Este documento apresenta um panorama da obra poética de Zila Mamede, poetisa do Rio Grande do Norte. Aborda sua biografia e os principais temas de cada um de seus livros de poesia, desde Rosa de Pedra (1953) até A Herança (1984), seu último volume publicado em vida. Destaca que os temas da cultura sertaneja, infância no agreste e desenvolvimento de Natal estão presentes em sua obra, que revela um trabalho quase artesanal com a linguagem poética.
Este documento apresenta um panorama da obra poética de Zila Mamede, poetisa do Rio Grande do Norte. Aborda sua biografia e os principais temas de cada um de seus livros de poesia, desde Rosa de Pedra (1953) até A Herança (1984), seu último volume publicado em vida. Destaca que os temas da cultura sertaneja, infância no agreste e desenvolvimento de Natal estão presentes em sua obra, que revela um trabalho quase artesanal com a linguagem poética.
Este documento apresenta um panorama da obra poética de Zila Mamede, poetisa do Rio Grande do Norte. Aborda sua biografia e os principais temas de cada um de seus livros de poesia, desde Rosa de Pedra (1953) até A Herança (1984), seu último volume publicado em vida. Destaca que os temas da cultura sertaneja, infância no agreste e desenvolvimento de Natal estão presentes em sua obra, que revela um trabalho quase artesanal com a linguagem poética.
Este documento apresenta um panorama da obra poética de Zila Mamede, poetisa do Rio Grande do Norte. Aborda sua biografia e os principais temas de cada um de seus livros de poesia, desde Rosa de Pedra (1953) até A Herança (1984), seu último volume publicado em vida. Destaca que os temas da cultura sertaneja, infância no agreste e desenvolvimento de Natal estão presentes em sua obra, que revela um trabalho quase artesanal com a linguagem poética.
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A POESIA AGRESTE DE ZILA MAMEDE
PINHEIRO, Andr (UFRN)
Zila Mamede (1928 1985) um dos nomes mais representativos da literatura do Rio Grande do Norte. Dentre os temas que compem a sua obra, destacamos a representao de alguns aspectos da sociedade potiguar. A cultura sertaneja, as lembranas de uma infncia vivida em terras do agreste e o desenvolvimento da capital norte-rio-grandense so temticas que a poetisa aborda com uma dosagem considervel de humanidade. Ressalta-se, contudo, a grande coerncia formal com que Zila Mamede organiza a sua poesia, revelando, portanto, um trabalho quase artesanal com o signo potico. Neste trabalho, pretendemos primeiro apresentar um panorama geral da obra de Zila Mamede, mas j voltando o foco da anlise para a representao de eventos localistas. Por fim, orientados pelos princpios da literatura comparada, pretendemos desenvolver questes sobre o modo como a relao da literatura com a sociedade pode ser explorada em sala de aula. Interessa-nos especificamente indicar os benefcios e os cuidados que o professor precisa ter ao trabalhar com uma obra que importa dados da realidade local. Com efeito, a representao de um ambiente conhecido ajuda no processo de aproximao do leitor com a poesia; mas o analista nunca deve esquecer que essa ambientao uma realidade ficcional com leis estruturais prprias.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Mulher. Zila Mamede.
1. Retrato de menina
Zila da Costa Mamede nasceu em setembro de 1928 em Nova Palmeira, pequena cidade localizada no interior da Paraba 37 . Na infncia, costumava passar as frias no stio do av, de modo que a ambientao rural teve um papel decisivo para a formao cultural da autora. Ainda criana, mudou-se com a famlia para Currais Novos (RN), cidade onde o pai iria trabalhar como mecnico de equipamentos agrcolas. Com o intuito de alcanar melhores condies de vida, a famlia Mamede mudou-se para a capital do estado. Depois de se instalar definitivamente em Natal, a agitada ambientao urbana acabou se convertendo em um dos objetos poticos mais densos da obra de Zila Mamede. Em 1953 a autora publicou Rosa de pedra, seu primeiro volume de poesias. Nele, o sujeito e o mundo aparecem em constante desintegrao. Com efeito, as
37 As informaes biogrficas elencadas neste artigo esto baseadas nos argumentos da biografia escrita por Cludio Galvo (conferir referncias) e da entrevista concebida por Zila Mamede ao programa Memria viva (1999), da TV Universitria da UFRN.
207 imagens abstratas e evasivas compem o panorama de uma realidade quase impressionista, marcada pela efemeridade e pela vertigem. De certo modo, esses recursos temticos acabam por representar o etos do fragmentado homem moderno. O livro guiado por alguns princpios da gerao de 45, sobretudo no que diz respeito ao uso de imagens concretas para retratar temas intimistas. Por outro lado, o soneto figura como a forma majoritria de composio. Esses dados justificam o carter ambguo da obra, que parece ter uma base fincada na tradio (a forma fixa) e outra na modernidade (o tema catico e desconexo). Apesar de o tom retrico ter prejudicado o estilo de alguns poemas, a engenhosa criao imagtica atesta a excelente qualidade da obra - tanto que Manuel Bandeira chegou a consider-la como um dos dez melhores volumes de poesia publicados no pas.
desfeita luz na face transitria do tempo, voz perdida na memria em traos, mudas formas de beleza.
Sob folhas de mangue acobertada, extinta flor azul entorpecida numa corola resta v, sem vida,
(Mamede, 2003: 196)
A partir de ento, Zila Mamede comeou a conciliar a carreira literria com atividades desenvolvidas em outras reas. Primeiro matriculou-se no curso de Biblioteconomia do Instituto de Educao; depois, foi aprovada no curso de Direito, mas abriu mo a favor de uma formao como bibliotecria. Em 1957, foi para o Rio de Janeiro fazer o Curso Superior de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional. Nessa ocasio, foi enviada Europa pelo jornal O globo para cobrir um evento religioso. Em 1958 Zila Mamede publicou seu segundo livro de poesias. Em Salinas ainda persiste o tom de um discurso intimista, muito embora nele j se note certo afastamento
208 das imagens dispersivas e do catico universo interior que marcaram o volume antecedente. A fortuna crtica costuma v-lo como uma obra de transio. O termo perigoso, impreciso e umtanto equivocado: primeiro porque muitas mudanas operadas neste livro no tiveram continuidade no volume seguinte; depois, a posio transitria tende a minimizar o valor da obra e, na verdade, ela um dos trabalhos mais graciosos de Zila Mamede. Salinas est marcado por um ntido processo de refinamento lingstico. O discurso passou a ser mais objetivo sem, com isso, perder a graa e o lirismo que fundamentaram a criao de Rosa de pedra. A representao de cenas familiares diretamente vinculadas a aspectos da realidade social constitui outra importante mudana. De certo modo, ao direcionar o foco do eu-lrico para o mundo exterior, Zila fez com que sua obra adquirisse um semblante mais consistente.
escavando o cho agreste, me lembrava do menino carregando melancias.
Em que terras desembocam esses talos de crianas mais finos que as maravalhas,
(Mamede, 2003: 180)
Em 1959 Zila Mamede publicou O arado, obra fundamentalmente amparada em temas da tradio rural. Diga-se de passagem, o acervo de cenas sertanejas figura como um dos fatores responsveis pela enorme popularidade do livro. Deve ser destacado, no entanto, o fato de que a autora extraiu da prpria experincia de vida o mote para a composio desses poemas aspecto que, de certa forma, justifica o carter vivo e coerente das imagens. O discurso retrico que marcou o primeiro livro pode ser sentido em uma pea ou outra, muito embora ele no seja capaz de prejudicar o estilo da obra.
209 Apesar da representao idlica da realidade, h um tom de crtica social implcito em grande parte das imagens que compem o livro. Logo se percebe que a poetisa busca destacar uma srie de eventos que so cada vez menos valorizados pela populao. Por isso mesmo, ao se voltar com tamanha nfase para a cultura e para a tradio sertaneja, O arado acaba se tornando um grito de resistncia contra as atrocidades caractersticas da sociedade moderna.
de ver que o cho em pasto no rebenta. Do sono que lhes vem o encantamento p (Mamede, 2003: 146)
Depois de O arado, Zila preferiu se dedicar carreira profissional de bibliotecria. Em 1961 foi para os Estados Unidos (Syracuse University) fazer um estgio nessa rea do conhecimento; em 1964 fez ps-graduao na Universidade de Braslia. Nessa ocasio, comeou um trabalho bibliogrfico sobre Camara Cascudo, que durou cerca de cinco anos para ser concludo. O resultado de tanto esforo veio luz no ano de 1969: trata-se do livro Luis da Camara Cascudo: 50 anos de vida intelectual (editado em dois volumes). A prxima obra literria seria publicada apenas em 1975. preciso admitir, contudo, que o tempo dedicado aos trabalhos bibliogrficos acabou por imprimir um vis mais analtico e ordenado poesia de Zila Mamede. Escrito lentamente ao longo de alguns anos (pois h manuscritos datados de 1962), Exerccio da palavra , sem dvida alguma, o seu livro mais bem elaborado e denuncia a presena de uma escritora com pleno domnio da linguagem potica. Dialogando com algumas idias do concretismo, o volume retrata o processo de modernizao por que passava a capital potiguar na poca; a solidez das imagens foi, portanto, a forma encontrada para representar o crescimento vertical da cidade. O discurso claro, objetivo e espontneo, resultando em um texto imune ao sentimentalismo piegas, muito embora ainda guarde o tom gracioso dos demais livros.
210 Trata-se de uma obra eminentemente metalingstica, j que (mesmo quando no fala abertamente em poesia) notrio o interesse da autora em conseguir um impecvel acabamento formal para seus poemas.
Salto esculpido sobre o vo do espao em cho de pedra e de ao onde no permaneo p a s s o. (Mamede, 2003: 69)
Embora parea ser guiado pelo mesmo princpio esttico do livro precedente, Corpo a corpo (1978) uma smula dos principais temas abordados pela a autora ao longo de sua carreira como escritora. Nele aparecem tanto as imagens da nova realidade social, quanto as cenas familiares, ruralistas e cotidianas que marcaram suas primeiras obras. uma espcie de testamento potico. No de se estranhar, portanto, o fato de o livro ter sido publicado como acrscimo ao volume de suas poesias completas. Apesar de no ter o alento potico dos demais volumes, a obra transmite um agradvel efeito de ordenao e sntese.
em que a noite corre no fico: me ausento como quem morre
Entre lousa e livro nico disfarce que concedo ao tempo
211 mudo- (Mamede, 2003: 47)
Se Corpo a corpo pode ser considerado um testamento potico, ento A herana (1984 derradeiro volume de poesias publicado em vida) um testamento particular. Marcada pelo tom de um discurso confessional, a obra apresenta um acerto de contas entre o sujeito lrico e os seus entes mais prximos. A expressividade das imagens j no to notria, mas o livro ainda oferece momentos de sofisticada realizao esttica. Trata-se de uma obra que requer uma leitura sem pausas; caso contrrio, o leitor pode perder a matiz intimista que amarra todo o discurso potico e lhe confere um agudo carter de unidade. Em ltima instncia, destaca-se a atitude humanizadora com que a poetisa desenvolve os seus temas, sempre preocupada em revelar a densidade e os conflitos da alma humana.
menina urbana, cabe no espao de outro ningum tudo algum
da mesma fonte, da mesma dor, mesma ramagem, da mesma garra,
(Mamede, 2003: 253)
-Rio- (UFRN) lanou o volume pstumo Exerccios de poesia, reunio de textos que tinham sido publicados no jornal Tribuna do norte (Natal-RN) entre os anos de 1951 e 1952. Trata-se, portanto, do material que a autora (j com uma aguada viso crtica) resolveu
212 no incluir na composio de Rosa de pedra. Por isso mesmo, o livro tem, do ponto de vista esttico, um carter fraco e previsvel: a maioria dos temas no supera o senso comum, a linguagem no to bem elaborada e a estrutura potica ainda muito vacilante. Em alguns momentos, possvel sentir um deslumbrado apelo religioso, mas a atitude no chega a prejudicar a economia do livro. Na verdade, todos esses poemas representam a experincia estabelecida entre uma jovem escritora e a recepo de um pblico. O livro importa, pois, mais como registro histrico e como contribuio para a crtica gentica do que como matria esttica propriamente dita. Apesar dos deslizes de composio, a obra ainda revela algumas agradveis surpresas.
a, Falando at de idia no pensada Embora que se saiba qual seria.
Papel com magras letras indecisas. Conjunto de palavras evasivas
(Mamede, 2009: 36)
Zila Mamede morreu em dezembro de 1985, vtima de afogamento na Praia do Forte; ao que tudo indica, a autora sofreu uma vertigem enquanto nadava e, inconsciente, fora arrastada pelas ondas martimas. O mar tema constante na lrica mamediana, mas curioso observar que algumas passagens de sua obra focalizam a trgica experincia das pessoas que morrem afogadas. No se deve, evidentemente, fazer o julgamento crtico da obra baseado em explanaes msticas; preciso admitir, no entanto, que essa coincidncia acabou despertando a curiosidade do pblico e, conseqentemente, alimentando o imaginrio potico da autora.
levai-me desses desertos,
213 deitai-me nas ondas mansas,
(Mamede, 2003: 156)
lavados de espumas caminha o afogado que o mar conquisto (Mamede, 2003: 164)
Pouco tempo depois de sua morte saiu o livro Civil geometria, uma anotao bibliogrfica sobre a obra e a fortuna crtica de Joo Cabral de Melo Neto projeto que vinha sendo realizado desde 1976 e que monopolizou a ateno da autora durante os seus derradeiros anos de vida. A importncia e a dimenso desse trabalho fizeram de Zila Mamede um dos nomes mais significativos do cenrio intelectual norte-rio- grandense. O maior reconhecimento de mrito foi manifestado pelo prprio Joo Cabral, que dedicou a parte inicial do livro Agrestes (que trata de temas nordestinos) para a autora potiguar. Apesar de o prestgio no ser to notrio alm das fronteiras do estado 38 , Zila Mamede um dos nomes mais expressivos das letras potiguares. A sua poesia anotao obrigatria para qualquer antologia ou manual historiogrfico que se debruce sobre o assunto. Depois, a autora inspirou jovens poetas natalenses e manteve viva a tradio da literatura local uma literatura que colhe da realidade sertaneja o mote mais significativo para a composio dos seus versos. Longe de reproduzir um tipo de regionalismo piegas, Zila transformou a experincia cotidiana em um objeto de encanto, constantemente reabilitado pela memria e pelo corao do leitor.
38 Apesar do recente esquecimento no cenrio nacional, a poetisa alcanou uma boa projeo fora do estado do Rio Grande do Norte na poca em que publicou seus livros. Basta mencionar que teve obras editadas na regio sudeste, alm de uma srie de publicaes em jornais de Pernambuco e do Rio de Janeiro. A amizade travada com importantes escritores brasileiros (como Drummond, Bandeira, Cascudo e Cabral) certamente contribuiu para a divulgao de sua obra.
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2. Poesia e realidade social em sala de aula
A obra potica de Zila Mamede contm muitas referncias a ambientes e eventos vinculados realidade norte-rio-grandense. Rica fonte de documentao histrica, ela revela dados precisos sobre os aspectos culturais e polticos da sociedade, alm de oferecer uma primorosa descrio arquitetnica da capital potiguar. Marcada por um carter extremamente dialtico, a lrica mamediana o reflexo das transformaes por que passava a cidade de Natal na segunda metade do sculo XX. Alm do componente temtico, a prpria forma dos poemas parece acompanhar a modernizao da sociedade, j que a estrutura tradicionalista das obras iniciais cede espao para o arrojo e o experimentalismo das derradeiras coletneas. Em alguns momentos, a autora faz menes explcitas a lugares conhecidos e vivenciados pelo povo potiguar, como a Rua Trairi, a igreja do Galo e o Alto (propriedade rural onde residiam seus avs). Dessa forma, a poesia de Zila Mamede parece se aproximar daquele modelo de narrador que extrai da experincia pessoal o argumento basilar para a composio de sua obra. Esse tipo de estratgia permite uma interao muito aguda entre o emissor e o receptor, segundo aponta o estudo de Walter Benjamin sobre o assunto:
O narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas s experincias dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado, que no pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes mais importantes e que no recebe conselhos nemsabe d-los (Benjamin, 2008: 201).
Apesar de no se tratar de um gnero em prosa, a lrica mamediana est delineada pelos mesmos procedimentos elencados pelo pensador germnico. De modo geral, a autora evita reproduzir a sensao de isolamento tpica da sociedade capitalista e se volta mais detidamente para as questes sociais e para os elementos culturais de sua terra. Nesse sentido, mais do que promover um intercmbio de experincias, Zila
215 proporciona ao leitor potiguar a emoo de ter uma vivncia compartilhada, uma vez que ele se reconhece no universo descrito. Trabalhar com esse tipo de obra em sala de aula constitui uma tarefa bastante desafiadora, pois (apesar de algumas vantagens) o uso indevido desse material pode acarretar danos na formao do futuro crtico literrio. O estmulo leitura , sem dvida alguma, o benefcio imediato que os textos dessa natureza podem oferecer ao aluno; com efeito, a turma tende a prestar mais ateno a questes com as quais ela mantm uma relao de familiaridade. No seria exagero afirmar que, ao ler um poema que fala sobre a sua prpria terra, o aluno acaba se convertendo em parte constitutiva do objeto potico, pois, de certa forma, ele tambm a substncia do que est sendo relatado. Depois, preciso ressaltar que essas obras cumprem a importante funo de conservar a tradio e a memria cultural de um determinado ambiente. Nesse sentido, ao utilizar textos de escritores locais em sala de aula, o professor est contribuindo para que o aluno reconhea a importncia de suas tradies para o contexto da cultura nacional. Portanto, mais do que assimilar informaes sobre as especialidades de um sistema literrio, essa atividade didtica pode despertar o interesse do aluno para pontos ligados ao prprio desenvolvimento regional. Por fim, destaca-se que, atravs desses escritos, o leitor tem acesso a uma parte significativa da histria de sua terra. No se trata, evidentemente, de usar a literatura como pretexto para a aquisio de conhecimentos histricos, mas sim de consolidar a prpria histria por meio do texto literrio. Pode-se concluir, portanto, que o emprego da literatura local em sala de aula traz algumas vantagens, como a formao de um leitor que conhece, preza pelo bem de sua cultura e capaz de transmiti-la a outros povos. Os textos dessa natureza deveriam aparecer com maior freqncia em sala de aula, mas infelizmente essa prtica didtica ainda no um ato rotineiro. Apesar dos benefcios apresentados acima, preciso ter um cuidado especial para que o aluno no caia em algumas armadilhas. Primeiramente, no se deve confundir o condicionamento social da obra com a realidade recriada esteticamente, pois a literatura tem leis estruturais prprias que a distanciam das leis naturais. muito comum a prtica de analisar textos baseado no modo como a temtica se organiza na
216 consideraes sobre um espao que integra a cidade de Natal. Observa-se, contudo, que a experincia representada transcende a localizao imediata e ganha nuances que jamais poderiam ser explicadas atravs da mera observao da realidade. Pode-se afirmar, portanto, que a sociedade motiva a criao da obra literria, mas nem por isso ela deve ser tomada como elemento exclusivo de interpretao. Outro aspecto que exige bastante cautela por parte do professor diz respeito interferncia da figura do autor no momento da anlise literria. O texto um tecido lingstico polissmico e no suporta a tonalidade de uma voz unssona. Os fundamentos da significao textual variam de acordo com culturas e pocas diferentes sem falar que eles se atualizam no ato particular de cada leitura. Dessa forma, preciso desconfiar das explicaes que o autor atribui sua obra, pois a literatura ganha vida prpria depois de ser publicada. No caso da literatura local, a possibilidade de um impasse aumenta em funo da maior cumplicidade que existe entre o leitor e o autor. Os moradores de uma regio certamente sabem mais sobre a vida dos escritores que ali vivem do que sobre a vida dos escritores que habitam outras paisagens; tal situao pode induzir o crtico a, erroneamente, analisar uma obra com base na personalidade do autor conhecido. O fato de Zila Mamede ter habitado ruas descritas em sua obra, por exemplo, no quer dizer que o texto esteja preso a essa rede de explicaes factuais. Conforme bem orientam os estudos de Roland Barthes, a prtica da anlise literria jamais deve se resguardar sob a gide da figura do autor:
(...) a escritura a destruio de toda voz, de toda origem. A escritura esse neutro, esse composto, esse oblquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e- preto onde vem se perder toda identidade, a comear pela do corpo que escreve (Barthes, 1982: 65).
Por fim, o uso da literatura regional em sala de aula pode trazer um problema de ordem tica. Em funo dos evidentes laos sentimentais que os unem, o leitor pode enfrentar dificuldades para promover um distanciamento da obra analisada. Com efeito, o desejo de manter viva a tradio literria de sua terra acaba levando o analista a
217 abandonar o julgamento esttico e a se perder em elogios descomedidos. Em tais circunstncias, o efeito artstico completamente soterrado por uma imposio de ordem ideolgica. preciso ter em mente, portanto, que a escolha de um texto para se trabalhar em sala de aula deve ser feita segundo critrios qualitativos e no por obedecer premissa de o escritor pertencer determinada regio. H algum tempo a legitimidade das literaturas locais vem sendo questionada pelos especialistas. Primeiro porque muitas obras dessa natureza no tm um bom padro esttico; grosso modo, a baixa qualidade figura como fator que a impede de ascender ao cnone nacional. Depois, muitos se perguntam se a representao de experincias to localizadas capaz de tocar os leitores que no fazem parte do universo narrado. Evidentemente, quando se toma os devidos cuidados, a literatura regional uma rica fonte para a prtica pedaggica. Por tratar de uma realidade vivenciada, ela capaz de motivar os alunos mais do que qualquer outra literatura. Depois, se o trabalho com a linguagem bem realizado, os eventos localistas facilmente adquirem o status da universalizao. Se essas obras no conseguiram atingir maior divulgao, isso se deve a motivos de to variada ordem, que no cabe discuti-los neste momento.
Referncias
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