vez me disseram
algo, achando que me ofendiam, quan-
do na verdade eu gostei muito: que meu
O MEU DILEMA
JUSTAMENTE GOSTAR
DE COISAS QUE SEJAM,
AO MESMO TEMPO,
LEVES E AGUDAS
22 rbma 69 69 rbma 23
trabalho era como a experincia de uma
criana que enfa o dedo na prpria bosta
e coloca na boca, s para experimentar o
gosto. Isso no teria profundidade nenhu-
ma. Eu achei do caralho! exatamente o
que eu fao [risos].
Inclusive, para psicanlise, essa uma
fase importantssima [risos]. Eu ia mesmo
lhe perguntar: qual a funo da escato-
logia em seu trabalho?
O desconforto. Como pessoa, eu sou um
pouco formal, pragmtico, exigente. Na
minha relao com meu trabalho, com
qualquer coisa, eu procuro sempre ter
tudo bem defnido, aquela coisa bem cha-
ta, bem burocrtica. Meu contraponto
exatamente este, criar esse desconforto,
at para mim mesmo. A vida muito chata
e, muitas vezes, chata porque ns a torna-
mos assim. Mas, ao mesmo tempo, difcil
que seja diferente. O convvio social exige
e pressupe regras e parmetros, na maior
parte das vezes, desagradveis. Eu, pelo
menos, no consigo vislumbrar uma forma
de viver mais anrquica do que esta em que
vivemos, socialmente anrquica. Ento, o
desconforto a hora em que voc acha um
ponto de equilbrio. Ela nos lembra que a
gente peida, a gente caga, todo mundo pei-
da e caga e no quer que ningum saiba.
Lembra que somos tambm bichos, coisa
que a gente faz questo de esquecer.
Lembra-lhe tambm que voc humano?
Sim, claro. Mas eu dependo muito de
quem me l. No gosto muito dessa coi-
sa de ser chamado de artista. Eu sei que
o que eu fao tem algumas caractersticas
artsticas, mas eu no me considero um
artista. O artista muito livre, ele total-
mente descompromissado na relao de
quem o v. Eu no posso ser totalmente
desvinculado de quem me l. Se algum
l uma histria minha e no sente abso-
lutamente nada, para mim isso um fra-
casso. Eu gosto de planejar, eu sou muito
chato, gosto de planejar o momento em
que as pessoas vo rir nas minhas histrias.
O mais legal que, geralmente, elas riem
em outros momentos. Planejo mtodos,
calculo a pgina, e no fnal das contas as
pessoas riem de coisas que eu no plane-
jei. De qualquer forma, uma relao que
eu tenho: fao para mim, mas sou um in-
divduo dentro de um contexto social. Nas
minhas histrias, portanto, evito persona-
gens que sejam personalidades pontuais,
diretas. Para mim, sempre como um
coletivo. Eu no fao crtica, mas se exis-
te alguma crtica construda nas minhas
histrias, ela social, e no individual. Eu
li um depoimento de um humorista que
trabalhava na revista Mad dizendo que o
humor contemporneo de muito mau
gosto e eu concordo plenamente, porque
ele envolve pessoas.
Ento voc est de acordo com a crtca a
Rafnha Bastos no caso da piada feita com
a cantora Vanessa Camargo? Existe algu-
ma diferena entre esse caso e as piadas
que fazem do deputado Feliciano e de sua
bandeira pela cura gay, por exemplo?
O Feliciano uma fgura pblica e, por
ser uma fgura pblica, seus gestos so p-
blicos. Uma vez pblico, eu posso sacane-
ar at uma atitude do presidente da rep-
blica. Se disser alguma coisa muito pessoal
sobre a vida dele, a uma falta de respei-
to com o indivduo, por mais porco que
ele possa ser. A Wanessa Camargo uma
celebridade, como pessoa pblica est
sujeita a piadas pblicas, mas no com o
beb em sua barriga. Nesse sentido, ela
uma mulher como qualquer outra, com
uma criana na barriga. Isso, para mim,
intocvel, porque aquilo pessoal dela,
no envolve nada da rea artstica ou da
rea que a tornou pblica. Ento, com re-
lao ao deputado e sua bandeira pblica
de cura gay, para enfar o p na jaca mes-
mo, porque o cara est enfando o p na
jaca. Ele faz isso a srio, a gente faz na sa-
canagem, beleza. Agora, se eu disser que
a flha dele sei l... se eu fzer uma piada
com a me dele, no tem nada a ver. A me
dele igual a minha me, minha me no
tem culpa por eu ser assim. Essa distncia
entre o que pblico e o que privado
precisa ser feita sempre, principalmente
quando se faz humor. Alm disso, que
diferena pode fazer se o irmo de um
A VIDA MUITO CHATA
E, MUITAS VEZES,
CHATA PORQUE NS
A TORNAMOS ASSIM
Pgina da
HQ Frauzio:
Perptua
Serenata
(Devir, 2013)
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Pginas
centrais
da revista
Ventosa
(Pro-C, 1987)
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deputado isso ou aquilo? Pode fazer di-
ferena para ele, no para o pblico. Ago-
ra, as atitudes dele como deputado, sim,
devem ser aplaudidas ou achincalhadas.
Voltando um pouco, voc falou que no faz hu-
mor com indivduos. O que o Frauzio, ento?
Eu nunca fz personagem em quadrinhos.
Gosto muito dos personagens dos outros
e acho isso um desafo monumental. Eu
fao uma coisa que a gente chama de hu-
mor de contexto e no de tipo. O persona-
gem nada mais que humor de tipo. Voc
fca criando situaes para aquele perso-
nagem, ento, todas as gags, as piadas para
aquele personagem so iguais. No po-
dres, iguais. At porqu, se voc no fzer
igual, o personagem perde suas caracte-
rsticas. Isso eu nunca gostei de fazer. Mas
quando recebi uma proposta de fazer uma
revista para pr em bancas, fui eu quem
falou para o editor que deveria ser um per-
sonagem, afnal de contas, esse o apelo
de banca de jornal. Desenvolvi o Frauzio
como um personagem que qualquer coi-
sa isso quando eu projetei. Pensei: vou
fazer uma histria de um cara que um
pedreiro, o Frauzio que arrumou em-
prego de pedreiro; vou fazer uma histria
com um fascista, o Frauzio. Parecia f-
cil: criar qualquer histria e, no lugar do
personagem principal, colocar o Frauzio.
Achei que havia tido uma sacada de mes-
tre, genial! Eu podia fazer qualquer coisa,
s que o personagem teria sempre a mes-
ma cara, aquela cara de idiota. O que me
chama a ateno que ele est se fazendo
sozinho. Ou seja, h histrias em que eu
quero coloc-lo e simplesmente no d
certo. Eu no sei por qu. No tenho ex-
perincia em desenvolver personagem. O
Angeli um criador de tipos extraordin-
rio. Eu no sei como ele consegue fazer
aquilo, incrvel. O Fernando Gonsales
faz aqueles animais que so parecidos f-
sicamente mas completamente diferentes
entre si. fascinante. Esse um domnio
que eu no tenho, e achei que o Frauzio
era a minha grande sacada: fazer o que eu
sempre fz com um personagem. Mas
no funciona. Eu continuo no sabendo
lidar com personagem. Mas no est sen-
do um problema. Estou gostando do fato
de ele andar sozinho.
Como se ele tvesse vida prpria.
Ele tem mesmo. Eu ouvia isso de alguns
autores, de que o personagem cria vida
prpria. Eu achava que isso era uma li-
berdade potica. O caralho que o per-
sonagem cria vida prpria, sou eu que
escrevo, pensava. Mas agora eu sinto
isso, parece que ele sopra na minha ore-
lha olha, eu no sou assim, no. Esse
imperativo dos personagens um dos
motivos que me levou a escrever hist-
rias longas. Eu passo a viver com aquelas
fguras. Uma histria curta, voc bola em
minutos, horas no mximo. Uma histria
mais longa, voc rumina, reescreve, remo-
dela. Nesse processo, aquelas personagens
passam a ter vida prpria. Voc comea a
conviver com pessoas que no existem e
elas interagem com voc. De novo, pode
parecer liberdade potica, mas no . A
gente fca com o personagem. Eu estou
desenvolvendo a histria nova do Frau-
zio, e tem uma velhinha na feira que eu
vejo todo dia. Ela fundamental na hist-
ria e est comigo todos os dias. Tem uma
gostosinha l que tambm aparece para
mim, menos, pois eu ainda no cheguei
no momento da histria em que ela
pea-chave, mas ela est por aqui.
Na nossa primeira conversa, voc fa-
lou que, quando est criando, vive num
mundo paralelo e demora para voltar ao
mundo real. Disse, inclusive, ter certa di-
fculdade em distnguir o que o mundo
onrico e o que o mundo real.
Por isso eu marco muito o tempo das coi-
sas que eu fao. Para poder ter um pouco
de cho. Tenho uma coisa meio maluca
de no me sentir vivo e ao mesmo tempo
me sentir futuante. Por isso eu preciso sa-
ber as horas, o dia da semana. Eu perco
os referenciais concretos, preciso ter mar-
caes. Talvez seja esse o motivo de eu ser
to sistemtico.
Capa do
livro Frauzio:
Carne go
(Editora do
autor, 2013)
TENHO UMA COISA
MEIO MALUCA DE NO
ME SENTIR VIVO E AO
MESMO TEMPO ME
SENTIR FLUTUANTE
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O que remete questo da disciplina. Para
voc, processo de criao disciplina. Se
voc no tver inspirao vai ao dicionrio...
No, ao contrrio, eu s busco no dicion-
rio. Alis, das ideias inspiradas que tive,
nenhuma virou histria. Eu acho mais di-
fcil construir pela inspirao. Para mim,
o trabalho metdico. A histria exige
mtodo, criada mecanicamente. como
contar uma piada, a piada s boa se esti-
ver bem montada, isso mecnica. Isso que
eu uso para criar. No gosto da inspirao.
E essa sua disciplina inclui outros proces-
sos alm da busca ao dicionrio? Voc
tem um dia da semana ou do ms para
sentar e pensar na histria?
quando acaba uma histria. Logo em se-
guida comeo o processo de outra. A sim
dia de ir ao dicionrio, escolher uma pa-
lavra e, a partir dela, fazer um monte de
perguntas, construir grfcos. um mto-
do fcil que encontrei de no fcar refm
da inspirao ou do bloqueio criativo. Eu
no tenho bloqueio criativo, no posso
ter, me recuso a ter.
E os caderninhos que voc me mostrou da
outra vez, fazem parte dessa disciplina?
Os caderninhos comearam porque, de-
pois de ter feito alguns gibis, percebi uma
diferena gritante entre o original e o im-
presso. Esse choque entre um e outro me
alertou para o que eu deveria fazer nas
prximas histrias. O mesmo vale para as
coisas que deram certo. Se eu quiser repli-
car um efeito, ou evitar um problema, vou
precisar consultar cada original. Isso d
trabalho. Ento, comecei a registrar todas
as variveis usadas em cada desenhos qual
a caneta, qual o tipo de papel, o tamanho
do original, quando foi publicado pela
primeira vez, onde... Fazendo o Coprlitos,
esses caderninhos foram muito teis. Eu
sabia cada detalhe da produo. Optei
por no editar as histrias, no sentido de
uniformizar sua apresentao. Cada uma
delas tem a sua trajetria, a grossura do
trao, o tamanho do original, so coisas
que contam uma histria. Preferi deixar
assim e, ao fnal do livro, inclu um apn-
dice com algumas das informaes conti-
das nos caderninhos.
E na hora de desenhar, voc faz pr-roteiros,
storyboards?
No fao esboos muito detalhados de cada
imagem para a histria inteira. Eu defno
alguns momentos-chave e vou desenhando
cada quadrinho por vez, at o fnal. Por
exemplo, se voc olhar o Frauzio que estou
fazendo agora, at a pgina onze est tudo
absolutamente fnalizado, inclusive j est
digitalizado. Da pgina doze em diante,
no tem mais nada. Prever absolutamen-
te tudo antes, no roteiro, para mim cas-
trativo. Mas o estrutural est todo pronto.
Queria voltar de novo ao tema de suas in-
funcias. Voc disse que o Crumb lhe in-
fuenciou mais pela fora histrica do que
pela temtca. Voc falou tambm que,
quanto ao humor, Gilbert Shelton cen-
tral. Mas e quanto aos desenhistas, quem
so seus paradigmas?
Basil Wolverton [cartunista e desenhista ame-
ricano que trabalhou para a Marvel em seus
primrdios, e depois para a revista i], com
certeza. Descobri o trao dele por volta
de 1981, ou 82, depois de ler uma entre-
vista do Gilbert Shelton tecendo elogios a
ele. Para ser sincero, o trao do Wolverton
eu conhecia, sem saber, desde moleque,
graas revista Plop!. As capas da Plop!
eram desenhadas por ele (alis, eu tenho
a coleo brasileira completa da revista).
Aquilo, para mim, era coisa de doente.
Mas eu nunca havia associado Wolverton a
Gilbert Shelton. Provavelmente, esse con-
tato criou aquela sementinha de infun-
cia no meu estilo, mesmo sem eu saber,
no era consciente. Na realidade, a infu-
ncia to grande que na revista Ventosa
(o nome vem de chupar mesmo) eu deixo
isso bem claro e coloco como citao uma
ilustrao dele. Antes, ele fazia quadrinhos
mais convencionais [para a Timely Comics,
que posteriormente viria a se tornar a Marvel]
como Spacehawk. Mas quando foi redesco-
berto pela revista Mad [em 1954. Vai conti-
nuar contribuindo para a revista pelos prxi-
mos 20 anos] pde fazer aparecer seu trao
mais maluco. O uso dos hachurados e as
TO BOM FAZER,
POR QUE FICAR
OLHANDO? NO TENHO
NENHUM FETICHE
Pinup n 4,
ilustrao
(lpis sobre
papel) da
Coleo
PINUPS (2003)
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distores so fantsticas (principalmente
esta ltima tcnica me infuenciou mui-
to). Ele um dos pais de outros mestres
dos quadrinhos. H outros que gostavam e
seguiam Wolverton, mas acho que Gilbert
Shelton foi quem mais bebeu dessa fonte.
O trao dele tem muito desse hachura-
do, principalmente o Wonder Wart-Hog.
Lembro de voc ter dito na nossa primei-
ra conversa que suas primeiras histrias
eram muito diferentes e que as infun-
cias foram outras...
Sou muito reservado e introspectivo, o que
na adolescncia era reforado. Estudei
numa escola em que no me dava muito
bem com ningum, foi um momento bem
ruim para mim. Mas, quando estava no l-
timo ano, conheci um cara, um vizinho,
que era f de quadrinhos, o Marcelo Bar-
roso. Ele, apesar de tambm soturno e ca-
lado, diferente de mim, saa muito, ia para
a regio da Paulista nas livrarias de cultura
alternativa e tal. Comprava muitos qua-
drinhos. Foi graas a ele que eu conheci o
underground americano. Atravs dele conhe-
ci o Robert Crumb, o Gilbert Shelton. Um
dos primeiros exemplares que ele me mos-
trou foi da Metal Hurlant, revista francesa
de quadrinhos de fco cientfca. Os dese-
nhistas eram Philippe Druillet, Moebius etc.
e, no comeo, eu tentava desenhar como
eles. Foi bizarro, pois aquele trao no ba-
tia comigo. At ento, as minhas referncias
eram Turma da Mnica, Tio Patinhas, Dis-
ney. Eu no conhecia Henfl. Na dcada de
1970, era muito difcil chegar coisas s ban-
cas de jornal do bairro que no fossem de
grande tiragem. Quando vi a Metal Hurlant,
despiroquei, queria desenhar daquele jeito.
S que meu trao no tem essa alma. A coi-
sa da anatomia no meu forte, no tenho
disciplina para isso. Alis, eu gosto dos meus
desenhos, mas no me considero desenhis-
ta, porque eu no estudo, no pratico, no
desenvolvo traos ou fao experincias. A
histria na revista Papagaio uma tentati-
va de chegar queles caras. S depois que
saiu a Papagaio eu conheci o underground
americano. Foi ento que conheci aquele
desenho mais expressionista do Crumb, e
depois, o Shelton. O Shelton tem todas as
caractersticas de um desenho infantil: nariz
redondo, olhos bolinha. So coisas que es-
to no meu trao at hoje. Meu desenho
infantil: contorno grosso, olho redondo etc.
Para fnalizar, como a revista n 69 e toca
nessa temtca, posso pedir para voc me
confessar um fetche?
Eu sou a pura contradio. Acho muito
mais estimulante olhar catlogo de lin-
gerie do que ver mulher pelada, s para
comear. Acho muito bonitinho uma cal-
cinha. Teve um perodo que eu estava
buscando imagens de referncias para as
minhas pin-ups nesses sites de mulher pe-
lada; no teve nenhum efeito em mim.
to bom fazer, por que fcar olhando? No
tenho nenhum fetiche.
Nenhum desejozinho estranho?
No. Se eu tiver, ainda no descobri. No
tenho nenhum pudor com sexo, talvez,
por isso, no tenha fetiche. Para mim, tudo
natural. Poderamos at conjecturar que
o fetiche seja fruto de uma castrao.
Aqui, capa do
livro Enterlitos
(Editora do
autor, 2013).
Ao lado, capa do
livro Coprlitos
(Editora do
autor, 2013)
Os
infortnios
de
Sade
e as
prosperidades
de
Justine
J... era assim que os contemporneos de Sade
costumavam se referir ao escandaloso Justine ou
Les malheurs de la vertu. O romance de 1791 era
infame, mas parecia tmido se comparado sua
verso ampliada de 1799: La nouvelle Justine. Na
poca, porm, no se fazia distino entre as duas
obras. E a confuso teria sido ainda maior se os
leitores setecentistas tivessem conhecido Les infortunes de la vertu, pri-
meirssima verso da narrativa, cujo manuscrito foi encontrado no in-
cio do sculo xx pelo poeta Guillaume Apollinaire. Redigido durante o
Antigo Regime, mais exatamente em 1787, esse texto s foi publicado
em 1930. Seu esboo, feito na priso de Vincennes, ganhou forma fnal
nas celas da Bastilha, para onde o Marqus foi transferido em 1784.
A trama era simples: duas irms fcam rfs por um revs do desti-
no e seguem caminhos opostos; a que escolhe a virtude condena-
da ao infortnio; a que opta pelo vcio, s conhece a prosperidade.
Com isso, Sade tentava enfatizar a inadequao da virtude face
realidade social e sua incompatibilidade com a felicidade. Visando o
grande pblico e o abrigo da censura, orgias e torturas eram apenas
sugeridas no texto, deixando ao leitor a tarefa de imaginar as cenas.
Na verso de 1791, o abstrato ttulo Infortnios da virtude foi subs-
titudo por outro, nominal, literalmente Justine ou as Infelicidades
da virtude. quando a novela se torna romance. Tudo progride,
intensifca-se: as aluses se explicitam; os personagens ganham fa-
cetas humanas; o acento na arbitrariedade da fortuna recai na con-
duta incongruente de Justine; a energia celerada dos carrascos ex-
cede, em vez de contrabalancear, a energia virtuosa da herona; a
natureza outrora amoral anuncia ento seu franco imoralismo. A
nuance entre infortnio e infelicidade essencial para se entender o
olhar sadiano: o primeiro implica a fatalidade, enquanto a segunda
traduz a posio obstinada daquele que prefere a iluso realidade.
Essa nfase na transgresso evoca a euforia de Sade com os movi-
mentos revolucionrios. Estima-se que ele tenha concludo o texto
em 4 de julho de 1789, quando foi transferido s pressas da Basti-
lha ao sanatrio de Charenton. Aristocrata de longa linhagem, ele
no se regozija com a ideia de Repblica, que fque bem entendido.
Sade, Donatien Alphonse Franois de Sade, Conde de. Opus Sadicum: a philosophical Romance; for the frst time
translated from the original French (Holland, 1791) With an engraved frontispiece. Paris: Isidore Liseux, 1889. Tra-
duo inglesa da Justina, reproduzida da edio holandesa de 1791.
viii, 392p. front. (grav.) 23x15cm.
34 RBMA 69 69 RBMA 35
A esperana de uma monarquia constitucional: os poderes
moderados do rei aumentariam a tolerncia e atenuariam a
censura, de fato mais branda no incio da revoluo o que
explica a publicao do livro provocante. No obstante, Sade
renega prudentemente a obra antes mesmo de ela cheguar s
ruas. Em meados de 1791, em seu terceiro ms de liberda-
de aps treze anos de crcere, escreve ao advogado Reinaud:
Imprimem atualmente um romance de minha autoria, mas
muito imoral, [] meu editor o pediu bem apimentado, eu
o fz capaz de empestear o diabo. [] Queime-o e no o leia,
se por azar ele cair em suas mos. No surpreende que o li-
vro saia annimo da grfca. Sbia deciso, pois o Comit de
Sade Pblica da Repblica Francesa ir proibir enfaticamente
a circulao da obra por volta de sua terceira ou quarta edio.
Apesar disso, na imaginao do autor, o crescendo continua,
e atinge seu pico oito anos depois. A terceira Justine, de 1801,
no somente tem todos os seus infortnios agravados exponen-
cialmente, como perde o direito de contar sua prpria histria,
tornando-se duplamente passiva. Narradora nas duas primei-
ras verses, a mocinha fca ento desprovida do posto de me-
morialista, que cedido vil triunfante: sua irm mais velha.
A publicao de La nouvelle Justine (Nova Justine), romance
em terceira pessoa, seguida pela Histoire de Juliette ou Les
prosprits du vice (Histria de Juliette ou As prosperidades
do vcio), narrativa em primeira pessoa. Reunidos, os itine-
rrios das duas rfs formam um dos maiores monumentos
da literatura licenciosa: dez volumes, em quase duas mil p-
ginas na edio francesa da Biblioteca da Pliade. Tal cume,
no entanto, foi ainda superado pela genialidade do escritor:
em 6 de maro de 1801, o Marqus entrega a seu editor um
exemplar da Nova Justine com vrias correes e acrsci-
mos, constituindo talvez uma quarta verso do romance, uma
Nova Nova Justine. Mas Sade preso nesse mesmo dia,
e sua ltima Justine se perde. Foi o infortnio do leitor e a
infelicidade do imprio de Napoleo.
referncias bibliogrficas:
Delon, Michel. Introduction et Notices. In: Sade. uvres. Paris: Galli-
mard/Pliade, 1995, tomo ii.
Lever, Maurice. Donatien Alphonse Franois, Marquis de Sade. Paris:
Fayard, 1991.
Clara Carnicero de Castro*
* Doutora em Filosofa pela USP, Clara Castro atualmente ps-doutoranda do departamento
de Filosofa da USP, em estgio ps-doutoral na Universidade Sorbonne-Paris IV. Sua linha de
pesquisa aborda a relao entre a eletricidade e a metempsicose nos romances de Sade.
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Alma de
Crno
e Outros Espritos Malditos em Pessoa
Por Carlos Pittella-Leite*
Puta, putus, putida
Devaneios etimolgicos em torno
da prostituta
Eliane Robert Moraes*
Ainda que a palavra puta nomeie a dita profsso mais antiga do mundo, a supo-
sio de que ela remonta prpria origem das lnguas pode causar certa surpresa.
Mas o que sugere uma de suas etimologias mais curiosas ao lhe atribuir a mesma
raiz latina da palavra poo. Tal sugesto se encontra num annimo Dicionrio do
amor, publicado na Frana em 1927, que estabelece relaes entre os dois termos
tendo em vista sua possvel derivao de putagium ou putens, uma vez que, outro-
ra, os poos eram lugares de encontro de moas em busca de aventuras amorosas.
Segundo o mesmo verbete, seria esse o sentido implcito da antiga expresso poo
de amor, provvel denominao original do que mais tarde viria se chamar
corte de amor, evocando a acepo corrente de fazer corte. 1
Ora, no difcil aproximar essa suposio das hipteses de Jean-Jacques
Rousseau em seu clebre Ensaio sobre a origem das lnguas. Como se sabe,
o flsofo imagina que o surgimento das palavras possa ter sido determi-
nado pelas condies climticas. Nas regies frias, diz ele, por estarem
continuamente ocupadas em prover a prpria subsistncia, as pessoas
s se encontravam por obra da necessidade. Da que, motivadas pelo
perigo de perecer, a primeira palavra trocada entre elas teria sido
ajudai-me. J os habitantes das regies quentes, desobrigados de
tais ocupaes, s precisaram se dar ao trabalho de cavar poos
para ento se entregarem a atividades mais prazerosas. Foi em
torno da gua, portanto, que se deram os primeiros encontros
entre os sexos: os ps saltavam de alegria, o gesto ardoro-
so no bastava e a voz o acompanhava com acentuaes
apaixonadas; o prazer e o desejo confundidos faziam-se
sentir ao mesmo tempo. Tal foi, enfm, o verdadeiro ber-
o dos povos do puro cristal das fontes saram as pri-
meiras chamas do amor.2 No admira que a primeira
palavra nascida dessas reunies tenha sido amai-me.
* Professora de Literatura Brasileira no departamento de Letras Clssicas
e Vernculas da FFLCH-USP. Suas pesquisas concentram-se na interface
entre literatura e erotismo e atualmente se dedica a investigar a ertica
literria brasileira.
1. Dictionnaire de lAmour, p. 460.
2. J.-J. Rousseau, Ensaio sobre a origemdas lnguas, emOs Pensadores Rousseau, p. 183.
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digno de nota que a imagem do poo tenha sido rei-
terada como lugar emblemtico da atividade amorosa,
abarcando tanto a concepo naturalista de um Rousseau
quanto a imaginao perversa que costuma envolver o
amor venal. Desnecessrio lembrar que a palavra real-
mente evoca toda uma simbologia passvel de se associar
prostituio, acionando termos que passam ora pela
concretude de um buraco escuro ou do dinheiro que
nele se joga, ora pelas incgnitas que recobrem a ideia
de verdade, de segredo, de inferno ou de abismo, qua-
se sempre a realar sua insondvel profundidade. No
estranha que seja do fundo obscuro da lngua, onde se
testemunha o encontro fortuito entre o poo e a prosti-
tuta, que venham brotar outras etimologias improvveis
que no cessam de interrogar a palavra puta. Trata-se,
aqui, de refetir sobre tais etimologias, mas sem qual-
quer pretenso de observar o rigor tpico dos fllogos
ou dos linguistas. Pelo contrrio: o rigor que se almeja
no espao desta refexo, tambm fecundo nos estudos
literrios, o da fantasia. Por tal razo, vale dizer que
interessam ao argumento tanto as etimologias conside-
radas pertinentes quanto aquelas que se revelam puro
fruto da imaginao. No limite, pouco importa se parti-
cipam de uma ou de outra categoria, pois na condio
de devaneios etimolgicos que elas so convocadas no
interior deste texto.
A etimologia, segundo a bela defnio de Curtius, um
modo de pensar e, como tal, supe infnitos modos de
imaginar. O intento de investigar algumas das formas
como a prostituta fabulada no mundo latino, inspirado
na concepo do fllogo alemo, supe o caminho por ele
indicado, que vai da denominao para o ser ou, se qui-
sermos, dos verba para as res. Ora, se tal caminho conduz
origem (origo) e fora (vis) das coisas, como prope
o autor, ele realmente pode ser valioso quando se aborda
a singularidade dos erotica verba, j que se trata de um
vocabulrio referido, como nenhum outro, fora motriz
(vis motrix) do corpo.
3
Vejamos, ento, que origens so
atribudas a uma denominao de origem to incgnita.
Putida: parte maldita
A palavra puta revela um extraordinrio poder de
permanncia no imaginrio sexual latino, sobretu-
do se levarmos em considerao que o lxico ertico
vive em perptua expanso, comportando transfor-
maes, evolues ou desaparecimentos ao longo de
sua histria.
4
No s ela se mantm como o principal
signifcante chulo de prostituta, como est na origem
de uma srie lexical que constitui numerosa e viva fa-
mlia, passando por putaria, puteiro, putaina, putame,
putanheiro, putona etc., para citar s alguns exem-
plos do domnio portugus. Na verdade, ela fornece
a base a partir da qual as outras lnguas latinas cria-
ram os signifcantes putta (italiano), pute (francs) ou
putana (espanhol), esses igualmente comportando
inmeras variaes que se multiplicam segundo o
contexto geogrfco e histrico. Contudo, ainda que
o sentido da palavra parea inequvoco, sua origem
bastante obscura, implicando uma grande variedade
de possibilidades.
Uma das etimologias mais frequentes associa a mere-
triz sujeira. A edio histrica do dicionrio Robert,
por exemplo, ao examinar a palavra francesa putain,
que remonta ao sculo xii, assinala que ela deriva do:
[...] antigo francs put, pute, adjetivo corrente at o
sculo xv no sentido de fedorento, sujo, ao lado de
ordorde. A palavra se origina (1080) do latim putidus,
podre, estragado, fedorento, ftido e moralmente
que se revela afetado derivado de putere, aprodecer,
estragar. [...] Put, pute, propriamente fedorento to-
mou desde os primeiros textos o sentido fgurado de
sujo, mau, vil, odioso, maldoso, aplicando-se parti-
cularmente mulher lasciva e pervertida.
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3. E. R. Curtius, Etimologia como forma de pensar, emLiteratura europeia e Idade Mdia latina, p. 533.
4. Cf. J.-M. Goulemot, Ces livres quon ne lit que dune main, p. 13.
5. A. Rey (org.), Dictionnaire Historique de la Langue Franaise, p. 1674.
Semelhante trilha explorada por Pierre Guiraud, que a
sintetiza em seu Dictionnaire rotique, ao propor que: A
palavra pute vem do latim putida, fedorento. um aspec-
to semntico fundamental do francs que trata a prosti-
tuta como um lixo e um objeto de nojo.
6
A suposio
coincide com um estigma antigo que envolve o mtier e
concebe essa mulher como um lixo fedorento. Segundo
o linguista, tal concepo se organiza em torno de certos
ncleos temticos que se comunicam entre si, cada qual
compondo um lxico prprio, nos quais se reconhecem
trs grandes famlias semnticas: na primeira, a nfase recai
sobre a associao com o lixo; na segunda, as fguras evo-
cadas reiteram a ideia de um velho trapo; e, na terceira,
a personagem ganha atributos de vagabunda, sendo no
raro identifcada como a mulher do mendigo profssional,
que representa a classe mais baixa da sociedade.
7
Escusado lembrar que a sujeira por excelncia um objeto
de recalque e, como tal, no cessa de demandar sentidos. O
notvel empenho humano para que ela entre numa cadeia
simblica j foi insistentemente sublinhado por Freud e por
seus seguidores, sem falar dos diversos textos literrios que,
antes mesmo da psicanlise, ocuparam-se da questo. No
mais das vezes, a sujeira se apresenta como um excedente,
demarcando o que fca s margens do social, do mundano,
do normal. Como ensina a antropologia, pelo menos desde
Marcel Mauss, qualquer afrmao de identidade coletiva
implica a excluso dos aspectos considerados impuros, no
obstante o fato de eles tambm contriburem, sua manei-
ra, para reforar a coeso da coletividade.
Leitor atento das teses antropolgicas, Georges Bataille to-
mou-as como ponto de partida para formular sua dialtica
do erotismo que, ao voltar particular ateno aos polos do
proibido e da transgresso, confere um estatuto exemplar
fgura da prostituta. No so poucas as passagens da sua
obra que interrogam o amor venal, percorrendo desde seus
sentidos sagrados at os mais degradados, mas sempre su-
pondo ali um tipo exclusivo de prazer ao qual ningum
acede sem antes se rebaixar a tudo aquilo que esses luga-
res e os seus hbitos tm de escuso, de feio e de imundo.
8
Palavras que, de algum modo, conectam-se com a suposi-
o etimolgica que faz puta derivar de putida, autorizan-
do-nos a precipitar a meretriz na condio irrevogvel de
parte maldita tal como a concebe o autor de Lrotisme.
Putus: purssimo
Ainda que as aproximaes com as teses bataillianas pos-
sam reforar as bases dessa etimologia, convm dizer que
seu sentido no , de forma alguma, hegemnico. O Lit-
tr, por exemplo, o recusa expressamente, terminando o
verbete Pute com a observao de que ele no implica
qualquer sentido negativo nem tem qualquer relao
com o antigo adjetivo put, que vem de putidus e signifca
feio, mau, desonesto. No surpreende que o dicionrio
francs v buscar outra fonte para a palavra, que remete
ao termo homnimo em latim, originalmente sem qual-
quer sugesto sexual. o que se l na defnio sinttica
do mesmo verbete: do latim puta, menina, putus, meni-
no, no qual se acrescenta ainda que os termos em italia-
no putta, em portugus puta, foram muitas vezes usados
com boa acepo; e o mais antigo exemplo histrico da
palavra putain no signifca nada mais que uma jovem
empregada domstica.
9
Tal sugesto revalidada por diversos dicionrios etimo-
lgicos da lngua portuguesa, que no raro mantm a re-
misso do vocbulo sua origem latina, como se pode ler
neste verbete lusitano de Puta: Trata-se, segundo parece,
do feminino de puto, que, por sua vez, provm do latim
puttu, de putus, com germinao consonntica expressi-
va, rapazinho, que existia ao lado de potus. A extenso ro-
mnica das formas femininas leva a pressupor igualmente
em latim uma forma putta. Semelhante defnio se en-
contra em dicionrios etimolgicos brasileiros, o que vem
corroborar a ideia de boa acepo da palavra, conforme
defendida pelo Littr.
10
Como que radicalizando essa vertente mais assptica,
outros compndios da lngua portuguesa ainda acres-
centam que, como adjetivo, putus quer dizer: puro, pu-
rifcado, limpo, cuidado, ou mesmo, no plano fgurado,
puro, brilhante.11 Defnio que fgura na edio cul-
tural do francs Le Robert, reiterando o sentido do po-
lmico vocbulo ao citar uma passagem do dicionarista
Antoine Furetire que, em 1690, afrmava o seguinte:
digno de nota que os antigos Franceses tenham feito de-
rivar, por antfrase ou contradio de sentido, a palavra
putain do latim putus, que signifca puro.
12
6. P. Guiraud, Dictionnaire rotique, p. 528. Para essa mesma eti-
mologia ver ainda C. Bernheimer, Prostitution in the Novel, em
D. Hollier (ed.), A New History of French Literature, Cambridge:
Harvard University Press, 1994, p. 780.
7. Idem, ibidem, p. 96.
8. M. Surya, Georges Bataille, la mort luvre, p. 109.
9. Cf. o verbete Pute em. Littr, Dictionnaire de la langue
franaise, tomo 6, p. 632.
10. Cf. o verbete Puta emJ. P. Machado, Dicionrio etimolgico
da lngua portuguesa, tomo IV, p. 464. Na verso brasileira, cf. o
mesmo verbete emA. G. da Cunha, Dicionrio etimolgico Nova
Fronteira da lngua portuguesa, p. 649.
11. E. Faria (org.), Dicionrio escolar latino
portugus, p. 824.
12. A. Rey (dir.), Dictionnaire culturel de la langue franaise,
p. 2244.
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Tambm nesse caso, mais que tudo, a suposio boa
para pensar. A comear pelo fato de que a associao en-
tre a criana e o amor venal parece no se restringir ao
domnio lingustico, sendo mencionada em diversos estu-
dos histricos sobre o mundo latino na Antiguidade. Vale
citar, apenas a ttulo de exemplo, duas fontes histricas.
Observa Aline Rousselle que, na Roma antiga, a mulher
por vezes uma criana, o que presume antes de tudo
a equivalncia jurdica entre uma e outra. No se trata,
porm, de uma afrmao que implica toda mulher, mas
exclusivamente aquela que, tendo se tornado uma con-
cubina de fato, ainda no tem idade sufciente para s-lo
de direito. Segundo a historiadora, essa condio diz res-
peito a grande parte das meninas, que eram efetivamente
oferecidas aos amantes bem antes de completar 12 anos.
13
Ocorre o mesmo com o menino, o puto ao qual se reme-
tem as etimologias, no raro encarnado na fgura do puer
delicatus, o escravo jovem que servia volpia do homem
adulto na Roma antiga, cuja idade, segundo os estudiosos,
por vezes no chegava aos 5 anos completos.
14
de supor
que, em ambos os casos, a palavra original que designava
a criana pudesse ter um uso ambguo, contemplando um
deslizamento de sentido. Todavia, embora esses dados se-
jam sugestivos, quando se interroga as nascentes de uma
lngua, a prudncia nos obriga a tom-los to somente
como especulaes histricas.
15
Cumpre sublinhar, portanto, que a aproximao entre
prostituio e infncia matria delicada, no s pelas
implicaes ticas que vem ganhando particular ateno
na atualidade, mas tambm porque os dois termos esto
sujeitos a infexes muito diversas no espao e no tempo.
Ou seja, da mesma maneira como a criana no pode ser
reduzida imagem da inocncia que, como bem mostrou
Phillipe Aris, tornou-se hegemnica a partir da ascenso
da burguesia, tampouco a fgura da prostituta pode ser
enclausurada num s signifcado. Da mulher de vida f-
cil cortes, da rameira cocote, da vadia mes-
salina, a puta foi e continua sendo objeto de tantos avata-
res quantos so os nomes pelos quais ela atende.
Feita tal ressalva, no deixa de surpreender a recorrncia do
encontro entre a prostituta e a criana no plano lingustico.
Convm recordar que, na Frana, a palavra flle, menina,
teve destino semelhante ao de puta, sendo um dos termos
mais repetidos no lxico em torno do amor venal, pelo me-
nos a partir do sculo xii. Pierre Guiraud cita dezenas de
denominaes do gnero que se rotinizaram no pas em
diferentes pocas, valendo-se do vocbulo para criar uma
infnidade de termos tais como flle de joie, flle de maison,
flle de nuit, flle perdue, flle publique, entre outros. Recorda
ainda o dicionarista que o sentido principal sendo o de
flle ou, por sinonmia, jeune flle abre toda uma cadeia as-
sociativa que emprega palavras afns como demoiselle (se-
nhorita), nymphe (ninfa), poupe (boneca) ou sur (irm),
para citar apenas algumas delas.
16
Em lngua portuguesa, seu equivalente pode ser encontrado
na usual rapariga ou nas diversas expresses lusitanas que se
valem da palavra menina para fazer referncia ao universo
dos bordis tais como: casa de meninas, ir s meninas ou me-
ninas sala!
17
A esses poderiam ser acrescentados os termos
criados em torno da garota, que so mais correntes no Brasil,
como o caso de garota da casa, garota de virao ou garo-
ta de programa, entre outros. Alm disso, a exemplo do que
ocorre no mbito francs, a linguagem popular brasileira em
torno da personagem tambm expe um sentido, se no in-
fantil, ao menos juvenil, como se evidencia em moa, prima,
donzela ou mesmo em andorinha, camlia e mariposa, que
exalam algo de inocente e virginal.
18
Vale perguntar, uma vez mais, como se encadeiam os termos
dessa evoluo semntica, que funciona como uma espcie
de mquina de degradao moral da menina, quase sempre
operando por meio da perverso de seu sentido original.
Com efeito, de tal forma este se associa pureza que, no ver-
bete Puta de seu estudo sobre a Linguagem mdica popular
no Brasil, de 1936, Fernando So Paulo chega a afrmar que
Intil foi a ponderao das autoridades em Filologia, que
clamaram contra a impropriedade do termo, considerado
seu tymo, lembrando o formoso sentido que a princpio se
lhe concedia: moa purssima. Triunfou o desvirtuamento.
Para confrm-lo, o autor recorre a um compndio portu-
gus do sculo xviii, que insiste na mesma tecla: tal foi a
corrupo da palavra, puta, que sendo vocbulo honestssi-
mo, que quer dizer moa purssima e limpa, por encobrir a
fealdade do vocbulo de meretriz, ou outro to feio, vieram
a infamar aquele nome, chamando puta a mulher que est
posta no ganho e putaria o lugar onde ganha.
19
Em que pesem eventuais exageros, o que fca evidente
nessa srie de etimologias a passagem de um sentido no
mnimo neutro, seno realmente puro, a outro decidida-
mente perverso. Trata-se da perverso da menina realiza-
da no corpo da lngua, o que remete a um imaginrio re-
corrente na ertica literria, que tem variantes exemplares
na corrupo da jovem Eugnie em La philosophie dans
le boudoir, de Sade, na seduo da ninfeta em Lolita, de
Nabokov, ou na depravao da protagonista infantil do
Caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst.
Na Frana, a verso mais ostensiva dessa operao lin-
gustica talvez seja dada pela expresso corrente flle des
rues que supe o deslizamento semntico da criana
para a sujeira, e sua transferncia da casa para a rua ou,
se quisermos, do lar para a sarjeta , fazendo convergir
as duas etimologias. A tambm possvel identifcar to-
da uma cadeia semntica associativa que refora a ideia
de uma menina referida imundice, porcaria, esc-
ria.
20
Importa notar que, ao invs de atenuar a sujeira, a
presena da infncia parece acentu-la ainda mais.
Tudo ocorre, portanto, como se os devaneios etimolgicos
em torno da prostituta variassem exausto entre os polos
da infncia pura e da sujeira ftida at o ponto de reuni-
rem essas foras opostas em uma nica expresso. Um bom
exemplo desse tipo de operao simblica contemplado
na palavra composta for-do-lodo, que qualifca a meretriz
em certas regies brasileiras. Para alm de uma simples reu-
nio de contrrios, o que tais termos supem uma espcie
de sujeira pura, imaculada, no corrompida pelas regras
da civilizao que impem a obrigatoriedade social da lim-
peza, seja ela fsica ou moral. Por tal razo, essas expresses
terminam por expor justamente aquela zona de poder e pe-
rigo que, segundo o ensaio seminal da antroploga Mary
Douglas, demarca a fronteira entre o puro e o impuro ao
mesmo tempo em que revela o ponto que os une.
A deusa Puta
No por acaso, na outra ponta da cadeia semntica aqui
analisada, pode-se encontrar uma etimologia que prope
o sentido inverso e complementar suposto na menina im-
pura. Trata-se, nesse caso, de uma sugesto efetivamente
13. A. Rousselle, Pornia Sexualidade e amor no mundo antigo, p. 111.
14. F. Dupont e T. loi, Lrotisme masculin dans la Rome antique, pp.
243-250.
15. Como bemsugere Alain Corbin, emmatria sexual, a medida dos
fenmenos depende mais do grau de percepo e dos fantasmas dos
observadores de que da realidade dos fatos (Les flles de noce misre et
prostitution au XIXe sicle, p. 300).
16. P. Guiraud, op. cit., p. 335 e 96.
17. Cf. C. P. Santos e O. Neves, Dicionrio obsceno da lngua portuguesa,
pp. 97-98.
18. Cf. H. de Almeida, Dicionrio de termos erticos e afns, p. 139 e 176.
19. F. So Paulo, Linguagem mdica popular no Brasil, pp. 284-285.
20. Cf. P. Guiraud, op. cit., p. 96.
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literria, j que apresentada por Hilda Hilst em seu livro
de crnicas Cascos e carcias, de 1998, em que se l: No
sei se vocs sabem, mas Puta foi uma grande deusa da
mitologia grega. Vem do verbo putare, que quer dizer
podar, pr em ordem, pensar. Era a deusa que presidia
podadura. S depois que a palavra degringolou na pro-
priamente dita, e em deputado, putativo e etc..
21
O humor ferino da autora a leva, por distintos caminhos, a
concluses semelhantes s dos linguistas que denunciam
o desvirtuamento da palavra. Porm, diversamente do que
pode se imaginar, sua sugesto no de todo infundada,
e por mais de uma razo. A primeira delas remete a outra
etimologia, nesse caso a do adjetivo Putativo citado por
Hilst, que assim defnido pela edio histrica do Robert:
derivado do latim medieval jurdico putativus que, j no
baixo latim, signifca imaginrio. Tem origem em putare
no sentido abstrato de contar, calcular, de onde vem pen-
sar, palavra que s entrou no francs por meio de seus
derivados. Assim, segundo essa defnio, antes de ter
se tornado um termo especfco do direito, o adjetivo
que a escritora pretende derivar de puta teria realmen-
te desfrutado maiores afnidades com o verbo pensar.
Mais signifcativo, porm, o fato de Hilda Hilst com-
partilhar a meno deusa Puta com outros autores,
entre os quais est Leon Battista Alberti. Em seu clebre
tratado sobre a pintura, o humanista italiano faz men-
o s ramagens em torno da deusa Puta para indicar
uma forma de movimento na qual uma dobra nasce de
outras dobras, esclarecendo em nota que faz referncia
deusa que preside poda das rvores.
22
Aqui, uma
vez mais, a etimologia vem corroborar uma atribuio
literria de sentido, j que, em latim, o substantivo puta-
men signifca aquilo que sai das rvores quando se po-
dam ou aparam; ou ramos podados de uma rvore.
23
Assim, por ostentar todos esses atributos, na qualidade
elevada de deusa e flsofa, a Puta da escritora brasileira
parece guardar fortes afnidades com a antiga prostituta
sagrada, cujos predicados foram exaltados em inmeros
textos mitolgicos e literrios. Mulheres que, como sinteti-
za Georges Bataille, estando em contato com o plano divi-
no e vivendo em lugares sacrossantos, tinham um carter
sagrado similar ao dos sacerdotes.
24
Obviamente, esboa-
-se a uma fgura que pode ser considerada como o oposto
simtrico e complementar da menina impura, esta decada
ao mais baixo patamar da degradao, muito embora am-
bas compartilhem signifcativas ambiguidades de fundo.
Nunca demais lembrar que tanto uma como a outra deixam
descoberto o inconcebvel ponto de toque entre a pureza e
a sujeira, expondo assim a perigosa possibilidade de rever-
so que ameaa cada um desses polos. No admira, pois,
que as atribuies etimolgicas para a palavra puta sempre
tendam a descrever paradoxos, uma vez que renem ter-
mos opostos no s como sujeira e pureza, mas igualmen-
te seus desdobramentos expressivos como excesso e poda;
desmedida e justa medida; alto e baixo, e assim por diante.
Tudo leva a crer que certas formas de designar a meretriz,
sendo semanticamente oscilantes, caracterizam-se justa-
mente por dizer algo e ao mesmo tempo o seu contrrio,
sugerindo um duplo sentido antittico no qual Freud che-
gou a ver uma vinculao primordial da linguagem com o
inconsciente. Por futuar e deslizar num eixo de polarida-
de cujo sinal sempre pode se inverter, como prope Jos
Miguel Wisnik sobre os palavres que adquirem fora de
talism, essas expresses remetem ao lugar em que os
signifcantes se dobram, deixando entrever o quanto toda
signifcao virtualmente equvoca.
25
Prova disso est no fato de que, em diversas lnguas, um
dos xingamentos mais ofensivos puta que o pariu!
muitas vezes pronunciado como expresso de surpresa,
deslumbramento ou admirao. Inverso expressiva que,
de certo modo, repe-se ainda na suposio de que uma
exclamao to trivial como puxa! seja uma corruptela
de puta, implicando um esforo eufmico de deformar
o vocbulo, como quer a etimologia proposta por Joo Pe-
dro Machado, mas tambm de disfar-lo para garantir
sua permanncia na lngua corrente.
26
Objeto de inverses radicais e de desdobramentos vertigi-
nosos, que no cessam de se repor, o signifcante puta parece
guardar um pacto de fundo com seu referente. Pautados, am-
bos, pelo imperativo do excesso, eles se refetem mutuamen-
te, como se a insaciabilidade que se reconhece no mtier da
prostituta exigisse a todo o tempo novos acrscimos de senti-
do e contnuas atualizaes das fantasias. o que sugerem os
devaneios etimolgicos em torno dessa palavra, que oscilam
entre as acepes mais bvias at as mais enigmticas para,
no limite, interrogar as fronteiras entre o dizvel e o indizvel.
nesses confns que se esconde aquele poo primordial,
cujo fundo obscuro guarda as nascentes das lnguas. L,
onde toda etimologia vlida e toda fantasia tem salvo-con-
duto. L, onde no se conhece o frio nem qualquer freio.
Precisamente l onde, livres de toda interdio, a menina
pode se consagrar por inteiro ao sexo e a puta, flosofa.
21. H. Hilst, Cascos & carcias, p. 138.
22. L. B. Alberti, De la peinture, p. 163.
23. E. Faria (org.), op. cit., p. 823.
24. G. Bataille, "Lrotisme", em OEuvres Compltes, tomo x, p. 133.
25. J. M. Wisnik, "Famigerado", em Scripta, vol. 5, n. 10, 1
o
semes-
tre de 2002, pp. 182-183.
26 J. P. Machado, op. cit., p. 464.
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Standing Nude with Orange Drapery, Egon Schiele, 1914. Aquarela, gouache e grafte sobre papel. 46.4 x 30.5 cm. Acervo bma
50 REVISTA BPMA 69 69 REVISTA BPMA 51
Ferrante Pallavicino foi um satirista italiano
de famlia nobre e de carreira e vida curtssimas.
Nasceu em Parma em 1615 e foi decapitado em
Avignon em 1644. Tendo recebido uma educao
jesutica, entrou porm para a ordem beneditina,
tornando-se cnego. Formou-se na Universidade
de Pdua e passou a morar em Veneza, onde atuou
como secretrio de Giovanni Loredano, nobre que
fundou a Academia dos Incgnitos em 1623. A Aca-
demia fcou famosa pela liberdade de expresso
de seus escritores, bem como por sua promoo
do nascente gnero dramtico-musical da pera,
poca acusada de imoral.
Apesar da curta vida, Pallavicino escreveu 26
obras, entre declaradas e clandestinas, romances
e libelos, estes voltados especialmente contra os
jesutas, mas tambm contra a famlia Barberini
entre eles o papa Urbano VIII (1623-1644), famoso
pelo nepotismo, tendo elevado a cardeais seu irmo
e sobrinhos (nipoti em italiano) e a prpria cria
romana cujo luxo e cuja luxria eram notrios.
Das obras que comps, o Corriere svaligiato
(Carteiro desvalijado ou O carteiro do malote
roubado, 1641) foi a que mais se destacou, valen-
do-lhe uma priso momentnea pela Inquisio e
depois sua perseguio at a morte. De acordo com
Armando Marchi, em sua introduo recente edi-
o do Corriere, trata-se de uma correspondncia
do governante espanhol de Milo dirigida a Roma
e Npoles, interceptada e transformada em mote
de comentrios satricos. Entre os temas atacados
esto as cortess, as mulheres foradas ao claus-
tro, alm de jesutas (ordem espanhola) e espa-
nhis. Note-se que os primeiros tentavam monopo-
lizar a educao e a vida intelectual da pennsula
itlica, a qual j estava parcialmente submetida
aos segundos.
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Em relao prostituio, tambm Marchi nos informa do status
elevado e da grande quantidade de prostitutas (cerca de vinte mil)
apenas na Repblica de Veneza, onde sua atividade era regulada por
leis do Estado.
A Retrica das putas, composta conforme aos preceitos de Cipriano
e dedicada universidade das cortess mais clebres (1642) insere-se
nesse contexto, quando, j fora da priso, seu autor procurava manter-
-se livre e vivo. O termo universidade podendo ser entendido como
repblica, comunidade ou ainda universalidade; j os preceitos de
Cipriano diziam respeito retrica do jesuta Cipriano Suarez, larga-
mente utilizada nas escolas da poca.
O livro segue, assim, por duas vertentes. Uma consiste em ensinar
a aspirante puta a seduzir e ganhar a vida, ensino que se desdobra
em alerta ao cliente sobre os riscos desse negcio. A outra, em ensinar
a argumentao retrica, ensino que se desdobra em alerta ao leitor/
ouvinte acerca das armadilhas argumentativas do discurso persua sivo.
Note-se que se trata de uma retrica voltada antes de tudo ao apelo
aos afetos ao elogio ou censura e sem maiores preocupaes com
amarras lgicas, sendo confuente assim com a sofstica, que j havia
sido atrelada s putas desde a Antiguidade.
Mas pode-se dizer que o texto de Pallavicino surpreende o leitor tanto
da poca (seus escritos tiveram grande sucesso de pblico) quanto de
hoje ao abordar em termos to claros um tema pouco usual. Ao sabor
do incomum do mote concorre ainda o uso ento comum do paradoxo
e da ironia: ao mesmo tempo em que louvada a capacidade de sedu-
zir, critica-se o dano a que se expe quem seduzido como se de-
preende da dedicatria que faz o autor s putas:
Nem por isso pretendo consagrar-vos esta composio como
digna das vossas glrias, mas antes submet-la ao vosso escru-
tnio enquanto defeituosa em muitas partes e plena de erros
que devero ser corrigidos com as vossas regras. Declaro no
poder escrever tanto quanto sabeis obrar, nem sei quimerizar
tantos fngimentos e velhacarias quanto so praticadas por vs
para uso ordinrio.
O livro dividido em catorze lies breves, antecedidas pela su-
pracitada dedicatria, por uma tradicional carta ao leitor e por uma
introduo; e seguidas pela concluso e por uma confsso do autor.
*O autor dedica-se
pesquisa e traduo,
com interesse especial
pelos sculos XVI e XVII.
Com ps-doutorado pelo
DLCV-USP e pela FE-Uni-
camp, escreveu ainda
a obra A civilidade e as
artes de fngir (Edusp,
2012).
Terminei recentemente
a traduo da Retrica
de Pallavicino, a qual
ainda no recebeu edi-
o em lngua portugue-
sa. Portanto, a traduo
dos trechos citados de
minha autoria.
52 REVISTA BPMA 69 69 REVISTA BPMA 53
Em defesa da obra
A carta ao leitor traz uma defesa da prpria obra, recorrendo a uma
analogia com as pinturas que retratam objetos disformes, as quais
tm seu valor reconhecido pela capacidade do artista de retrat-las,
sendo verossmeis ao real observvel e no a uma idealizao. Nas
palavras do autor: So gloriosos aqueles pintores que suscitam mara-
vilha pintando objetos disformes: a feiura culpa do original, no da
efgie. Admite-se certa culpa, porm, a quem a prope como eleg-
vel sob aquela generalidade de bem que, distinta em honesto, til e
deleitvel, faz que se aprove por bom tudo o que apresenta utilidade
e deleite. Assim, a escolha desse uso, ou talvez de usar prostitutas,
que seria de fato ocasio de mcula, e no o retrat-las. E o anterior
louvor da dedicatria transforma-se certamente em detratao quando
afrma: Com semelhante pressuposto pretendo, oh leitor, reduzir o
espanto desta extravagncia, enquanto vires formados os dogmas de
profsso infame; adequando a fala a cada interlocutor.
O resgate do valor de sua prpria obra adviria ainda da fnalidade
educativa, atentando-se para a ignorncia da mulher da poca, cuja
vida restringia-se ao mbito do casamento ou da clausura. Assim diz
Pallavicino: Sendo obra de caridade ensinar aos ignorantes, e na
nossa espcie no se encontrando ignorncia maior do que na mulher,
estimei bom encaminh-la com universal doutrina a um exerccio tor-
nado comum em seu sexo.
detratao anterior da profsso, contrape-se, agora, o resgate de
seu valor pelo reconhecido uso do sexo como lenitivo da humanida-
de. Alvio, portanto, conforto dos tormentos terrenos.
A ideia da prostituio como profsso poca j havia aparecido, ao
menos, na famosssima e grandiosa obra de Tommaso Garzoni, Praa
Universal de todas as profsses (1589), citada por Pallavicino ainda na
carta ao leitor, para a qual remete o curioso interessado em pe-
netrar seus fundamentos. E quando vamos ao Discurso LXXIII Das
meretrizes e de seus seguidores, da Praa Universal, em que se trata
da arte meretrcia, vemos que o tema tratado apenas em termos de
detratao, fazendo-se um recenseamento histrico dessa profsso
limitado a historiadores e poetas da Antiguidade greco-romana.
Pallavicino, porm, tem uma viso mais prtica da questo, em con-
funcia com uma teoria naturalista, e uma funo didtica ao alertar
para os riscos fnanceiros envolvidos. Assim, o valor de seu livro
reafrmado ainda em termos de sua fnalidade para a formao da
prudncia do leitor, e no tanto da aprendizagem da leitora; de modo
So gloriosos
aqueles
pintores que
suscitam
maravilha
pintando
objetos
disformes: a
feiura culpa
do original,
no da
efgie
que seus fns tambm se contrapem: de um
lado, ensinar a ludibriar, mbito da astcia;
de outro, ensinar a no ser ludibriado, mbito
da prudncia:
No te escandalizes, oh leitor, pois te-
nho por fm ensinar no tanto s mu-
lheres o verdadeiro modo de serem
boas putas, quanto a ti a necessidade
de escapar delas, porquanto com ar-
tifciosa tessitura compem somente
para teu dano laos e redes de ins-
dias e enganos.
Por fm, parece que,
junto com a famosa
falsa modstia retri-
ca, os prprios leito-
res no escapam da
ironia quando lhes
dito para imputarem
o erro dessas levian-
dades corrupo
dos sculos, nos quais
preciso escrever
mal para fazer que
sejam aceitas e bem
acolhidas as mais
virtuosas fadigas dos
engenhos.
A retrica do deleite
Passadas as contraposies, passa-se
introduo das lies, a qual traz o pano de
fundo e o carter das principais personagens:
a aprendiz, uma jovem pobre, presa sua casa
pela honra e sem dote para casar, que no v
sada para a vida e no pretende entrar para a
clausura; e a mestra, uma velha pobre mun-
dana que v a chance de ganhar a vida agen-
ciando a jovem, tornando-se sua rufona. Para
convencer a jovem, a velha usa um recurso
muito comum da fala retrico-sofstica, o de
transformar a exceo em regra, o particular
em geral, reiterando a riqueza que at era al-
canada por algumas prostitutas, mas calando
a pobreza e as difculdades enfrentadas pela
maioria delas.
Captada a boa vontade da pobre ouvinte, ou
vtima, iniciam-se as lies. Nas duas primei-
ras so apresentados os aspectos gerais dessa
retrica algo especfca. Assim, a retrica das
putas defnida como arte de multiplicar
artifciosas palavras e mendigados pretextos,
com o fm de persuadir e mover os nimos da-
queles infelizes que
presos em suas redes
assistem s suas
vitrias; sua matria
o interesse, e seu
fm, o ganho mone-
trio, dissimulados
para melhor poderem
enredar os clientes.
Para isso, faz-se ne-
cessrio o uso dos
afetos, ou o uso das
paixes, que apa-
rece como princi-
pal recurso para
o convencimento.
Para a captao da
benevolncia des-
ponta, principalmente, o deleite, e para
vari-lo, torna-se fundamental a capacidade
de inventar, dispor, ornar, memorizar e atu-
ar. Nos termos da velha, a prostituta deve
[...] consumir a mente para quimeri-
zar coisas verdadeiras e verossmeis, e
tambm falsas com contrria aparn-
cia, segundo estimarem-se mais aptas
a persuadir e a impetrar aquilo que se
deseja. inveno se ajusta a disposi-
o, em virtude da qual se observa a
ordem de lugar e tempo conforme seja
estimada melhor adaptada inteno
54 REVISTA BPMA 69 69 REVISTA BPMA 55
da arte. Segue o ornamento das pala-
vras e um extrnseco atavio, que com
afvel pompa acrescente notvel fora
s formas de persuadir. necess-
ria a memria, para no tropear nos
pedidos, e para no ocasionar nusea
com a repetio de costumeiros arti-
fcios, bem como para no confundi-
-los, e formando a contradio de um
e outro fazer aparecer a falcia dos ar-
gumentos e a falsidade das fraudes.
Concorre fnalmente tambm o corpo
com o gesto, que a alma da eloquncia,
donde esta retrica recebe a vida e o ser,
representando-se
nesta parte o
quanto ela se gaba
de mais maravi-
lhoso: promover
os afetos.
Depois desses princ-
pios, so apresentados
quatro requisitos a
serem preenchidos
pela candidata vaga:
natureza (beleza e
vivacidade), arte (para
ocultar as falhas da
natureza, sendo a colu-
na do edifcio), exerc-
cio (pela variedade de amantes) e imitao (pela
observao das putas mais prezadas). Alm da
imitao de modelos vivos, porm, estipula-se a
imitao da teoria proposta agora em detalhes
nas demais lies, pois os mais excelentes na
prtica fazem uma cpia da teoria.
So retomadas ento as cinco partes j elen-
cadas para o deleite, e da inveno pode-se
destacar a seguinte passagem: O atrativo dos
prazeres supera a avareza, quando excede nas
satisfaes do apetite; ao menos leva a amar-
gura da despesa, que muito mais afige na
falta da presena do real deleite.
Do-se em seguida os meios de despertar
os afetos no cliente: dando a crer que apenas
do afeto procedam as carcias, os abraos e
os beijos, donde envisgado quem ama pelo
crdito de uma pura afeio acorrenta-se
ainda mais com os ligames de uma necessria
correspondncia. Porm, requer-se modera-
o nos artifcios usados para no parecerem
muito afetados e aborrecidos. No se confun-
dem aqui sexo e vulgaridade do trato social.
Pallavicino parece ter clareza de que o sexo
do mbito biolgico e no do social, no sendo
pois passvel de ser-lhe aferido os valores des-
te. Assim, na Lio 4, nota-se que a variedade
de clientes requer
maleabilidade no
tratamento:
Haver quem re-
clamar termos
honestos mesmo
na mulher de
vida licenciosa,
comprazendo-se
si ngul ar ment e
de maneiras no
to livres ou ,
como diz o vulgo,
desenfreadas. [...]
At no mostrar
pudicos e san-
tos pensamentos avantaje a corte-
s os seus argumentos, quando os
nimos com estes se convenam;
conhea por isso o temperamento
para ter oportunidade de chegar a
essas extravagncias.
Na lio quinta, adentra-se s quatro partes
do discurso (ou orao, nos termos da po-
ca): exrdio, narrao, confrmao e eplo-
go. A passagem seguinte da lio sexta resu-
me os termos: pode-se dizer que as quatro
acenadas partes da orao fguram os quatro
estados nos quais incorrem as fortunas de
qualquer puta com os amantes. O exrdio
seria uma introduo primria, donde, no
se fechando o negcio, basta observar os
dogmas prescritos em obrigao de adquirir
benevolncia e conciliar o amor.
A narrativa ocorre quando a transao j
foi encaminhada e o amsio entra na casa,
passando dos discursos aos beijos e s car-
cias, com segura esperana de obter todo o
seu comprazimento. Nesse ponto, adverte-
-se a puta a ter mais rigidez, e vale trazer a
seguinte passagem: No se d tanta liber-
dade aos personagens de autoridade sem a
segurana do ganho,
pois que em tal or-
dem existem alguns
indiscretos, os quais
querem deitar razes
onde colocam um
p. Para a confr-
mao, valorizam-se
os exemplos mais
do que a argumen-
tao: Empenhe-se
mais com fatos do
que com palavras,
usando as manei-
ras dos gozos, e ali
onde mais afagado
o amante, prove os
esforos da fora persuasiva delas. E
ao eplogo corresponde o gozo fnal,
com o pice da comoo dos afetos.
Passada em revista a ordem da argu-
mentao, a lio oito toca no ponto da elo-
cuo (do estilo), tomada como essncia
prpria da retrica, que reposta para o
caso se traduz em vestimentas do corpo
austeras mas lascivas, expresses do ros-
to graciosas e, especialmente, asseio.
A lio nove traz o uso da metfora, defnida
em termos comuns mas exemplifcada em in-
comuns: a metfora outra coisa no seno
um transferir as palavras do assunto prprio
a lugar imprprio. Quando, portanto, costu-
ma-se exclamar com frequn cia meu bem,
minha alma, vida minha, assim eu morro.
O mesmo ocorre com as demais fguras, como
a sindoque, defnida na dcima lio como
discurso que acena em uma parte o todo, ou
ao contrrio amplia no todo as partes, exem-
plifcada nestes termos: Requeira portanto
uma parte por tudo o que anseia receber. E
ainda a repetio, na dcima primeira lio:
fnja-se insacivel no comprazer ao amante
e no multiplicar os passatempos, fngindo
gozar com as satis-
faes dele. A agu-
deza de Pallavicino
na observao da
realidade me parece
alcanar seu pice
nessa mesma lio,
quando afrma: So
falaciosos todos
os negcios, pois
necessrio primeiro
expor a certeza, e
quem no se expe a
nenhum risco nunca
pode gozar o ansiado
ganho; ou seja (se
que preciso expli-
car), o orador e a puta querem vencer pela
assertividade, e a audincia e o cliente esto
em perptuo risco.
A dcima segunda lio toca na questo da
sonoridade da composio, que aplicada ao
caso assim concebida: outro ribombo no
deve deleitar o ouvido da puta seno aque-
le dos metais mais sonoros, e por isso a sua
eloquncia aparecer harmoniosa na multi-
plicidade dos amantes. Nesse ponto, a velha
aponta o papel da rufona a justamente prover
a clientela, saindo dos ensinamentos retricos
e entrando na sua prpria negociao.
56 REVISTA BPMA 69 69 REVISTA BPMA 57
A dcima terceira lio traz consideraes
gerais sobre o discurso, comparando-o com um
corpo; devendo a aspirante observar apenas
de colocar os membros naquela parte do pero-
do no qual faro melhor efeito e se tornaro
mais agradveis ao homem. Tambm a so
tratados os adornos da puta e da casa/cenrio.
A questo da memria aparece na dci-
ma quarta lio, sendo necessria para no
se contradizer, j que seus discursos em
conformidade com os costumes so um misto
de mentiras e fngimentos. No entanto, essa
memria seria uma
artifciosa lembrana
dos pontos necess-
rios para a prpria
eloquncia. Da o
uso de quadros e
gravuras lascivas em
torno do leito, reco-
mendando as feitas
por conta dos Sonetos
luxuriosos de Pietro
Aretino, escritos no
sculo XVI, as quais
retratavam cenas de
sexo explcito.
A dcima quinta
e ltima lio trata mais especifcamente da
ao, pela eloquncia corporal, operando
artifciosamente a lngua e o movimento dos
membros. Dos recursos da voz, destaca-se
o uso do canto. Roma, Florena e Npoles
surgem como lugar de uso desse costume, com
a participao de msicos e castrados com
seus putos. Dos gestos, adverte-se a puta a
mexer-se gentilmente para mostrar-se vivaz,
no j queles excessos donde alguma parea
enfurecida, e quase que a trabalhar em torno
a um mrmore se mova com impetuosa violn-
cia, o que por vezes machuca o amante. A fala
explcita e pornogrfca: Invista se puder
a puta, fazendo a isso consentir tambm o
puta honrada, a que no cobra, sendo porm, a seu ver, pouqussi-
mas sua misoginia foi apontada por Marchi tambm no Corriere.
Os conselhos passam a ser dados ento ao leitor curioso das
putas, exortando-o a usar igualmente de mentiras e ardis para no
s se defender, mas tambm ter vantagem sobre elas. Prometer
casamento dado como ardil muito usado e efcaz; mas aos gentis-
-homens reconsidera-se o uso desses e de outros enganos e menti-
ras, bastando-lhes aprender a no ser enganado. Nesse ponto, h
uma curiosa nota acerca do recurso a rapazes como prostitutos,
observando-se que as cortess de Veneza, avisadas para os pr-
prios interesses, notam o prejuzo que acarreta profsso ter con-
correntes os rapazes, os quais usurpam delas a propriedade de dar
prazeres, e em um e no outro sexo do forma aos gozos humanos.
Outro ponto que toca ao negcio do prazer diz respeito ao dispndio
a ser administrado: Em cada semelhante despesa, em suma, tome-
-se conselho da conscincia do bolso, dispondo em tudo segundo sua
largueza ou estreiteza.
Findadas as lies, da velha e da vida, a confsso do autor traz
justamente a tese do erro pela ignorncia. Citando em latim a seguin-
te frmula de Aristteles (tica a Nicmaco, III, 2), Omnis peccans
ignorans, Pallavicino faz o reparo dizendo que estaria enganado
neste axioma quem no o entendesse ao inverso, isto , que todo
ignorante pecador, tolo, celerado e abundante de qualquer iniqui-
dade, conforme prova uma ordinria experincia. A ignorncia, no
caso, diz respeito naturalidade da relao sexual, completando
com o mdico Galeno, de quem cita que reter o smen veneno
(semen retentum est venenum). Com isso, Pallavicino retira a neces-
sidade biolgica do sexo da esfera tica de vcios e virtudes: deve-
ramos atribuir a vergonha tambm ao comer e beber, pois no fao
diferena do procurar a saciedade da fome com o alimento frente
s satisfaes do desejo carnal, no menos natural e necessrio.
De um lado, o libertinismo de Pallavicino chega ao excesso
de defender o sexo pblico, argumentando o uso comum de uri-
nar em pblico; de outro, mantm-se limitado, ao defnir o co-
mrcio com o sexo oposto como o modo natural de satisfao
sexual . Apesar disso, o texto demonstra de maneira inusitada
seu conhecimento prtico e terico acerca do tema abordado. De
resto, cabe ao leitor ajuizar sobre suas necessidades e seus li-
mites limites necessrios, e que se tornam naturais, na vida
em sociedade , de preferncia, creio, sem se deixar seduzir
pela argumentao alheia, seja a libertina, seja a moralista.
amante, na maneira de gozar no fanco, ou nas
pernas, ou no cruzamento do corpo envolto
e concatenado junto. Pallavicino retoma a
cena das grandes cortess, donas de palcios
e honrado cortejo, boa comida e rica moblia,
reafrmando o dito na introduo. O ltimo
argumento fnaliza a questo em termos pr-
ticos: De dinheiro se mantm o homem, e o
corpo mortal no se alimenta daquilo que sa-
boreia a alma, a qual como imortal no estima
nenhuma comida.
Agruras da
ignorncia
A concluso da
obra, porm, aparece
ao modo dramtico,
com uma infeliz revi-
ravolta, quando a jo-
vem tem sua primeira
experincia algo
desastrosa, especial-
mente para a velha
que a agenciou. A
virgindade prometida
ao cliente no se deu,
e a explicao no es-
tava no conhecimento
do sexo pela jovem mas na sua ignorncia. A
moa, que jamais havia se deitado com outro
homem, havia contudo recorrido a conchas de
sopa (caos, cazi) para coar-se, fato que expli-
cava ainda o mesmo problema acusado em ou-
tras moas que do claustro saam para casar,
tendo assim perdido a virgindade sem o saber.
Pallavicino adverte por fm ter feito o
retrato da puta pblica e livre, e no das
que por necessidade ou artifcio exercem
secretamente essa profsso, as quais so
algumas vivas ou senhoras casadas. A
ironia no deixa de expor o drama da situa-
o. Tambm no se contempla na obra a
De dinheiro
se mantm
o homem,
e o corpo
mortal no
se alimenta
daquilo que
saboreia a
alma, a qual
como imortal
no estima
nenhuma
comida
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Bibliografa consultada
GARZONI, Tommaso. Meretrici (p. 592-602). In: Piazza Universale di tutte le professioni del
mondo. Veneza: Robeto Meghetti, 1605.
MARCHI, Armando. La rete di Ferrante, o le due imposture. In: PALLAVICINO, Ferrante. Il Corriere
Svaligiato. A cura di A. Marchi. Parma: Universit, 1984.
PALLAVICINO, Ferrante. La retorica delle puttane. A cura di Laura Coci. Parma: Fundazione Pietro
Bembo/Ugo Guanda Editore, 1992.
Crditos das imagens
Xilugravuras atribudas a Agostino Caracci para a primeira edio de Sonetos luxuriosos, de Pi-
tro Arentino. I Modi: Riemerge de quattro secoli di censura il libro maledetto del Rinascimen-
to cui posero mano Marcantonio Raimondi. Giulio Romano e Pietro Arentino. A cura di Lynne
Lawner. Milano: Longanesi & Co., 1984.
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Nos sculos XVII e XVIII, Gregrio de
Matos e Guerra era o nome que clas-
sifcava poemas de diversos gneros
colecionados em cdices manuscritos,
principalmente o gnero satrico; a par-
tir do sculo XIX, passou a ser o nome
de um homem desregrado, que expressa
sua psicologia doente em poemas im-
pressos e lidos na forma de antologias
e livros. Esse deslocamento da signif-
cao do nome antes classifcao do
gnero, depois psicologia do homem e
dos modos de publicao dos poemas
antes cdices manuscritos, depois tex-
tos impressos foi e decisivo na re-
cepo deles, e evidencia que as noes
de autor, obra e pblico so histricas.
Ou seja: os modos como os poemas so
lidos e interpretados hoje so particu-
lares, no podendo ser generalizados
para todos os tempos. Aqui, trato desse
assunto esquematicamente.
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O homem Gregrio de Matos e Guerra nasceu em Salvador da Bahia
em 23 de dezembro de 1636. Filho de senhor de engenho, recebeu o
sobrenome do pai, Matos, e o da me, Guerra. Fez estudos no Colgio
dos Jesutas e, aos 14 anos, foi mandado para Lisboa. Em 12 de dezem-
bro de 1652, matriculou-se na cadeira de Instituta (Direito Romano)
da Universidade de Coimbra, seguindo cursos de Cnones, ou Direito
Cannico, entre 1653 e 1660. Anda aqui um estudante Brasileiro,
to refnado na stira, que, com suas imagens e seus tropos, parece
que baila Momo s canonetas de Apolo, declarou Belchior da Cunha
Brochado, seu contemporneo na Universidade. Graduou-se em Cno-
nes em 24 de maro de 1661, ano em que se casou com D. Michaela de
Andrade. Foi Juiz de Fora em Alccer do Sal (1663) e Juiz do Cvel em
Lisboa (1671). Emmanuelis Alvarez Pegas, em seus Commentaria ad
Ordinationes Regni Portugalliae (1682), informa que o juiz Gregrio
emitia sentenas em versos, como: Gaita de foles no quis tanger /
Vejam diabos o que foi fazer, com que decidiu uma causa na qual a
famlia da noiva exigia a devoluo do dote porque o noivo no tinha
consumado o dever conjugal. Foi Procurador da Cidade do Salvador nas
Cortes de Lisboa de 1668 a 1674, quando foi exonerado pela Cmara
Municipal da cidade baiana. Conta-se que em 1674 teve uma flha,
Francisca, com Lourena Francisca. Ficou vivo em 1678. Nomeado
desembargador da Relao Eclesistica da Bahia em 24 de maro de
1679, retornou em dezembro de 1682 para esta peste / do ptrio so-
lar, como se l em poema que lhe atribudo, acompanhado do poeta
portugus Toms Pinto Brando, o Pinto Renascido. Em 1683, pediu
demisso; teria declarado que, sendo homem, no podia manter o voto
de abstinncia sexual como clrigo tonsurado. Botou banca de advoga-
do, casou-se com D. Maria dos Povos, tiveram um flho, Gonalo, que
foi poeta. H muitas anedotas sobre a vida desregrada que Gregrio
teria levado nos engenhos do Recncavo, compondo poemas obscenos
ao som da msica de uma viola de cabaa. Em 1694, o governador Joo
de Lencastre o degredou para Luanda, Angola. Fala-se que o fez para
proteg-lo do flho do ex-governador Antnio Lus Gonalves da Cma-
ra Coutinho (1692-1694), vindo de Portugal para mat-lo, vingando o
pai desonrado em versos obscenos que Gregrio teria feito sobre a so-
domia do Tucano (o narigudo Antnio Lus) com o Lagarto, Lus Ferrei-
ra de Noronha, Capito da Guarda. Em Luanda, teria trado soldados
sublevados, quando os setecentos libongos (palhas valendo cinquenta
ris) do soldo foram substitudos por duzentas moedas. No se sabe
bem por que e como, voltou para o Estado do Brasil em 1695, indo para
Recife, onde teria aberto banca de advogado. Usava bananas, que
chamam do Maranho como adorno do escritrio, conta o Licenciado
Manuel Pereira Rabelo, letrado baiano do sculo XVIII. Em Recife, foi
amigo do governador Caetano de Mello e Castro. Conta-se que morreu
como mpio, comparando o vermelho do sangue do corpo de Cristo de
H muitas
anedotas
sobre a vida
desregrada
que Gregrio
teria
levado nos
engenhos do
Recncavo,
compondo
poemas
obscenos
ao som da
msica de
uma viola de
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*Nota Biogrfca:
Doutor em Literatura
Brasileira pela Univer-
sidade de So Paulo.
Atualmente, professor
titular da mesma institui-
o. Tambm membro
da Fundao de Ampa-
ro Pesquisa do Estado
de So Paulo e autor,
entre outras obras, de
Solombra ou A som-
bra que cai sobre o eu
(Hedra, 2005) e A stira
e o engenho: Gregrio
de Matos e a Bahia do
sculo XVII (2 ed.
Ed. Unicamp. 2004),
pela qual recebeu o
prmio Jabuti (1990) na
categoria Ensaio.
62 RBMA 69 69 RBMA 63
um crucifxo que lhe deram a beijar com a
vermelhido dos olhos do menino vizinho com
sapiranga. Conta-se que morreu cristmente,
pedindo perdo a Deus pelos pecados. De todo
modo, em 26 de novembro de 1696, foi enter-
rado na capela do Hospcio de Nossa Senhora
da Penha, em Recife, demolida em 1870.
Na primeira metade do sculo XVIII, se-
guindo o costume de letrados europeus que
compilavam poemas em cdices manuscritos,
intitulando-os com o nome de um autor que
classifcava o gnero ou os gneros deles, o
Licenciado Manuel Pereira Rabelo compilou
poemas que circulavam na Bahia na orali-
dade e em folhas avulsas, atribuindo-os ao
nome Gregrio de Matos e Guerra. Usan-
do lugares-comuns extrados dos poemas,
Rabelo escreveu um retrato biogrfco, Vida
e Morte do Excelente Poeta Lrico, o Dou-
tor Gregrio de Matos e Guerra (Vida do
Doutor Gregrio de Mattos Guerra. Pelo
Lecenciado Manuel Pereira Rabello, Cofre 50,
Cdice 57, Seo de Manuscritos da Biblio-
teca Nacional do Rio de Janeiro). No retrato,
que um gnero fccional, Rabelo recorre a
um lugar-comum para afrmar que recolheu
os poemas, j destruncados pelo tempo, de
folhas volantes e da boca de pessoas antigas
que os sabiam de cor. So lrico-religiosos,
lrico-amorosos, jocosos, satricos, burles-
cos e fesceninos, alm de um poemeto pi-
co celebratrio de Dionsio dvila Vareiro,
exterminador de bandidos paulistas que
assolavam Boipeba, Camamu e Porto Seguro.
Desde o sculo XIX, a fco biogrfca de
Rabelo foi lida como documento da vida
emprica do homem. Com isso, os poemas
atribudos ao nome do personagem Gregrio
passaram a ser lidos como expresso da psico-
logia do homem Gregrio. A fco do retrato
inventada com lugares-comuns de pessoa
do gnero demonstrativo, gnero do louvor
e da vituperao. Com eles, Rabelo compe
seu personagem como homem infame que
excelente poeta. Em todas as ocasies, deseja
a justia a qualquer preo, porque inimigo
acrrimo de toda hipocrisia. O excesso do
seu desejo de justia o faz irracional, aristote-
licamente vicioso: (...) seguindo os ditames de
sua natural impertinncia habitava os extre-
mos da verdade com escandalosa virtude. Na
fco de Rabelo, a natural impertinncia e
a escandalosa virtude, que fazem o persona-
gem excessivo habitar os extremos da verda-
de, so instrumentos da Providncia Divina.
Seu nome, Guerra, evidencia que, assim como
a fome e a peste, o poeta causa segunda ou
instrumento de Deus para castigar a corrupo
da Bahia com a stira: ... e no de admirar
que, disparadas do trono da divina Justia
aquelas duas lanas de sua ira, seguisse a
terceira com to esquisito gnero de guerra em
um homem que de sua Me unicamente tomou
esse apelido entre outros partos. Ela o deu
apelidando-se da Guerra; ele o foi sem aque-
la preposio da, por ser a mesma guerra ....
Boca do Inferno, seu apelido, signifca Boca
da Verdade: Ah Bahia! bem puderas / de
hoje em diante emendar-te, / pois em ti assis-
te a causa / de Deus assim castigar-te, diz o
personagem satrico em poema que interpreta
providencialmente a bicha, a epidemia de
febre amarela de 1686. Outro afrma: Sempre
veem, e sempre falam, / At que Deus lhes
depare, / quem lhes faa de justia, / esta
stira cidade.
Rabelo fcou esquecido at 1840, quando o
Cnego Janurio da Cunha Barbosa, membro
do Instituto Histrico e Geogrfco Brasilei-
ro, publicou no nmero nove da Revista do
Instituto uma parfrase do seu retrato de
Gregrio de Matos e dois poemas graciosos
atribudos ao poeta, O msico castigado
e O livreiro gluto. Romntico, o Cne-
go Barbosa interpretou a fco do retrato
como documento da vida emprica do ho-
mem. Ou seja: interpretou como realidade
da psicologia do homem o que no retrato
a fco do carter de um personagem.
A parfrase foi repetida pelo historiador
Francisco Adolfo de Varnhagen no seu Floril-
gio da poesia brasileira, de 1850. Varnhagen
publicou vrios poemas, que atribuiu ao
homem Gregrio de Matos, interpretando-
-os como expresso psicolgica de um sujeito
desclassifcado, vadio e doente. Apesar dis-
so quem sabe justamente por isso homem
pr-nacionalista, crtico da dominao me-
tropolitana, arauto do Nacional. Varnhagen
tambm deu incio censura da poesia atri-
buda a esse tarado, convencionando signos
grfcos com que eliminou palavras, versos e
estrofes inteiras. No deixaremos uma linha
de reticncias por cada verso omitido por no
nos expormos a ver alguma vez uma pgina
s de pontinhos. E, como o Cnego Barbosa,
suprimiu a interpretao providencialista da
stira, tpica do antigo Estado portugus, que
a entendia aristotelicamente como correo de
abusos, substituindo-a pela ideologia naciona-
lista romntica. Em sua Histria da literatura
brasileira, de 1870, Slvio Romero retomou
Varnhagen e Barbosa, propondo que Gregrio
foi brasileiro: no ndio, no negro, no por-
tugus, mas mazombo, flho do pas, capaz
de ridicularizar as pretenses separatistas
das trs raas formadoras da Nacionalidade.
No fnal do sculo XIX, Jos Verssimo acusou
a falta de originalidade e o plgio em poemas
que so emulaes ou imitaes intencionais
de Quevedo e Gngora, afrmando que seu
autor tinha sido homem nervoso, qui um
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nevrtico. Em 1893, Araripe Jnior publi-
cou o livro Gregrio de Matos, classifcando o
homem e a poesia atribuda a ele como esp-
cimes da obnubilao, o entorpecimento da
razo causado pelo clima tropical. A ideologia
determinista de Araripe Jnior afrma que
o Trpico amoleceu as conexes cerebrais do
baiano. Suas sinapses relapsas causaram sua
relaxao sexual e moral expressa na stira.
Fauno de Coimbra, quando jovem, Gregrio
foi stiro do mulatame, quando velho, bo-
mio e quase louco na Bahia. O stiro obnubila-
do expressa sua psicopatologia obscenamente
com o ressentimento e o pessimismo do ma-
zombo de origem fdalga que assiste ascen-
so social dos tratantes burgueses enquanto
a fdalguia velha decai. Essa interpretao
fez e faz fortuna at agora. Em 1923, Afrnio
Peixoto, da Academia Brasileira de Letras,
editou Obras completas de Gregrio de Matos.
No to completas, expurgam muitssimos
poemas satricos obscenos denunciados como
de mau e pssimo gosto. Na dcada de 1930, o
crtico carioca Sylvio Jlio repetiu Verssimo,
afrmando que os poemas do indecente toca-
dor de viola eram plgios. Outro, Agrippino
Grieco, sentenciou que Gregrio tinha sido
um parasita vitalcio. Em 1946, Segismundo
Spina o chamou de Homero do lundu em
seu Gregrio de Matos. Em 1968, aps estu-
darem dezessete cdices, a maioria deles da
Diviso de Manuscritos da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, James Amado e Maria da
Conceio Paranhos publicaram o Cdice Ra-
belo pela Editora Janana, de Salvador (Obras
completas de Gregrio de Matos e Guerra.
Crnica do viver baiano seiscentista, em sete
volumes). Agentes da ditadura militar decla-
raram Gregrio de Matos subversivo, anticle-
rical e porngrafo e confscaram mil colees
para queim-las em praa pblica. A interfe-
rncia de um poltico impediu o fogo. Poemas
que atacam a estupidez prepotente de autoridades do sculo XVII foram
usados na resistncia contra a ditadura de 64. No lbum Transa, de
1972, Caetano Veloso musicou o soneto Triste Bahia, quo desseme-
lhante como alegoria do Brasil de Mdici. Na universidade, foi rotina
aplicar s stiras as formulaes sobre o riso e a pardia na cultura
popular medieval do terico da literatura Mikhail Bakhtin. Interpre-
tadas como libertinas, transgressoras, rebeldes, anrquicas, libert-
rias e revolucionrias, foram entendidas como expresso risonha da
voz dos dominados coloniais contra a seriedade da classe dominante
local e metropolitana. Citando o lema do poeta Ezra Pound make it
new (faa-o novo) e outras autoridades poticas, como T. S. Eliot,
Garcia Lorca e Octavio Paz, que revalorizaram poetas do sculo XVII,
como Donne, Gngora e Sor Juana Ins de La Cruz, concretistas de
So Paulo afrmaram a novidade de procedimentos tcnicos, versos
e metforas de Gregrio de Matos no presente de produo da sua
vanguarda de longa durao. Em 1989, com a obra O sequestro do
Barroco. O caso Gregrio de Matos, Haroldo de Campos acusou Forma-
o da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido, de sequestrar
Gregrio de Matos e o Barroco do cnone literrio brasileiro. Afrman-
do que o poeta e o Barroco so fundamentais para o cnone literrio
constitudo do ponto de vista do presente de produo da vanguarda,
Haroldo de Campos criticou o nacionalismo do romantismo formativo
de Candido e defendeu, com nacionalismo, a brasilidade de Gregrio,
dado como primeiro antropfago cultural brasileiro ou primeiro autor
brasileiro de malandragens dialticas.
At agora, o leitor viu que Gregrio de Matos foi e plural: homem
infame de humor sanguneo excessivo, poeta causa segunda escols-
tica, instrumento da Providncia Divina, Boca do Inferno, Boca da
Verdade, homem vadio, doente, tarado, obnubilado, pessimista, res-
sentido, nacionalista, plagirio, parasita vitalcio, indecente tocador de
viola, canalha genial, vanguarda do proletariado colonial os especia-
listas no tm documentao sufciente para dizer se leninista, stali-
nista ou trotskista , moderno, antropfago cultural, paradigma da cul-
tura baiana multietnicopolicultural, tropicalista, neoneovanguardista
e ps-moderno. Evidentemente, no h nem pode haver interpretaes
verdadeiras dessa poesia. A poesia fco. E a fco irredutvel a
qualquer regime de verdade. Evidentemente, as interpretaes sempre
produzem novos valores de uso, inclusive valores crticos que a poesia
no previa no sculo XVII, como ocorreu na poca da ditadura militar
de 1964. O que se pode dizer que, quando universalizam para todos
os tempos a particularidade datada dos seus critrios de defnio de
autoria, obra e pblico, as interpretaes realizadas a partir do Cnego
Janurio da Cunha Barbosa desistoricizam o passado e o presente em
que so feitas. H outras recepes, algumas at muito mais originais,
(...) Boca do
Inferno, Boca
da Verdade,
homem vadio,
doente,
tarado,
obnubilado,
pessimista,
ressentido,
nacionalista,
plagirio,
parasita
vitalcio,
indecente
tocador
de viola,
canalha
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tipo virtuoso e indignado com a corrupo
de sua ptria. Age para restabelecer a ordem
natural das coisas, e sua arma so as torpezas
agressivas de gnero baixo. Como nas liras
contra Antnio de Sousa de Meneses, governa-
dor: Oh no te espantes no, Dom Antnia,
/ Que se atreva a Bahia / Com oprimida voz,
com plectro esguio / Cantar ao mundo teu rico
feitio, / Que j velho em Poetas elegantes /
O cair em torpezas semelhantes. Um pre-
ceito estoico, igualmente antigo, determina,
como se pode ler em Sneca, que a indignao
tambm indigna, pois tambm irracional.
Logo, o satrico um louco, to estpido e
malvado como os viciosos. (Nas interpretaes
romntico-positivistas que desde o sculo XIX
psicologizam o artifcio da fco potica, esse
preceito estoico aparece reformulado como
expresso do ressentimento e pessimismo
do homem Gregrio.) Ambos os preceitos, o
aristotlico e o estoico, determinam que o
personagem satrico seja composto como tipo
dramtico que fala com informalidade cor-
respondente falta de controle da sua clera.
Obviamente, como a stira arte, a falta de
controle no decorrncia da psicologia de um
homem doente supostamente expresso nela,
mas do ato de fngir do poeta, que inventa a
irracionalidade da clera do personagem fora
de si com tcnicas muito racionalmente regra-
das. Numerosos poemas evidenciam a conven-
o: Eu sou aquele que os passados anos /
cantei na minha lira maldizente / torpezas do
Brasil, vcios e enganos.
Quando canta as coisas baixas, o personagem
satrico cita poeticamente as normas sociais
do seu tempo. Citadas poeticamente, ou seja,
fccionalmente, so metforas de princpios
hierrquicos da poltica catlica da monar-
quia portuguesa. Preenchendo os lugares -
-comuns cmicos com referncias extradas
dos discursos da Bahia, o satrico repete
o sentido legal das normas, invocando-as
metaforicamente para interpretar e castigar
afrmando as metempsicoses de Gregrio, mas
no quero falar delas. Para resumir, digamos
que a maioria das interpretaes feitas nos
sculos XIX, XX e XXI no tem interesse pela
particularidade histrica dessa poesia como
prtica simblica de uma colnia do antigo
Estado portugus.
O exame dos cdices manuscritos e dos pre-
ceitos retricos e teolgico-polticos que mo-
delam a poesia neles publicada evidencia que,
na Bahia do sculo XVII, a stira era praticada
como subgnero potico do cmico, confor-
me se l numa pequena nota que Aristteles
escreve na Potica. Segundo Aristteles, a
matria do cmico a feiura do corpo, como
deformidade e desproporo, e da alma, como
estupidez e maldade. O feio desproporo
sem unidade e, quando o representavam, os
poetas do sculo XVII aplicavam o estilo baixo
das misturas deformadas de seus dois subg-
neros aristotlicos: guelion, traduzido em
latim por ridiculum, ridculo; e psgos, tradu-
zido latinamente por maledicentia, maledicn-
cia. Uma stira a Pedralves da Neiva, fdalgo
com foros falsos chegado a Salvador em 1692,
diz: Sejais, Pedralves, benvindo / E crede-me
meu amigo / Que tudo o que aqui vos digo /
Ora zombando, ora rindo. Zombando: a
maledicncia obscena adequada para tratar
da deformidade que no faz rir, mas causa dor
e horror, porque a feiura dos vcios fortes
caracterizados pelos excessos para mais; rin-
do: o ridculo correspondente deformao
que faz rir sem dor, pois a feiura dos vcios
fracos caracterizados pela falta, como excessos
para menos. Sempre irracionais e sem uni-
dade, aristotelicamente, vcios e viciosos so
extremos para mais e para menos de um ponto
mdio equivalente virtude unitria, racional,
bela e honesta defendida pelo personagem
satrico para a manuteno da hierarquia.
Ele um ator complexo. Aristotelicamente de-
fnido, deve se apresentar publicamente como
vcios e abusos que fgura no poema. Como talvez se saiba, sempre a instituio que produz
a perverso; no caso, as virtudes produtoras dos vcios so as institucionais: brancura da pele
oposta a raas infectas de no brancos; religio catlica oposta a heresia luterana, calvinis-
ta, maquiavlica, judaica, muulmana, alm da idolatria de ndios e africanos; discrio cor-
tes oposta a vulgaridade plebeia; liberdade e cio senhoriais opostos a escravido e trabalho
mecnico; sexo segundo o Direito Cannico oposto a sexo contra a natureza etc.
Na sociedade colonial, os poemas no pressupunham nenhuma autonomia crtica dos seus
autores e de seus pblicos, como acontece nas sociedades de classes contemporneas. Todos
eles defnem a sociedade baiana como corpo mstico de vontades subordinadas cabea
mandante, o rei. Todos reproduzem aquilo que cada membro desse corpo poltico j , e deter-
minam, ao mesmo tempo, que deve ser e permanecer sendo o que j . Assim, todos os seus des-
tinatrios tambm so includos na totalidade do corpo mstico como membros subordinados
que testemunham a representao satrica, reconhecendo e devendo reconhecer sua posio
subordinada: Desejo, que todos amem, / Seja pobre, ou seja rico, / e se contentem com a sor-
te, / que tm, e esto possuindo. Quando reiteram o cada macaco no seu galho, os poemas
funcionam como teatro corporativista em que se representa a hierarquia: encenam os vcios
como abusos que a corrompem e, simultaneamente, propem os bons usos do costume que os
corrigem. Assim, a obscenidade poltica: os nomes das partes baixas do corpo, suas funes
fsiolgicas e seus excretos so aplicados nos poemas como metforas da condio social no
branca, no catlica, no discreta, no fdalga, no livre de tipos classifcados como natural-
mente feios, inferiores e desiguais.
Referncias Bibliogrfcas:
HANSEN, Joo Adolfo. A Stira e o engenho: Gregrio de Matos e a Bahia do sculo
XVII. 2 ed. revista. Campinas/So Paulo: Ed. Unicamp/Hedra, 2004.
MOREIRA, Marcello. Critica textualis in caelum revocata? Prolegmenos para uma edi-
o crtica do corpus potico colonial seiscentista e setecentista atribudo a Gregrio
de Matos e Guerra. So Paulo: Edusp, 2011.
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I. Sagrado & Profano
H o Bocage que, segundo a mestra Cleonice Berardinelli, junto a Cames e Antero, ocupa
o estreito pdio dos maiores sonetistas da lngua portuguesa. H o outro Bocage, de poemas
e piadas de baixssimo calo, incluindo clebres sonetos pornogrfcos. Os dois foram um
s Bocage. Por dcadas, considerou-se apenas o Drummond modernista de Sentimento
do mundo, um poeta to duro quanto arguto, to perfeccionista quanto inovador, consagra-
do entre os maiores poetas brasileiros. Eis que, um belo dia, postumamente se descobre o
Drummond de O amor natural, dos poemas erticos. Ambos foram Carlos Drummond de
Andrade. Decerto no se trata de um fenmeno exclusivo das Literaturas Portuguesa e
Brasileira. Mesmo em tradies religiosas, personalidades como Santo Agostinho, So Fran-
cisco de Assis, Saulo/Paulo representam tanto o sagrado quanto o profano, em complexas
biografas cheias de luz e sombra ainda que mudem de nome, ainda que sejam canoniza-
dos, ou ainda que, como Bocage, urjam num escrito derradeiro: Rasga meus versos, cr na
eternidade!
1
Decerto versos so e sero rasgados. Contudo, nem mesmo as mais severas
inquisies logram obliterar todos os versos profanos. Mesmo que versos sejam riscados,
rasgados, ou queimados por autoridades, alguns apenas permanecem latentes, temporaria-
mente escondidos por mos hesitantes, acabando esquecidos ou extraviados at que, um
dia, sbito ressurgem para macular as reputaes mais consagradas com as ndoas da reali-
dade, a realidade do mundo da matria, com seus fuidos e excrees. nesse sentido que
h Fernando Pessoa, o maior poeta espiritual da lngua portuguesa..., e h Fernando Pessoa,
autor do soneto Alma de crno, que, embora comece pela palavra alma, no explora uma
temtica transcendental, visto que a alma de crno (bem como o esprito de porco no
uma entidade espiritual). O caso que esses dois Pessoas so o mesmo Fernando; e no
se sabe de ningum que tenha sido mais pessoas que Pessoa, um universo: uno e diverso.
Nota Biogrfca: Carlos Pittella-Leite poeta, pesquisador e educador, autor de Civilizaes volume dois (Pali-
mage, 2005), de uma tese de doutorado sobre os sonetos de Pessoa (PUC-Rio, 2012) e professor titular do instituto
Global Citizenship Experience, em Chicago, EUA. Em 2012, recebeu uma bolsa da Biblioteca Nacional de Portugal
(BNP) e da Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), a fm de realizar uma investigao dos
sonetos inditos de Pessoa, trabalho que inspirou este artigo.
Nota do Editor: Apedido do autor, a acentuao dos ditongos em palavras paroxtonas e o uso da trema fo-
ram mantidos.
1 Bocage, Soneto CCL.
Alma de
Crno
e Outros Espritos Malditos em Pessoa
Carlos Pittella-Leite
69 RBMA 69
70 RBMA 69 69 RBMA 71
II. Alma & Crno
No esplio nmero 3 (e3) da Biblioteca Nacional de
Portugal (bnp), em Lisboa, encontra-se a maior parte
dos manuscritos de Fernando Pessoa, excluindo-se os
papis ainda em mos de herdeiros do poeta. Entre
as dezenas de milhares de textos pessoanos, escritos
recorrentemente em ingls, francs e portugus, h
muitos sonetos, a forma mais popular da poesia lrica
em que o poema se organiza em catorze versos, com
estrofes seguindo ou a tradio italiana, simboliza-
da por Petrarca (dois quartetos e dois tercetos), ou a
tradio inglesa (trs quartetos e um dstico), encarnada
por Shakespeare. Dos sonetos em portugus espalha-
dos por vrios envelopes do esplio, pouqussimos
esto ainda por publicar, visto que a explorao da
poesia em lngua portuguesa de Pessoa foi muito mais
intensa do que as de lngua inglesa ou francesa.
Em princpios de 2013, colaborei com o Prof. Jernimo
Pizarro para publicar, na primeira edio da revista
Granta, em Portugal, cinco sonetos inditos de Fernan-
do Pessoa em portugus entre eles o poema Alma de
crno, datvel de 1910 e assinado com letra ilegvel,
primeira vista. este o texto que a muitos surpreendeu,
a alguns chocou, e que forneceu o tema deste ensaio.
Transcrevo-o a seguir, tal como publicado na Granta,
seguindo a ortografa do poeta no manuscrito de cota
e3 36-10 na bnp (notem-se as crases invertidas, j no
utilizadas no portugus atual).
Alma de crno isto , dura como isso;
Cara que nem servia para rabo;
Idas e intenes taes que o diabo
As recusou a ter a seu servio
lama feita vida! trampa em vio!
Se pra ti todo o insulto cheira a gabo
do Hindusto da sordidez nababo!
Universal e essencial enguio!
De ti se suja a imaginao
Ao querer descrever-te em verso. Tu
Fazes dr de barriga inspirao.
Qur faas bem ou mal, hyper-sabujo,
Tu fazes sempre mal. s como um c,
Que ainda que esteja limpo sempre sujo!
O que seria uma Alma de crno? O Dicionrio Houaiss
da lngua portuguesa inclui, entre as acepes de crno,
a defnio nmero 16:
que ou aquele que trado pela mulher (diz-se
esp. de marido, companheiro ou namorado);
cornaa, cornudo, guampudo.
Nesse sentido, uma alma de crno seria aquela
de algum trado, ou de algum cuja essncia
estaria trada. Contudo, em bom (ou mau)
portugus, o xingamento crno aplica-se s
mais diversas ocasies, de relaes amorosas a
brigas cotidianas. A definio de alma de crno,
portanto, talvez no seja to simples. O prprio
poeta busca explicar-se, ainda no primeiro verso:
Alma de crno isto , dura como isso. Logo,
trata-se de uma alma to dura quanto um corno,
um chifre; uma alma verdadeiramente rgida,
como sugerem tanto a metfora, quanto a acen-
tuao mtrica do verso: decasslabo, ele fora o
leitor a fundir a segunda slaba de co-mo com a
primeira de is-so, gerando uma superacentuao,
co-moIs-so, na qual o segundo o torna-se a se-
mivogal u num ditongo crescente: co-mus-so.
Veja-se a escanso do verso:
No s a abertura do soneto com a expresso
Alma de crno que causa espanto, mas tambm
o desenvolvimento de versos que culminam noutra
comparao, feita com o mais breve palavro da
lngua portuguesa: c, palavra duplamente
acentuada no soneto (pelo acento agudo e pela
rima), no clmax do poema.
Como poderia um soneto to chulo, brutal, ter sido
escrito pelas mos do mesmo autor dos poemas
msticos de Mensagem, dos to flosfcos 35 Sonnets,
das clssicas Odes de Ricardo Reis? Seria mesmo
Pessoa o autor deste soneto?
III. Pa & Nabos
Para os decifradores das letras (freqentemente hiero-
glfcas) de Pessoa, h algo que imediatamente chama a
ateno ao ler o manuscrito de Alma de crno algo
alm do peculiar vocabulrio do poema. Ao contrrio
do que ocorre com os sonetos inditos de Pessoa, a
caligrafa deste poema bastante legvel, o que torna
surpreendente ele ter permanecido indito at 2013.
De fato, a caligrafa de Alma de crno to mais le-
gvel se comparada aos outros poemas inditos que, ao
encontr-lo no esplio da bnp, imediatamente pensei
que no se tratasse de um texto de Fernando Pessoa,
mas sim de algum que o tivesse presenteado ao poeta,
ou de quem Pessoa tivesse copiado, com rara pacincia
caligrfca. O primeiro caso careceria de uma pesquisa
biogrfca (quem poderia ter presenteado o soneto a
Pessoa?); o segundo, de uma pesquisa bibliogrfca
(que poetas Pessoa poderia ter copiado?). O segundo
caso (Pessoa ter copiado o poema) no seria o nico,
pois h pelo menos um soneto jocoso limpidamente
copiado pelo poeta num caderno: Fanfarunfas, faro-
fas, bagatelas (cota 153-6r na bnp), poema annimo
dirigido a um tal Antnio Isidoro dos Santos, profes-
sor de Retrica que, primeira leitura, parece at
uma personagem pessoana! Este Isidoro, porm,
consta no Diccionario Bibliographico Portuguez,
tendo nascido em 1743, em Coimbra, onde lecionou
Retrica, supostamente traduziu a Arte Potica de
Horcio e travou um duelo potico com o autor bra-
sileiro Silva Alvarenga (1749-1814) quando este era
estudante em Coimbra.
2
Voltando ao soneto Alma de crno, se o texto bas-
tante legvel, a assinatura, porm, pareceu-me inicial-
mente indecifrvel como se o autor no se quisesse
dar a conhecer. Busquei o poema em edies de poesia
de escrnio e maldizer; sem sucesso, folheei obras de
Gregrio de Matos, Bocage e outros poetas malditos.
Perguntei, ento, Profa. Cleonice Berardinelli, mestra
em Pessoa e minha orientadora; Cleonice e eu pergun-
tamos ao Prof. Helder Macedo, conhecedor de antolo-
gias maledicentes... Nada.
Antes de passar pesquisa biogrfca, analisei a curiosa
assinatura do poema:
Empreguei sofwares como Photoshop e fotos em alta
resoluo; comparei a assinatura com a caligrafa de
sonetos em que a atribuio a Pessoa indiscutvel;
busquei outros manuscritos pessoanos em papel, tinta
e dataes similares.
A essa altura, ocorreu-me uma idia: ora, seria estranhs-
simo assinar versos doutrem com uma rubrica! Decer-
to a assinatura parece uma rubrica: seria ela fp, iniciais
de F[ernando] P[essoa]? Prossegui buscando rubricas
similares, sem encontrar mais fps. No entanto, contem-
plei a assinatura do soneto Nova Iluso (cota 35-28).
Al- -ma de cr- -nois- -to_, du- -ra co- -mo_is -so;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 --
2 F. Topa, Silva Alvarenga.
72 RBMA 69 69 RBMA 73
Eis o plano: compor uma rubrica a partir dessas iniciais e
observar se este forjado fp no seria similar hipottica
rubrica do poema Alma de crno. Segue abaixo a assina-
tura de Nova Iluso, despida de tudo alm das iniciais.
Combinando as iniciais retiradas da assinatura de
Nova Iluso, justapus o resultado assinatura
de Alma de crno:
Eureka! A rubrica de Alma de crno parece mesmo
ser fp, iniciais de Fernando Pessoa... ou de Francisco
Pa! Dentre a mirade de personagens do universo pes-
soano, Pa mero fgurante, correndo o risco de passar
despercebido. Ele dirigia a seo humorstica de O Palra-
dor, um jornalzinho inventado pelo poeta quando jovem.
Ora, uma seo humorstica seria labor apropriado para
o autor dos versos de Alma de crno. Sem encontrar
assinaturas de Pa, mas satisfeito com a pesquisa, decidi
incluir o soneto em minha tese de doutorado, levantan-
do a hiptese da dupla-atribuio a Francisco Pa e/ou
Fernando Pessoa.
Um ano depois, o Prof. Jernimo Pizarro me indicou uma
srie de manuscritos pessoanos contendo assinaturas fp
anlogas do poema Alma de crno, e em contextos em
que a atribuio deveria ser mesmo feita ao Fernando
Pessoa ortnimo. Trs exemplos disso so os testemu-
nhos de cota 133b-32r (fac-similado ao lado, esquerda),
18-115v e 1142-69 alm de textos assinados fpessoa
(como o 92f-84v, direita), em que as duas consoantes
iniciais constituem mais um exemplo de fp.
Foi tambm o Prof. Jernimo Pizarro quem ex-
clamou Gaudncio Nabos! quando sugeri o
soneto Alma de crno para a antologia da revista
Granta: eis que outra personagem adentra o dra-
ma de um soneto. O Prof. Pizarro prosseguiu, sem
hesitar: uma provocao a Gaudncio Nabos;
note as preciosas rimas em '-abo', feitas sob medida
para irritar o destinatrio da maliciosa mensagem.
E a relao tambm se fundamenta no jornalzinho
O Palrador, pois foi a Gaudncio Nabos que Pessoa
delegou sua direo literria em 1905.
Se fp pode ser Francisco Pa ou Fernando Pessoa,
Gaudncio Nabos tambm pode ser gn, o destinatrio
de um soneto em ingls assinado por Alexander Search,
datado tambm de 1905. Trata-se do soneto Liberty,
to g.n., que principia pelo verso Oh, sacred Liberty,
dear mother of Fame!. O Dr. Gaudncio Nabos, humo-
rista anglo-portugus, jornalista e diretor literrio de
O Palrador, teria, portanto, dois sonetos feitos em sua
homenagem, por duas personagens distintas de Pessoa.
Enquanto Search encarnava o papel de correspondente
da frica do Sul, a informar o diretor literrio com uma
carta-soneto, Pa estaria a entregar, como um bilhete
de assinatura misteriosa, um soneto que certamente
implicaria sua demisso imediata do jornal, caso seu
patro Gaudncio Nabos viesse a receb-lo e decifr-lo.
=
&
Entre as minhas incertezas e as exclamaes do Prof.
Pizarro, decidimos publicar o poema, que passou
a simbolizar uma provocao imagem que cons-
trumos de Fernando Pessoa. s vezes, imagino se
algum ainda encontrar o soneto Alma de crno
numa antologia desconhecida de sonetos satricos,
exclamando que atribumos o soneto erroneamente.
Embora isso seja possvel, creio que meu desconforto
tenha uma razo psicolgica mais provvel: minha
expectativa de versos elegantes foi destruda ao ad-
mitir que o soneto Alma de crno era de Pessoa.
O Prof. Pizarro, mais experiente, j tinha aprendido
a lio fundamental do labirinto pessoano: no ter
expectativas, pois Pessoa no ser pessoa acabada
at ajuntarmos todas as peas do quebra-cabea.
fp, Nabos, Pa, Palrador... Seguimos todas as pistas
encontradas, sem descobrir informaes confitantes que
justifcariam atribuir o poema a outro autor. Mesmo as-
sim, como acabo de confessar, minha certeza no total:
h sempre uma dvida em minha nada cega f. Imagi-
ne-se, ento, a reao do pblico a este soneto: em meio
a exclamaes, houve controvrsias pblicas em redes
sociais, com reclamaes que foram desde o questiona-
mento por que editar um poema que diminui o legado
de Pessoa?, at a incredulidade total de este poema no
de Pessoa, em hiptese alguma!, passando por ataques
tico-chauvinistas tais como: os brasileiros (nacionali-
dade em que me incluo) so os reis do apcrifo e, por-
tanto, este poema talvez tenha sido falsifcado embora
a edio da revista Granta inclusse tanto o fac-smile do
original, quanto a indicao da cota sob a qual o poema
pode ser encontrado na bnp.
Quanto mais acirradas as reaes, mais importante se
torna este mero soneto chulo, e mais necessrio se faz
lembrar que, como todos ns, Fernando Pessoa foi um
universo de sensaes, com a diferena potica de que,
nele, tais sensaes ganharam corpo e voz e poesias, to
sagradas quanto profanas o que nos fornece a opor-
tunidade de resgatar outras profanidades cometidas por
esse ser de tantas almas.
IV. Pancrcio & Coelho
O primeiro soneto de Fernando no foi assinado por Pes-
soa, mas sim pelo doutor Pancrcio, quando o poeta tinha
ainda 13 anos. Trata-se de Sonho, texto em que os temas
do sonho, da iluso e da alma j surgem, se no com o
mesmo requinte potico, certamente com a mesma inten-
sidade que marcar a lrica pessoana. O dr. Pancrcio tem
outro soneto sobre a alma, mais especifcamente sobre a
teoria da transmigrao que fornece o ttulo do poema
(Metempsicose) e ecoa o Transforma-se o amador na
cousa amada, que Cames tomou emprestado de Petrar-
ca. Antes que o leitor veja o dr. Pancrcio como um mo-
delo de erudio, lembremos que ele tambm assina dois
outros sonetos, cada um deles ridicularizando a imagem
da mulher, aqui africana, acol portuguesa. Transcrevo,
a seguir, um desses poemas de Pancrcio, datado de 5 de
julho de 1902, includo na Nova Serie do jornalzinho O
Palrador (cota 87-25v).
74 RBMA 69 69 RBMA 75
Coelho, ha [] creado
(Bicho to manso deve ser bom, va,
Disse comigo). Traga-mo guisado.
No ha melhor talvez, nem mesmo assado
uma coisa que no gto d.
E deu. Juro, no sei porque peccado
Mengasguei. Eu sem dar por isso p
Tomei horror ao traioeiro bocado
E ao lettreiro que vi posto Ha
Coelho.
Este do Curso, disse eu *animado
Ser (que horror) bem mais delicado
Mas dengulir [] m
Bi-illudido, estou desenganado
E tenho ainda mais horror ao A.
Coelho.
Se Pessoa foi capaz de ridicularizar mestres e musas, por
que seria surpreendente que ridicularizasse uma de suas
criaes heteronmicas? Seria, porm, no universo potico
de lvaro de Campos que o atrevimento pessoano atingi-
ria, talvez, seu pice.
Galeria Africana 1. Mulher Universal
O seu rosto repleto de meiguice
Inda contm os rastos de bexiga,
Quer que eu guarde segredo e que no diga
O que eu a todos digo e sempre disse:
alourada como esbelta miss,
Dos franceses costumes amiga,
E quer que assim como ela tudo siga
Das lindas gaditanas a doidice...
Leitor, aos seus encantos seja cego,
Ante seus olhos seja forte adeus!
Se cede fala que ela tem di l.
Que bonita, leitor, eu no te nego,
Mas quando ri (louvado seja Deus)
Parece estar tocando um fungg!!
Com apenas quatro sonetos, as estatsticas de Pancrcio
so simples: 50% sagrado, 50% profano. Considerando
que, etimologicamente, Pancrcio o Todo Poderoso
(Pan + Kratos), temos j, na mera adolescncia do poeta, a
idia de que a toda-poderosa poesia pode abordar quais-
quer temas, e no apenas os agradveis ou flosofais. H
outro dado que faz Pancrcio ganhar importncia: uma
lista dos funcionrios de O Palrador (no caderno 144r-1),
que esclarece: Director da Seco Humorstica: Francis-
co Pa (Dr. Pancrcio), como se Pancrcio fosse pseud-
nimo de Pa, ou vice-versa.
Pancrcio ridiculariza sua musa. fp (Fernando Pessoa ou
Francisco Pa) escracha seu diretor literrio Gaudncio
Nabos (gn). Em dois poemas, datados de 1905 e 1914
pelo pesquisador Lus Prista, Pessoa ataca Adolfo Coelho
(um dos seus ex-professores) com as mesmas armas se-
mnticas que fp empunhou contra Nabos empregando
trocadilhos para difamar o ex-mestre. Transcrevo o poe-
ma de 1905 (cota 50b1-36v), seguindo majoritariamente
a leitura de Prista, com sugestes do prof. Pizarro.
V. Campos & Beb
fp no o nico a xingar. lvaro de Campos desbo-
cadssimo, chegando a concluir seu soneto Regresso ao
Lar com E berdamerda para o que saberei fecho que
no pode ser tachado de pueril, visto que data de 1935,
ltimo ano de vida do poeta. Em sua juventude potica,
de fato, Campos se dedica a chocar toda e qualquer mora-
lidade, como atestam os excertos abaixo:
3
Ah, e a gente ordinria e suja, que parece sem-
pre a mesma,
Que emprega palavres como palavras usuais,
Cujos flhos roubam s portas das mercearias
E cujas flhas aos oito anos e eu acho isto belo
e amo-o!
Masturbam homens de aspecto decente nos
vos de escada.
4
Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne fazei dela o ar que os vossos
cutelos atravessam
Antes de carem sobre as cabeas e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas tres-
passam!
Minha imaginao o corpo das mulheres que
violais!
()
Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que no nada
disto!
5
Que nenhum flho da puta se me atravesse no
caminho!
O meu caminho pelo infnito fora at chegar
ao fm!
()
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o prprio cavalo em que
monto,
3 Os excertos foramtranscritos por C. Berardinelli, emPoemas de lvaro de Campos / Fernando Pessoa.
4 Ode Triunfal.
5 "Ode Martima".
6 "Saudao a Walt Titman".
7 Apud C. Berardinelli op. cit.
Porque eu, por minha vontade de me consubs-
tanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer
coisa,
Conforme me der na gana... Ningum tem nada
com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com
o corpo,
De me cramponner s rodas dos veculos e me-
ter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai
bater,
De me []
De ser a cadela de todos os ces e eles no bas-
tam(),
6
lvaro de Campos sabe, pois, ofender... tanto em poemas
breves quanto em textos monumentais.
Ora porra!
Ento a imprensa portuguesa
que a imprensa portuguesa?
Ento esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! No, que nem
h puta que os parisse.
7
Nesses meros sete versos, Campos escorraa a im-
prensa portuguesa. J em seu longo Ultima-
tum sensacionista (meio em verso, meio em pro-
sa), xinga a todos os representantes da cultura e
poltica coetneas ainda que muitos desses xingamen-
tos demandem estudos profundos para ser compreen-
didos, to elaborados que so.
76 RBMA 69 69 RBMA 77
Mandado de despejo aos mandarins da Eu-
ropa! Fra.
Fra tu , Anatole France, Epicuro de phar-
macopeia homeopathica, tenia-Jaurs do An-
cien Rgime, salada de Renan-Flaubert em loia
do sculo dezesete, falsifcada!
Fora tu, Maurice Barrs, feminista da Aco,
Chteaubriand de paredes nuas, alcoviteiro
de palco da patria de cartaz, bolor da Lorena,
algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu
commercio!
Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro
das particulas alheias, psychologo de tampa de
brazo, reles snob plebeu, sublinhando a regua
de lascas os mandamentos da lei da Egreja!
Fora tu, mercadoria Kipling, homem-practi-
co do verso, imperialista das sucatas, epico para
Majuba e Colenso, Empire-Day do calo das
fardas, tramp-steamer da baixa immortalidade!
Fra! Fra! ()
8
lvaro de Campos atreve-se a infltrar at mesmo a vida
amorosa do prprio Fernando Pessoa, surgindo em ple-
na correspondncia com Oflia Queirs correspon-
dncia que, alis, ainda choca quem julga tais cartas de
amor como literatura inferior, como se pudssemos sepa-
rar Fernando, o poeta dos nossos poemas preferidos, do
homem apaixonado e ridculo como se o tema (e no
a obra em si) fosse sufciente para avaliar qualidades li-
terrias. Entretanto, h cartas belssimas, atrevidssimas,
criativssimas, em que o superlativo Campos irrompe em-
briagadamente, tal como na carta de 5 de abril de 1920.
Meu Beb pequeno e rabino:
C estou em casa, sozinho, salvo o intelectu-
al que est pondo o papel nas paredes (pudera!
havia de ser no tecto ou no cho!); e esse no
conta. E, conforme prometi, vou escrever ao
meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que
ela muito m, excepto numa coisa, que na
arte de fngir, em que vejo que mestra.
Sabes? Estou-te escrevendo mas no estou
pensando em ti. Estou pensando nas saudades
que tenho do meu tempo da caa aos pombos; e
isto uma coisa, como tu sabes, com que tu no
tens nada.
Foi agradvel hoje o nosso passeio no
foi? Tu estavas bem disposta, e eu estava bem
disposto, e o dia estava bem disposto tambm
().
No te admires de a minha letra ser um pouco
esquisita. H para isso duas razes. A primeira
a de este papel (o nico acessvel agora) ser
muito corredio, e a pena passar por ele mui-
to depressa; a segunda a de eu ter descoberto
aqui em casa um vinho do Porto esplndido, de
que abri uma garrafa, de que j bebi metade. A
terceira razo haver s duas razes, e portanto
no haver terceira razo nenhuma. (lvaro de
Campos, engenheiro).
Quando nos poderemos ns encontrar a ss
em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca
estranha, sabes, por no ter beijinhos h tan-
to tempo... Meu Beb para sentar ao colo! Meu
Beb para dar dentadas! Meu Beb para...
(e depois o Beb mau e bate-me...) Corpi-
nho de tentao te chamei eu; e assim continu-
ars sendo, mas longe de mim.
Beb, vem c; vem para o p do Nininho (...)
9
lvaro de Campos, cujo lema era sentir tudo de todas as
maneiras, no poderia deixar nenhuma sensao de lado...
VI. Antnoo & Safo
Pa, Pancrcio, Campos... O poeta abraou o profano e o
vulgar na obra de suas personagens. Seria, porm, Pessoa
capaz de assinar com o prprio nome textos que ferissem
a moralidade da poca? Certamente assinou-o ao publi
car, em ingls, Antinous [Antnoo] e Epithalamium
[Epitalmio], e chegou mesmo a cham-los de obscenos
como explica em carta a Joo Gaspar Simes, relatando
o processo de expurgao potica de tais obscenas sensa-
es, como se fossem demnios a exorcizar em sua poesia.
Uma explicao. Antinous e Epithalamium
so os nicos poemas (ou, at, composies)
que eu tenho escrito que so nitidamente
o que se pode chamar obscenos. H em
cada um de ns, por pouco que especialize
instintivamente na obscenidade, um certo
elemento desta ordem, cuja quantidade, evi-
dentemente, varia de homem para homem.
Como esses elementos, por pequeno que seja
o grau em que existem, so um certo estorvo
para alguns processos mentais superiores,
decidi, por duas vezes, elimin-los pelo
processo simples de os exprimir intensa-
mente. nisto que se baseia o que ser para
v. a violncia inteiramente inesperada de
obscenidade que naqueles dois poemas e
sobretudo no Epithalamium, que directo
e bestial se revela. No sei porque escrevi
qualquer dos poemas em ingls.
10
O poeta esfora-se em no reprimir suas sensaes, trans-
formando-as em poesia. interessante indagar o quanto
ns, leitores e editores do poeta, talvez inconscientemen-
te, reprimimos nossa leitura da poesia pessoana donde
preferiramos talvez considerar Alma de crno como um
soneto doutrem, ou talvez editar poemas como seu So-
neto Positivo com as menos obscenas opes de leitura.
Eu prprio sou culpado disso: ao retranscrever o Soneto
Positivo (j presente em outras edies), no questionei
as opes do editor primeiro, que na segunda estrofe leu
tez & ms em vez de teza & meza como me apontou
o Prof. Maurcio Mattos em minha defesa de tese.
Soneto Positivo (17-8-10) [cota 37-22]
Infandum, regina, jubes
renovare dolorem
Sappho negra, sub-rameira, ronha
Do vcio em qrer achar-se subtileza,
No das portuguezas a vergonha,
Voc, por no ser uma portugueza.
Volte pra o seu paiz, onde a alma sonha
De bocca aberta []como que teza
E a confuso de tudo to medonha
Que o copular um prazer de meza.
V. No tenha medo que eu lhe fuja
Nem a voc nem []
E se, por no poder fcar mais suja,
Por perverso mais limpa se fugir,
Tenha a certeza, que se no morri,
Vocemec inda me agarra aqui.
A epgrafe latina do Soneto Positivo o terceiro verso
do Livro ii da Eneida, de Virglio; uma traduo possvel
seria Rainha, tu fora-nos a rever dores impronun-
civeis o poeta sente a obrigao de abordar o tema,
ainda que contra a sua vontade, ainda que isso lhe cause
dor. Por que, ento, classifcaramos os poemas segun-
do nossa arbitrria vontade? Por que nossa tendncia
cnones (antolhos) da poesia (pessoana e em geral), an-
tes de nos darmos ao trabalho de conhecer e decifrar a
obra completa, com sua vontade interna? Por que no
questionamos a moralidade de nossas precrias posi-
es censrias, antes de julgar a imoralidade da poesia?
8 "Ultimatum", emPortugal Futurista, 1917.
9 F. Pessoa, "Carta a Joo Gaspar Simes, 18 nov. 1930", emCartas de Fernando Pessoa a Joo Gaspar Simes. 10 F. Pessoa , "Carta a Joo Gaspar Simes, 18 nov. 1930", emCartas de Fernando Pessoa a Joo Gaspar Simes.
78 RBMA 69 69 RBMA 79
VII. Homem & Super-Homem
Por que, afnal, o soneto Alma de crno teria fcado in-
dito por tanto tempo? No se trata da poesia em lngua
inglesa de Pessoa, em grande parte ainda por explorar;
tambm no de difcil leitura, pois a caligrafa clara.
H duas explicaes possveis: 1) talvez por ser difcil
comprovar que o poema fosse de Pessoa, ou 2) consciente-
mente ou no, talvez por no querermos que o poema seja
de Pessoa, nem que receba destaque... Ora, esse desejo de
desimportncia, multiplicado pelo tempo em que o texto
permaneceu indito, confere agora importncia ao soneto
como algo que, ao ser de tal maneira reprimido, acaba,
pela lei da ao e reao, tornando-se explosivo.
A obra de Fernando Pessoa plena de experimentaes,
um novelo de complexidade exponencial, que, com a
morte do poeta, comeou a enovelar-se ainda mais, como
se qualquer tentativa de resoluo estivesse fadada a em-
baralhar ainda mais as coisas. Entretanto, da tampouco se
poderia concluir que se trata de uma obra sem propsito
pois h propsitos (no plural) por toda parte. Na obra do
heternimo Ricardo Reis, um propsito surge como m-
xima: Para ser grande, s inteiro. Por que, ento, o poeta
excluiria a obscenidade dessa inteireza? O Ultimatum,
assinado por lvaro de Campos, oferece outro propsito
(ou uma verso do mesmo):
E proclamo tambm: Primeiro:
O Super-homem ser, no o mais forte, mas o
mais completo!
E proclamo tambm: Segundo:
O Super-homem ser, no o mais duro, mas o
mais complexo!
E proclamo tambm: Terceiro:
O Super-homem ser, no o mais livre, mas o
mais harmnico!
11
Voltamos, pois, ao ponto de onde partimos, pois o super-
-homem ser, no o mais duro, mas o mais complexo;
logo, o super-homem no ter alma de crno isto ,
dura como isso. Ao contrrio do complexo, inteiro e ple-
no super-homem pessoano, aqueles que no sabem mu-
dar (de opinio, de cnone, de moral) que teriam alma
de crno isto , dura como isso. Talvez o poeta estivesse
o tempo todo a caoar de ns, leitores ansiosos por pos-
suir a palavra fnal sobre sua poesia, tal como um patro
Gaudncio Nabos que quisesse comprar o esprito de seu
empregado-poeta, que no tem medo de trair-se, pois sua
alma comporta as almas todas, inclusive a do patro.
* Referncias Bibliogrfcas:
Andrade, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. So Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Berardinelli, Cleonice. Poemas de lvaro de Campos / Fernando Pessoa. Fixao do texto, introduo e notas de
Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Bocage, Manuel Barbosa Maria du. O livro dos sonetos. Bibliotheca Universal Antiga e Moderna, 19
a
Srie, Nmero
76. Lisboa: A Editora, 1908.
Cames, Lus de. Os sonetos de Lus Cames. Organizao de lvaro Jlio da Costa Pimpo. Lisboa: Clssica, 1942.
_______________. Obra completa. Organizao de Antnio Salgado Jnior. Rio de Janeiro: Aguilar, 1863.
Houaiss, Antnio et al. Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa 2.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
Pessoa, Fernando. Ultimatum de lvaro de Campos sensacionista. Separata do Portugal Futurista. Lisboa: Tipo-
grafa P. Monteiro, 1917.
_________________. Cartas de amor. Organizao, posfcio e notas de David Mouro Ferreira. Prembulo e estabe-
lecimento do texto de Maria da Graa Queiroz. Lisboa: tica, 1978.
_________________. Cartas de Fernando Pessoa a Joo Gaspar Simes. Introduo, apndice e notas do destinatrio.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, 2
a
ed.
Pittella-leite, Carlos. Pequenos infnitos em Pessoa: uma aventura flolgico-literria pelos sonetos de Fernando
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Pizarro, Jernimo & pittella-leite, Carlos (eds.) Como se Eu fusse" Granta. Lisboa: Tinta-da-China, vol. i, Junho
de 2013, pp. 95-117.
Prista, Lus. Pessoa e o curso superior de letras. In: Memria dos afectos homenagem da cultura portuguesa ao Prof.
Giuseppe Tavani. Lisboa: Edies Colibri, 2001, pp. 157-85.
Silva, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliographico Portuguez, vol. i. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858.
Silva, Manuela Parreira da. Correspondncia de Fernando Pessoa (1905-1922). Lisboa: Assrio & Alvim, 1998.
______________________. Correspondncia de Fernando Pessoa (1923-1935). Lisboa: Assrio & Alvim, 1999.
Topa, Francisco. Silva Alvarenga Contributos para a elaborao de uma edio crtica das suas obras. Porto: s.n., 1994.
Virglio. Te Works of Virgil Translated into English Prose, vol. i. London: Excudebant J. Nichols et Filius, 1826.
Imagem da abertura: Revista Grande Hotel, J.M. Symes, N0 152, 1950, p. 2
11 "Ultimatum", op. cit.
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No perodo Edo, mercadores holandeses introduzem no Japo
o uso do telescpio, que tem um imenso sucesso. Ultrapassar
os limites do corpo e projetar-se, literalmente, no interior de
aposentos situados a vrias centenas de metros parece magia aos
olhos dos primeiros espectadores.
Assim, Utamaro, em 1790, mostra um casal curiosamente enla-
ado: a mulher, a cavalo sobre o homem, est de costas para ele
e parece ter muito mais interesse em olhar para a casa vizinha...
Enfada no membro intumescido de seu parceiro, apoiada na ba-
laustrada de sua varanda, ela observa trs moas que, elas prprias
(numa outra ilustrao que apresenta a cena como se fosse um
espelho), a esto espionando com o auxlio de um telescpio!
A forma flica do telescpio que, aberto, atinge at quatro
vezes seu tamanho (s vezes mais) incita, alis, os humo-
ristas a considerarem esse objeto intrusivo como uma espcie
de brinquedo ertico. So essencialmente as mulheres que o
utilizam. Como o telescpio pretensioso! Em seguida os
olhos voltam ao normal, zomba um poeta do sculo xviii.
Munidas de seus telescpios, as heronas de determinados ma-
nuais pornogrfcos intrometem-se nas relaes sexuais que
espionam sem serem percebidas, que comentam em voz alta e
das quais acabam por... tirar proveito. Com uma mo no te-
lescpio e a outra entre as coxas, fazem uma sesso de cinema
porn, com dois sculos de antecedncia inveno do vdeo.
Verdadeira prtese escpica, o telescpio d, mesmo aos que tm
menos dinheiro, o poder de visitar bordis. Graas a ele, at os
monges podem atravessar as barreiras de determinados bairros
nos quais no tm rigorosamente o direito de entrar. Quem nunca
sonhou em brincar de atravessar paredes? No sculo xviii, essa
fantasia leva instalao de lunetas, que podem ser alugadas por
alguns minutos, no alto de torres ou de mirantes. As lunetas mais
conhecidas esto em Atago, Shinagawa, Yushima e tambm (em
Kioto) acima do Kiyomizu-dera, o templo dos apaixonados. Po-
rm as mais populares so, com certeza, as que permitem espionar
os bairros de prostituio. H a de Yushima (o bairro de prostitui-
o masculina), por exemplo, que fez os autores de senryu1
dizerem: Escolham o rapaz que quiserem / depois tenham
relaes com ele / por telescpio.
1
Senryu um gnero
potico derivado do
haiku. Em trs versos,
fala da natureza huma-
na de modo irnico ou
satrico [N.E.].
84 RBMA 69
Em Tquio, a torre de Ryounkaku, de doze andares, erigida
em 1890 destruda por ocasio do terremoto de 1923 ergue-
-se acima do bairro de Asakusa... e de suas zonas miserveis.
A luneta situada no ltimo andar, que aumentava at trinta
vezes, era famosa em toda Tquio, conta Kazuo Koike, rotei-
rista de Lady Snowblood (a obra que inspirou Tarantino a fazer
Kill Bill). Em seu mang, Lady Snowblood, matadora de beleza
glacial, espiona as idas e vindas de prostitutas que chamam as
pessoas entre os bordis de um bairro construdo como se fos-
se um labirinto a fm de que nenhuma mulher pudesse dele
escapar. Uma vez dentro, mesmo aquele que conhece bem
essa regio tem difculdade de sair. uma das caractersticas
desses bairros do prazer, comenta Koike. Visto do alto com
o auxlio de um telescpio, caem as divises do labirinto.
Como se o bairro de prostituio fosse apenas um emaki,2 o
olhar se desloca livremente. Entre as ruelas iluminadas por
lanternas, aliciadoras abrem as abas de seus quimonos e mos-
tram seu sexo aos transeuntes deliciados, tocam-lhes nos om-
bros sussurrando palavras ternas e os conduzem ao bordel, no
meio de uma intensa circulao de clientes que sobem as es-
cadas, saem dos quartos ou pedem algo para beber atravs de
uma divisria entreaberta. A vida de formiga das prostitutas
se apresenta, ento, como um afresco vivo, e os voyeurs me-
tem a o nariz com a deliciosa impresso de fazer parte dele.
Na literatura, os microscpios, os telescpios celestes e os jogos
de lentes tambm surgem rapidamente. Saikaku chamado de
Oranda, o holands o primeiro a falar de telescpio em um
romance Koshoku ichidai otoko (1682, O homem que s viveu
para amar). O heri, Yonosuke, tem sua primeira conscientizao
sexual ao observar da extremidade de um longo binculo uma
empregada entrar no banho. Com 9 anos, no quarto dia do quinto
ms (na vspera da festa dos meninos), Yonosuke sobe no telhado
de um pavilho com um telescpio, esconde-se atrs dos galhos de
um salgueiro e nota que a empregada espalhou na gua do banho
narcisos (plantas do sexo masculino e feminino), o que no ocorre
sem um mergulho numa profunda emoo...
to grande a popularidade dos telescpios, que no espao de
meio sculo as lentes de aumento tornam-se um artigo comum,
por vezes guardadas num armrio, por medo de que as crianas
se utilizem delas, a exemplo do muito precoce Yonosuke. Con-
sideram-nas mais ou menos como gadgets para adultos. Algu-
mas estampas pornogrfcas adotam a forma arredondada que
signifca: visto atravs de um telescpio. como se fosse uma
garantia de autenticidade. As imagens em forma de claraboia ou
com o efeito de lupa tornam-se equivalentes s fotos de papara-
zzi (voluntariamente dolosas dar a impresso de serem reais).
Os fotgrafos japoneses especializados nas sexy girlfriends , ali-
s, continuam retomando essa tcnica o efeito de lupa para
dar a impresso de que se entra literalmente nelas... inclusive
na cabea delas. Em sua alma. Talvez at em seu corao.
Agns Giard
Nota biogrfca
Agns Giard escritora e jornalista francesa. Dedica suas obras
pesquisa da cultura sexual no Japo, unindo os estudos da arte aos
da antropologia. No acervo da Biblioteca Mrio de Andrade, pode
ser encontrado um exemplar de seu livro LImaginaire rotique au
Japon(Albin Michel, 2006), que faz uma anlise da sociedade
japonesa na relao com o corpo, o sexo e o sagrado.
Crdito das imagens
Todas as imagens so gravuras erticas de Kitagawa Utamaro
(1754-1806). Xilogravura e tinta colorida sobre papel. Acervo
bma.
2
Literalmente, rolo de
desenho. Essa arte
japonesa consiste em
narrativas ilustradas em
rolos, que se abrem hori-
zontalmente [N.E.].
(Traduo: Regina Campos)
86 RBMA 69
sobre
ETHERS
(Esther Faingold e Tunga, Cosac Naify, 2011)
Luiz Armando Bagolin
Luiz Armando Bagolin diretor
da Biblioteca Mrio de Andrade e
professor do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP, na rea de His-
tria da Arte.
90 RBMA 69
O
s desenhos desenvolvem-se em circularidade na pgina, in-
terligados por quartzos hialinos. As representaes perpe-
tradas em corpos se acumulam e desdobram sobre si como
vasos comunicantes que a linha, cornalina, decalcada sobre
o papel, delicada sobre o poema, como rastro, macula. Dos
corpos esvaem lquidos recolhidos em copos, frequentes nas
obras de Tunga, que escorrem nas linhas transferidas sobre
a poesia de Esther Faingold, impondo ao leitor a condio de
no impunidade em relao leitura do estranho livro.
A cada pgina virada, atiado pelos corpos que se eriam ou se inclinam, provocado
pelas frases que fazem a natureza rodopiar sobre os sentidos, os altos de Esther, os baixos
de Tunga, o leitor pe em obra a impregnao do p vermelho da tinta de carbono que,
embora duradoura, nada dura, pois vai aos poucos se dissipando.
Esther repe hegelianamente o poema como ato de dissoluo, a passagem do em-si
definindo o ato de ler como um entre, nem sempre demarcvel por tinta, gesto ou signo,
porque etreo, e que ao esprito se dirige.
ter o ar onde brilha a luz inefvel, para onde se dirigiria o esprito aps sua breve
temporada na matria rebaixada, mas para onde, ao mesmo tempo, impossvel dirigir-se
Esther ou qualquer outro poeta humano, porque da faina o entretecer das palavras caro
construo da poesia, e da voz o som que preenche o sopro do poema, ltimo vnculo
com o mundo.
A circularidade no est apenas nos desenhos, que transformam em cacetes tunguianos
calcednias leitosas que mos trgidas agarram. O ato de ler tambm circular, na busca
por aquele entre, o vcuo entre a palavra e sua significao interdita, porque a boca
interrompida, nem cabea muitas vezes h, mas apenas nesgas de corpos que desejam
e indiciam o hiato entre a luz e o corpo hbrido feito de uma linha vermelha ubqua. O
corpo est no desenho; a cabea est nos poemas. Mas s vezes essa relao se inverte e a
poesia delira febril, bria de vinho e de mar, e desejosa do garoto que grassa, friccionando
com sua mo o gro de onde espirra o lcteo enrabichado.
Hilda Hilst
nas lembranas e fotos de
Fernando Lemos
Fernando Lemos conheceu Hilda Hilst quando chegou a So Paulo, 1953. Ela frequentava
o bar do Museu, na rua Sete de Abril. Andavam juntos pela cidade, muitas vezes com uma amiga
dela, americana, Brbara. Quando soube que a me de Hilda era portuguesa como ele, e vinha
baila a questo da lngua, ele troava: Ainda no aprendeste o sotaque de tua me!.
Um dia, levou-a ao seu ateli e fez uma fada de dezesseis fotos, ela linda, vestida em preto e
branco, assim como as tiragens que resultaram deste ensaio.
Hilda fcou-lhe associada lembrana do tempo em que a conheceu um tempo quase sa-
grado, para eles um dos melhores momentos de So Paulo e do Brasil. Momento do projeto de Bra-
slia, de Niemeyer, das grandes construes, da criao do parque automobilstico, do surgimento
da Bienal, dos concretistas. Tempo de refexes sobre arte como parte do cotidiano dos intelectuais
com que conviviam, de Srgio Milliet a Rodrigo de Mello Franco de Andrade, Antonio Candido,
Darcy Ribeiro.
Hilda sempre teve ligao com o mato, com o som da natureza, gravava tudo. Fazia cursos e
desistia. Fez Direito, envolveu-se com edies de livros e, com seu particular e vvido raciocnio,
comeou a aproveitar-se de algo que era muito dela a parte maldita , a qual levou aos ltimos
limites que a linguagem permite, com fora de mulher intelectualmente pronta. Hilda Hilst tinha
mesmo o propsito de incomodar a sociedade burguesa.
Ela no lidava de forma narcisista com sua beleza. Sentia orgulho de sua postura e co-
ragem intelectual, nunca teve preocupao com o vestir-se, era discreta, e at se vestia mal
por escolha. Havia um lado amargo em sua vida o do pai, enjaulado como um cachor-
ro, abraado sua demncia , e ela sempre buscando um jeito de adoar essa amargura.
O convvio intenso entre Hilda e Fernando durou um ano, ele chegou a fazer anotaes, mas
no as ilustrou. Fez um guache, mas este se perdeu. Fez a capa de Ode fragmentria, em 1961, para
a Anhambi.
O que marcou Hilda, disso ele se lembra bem, foi sua ligao ao conceito integral de retorno.
Como se o retorno fosse uma tese. No o retorno do morto, e sim o retorno de um ciclo, um pouco
traduzindo o sentido da falta daquilo que ela no viveu. Ela tinha a angstia de no ter vivido tudo.
Alm de algumas cismas, como a de ela mesma ter um papel de vtima. Ela se considerava uma
vtima. Como se o tempo e sua durao no lhe fossem prdigos.
Talvez a inscrio do relgio sem ponteiros que fcou suspenso na parede da Casa do Sol
resumisse, para ela, tudo: mais tarde do que supes.
Ceclia Scharlach*
Texto apoiado em conversa com o fotgrafo, em So Paulo, 08 de setembro de 2013.
*Ceclia Scharlach, desde 2005, coordenadora editorial da Imprensa Ofcial do Estado de So Paulo.
102 RBMA 69
SENHORAS
E SENHORES,
OLHAI-NOS.
REPENSEMOS
A TAREFA
DE PENSAR
O MUNDO
Hilda Hilst
Adair Sodr
Divino Sobral
Paulo Moreira Thiago Martins de Melo
Dizer que ela [Hilda Hilst] tinha morrido era inadequado. As palavras da crtica
de arte Ana Luisa Lima, impressas no livro Poemas aos homens do nosso tempo Hil-
da Hilst em Di logo (fruto do projeto que lhe deu o nome, com curadoria de Ana
Luisa, Jurandy Valena e Ateli Aberto), defnem bem a sensao de leitores e ad-
miradores da escritora, morta em 2004: se seu corpo no circula mais pelos espaos
da Casa do Sol, seu esprito ainda est vivo, assim como sua escrita, capaz de provo-
car a refexo no s de leitores usuais, mas tambm de artistas contemporneos.
Foi esse o mote para que os curadores idealizassem o projeto Poemas aos homens do nosso tempo Hilda Hilst em Dilogo.
Nele, cinco artistas passaram quinze dias na Casa do Sol, sede do Instituto Hilda Hilst, e no Ateli Aberto, ambos em
Campinas (SP), naquilo que se chamou de residncia artstica. Em seguida, os residentes criaram trabalhos inditos,
dialogando com obras da escritora, em especial com a srie de poemas que inspirou o projeto, Poemas aos homens do nos-
so tempo, reunida no livro Jbilo, memria, noviciado da paixo (1974). Em plena ditadura, por meio dos poemas, Hilda
descreve o momento em que est imersa, utilizando vozes masculinas como repertrio potico-poltico. As obras resultantes
compuseram uma mostra realizada no Ateli Aberto, na qual os artistas tornaram-se as vozes polticas contemporneas de Hilda,
evidenciando que Ana Luisa Lima tinha razo: a essncia da poeta, assim como sua obra, ainda est muito viva.
O happening de abertura da mostra foi criao de Adir Sodr: adotando O caderno rosa de Lori Lamby, ele rees creve a obra de
Hilda em aquarela, entitulando-a O caderno rosa de Lori Bamby. Uma oferenda Hilda, sua me. O artista Divino Sobral
fez uma instalao: Sangue buscando a veia reuniu textos de Hilda Hilst, lgrimas e saliva do artista, galhos de goiabeira
envolvidos por l, lpis de cor, grafte, tinta acrlica e uma fotografa da interveno no jardim da Casa do Sol. Seu desejo
era fazer uma rvore para Hilda em seu jardim, vermelha, simbolizando a intensidade que a vida tinha para a escritora, o
que veio a acontecer com a goiabeira envolvida com mais de 150 novelos de l que o artista deixou nos jardins do instituto.
O vermelho, cor vital, como sangue e pulso, marcou todo o trabalho de Sobral no Ateli Aberto.
Uma pintura a leo em grande formato, de Tiago Martins de Melo, com o ttulo Simulacro e parasitismo na Casa do Sol
Preto, levou a curadora Ana Luisa Lima a se referir ao artista o terceiro no livro da mostra como o homem fora. Dentre
esses homens, foi um dos que pde ouvir e interpretar o orculo ocultado na grande rvore que chorava cips. E o orculo
era um sol preto e, em tempos e tempos, cuspia pragas sobre aqueles que no o davam ouvidos: os que insistiam em replicar
histrias glamorosas sobre aquela casa que no abrigava outra coisa seno muita dor e lucidez.
Inspirado no interesse ao sobrenatural presente na vida e obra de Hilda, Paulo Meira criou a videoinstalao Mensagens
sonoras com canto dos cacos, que abrigava uma estao de rdio criada especialmente para o projeto, a Rdio HH 911 MHz.
O artista, nas palavras dos curadores, fazia chover, no ptio central da casa ocre, uma chuva de pratos [...] Cada prato
cado impulsionava os estilhaos e rasgavam os corpos invisveis acostumados a perambular por ali em dias de lua cheia.
Nazareno criou desenhos-poesias, traos em nanquim acompanhados por versos, frases, palavras sem papel. Tambm
eles fcaram talvez imortalizados na publicao da mostra, outro desdobramento da residncia, com projeto grfco da
designer Daniela Brilhante. A publicao, editada pelos curadores, bem diferente daqueles folhetos de mostras que visi-
tantes costumam receber. Com cara de caderno de arte, uma plataforma dialgica e criativa entre os trabalhos produzidos
pelos artistas, contedos produzidos pelos profssionais envolvidos no projeto, e Hilda.
O projeto e o legado de Hilda abriram tantas possibilidades artsticas que, embora a publicao devesse ser o ltimo
captulo do projeto, outros desdobramentos ainda viriam, fechando as criaes dialgicas entre os artistas e a escritora.
Henrique Lukas, do Ateli Aberto, criou um roteiro registrado no livro da mostra de um curta-metragem baseado nos
poemas que do ttulo ao projeto. Dirigido e editado tambm por Lukas, o vdeo, flmado na Casa do Sol, estreia na Bi-
blioteca Mrio de Andrade exatamente no lanamento deste nmero.
Nazareno
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LEVANTA-TE. RECEBE O BATISMO E
PURIFICA-TE DOS TEUS PECADOS
Atos, 22:16
Maira Mesquita
Entre leos,
essncias e ores
O RITO DO BATISMO EM
DA MORTE. ODES MNIMAS
Notabiogrfca:GraduadaemLetraspelaUniversidadeFederaldeViosa/MG,ps-graduada
latosensuemLiteraturaBrasileirapelaFafre-Recife/PEemestrandanoprogramadeEstudos
CulturaisdaEscoladeArtes,CinciaseHumanidadesdaUniversidadedeSoPauloEACH/
USP. Atualmente, desenvolve pesquisas destacandoas relaes entre poesia, msica e dana.
Em 1983, Jorge Coli colaborava para o jornal Le
Monde e recebeu a incumbncia de uma matria
sobre a atualidade da literatura brasileira. Morando
na Frana h muitos anos, veio ao Brasil para se in-
teirar do assunto e, passado certo perodo, declarou
Folha de S. Paulo:
Do ponto de vista das novidades literrias, o
panorama parecia triste: alguns nomes consagra-
dos, mas em fim de produo; uma vanguarda
velhssima e desdentada, com trejeitos de moci-
nha mordaz; uma tradio engajada, de inspira-
o perdida e de gosto requentado. Nada causava
entusiasmo [...] At que Roswitha Kempf, que na
poca possua uma pequena editora no Bexiga,
passou-me um volume admiravelmente con-
cebido e publicado por Massao Ohno. Era Da
morte. Odes mnimas, de Hilda Hilst. Foi uma
descoberta surpreendente e emocionada. Trata-
va-se da mais alta poesia. Busquei outros livros
do mesmo autor: todos revelavam essa qualidade
intensa dos grandes escritores.1
Os poemas de Da morte. Odes mnimas foram
criados entre 1978 e 1979. Em 1980, foram publi-
cados pela primeira vez e em duas verses: a pri-
meira, como abertura antologia Poesia (1959-
1979), pela Editora Massao Ohno, que editaria
tambm a segunda; a esta ltima, por sugesto
de Hilda, foram acrescentadas, como abertura
aos poe mas, aquarelas pintadas por ela, intitula-
das Desenhos de Hilda Hilst. Em 1998, a obra
ganhou nova publicao pela Nankin Editorial e
ditions Norot, numa edio bilngue portugus/
francs, com traduo de lvaro Faleiros. Cinco
anos depois, a obra foi reeditada pela Globo, com
organizao de Alcir Pcora, edio em que as
seis ilustraes receberam o nome de Aquarelas.
A obra dedicada memria de Ernest Becker e
Cristina Figueiredo, no sendo difcil encontrar ra-
zes para a dedicatria ao antroplogo americano,
uma vez que, em 1973, ele publicou A negao da
morte, que lhe concedeu o Prmio Pulitzer um ano
depois. Na obra, Becker explicita dois pressupostos:
1) o medo persegue o animal humano como nenhu-
ma outra coisa e 2) esse temor um dos maiores
incentivos atividade humana. O estudioso acredi-
tava que o que nos mantm vivos o herosmo que
luta persistentemente contra o medo da morte.
Nessa direo caminha o pensamento de
Kazantzakis,2 apesar de o escritor no pronun-
ciar o heroico. Sua obra um reiterado cha-
mado luta, por meio da negao radical de
tudo. Quando se suporia o congelamento da
ao, ele descentra a atuao de Deus no mun-
do e remete a responsabilidade ao homem.
Para o pesquisador Felix de Lima,3 Becker e
Kazantzkis se encontram nessa espcie de niilis-
mo heroico, cuja bandeira a ao, e Hilda, assim
como eles, transforma o medo da morte em ao,
pois libertao e renascimento.
Os versos de Da morte foram distribudos em
trs sries: a primeira, Da morte. Odes mni-
mas, composta de quarenta poemas; a segun-
da, Tempo-Morte, e a terceira, tua frente. Em
vaidade, con tam com cinco poemas cada. Nesses
cinquenta poemas que compem a obra, Hilst
nos apresenta um ritual de renomeao da Mor-
te. A aposta da au tora se d num jogo de cons-
truo literria que ad vm do encontro entre os
limites de vida e morte, tornadas personagens e
travestidas em corpo de mulher.
A remisso ao clssico denunciada no ttulo da
obra a partir do uso do Da, comum na escritura
clssica latina, que na transcrio para o portugus
traduzido por sobre feita de maneira inovadora,
uma vez que Hilda insere o termo mnimas e, como
sabemos, a ode clssica no se pretende mnima. A
construo sinttica do ttulo parece propor um tro-
cadilho em que se traz implicitamente a ideia de que
o livro seria composto de odes mnimas sobre a mor-
te, de modo que apontaramos duas premissas: 1) o
mnimo que um texto pode apresentar para ser uma
ode e 2) o mnimo que se pode dizer sobre a morte.
Na primeira srie, a Vida4 ornamenta-se com o
discurso da seduo e convida a Morte a participar
de um ritual de renomeao, no qual a prpria Mor-
te ser ressignifcada. Nesse jogo, as ideias comu-
mente apresentadas sobre a morte so revisitadas
e se revela uma nova forma de se experiment-la;
uma dissociao de tudo o que se diz e se pensa
sobre ela. Se a morte normalmente vinculada ao
fnebre e ao melanclico, Hilda retira tal caracters-
tica e concede a ela uma nova roupagem.
Na segunda srie, Tempo-Morte, acrescen tado
o Tempo, o qual, integrado ao vocbulo Morte,
parece-nos indicar um emprstimo tomado da fsi-
ca moderna, por meio do qual Hilda Hilst prope a
fuso do tempo com a morte, semelhana de Albert
Einstein, quando mostra que o espao-tempo no
necessariamente algo que possamos atribuir a uma
existncia separada e independente dos objetos da
realidade fsica. Assim, o termo Tempo-Morte pa-
rece sintetizar a ideia de que a morte no dissociada
do tempo, tampouco da vida. Logo, no se trata de
tempo cronolgico, mas, possivelmente, dialgico.
Na terceira e derradeira parte, Tua Frente. Em
Vaidade, a ambientao que se estabelece de vai-
dade, j que a Poeta, como num grito de libertao,
canta o desejo de eternizar-se. Nesse sentido, essa s-
rie parece representar o renascimento do sujeito que
fora descodifcado e estilhaado nas sries anteriores.
Hilst nos desponta o renascimento, ao modo da
poesia moderna, que, segundo Octavio Paz,5 tem por
fundamento a transformao. Para o poeta mexica-
no, a poca moderna reincidentemente se examina
e se destri para se reconstituir. como se o poeta
moderno estivesse em um constante estado de tran-
se. Em Odes mnimas, como se a Morte passasse
por um processo de transe, no qual ela se ressignifca.
Jos Gil6 afrma que, no transe, joga-se uma
cena dupla, na qual ocorre a descodifcao de
um corpo usado e o renascimento de um corpo
novo. A primeira cena, que seria a negativa, cor-
responde ao desbloqueamento do sentido, que
ob tido pela confuso de cdigos e lnguas que ti-
nham por emblema o corpo. Para tanto se recorre
msica, dana, encantao, aos alucingenos
e s drogas; enfm, toda a atmosfera que envol-
ve a sesso contribui para obter esse resultado, a
con fuso extrema dos sentidos. J a segunda ce na
corresponde ao processo de irrupo progressi-
va do corpo tal e qual, do corpo no codifcado
que s pode viver, precisamente, no estado de
transe ou xtase. Apenas sobre essa inscrio, tor-
nada assim virgem, pode surgir o novo sentido.
O BATISMO DA MORTE: EM BUSCA DE
OUTRO SENTIDO
Na introduo edio de 2003 da obra Da mor-
te. Odes mnimas, Alcir Pcora afrma que em ter-
mos gerais, pois, as odes deste livro se compem
basicamente como a construo de uma interlo-
cuo da morte. Isto implica testar o vocabulrio
capaz de celebr-la adequadamente.7 Partindo
dessa proposio, pretendemos realizar uma in-
vestigao pautada nas performances corporais
da Morte e da Poeta no decorrer da celebrao do
ritual de renomeao, rastreando os mitos e moti-
vos clssicos da literatura remontados por Hilda.
1. J. COLI, MEDIAO EM IMAGENS. 2. DEPOIS DE LER TESTAMENTO PARA EL GRECO, HILDA HILST MORRE PARA A SOCIEDADE PAULISTANA E PASSA A VIVER PARA A LITERATURA NA FAZENDA SO JOS. 3. F. DE LIMA, AS AMANTES:
UMA LEITURA DE DA MORTE. ODES MNIMAS DE HILDA HILST. 4. ASSIM MESMO, COM LETRA MAISCULA, POIS SE TRATA DE UMA PERSONIFICAO, COMO TAMBMPOETA, TEMPO E MORTE. 5. OCTAVIO PAZ, OS FILHOS DO BARRO. 6. JOS GIL, METAMORFOSES DO CORPO 7. A. PCORA, INTRODUO, EM H. HILST, DA MORTE. ODES MNIMAS, P. 9.
A poeta inicia suas odes clamando por um novo
batismo:
i
Te batizar de novo.
Te nomear num tranado de
teias
E ao invs de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de
autas
Calha
Candeia
Palma, por que no?
Te recriar nuns arco-ris
Da alma, nuns possveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecveis:
Palha
Cora
Nula
Praia
Por que no?
8
As tenses do poema poderiam ser distribudas
em trs momentos, nos quais a ao principal recai,
primeiro, no verbo batizar, segundo, em nomear
e, terceiro, em recriar. As perguntas retricas so
colocadas como elemento dissimulador para que o
interlocutor atenda aos anseios do eu lrico.
no sacramento do batismo que Hilst busca a
sua analogia para a renovao da morte. Vejamos.
Conta o livro de Mateus que vinham a Joo Batis-
ta pessoas de toda a circunvizinhana do rio Jordo.
Ali confessavam seus pecados e por ele eram bati-
zadas nas guas. Assim, o rito de imerso nas guas
tornou-se smbolo de purifcao e renovao. Es-
sas aes indicam o desaparecimento do ser peca-
dor nas guas da morte, a purifcao por meio da
gua, o retorno do ser s fontes de origem da vida.
A emerso, nesse sentido, revela a apario do ser
em estado de graa, pleno, reconciliado com uma
fonte divina de vida nova. Em diversas religies, o
batismo associado aos rituais de passagem.
Nas tradies funerrias dos maia-quichs, por
exemplo, o batismo realizado no somente no nas-
cimento, mas tambm no momento da morte; a
partida para outra vida. Esse ato assegura ao morto a
sua regenerao. A gua instrumento de purifcao
ritual, fonte de vida e morte, criadora e destruidora.
Para as religies afro-brasileiras, no dia-do-no-
me estamos diante do nico resultado visvel ao
mundo material, dos viventes, de um rito de
passagem; de um processo cujo objetivo explcito
consiste em transformar o ser daquele que se sub-
mete simbolicamente ao estado de congraamento
em relao ao princpio natural que o gerou. Tudo
o que o nefto faz ou diz, no dia-do-nome, gravita
em torno do que se mostra. E o que se mostra , es-
sencialmente, o prprio ia.9 Ele, que morrera para
o mundo em algum momento do passado imediato,
renasce agora, sendo a grande transmutao opera-
da representada como uma metamorfose. Revela a
8. H. HILST, OP. CIT., P. 29.
9. IA PALAVRA DE ORIGEM IORUBA QUE DENOMINA OS FILHOS-DE-SANTO J INICIADOS.
10. S. FREUD, INTRODUO AO NARCISISMO, ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS.
11. H. HILST, OP. CIT., P. 58.
passagem do ser de sua primordial indistino genrica s formas particularizadas e nominadas de sua
nova existncia. A alegria-do-nome d incio festa. Invocados pelos atabaques e cantigas, os deuses
montam os seus cavalos, vindo danar uma vez mais em homenagem ao recm-chegado.
Ao lado desses exemplos, o batismo ou qualquer outro rito de iniciao so igualmente uma operao de
regenerao. O batizado assimila-se ao Salvador, sua imerso na gua, a colocao no tmulo e sua sada,
a ressurreio. Em outro plano, o batismo liberta a alma do batizado, simbolizando essa liturgia um nasci-
mento da alma. Em Hilst, o sujeito batizado no ser transformado individualmente; ao contrrio, toda a
cadeia de relao j consagrada para a morte ser rearranjada Te nomear num tranado de teias.
As novas descries para a Morte ganham sentido medida que revelam aspectos da poesia. Evidencia-
-se assim a outra identifcao da Morte com a gua, o fogo, a luz, a msica, a beleza e a irracionalidade.
Ela, a partir de seu novo batismo, associa-se ao prazer qui ao prazer dionisaco e vida, tal como na
perspectiva freudiana de contraposio da pulso de vida e da pulso de morte. Segundo Freud,10 a pul-
so de morte precede a pulso de vida; em Hilda, Vida e Morte so geneticamente unidas. Observe-se:
xxx
Juntas. Tu e eu.
Duas adagas
Cortando o mesmo cu.
Dois cascos
Sofrendo as guas.
E as mesmas perguntas.
Juntas. Duas naves
Nmeros
Dois rumos
procura de um mesmo deus.
E as mesmas perguntas
No sempre
No pasmoso instante.
Ah, duas gargantas
Dois gritos
O mesmo urro
De vida, morte.
Dois cortes.
Duas faanhas.
E uma s pessoa.
11
PULSAES DO CORPO
EM TERRS DE DIONSIO
Hilda vai tecendo sua trama e, com exmio cuidado,
alinhavando, em suas personagens, elementos pr-
prios das deidades e fguras mitolgicas femininas,
desenhando o universo feminino cuidadosamen-
te em seus ricos detalhes e resguardando a imagi-
nao como agente que move o ritual; potncia
que transfgura o encontro de ambas. A Poeta nos
transporta para o seu mundo onrico, onde a Mor-
te ser batizada e ungida pelo suor de seus corpos.
No poema ii da primeira srie, por exemplo, po-
de-se observar a veiculao do amor e da seduo
por meio de uma relao de dominao corporal:
ii
Demora-te sobre minha hora.
Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras
[cuidadosa, etrea
Que eu te conhea lcita,
[terrena
Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.
Que me tomes sem pena,
Mas voluptuosa, eterna
Como as fmeas da Terra.
E a ti, te conhecendo
Que eu me faa carne
E posse
Como fazem os homens.
12
O primeiro momento potico parece ser delimi-
tado pelo verbo demorar, conjugado na segunda
pessoa do modo imperativo afrmativo; demora
anuncia as relaes de poder na discursividade. De-
pois, a presena do pronome possessivo minha e do
verbo tomar reforam o universo do apoderamento.
Somos levados a imaginar uma dana dioni saca
de dois corpos, em que a demora incide sobre o
assenhoramento. O processo de tomada corprea
tem seu tempo alongado, o que se nota pela semn-
tica do verbo inaugural avigorada pelos sintagmas
adverbiais hora e antes de. Assim, o que se esta-
belece nesses versos o domnio lascivo da carne
estendido no tempo.
No perodo mlico arcaico, Safo cantava para
Athis: h muito tempo eu te amei, Athis: / eras
ainda para mim uma menina pequena / e sem encan-
tos, adormecendo no seio / de uma terna amiga: ah!
Pudesse aquela noite / durar duas noites para mim.13
A respeito do poema, mais tarde, Libanius faz a se-
guinte declarao: Se, portanto, nada impediu Safo
de Lesbos de desejar que [aquela] noite tivesse para
ela a durao de duas noites, que eu possa fazer um
pedido semelhante.14 Safo e Libanius cantam o pro-
longamento do tempo nas experimentaes do amor,
da luxria e do prazer, uma vez que, tradicionalmen-
te, as noites evocam a conotao ertica. Para Paul
Veyne,15 Eros engendra a positividade do vazio. A
noite tem o apelo do desconhecido, o convite aos pra-
zeres, aos desvios da luz do dia, quando tudo poss-
vel. o momento privilegiado das prticas do prazer.
No segundo par de versos, a relao corporal
anunciada a do universo do desejo. A troca do
modo imperativo pelo subjuntivo marca o devaneio;
o que antes fora ordem, torna-se, agora, clamor; tra-
ta-se da devoo ao ser amado. Jean Baudrillard16
acredita que se confessar enamorado pelo outro
a melhor maneira de seduzir. Nessa perspectiva, a
Poeta confere Morte o poder de senhora absoluta
no espetculo da conquista amorosa.
E, num trote sbito, interrompe-se o devaneio
para dar visibilidade real aos corpos. Por meio do
dstico Duas fortes mulheres / Na sua dura hora,
so evidenciados os sujeitos do rito. O adjetivo
dura, com dupla acepo durao e virilidade
recupera a ideia da extenso do tempo e apresenta
uma importante caracterstica para ambas: o vigor.
Nesse caso, Hilda parece remontar s fguras das
Amazonas e das Valqurias, mulheres vistas como
smbolo da animalidade.
As Amazonas eram, para os gregos, antes de
tudo brbaras, inclusive no sentido que hoje
se empresta a essa palavra: transgrediam as leis.
squilo mostrava-as como devoradoras de carnes.
Eram guerreiras armadas com arcos, que comba-
tiam montadas a cavalo. Para melhor adequao
do arco, queimavam um dos seios, da o nome de
Amazonas (a-mazn: sem seio). Na Ilada, as
amazonas lutam ao lado dos troianos, sob o co-
mando da rainha Pentesileia (a que sofre por seu
povo). Baseavam-se no princpio da concentrao
mxima de fora para assombrar qualquer exrcito
e esmag-lo numa onda avassaladora; apareciam
do nada, soltavam gritos assustadores, como se es-
tivessem possudas pelo demnio, e eram chama-
das emissrias da morte.
As Valqurias, por sua vez, eram conhecidas como
virgens com escudo fguras complexas que ilus-
tram virtudes marciais, normalmente prprias aos
homens. Homero, na Ilada, nos d a ver que so, ao
mesmo tempo, iguais aos homens e, tambm, suas
inimigas. No toa as chama de mulheres-homens.
Na terceira e quarta estrofes, a fantasia retomada.
A Poeta traz novamente cena o seu desejo, a posse
carnal da outra, a animalidade, surgindo o vocbulo
fmea como substituto de mulher. Na troca en-
tre essas mulheres no h lugar para a piedade ou o
puritanismo. O que se apresenta a eternizao da
volpia, atributo da mulher terrena, e o que emerge
a selvageria. Tal qual as Valqurias, que, em suas
sagas, eram capazes de executar os mesmos gestos
dos heris, a Poeta deseja igualar-se aos homens.
Nas pulsaes dessa dana, a Poeta vai ungindo
o novo corpo da Morte com o suor que se faz gua
benta; na sensualidade dos movimentos, o ser ba-
tizado se purifca e se transforma pelo suor. Como
contas de um rosrio, as gotas de prolas lquidas
vo escorrendo e libertando o passado; queimando
e purifcando os corpos num batismo de fogo. De
12. IDEM, IBIDEM, P. 30. 13. SAFO, POEMAS E FRAGMENTOS, P. 83. 14. IDEM, IBIDEM, P. 83. 15. P. VEYNE, ELEGIA ERTICA ROMANA: O AMOR, A POESIA E O OCIDENTE. 16. J. BAUDRILLARD, DA SEDUO. 17. G. ROTH, OS RITMOS DA ALMA. O MOVIMENTO COMO PRTICA ESPIRITUAL.
acordo com Gabrielle Roth,17 o suor uma forma
antiga e universal de autocura. Para a danarina, a
transpirao uma orao e, quanto mais o corpo
transpira, mais o sujeito ora; quanto mais o sujeito
ora, mais se aproxima do xtase. O caminho que
Hilda constri para conduzir a Morte ao deslum-
bramento assemelha-se quele dos xams, que
danavam at que se tornassem uma prece suada e
cassem num amontoado esttico de ossos sobre a
Me Terra. Hilda parece buscar a prpria carne, ou
seja, aquilo que defne a presena humana no plano
da realidade, para dar outro sentido para a Morte.
SOBRE AS LINHAS BORDADAS
DO CORPO-AROMA
IMERSO EM BACANTE-BORBOLETA
A extraordinria estrutura do corpo, bem como as
surpreendentes aes que capaz de executar, so
alguns dos maiores milagres da existncia, em que
cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela
um aspecto de nossa vida interior. Executar os ritmos
dessa dana voluptuosa, deixar que as partes do corpo
falem por meio de movimento, requer certo cuidado.
Para tanto, Hilda desenha a preparao dos corpos da
D
E
S
E
N
H
O
S
D
E
H
IL
D
A
H
IL
S
T, A
C
E
R
V
O
C
E
D
A
E
-U
N
IC
A
M
P
Poeta e da Morte por meio da toilete, ponto comum
entre as deidades femininas em diferentes mitos.
Na Antiguidade clssica, a associao das deida-
des femininas aos banhos, perfumes e leos era re-
corrente na literatura. Segundo estudos de Giuliana
Ragusa,18 os banhos das deusas se revelavam em
quatro movimentos mais ou menos constantes: o
banho, a aplicao de leo perfumado, a vestimenta
de belos trajes e o acrscimo de joias. A poeta Safo
traz Andromkha num banho pr-nupcial, orna-
mentando-se com joias de prata e marfm, bordados
coloridos e perfume. Na Ilada, narra-se a toilete de
uma Hera determinada a seduzir seu marido Zeus e
distra-lo da guerra que se desenrola entre os aqueus.
J no Hino Homrico a Afrodite, a deusa prepara-
da para seduzir Anquises e faz-lo sucumbir aos seus
encantos, adornando-se de ouro e vestes luminosas.
O tema da toilete de uma divindade era lugar-co-
mum na poesia pica grega,19 e sua relao com as
deidades gregas devem-se somar tambm as deusas
da mitologia africana, como Oxum e Iemanj, para
citar apenas dois exemplos.
De outro lado, a Poeta escolhe sua indumentria
pr-nupcial:
xxxix
Uns barcos bordados
No ltimo vestido
Para que venham comigo
As confisses, o riso
Quietude e paixo
De meus amigos.
Porque guardei palavras
Numa grande arca
E as levarei comigo
Peo uns barcos bordados
No ltimo vestido
E vagas
Finas, desenhadas
Manso friso
Como as crianas desenham
Em azul as guas.
Uns barcos
Para a minha volta Terra:
Este duro exerccio
Para o meu esprito..
21
Oxum a dona da gua doce e conhecida por
sua delicadeza, domina os rios e cachoeiras, ima-
gens cristalinas de sua infuncia. Isto : atrs de
uma superfcie aparentemente calma podem exis-
tir fortes correntes e cavernas profundas. As lendas
adornam-na com ricas vestes, rosas amarelas, lrios,
perfume de rosas, pulseiras e colares de ouro, e res-
saltam que quando se banha no rio penteia os ca-
belos num movimento lnguido e provocante. No
candombl, quando dana, traz na mo uma espa-
da e um espelho, revelando-se em sua condio de
guerreira da seduo.
Iemanj, majestade dos mares, senhora dos ocea-
nos, sereia sagrada, a rainha das guas salgadas.
Chamada tambm de Deusa das Prolas, aquela
que apara a cabea dos bebs no momento de nas-
cimento. Na fuidez do movimento das ondas, dan-
a vestida com roupas litrgicas, customizadas com
conchas e prolas, trazendo nas mos o espelho e o
leque. As joias de prata e os perfumes de jasmin ou
rosas brancas compem o universo de sua vaidade.
No poema xxvi Hilst traceja a preparao de uma
Morte que se banha ornamentada de fores:
18. G. RAGUSA, FRAGMENTOS DE UMA DEUSA: AS REPRESENTAES DE AFRODITE NA LRICA DE SAFO. 19. F. JOUAN, EURPIDES ET LES LGENDES DES CHANTS CYPRIENS, APUD G. RAGUSA, OP. CIT., P. 108. 20. H. HILST, OP. CIT., P. 54.
xxvi
Durante o dia constri
Seu muro de girassis.
(Sei que pretende disfarce
E fantasia.)
Durante a noite,
Fria de guas
Molhada de rosas negras
Me espia.
Que queres, morte,
Vestida de flor e fonte?
- Olhar a vida.
20
leos, perfumes, fores, vestimentas e joias com-
pem o cenrio desse ritual em que est embutida a
ideia de beleza, seduo, erotismo, jovialidade e, por
que no, cura. Assistir a essa dana-mnima tes-
temunhar uma frequncia de movimentos em que
as bailarinas catalisam em ritmos profundos os limi-
tes da existncia; os gestos se seguem uns aos ou-
tros de acordo com uma sequncia completamente
ir racional que pode signifcar uma luta interna e se
tornar a expresso de uma prece para a libertao de
uma confuso interna. Para Rudolf Laban,
22
o movi-
mento empregado com dois propsitos distintos:
a consecuo de valores tangveis em todos os tipos
de trabalho e a abordagem de valores intangveis na
prece e na orao. Assim, na liturgia de Da morte.
Odes mnimas, em que as banheiras ornamenta-
das de fores se tornam a pia batismal, ressoa no
s a aproximao entre Vida e Morte, mas, sobre-
tudo, a cerimnia de purifcao e renascimento.
21. IDEM, IBIDEM, P. 67. 22. R. LABAN, DOMNIO DO MOVIMENTO.
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Massao
Ohno
Hilda
Hilst
e a
busca
da
Poesia
Total
Cludio Willer
Imagens: Desenhos de Hilda Hilst,
acervo CEDAE-Unicamp
Nota biogrfica: Poeta,
ensasta e tradutor, Cludio
Willer tem doutorado em
Letras pela USP. Entre 2010
e 2011, ministrou na USP
um curso de ps-gradua-
o sobre surrealismo.
Impossvel no me expressar na primeira pessoa ao escrever sobre Massao Ohno. Willer,
quero te publicar...!, declarou no comeo de 1964. Ainda no havia pensado nisso; no
me via publicado. Juntei poemas em prosa e adicionei um manifesto para, em outubro
daquele ano, lanar Anotaes para um apocalipse juntamente com Piazzas, de Rober-
to Piva. Enfrentando dificuldades, sem caixa, Massao custeou as edies, assim como,
no ano anterior, havia bancado um projeto grfico complexo, Paranoia, de Piva, com as
fotos de Wesley Duke Lee, encerrando a coleo Novssimos. Com Piazzas e Anotaes
para um apocalipse, dois volumes imitando a diagramao simples das edies da City
Lights de Ferlinghetti, inventamos, beat-surreais,1 um novo selo, Coleo Maldoror, pelo
qual ainda sairia mais um ttulo, No temporal, de Dcio Bar, mas j por outra editora.
Massao repetiria a frase. Em 1976, no calor de um megaevento que organizamos, a Feira
de Poesia e Arte no Teatro Municipal, fez Dias circulares. Em 1981, no perodo especial-
mente produtivo de sua parceria com Roswitha Kempf, complementada por um acordo
operacional com a Civilizao Brasileira e realizaes graficamente brilhantes, livros e
posters, lanaria Jardins da provocao meu livro visualmente mais atraente. E a ses-
so de autgrafos em companhia de Rubens Rodrigues Torres Filho, poeta de especial
qualidade, com Voo circunflexo.
Em maro de 2010, vi-o pela ltima vez, em uma manifestao em favor de Piva. Ma-
gro, envelhecido, mal falava mesmo assim, puxou-me para um canto e repetiu-se,
sussurrou que gostaria de me publicar mais uma vez.
So trechos de uma saga; da histria de como ele promoveu um avano na criao grfica
da edio de poesia. Felizmente, sua aventura editorial est bem registrada. Houve a pla-
quete do Instituto Moreira Salles lanada na homenagem, em dezembro de 2004, pelos
45 anos de atividade editorial. Nela, depoimentos de Alberto Beuttenmuller, lvaro Alves
de Faria, Antonio Fernando de Franceschi, Armando Freitas Filho, Carlos Vogt, Renata
Pallottini, Fernando Paixo, Jos Mindlin, Plinio Martins Filho, Heloisa Buarque de Ho-
landa e o meu. Em 2009, a Revista da Biblioteca Mrio de Andrade publicou a lista dos tre-
ze ttulos da coleo Novssimos, acompanhando um elucidativo artigo de Heitor Ferraz
Mello.2 No mesmo ano, o depoimento autobiogrfico de Massao saiu no projeto Memria
Oral.3 Em 2010, o acervo de suas edies foi ampliado e recebeu destaque. So
iniciativas que adicionam informao histria da prpria Biblioteca, frequen-
tada por Massao, onde encontrava poetas, inclusive alguns que integrariam sua
programao editorial. E onde conheceu Hilda Hilst.
Poesia, mulheres e transgresso: essas categorias esclarecem a relao especial
de Massao e Hilda. Reconhecida como grande voz potica de sua gerao, tam-
bm foi a que mais ousou. Nesse quesito, da transgresso, O caderno rosa de
Lori Lamby e A obscena senhora D so inigualveis.
Massao publicou muitos estreantes; foi graas a ele que muitos comearam.
Mas Hilda assim como Renata Pallottini e Lupe Cotrim j era conheci-
da, saudada pela crtica, com uma reputao literria consolidada. Prece-
dendo Sete cantos do poeta para o anjo, de 1962, foram seis ttulos desde a
estreia em 1950, aos 20 anos, com Pressgio. Uma relao cronologicamen-
te s avessas. Foi a Hilda da maturidade, aps a virada explosiva de Fluxo-
-floema, que mais o frequentou. A segunda parceria editorial veio apenas
em 1974, ano em que Massao, aps uma dcada afastado, voltou a publicar,
com o lanamento de Jbilo, memria, noviciado da paixo, da prpria Hilda.
Prosseguiriam com Da morte. Odes mnimas, de 1980, talvez o mais belo de todos
os livros que fizeram, pela simplicidade, pelo modo como o branco predomina; e
com seu oposto complementar, A obscena senhora D., em 1982: espessa torrente
de improprios, uma literatura do avesso.
A relao editorial entre Massao e Hilda foi constante: persistiu por 37 anos. Foi
ela quem Massao mais publicou; e ele, o editor a quem Hilda mais encaminhou
textos. Alm de dois ttulos em prosa, dos seus dezoito de poesia (descontando
duas reunies de poemas j publicados), antes de passar a sair pela Globo, nove
tinham o selo de Massao.4 Ia e voltava: publicada por editoras ento comercial-
mente fortes, como Brasiliense, Perspectiva, Siciliano, retornava a Massao com,
por exemplo, O caderno rosa de Lori Lamby, pelo simples motivo de que dificil-
mente outro enfrentaria aquele desafio.
1 O termo foi usado pela primeira vez por Roberto Piva para designar seu livro Paranoia. Segundo
Willer no artigo Henry Miller, beat-surreal, disponvel em seu blog (http://claudiowiller.wordpress.
com/2012/02/05/henry-miller-beat-surreal/), o beat realizou algumas premissas do surrealismo;
beat e surrealismo, alm de contarem com criadores extraordinrios, foram os movimentos em que
poesia e rebelio se uniram de modo mais efetivo, e com mais desdobramentos. [N.E.]
2 Volume 65, novembro de 2009.
3 Parte das comemoraes dos 80 anos de existncia da Biblioteca Mrio de Andrade, o Me-
mria Oral reuniu, em 2005, mais de cinquenta depoimentos de ex-funcionrios, diretores,
pesquisadores, usurios e artistas que fizeram parte da histria da Biblioteca. [N.E.]
Disponvel em www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Depoimento_MassaoOhno_127
6539751.pdf
4 Sigo a bibliografia que acompanha as edies da Globo.
Dediquei-lhe palestras,5 ensaios de maior flego e um captulo de minha tese, Um
obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna.6 Pequenos acrscimos
a uma fortuna crtica colossal e muito merecida. Acho reconfortante ela ter-se
tornado no s uma autora reconhecida, mas um mito literrio, algum que cul-
tuado. Hilda apreciava o que escrevi sobre ela e concordou com minhas interpreta-
es. Seu amigo e estudioso, o jornalista Gutemberg Medeiros, contou-me, por oca-
sio de uma mesa sobre ela em 2010, que, ao sair o artigo na Isto , aps l-lo, Hilda
virou-se para ele e comentou: esse me entendeu. Encantou-se com a mat-
ria no Jornal do Brasil. Deveria ter conversado mais com ela: assunto no faltaria.
Quem a visitou na Casa do Sol foi Piva: entusiasmou-se com as gravaes de vo-
zes misteriosas, conversaram sobre discos voadores e outros focos de interesse co-
mum; tornaram-se amigos.
Hilda e Massao? Alm dos encontros para tratar de publicaes e lanamentos, viam-
-se, mas ocasionalmente. Em seu depoimento para o projeto Memria Oral, Mas-
sao fala de um ltimo encontro, no qual a aconselhou a parar de beber logo ele, al-
colatra declarado, que tambm admitiu, na ocasio, que a bebida tinha reduzido em
vinte anos sua expectativa de 110 anos de vida, alm de outros quinze pelo tabagismo.
Se com Massao minha relao foi pessoal de encontr-lo, fazermos coisas juntos,
at mesmo hospedar seu estdio por um tempo em um escritrio com espao so-
brando na rua Paim , com Hilda, a relao foi como leitor e estudioso. No a fre-
quentei. Fui a seus lanamentos, e conversamos mais demoradamente uma vez, j
em 2000. Na dcada de 1960, admitindo a qualidade de sua escrita, tinha-a como
mais uma representante de uma tradio da qual eu e alguns amigos nos distanci-
vamos. Evidentemente, tive de rever essa avaliao quando saiu Fluxo-floema em
1970, logo seguido por Qads (depois renomeado como Kaddosh), de 1972. No
podia deixar de concordar com Leo Gilson Ribeiro de que se tratava de algo novo,
nunca antes apresentado em nossa literatura. Inclu poemas de Jbilo, memria,
noviciado da paixo nas leituras de poesia daquela dcada: Os dentes ao sol (que
Igncio de Loyola Brando adotaria como epgrafe e ttulo de uma narrativa), o la-
mento por Garca Lorca, a convocao de Poemas aos homens do nosso tempo.
Em 1980, rendi-me fulgurante beleza de Da morte. Odes mnimas e, colabo-
rando na revista Isto , escrevi um artigo. Voltaria a tratar de Hilda, tambm na
Isto , a propsito de Com os meus olhos de co e outras novelas, reunio de suas
prosas pela Brasiliense, de 1986. Foi quando comentei pela primeira vez o gnosti-
cismo em sua obra: o dualismo, a viso do mundo regido por um mau demiurgo,
um deus degradado; e de novo em 1990, quando saiu Amavisse, novamente por
Massao Ohno: obra de sntese, encontro da dico lrica e daquela transgressiva,
juntando exaltaes do amor, elogios da loucura e imprecaes contra Deus. Cola-
borava com o suplemento Idias do Jornal do Brasil; fiz que Humberto Werneck,
um dos editores, recebesse um exemplar: acrescentou a meu artigo uma entrevis-
ta com ela e um box sobre Massao Ohno, alm de coloc-la na capa do caderno.
Logo a seguir, o escndalo com O caderno rosa de Lori Lamby: amigos e crti-
cos, at mesmo Leo Gilson Ribeiro, rejeitaram a espantosa histria da meni-
ninha sem limites em sua vida sexual. Imediatamente, posicionei-me a favor
(como o fizeram, tambm, Eliane Robert Moraes e Alcir Pcora). No Jornal
da Tarde, interpretei como stira dirigida ao mercado editorial (algo corro-
borado por entrevistas da prpria Hilda). Aprecio tratar dessa narrativa em
palestras, mostrando a armadilha que ela criou para leitores ingnuos, da-
queles mais afeitos s telenovelas. Aps edificar o pblico com as enormida-
des relatadas em uma dico infantil, juntando perversidade e inocncia, j
ouvi algum comentar, ao chegar ao final, aliviado: Ah! Ento a menina in-
ventou tudo! No aconteceu nada disso...! como se fizesse diferena, como
se no estivssemos igualmente na esfera simblica independentemen-
te de a obra apresentar aquilo como vivido ou inventado pela protagonista.
5 Uma delas, a do ciclo Tertlia do Sesc, disponvel no Youtube [www.youtube.com/watch?v=-
f3CHkE3bZAY]; em breve sair em livro, tambm pelo Sesc.
6 Publicada em livro pela Civilizao Brasileira, em 2010.
Gutemberg Medeiros, que prepara um ensaio sobre Hilda, me informou que
Massao foi poucas vezes Casa do Sol, mas se encontravam sempre que Hilda
vinha a So Paulo, alm de se telefonarem. Confidentes. Massao lhe mandava,
do que publicava, os livros que iriam interess-la.
Arrisco uma interpretao adicional para a constncia e produtividade dessa
relao. Nas primeiras publicaes de Hilda, precedendo Sete cantos do poe ta
para o anjo, j esto presentes artistas plsticos: Darci Penteado, Clvis Gra-
ciano, Fernando Lemos. Em seguida, muitos outros: Wesley, Ansia Pacheco
Chaves, Ubirajara Ribeiro, Jaguar, Millr; e uma inverso, Hilda escreven-
do para uma publicao de Renina Katz isso, mencionando apenas os que
ilustraram, pois, se fosse abranger os autores de capas, a relao se estende-
ria, com Tomie Ohtake, Maria Bonomi, Mora Fuentes, Olga Bilenky, Pinky
Wainer, Ianelli, entre outros. Foi uma parceira de artistas visuais. E, em sua
poesia, predominam as imagens visuais, a fanopeia embora, evidentemen-
te, estejam presentes e sejam fortes a logopeia e a melopeia. Ideias no lhe
faltavam; musicalidade, senso de ritmo, menos ainda. O projeto de Da morte.
Odes mnimas contm uma inverso da relao: ela j havia feito as aquare-
las, e foi Massao quem lhe pediu poemas para acompanh-los (informa-me,
novamente, Gutemberg Medeiros). Penso que ela aspirava a uma confluncia
ou sntese do verbal e visual. Ademais, queria a Poesia Total; que o poema se
realizasse. Para usar os termos criados por Octavio Paz em O arco e a lira, que
acontecesse a encarnao da poesia; sua projeo na diacronia, na vida. Pro-
curou faz-lo, tambm, atravs da dramaturgia, e de outros meios: apreciou
ser musicada e gravada por Zeca Baleiro e Jos Antnio Almeida Prado; com-
pareceu a eventos e performances como aquela realizada por Beatriz Azevedo
no Sesc Pompeia; nunca se furtou a entrevistas. A prpria Casa do Sol, a es-
colha por morar l, a vida que levou, no foram tomadas de posio poticas?
Foi essa vontade de, atravs do livro, ir alm para alcanar a poesia plena que
aproximou Massao e Hilda e os tornou parceiros, cmplices e confidentes.
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Se h uma disputa dura e que mexe com os nervos entre os leitores de
Hilda Hilst (1930-2004) saber se ela mais poeta ou mais prosadora, ou,
de outra maneira, se foi mais longe literariamente na poesia ou na prosa de
fco. Por outro lado, pouca ateno tem sido dada, at agora, mesmo pe-
los seus mais fis leitores, aos textos que produziu em dois outros gneros,
aparentemente mais frutos de ocasio em sua escrita do que de engajamen-
to sistemtico e consequente. Falo, naturalmente, do teatro e da crnica.
Em relao crnica, o desinteresse parece at mais compreensvel: Hilda
se limitou a escrever para um nico jornal, de circulao apenas regional,
durante um perodo bem determinado (1992-1995). A publicao em livro
desse material apenas aconteceu, e ainda parcialmente, em 1998, por ini-
ciativa da editora Nankin, de So Paulo. O conjunto delas s foi editado pela
Globo em 2007. A rigor, a sua circulao ampla , portanto, muito recente.
No que toca ao teatro, parte da histria semelhante: as suas oito peas
tambm foram escritas num perodo bem determinado, mais precisamente
de 1967 a 1969. exceo da nica pea mais conhecida, O verdugo, todo
o material fcou indito em livro at 2000, quando foram lanadas quatro
pela editora Nankin. Novamente, a edio do conjunto integral se
deu apenas na edio da Globo em 2008.
H diferenas, contudo: o teatro de Hilda foi es-
crito num perodo em que era ele o gnero que
mais contundentemente catalisava a produo
e a recepo cultural da poca. Ele poderia ter
fcado conhecido e ter sido muito mais mon-
tado e debatido do que realmente foi. Bem
diverso do que se d com a crnica, cujo lugar
cultural, tanto no jornal como no cenrio
literrio brasileiro, sempre foi secundrio.
Mesmo Rubem Braga, o mais celebrado
dos cronistas brasileiros do sculo XX,
ressentia-se dessa situao de
relativo desdm pelo gnero,
embora em geral o negasse.
Nota Biogrfca: Alcir Pcora crtico literrio e pro-
fessor do departamento de Teoria Literria do Instituto
de Estudos da Linguagem da Unicamp. Colabora com
diversos peridicos, como a revista Cult e o jornal Fo-
lha de S. Paulo. Entre as obras de sua autoria, citamos
Teatro do sacramento (Edusp/Editora da Unicamp,
1994); Mquina de gneros (Edusp, 2001) e Rudimen-
tos da vida coletiva (Ateli, 2003).
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um dado bem curioso
e importante a ser anotado aqui. Conquan-
to o teatro propriamente dito de Hilda Hilst
esteja praticamente esquecido, a dramaturgia
sobre a sua obra no teatral cresce sistematica-
mente! E, a julgar pela volpia com que jovens dra-
maturgos tm se lanado sobre a sua prosa, promete
crescer muito mais. como se o teatro de Hilda apenas
alcanasse o seu ponto de realizao na prosa, e como se
o que produziu diretamente como teatro no chegasse l.
Para entender esse fenmeno do apelo teatral de seus textos em
prosa, preciso mergulhar na leitura deles e perceber o quanto o seu
processo de composio mais nuclear, a saber, o fuxo de conscincia,
recebe um tratamento marcadamente dramtico, que tem menos a ver
com uma personagem ensimesmada, cujos pensamentos vo se construin-
do ou improvisando mentalmente, do que com uma gerao contnua de
personagens, que se desdobram em confronto contnuo. Em adio, tais
confrontos de personagens proliferantes se do no mbito de cenrios
econmicos e sistemticos, quase abstratos, o que os afasta bastante da
representao realista. J comentei esse aspecto dramtico da literatura
de Hilda em outros textos. No entanto, melhor do que eu o fz, procurou
evidenci-lo a tese de doutoramento de Sonia Purceno, ainda indita em
livro, mas passvel de ser acessada on-line na Biblioteca da Unicamp. A
tese convincentemente demonstra a existncia em Fluxo-Floema, O
caderno rosa de Lori Lamby e em outros textos de fco de um forte
movimento dialgico do fuxo, sustentado por personagens antagnicos
e cenrios compostos de recintos confnados, mas invariavelmente com
escapes estreitos para cima e para baixo.
Ou seja, a dramaturgia de Hilda tem se alimentado de sua fco mas,
como disse antes, permanece num limbo to obscuro como o das suas
crnicas. Proponho-me aqui a fazer um breve passeio por esses dois
gneros e esboar o que neles funciona mais, ou menos.
I. O teatro
Hilda comps oito peas, entre 1967 e
1969. Como apontei, trata-se de um pero-
do no qual o teatro e em especial o teatro
universitrio adquire grande importncia,
tanto por sua signifcao nacional de resistn-
cia contra a ditadura militar, como pela vigorosa
consonncia com as manifestaes polticas e artsti-
cas que ganham corpo em todo o mundo ocidental.
Ao escrever todas as suas peas nesses pouco mais de dois
anos exuberantes, Hilda Hilst dava mostras de entender o apelo
nico que o teatro representava
naquele momento. Pode-se dizer
que foi uma produo de ocasio,
mas no uma produo oportu-
nista, pois estavam e esto l os
problemas que se tornariam cen-
trais em sua obra em prosa, a qual,
ento, mal comeava a existir.
Quero dizer, de certo ponto de vista,
o efeito mais importante de seu
teatro foi o de ensaiar a sua prosa.
Poder-se-ia pensar que, em relao
poesia, o teatro no teve efeito sig-
nifcativo, pois, como se sabe, Hilda
produzia h mais de uma dcada,
tendo obtido vrias resenhas favo-
rveis de crticos importantes. No
entanto, no assim. A prpria poe-
sia de Hilda nunca mais foi a mesma
depois da experincia como drama-
turga e da sua iniciao na prosa.
O salto de qualidade evidente, como vrios crticos j apontaram e eu
mesmo tentei demonstrar em notas edio de Jbilo, memria, noviciado
da paixo, livro de 1974 que inaugura uma fase muito mais complexa em
sua poesia. A dico potica alta, de inspirao parnasiana, que at ento
parecia predominar, ganhou contrapontos surpreendentes de humor, de
registro vulgar e de vivacidade dialgica que lhe deram muito mais alcance
estilstico e intensidade de fatura.
Desse modo, se, por episdico, o teatro de Hilda Hilst parece servir mais
prosa e poesia do que a si mesmo, pode-se pensar que, em termos de
dramaturgia, ele se resumiria a uma coleta de lugares-comuns do teatro
militante de poca. At certo ponto, no uma impresso falsa: trata-se de
um teatro alegorizante, de feitio genericamente didtico ou doutrinrio,
cujo assunto bsico gira em torno de uma situao de opresso institucio-
nal. Assim, o Exrcito, a Igreja, o Tribunal, a Empresa, a Escola ou outra
instituio exerciam seu programa repressor, aplicando-o contra a popula-
o e contra os heris, perfeitamente distintivos, insubmissos e dispostos a
se sacrifcar por uma ordem mais justa.
Acontece que Hilda, sem deixar de constituir suas peas em torno desses
lugares-comuns de poca, introduz variantes notveis no desenvolvimento
deles, nem sempre simpticas s correntes dominantes nos pensamentos
da esquerda a comear pelo fato de que a instituio autoritria temati-
zada por Hilda especialmente vigilante contra os mais talentosos e estra-
nhos; isto , personagens que se caracterizam como representantes de uma
comunidade, mas tambm como seres de exceo, muito diversos de todos.
So estes os que mais recebem a admirao da jovem teatrloga, e no o
homem comum ou a coletividade em geral. Isso no torna melhor ou mais
aguda a simbologia de que lana mo nas peas, mas diversifca o uso que
ela faz de uma simbologia j reconhecida por ela mesma como inexoravel-
mente gasta, sem contudo abdicar dela.
Dou um exemplo bem recorrente em todas as peas. Insiste-se numa ima-
gem dos protagonistas como seres com asas. Elas signifcam o bvio:
apontam o sujeito inconformado, criativo, nico, que acaba pagando o pre-
o de s-lo em meio autoridade repressora, de um lado, e gente comum,
de outro, que reproduz, embaixo, o andino institucional de cima.
De modo geral, entretanto, possvel dizer que Hilda submeteu os luga-
res-comuns da poca sua prpria maneira de encar-los, fazendo que a
aporia e a contradio ocupassem o lugar central de todas as suas peas.
Evidentemente, esses pontos de desequilbrio dos esteretipos o que me
interessa ressaltar aqui, para, quem sabe, entusiasmar outros leitores, mais
apetrechados, a retir-las do vazio interpretativo em que se encontram.
No caso de A empresa (ou A possessa), de 1967, a nota hilstiana mais in-
teressante no , como se poderia esperar, a denncia da represso ins-
titucional sobre os jovens, mas o alerta sobre a possibilidade terrvel de
que justamente os jovens mais criativos possam ser cooptados ou ter a sua
imaginao posta a servio do processo repressivo. Quando a personagem
Amrica inventa Eta e Dzeta supondo demonstrar a fecundidade da sua
imaginao e, portanto, a sua diferena em relao aos padres andinos
da instituio, o que acaba involuntariamente fazendo prover a instituio
repressora de recursos muito mais efcazes do que ela dispunha at ento.
Revela-se aqui um tema que sempre esteve no corao da obra de Hilda:
a existncia de uma condio destrutiva no cerne da mais genuna cria-
o, a qual tanto se abate sobre o seu criador, quanto se mostra impotente
diante da sua manipulao autoritria. Essa contradio entre inveno e
liberdade o que h de melhor na pea, e, nisso, Hilda se aproxima curio-
samente de autores como George Orwell, cujo 1984, por exemplo, sugeria
que nenhuma ao repressora de desintegrao da vontade pessoal atingia
o seu grau mximo antes da colaborao de um intelectual criativo.
Em O rato no muro, do mesmo ano, a melhor nota hilstiana, ou seja, aquela
que desafna o esteretipo adotado, est na imagem baixa do rato para
caracterizar o nico ser que, tendo agilidade para subir no muro, capa-
citava-se para ver alm dos processos edifcantes da reeducao social e
cvica. Outra vez, o que se pe fora da estreiteza institucional marcado
por algum estigma, aqui acentuado por um clima neogtico, penetrado por
lembranas vagas, interditos, mal-entendidos, conversas exasperadamente
cifradas. O efeito geral de desarranjo assombrado, que vai se instalando
em meio a uma situao de histeria coletiva.
O visitante, de 1968, a pea mais distinta do conjunto dramtico produzi-
do por Hilda Hilst. Para um leitor familiarizado com a sua obra, fcil
reconhecer que ela contm o ncleo narrativo da segunda parte da no-
vela Tu no te moves de ti, que ser publicada apenas doze anos depois.
Na pea, Hilda compe um ncleo familiar que nada tem de prosaico; ao
contrrio, evoca a lembrana de alguma fantasia literria imemorial, com
vagos elementos de paganismo popular. Parece celebrar a alegria e a fora
generativa da vida, mas acaba tambm por pressagiar o engano, a traio e
a dor que parecem residir, inalienveis, no fundo de toda relao amorosa.
Alm da vinculao mais direta com a prosa posterior de Hilda, a pea se
distingue do conjunto teatral pelo seu vis ertico e intimista, distante,
portanto, da situao de represso institucional constante no seu teatro.
No entanto, a pea est igualmente distante de uma situao pacifcada.
A cena idlica inicial logo se revela como fonte de suspeitas, acusaes e
situa es torturadas. O seu andamento, centrado num tringulo composto
de me-flha-genro, efetua uma via tortuosa que arruna a ideia de confan-
a entre os que se amam.
O auto da barca de Camiri, tambm de 1968, tem como pano de fundo a
morte de Ernesto Che Guevara. O prprio ttulo j o evidencia, j que Ca-
miri o nome da regio da Bolvia onde Che teria sido morto, em outubro
do ano anterior. No entanto, na pea, o nome do guerrilheiro jamais re-
velado, sendo referido apenas como homem, o que certamente tem a ver
com a censura de poca, mas tambm com os prprios propsitos alegri-
cos que a autora pretendeu extrair do episdio.
A cena do julgamento das aes do tal homem. As testemunhas da
defesa so fguras igualmente alegricas, que no recebem nomes prprios,
mas so designadas pelo ofcio: o Passarinheiro e o Trapezista. Tais
ofcios, percebe-se facilmente, esto no domnio do ar ou das asas, o
que traz novamente para a cena a simbologia operacional gasta a que me
referi antes, que Hilda acolhe, mas tambm obscurece. Tambm est bvio
que o Che by Hilda tem muito de Cristo: ele o cordeiro sacrifcial imola-
do com sentido expiatrio para salvao do conjunto dos homens.
No entanto, a salvao uma possibilidade adiada e o Cristo revolucion-
rio um sujeito ausente. O homem julgado in absentia e os atos que
lhe atribuem, se o caracterizam como um Cristo solitrio, incompreendido,
tambm o esboam como um ente exclusivamente aludido, no como quem
pode tomar para si a palavra. Nisso, curiosamente, lembra mais um heri
maldito de romance epistolar gtico, cuja presena nunca se d diretamen-
te ao leitor, mas apenas referida por outros. Antes de ser corpo vivo que
pode ou no ser condenado morte, j surge na forma de um morto que
continua a assombrar os vivos.
O efeito abertamente cmico dos dilogos e interrogatrios feitos pelos
juzes remete a Kafka, ainda mais quando a conversa mergulha em paroxis-
mos de incompreenso e de interferncias deslocadas do assunto principal.
A deriva aleatria do julgamento parece demonstrar o nonsense do Direito
sustentado pelos juzes, e, ainda, a sua impossibilidade de lidar com a reali-
dade que ocorre fora do palco desta, apenas se ouvem as rajadas sucessi-
vas de metralhadora e os gritos dos executados. No fundo, o homem que
acusado e os juzes que o condenam fazem parte de espaos que no se
cruzam e que, at certo ponto, permanecem intocveis entre si.
A notar tambm que o termo auto explorado na pea em sentido equ-
voco, signifcando tanto o material processual como a encenao de assun-
to sacro, pois o processo que condena o homem tambm acaba atestando
a sua natureza sagrada. Refora esse aspecto a personagem do prelado.
Tomada de modo favorvel, a nica que pode entender e confrmar que
a realidade vivida pelo homem um anncio de vida futura, enquanto o
julgamento est encerrado em seu prprio impulso de represso e morte.
As aves da noite, ainda de 1968, segue de perto a pea anterior no sentido
de dramatizar um episdio real da morte de um heri, entendido como
mrtir da liberdade. Dessa vez, a ao inspirada nos eventos protagoni-
zados pelo padre Maximilian Kolbe, morto em 1941, no campo nazista de
Auschwitz, ao se apresentar voluntariamente para ocupar o lugar de outro
prisioneiro sorteado para morrer de fome como punio por uma supos-
ta fuga ocorrida no campo. Em 1971, a Igreja catlica beatifcou o padre
Kolbe; em 1982, foi canonizado por Joo Paulo II e, desde ento, costuma
ser designado como Santo Protetor de presos polticos, jornalistas e outros
profssionais ligados liberdade de expresso.
Hilda est particularmente interessada em considerar o heri posto em
situaes extremas, nas quais deseja dar testemunho de uma convico
moral e religiosa inabalvel e explicvel, quando nada no mundo oferece
qualquer fana para a verdade da crena, mas, ao contrrio, parece dar
testemunho de seu completo vazio.
Outro ponto relevante a
considerar na pea a apologia feita
aceitao do sofrimento prprio e do reconhecimento da hu-
manidade mesmo no mais cruel inimigo, ao qual no se nega a aplicao
da metfora gasta: so aves, noturnas embora. Contra essa ideia de
compaixo sem limites est no a razo ou a justia, mas o rancor auto-
destrutivo dos que se debatem inutilmente contra a fragilidade da vida
e o horror habitual do destino. Quero dizer, na encenao de confron-
tos de atitudes entre os prisioneiros face morte, a admirao de Hilda
vai para os que voluntariamente escolhem o fm que lhes dado,
de tal modo que nessa escolha da morte e da no violncia reside parado-
xalmente toda a esperana humana de sobreviver barbrie.
Pode-se dizer que a posio de Hilda prxima de Ghandi, popularizada
nos movimentos contraculturais dos anos 1960; mas h nela tambm um
acento cristolgico, de afrmao sacrifcial no tempo presente. A entre-
ga voluntria crueldade do outro o nico gesto efcaz contra a ao
violenta, seja a do carrasco, movida pela pulso de morte, seja a do pr-
prio prisioneiro, conduzida pela vingana da injustia sofrida. A ideia que
parece defender que nada, no futuro, poder resgatar teleologicamente
o crime que se comete no presente. Nenhum mundo novo, nobre e justo
aguarda ao fm do pesadelo. O mundo este e a nobreza, quando houver,
h de ser manifesta j.
O novo sistema, ltima das peas de 1968, novamente traz cena as ale-
gorias do autoritarismo presentes nas demais peas, com uma variante:
a cincia que, agora, fornece o paradigma da ao institucional repres-
siva. A pea uma fco futurista maneira de 1984 ou de Admirvel
mundo novo, com a particularidade de que, nela, a Fsica se torna a fon-
te subsidiria do Direito e, portanto, de legitimao cientfca do poder
tirnico. O double think orwelliano se torna, na pea, uma espcie de
mote didatizante. Cada gesto autoritrio introduz o mantra da cincia
positiva: estude Fsica.
Dois elementos importantes de dissonncia dos clichs tpicos des-
sa compreenso da cincia como novo totalitarismo emergem aqui.
Primeiro, os maiores talentos no esto necessariamente a servio do
bem antes, so lugares em que o bem e o mal se encontram como
potncia. Segundo, na esfera coletiva predomina uma subalternidade
estpida, da qual nada se pode esperar a no ser a servido volunt-
ria a qualquer senhor.
Em termos polticos, a vontade coletiva sempre menos decisiva do que a
escolha individual, no partilhada, mas signifcativa porque torna existente no
presente a potncia de humanidade que reside no indivduo. O corolrio dessa
posio a clara descrena num futuro forjado por uma doutrina revolucio-
nria, que apenas poderia resultar numa nova forma de tirania, ainda pior ou
mais cruel, pois mais convicta de suas bases sociais e cientfcas.
O verdugo, de 1969, a pea mais representada de Hilda e tambm a nica
que chegou a ser premiada e publicada em seu tempo. Repete-se o esquema
de julgamento j presente no Auto da barca de Camiri, e no difcil susten-
tar que, novamente, o homem em julgamento Che, cujas caractersticas
cristolgicas so acentuadas pelo feitio de parbola de seu discurso. Falando
por parbolas, a questo da interpretao passa a ocupar o primeiro plano
do drama, o que, no caso, implica a tentativa de compreender o para-
doxo da luta armada e, portanto, da violncia num projeto cuja
destinao fnal a relao amorosa entre os homens.
A resposta aventada pela pea contempla dois movimentos distintos: pri-
meiro, deixa clara a venalidade das gentes, que no hesitam em sacrifcar
o homem que fala por elas, ou em nome de um futuro para elas, em troca
de dinheiro e vantagens imediatas. Nisto, a cena do julgamento de rua re-
toma diretamente a do julgamento de Cristo por Pilatos. Segundo, ensaia-
-se uma justifcativa para as grandes patas de lobo desenvolvidas pelos
homens-coiotes, como so chamados os que resistem execuo da pena
injusta aplicada pelos juzes. como se, diante da arbitrariedade tirnica,
apenas a violncia dessas patas agisse em favor da instaurao da justi-
a, ou, ao menos, de uma etapa de sua efetuao progressiva.
Entretanto, mesmo nesse ponto de relativa justifcao da violncia, a pea,
mais uma vez, evidencia a impotncia da revolta, pois os homens-coiotes
apenas assistem, sem conseguir reagir, execuo de seu lder. Assim, se O
verdugo acentua a feio cristolgica do lder revolucionrio, que padece a
morte pelo bem dos que o vendem, tambm refora uma tradio de leitura
revolucionria do Cristo, como fazia Pasolini, em 1964, com o seu O Evan-
gelho segundo So Mateus, o que tende a justifcar ou entender a necessi-
dade da violncia na luta pelo direito.
A ltima pea de Hilda, A morte do Patriarca, ainda de 1969, retoma a
encenao em ambientes confnados e quase sem ao, a no ser de or-
dem subjetiva e intelectual. No palco, as imagens de Cristo, de lderes
revolucionrios, alm de um surpreendente Ulisses, so exibidas como
forma de atrair e manipular a simpatia de um grupo de jovens
prestes a tomar o palcio papal. Cristo, ainda mais que Ulis-
ses, objeto da simpatia da autora (ao contrrio de Marx,
Lnin ou Mao), mas nenhum deles consegue blindar a Igre-
ja quando eclode a revolta popular contra sua autoridade.
Assim resumida a ao, a pea pode parecer um passo adiante
de O verdugo na aceitao da violncia revolucionria. No
o caso: os jovens que invadem o palcio e matam o papa o fa-
zem sob os incentivos do mesmssimo conselheiro do papa
que cai: o demnio. A iconoclastia dos jovens traz den-
tro de si a origem do mal que produziu, no passado,
a ascenso da prpria Igreja. Deus e os anjos apenas
observam, sem intervir, possivelmente antevendo o
desgraado fm da histria.
O mais marcante no andamento da pea, entretan-
to, menos o seu desfecho ctico, do que o humor
anrquico que se desenvolve em meio s cenas
mais dramticas, produzindo dilogos agudos e geis, o que ser marcan-
te na prosa posterior de Hilda.
o que me ocorre dizer como apresentao sucinta do teatro de Hil-
da Hilst. So peas que praticamente no tiveram encenao profs-
sional, a no ser O verdugo. No funcionaram, portanto, at agora,
como teatro propriamente dito, isto , com personagens atuando em
cena, diante do pblico. A falta de ao, o enredo abstrato, o acen-
to colocado sobre a palavra potica, uma discusso poltica que mais
parece condenar a poltica, um teatro popular que parece implac-
vel com o povo, certo catolicismo padecente e vitimista que conta-
mina o pacifsmo, o repdio s posies polarizadas da poca, sem
deixar de acentuar os polos; um olhar mais agudo para as contra-
dies e as incongruncias do que para a clareza ideolgica qual-
quer coisa, ou tudo isso, resultou no fracasso de seu teatro.
Sempre que volto ao texto das peas, pergunto-me se elas que foram
longamente desenvolvidas, de maneira mais complexa e radical, na prosa
de fco de Hilda teriam ainda chance de funcionar como teatro. E no
tenho resposta para essa indagao. Os textos tm bons momentos, situa-
es potencialmente fortes, posto que irrealizadas. Mas como saber o que
vale um teatro que no encenado? Se o fosse, imagino que demandaria
fortes adaptaes, uma vez que as tpicas revolucionrias e as metforas
gastas com as quais dialoga, em larga medida, so j runas.
II. Crnica
Quando j tinha 60 anos completados, Hilda Hilst aceitou o convite para
escrever uma coluna de crnicas para o recm-criado Caderno C do jornal
dirio Correio Popular, de Campinas, e o fez regularmente entre 30 de
novembro de 1992 e 16 de julho de 1995. A sua coluna, que tinha como
ttulo apenas o nome da autora, comeou a ser publicada s segundas-fei-
ras, assim permanecendo at 20 de setembro de 1993. De 17 de outubro
de 1993 at o fnal de sua colaborao, passou a circular aos domingos,
sempre tendo como editor do caderno o jornalista Jary Mrcio.
s segundas ou aos domingos, a crnica de Hilda no passava desperce-
bida. Para alguns poucos, suponho que se tratava de razo sufciente para
comprar o jornal; para outros, era motivo para os mais veementes protes-
tos contra sua linguagem desbocada, que no faltava o calo; para
muitos, era a chance de rir dos destrambelhamentos de uma velha louca.
Certo que no havia meio de frear a liberdade da imaginao de Hil-
da Hilst pelo chamado responsabilidade do senso comum. Lembro-me
exemplarmente de uma crnica sua, a qual, edifcante nos seus prprios
termos, animava velhinhas a se empenharem na prtica do sexo oral, j
que a falta de dentes, garantia a cronista, ajudava o trabalho de sopro. O
tom metdico e didtico do texto era hilariante. Deixava evidente que Hil-
da Hilst era uma humorista completa, no sentido pirandelliano do termo;
isto , algum que no apenas sabe fazer entender o contrrio do que diz,
mas que suspende as certezas do que diz e do que insinua, voltando-se
contra si mesmo e produzindo aporia e paradoxo. Esse mesmo exemplo
da velha gulosa serve para mostrar que, para Hilda, nada era estranho ao
humor, mesmo o tema difcil, se no doloroso, das misrias da velhice, que
era talvez o mais constante do conjunto das crnicas.
Esse apenas um exemplo, entre tantos outros, hilariantes e igualmente
duros, que Hilda mandou ao jornal. Algum ainda ter de falar com muita
seriedade da Hilda Hilst humorista, e quando fzer isso, ser nas crni-
cas que encontrar alguns de seus melhores argumentos, mesmo se no
exclusivamente nelas. No Brasil, que sempre se louva de muito engraa-
do, h poucos autores que pratiquem uma escrita de alto nvel na qual o
humor seja um componente to decisivo.
Estar sob o infuxo do humor das crnicas de Hilda , de alguma forma,
estar implacavelmente exposto a um processo educativo, entendido como
aprendizado de rir de si mesmo e de desistir de toda afetao vulgar, seja
a de autoridade, seja a de intelectual srio, intrprete de grandes aspira-
es nacionais. O melhor jeito de se livrar do pior da sua ironia aprender
que no h sentido elevado possvel que imediatamente no traga o con-
traponto de uma baixeza: a humanidade no est em nenhum deles sem
que venha junto o outro.
Ler aquelas crnicas da primeira metade dos anos 1990, especialmente
no que diz respeito sua indignao contra a roubalheira generalizada do
governo e a insensibilidade venal dos polticos, ainda to amargamente
divertido como no tempo em que Hilda as escreveu. Quase digo que o que
ela registrou antes apenas agora se revela em toda a sua densidade e mau
cheiro. Mas no era profecia, no, longe disso: o que hoje se passa ape-
nas continuidade cabal do mesmo merdel de quinto mundo.
O Brasil sem-vergonha de Collor e PC Farias, dos anes do oramento,
das famigeradas sobras de campanha, da chacina da Candelria, da
impunidade generalizada, da arrogncia boal dos ricos, que so sempre
novos-ricos, da parvoce do plebiscito da monarquia, das negociatas do
FMI, do roubo da Previdncia, da secular indstria da seca, da prostituio
infantil, da privatizao cavilosa... De tudo isso Hilda falava e ria, brava,
e ainda estaria a esbravejar, rindo, pois novos e impensveis descalabros
pblicos lhe cairiam nas linhas afadas, como ainda se apresentam a ns,
todos os dias. J estou ouvindo Hilda gritar da sala, enquanto vai vendo
e ouvindo as notcias no rdio e na televiso: me tragam meu penico de
estanho que eu vou vomitar; e depois: agora tarde, nego, j vomitei.
passar os olhos pelas crnicas de Hilda Hilst para conhecer, de um gol-
pe, que o Brasil um desastre persistente, fruto do que ela chamaria de
pornocracia, ou reino da pornografa inata. A justa indignao, entretanto,
nunca implicou em perda de humor, mas, ao contrrio, deu-lhe um mar de
metforas escabrosas. Talvez por isso as crnicas ensaiem diversas possi-
bilidades de criao no gnero que lhe prprio, no mbito do jornal.
Refro algumas delas.
Em certas crnicas, Hilda justamente tematiza a expectativa usual de que
o texto se efetue como comentrio otimista das notcias recentes, com
destaque para os casos que pudessem atrair simpatia humana. O roteiro
lhe parece cnico e desonesto demais num tempo quase sem esperana
vista, alm de ser patente a sua falta de sintonia pessoal com o ar confor-
mista dos anos 1990. Isso a obrigava a inventar sadas novas para a sua
crnica, fora dos parmetros de uma escrita coerente e agradvel.
Entre as sadas que ensaiou est a de misturar comentrios de notcias
recentes com poemas e textos de sua prpria autoria, escritos e publicados
em outros tempos, mas seguramente desconhecidos do leitor mdio do jor-
nal. Digamos que, nesses casos, ela usava as crnicas como divulgao de
sua obra potica. Pessoalmente, no me parece que esta seja das solues
mais bem resolvidas. Os poemas, em geral, surgem descolados do restante
da crnica, sobretudo por exigir um tipo de concentrao ou estratgia de
leitura muito diversa daquela que orienta o incio referencial da crnica.
Esse
leitor
evidentemente
no compra livros,
a no ser para fngir para o
vizinho igualmente atoleimado a inte-
ligncia que no tem. Essa caricatura de leitor avana
e se amplifca at abarcar a humanidade inteira. E ento, do seu leitor ela
no pleiteia fraternidade ou sequer a amizade, mas, ao contrrio, decla-
ra-lhe divrcio radical, cujo performativo dado pela frmula: sou gente
no. Essa a sua variante do I would prefer not to, frase com que Bartleby,
a clebre personagem de Melville, faz recuar o seu ofcio mecnico e con-
tingente de escriba a um estado de negatividade primordial.
De modo geral, entretanto, as crnicas signifcam a abertura para uma
grandeza artstica que tampouco se efetua nelas. So geralmente resumos,
snteses cmicas, desfechos caricaturais de algo que j se passou mais
completamente em outro lugar. So um modo despachado de dizer de novo
o que j disse, mais e melhor, na prosa ou na poesia, mas que ali, no campo
do jornal, gera a alegria perversa de maltratar quem no a leu.
Outra estratgia hilstiana para a crnica foi a criao de fbulas com
moralidade invertida, maneira dos poemas hilariantes reunidos em
Buflicas, que misturavam a ltima lambana pblica com historietas
nonsense. H crnicas, ainda, que simulam uma espcie de entrega ao
fuxo de lembranas momentneas e aos desvios mais inesperados do
andamento argumentativo, o que produz uma impresso de imediatis-
mo e de improviso total, como uma conversa que irrompe, de repente,
sem fm e sem comeo, ali mesmo, no meio das pginas do jornal.
Enfm, diria que as estratgias inventadas por Hilda nas crnicas
privilegiam um procedimento bsico: colocam no centro da roda uma
imagem caricata do leitor habitual do jornal, no extremo oposto do
leitor utpico, de que fala Boris Groys, o qual leria a obra exata-
mente como se gostaria que ela fosse lida. Hilda prope como leito-
res de sua crnica velhos casais desanimados, saturados da prpria
companhia esvaziada; senhoras falsamente pudicas que simulam
inocncia escandalizada e a acusam de nojenta ao editor do jornal;
representantes da sociedade campineira que, ao contrrio do que
supunham, no se distinguem em ignorncia do povo, caterva,
populacho; gente basicamente desesperada que, sem saber
o que fazer do deserto da prpria vida, aposta no
alheamento de si como moralidade e
no cultivo da boalidade como
trunfo da convivncia.
148 RBMA 69 69 RBMA 149
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Glauco Mattoso:
um perverso ao p da letra
Ronnie Cardoso
Glauco Mattoso nasceu em 1974, quando os prazeres da
literatura e os efeitos perversos do glaucoma j se emba-
tiam na vida de Pedro Jos Ferreira da Silva (o verdadeiro
nome do autor, efetivamente nascido em 1951). A iminente
cegueira com certeza iria limitar a qualidade da sua frui-
o literria. Talvez por isso a palavra glaucomatoso surja
como uma soluo de compromisso. Ela designa aquele que
sofre da doena, mas tambm foi escolhida para nomear
seu heternimo, porque, segundo o autor, alude ao poeta
do Barroco brasileiro, Gregrio de Matos, a quem se flia
literariamente. Com o passar do tempo, a criatura cresce e
invade de tal maneira a vida de seu criador,
que este vai gradativamente desaparecendo, como se
a potncia fetichista e perversa do projeto associado a
Mattoso, ou construdo por meio dele, dependesse da
sada de cena de Pedro Jos. Para a devida apresenta-
o dessa fgura que nasce para dar fundo e forma
produo esttica do seu criador, vale lembrar o sone-
to Natal publicado na antologia Poesia digesta (2004):
Nasci glaucomatoso, no poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a lngua suja solta
e a vida como bratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me imps
(pedal humilhao) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os ps do algoz.
Mas no compenso, nem que o gozo
[esguiche,
masoca, esta cegueira, e meus porns
poemas de Bocage so pastiches.
Nota Biogrfca: Ronnie Cardoso professor e jornalista. Mestre em Estudos Literrios pela UFMG, atualmente
est cursando doutorado em Literatura Brasileira na USP. Desenvolve pesquisa sobre a ertica literria e a es-
ttica da perverso. Escreveu a dissertao Na falha da gramtica, a carne: a pornografa em Hilda Hilst.
150 RBMA 69 69 RBMA 151
Catalogado com o nmero 951 de uma extensa srie de sonetos que acumu-
lam os saberes e os prazeres da sexualidade desviante, nele o eu textual criado
por Pedro Jos se assume como perverso, aponta sua fliao literria e mos-
tra a revolta que s pode ser traduzida por meio da lngua suja e solta. Sob
a assinatura de Mattoso, j so mais de cinco mil sonetos escritos e mais de
cinquenta livros publicados. A maior parte de sua produo compe-se de
poesias, contudo, tambm escreveu ensaios sobre a lrica marginal, a tortura, a
histria do trote estudantil, o rock, alm de tratado de versifcao, dicionrio,
romance, memrias, autofco e contos. O fetiche por ps e as experimen-
taes sadomasoquistas esto presentes, direta ou indiretamente, em grande
parte da produo potica do autor, como tambm nos ensaios O que tortura
(1984) e O calvrio dos carecas: histria do trote estudantil (1985), no romance
autobiogrfco Manual do podlatra amador, aventuras e leituras de um tara-
do por ps (2006), o romance A planta da donzela (2005) e os livros de contos
Contos hediondos (2009) e Trip do tripdio e outros contos hediondos (2011).
Na vasta obra do autor, a podolatria e o sadomasoquismo so temas recorrentes
que singularizam a sua produo textual. Nos diversos gneros por ele pra-
ticados (poesia, ensaio, prosa, fccional ou autobiogrfca), o fetiche por ps,
associado muitas vezes prtica sadomasoquista, aparece como o enunciado a
ser repetido, duplicado e ampliado por meio da escrita de Glauco Mattoso, que
no deve ser visto apenas como um pseudnimo, mas sim heternimo ou alter
ego de Pedro Jos Ferreira da Silva. Nesse movimento de construo de um
eu textual fetichista, a prpria linguagem torna-se objeto da fantasia ertica e
apresenta um novo traado da sexualidade para o leitor: a perverso no apa-
rece s na perspectiva temtica, mas principalmente na forma de enunciao.
O texto como fetiche
O Manual do podlatra amador, cujo subttulo aventuras e leituras de um
tarado por ps, fornece o aporte mais profcuo para se defnir o projeto
esttico-literrio do autor. O livro representa no s a consolidao liter-
ria de uma concepo esttica, como tambm traz uma contribuio crtica
aos estudos literrios brasileiros e aos estudos sobre perverso. Em vrios
momentos, percebe-se nele determinados posicionamentos, programas ou
ideias tpicos de um manifesto. O volume apresenta os princpios, as pro-
posies, o embasamento conceitual, a genealogia e as fliaes da concep-
o esttico-literria que estamos denominando esttica da perverso.
Mesmo tendo um carter biogrfco (ou de autofco), o Manual do podlatra
amador no deixa de ser um romance de tese. De fato, o texto de Mattoso pro-
cura alternativas para impasses que surgem no contexto da indstria cultural.
Em outras palavras, o que possvel fazer diante da repetio que no permite
Nesse movimento
de construo de
um eu textual
fetichista,
a prpria
linguagem
torna-se objeto
da fantasia
ertica e
apresenta um
novo traado da
sexualidade para
o leitor
a instaurao da diferena, ou ainda, como reverter
o processo de esgotamento e de homogeneizao
do relato pornogrfco que gira em torno de clichs
sobre a sexualidade? O primeiro passo dado pelo
escritor (que transita pelos espaos da fco e das
vivncias reais, misturando os dois) em direo
oposta domesticao e padronizao impostas
pela indstria cultural, foi o de colocar a sua vida,
as suas experincias sexuais, os seus conhecimentos
e as suas leituras sobre a tradio obscena como
foco e fonte da escrita. A ideia de se autobiografar
pareceu-lhe uma tarefa grandiosa. Logo percebeu
que, para resgatar a memria do que foi vivido
ou para romancear os acontecimentos, refexes e
emoes da sua existncia, seria preciso determi-
nar o ponto de corte, apresentado pelo autor na
seguinte passagem do Manual do podlatra amador:
S me dispus a isso quando percebi que
a frmula tava bem mais aqum: bastava
fcar em torno daquilo que eu havia lido &
feito com relao aos ps. J que nesse ter-
reno a literatura curta e minha experin-
cia larga, tudo o que eu passasse pro papel
seria lucro. Sem o peso de compromissos
mais genricos com a Fico ou a Memo-
rialstica, foi fcil & rpido produzir este
livro. Que nem fazer um gol de pnalti,
bater num cara amarrado, empurrar cego
em ladeira, tirar doce da boca de criana
ou gozar tocando punheta.1
Ao longo do volume, o autor procura questionar,
deslocar, erotizar ou perverter as defnies a respei-
to de sexualidade desviantes presentes nos manuais
de sexologia aos quais teve acesso, numa atitude
que evoca outros sujeitos perversos, cujas supostas
patologias foram descritas, de forma pioneira, no
Psychopathia sexualis, do Doutor Kraft-Ebing. O
narrador do Manual do podlatra amador revela ser
um leitor contumaz desse gnero textual desde a
adolescncia, principalmente do livro de Frank
Caprio, Aberraes do comportamento sexual. Essa
obra, segundo o eu textual, rendeu-lhe material
pra muita punheta.2 Da que, em alguns momen-
tos, chega a citar passagens do texto de Caprio,
recortando e desviando o caso relatado pelo mdico
do aparato clnico que o circunscreve, pervertendo
a fnalidade didtica e cientfca de tais relatos.
Ao alterar o texto original, Mattoso satisfaz seu
desejo por meio da palavra escrita. Ele desloca os
princpios normatizadores do texto cientfco, rees-
crevendo-o sua maneira. Quando encontra o caso
de uma relao incestuosa entre pai e flho, relatado
pelo Doutor Caprio, faz o seguinte comentrio:
Tava eu l interessado em saber se o flho era pa-
ranoico e o pai esquizofrnico? E eu com a opinio
do psiquiatra? O que eu queria era me imaginar
naquela cena onde o carinha contava....3 Assim, o
imaginrio perverso de Mattoso (vinculado fco)
serve-se do conhecimento clnico para, em seguida,
pervert-lo. Nos escritos de Caprio, procura recortar
as aberraes em funo do seu desejo, desviando-
-se do tratamento e da cura associados a cada caso.
Encontra-se em consonncia, assim, com o que
defende Roland Barthes no seu livro autobiogrfco:
A Lei, a Doxa, a Cincia no querem compreender
que a perverso, simplesmente, faz feliz; ou, para
ser mais preciso, ela produz um mais: sou mais
sensvel, mais perceptivo, mais loquaz, mais diver-
tido, etc. e, nesse mais, vem alojar-se a diferena
(e, portanto, o texto da vida, a vida como texto).4
Na produo literria de Mattoso, a fxao aos
ps masculinos que, segundo a sua preferncia,
deveriam ser grandes, desleixados e malcheirosos
desvia-se em direo ao espao textual, duplican-
do, assim, a dimenso do prazer. Tal perspectiva
fca ainda mais clara no livro A planta da donzela.
Nesse volume, no s o texto clnico rasurado,
alterado ou reescrito por Mattoso, mas tambm o
1 G. Mattoso, Manual do podlatra amador, p. 162. 2 Idem, ibidem, p. 29.
3 Idem, ibidem, loc. cit.
4 R. Barthes, O bvio e o obtuso, p. 77.
152 RBMA 69 69 RBMA 153
texto literrio. Em Manual do podlatra amador e
em alguns contos que publicou, ele j havia mos-
trado o rastro que a podolatria tem deixado nas
letras brasileiras, no entanto, como constata, eram
apenas passagens, fagrantes, lampejos selecionados
e destacados em funo do seu recorte fetichista.
Em A planta da donzela (2005), o trabalho amplia-
-se. Mattoso se prope a reescrever totalmente
aquele que considera o grande monumento ao p,
o clssico da podolatria em sua concepo femi-
nil, elevada ao status de tese esttica.5 Esse livro
A pata da gazela (1870), de Jos de Alencar, um
romance cujo enredo desenvolve-se em torno da
singularidade do p e do desejo sexual que ele
desperta. No entanto, sobrepondo-se a isso, para
moldar ou domesticar tal contedo incmodo,
o escritor do Romantismo brasileiro apresenta
princpios morais baseados numa lgica mani-
questa. Conforme observa o autor paulista:
Trata-se mais duma fbula desenvolvida,
com alguma pitada de conto de fada, que
duma crnica de costumes. A ambientao
do enredo no cenrio urbano da corte im-
perial meramente circunstancial. O autor
pretende expor uma tese, e pra isso traa o
carter dos personagens da forma mais es-
tereotipada e simblica: cada um com sua
carga moral, avaliada pela cmoda balana
do maniquesmo. O mocinho & o bandi-
do, o feio & o bonito, o certo & o errado, o
bom & o mau, o vcio & a virtude, o casti-
go & o prmio. Nada do rigor cientfco,
dos fsiologismos & psicologismos que
caracterizariam mais tarde teses da fc-
o naturalista. A de Alencar era s uma
tese romntica, para efeitos edifcan-
tes. Uma fbula, embora para adultos.6
Glauco Mattoso conhece bem a literatura brasi-
leira. Em vrios dos seus textos est presente uma
interlocuo profcua com escritores de diferentes
perodos histricos, tais como o prprio Alencar,
Gregrio de Matos, lvares de Azevedo, Joaquim
Manoel de Macedo, Laurindo Rabelo, Lus Delf-
no, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Fernando
Gabeira, Joo Silvrio Trevisan, Roberto Piva, entre
tantos outros, que lhe so contemporneos ou no,
cujas obras so, por vezes, citadas ao p da letra
e, por outras, reescritas em funo do seu deleite
fetichista. Alguns textos da nossa tradio literria
foram recriados por Mattoso, mas no parece que,
principalmente no caso de A planta da donzela, o
autor tenha feito mero pastiche: alis, esse concei-
to talvez seja insufciente para se compreender a
singularidade da sua literatura. No mnimo, seria
uma questo que fcaria em segundo plano diante
do movimento de seleo, recorte e arquivamento
realizado em funo de um traado fetichista que
envolve acmulo e repetio em torno do objeto do
seu desejo (o p). A reescrita pode ser entendida,
aqui, como movimento de rastreamento e formao
de uma esttica sobre perverso ou, de outro modo,
de construo de uma plasticidade que foi moldada
por meio do desvio sexual; no como cpia, mas sim
como inveno e fundao de uma prtica textual.
O trip do tripdio outra obra importante para a
percepo do projeto esttico de Glauco Mattoso.
Em alguns contos desse livro, encontra-se uma
perspectiva crtica que coloca em questo os cli-
chs da literatura ertica, como nesta passagem:
Um soneto como aquele Higinico (143)
me veio na mesma noite em que, conver-
sando com Carlos Carneiro Lobo, a mo-
notonia dos contos erticos foi a pauta
central. Comentvamos que, no caso da
literatura gay, sempre houve pouca van-
guarda e muita retaguarda, e o magistral
fccionista de Histrias naturais e de Geo-
grafas humanas, que costumeiramente me
visitava, expunha ento sua prpria teoria
a respeito: a arquetpica estrutura narrativa
na base do comeo-meio-e-fm, contest-
vel ou no, fca reduzida, no homoerotis-
mo, mera sequncia ereo-penetrao-
-ejaculao, que, j pouco criativa por si
mesma, resulta ainda mais burocrtica por
estar presa a falsos clichs como o mito do
pau grande e o vcio do coito anal.7
O livro foi publicado em 2011, mas os contos foram
concebidos ao longo de uma produtiva interlocuo
com os sonetos que o autor escreveu a partir do
momento em que fcou totalmente cego. Alis, como
possvel observar na singularidade da denominao
heteronmica do autor (Glauco Mattoso = glaucoma),
a cegueira, cantada em verso e prosa, torna-se um
dado relevante para analisar a sua produo literria.
Trata-se da nica patologia assumida como tal no
projeto esttico do escritor, sendo um desafo cons-
tante para o seu percurso perverso. A despeito dessa
limitao, ou estimulada por ela, a estrutura perversa
do desejo de Mattoso vai transformar a prpria de-
fcincia em mecanismo de prazer, quando percebe
que a cegueira pode legitimar e intensifcar a sua
atuao masoquista. Nesse percurso, a defcincia vi-
sual e a palavra vo se suplementar no mesmo movi-
mento de duplicao e ampliao do gozo perverso.
Em funo da perda gradativa da viso, que o deixa-
r totalmente cego dos dois olhos, o escritor decide
registrar por meio de uma forma fxa, o soneto, todo
o roteiro sexual delineado por sua imaginao nas
noites de insnia. A memria ertica, que intu-
mescia o corpo e a palavra de Glauco Mattoso, era
ento convertida em sonetos. Tal estratgia, segundo
o autor, permitia que se lembrasse, ao acordar, do
itinerrio textual do seu gozo, mostrando assim
que, apesar da cegueira, seu teso continuava vivo e
esperneando.8 Dessa forma talvez conseguisse des-
pistar ou evitar a angstia. No conto O sexagenrio
sedentrio, registra assim o seu estado atual:
No me adaptei, mas hoje convivo com a
cegueira mais pacifcamente que nos anos
90, quando o impacto da desgraa me le-
vou a sonetar desesperadamente, como no
soneto Perptuo, em que me considero
prisioneiro e condenado a chupar o pau
do primeiro carcereiro (leia-se qualquer
visita) que aparecesse. Com o passar do
tempo, consegui me virar na vida prtica,
e o fantasma da solido deixou de ser um
pnico meramente material para se con-
centrar na carncia afetiva. J no era a
incapacidade que me assustava, e sim a
ociosidade, que a punheta talvez no fosse
bastante para preencher.
9
Os contos de Trip do tripdio vo ampliando as
formas da interlocuo intratextual com dife-
rentes personagens (reais e fctcios). Em todo o
livro, o autor explora o palimpsesto como forma
de enunciao: cada conto remete a um ou mais
sonetos que, por sua vez, retratam uma circuns-
tncia ertica que atualiza alguma cena j expe-
rimentada no passado pelo eu textual. A narra-
tiva sempre em primeira pessoa, intercalada,
muitas vezes, com discursos diretos, confsses
ou relatos do que foi observado por diferentes
interlocutores, alm de citaes de diferentes
gneros textuais. Nesse percurso, o autor executa,
como j vinha fazendo, um trabalho arqueol-
gico que visa resgatar textos esquecidos, renega-
dos ou disfarados por discursos civilizadores.
O excesso na perverso
Glauco Mattoso mapeou as variadas manifes-
taes podlatras na literatura brasileira. Nos
textos que selecionava e incorporava em seus
escritos, percebe-se o acrscimo ou acmulo de
diversos elementos perversos, tais como o sado-
5 G. Mattoso, Manual do podlatra amador, p. 81.
6 Idem, ibidem, pp. 81-82. 8 Idem, ibidem, p. 75.
7 Idem, ibidem, p. 70.
9 Idem, ibidem, p, 58.
154 RBMA 69 69 RBMA 155
masoquismo, a disodia, deformaes e toda sorte de inverses sexuais. Nesse
caso, quanto mais o desejo por ps estivesse associado a outros desvios ou
fetiches, maior seria a qualidade esttica do relato revisitado pelo eu textu-
al perverso. O trao fetichista encontrado por Mattoso nas obras dos autores
nacionais pode no ser percebido pelo leitor comum. O olhar do escritor de
Manual do podlatra amador recorta o texto original em um ponto insuspeito,
que passaria despercebido para um legente cujo desejo no fosse acionado por
um regime de leitura estimulada pela perverso ou, mais especifcamente, pela
podolatria. Quem se ateria, por exemplo, ao momento em que Augusto, per-
sonagem de A moreninha (1844), de Joaquim Manoel de Macedo, escondido
debaixo da cama, observa a perna e o p de uma donzela que se despe, seno
um leitor podlotra? Depois de selecionada, recortada e realada por Matto-
so, a fgura do p feminino descalo vem para o primeiro plano da narrativa:
Ele v a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que possvel
imaginar! Atravs da fnssima meia aparecia uma mistura de cor de
leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel rseo, um
pezinho que s se poderia medir a polegadas, apertado em um sapati-
nho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez... cem... mil bei-
jos; mas quem o pensaria? No foram beijos o que desejou o estudante
outorgado quele precioso objeto: veio-lhe ao pensamento o prazer que
sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que j no se podia suster...
j estava de boca aberta e para saltar... Porm, lembrando-se da extica
fgura em que se via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes
e, apertando-os com fora procurava iludir a sua imaginao.10
Com o destaque dado a esse fragmento, fca a sensao de que o livro de Mace-
do, e tantos outros elencados por Mattoso em seu Manual do podlatra amador,
pode ser experimentado segundo um regime de leitura perversa. preciso aten-
tar-se para o traado da leitura e da escritura proposto por Mattoso, o qual tem a
ver com a ateno ao detalhe, ao rudo, ao desvio, que um fetichista, ou psiquia-
tra castrador, sabem identifcar to bem. Em A planta da donzela, o autor avisa:
Tratando-se duma novela fetichista mais especifcamente retifsta
e maniquesta, s mesmo um podlatra assumido ou um psiquiatra
castrador estaria apto a parafrase-la, seja para desvirtu-la duma vez,
seja para enquadr-la nos padres da normalidade. Eu me habilito
no primeiro caso, ou seja, no papel do manaco radical, para quem o
revisionismo literrio est a servio do vcio.11
Por meio do fetiche do eu textual, cria-se uma profcua interlocuo com a lite-
ratura brasileira atual e com autores da nossa tradio literria que lhe antece-
Ao se voltar para obras de diferentes autores,
em contexto e temporalidades diversas, Matto-
so mostra o excesso no texto original: detalhes,
resduos, sobras que vo se amontoando em sua
biblioteca, construda segundo um corte perverso.
O escritor de A planta da donzela direciona o leitor
para detalhes que normalmente no seriam nota-
dos, traz tona autores ou obras esquecidos, alm
de remeter a outros desconhecidos, constituindo
assim uma comunidade marcada pela perverso.
No traado executado por Mattoso, rompe-se
a separao estanque dos estilos de poca para
ganho da linhagem de escritores extemporneos,
entre os quais ele se encontra, que aproximam o
lado obscuro dos nossos desejos cifra da letra.
Em consonncia com Barthes (O bvio e o obtuso),
Derrida (Gramatologia) e com a psicanlise laca-
niana, a letra vista aqui tanto como materialidade
ligada s mais profundas experincias humanas,
quanto como encruzilhada de smbolos. Segundo
a proposio de Barthes, ela seria o estado admi-
co da linguagem, antes do erro, antes do discurso,
anterior ao sintagma. Nesse sentido, pode ainda ser
vinculada noo de contemporaneidade proposta
por Agamben, para quem a via de acesso ao
presente tem necessariamente a forma de uma
arqueologia que no regride, no entanto, a um
passado remoto, mas a tudo aquilo que no pre-
sente no podemos em nenhum caso viver e,
restando no vivido, incessantemente relanada
para a origem, sem jamais poder alcan-la.14
Enfm, quando Mattoso solicita a escritura, de
lavra prpria e de outrem, como motivao mas-
turbatria, um certo fetiche pela letra vai suple-
mentando ou sobredeterminando o fetiche por
p. Tanto nos ensaios quanto na poesia e na fc-
o do autor, parece que toda perverso s existe
em nome da letra; ou, mais especifcamente, no
plano literrio s seria possvel uma esttica da
perverso sob a condio de um fetiche da letra.
deram. Ao se observar a biblioteca de obras nacio-
nais constituda pelo escritor de Trip do tripdio,
percebe-se uma dupla operao, ambas derivadas
da escavao da linguagem. A primeira operao
requer selecionar, acumular e fxar aes fetichistas
que, ao mesmo tempo, tambm apontam para a
fgura de um leitor voraz. Tal fgura pode tanto ser
associada a uma metodologia de leitura quanto a
um processo de produo criativa. Esse eu textual,
em sua leitura voraz, como tambm em sua escrita,
enuncia e conduz sua criao, selecionando, reu-
nindo, fxando, catalogando, arquivando a nossa
literatura segundo um processo que denomina
cropofagia. No Manual do podlatra amador e,
antes, no controvertido Jornal Dobrabil, Mattoso
ressalta a direta relao desse termo com a noo
de antropofagia de Oswald de Andrade. Ao fazer
apologia da merda em prosa & verso,12 o autor
procura, em suas palavras, fazer uma reciclagem
ou recuperao daquilo que j foi consumido e
assimilado, ou seja, uma stira, uma pardia, um
plgio descarado ou uma citao apcrifa.13
O segundo movimento operatrio envolve amplia-
o, gesto de revisitar e alargar pela reescrita os tex-
tos que tocam o desejo do escritor. Nesse processo,
um detalhe do texto do outro recortado, remon-
tado e aumentado segundo um traado que refaz a
historiografa pelo avesso (seu olhar quase sempre se
direciona para as partes baixas do corpo, e no para
o alto), cobrindo as brechas deixadas pelos historia-
dores da literatura nacional. Rastreia, atualiza e
revitaliza textos de autores do nosso passado lite-
rrio tendo em vista a constituio de uma ertica
podlatra brasileira nas letras. Tanto nos textos de
sua autoria, como nas antologias que ajudou a orga-
nizar Antologia sadomasoquista da literatura brasi-
leira (lanada em 2008) e Aos ps das letras: antologia
podlatra da literatura brasileira (lanada em 2011)
, pode-se perceber o dilogo com a nossa tradio
literria por meio do acmulo e da ampliao.
Quem se ateria,
por exemplo, ao
momento em
que Augusto,
personagem de
A moreninha
(1844), de
Joaquim Manoel
de Macedo,
escondido
debaixo da cama,
observa a perna
e o p de uma
donzela que se
despe, seno um
leitor podlotra?
10 J. M. Macedo, A moreninha, apud G. Mattoso, Manual do podlatra amador, p. 69.
11 G. Mattoso, A planta da donzela, p. 9.
12 Idem, Manual do podlatra amador, p. 143.
13 Idem, ibidem, p. 144.
14 G. Agamben, O que contemporneo?, p. 70.
156 RBMA 69
Bibliografa
Agamben, Giorgio. O que contemporneo? E outros ensaios. Chapec: Argos, 2009.
Barthes, Roland. O bvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
. O prazer do texto. So Paulo: Perspectiva, 1999.
. Roland Barthes por Roland Barthes. So Paulo: Estao Liberdade, 2003.
. Sade, Fourier, Loyola. So Paulo: Martins Fontes, 2005.
Caprio, Frank. Aberraes do comportamento sexual. So Paulo: Ibrasa, 1965.
Derrida, Jacques. Gramatologia. 2 ed. So Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
Krafft-ebing, Richard von. Psychopathia sexualis: as histrias de caso. So Paulo: Martins Fontes, 2000.
mattoso, Glauco. O calvrio dos carecas: histria do trote estudantil. So Paulo: emw Editores, 1985.
. O que tortura. So Paulo: Brasiliense, 1986.
. Jornal Dobrabil. 2 ed. So Paulo: Iluminuras, 2001.
. A planta da donzela. Rio de Janeiro: Lamparina, 2005.
. Manual do podlatra amador: aventuras e leituras de um tarado por ps.
So Paulo: All Books, 2006.
. Poesia digesta. So Paulo: Landy Editora, 2008.
. Contos hediondos. So Paulo: Editora Demnio Negro, 2009.
. O trip do tripdio. So Paulo: Tordesilhas, 2011.
. Sonetodos: poesia completa de Glauco Mattoso. Disponvel em: <http://sonetodos.sites.
uol.com.br>. Acesso em: 18/03/2012.
Imagens: Juca Lopes
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Nos anos 1920, uma srie de distribuidoras de filmes se instalou no centro de So
Paulo. Elas vinham atradas pela facilidade logstica graas proximidade com as estaes da Luz
e Sorocabana. No incio dos anos 1950, a regio passou a ser denominada pelos jornais da poca
como Boca do Lixo, em funo do grande nmero de figuras marginais que frequentavam o
local, como prostitutas, ladres e traficantes.
1. Prostitutas na rua do Triunfo. 2. Cavalo puxa carroa na rua do Triunfo. 3. Carrocinhas transportam latas de flme
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J a partir do final dos anos 1960, a produo
cinematogrfica nacional voltada para as classes
populares intensificou-se diante da represso poltica.
Grande parte dessa produo era concentrada na
Boca do Lixo, principalmente na rua do Triunfo, no
bairro da Luz, em So Paulo. O local passou a atrair
tcnicos, diretores, produtores e atores, que frequen-
tavam principalmente os bares Soberano e Ferreira,
onde idealizavam projetos cinematogrficos.
Com esse agrupamento, aliado criao pelo
governo militar do Instituto Nacional de Cinema
(INC) em 1966 e legislao que associava as distri-
buidoras estrangeiras produo nacional permi-
tindo que parte do imposto devido sobre a remessa
de lucros fosse investida nos filmes , o cinema
foi ganhando um carter popular e levou muitos
espectadores s salas de projeo.
A diversidade na produo cinematogr-
fica da Boca abrangia diversos gneros de
filmes, entre eles a pornochanchada, gne-
ro por excelncia associado regio.
A partir da segunda metade dos anos 1970, sua
produo passa a se concentrar cada vez mais nos
filmes erticos, que com o passar dos anos foram
se tornando mais apelativos, alcanando grande
sucesso de pblico.
4. Caio Scheiby, Paulo Emlio Sales Gomes e Carlos Ro-
berto de Souza, no bar Soberano em 1977
5. Ferreira, Cida, Miro Reis e Z do Paiol, no bar do
Ferreira
6. Bar Soberano
7. Bar Soberano
8. Ozualdo R. Candeias e Anselmo Duarte no bar
Soberano, em 1977
8
7
6
5
4
Em 1982, Coisas
erticas, de Raffae-
le Rossi e Laente
Calicchio, foi o
primeiro filme
de sexo explcito
brasileiro, o que
acabou estimu-
lando a produo
de obras de ps-
sima qualidade.
Paralelamente ao
aumento da in-
flao, o advento
do home video
e o desinteresse
do Estado leva-
ram o mercado
cinematogrfico
a se enfraquecer,
contribuindo para
a decadncia da
produo na rua
do Triunfo.
9. Claudete Joubert e Tony
Vieira durante festa na Boca
10. Carlos Reichenbach e
Rogrio Sganzerla
11. Jairo Ferreira, Rubens
Eleutrio, Rubens Ewald Filho
no bar Soberano
12. Antnio Tom, Ody
Fraga, John Doo e Oswaldo de
Oliveira (Carcaa)
13. Silvio de Abreu, Moreira e
Walter Portela
13
12
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9
10
14
20
19
18
17
16
21
15
14. Jean Garret, Oswaldo de Oliveira (Carcaa) e
Carlos Reichenbach
15. Jairo Ferreira, Carlos Coimbra e Jlio Calasso
16. Valria Vidal e Oswaldo de Oliveira (Carcaa)
17. Placa da rua do Triunfo com grafa antiga
18. Bibi Vogel e Elisabeth Hartmann
19. David Cardoso e
Claudete Joubert durante
festa na Boca
20. Ozualdo R. Candeias
flmando Bocadolixocinema
ou Festa na Boca (1976)
21. Atriz se exibe para
diretores e tcnicos
22 23
22. Morador de rua na regio da Boca do Lixo
23. Frequentadores da rua do Triunfo
OZUALDO R. CANDEIAS
Precursor do cinema marginal e um dos expoentes
do cinema autoral no Brasil, Ozualdo Ribeiro Candeias
foi um dos cineastas mais criativos que o pas revelou.
Chofer de caminho, Candeias realizou diversas viagens
pelo interior do estado de So Paulo e, no incio dos
anos 1950, comprou uma cmera 16 mm Keystone para
registr-las. Com ela realizou filma-
gens caseiras, o curta A penso e,
em 1955, sua primeira obra acabada,
o documentrio Tamba, a cidade
dos milagres, sobre os romeiros
que visitavam o padre Donizetti,
ento considerado milagroso.
Em seguida, Candeias aprimorou
seu conhecimento tcnico e teri-
co frequentando o Seminrio de
Cinema do Museu de Arte Moderna
de So Paulo, entre 1955 e 1957,
quando passou a dirigir docu-
mentrios institucionais e cinerre-
portagens, e a trabalhar na equipe
tcnica de algumas produes.
Essas experincias possibilitaram ao
diretor seguir para uma prtica mais
formal ao realizar diversos filmes
institucionais, entre eles, Polcia
feminina e Marcha para oeste.
Em 1967, dirigiu seu primeiro
longa, A margem, que conquistou
bom resultado de pblico e foi
considerado pelo Instituto Nacional
de Cinema o melhor filme daquele
ano. Com a obra pronta, dirigiu-
-se Boca do Lixo para tratar da
distribuio e, assim, aos poucos
comeou a frequentar a regio.
Presente em todos momen-
tos da Boca, o cineasta Ozual-
do Candeias, em paralelo sua
produo cinematogrfica com-
posta por 35 filmes e doze telefilmes, entre os anos
1960 e 2000 registrou fotograficamente o dia a dia
da Boca do Lixo com suas cmeras Exakta 50 mm
e Nikon, revelando, de um modo prximo e espon-
tneo, o cotidiano do cinema paulista da poca.
OZUALDO R. CANDEIAS
OZUALDO
OZUALDO R. CANDEIAS
Sua primeira exposio, A boca, realizada com essas
imagens, ocorreu em 1984, na Imprensa Oficial. Em 1989,
marcando seus vinte anos de fotografia, realizou no Museu
da Imagem e do Som em So Paulo outra exposio,
Uma rua chamada Triumpho, projeto que posteriormente
ganhou forma de publicao. Em 2001, editou um livro
homnimo com os personagens
da Boca em fotos tiradas na rua. O
conjunto dos trabalhos prope contar
a histria e a efervescncia daquele
lugar que foi, em outros tempos,
responsvel pela produo de filmes
de grande importncia para a histria
do cinema nacional e que, hoje,
to desconhecido e pouco estudado.
O reconhecimento da grande
contribuio cultural de seus filmes
se revelar tambm nos trabalhos
produzidos pela Embrafilme, como
Aopo, ou as rosas da estrada
(1981), Leopardo de Bronze no
Festival de Cinema de Locarno;
Manelo, o caador de orelhas
(1982), premiado pela Secretaria de
Cultura do Estado de So Paulo;
As bellas da Billings (1987) e O
vigilante (1992), premiados pela
Fundao Cultural de Curitiba.
A trajetria de Candeias, falecido
em 2007 aos 89 anos, est ligada
histria desse polo de produo
cinematogrfica que chegou a ser
responsvel por cerca de cinquen-
ta por cento da produo dos
filmes nacionais nos anos 1970.
Foram mais de quatro dcadas de
fotografias do cotidiano da vida
e do trabalho na Boca do Lixo.
Andar pelas ruas do Triunfo, Gusmes e Vitria, hoje, um verdadeiro exerccio
de imaginao, sobretudo tendo em mos Uma rua chamada Triumpho, livro que
Candeias editou em 2001 com a colaborao de sua flha Simone R. Candeias e do
pesquisador Plcido de Campos Jr.. A publicao repleta de textos e fotografas,
muitas delas colagens feitas pelo prprio Candeias, o que possibilitava a insero
de mais imagens nas pginas, deixando-as dinmicas. So fotos mostrando que os
tempos ureos do cinema da Boca do Lixo em So Paulo de fato existiram.
Na rua do Triunfo n
o
155 estava o mtico bar Soberano, onde a grande maioria das
produes eram gestadas; hoje uma loja de informtica. interessante observar a
arquitetura daquela fachada, preservada, mas sem a vitalidade de outros tempos.
Ainda existem os prdios histricos, um tanto quanto malconservados, e um movi-
mento considervel de carrocinhas puxadas por pessoas, hoje transportando sucatas
variadas antes, flmes em 16 e 35 mm.
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BOCA DO LIXO NO SCULO XXI
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Nos idos de 1960 e 1970, as ruas fervilhavam com gente de todo o tipo,
desejosa por fazer cinema fosse como produtor, roteirista, diretor, ator,
fgurante, tcnico. Ao mesmo tempo, fcavam por ali prostitutas, travestis,
trafcantes e usurios de drogas, retirantes, engraxates, intelectuais, jorna-
listas, estudantes e policiais geralmente montados em seus cavalos altos
convivendo pacifcamente. No se pode dizer o mesmo de hoje.
DO LIXO
DO LIXO
CINEMA
EM
CLOSE-
-UP
Em 1975, Minami Keizi fundou, em So
Paulo, a revista Cinema em close-up, que
desde seus primeiros nmeros obteve sucesso
no meio cinematogrfico e posteriormente se
estabeleceu como uma das principais pu-
blicaes de cinema da poca. Seu objetivo
era conquistar espao no meio e alimentar o
pblico com informaes sobre o cinema brasi-
leiro, sobretudo aquele feito na Boca do Lixo.
No ano de 1976, a editora da revista mu-
dou-se do bairro do Caxingui para a rua do
Triunfo, mantendo uma intensa proximidade
com o centro de produo cinematogrfica
ali instalado. Entre seus colaboradores, fi-
guravam nomes atuantes na Boca do Lixo,
como Ozualdo Candeias, Luis Castellini,
Fauzi Mansur, Jean Garret e Tony Vieira. Por
estarem no centro de produo dos filmes,
Minami e sua equipe colhiam informaes
diretamente da fonte, 24 horas por dia.
Em suas publicaes, estavam fotos de
atrizes da Boca, notcias sobre as novas
produes, artigos crticos e espao para
cartas de leitores e tcnicos do meio cinema-
togrfico. A revista obteve sucesso comer-
cial e alcanou vendagem mdia de trinta
mil exemplares, o que contribuiu para criar
uma identidade da Boca do Lixo. A Cinema
em close-up pode ser considerada um dos
smbolos do levante do cinema nacional.
Minami Keizi
Minami Keizi Minami Keizi
Minami
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Em 1979, com o fim do AI-5, o incio da abertura poltica, a crise econmica
e o esgotamento das comdias erticas ligeiras produzidas na Boca, onde j
no era mais possvel projetar carreiras que por vezes comeavam nas
funes menos prestigiadas da tcnica, ocorreu o fechamento da revista.
Hoje, Cinema em close-up pea de colecionador e raramente encontrada
em sebos e afins.
Eugnio Puppo
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CINEMA EM CLOSE-UP
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CINEMA
Nota Biogrfica: Eugnio Puppo cineasta, scio fundador da Heco Produes e realizou diversas
mostras de cinema entre elas Boca do Lixo cinema, Ozualdo R. Candeias, Jos Mojica Marins. Produ-
ziu e dirigiu os longas documentais Bocadolixocinema e Ozualdo Candeias e o cinema, entre outros.
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Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou?
Apartamento? No. Carro? Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele no conseguia pagar nem as pr-
prias contas. Mas pagava a dos filhos. Roupas? S um chinelo velho, mas meu p maior. Sem
testamento, sem herana, sem nada? As peas. As peas de teatro? De quem so as peas de
teatro? Meu pai era escritor. Escritor de teatro. Teatro? Teatro d dinheiro. Tem gente que escre-
ve pea pra ganhar dinheiro. No, meu pai no. No ganhou muito dinheiro com teatro. O que
ganhou, gastou. Deu dinheiro pra muita gente. Meu pai no era um bom administrador. Era
um maldito, diziam, um marginal, mas no era
bandido. Por que ele era maldito, afinal? Ser que no pensava nos filhos? Por que no
escreveu pea pra ganhar dinheiro? Ningum tem direito de pedir a um artista que no seja sub-
versivo. Meu pai escrevia sobre puta e cigano sem dente. Puta, cigano sem dente e cafeto.
Puta, cigano sem dente, cafeto, presidirios, desempregados e fudidos. Puta e cigano sem
dente? Puta, cigano sem dente e cafeto chato, porra! Puta, cigano sem dente e presidirios
no dava dinheiro. Puta, cigano sem dente e desempregados no tinha patrocnio. Mas eu
queria tnis americano, eu queria camisa Lacoste,
camisa Hang Ten.
Meu pai tinha de ganhar dinheiro. Por que ele insistia em escrever peas sobre puta, cigano sem
dente, cafeto e presidirios? Ele insistia. Puta, cigano sem dente, cafeto, presidirios,
desempregados e fudidos. E o ator e Jesus Cristo e nada de comdia comercial. Mas eu queria
o meu All Star, eu queria ter todos os discos dos Beatles. Pai, me d dinheiro pra comprar
uma guitarra! E eu tive, eu tive a tal guitarra, eu comprei todos os discos dos Beatles com o
dinheiro dele (depois tive de comprar tudo de novo em CD com o meu dinheiro e agora d pra
baixar de graa na internet). Cala boca fina, camisa Hang Ten. Onde ele arrumava dinheiro?
Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tnis All
Star? Ele achava que isso era lixo americano. Ele achava
que essa merda importada s servia pra aumentar a nossa alienao. Meu pai era generoso. Ele
no ia deixar de me dar uma coisa que eu queria s porque ele achava que o que eu queria era
imposto pela sociedade de consumo. Ele tentava me orientar, mas respeitava minha opinio de
adolescente alienado. Onde ele arrumava dinheiro?
Era poca de ditadura. Escrever sobre puta, cigano sem dente, cafeto e presidirios, incomoda-
va os poderosos. Porra, ainda mais essa! J escreve sobre coisa que no d dinheiro, mas alm
de no dar dinheiro, ainda proibido? Pai, me d dinheiro pra comprar
disco do Bob Dylan!
Meu pai fez novela, fez Beto Rockfeller. Mas Beto Rockfeller no conta, Beto Rockfeller
era a novela, tinha a cara dele, era revolucionria. Ele fazia o Vitrio, o melhor amigo
do Beto. Ele ganhou um dinheiro, me comprou um tnis, uma guitarra, um... Mas a nove-
Meu pai morreu
Dia 19 de novembro aniversrio da morte do meu pai (Plnio Marcos); escrevi este texto no dia
em que ele morreu: 19 de novembro de 1999.
Walderez de Barros, Leo Lama, Plnio Marcos, Ana Carmelita e Ricardo Barros
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la era na Tupi. A Tupi faliu. Meu pai foi fazer novela na Rede Globo: Bandeira 2. Mas a
Globo no Rio, o Rio tem praia, ele cabulava as gravaes e ia pra praia: Novela chato
pra caralho, porra! O direito da gente coar o saco sagrado, ele dizia. Ele ia pra praia e
l ficava, indignado, porque naquela poca a Globo no punha negros nas novelas e quando
punha era nos papis de escravo ou mordomo. Meu pai escreveu no jornal A ltima Hora, do
Samuel Wainer, onde ele trabalhava, que a Globo botou a Snia Braga dois meses tomando
sol pra ficar escura, em vez de chamar uma mulata pra fazer Gabriela. A Globo no gostou.
Os poderosos da Rede Globo no gostaram. Fizeram ameaas, juraram de morte. Enfim, a
Globo no dava mais. Quando ele tava por l, ele bem que quis escrever novela. Afinal, eu
queria dinheiro pra comprar tnis, disco, guitarra. Mas novela de puta, cafeto e cigano sem
dente? No, novela de puta, cafeto e cigano sem dente no d. Se fosse cigano com dente,
musculoso e mau ator, a dava. Agora, cigano sem dente, pobre e fudido, no d. Ento no
d. Na televiso brasileira, artista estrangeiro morto trabalha mais do que artista brasileiro
vivo. Tudo bem, no podia fazer pea de puta porque a
ditadura no gostava, no podia novela de cigano po-
bre, fudido e sem dente porque a tv no queria. Ento o
qu que podia? No podia nem chamar a Rede Globo de racista, nem nada. A sinopse que ele
fez pra uma novela, quando finalmente a Globo chamou ele, era de uma tribo de ciganos que
estupravam as filhas dos empresrios e... bem, no aprovaram. E as portas iam se fechando. E
a ditadura ali, descendo o cacete. E eu queria o meu tnis All Star! Pai, porra, pai, eu quero
dinheiro pra comprar time de boto! Mas enquanto os poderosos iam dizendo No! No!
No!, ele ia ganhando o respeito dos humildes de corao, um povo que berra da geral sem
nunca influir no resultado, um povo fudido, os marginais, as putas, os ciganos sem dente,
os presidirios, um povo que no aparecia na TV. Pobre na Rede Globo almoa e janta todo
dia. Pobre na Rede Globo tem dente, favela na Rede Globo no tem rato. Esse povo no era
o povo dele. O povo dele era, entre outros, os sambistas, no esses de agora, de terno Armani,
cercados de loiras recauchutadas, mas os sambistas das escolas de samba de So Paulo. Os
sambistas marginalizados, os que nunca gravaram CD. O Zeca da Casa Verde, o Talism, o
Jangada, o Toniquinho Batuqueiro, o Geraldo Filme, enfim, os que morrem na merda. Si-
lncio, o sambista est dormindo, ele foi, mas foi sor-
rindo, a notcia chegou quando anoiteceu...
Ento a soluo era fazer show com os sambistas. Meu pai contava histrias e os sambistas
cantavam suas msicas. Mas os sambistas eram crioulos. Negros? Negro no podia. Em plena
ditadura, Plnio Marcos e a negrada? Que papo esse? Poder, podia, mas ningum queria
ver. A burguesia no me quer, ele dizia. No podia pea de puta e novela de cigano
sem dente pobre e fudido, no podia dizer que a Globo era racista e ningum queria ver show
com a negrada. Ento o qu que podia? Pai, me d dinheiro pra comprar figurinha do
lbum Brasil Novo!
A ditadura, quando eu tinha 7 anos, tava em todo lugar, em cada esquina, no meio de cada casal
que fazia amor com medo, nos pores do DOI-CODI e nas torturas atrozes que muitos sofriam.
E eu l: Pai, me leva na Expoex, pai, me leva na Expoex! A Expoex a exposio do exrcito!
Eu quero ver os soldados, pai! Eu quero ver os tanques!. E ele me levava. Seno eu chorava.
Eu chorava se eu fosse censurado e no pudesse ver a Expoex.
Quando eu tinha uns 12, 13 anos, l estava o nibus da escola pronto pra partir pra Porto Seguro
com todos os meus amiguinhos dentro e os pais, do lado de fora, dando tchauzinho. E um amigui-
nho meu perguntou: Quem seu pai?. Eu no tive dvida: Meu pai aquele!. E o meu amigui-
nho: Aquele de terno e gravata? Aquele que t conversando com o meu pai?. E eu: , aquele.
O meu amiguinho gritou: Pai, esse a o pai do Leo!. E a professora ouviu. No, meu pai no era
aquele de terno e gravata. Meu pai era outro. Era o que todo mundo tava chamando de mendigo.
Meu pai era aquele de macaco e chinelo! Gordo de macaco e chinelo! O pai do Leo mendigo,
o pai do Leo mendigo! Afinal, quem trabalha tem de usar terno e gravata. Naquela poca, um
moleque de 12, 13 anos, era um tapado. Ou isso era caracterstica minha? Pai, por que voc no
trabalha? Pai, por que voc dorme at meio-dia? Pai, por que o pai do Paulinho tem carro e voc
no? Por que voc chega de madrugada em casa? Pai, por que voc anda de macaco e chinelo?
Pai, me d dinheiro pra comprar... E o meu pai me dava dinheiro. Eu estudava em escola de bur-
gus. Eu estudei nas melhores escolas. E olha que o meu pai odiava escola. A cultura
nas mos dos poderosos constrange mais do que as armas;
por isso, a arte e o ensino oficiais so sempre sufocantes, ele dizia. Ele saiu da escola na quarta
srie do primrio. Ele era canhoto. Na escola, as professoras o obrigavam a escrever com a mo
direita. Ele fugiu da escola, ele sempre foi da esquerda. Era chamado de analfabeto. Com 21 anos
escreveu Barrela!. Me chamavam de analfabeto, como se isso fosse privilgio meu, neste pas.
Meu av queria que ele trabalhasse no Banco do Brasil, mas ele queria subir num banco no meio
da praa e fazer nmeros de palhao. A famlia chegou at a pensar que ele fosse dbil mental. Meu
pai foi pro circo. Ele amava o circo. Foi ser palhao de circo. Era o palhao Frajola. A escola dele
era o circo, a minha era escola de burgus. Mas como ele pagava a minha escola?
Foi preso, foi solto, ameaado, escrevia em jornais e revistas, quase todos que existiam. Foi des-
pedido de todos. A censura no queria meu pai escrevendo em
lugar nenhum. O que fazer? Sair do pas? Ele no falava direito nem o portugus. O
que fazer? Pai, me d dinheiro pra comprar uma cala Soft Machine!
Uma vez o meu pai tava com uma dvida muito grande, tava com dificuldade de pagar as pres-
taes de um apartamento que ele comprou pra gente. Da um belo dia a Ford ligou pra ele,
convidando pra fazer um comercial. Era uma puta grana, dava pra pagar as dvidas e ficar bem
tranquilo por uns tempos. Meu pai no fazia comercial.
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Foi vender livro na rua. Nas portas dos teatros, nas portas das faculdades, nos bares. Foi vender
livro na porta de teatros onde se apresentavam artistas piores do que ele. Ele mesmo editava os
livros, ele mesmo ia vender. E podia? No. No podia. Vrias vezes ele foi expulso pelo rapa
como um camel comum. E ele chorava? Perseguido, o caralho! Eu no sou nenhum mosca-
-morta. Eu fiz por merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de
governador, quebrei vidraa de banco. Foi uma farra. No teve mau tempo. Tinha. Tinha mau
tempo, mas ele no reclamava, eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o
cara dizer que a vida tava difcil, ou que era foda. No. Ele s reclamava das injustias. Ele ber-
rava contra as injustias, os preconceitos, a apatia. Meu pai o Plnio Marcos, porra! Bela merda,
tem gente que nunca ouviu falar. Pra muitos era s um fudido que no deu certo na vida, andando
feito mendigo pelo centro da cidade. J morreu. No era melhor do que ningum. (No?)
Tudo se consegue com esforo; no se chega a lugar ne-
nhum sem caminhar.
Com 15 anos eu quis sair da escola. Ele disse: Sai logo dessa merda, eu te sustento at voc en-
contrar sua vocao! Eu sa, eu sa daquela merda na metade do primeiro colegial. Acho que qual-
quer ser humano com o mnimo de sensibilidade sabe: o ensino do jeito que faz mal pra sade.
Eu devia ter uns 17 anos, era de madrugada. Eu morava com ele. Eu tava na mesa da sala com o
violo, triste, querendo encontrar a minha vocao, sem saber o que dizer, inibido, pensando em
todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Meu pai levantou pra tomar gua, me viu
ali, no disse nada. Foi at o escritrio, voltou com um livro e leu um poema pra mim. O corvo
do Edgar Allan Poe. No disse nada, s leu a poesia. No foi o contedo, foi o tom da voz dele,
aquela voz doce que ele tinha. Ele declamava e eu ouvia como se ele me pegasse no colo. Foi
dormir e me deixou ali, ouvindo o corvo dizer: para sempre!. Eu virei escritor, com 21 anos
escrevi Dores de amores. Meu pai era um incentivador, idolatrava os filhos. Queria ser mergu-
lhador s porque o Kiko, meu irmo, . A Aninha, minha irm, era tudo pra ele. Eu fiz vrios
shows com ele, pelas faculdades, pelos teatros, pelos bares. Ele contava histrias
e eu tocava violo. Meu pai era generoso, violento, essen-
cial, amava, amava tanto as pessoas que chegava mesmo
a odi-las. Lutava, berrava e me acordava. Meu pai no me deixou apartamento, carro,
dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me serve. Eu tive e tenho de ganhar o meu prprio dinhei-
ro. At hoje, muito pouca gente quer montar as suas peas e muito pouca gente quer assistir. Meu
pai j no precisa mais vender livro na rua, pra quem no quer comprar, ou pra quem compra s
pra ajudar. O que eu mais queria que ele me ouvisse agora: Pai, voc no me deixou nada
que se possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo. Me deixou a sua
indignao, um pouco do seu temperamento, a lembrana de ver voc acordando todo dia com
uma puta fora de vontade, com uma puta vontade de viver, sempre alegre,
sempre fazendo piada das prprias desgraas, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem
nunca acumular porra nenhuma. E se ele me escutasse ele diria, com um sorriso malandro sem
dentes, segurando as lgrimas: , Leo Lama!. Meu pai no sabia receber elogios. Mas se ele me
ouvisse agora, eu diria:
Pai, eu preciso te contar, no seu velrio foi muita gente, pai. No seu velrio, estiveram os
maiores artistas do pas. Mdicos, polticos, advogados, empresrios, fs, gente do povo, crian-
as e os sambistas. Os sambistas cantaram sambas em sua homenagem, pai. Suas mulheres, seus
amigos, seus inimigos, todos ns, todos ns te aplaudimos quando o seu caixo foi colocado
em cima do carro de bombeiro. Eu tava segurando uma aba, o Kiko outra. Voc foi cremado,
pai. Seus amigos fizeram discursos emocionados, disseram: Plnio Marcos, um
grito de liberdade!. Ns jogamos suas cinzas no mar de Santos. Na ponta da praia,
onde voc passou sua infncia. O Jabaquara, seu time, ficou na porta do pequeno estdio, unifor-
mizado, com a mo no corao, vendo o cortejo passar. O povo na areia batia no surdo e entoava
um canto mudo no crepsculo santista, e ns no barco deixvamos voc
escorrer pelos nossos dedos como se voc nem tivesse
existido. Eu ainda quis te achar no meio do mar, mas de repente j era s o mar. E voc
foi, como todo mundo vai.
isso a, pai: tanta gente te amava. Voc sabia? Acho que ningum te amou tanto como a mi-
nha me. O amor dela ecoa em mim.
Mas, e eu, pai? E eu? Ser que eu vou ter a mesma fibra que voc? Eu no gosto de viver como
voc gostava. Eu no tenho a sua coragem. A poesia, a magia, a arte, as grandes sabedorias
no podem habitar coraes medrosos. Eu acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu j
sou um vendido. Eu s queria ser essencial, essencial como voc. difcil. Eu reclamo. A vida
t uma bosta! T difcil de encontrar pessoas essenciais, pai. As pessoas s falam e pensam no
que suprfluo. Eu no tenho assunto. Eu me sinto sozinho. Eu no sei sobre o que escrever. O
mundo t se destruindo, tem muita gente fudida, tem muitas festas e muita fome. Que indecn-
cia, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu sei que voc no tem saco pra
choramingo, pai, mas me deixa desabafar, pai, s hoje, me deixa te falar sobre o sonho desta
gente, voc sabe, esta gente, os homens-pregos, fixos no mesmo lugar. Esta gente
quer ter carro, pai, casa com piscina, esta gente quer ser
rica e famosa, esta gente quer ser musculosa e quer ter bunda, esta gente diz que acre-
dita em Deus e fode ele, esta gente no quer ser essencial, pai, esta gente... esta a minha gente,
pai. s vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com esta gente. Me perdoa.
Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artstico que a gente inventou juntos:
Leo Lama
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Revista da Biblioteca Mrio de Andrade
Volume 69, novembro de 2013
DIRETOR
Luiz Armando Bagolin
EDITORA-CHEFE
Tarcila Lucena
PROJETO GRFICO
Gabriela Lissa Sakajiri
Juvenal Lopes Filho
EDIO DE TEXTO
Diana Szylit
Tarcila Lucena
REVISO
Ariadne Martins
Francisco Alves da Silva
DIAGRAMAO
Gabriela Lissa Sakajiri
Juvenal Lopes Filho
Karen Kawagoe
DIGITALIZAO E TRATAMENTO DE
IMAGEM
Gabriela Lissa Sakajiri
Joo Luiz Musa
Juvenal Lopes Filho
Tiago Cheregati
Colaboraram com esta edio:
Agns Giard, Alcir Pcora, Anglica Moura, Anne
Caroline Pereira Mariano, Beatriz Cristiane de
Arajo, Carlos Pittella-Leite, Ceclia Scharlach,
Clara Carnicero de Castro, Claudio Willer,
Edlcio Lavandosk, Edmir Mssio, Eduardo
Dias, Eliane Robert Moraes, Eugnio Puppo,
Fabrcio Reiner de Andrade, Fernando Lemos,
Flvia de Mesquita, Helosa Helena de Amorim
Dip, Jernimo Pizarro, Joo Adolfo Hansen,
Jurandy Valena, Leo Lama, Luiz Armando
Bagolin, Maira Mesquita, Marcatti, Marcelo
Dias de Carvalho, Marco Antonio Mori Lupio
Junior, Mariana de Mesquita, Natan Tiago Batista
Serzedello, Neusa Ferrari, Regina Campos, Renato
Cardilli, Ricardo Ferreira da Silva, Rita de Cssia
Guglielmi Rua, Ronnie Cardoso, Samantha
Moreira, Silas Rocha, Toninho Mendes.
Agradecimentos:
Ana Beatriz Freire, Carlos Sodr, Ceclia
Scharlach, Cristiano Diniz, Daniel Fuentes,
Erika Hamassaki, Grecia Silva, Henrique Lukas,
Ivan Junqueira, Jurandy Valena, Lucia Rif,
Maria Amlia Mello, Nanci da Silva Cheregati,
Samantha Moreira
Agncia Rif, Ateli Aberto, Biblioteca Nacional
de Portugal, Cosac Naify, cedae-Unicamp,
Editora Jos Olympio, Instituto Hilda Hilst
Agradecimento especial: Regina Campos
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Esta publicao de nmero 69 foi composta no ano de 2013 por Gabriela Lis-
sa Sakajiri e Juca Lopes no 120 aniversrio de nascimento de Mrio de An-
drade, sesquicentenrio de Ernesto Jlio de Nazareth, pianista e compositor, no
110 ano do nascimento do pintor Cndido Portinari, no centenrio de nasci-
mento de Rubem Braga, escritor, e de Vinicius de Moraes, poeta e diplomata,
no 90 ano do nascimento de Stanislaw Ponte Preta [Srgio Porto], escritor, e
de Fernando Sabino, escritor do romance O encontro marcado, no 25 ano da
promulgao da Constituio da Repblica Federativa do Brasil [A Carta Ci-
dad] e no centsimo aniversrio de Albert Camus, autor de O estrangeiro.