TRANS CRI O DE MARI O DE

ANDRADE, REI NVENTANDO O BRAS I L

Narrador: Numa So Paulo ainda provncia, nascia no dia 09 de outubro do ano de 1893, Mrio
Raul de Moraes Andrade. Um dos mentores da Semana de Arte Moderna, em 1922, ajudou a
modificar e inovar as vrias maneiras de observar a cultura de um pas. Da por diante saiu
inventando lngua, mudando conceitos, pesquisando. Escreve Macunama, O Heri Sem
Nenhum Carter, espelho e crtica da formao do homem brasileiro. E com este livro, fere para
sempre a histria literria do pas. Se sua voz se cala em 1945, sua obra, que engloba prosa,
poesia, pesquisa e resgate cultural, continua ecoando em todos os cantos do Brasil.
Narrador Trecho de Lundu do Escritor Difcil
Eu sou um escritor difcil
Que a muita gente enquizila,
Porm essa culpa fcil
De se acabar duma vez:
s tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
Narrador: So Paulo, 09 de outubro de 1893. Numa cidade que despertava para o crescimento,
ainda acanhada em sua estrutura, nascia Mrio Raul de Moraes Andrade. Filho de Maria Luza e
Carlos Augusto de Andrade, jornalista, contador do Conservatrio Dramtico e Musical de So
Paulo e, nas horas vagas, escritor. Mrio de Andrade inicia seus estudos no Grupo Escolar do
Largo do Triunfo.
Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: Era um
aluno comum como todos os outros. Estudante que ia no seu ritmo normal, sem nenhuma
genialidade que aparecesse naquele momento. Ele vai dizer que s depois, j concluindo o
ginasial, que o Mrio comea a criar o gosto pela literatura, escrever os poemas, comear,
ento, a criar este gosto pelas letras e pela msica.
Narrador: So Paulo, 1911. Mrio de Andrade entra para o Conservatrio Dramtico e Musical.
Tocava piano, como seu irmo Renato, grande promessa da poca.
Carlos Augusto de A. Camargo Sobrinho de Mrio de Andrade: O Renato faleceu cedo por
conseqncia de um acidente de futebol. A medicina no estava to bem desenvolvida, ento
houve conseqncias que acabaram redundando na morte dele, quando ele tinha 15 ou16 anos.
Isto afetou muito o Mrio. O desejo inicial do Mrio, quando comeou a estudar msica, era ser
concertista. Mas ele ficou to abalado com a morte do irmo que, diziam, ficou com tremor nas
mos, que o impedia de ser um pianista. Ento, ele passou a lecionar e a se voltar mais para a
literatura e para o ensino da msica.
Narrador: O ano de 1917 um ano de mudanas para o mundo e para Mrio. Seu pai falece no
incio deste ano. Logo depois, Mrio publica seu primeiro livro,H Uma Gota de Sangue em
Cada Poema. Em novembro, discursa numa conferncia saudando a entrada do Brasil na Primeira
Grande Guerra.
Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: Essa
conferncia encanta o Oswald de Andrade. Vai ser assim, o Oswald vai assistir a essa conferncia,
e se encanta com que o Mrio est falando. A partir de ento, ele vai se encontrar com o Mrio,
para conseguir o texto, e vo se tornar grandes amigos. Ento, este ano de 17, quando o Oswald
entra em contato mais prximo com o Mrio de Andrade, o ano em que tambm Anita Malfatti
est vindo do exterior, e expondo seus quadros.
Tel Porto Ancona Prof do Instituto de Estudos Brasileiros e da FFLCH USP: E o
Mrio de Andrade visita esta exposio, e a crnica ou a histria contada por Anita refere-se ao
espanto diante daquele moo que ria s gargalhadas diante dos seus quadros.
Tadeu Chiarelli Prof de Histria da Arte USP: A questo da modernidade nas artes
comea efetivamente a tomar corpo aqui no Brasil, e aqui em So Paulo, com a exposio de 1917
de Anita, com as tomadas de posies dos vrios grupos. Eu acho que por a que a coisa comea
a acontecer.
Narrador: Mas a reao exposio de Anita Malfatti bastante dura. Principalmente por parte
do escritor Monteiro Lobato.
Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: O Mrio
de Andrade, ento a esta altura solidrio, volta exposio, vai conversar com Anita, se torna
amigo dela. O Oswald tambm, timidamente, tenta uma defesa dela pblica, escreve um artigo
defendendo a pintura da Anita Malfatti, esta novidade que ela est trazendo, e tambm se junta
ali. Ento, os trs, neste momento, formaro, comearo a formar um novo ncleo de interesse
esttico.
Narrador: Uma clula moderna comea a ser formada. Vrios artistas se renem volta da
trupe. Entre eles Brecheret, de quem Mrio de Andrade adquiriu uma escultura chamada Cabea
de Cristo, causadora de grandes polmicas familiares.
Carlos Augusto de A. Camargo Sobrinho de Mrio de Andrade: Minha av ficou indignada.
Falou: Mrio, o que isso? Cristo de trancinhas! Onde se viu! Cristo nunca teve tranas! E a
cabea estava bem na entrada de casa.

Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: Essa
ordem machuca o Mrio. Ele fica chocado com o que representou para elas esta escultura. E ele se
tranca no quarto e comea a escrever os poemas.
Trecho de Ode ao Burgus
Eu insulto o burgus! O burgus-nquel
o burgus-burgus!
A digesto bem-feita de So Paulo!
O homem-curva! O homem-ndegas!
O homem que sendo francs, brasileiro, italiano,
sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os bares lampies! Os condes Joes! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-ris fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francs
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: Havia uma inquietao j,
mesmo em So Paulo. Apesar de provinciana, So Paulo vivia aquele momento o influxo da
imigrao estrangeira, o crescimento da cidade, a chamada modernizao paulista, a
industrializao, recebia muitos influxos internacionais.
Bruno Zeni Escritor: Ento, So Paulo era a cidade que concentrava essa sede de
contemporaneidade que havia. Escritores passaram a ver So Paulo como o lugar onde era
possvel fazer uma arte nova, porque a cidade era nova.
Frederico Barbosa Professor e Poeta: As idias modernistas foram, evidentemente,
importadas no Brasil. No entanto, essa importao fez com que muito se discutisse no Brasil da
prpria natureza brasileira, no sentido do que ser brasileiro. Mas, inicialmente, essas idias
foram penetrando a partir das vanguardas europias do incio do sculo.
Bruno Zeni Escritor: As convenes literrias eram completamente passadistas. Havia um
formalismo muito grande, principalmente na poesia. Regras fixas, rima, palavras que no se podia
usar, termos que no eram poticos. Havia esta idia de que a poesia era uma bela arte. E o
modernismo acabou com isto.
Trecho de Ode ao Burgus
Morte gordura!
Morte s adiposidades cerebrais!
Morte ao burgus-mensal!
Ao burgus-cinema! Ao burgus-tlburi!
Padaria Sussa! Morte viva ao Adriano!
" Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
Um colar... Conto e quinhentos!!!
Ms ns morremos de fome!"
Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: Ento
eles pensam o seguinte: 22 o centenrio da nossa independncia poltica. Ento, ns vamos
tentar fazer a comemorao de uma outra vertente, pensando a nossa independncia literria,
que at ento no tivemos.
Teatro Municipal: Teatro Municipal, Vale do Anhangaba, regio central de So Paulo. Foi aqui
que nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 brotou a primeira dentio do movimento moderno
no Brasil. Foi aqui que a burguesia viu, pela primeira vez, jovens arremessarem pedras no quase
bom gosto.
Narrador: Reunindo escritores, pintores, msicos e toda uma gama de artistas, a Semana de Arte
Moderna de So Paulo plantava semente de mudanas no corao da cultura brasileira. Foi
durante a Semana de 22 que Mrio leu pela primeira vez Ode ao Burgus.
Trecho de Ode ao Burgus
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! pure de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
dio aos temperamentos regulares!
dio aos relgios musculares! Morte infmia!
dio soma! dio aos secos e molhados
dio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
Frederico Barbosa Professor e Poeta: H testemunhos, inclusive, de pessoas que iam para
se divertir, para vaiar. Os jovens descobriram que era possvel ir l e vaiar as pessoas e agredir,
j que era uma manifestao to absurda.
Carlos Augusto de A. Camargo Sobrinho de Mrio de Andrade: Na Semana de 22 houve,
inclusive parentes no muito prximos, mas que ajudaram a vaiar, no Teatro Municipal, a
apresentao dos modernistas. E minha av subiu a serra! Eu sei que cortou relaes durante
muito tempo com esses familiares. Depois o tempo vai passando, vai concertando as coisas e a a
coisa se ajeita.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: O que o modernismo paulista
fez, especialmente a Semana de Arte Moderna, que deflagrou isto, foi abrir para o Brasil a
possibilidade da pesquisa esttica.
Tadeu Chiarelli Prof de Histria da Arte USP: Ela faz detonar muitas questes que esto
sendo debatidas at hoje. Por mais que se possa criticar as contribuies dos intelectuais e dos
artistas ligados Semana, foram contribuies fundamentais e que at hoje alimentam o debate
da cultura brasileira.
Bruno Zeni Escritor: Mrio era um escritor j maduro durante a Semana. Ento, ele foi uma
referncia durante a Semana e, durante toda dcada de 20, Mrio esteve na dianteira do
movimento.
Trecho de Ode ao Burgus
dio e insulto! dio e raiva! dio e mais dio!
Morte ao burgus de giolhos,
cheirando religio e que no cr em Deus!
dio vermelho! dio fecundo! dio cclico!
dio fundamento, sem perdo!
Fora! Fu! Fora o bom burgus!...
Bruno Zeni Escritor: O ano de 22 o ano em que ele lana Paulicia Desvairada, depois da
Semana. Mas, durante a Semana ele l o livro.
Tel Porto Ancona Prof do Instituto de Estudos Brasileiros e da FFLCH
USP: Paulicia Desvairada visto atualmente como o primeiro livro moderno do nosso
modernismo.
Bruno Zeni Escritor: um livro em que a preocupao do Mrio representar So Paulo. A
So Paulo que nasce, a nova So Paulo, a metrpole vertiginosa, inapreensvel, multifacetada,
uma cidade grande demais para acolh-lo, por exemplo. E, ao mesmo tempo, ele tem um
sentimento de amor muito grande por So Paulo. Chama So Paulo de minha noiva. So Paulo,
comoo de minha vida.
Narrador: Durante toda a dcada de vinte, Mrio de Andrade continuou sua grandiosa produo
moderna, escrevendo para vrias revistas e jornais, alimentando debates sobre o modernismo e o
nacionalismo. Mergulhou na fonte da cultura popular brasileira, e afinou contatos com as
vanguardas europias. Mrio comia de tudo. Em 1927, viaja pelo Norte do Brasil. Viagem que se
repetir em 1928. Mrio coletou um sem nmero de lendas, tradies, manifestaes. Resgate
que veio a influenciar toda a sua obra futura.
Marcelo Manzatti Antroplogo e Historiador Associao Cultural CACHUERA
SP: Desta primeira viagem que ele faz ao Amazonas, vai ficando a semente do Macunama.
Porque l ele encontra vrias comunidades indgenas, com quem entra em contato. E depois, com
a leitura do Koch-Grnberg, que um pesquisador alemo que esteve no Brasil no comeo do
sculo e que escreveu sobre aqueles ndios, ele vai obter o mote de muiraquit, a partir do qual
ele vai desenvolver toda a histria do Macunama.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: Macunama talvez seja uma
espcie de centro de gravidade natural da obra de Mrio de Andrade; difcil no ver de certa
forma a obra do Mrio nucleada por Macunama.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: O Mrio estava tentando ter
uma viso integral do Brasil, ele projeta tudo isso em Macunama. Isto se dramatiza ento no
prprio livro, quer dizer, o livro tem no seu ncleo o heri de nossa gente, que tambm o heri
sem nenhum carter.
Trecho de Macunama: No fundo do mato virgem nasceu Macunama, heri de nossa gente. Era
preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silncio foi to grande
escutando o murmurejo do Urariquera, que a ndia tapanhumas pariu uma criana feia. Essa
criana que chamaram de Macunama. Passou a infncia a reparar no trabalho dos outros. Nem
falar, falava o danado. Vivia entre os banhos no rio e as relaes perigosas com a mulher do irmo
Jigu, Sofar. Transformava-se num prncipe e passava horas a brincar com ela. E a qualquer
tentativa de fazer o pequeno reagir para a vida logo a frase vinha: Ai, que preguia.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: O Mrio vinha h muito tempo
j pesquisando as matrizes de cultura popular de folclore, de cultura indgena, e, subitamente,
tudo isto se projeta sobre Macunama, que foi um livro escrito, segundo Mrio, em cinco dias de
rede e cigarro. Quer dizer, em cinco dias na chcara de um tio dele em Araraquara, numas frias
de fim de ano. Em cinco dias ele escreve o livro inteiro.
Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: Isto
no quer dizer que ele pegou uma semana de dezembro, rabiscou Macunama e saiu Macunama,
no. Ele se preparou com toda uma pesquisa, as leituras todas prontas, todas as anotaes, tudo
aquilo que ele tinha e a, com a histria pensada, ele escreve.
Cenas de Macunama: Me. Sonhei que caiu meu dente. morte de parente. Com licena.
Trecho de Macunama: O pequeno heri devia se relacionar com os mais de mil mitos e lendas
da terra. Ora fugindo, ora apaixonando-se. E foi assim com Ci, a Me do Mato. Tiveram um filho
que morreu cedo. Triste, Ci foi para o cu, virando constelao. Ela deixou para Macunama seu
muiraquit, que terminou se perdendo indo parar nas mos de Venceslau Pietro Pietra, tambm
conhecido como o gigante Piaim, comedor de gente.
Frederico Barbosa Professor e Poeta: Me parece que a importncia fundamental do
Macunama incorporar os estudos que o Mrio fez, at de autores estrangeiros, como o prprio
Grnberg, a uma pesquisa intensa que ele faz das coisas brasileiras, e conseguir, a partir da,
fazer uma obra que procura, de certa maneira, traduzir o nosso esprito e traduzir, como ele fala
que uma rapsdia, essa srie de lendas e mitos.
Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: Esta
busca da tradio pela pesquisa do popular, pelo cozer das histrias populares, o cozer de cantos,
que rapsdia.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: Num minuto o Macunama,
numa correria, ele vai do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Depois ele vai de um lado para o outro
como um bom heri mtico, como uma boa personagem lendria que ele . E mistura os falares
regionais e todos os costumes. Ento, ele mistura, portanto, todos os espaos. Ele mistura
tambm todos os tempos. Ele visita figuras do passado, do presente. Ento, um livro que
mistura os tempos e os espaos. Isso faz parte da riqueza do livro.
Trecho e cenas de Macunama: Macunama resolveu ir a So Paulo reaver o seu muiraquit.
No caminho, por causa de uma gua milagrosa, ele se torna branco. E ao chegar cidade grande,
o heri fica espantado. O heri passou uma semana sem comer nem brincar, s pensando nas
mquinas.
Bruno Zeni Escritor: H um trecho no Macunama que se chama Carta Para as Icamiabas,
em que o Macunama escreve para as amazonas para contar como era a vida dele em So Paulo.
E ele faz, tambm, um diagnstico muito cruel em relao elite de So Paulo, que uma elite
afrancesada, embevecida com os signos do progresso.
Trecho de Macunama Carta Para as Icamiabas: Senhoras: no pouco vos surpreender,
por certo, o endereo e a literatura dessa missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de
saudade e muito amor com desagradvel nova. bem verdade que na boa cidade de So Paulo, a
maior do universo, no dizer dos seus prolixos habitantes, no sois conhecidas por icamiabas, voz
espria, seno pelo apelativo de amazonas.
Trecho e cenas de Macunama: Macunama, o heri sem nenhum carter, termina por se
integrar cidade grande. E continua tentando conseguir seu muiraquit. Fantasia-se de princesa
para seduzir o gigante. Pede a Exu que d uma surra nele. Ele tanto faz e apronta, que termina
por ter o muiraquit de volta.

Bruno Zeni Escritor: No Macunama, o Mrio est interessado em compor uma explicao
mtica do Brasil. Ento, o Macunama um heri sem carter, mas ao mesmo tempo ele um
heri com todos os caracteres brasileiros.
Frederico Barbosa Professor e Poeta: E ele explica isso numa carta para o Manuel Bandeira,
porque o Macunama como o povo brasileiro, um heri em formao. Ele est se formando e no
tem ainda caracterstica pronta.
Tel Porto Ancona Prof do Instituto de Estudos Brasileiros e da FFLCH USP: Os
defeitos, por assim dizer, do Macunama, os traos de sensualidade, preguia e mentira, so
ambivalentes A mentira faz com que Macunama encante os moradores da penso ao narrar uma
caada de veado.
Carlos Augusto de A. Camargo Sobrinho de Mrio de Andrade: Quando o Macunama
conta que esteve na Praa da S caando o veado mateiro, a os irmos se assustam, o Maanape
e o Jigu: Ei, Macunama. Voc andou caando veado mateiro? Ele confirma e tal e tal. A um
certo ponto ele no consegue manter mais a mentira, vira e fala: Eu menti!

Tel Porto Ancona Prof do Instituto de Estudos Brasileiros e da FFLCH USP: Isto :
eu criei, eu inventei.
Cenas do filme Macunama: O heri, junto com seus irmos, retorna para a sua terra. Mas
tanto faz que acaba sendo abandonado por todos. O heri fica s. Um dia cai na conversa da
Uiara, bem ali no rio. O heri se deu mal e perdeu a perna, o muiraquit e a esperana.
Trecho de Macunama: Eu fiquei para vos contar a histria. Por isso que vim aqui. Me acocorei
em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca
no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunama, heri de nossa gente. Tem
mais no.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: Eu acho um livro
impressionante. um dos momentos em que um grande escritor brasileiro, no bojo de uma
pesquisa esttica imensa, tentou projetar uma imagem do Brasil, que no fundo uma imagem de
si mesmo.
Narrador: Final dos anos 20. Momento de reflexo e mudana na vida e na obra de Mrio de
Andrade. Separao intelectual com Oswald de Andrade. Racha o modernismo brasileiro. Mrio
continua a defender uma cultura nacionalista e primitivista, enquanto observa o jogo social de seu
tempo.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: Eu acho que esta mudana
que se opera na obra do Mrio, ela de certa forma se opera na obra de quase todos os escritores
brasileiros da poca. a famosa virada do modernismo herico dos anos 20 para o modernismo
dos anos 30.
Frederico Barbosa Professor e Poeta: Eles puderam fazer livremente as coisas na dcada de
30 porque, os heris de 22 romperam com todas as barreiras, ento eles podiam escrever como
eles quisessem sem se preocupar, nem em seguir o modelo, como os parnasianos faziam, nem
em romp-lo, coisa que o Mrio, o Oswald, o Bandeira tinham muito claro.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: Depois de 30, eu acho que
toda a cultura brasileira se aproxima de um movimento de crtica social e de experincia e de
observao das realidades vividas.
Narrador: A observao do mundo sua volta, antiga preocupao de Mrio, se acentua neste
perodo. Seus poemas e o livro de contos Belazarte refletem esta preocupao.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: Os Contos de
Belazarte estudam especialmente as contradies da modernizao paulistana, em plena
ideologia do progresso de So Paulo. E o que que fazem os Contos de Belazarte? Eles
focalizam a modernizao pelas beiradas.
Everaldo C. do Carmo Canibal Rapper: Vrias poesias dele que eu li, eu gostei. Porque eu
acho que eu me identifiquei um pouco. Me identifiquei com o lado da periferia, me identifiquei com
a diferena social.
Canibal: Alguns poemas dele tm a ver com o dia de hoje. Inclusive a Fome, que a gente canta,
uma msica dos anos 30 e a gente usa hoje e ela casa com o dia de hoje, porque a fome ainda
existe.
Narrador: Os reflexos dos conhecimentos adquiridos por Mrio durante toda a sua vida comeam
a se revelar mais claramente. O homem observa e resgata a histria cultural de seu pas.
Maria Augusta Fonseca Prof de Teoria Literria e Literatura Comparada USP: Mrio
de Andrade pensou o Brasil na sua diversidade, na sua complexidade. Ele foi pesquisar o Brasil, o
folclore brasileiro. Mas ele no foi pesquisar trs ou quatro linhas. No. Ele foi coligir, ele anotava.
Marcelo Manzatti Antroplogo e Historiador Associao Cultural CACHUERA SP: A
obra do Mrio de Andrade, no campo da cultura popular tradicional brasileira, ainda pouco
conhecida. S muito recentemente que esto surgindo alguns trabalhos, tanto na academia,
quanto da parte dos artistas. Basicamente, porque as obras de pesquisa do Mrio, em cultura
popular, no foram publicadas em vida por ele.
Frederico Barbosa Professor e Poeta: O empenho dele em pesquisar a cultura nacional, em
pesquisar o que havia de mais importante na cultura nacional e at em ajudar as pessoas, as
cartas que ele escreveu, todo o empenho que ele tinha em estar ajudando todo mundo que estava
escrevendo naquela poca muito importante.
Narrador: Mrio 300. Mrio 350. Em meio a publicaes em revistas e livros, a debates e
polmicas, em reflexes profundas sobre o povo brasileiro assume o Departamento de Cultura da
Cidade de So Paulo, de onde vem a se afastar em 1938 por divergncias polticas.
Jos Bento Faria Ferraz Secretrio de Mrio de Andrade: 48 horas depois de ser mandado
embora do Departamento de Cultura pela Prefeitura, Gustavo Capanema, que era Ministro da
Educao e Sade naquele tempo, chamou o Mrio de Andrade. Ele foi para o Rio de Janeiro onde
ele tinha amigos muito importantes. Mas o Mrio sofria muito a ausncia de So Paulo e comeou
a ter uma vida muito angustiosa. Tomava muita bebida, sofria muito. Um dia ele bateu na mesa e
disse: Volto amanh para So Paulo. E veio. E dois anos depois ele veio para So Paulo.
Narrador: Mrio volta Rua Lopes Chaves, onde morava com a famlia. Voltou para continuar um
trabalho de pesquisa cultural e resgate do patrimnio histrico brasileiro. Voltou a So Paulo de
onde continuou escrevendo contos, poesias, tratados, reflexes. Repensou o passado moderno em
palestras; construa a memria do Brasil. E fez isso at o dia 25 de fevereiro de 1945.
Jos Bento Faria Ferraz Secretrio de Mrio de Andrade: Ento eu soube, que na vspera
de sbado para domingo, Mrio teve um infarto. E esse infarto se repetiu mais ou menos s trs,
quatro horas da manh. Repetiu e...
Narrador: O Brasil ficou meio rfo sem um de seus principais inventores. Mas o nome de Mrio
de Andrade no foi esquecido. Sua obra continua a revelar a dimenso de um pas que precisa
compreendido e lido.
Frederico Barbosa Professor e Poeta: Ler hoje uma atividade meio subversiva.
Principalmente ler escritores que se dedicam a fazer uma literatura inovadora, como o Mrio se
dedicou. Escritores que se dedicam a entender o pas, como Mrio fez.
Jos Antonio Pasta Jr. Prof de Literatura Brasileira USP: O Mrio no fim da vida dizia
que ele devia ter sido mais artista e menos pensador. Talvez ele tenha dado ao pensador um lugar
muito amplo na prpria obra e esquecido um pouco o artista. Eu acho que o Macunama foi um
momento em que estas duas tendncias, essas duas foras, se equilibraram.
Carlos Augusto de A. Camargo Sobrinho de Mrio de Andrade: Essa busca da
nacionalidade brasileira, o uso do folclore rico que o Brasil tem. Ento, eu acho que importante a
pessoa ler para conhecer e descobrir e se interessar.
Frederico Barbosa Professor e Poeta: Mas mais do que isso, eu acho que fundamental ler
o Macunama, ler o Amar, Verbo Intransitivo, ler os poemas do Mrio de Andrade, como dio
ao Burgus, porque divertido. Isso eu acho uma coisa fundamental. Os professores de
literatura em geral falam: , eu preciso ler porque importante. Acho que eles no gostam de
ler. preciso ler porque divertido, preciso ler porque gostoso, porque voc d muita risada
com Macunama.
Trecho de Caf Uma Fonte da Vida: Eu sou a fonte da vida. Do meu corpo nasce a terra.
Na minha boca floresce a palavra que ser. Eu sou aquele que disse: Os homens sero unidos se
a terra deles nascida for pouso a qualquer cansao. Eu odeio os que se amontoam. Eu dei aos
esquecidos que no provam desse vinho, o hino das multides. deles que nasce a terra. E so a
fonte da morte. Fora, amor, trabalho e paz. E se o amor se desperdiar, e se a fora esmorecer,
e se o trabalho parar e a paz for gozo de poucos. Eu sou aquele que disse: Eu sou a fonte da
vida. No conte o segredo aos grandes e sempre renascer fora, amor, trabalho e paz.