Anais II Sul Letras
Anais II Sul Letras
Anais II Sul Letras
Comit cientfico
Andria Guerini (UFSC)
Eunice Terezinha Piazza Gai (UNISC)
Fabiane Verardi Burlamaque (UPF)
Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)
Marcia Cristina Corra (UFSM)
Maria Cleci Venturini (UNICENTRO)
Maria Lucia de Barros Camargo (UFSC)
Neiva Maria Jung (UEM)
Maria da Glria Corra di Fanti (PUCRS)
Rafael Vetromille de Castro (UFPel)
Promoo Programa de Ps-Graduao em Letras da FURG
Coordenador: Mauro Nicola Pvoas
Coordenador-ajdunto: Jos Lus Giovanoni Fornos
Secretrio: Ccero Vasso
Criao do logotipo Sul Letras: Jnior Dagostim
Criao do cartaz do II Encontro: Rgis Garcia
Reviso dos textos dos anais: dos autores
Diagramao e editorao eletrnica:
Pluscom Editora
Editor: Marcelo Frana de Oliveira
Todos os direitos reservados aos autores, cedidos Organizao
do evento. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso
de partes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia
autorizao por escrito do organizador.
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Apresentao
Numa promoo do Programa de Ps-Graduao em Letras Mestrado e Doutorado
em Histria da Literatura, da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), de 25 a 27 de novembro de 2013 realizou-se, em Rio Grande/RS, o II Encontro Sul Letras, derivado da ideia
inicial do coordenador da rea de Letras e Lingustica na CAPES, Prof. Dr. Dermeval da Hora
Oliveira, que props que cada uma das cinco regies brasileiras se organizassem em rede a fim
de dar possibilidade de que os diferentes programas de ps-graduao dialogassem com seus
pares de estados vizinhos. Na regio Sul, que rene doze programas no Rio Grande do Sul, seis
em Santa Catarina e oito no Paran, a rede comeou a se articular por meio de reunies entre os
coordenadores, at que veio a iniciativa da Universidade do Vale do Rio do Sinos (UNISINOS)
de sediar o primeiro encontro, entre 19 e 21 de novembro de 2012. Aps o encontro de So
Leopoldo, o PPGL da FURG ofereceu-se para sediar o segundo, contando, para tanto, com o
apoio fundamental do Programa de Apoio a Eventos no Pas (PAEP) da CAPES; da FURG, que
ofereceu a sua infraestrutura; e dos coordenadores dos diferentes programas dos trs estados da
regio Sul, que colaboraram na organizao, na composio do Comit Cientfico, na coordenao das mesas de comunicao e na avaliao dos psteres.
Realizado no Cidec-Sul do Campus Carreiros da FURG, o evento deu visibilidade a um
grande nmero de pesquisas, nas reas de Literatura e Lingustica, por meio de comunicaes
e psteres. Foi abordado um amplo espectro de assuntos, tais como literatura fantstica, literatura brasileira contempornea, literatura sul-rio-grandense, lingustica aplicada, anlise do
discurso, ensino de lnguas e traduo. J para as palestras foram convidados os professores
doutores Maria Eunice Moreira (PUCRS), Carmen Lcia Barreto Matzenauer (UCPel), Maria
Jos Foltran (UFPR) e Heronides Maurlio de Melo Moura (UFSC), que trouxeram muito dos
seus conhecimentos e das suas experincias para o pblico, formado por docentes e discentes
de graduao e ps-graduao.
O lanamento dos Anais Eletrnicos do II Encontro Sul Letras permite o acesso aos
muitos temas trazidos tona naqueles trs dias de intensa convivncia, conversa, discusso e
troca. Para facilitar a consulta, os textos esto distribudos em ordem alfabtica do primeiro
nome do autor. Por fim, deve-se registrar que os Anais do segundo evento saem no mesmo ms
em que a Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paran (UNICENTRO), em Guarapuava/PR, prepara-se para sediar o terceiro encontro, cristalizando o aspecto itinerante da rede,
caracterstica que refora o dilogo interdisciplinar e interinstitucional que est no cerne da
iniciativa.
Mauro Nicola Pvoas
Organizador do evento e dos anais
FURG, Rio Grande, outubro de 2014
Sumrio
Apresentao.............................................................................................................. 3
O ser e o espao na poesia brasileira contempornea: a poesia
de Ademir Assuno, Antonio Cicero, Manoel de Barros e Oscar
Bertholdo................................................................................................................. 6
Alberto Lopes de Melo
Pretende-se paralelamente ao estudo terico das obras de Michel Collot, que culminar
na construo do captulo que se segue introduo da tese a ser redigida, intitulado Ser,
espao e linguagem: o olhar da fenomenologia, efetuar a leitura e anlise das obras dos quatro
poetas. Essa anlise das obras poticas do corpus fornecer material para a escritura do captulo
3 da tese, A imagtica do espao nos poetas, que apresentar um subcaptulo dedicado a cada
um dos quatro poetas estudados.
Posteriormente, intenta-se efetuar uma anlise em conjunto das obras dos poetas e ainda
contextualiz-los na histria literria brasileira. A realizao desses objetivos constituir o captulo
4 da tese, homnimo ao seu ttulo, O ser e o espao na poesia brasileira contempornea. Este
captulo ser ento dividido em dois subcaptulos, que correspondem aos objetivos citados: Um
olhar em conjunto: confluncias, que apresentar as relaes percebidas no estudo conjunto
das obras dos poetas e Os poetas e a tradio: um percurso, que ir expor as relaes de suas
obras com a tradio literria brasileira. A este captulo seguir-se-o as consideraes finais e as
referncias bibliografia que for utilizada na pesquisa.
1 As obras dos poetas, que sero estudadas em sua totalidade, foram omitidas aqui.
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INTRODUO:
O presente projeto tem por objetivo despertar nos alunos de sries iniciais o interesse
pela leitura e trabalhar a criatividade dos mesmos, para dessa forma, desenvolver a expresso
oral e escrita das crianas e aguar o hbito de leitura. O foco do projeto a contao de histrias
por parte da acadmica de Letras integrante do mesmo e, a partir da contao de histrias que
feita atravs de recursos que chamam a ateno das crianas, as mesmas interpretam e criam
releituras de tais histrias para assim trabalharem a sua criatividade criando dessa forma novos
leitores que tenham o costume de frequentar a biblioteca e criar suas prprias histrias.
O PROJETO
sabido que as crianas possuem uma grande criatividade, porm tal criatividade nem
sempre evidenciada no momento em que o professor da turma solicita que os mesmos criem
uma histria. Sendo assim, a foco que atravs da leitura proposta pela acadmica os alunos
despertem o seu interesse pelo ato de ler e pela produo de novos textos.
Sabe-se dos obstculos encontrados pelos professores de Lngua Portuguesa e Literatura
ao trabalhar com narrativas, poesias, e outros gneros textuais em sala de aula. Portanto, a
proposta do projeto trabalhar a leitura, a escrita e a oralidade dos alunos, para desenvolv-los
como um todo e assim despertar a criatividade, criticidade e o interesse pela leitura e escrita,
criando um ambiente agradvel onde as crianas se sintam a vontade para criar suas histrias e
expressar sua opinio atravs da oralidade e da escrita.
Atravs das leituras tericas realizadas, o objetivo do projeto despertar o gosto pela
leitura nos alunos de sries iniciais para que estes se tornem, em um futuro prximo, leitores
efetivos e tambm desenvolvam com maior facilidade sua capacidade de expresso.
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REFERENCIAL TERICO:
Com base no que afirma Zilberman (1991), delegada escola a funo de despertar na
criana o gosto pela leitura, e isso tem se tornado cada vez mais complexo visto que os muitos
professores utilizam textos literrios como o mero pretexto para o ensino e trabalho com lngua
portuguesa, esquecendo-se das riquezas que o mesmo carrega.
Utilizando a leitura apenas para o trabalho com a gramtica, o professor acaba por fazer
com que o aluno compreenda que o texto no tem sentido, pois muitas vezes trabalhado de
forma descontextualizada. Como afirma Marisa Lajolo: Ou o texto d sentido ao mundo, ou
ele no tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer das nossas aulas. (LAJOLO, 1982,
p.15). Lajolo nos alerta para o fato de que propostas e discusses arbitrarias para o uso do texto
literrio em sala de aula, principalmente com a trabalho com as crianas dos anos iniciais, muitas
vezes, acabam por resultar em experincias desastrosas, j que as atividades no possibilitam
uma real interao entre o leitor e o texto, fazendo com o mesmo no tenha sentido para o aluno
e esse acabe perdendo ou no despertando o prazer na leitura.
Considerando, portanto, que a escola dificilmente estimula o exerccio da leitura, a no
ser quando utilizado para tarefas de ordem pragmtica, difcil aceitar que a escola seja um
veculo para manifestao pessoal do aluno, que colabora com a sua auto-firmao, j que
o exerccio da leitura do texto literrio que possibilita ao aluno que ele se desenvolva tanto
na escrita quanto na oralidade. Se o professor conferir, de fato, sentido leitura de literatura,
fazendo com que seus educandos tenham maior segurana em suas experincias como leitores,
com toda a certeza teremos crianas que alm de possurem um maior domnio da fala e da
escrita, tambm tero um pensamento crtico mais desenvolvido.
Embora a escola seja o maior possvel incentivador da leitura para as crianas, despertar
o gosto pela leitura em alunos do ensino bsico no tarefa apenas dela, como explica Regina
Zilberman no seu livro A leitura e o ensino de literatura, o pas vem desdobrando esforos com
o intuito de difundir o interesse pela leitura e literatura para assim sair de uma situao de atraso
cultural:
O exerccio dessa funo [...] delegado escola, cuja competncia precisa tornar-se
mais abrangente, ultrapassando a tarefa usual de transmisso de um saber socialmente
reconhecido e herdado do passado. Eis porque se amalgamam os problemas relativos
educao, introduo leitura, com sua consequente valorizao, e ensino da
literatura, concentrando-se todos na escola, local de formao do pblico leitor
(ZILBERMAN, 1991, p.16).
Sendo assim, fazer com que as crianas se tornem leitores que realmente reflitam
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acerca do que foi lido e saibam discutir tais leituras no tarefa apenas da escola, mas tambm
das famlias e da sociedade como um todo. Entretanto, embora saibamos que se trata de uma
responsabilidade da sociedade no geral, no professor que recai a culpa toda vez que um aluno
diz no gostar de leitura e de literatura.
OBJETIVO:
Como foi visto, de extrema importncia que logo nos anos iniciais do ensino bsico
o aluno seja estimulado para o exerccio prazeroso da leitura. Entretanto, sabe-se que muitas
vezes, por mais que o professor se esforce para elaborar atividades que trabalhem a leitura de
literatura, na maioria das vezes essa leitura, por ser obrigatria, acaba por se tornar enfadonha
e desagradvel para as crianas.
Sendo assim, o projeto tem como objetivo proporcionar aos alunos dos anos iniciais
do Ensino Fundamental um contato prazeroso com a leitura , despertando nos mesmos o
interesse pela leitura e pela produo de textos, trabalhando a expresso oral e escrita dos
alunos, possibilitando assim acadmica de Letras o contato com a literatura infantil e juvenil
na realidade escolar.
Alm de criar novos leitores, o objetivo do projeto fazer com que as crianas, desde
de seu primeiro contato com a escola, desenvolvam um olhar crtico acerca do que lido,
elegendo suas leituras preferidas, desenvolvendo a habilidade de recontar histrias a partir de
suas leituras e tambm desenvolver a sua criatividade possibilitando ao aluno a criao no
s de outras histrias como tambm releituras das histrias lidas, fazendo com que a criana
expresse-se tanto na oralidade como na escrita, apresentando suas preferncias e sua capacidade
de criao.
METODOLOGIA:
As atividades so elaboradas, e aplicadas pela acadmica e se articula atravs de
encontros semanais com a durao de 4 horas na escola e de 4 horas de preparao e orientao
com a orientadora do projeto.
Durante o perodo de encontro, a acadmica prope atividades de leitura e escrita,
envolvendo contao de histrias com recursos didticos, como fantoches, painis, ilustraes,
fantasias, entre outros. Alm disso, os alunos tambm assistem a vdeos e filmes para trabalhar a
intertextualidade entre a histria lida e a assistida, fazendo comparaes e percebendo as vrias
maneiras de se contar uma mesma histria.
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A partir das histrias contadas, os alunos criam releituras das histrias apresentadas,
confeccionando ainda ilustraes e fantoches dos personagens das suas histrias para a
dramatizao das mesmas para os colegas.
Para a seleo dos textos, levado em conta o interesse temtico e o estgio de leitura
que geralmente apresenta a maioria dos alunos da faixa etria e dos nveis de escolaridade das
crianas que fazem parte do projeto.
Alm das atividades relatadas, os alunos tambm tm a oportunidade de escolher um
livro e realizar a leitura. Aps essa leitura, as crianas contam a histria lida para os seus
colegas, dizendo o que acharam delas, qual a parte que mais gostaram e o que mudariam.
Tal atividade faz com que a criana perceba que tal expresso natural e que no
preciso reprimir suas opinies, elas podem e devem ser compartilhadas com o grupo. Atravs
do incentivo criado diante dessas atividades, as crianas acabam por, com o passar do tempo,
falar naturalmente at mesmo sobre a histria apresentada pelos colegas, demonstrando como a
expresso oral e o pensamento crtico da mesma est se desenvolvendo.
RESULTADOS
O projeto ainda est em andamento, mas ao observar as produes das crianas j
possvel perceber que as mesmas esto se interessando cada vez mais pela leitura e pela
produo de histrias, expressando-se de forma criativa tanto na oralidade quanto na escrita,
contribuindo assim para o despertar do gosto pela leitura e pelo seu desempenho como leitor.
Durantes o perodo de encontro com as crianas possvel perceber que as leituras
livres esto sendo realizadas cada vez com maior frequncia, os alunos se apropriam dos livros
literrios assim que os mesmos so oferecidos, solicitando tambm o emprstimo semanal.
Alm de estimular a leitura, fica claro que as atividades oferecidas no projeto tambm
esto trabalhando com a auto-estima e o comportamento dos alunos nos trabalhos individuais e
coletivos, fazendo com que as crianas aprendam a respeitar o olhar do outro.
Aos poucos, os participantes do projeto vo demonstrando como esto se interessando
pela leitura, e como aspectos como a cooperao, a competio de forma saudvel e as
brincadeiras tambm esto sendo desenvolvidos durante as atividades.
As produes realizadas pelas crianas tambm comprovam o xito que o projeto vem
tendo, j que estas so cada vez mais criativas e encantadoras. Alm das produes escritas e
das ilustraes e fantoches confeccionados, os alunos tambm vm demonstrando um grande
desenvolvimento na oralidade, j que no incio do projeto poucos dos integrantes do mesmo
conseguiam se expressar diante do grupo e agora todos se demonstram interessados em falar
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aos colegas sobre as leituras feitas e tambm opinar sobre as atividades realizadas.
CONCLUSO
A partir do exposto nesse trabalho, conclui-se que o projeto Oficina de contao: a
formao de leitores vem sendo realmente produtivo, no s para as crianas integrantes do
projeto como tambm para a ministrante das atividades, j que esse contato com a realidade
escolar enriquecedor para um aluno de licenciatura.
Alm disso, ao perceber que as crianas esto se desenvolvem melhor na escrita e na
oralidade, percebe-se o quanto as atividades e o estmulo leitura feitos nos encontros do projeto
esto colaborando para o progresso doss aluno em sala de aula, pois tendo um maior domnio
da leitura e da escrita, os alunos conseguem compreender melhor os contedos trabalhados
durantes as aulas, alm de se expressarem com maior criatividade e originalidade nas aulas de
Lngua Portuguesa.
Fica claro portanto, que o trabalho com o texto literrio no pode resumir-se ao ensino
de gramtica, o professor precisa compreender que o texto em si j possui o seu sentido, a sua
importncia, entender que a literatura no precisa estar sempre interligada com o ensino dessa
gramtica. Ler tambm exercitar e aprender mais sobre a Lngua Portuguesa, ao ler o aluno
desenvolve o seu raciocnio e amplia o seu vocabulrio. Portanto, preciso que se entenda que
o trabalho com o texto literrio possui a sua prpria finalidade, no sendo dependente sempre
de algum contedo gramatical.
A leitura de textos literrios tem por finalidade emocionar e divertir, ela propicia a
aquisio de um mundo imaginrio gratuito, como um jogo ldico. A leitura de textos literrios
permite que o aluno trabalhe no s a sua criatividade e tambm o olhar crtico ou ldico sobre
a realidade, mas tambm permite que as crianas trabalhe e experimente novos e conhecidos
sentimentos.
REFERNCIAS
AGUIAR, Vera T. (Coord.). Era uma vez... na escola: formando educadores para formar
leitores. Belo Horizonte: Formato, 2001.
LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola. Rio de Janeiro: Globo, 1982.
RESENDE, Vnia Maria. Literatura infantil e Juvenil: vivncias de leitura e expresso
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Isto um Homem?, de Primo Levi afim de ratificar o trauma maior, experenciado pela
coletividade, causando traumas secundrios, os quais determinaram a construo da identidade
das personagens narradas.
Prope-se, no entanto, a reflexo que a literatura propicia em relao dos acontecimentos
histricos narrados, atravs da reviso e reescrita da memria e do entendimento do trauma
evidenciado que os textos analisados proporcionam, a partir de um processo que envolve
vrias modalidades de apropriao, com o intuito de se circunscrever um espao imaginativo
peculiar a cada um. (NITRINI, 2010, p. 146)
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se s memrias. Nos cadernos do av h uma tentativa de explicar tudo que o cerca, mesmo
que de forma inversa verdadeira, e, provavelmente, estes apontamentos foram criados em um
momento posterior vivncia do personagem, assim como percebe o narrador:
No sei quando meu av comeou a escrever os cadernos, mas o mais provvel que
tenha sido dcadas depois dos eventos que narra, na poca em que o principal projeto
de sua vida passou a ser ficar trancado no escritrio inventando aqueles verbetes. Isso
porque o texto no muda muito medida que a leitura avana, como se tivesse sido
elaborado num nico impulso [...]. (LAUB, 2011, p. 31)
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cara a ponto de formar a sua identidade enquanto judeu e de faz-lo resguardar, atravs de seu
dirio, a memria de sua famlia.
Evidencia-se, assim, ligao existente entre filho, pai e av, visto que cada gerao
carrega marcas da gerao anterior. A influncia do trauma do Holocausto trauma maior da
narrativa, o qual desencadeia os outros traumas to grande que o narrador faz questo de usar,
repetidas vezes, a palavra Auschwitz, evidenciando o grau de envolvimento das personagens
com o tema, mesmo quem nem todos tenham o experenciado. O Holocausto est presente
nos relatos do narrador a partir da obsesso do pai pelo assunto; e pode ser exemplificado,
tambm, pela relao do narrador com Joo. O relacionamento entre as duas personagens
ocorre na adolescncia, quando ambas estudam em uma escola judaica e o narrador e seus
amigos judeus ridicularizam o gi da sala, Joo. O desprezo que todos tm por Joo, o qual
humilhado constantemente, se assemelham ao preconceito dos nazistas em relao aos judeus
no Holocausto.
O discurso sobre o antissemitismo desconstrudo medida que os judeus da escola
cometem atrocidades comparveis, na sua proporo, quelas que eram feitas no Holocausto.
O narrador percebe o vazio do seu discurso aps o momento da queda de Joo, quando inicia
uma anlise da sua identidade individual, sem levar em considerao as questes religiosas. Em
determinado trecho de seu dirio, o narrador diz que:
Depois que fiquei amigo de Joo tambm comecei a olhar para os meus amigos
sem entender por que eles tinham feito aquilo, e como eles tinham me cooptado, e
comecei a ter vergonha de ter gritado gi filho de uma puta, e isso se misturava com
um desconforto cada vez maior diante do meu pai, uma rejeio performance dele
ao falar de antissemitismo, porque eu no tinha nada em comum com aquelas pessoas
alm do fato de ter nascido judeu, e nada sabia daquelas pessoas alm do fato de elas
serem judias, e por mais que tanta gente tivesse morrido em campos de concentrao
no fazia sentido que eu precisasse lembrar disso todos os dias. (LAUB, 2011, p. 37)
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no os comentam com ningum, alm dos seus dirios. O av no gostava de falar do passado
(LAUB, 2011, p. 8) e o neto, em suas anotaes, relatou que nenhuma das mulheres com quem
casou soube de Joo; evidenciando, portanto, que ambos tm dificuldade de exteriorizar as
questes que os atormentam. No entanto, conseguem escrever sobre os seus problemas e, de
certa forma, esto externando-os, visto que as memrias so caracterizadas pelo desejo de
transformar algo privado em pblico.
Em todo o romance, ou melhor, no dirio do narrador, percebe-se que a narrativa se
desenvolve como uma forma de questionar e entender as memrias e os traumas de trs geraes
de uma mesma famlia. O narrador interroga, constantemente, se todo o sofrimento vivido pelo
av em Auschwitz e a idolatria do pai pela cultura judaica servem de exemplo para a sua vida,
ou se estas questes somente interferem no seu desenvolvimento individual. Neste sentido, o
protagonista nota que os relatos tm pouca relao com a sua vida e tenta se desvincular aos
dogmas judaicos, de modo a construir a sua prpria identidade e permitir que seu filho tenha
o direito de escolha. Em vrios trechos o narrador renuncia a cultura que o cerca, como por
exemplo:
Na briga que tivemos por causa da nova escola, eu disse a meu pai que no estava nem
a para os argumentos dele. Que usar o judasmo como argumento para a mudana era
ridculo da parte dele. Que eu no estava nem a para o judasmo, e muito menos para
o que tinha acontecido com o meu av. No a mesma coisa dizer da boca para fora
que se odeia algum e deseja a sua morte, e qualquer pessoa que tenha um parente que
passou por Auschwitz pode confirmar a regra, desde criana voc sabe que pode ser
descuidado com qualquer assunto menos esse [...] eu queria que ele enfiasse Auschwitz
e o nazismo e o meu av bem no meio do cu. (LAUB, 2011, p. 49, 50)
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alheia. O narrador assimila sua substncia mais ntima aquilo que sabe por ouvir
dizer). (BENJAMIN, 1986, p. 221)
Nas suas recordaes, o narrador relata a sua experincia como protagonista de sua
histria e como ouvinte de sua cultura; e tenta, atravs das suas anotaes, deixar para o seu
filho a possibilidade de entender o seu passado e decidir como ser o seu futuro. No entanto, a
partir do afastamento que impe sua herana cultural e a prpria negao que tenta construir
a respeito da mesma, a personagem no consegue se desvincular de seu passado e, desta forma,
o evidencia, atravs das suas memrias.
As trs narrativas memorialsticas que compem o romance Dirio da Queda evidenciam
as diferentes formas de interpretar a mesma situao, pois nos mostra mltiplas alternativas para
compreender um determinado fato histrico. Mais do que simples recordaes e anlises de um
tema comumente tratado na literatura, o romance permite a reflexo acerca da construo de
identidade coletiva e subjetiva e de que forma grandes traumas interferem neste processo.
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As recordaes de Primo Levi sobre Auschwitz servem para reavivar a memria coletiva
e reiterar a necessidade de no esquecer os horrores causados pela guerra. No entanto, vo de
encontro dos pensamentos do av no Dirio da Queda, visto que este utilizava o seu silncio
para manter as lembranas do Holocausto presentes.
Existem vrias maneiras de interpretar os cadernos do meu av. Uma delas considerar
que no possvel ele passar anos se dedicando a isto, uma espcie de tratado sobre
como o mundo deveria ser, com seus verbetes interminveis sobre a cidade ideal, o
casamento ideal, a esposa ideal, a gravidez dela que acompanhada com diligncia e
amor pelo marido, e simplesmente no tocar no assunto mais importante de sua vida.
(LAUB, 2011, p. 40)
A ocultao desta parte importante da histria do av, fez com que seu filho buscasse
outras maneiras de compreender o seu passado e, tambm, entender os motivos que levaram o
seu pai a silenciar-se diante dos acontecimentos traumticos de sua vida. Buscou, ento, em
Isto um Homem? a sua memria, inenarrvel pelo pai, afim de encontrar uma identidade que
o fizesse se sentir parte da cultura na qual estava inserido. Primo Levi defendia a necessidade
de testemunhar, para evitar que as atrocidades do nazismo e a reduo do homem ao estado de
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coisa fossem esquecidos; mesmo que o ato de narrar se tornasse uma tarefa dolorosa.
A experincia narrada por Primo Levi, em Isto um Homem? une as memrias das
trs geraes da famlia de Dirio da Queda, pois o av se nega a externar a sua vivncia nos
campos de concentrao e seu companheiro consegue compreender com maestria este perodo
traumtico. Desta forma, a obra do escritor italiano serve para as geraes seguintes buscarem
referncias da sua identidade cultural e entender os traumas vividos pelos seus antepassados. A
escolha por Isto um Homem? justificada pelo narrador, quando este comenta que tudo que
precisava ser dito sobre o Holocausto foi explanado por Primo Levi. A literatura e a histria
entrecruzam-se, todavia, com o propsito de refletir acerca da construo das identidades
individuais e coletivas, a partir da rememorao do trauma.
A memria em discurso
Os estudos atuais da Literatura Comparada compreendem os conceitos de memria
e identidade, pois entendem que a literatura constitui um veculo central de representao e
construo das mesmas. A fico memorialstica, portanto, prope a recordao e a reconstruo
da memria, a qual pode estar vinculada a elementos histricos e, deste modo, os discursos
literrio e histrico se aproximam, chegando, inclusive, a se confundirem. De acordo com
Foucault (1996), os discursos possuem uma fora imensurvel, uma vez que no apresentam
somente os relatos de acontecimentos de uma poca, mas tambm so organizados a partir dos
pensamentos ideolgicos de quem os escreve. Sendo assim, o discurso se apresenta como um
dispositivo de poder, o qual subverte a realidade, no se limitando apenas em traduzi-la.
O estruturalista Roland Barthes entende que, ao nvel do discurso, existe equivalncia
entre as narrativas literria e histrica, pois ambas se baseiam em uma histria prvia; sendo
que os fatos so os mesmos, mas a organizao deles que difere um discurso do outro. Ao
defender a sua tese de que as narrativas literria e histrica so similares, questiona a construo
de um narrador neutro no discurso histrico, julgando ser impossvel o seu apagamento diante
da matria narrada, visto que as narrativas tanto histrica quanto literria so construdas a
partir do ponto de vista de seus enunciadores e seus discursos so produtos do imaginrio e do
somente a iluso de que o referente fala por s s.
Seguindo o pensamento de Barthes, a histria consiste da interpretao do historiador
sobre determinado fato e, portanto, a narrativa histrica segue a mesma estrutura da fico. No
importa se o fato seja real ou no, visto que a relevncia se d na organizao do discurso. Neste
sentido, Barthes v semelhanas nos discursos literrio e histrico, pois percebe que, assim
como na literatura, a histria construda de forma metafrica ou metonmica (dependendo da
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inteno do discurso). A histria pela estrutura do discurso, tenta reproduzir a estrutura das
escolhas vividas pelos protagonistas do processo relatado; nela predominam os raciocnios;
uma histria reflexiva, a que se pode chamar ainda histria estratgica. (BARTHES, 2004, p.
175)
Na estrutura do discurso histrico, percebe-se a perspectiva ideolgica do narrador, pois
este organiza os significantes com a finalidade de estabelecer um sentido positivo, preenchendo
os vazios que a Histria impe na sua narrativa. Assim sendo, acentua-se a semelhana com
o discurso de fico, visto que a preocupao principal do historiador preencher as lacunas
que existem na Histria. Sobre esta questo, Walter Benjamin, em seu ensaio Sobre o Conceito
de Histria, aponta necessidade de outra escritura da histria, a qual no deve se preocupar
to somente em resgatar o passado, precisando incluir nesta rememorao a viso crtica que o
presente pode oferecer.
Articular historicamente o passado no significa conhec-lo como ele de fato foi.
Significa apropriar-se de uma reminiscncia, tal como ela relampeja no momento de
um perigo. Cabe ao materialismo histrico fixar uma imagem do passado, como ela se
apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histrico, sem que ele tenha conscincia
disso. O perigo ameaa tanto a existncia da tradio como os que a recebem. Para
ambos, o perigo o mesmo: entregar-se s classes dominantes, como seu instrumento.
Em cada poca, preciso arrancar a tradio ao conformismo, que quer apoderar-se
dela. (BENJAMIN, 1986, p. 223)
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tambm ter a percepo de que o texto literrio, como a prpria literatura, uma construo
histrica, cultural e socialmente situada, cuja imanncia revela apenas um dos aspectos de sua
historicidade radical e inescapvel. (MARTINS, 2011, p. 203)
REFERNCIAS
BARTHES, Roland. O rumor da lngua. So Paulo: Martins Fontes, 2004.
BENJAMIN, Walter. O Narrador; Sobre o Conceito de Histria. Magia e Tcnica, Arte e
Poltica: Ensaios Sobre Literatura e Histria da Cultura. So Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Traduo de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
So Paulo: Edies Loyola, 1996.
LAUB, Michel. Dirio da Queda. So Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LEVI, Primo. Isto um Homem? Traduo de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
LEWGOY, Bernardo. Holocausto, Trauma e Memria. In: Revista do Instituto Cultural
Judaico Marc Chagall, v.2, n.1, janeiro/junho, 2010.
MARTINS, Ricardo Andr Ferreira. Crtica Comparada, Crtica Social e Crtica Psicanaltica:
Narrativas do Trauma e da Violncia em Mia Couto. In: CUNHA, Joo Manuel dos Santos;
OURIQUE, Joo Luis Pereira; NEUMANN, Gerson Roberto. Literatura: Crtica Comparada.
Pelotas: Ed. Universitria PREC/UFPEL, 2011.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: Histria, Teoria e Crtica. 3 edio. So Paulo:
Editora da USP, 2010.
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SAMOYAULT, Tiphaine. A Intertextualidade. Traduo de Sandra Nitrini. So Paulo:
Aderaldo & Rothshild, 2008.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memria e Guinada Subjetiva. Traduo
de Rosa Freire dAguiar. So Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007
29
30
como receptor, mas tambm como produtor da cultura, no sendo totalmente submisso esfera
econmica. A partir dos Estudos Culturais h uma concepo particular de cultura, vista como
um fenmeno heterogneo, ativo e intervencionista. A linguagem tem um papel importante
nessa viso e, desse modo, est intimamente ligada virada cultural.
Segundo Hall (1997, p.27), a virada cultural refere-se a uma abordagem da anlise
social contempornea que passou a ver a cultura como uma condio constitutiva da vida social,
ao invs de uma varivel dependente. A linguagem, anterior a essa viso, era entendida como
um assunto de interesse apenas dos especialistas nessa rea linguistas e literatos e, ainda,
como subordinada e a servio da realidade, em que os modelos preexistiam a qualquer tipo
de descrio. Ou seja, a linguagem era vista como um meio de comunicao entre os sujeitos
que, alm disso, servia para relatar e denominar os fatos, os objetos (realidade), que existiam
no mundo. A partir da virada lingustica, houve uma revoluo em relao ao entendido como
linguagem: agora, percebe-se que a linguagem tem um carter privilegiado em que esto
presentes a construo de significado e a constituio dos fatos; carter esse que no apenas
relata os significados e/ou fatos.
Segundo Popkewitz (1994, p.195), a partir da virada cultural
(...) a preocupao com a forma como as categorias, distines e diferenciaes
de sistemas de ideias posicionam as prticas e aes do sujeito. (...) A linguagem,
entretanto, no se refere apenas a palavras e afirmaes. As regras e padres pelos
quais a fala construda so produzidos em instituies sociais, enquanto as prticas
sociais moldam e modelam aquilo que considerado verdadeiro e falso. Nos sistemas
de linguagem esto embutidos valores, prioridades e disposies que so elementos
ativos na construo de mundo.
A partir da virada cultural, a linguagem tem sua compreenso ampliada, j que a
maneira como vivemos e a razo daquilo que somos nossas identidades so compreendidos
como prticas discursivas (HALL, 1997). De acordo com Hall (1997), a formao das nossas
identidades se d culturalmente. Quer dizer: tal formao uma escolha pessoal que, no
entanto, feita pela mediao de aspectos objetivos presentes nas normas, nas instituies,
nas atividades (...) nas aes e estruturas sociais contextualizadas em um determinado tempo e
lugar (SANTOS, 2003, p.2). Ainda segundo Hall (1997, pp. 26-27),
(...) devemos pensar as identidades sociais como construdas no interior da representao,
atravs da cultura, no fora delas. Elas so o resultado de um processo de identificao
que permite que nos posicionemos no interior das definies que os discursos culturais
(exteriores) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). Nossas chamadas
subjetividades so, ento, produzidas parcialmente de modo discursivo e dialgico.
31
A questo de identidade, por sua vez, bastante discutida em Silva (1995a, 1995b, 2000)
que aborda, tambm, questes como diferena e currculo3. Identidade e diferena compe uma
relao de dependncia, j que as afirmaes de identidade so construdas em oposio
diferena as afirmaes sobre diferena s fazem sentido se compreendidas em sua relao
com as afirmaes sobre a identidade (...) As afirmaes sobre diferena tambm dependem
de uma cadeia, em geral oculta, de declaraes negativas sobre (outras) identidades (SILVA,
2000, p.75). Quer dizer: ser brasileiro significa no ser japons, alemo, nigeriano, etc. A
afirmao de determinada identidade, e consequentemente a marcao da diferena, pressupe
operaes como incluir e excluir trata-se de uma separao entre aquilo que somos e aquilo
que no somos. Sem a existncia daquilo que no somos (o outro) a identidade no faria sentido
(SILVA, 2000).
De acordo com Silva (2000, p.76), identidade e diferena partilham uma importante
caracterstica: elas so o resultado de atos de criao lingstica. A identidade e a diferena tm
que ser ativamente produzidas. Para o autor, identidade e diferena fazem parte do mundo
cultural e social, uma vez que so fabricadas pelos sujeitos nas relaes culturais e sociais
(ibidem, idem). Dessa maneira, j que a linguagem constitui as relaes sociais e culturais,
conforme visto anteriormente, identidade e diferena nada mais so do que o resultado de atos
linguagem e de um processo de produo simblica e discursiva (SILVA, 2000, p. 81).
Percebemos, portanto, que a linguagem constitui os sujeitos cujas identidades so
construdas por meio de atos lingusticos, como narrativas. J as narrativas, conforme argumenta
Silva (1995a, p.204-205), (...) constituem uma das prticas discursivas mais importantes (...).
O poder de narrar est estreitamente ligado produo de nossas identidades sociais (...). Dessa
forma, as narrativas no apenas nos ajudam a dar sentido ao mundo, a torn-lo inteligvel, elas
contribuem para constitu-lo e a ns.
Alm disso, importante ressaltar os significados do termo identidade: concordamos
com o apontado por Hall (2000) que o conceito de identidade estratgico e posicional. Isso quer
dizer que a concepo de identidade no imutvel; as identidades no so nunca unificadas
(...) elas so multiplamente construdas ao longo de discursos, prticas e posies que podem
se cruzar ou ser antagnicos. As identidades esto sujeitas a uma historicizao radical, estando
constantemente em processo de mudana e transformao (HALL, 2000, p. 108). Dessa forma,
admitimos que os sujeitos esto em constante transformao de suas identidades as quais so
assumidas por todo e qualquer discurso. Silva (2000, p. 97) corrobora com essa concepo ao
mencionar que a identidade instvel, contraditria, fragmentada, inconsistente, inacabada.
A identidade est ligada a estruturas discursivas e narrativas.
Devemos considerar que a
partir dos discursos proferidos em ambientes escolar e acadmico foco de nossa pesquisa
3 Neste trabalho, no aprofundaremos a discusso em relao s questes voltadas ao currculo.
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esto sendo construdas as identidades de cada sujeito e, desse modo, a sala de aula um espao
para os alunos se constiturem como sujeitos em determinado ambiente e momento especfico.
Conforme argumenta Silva (1995b, p.190), importante colocar no prprio centro do currculo
uma viso que destaque o papel da linguagem e do discurso na produo de subjetividades
particulares e identifique suas conexes com desejos e vontades de poder de indivduos e
grupos particulares. Concordamos com o exposto por Hall (2011, pp.12-13): a identidade
torna-se uma celebrao mvel: formada transformada continuamente em relao s formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.
Referncias
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revolues do nosso tempo. Educao
& Realidade. v.22, n.2 (jul./dez. 1997). Porto Alegre/RS: UFRGS/FACED. pp. 15-46.
____. A identidade cultural na ps-modernidade. 11 Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
____. Quem precisa de identidade? In SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Identidade e diferena:
a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis/RJ: Vozes, 2000. pp.103-133.
POPKEWITZ, Thomas S. Histria do Currculo, Regulao Social e Poder in SILVA, Tomaz
Tadeu da. (Org.) O sujeito da educao: estudos foucaultianos. Petrpolis/RJ: Vozes, 1994,
pp.173-210.
SANTOS, Joo de Deus dos. Resenha de A centralidade da cultura: notas sobre as revolues
do nosso tempo. Revista Brasileira de Educao. Disponvel em: <http://www.scielo.br/pdf/
rbedu/n23/n23a12.pdf>
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produo social da identidade e da diferena. In SILVA, Tomaz
Tadeu da. (Org.) Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis/RJ:
Vozes, 2000b. pp. 73-102
____. Currculo e Identidade Social: territrios contestados. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.)
Aliengenas na sala de aula: uma introduo aos estudos culturais em educao. Petrpolis/
RJ: Vozes, 1995a, pp. 190-207.
____. Os novos mapas culturais e o lugar do currculo numa paisagem ps-moderna. In: SILVA,
Tomaz Tadeu da. (Org.) Territrios contestados: o currculo e os novos mapas polticos e
culturais. Petrpolis/RJ: Vozes, 1995b, pp. 184-202.
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Introduo
O presente estudo vincula-se ao projeto de pesquisa Narrativas e conhecimento:
especificidades tericas e constituio de sentido, coordenado pela Prof. Dra. Eunice Terezinha
Piazza Gai. O projeto tem como eixos centrais a reflexo sobre as possibilidades de relao
entre narrativas literrias e conhecimento, a realizao de estudos sobre a hermenutica e a
leitura, o estudo e a interpretao de narrativas literrias. Estas so selecionadas a partir da
presena da metafico e da ironia.
Para a construo do repertrio terico consistente, tivemos como referncias Linda
Hutcheon e Gustavo Bernardo, os quais contribuem de forma pertinente ao desenvolvimento
da pesquisa em questo. Os conceitos aqui apresentados propiciaram um refinamento no processo
de compreenso, suportando, assim, vises oportunas a cerca das obras literrias utilizadas na
pesquisa.
Ao relacionarmos os conceitos de metafico e intertextualidade conforme Linda
Hutcheon e Gustavo Bernardo, inferimos visveis semelhanas tericas entre os autores.
Metafico, segundo Linda Hutcheon, uma fico sobre fico - isto , fico que inclui dentro
de si um comentrio sobre a sua prpria narrativa e / ou identidade lingustica. Uma fico
que prima pelo desvendamento do processo narrativo.Os textos que apresentam essa estrutura
desconstroem para reconstruir, firmando o novo sobre o antigo, que revitalizado, passando
a ser visto sob uma nova tica. Alm da oposio entre novo e antigo, surgem outras, no uso
da metalinguagem, e talvez a mais complexa seja a que compreende fico e realidade. Para
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Gustavo Bernardo, a metafico uma fico que explicita sua condio de fico, quebrando
o contrato de iluso entre o autor e o leitor, ou entre o diretor e o espectador. A metafico se
define bem como uma fico que no esconde que o , obrigando o espectador, no caso, a manter
a conscincia clara de ver um relato ficcional e no um relato verdadeiro. (BERNARDO,
2012).
Outra possibilidade de estudo narrativo, que mantm uma relao estreita com a
metafico, a intertextualidade. Para ler e escrever com proficincia necessrio conhecer
outros textos, estar imerso nas relaes intertextuais, pois um texto produto de outro texto,
nasce, pois, de outro discurso. Referente intertextualidade, Linda Hutcheon afirma que uma
manifestao formal de um desejo de reduzir a distncia entre o passado e o presente do leitor
e tambm de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto. No um desejo
modernista de organizar o presente por meio do passado ou de fazer com que o presente parea
pobre em contraste com a riqueza do passado. Muito menos uma tentativa de esvaziar ou de
evitar a histria. Em vez disso, confrontar diretamente o passado da literatura. Ela usa a aluso
de tais ecos e depois subverte esse poder por meio da ironia. Desta forma, conclumos que a
compreenso de um texto depende, assim, de nossas experincias de vida enquanto leitores,
de nossas vivncias, do nosso conhecimento de mundo. Quanto mais amplo for o acervo
de conhecimentos do leitor, maior ser sua competncia para perceber que o texto dialoga
com outros, por meio de referncias, aluses ou citaes, desenvolvendo, por consequncia,
habilidades interpretativas aguadas.
As teorias aqui apresentadas contribuem, de forma importante, para o bom
desenvolvimento da pesquisa, sabendo que estamos em constante aprendizagem, leituras e
complementaes. Tendo em vista todo referencial terico, partimos para narrativas literrias
que exemplificaram o alicerce do nosso estudo.
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Moacir Scliar; Borges e os Orangotangos Eternos (2000), de Luis Fernando Verssimo, Adeus,
Hemingway (2001), de Leonardo Padura Fuentes; Os fantasmas de Pessoa (2004), de Manuel
Jorge Marmelo; Amorte de Rimbaud (2000), de Leandro Konder; Stevenson sob as palmeiras
(2000), de Alberto Manguel, alm de O doente Molire (2000), de Rubem Fonseca. Todos os
enredos apresentam duas caractersticas em comum: transformam grandes nomes da literatura
em personagens e as tramas sempre envolvem um mistrio.
O ttulo da obra j evidencia a intertextualidade. O doente Molire, deRubem Fonseca,
elabora uma fico a partir do dramaturgo Francs: Jean Batiste Poquelin, dito Molire, um grande
autor universal de comdias satricas que retratam a face ridcula dos seus contemporneos, como
O mdico apaixonado, As preciosas ridculas,Escola de maridos, Escola de mulheres, Tartufo,
O amor mdico, O misantropo, O burgus fidalgo, alm, claro, de O doente imaginrio,
ltimo trabalho de Molire. Fonseca, a partir das peas do dramaturgo, atreve-se a criar um
titulo referenciando umas das peas do francs, O doente imaginrio. No entanto, sua ousadia
ultrapassa o ttulo. O romance est repleto de intertextos que dialogam no s com a pea, mas
com outras do mesmo dramaturgo.
Partindo de uma circunstncia verdica Rubem Fonseca puxa o fio da fico, O doente
Molire tem como personagem-narrador um marqus annimo que tenta desvendar o mistrio da
morte de seu amigo dramaturgo, cuja ltima comdia foi O doente imaginrio, de 1673. Ainda
no palco, o dramaturgo comea a passar mal e seus sintomas reais so confundidos com a mais
perfeita interpretao. Quando percebem que est, de fato, na beira da morte, seus amigos e sua
esposa saem procura de um padre, deixando-o morrer sozinho. No entanto, antes de o marqus
sair, Molire lhe confessa em sigilo ter sido envenenado. O marqus, por convenincia pessoal,
mantm segredo na ocasio, e agora, torturado pela conscincia, decide descobrir o assassino.
Para isso, j que prefere no envolver policiais, decide fazer uma cuidadosa retrospeco e
lembrar com detalhes de todos os fatos e pessoas que estiveram com Molire no seu ltimo dia
de vida. Contudo, se v rodeado de suspeitos em potencial. Molire era cercado de inimigos,
pelo fato de satirizar em suas peas os mdicos charlates, mulheres com veleidades intelectuais,
religiosos fanticos, entre tantos outros setores da sociedade burguesa. Todos, em princpio,
alegrar-se-iam com a morte do dramaturgo.
O que acontece com muitas obras contemporneas, a tentativa de classificao, de
rotul-las com algum subgnero, como policial, histrico, memorialstico, autobiogrfico, entre
outros, acaba por limitar as possveis leituras da obra e empobrecer a anlise. Pensando desta
forma, o que pretendemos neste estudo apresentar uma leitura que privilegie, dentre outros,
os aspectos metaficcionais/intertextuais do romance para que possamos abordar como se d a
desconstruo e reconstruo da obra, a fico dentro de outra fico por meio das teorias
mencionadas na introduo deste artigo.
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Seria quase que desnecessrio observar o domnio tcnico de Rubem Fonseca sobre o
seu instrumento de trabalho: o texto. Escritor habituado trama policial crimes, investigaes,
o desfecho Fonseca costura o texto intencionando manipular os tempos, manter o suspense do
romance, despertando, pois, a curiosidade do receptor. Revela, aos poucos, os acontecimentos
ocultos da narrativa, mas preocupa-se em no entregar o suficiente para que se possa deduzir,
por conta prpria, aquilo que s deve ser mostrado nas ltimas pginas. A narrativa de Rubem
Fonseca revive o esplendor e as intrigas da corte de Lus XIV, possibilitando, ao leitor, o prazer
de assistir as peas de Molire.
O romance O doente Molire, como j mencionado, repleto de intertextos referentes s
peas teatrais do dramaturgo francs. Selecionamos, pois, trs peas norteadoras, intercaladas
no romance, que serviro de suporte para real compreenso do livro.
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Juan por meio de argumentos falsos, fecha os ouvidos. No decorrer da pea, o sedutor elabora
diversos planos para conquistar as donzelas por quem se interessa. Contudo, aps seduzi-las,
Dom Juan descarta-as e sai em busca de uma nova aventura.
Em uma de suas andanas, se depara com a esttua do Comendador uma de suas vtimas
e Dom Juan, debochadamente, manda Leoporelo convid-la para jantar com ele. Para espanto
deles a esttua aceita, ambos, Leoporelo e Dom Juan abandonam o local dissimuladamente
para no transparecerem covardia. J em casa, Leoporelo atende a porta e, para sua surpresa,
a Esttua veio convidar o fidalgo para cear em sua casa. Imune ao medo, mesmo em contato
com criaturas sobrenaturais, Dom Juan continua descrente e aceita o convite. Durante o jantar a
esttua oferece-lhe a mo, correspondendo ao cumprimento Dom Juan sentenciado escurido,
ficando imerso a tudo aquilo que no acreditava.
Concluso
As peas teatrais de Molire criticavam a sociedade, ironizavam as doutrinas da Igreja
e desmereciam profissionais da poca, razo por que o consideravam uma pessoa hostil e,
consequentemente, visada. Na obra analisada, o amigo-annimo, personagem principal, se
voltou s vrias peas de Molire tencionando encontrar o possvel responsvel por sua morte.
justamente por isso que a leitura das peas teatrais se faz to importante, visto que sem elas
o leitor no conseguiria compreender a obra de forma desejvel. Somente com a leitura das
peas possvel perceber o quo crtico Molire era em suas criaes, e como ele, realmente,
poderia despertar raiva nos alvos de suas ironias. Uma leitura desatenta e superficial no se
revela suficiente compreenso da obra. Ao analisar a narrativa possvel perceber uma das
peculiaridades do intertexto: ele requer um leitor perspicaz, que tenha capacidade de entender a
sua complexidade intrnseca. A metaficcionalidade requer leitores mais aprofundados.
Por fim, outro aspecto significativo, a relevncia dos alvos criticados por Molire,
tendo em vista que suas peas no esto presas s andanas do tempo, dando continuidade e
perpetuando seu significado at os dias de hoje.
Referncias
BERNARDO, Gustavo. O livro da metafico. Rio de Janeiro: Tinta negra, 2012.
CARON, Elaine Cristina. A desconstruo ficcional da Paris do sculo XVII em O doente
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Filho de talo- descendentes, pai pedreiro desempregado h sete meses devido recesso
norte americana e me igualmente desempregada, Dom, como apelidado, mora com mais trs
irmos, sua av italiana, e com o cachorro de estimao em uma regio cercada por glidas
montanhas, o que parece dar a impresso de aprisionamento, clausura, e que corrobora para o
a impresso de impossibilidade de mobilidade social desse personagem. A condio social em
que os personagens esto inseridos complexa e delicada. A desesperana do sonho americano,
ou, desesperana do American dream, est impregnada no pensamento de cada personagem que
v nos Estados Unidos a chance de ascender socialmente e de ser includo em uma sociedade
que promete o futuro. Porm o futuro delicado, de medo e de incertezas. A av de Dominic,
vinda de Abruzzi na Itlia a crtica agitadora e realista. Logo no incio da narrativa, Dom est
fazendo uma lio da catequese sobre o corpo mstico de Cristo quando interrompido pela
av Bettina:
- E o que vocs est estudando, sbio e esperto neto? um livro sobre fome e
homens andando pelas ruas procura de trabalho? um livro contando sobre seu
pai sem um servio h sete meses ou a rica promessa da Amrica dourada, terra da
igualdade e da fraternidade, linda Amrica, que fede como uma peste?
- Estamos em depresso eu disse ela Alm do mais inverno. Papai no pode
assentar tijolos com esse tempo.
Ela juntou as mos sua frente.
- Como os jovens americanos so espertos! arfou, sacudindo as mos. A gerao
com todas as respostas. (FANTE, 2011, p. 17)
possvel notar a desesperana nas falas da av Bettina que afirma ter viajado mais oito
mil quilmetros com a esperana e promessa de oportunidades e uma vida mais digna. Dominic
mesmo jovem tem o entendimento de que na Itlia, de onde vinham seus avs havia existido
pobreza, mas afirma que era uma pobreza mais suave. Porm o jovem rapaz contrasta com
sua av e mesmo durante tempos difceis acredita ou tenta acreditar que a Amrica o pas
da oportunidade e que h possibilidade de realizar sonhos em meio a tamanha crise e tenta
encontrar em si talento, no caso, desdobra a narrativa tentando se convencer de que pode se
tornar um grande arremessador em um famoso time de baseball.
A religiosidade, bastante presente durante a trama, um dos alicerces nos quais
Dominic se apoia para acreditar em seus sonhos. Porm a condio de desemprego e misria
em que a famlia se encontra faz com que, em alguns momentos da narrativa, as crenas crists
da personagem sejam postas em dvida por ele mesmo, oscilando entre acreditar ou no na
existncia divina, pois nada no mundo poderia justificar tanta misria e sofrimento.
Para tanto, atravs de um fluxo de conscincia possvel sabermos dos questionamentos
sobre a existncia de Deus, feitos na esfera psicolgica. Deus posto prova por Dominic. Esse
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tenta se convencer de que a religio sua salvao visto que no h muitas outras sadas para
sua situao. Oscila, portanto entre acreditar na religio ou acreditar na realidade, mas acaba por
se convencer que a religio a melhor sada, pois tem medo da punio por parecer descrente,
como no trecho abaixo em que cr que suas habilidades para o esporte so uma ddiva divina:
Eu tinha que acreditar. De onde vinha meu slider e meu knuckle-ball, e de onde eu
tirava todo aquele controle? Se eu deixasse de acreditar, poderia me dar mal, perder
meu ritmo, comear a dar moleza para os batedores. Que inferno, havia dvidas, sim,
mas eu as rechaava. A vida de um lanador era dura o suficiente mesmo tendo f em
Deus. Um lampejo de dvida poderia lanar um treco no brao. (FANTE, 2011, p.
11)
Guiado pelos sonhos e esperanas, Dominic se deixa levar pela convico de que deve
correr atrs de seu sonho custe o que custar. Obstinado a concretiz-lo, irritado porque seu
pai quer que ele siga seus passos de pedreiro para que juntos abram uma madeireira, segue o
conselho do amigo Ken, garoto abastado cuja famlia leva uma vida tranquila apesar da situao
econmica, e vende a betoneira, instrumento essencial de trabalho de seu pai, para comprar
sua passagem rumo ao norte. O que para Ken apenas uma brincadeira, uma aventura, para
Dominic algo de real importncia.
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Ken quem d a ideia de venderem o instrumento de sustento da famlia e
Dominic fica em cima de muro. Sabe que est fazendo algo que no correto mas num impulso
aceita e toma a deciso de ir em busca de seu sonho, no caso, apenas a passagem rumo cidade
onde treina um dos times que anseia jogar. Dominic tem completa conscincia da funo social
da classe proletariada a que o pai pertence, pois no momento em que pensa sobre a venda da
betoneira reflete sobre a profisso do pai, como podemos perceber no seguinte trecho:
Quantas coisas ele havia construdo quando o sol lhe dera chance! Por toda a cidade
podiam-se ver as obras dele escolas, igrejas, casas, garagens, chamins, entradas de
carro, terraos, lareiras, caladas de pedra, de concreto, de tijolo, degraus subindo e
degraus descendo.
Trabalho, suor, pagamento. Ele amava o seu trabalho, com aquele incansvel
misturador, o Jaeger, seu parceiro, ofegando e bufando ao longo de todos os dias de
bom tempo. Ento vinham as chuvas, ou caa neve, e a mquina era levada embora
sobre rodinhas para o depsito e coberta com uma lona, desempregada como seu
parceiro. (FANTE, 2011, p. 107)
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Referncias:
BENJAMIN, Walter. Experincia e Pobreza. In: O anjo da histria. Trad. Joo Barrento. Belo
Horizonte: Atntica, 2012. pp. 85-90.
FANTE, John. 1933 foi um ano ruim. Trad. Lcia Brito. Porto Alegre: L&PM, 2011.
LUKCS, Georg. La forma clssica de la novela histrica. In: La novela histrica. Mxico:
Era, 1966. pp. 15-70
MENTON, Seymour. La nueva novela histrica: definiciones y orgenes. In: La nueva novela
histrica de la America Latina. 1979-1992. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1993. pp.
29-56.
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Introduo
Este artigo analisa as caractersticas literrias que compe a autobiografia Um homem
sem profisso: memrias e confisses sob as ordens de mame V.I 1890-1919, de Oswald
de Andrade (1890-1954), no mbito do desenvolvimento literrio brasileiro de escritas do
eu. Primeiro, traaremos os principais aspectos tericos que esto por trs, de modo geral,
das produes autobiogrficas do Ocidente. Em seguida, a partir desse referencial terico,
analisaremos a referida autobiografia do nosso escritor modernista.
A autobiografia, em princpio, combina de o autor, o narrador e o personagem biografado,
serem a mesma pessoa, ou seja, o autor e a sua vida reconstruda so o seu prprio objeto de
narrao. No que tange as formas literrias, o gnero tanto pode se apresentar em prosa como
em verso. Alm do mais, ele pode ainda assumir diferentes formatos narrativos, tais como: o
romance, o dirio, o memorialstico, as cartas, as confisses, dentre outros. Entretanto, cada
uma dessas formas tem a sua maneira de se apresentar textualmente que as definem como tal, e,
atravs disso, estabelecem as fronteiras frente aos demais modos de narrativas do eu.
Philippe Lejeune um dos principais tericos a examinar densamente as caractersticas
que compe as obras autobiogrficas. O ensaio O pacto autobiogrfico, publicado em 1975,
ainda considerada a principal obra de referncia terica para os iniciados no estudo do gnero
autobiogrfico. Nessa obra, Lejeune parte da definio de que a autobiografia uma narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando focaliza sua
histria individual, em particular a histria de sua personalidade (LEJEUNE, 2008, p. 14).
Ainda no referido ensaio, Lejeune sublinha que para que haja uma autobiografia (e, numa
perspectiva mais geral, literatura ntima), preciso que haja relao de identidade entre o autor,
o narrador e o personagem (LEJEUNE, 2008, p. 15). Embora a maioria das autobiografias seja
na primeira pessoa, ela tambm pode se apresentar na terceira pessoa, desde que haja a relao
de identidade entre o autor e o personagem principal (LEJEUNE, 2008, p. 16).
A autobiografia ambiciona construir uma imagem da personalidade narrada, deste
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modo, Lejeune argumenta que o leitor pode apenas levantar questes quanto semelhana,
mas nunca quanto identidade do autor, narrador e personagem. Por conseguinte, o autor
concebe o conceito de pacto autobiogrfico que a afirmao, no texto, dessa identidade
[autor-narrador-personagem], remetendo em ltima instncia, ao nome do autor, escrito na capa
do livro. Lejeune aponta que as formas do pacto autobiogrfico so muito diversas, mas todas
elas manifestam a inteno de honrar sua assinatura (LEJEUNE, 2008, p. 26).
No texto O pacto autobiogrfico (bis), uma espcie de reviso crtica do ensaio de 1975,
o autor complementa que o conceito de pacto autobiogrfico apresenta-se sob a forma de um
contrato nico atravs de um duplo processo: o compromisso e o sistema de apresentao
escolhido pelo autor e o modo de leitura escolhido pelo autor (LEJEUNE, 2008, p. 57). Assim,
para Lejeune, na autobiografia no pode haver graus de referncia sobre o escritor, mas somente
a certeza plena de sua identidade na instncia da narrao.
Adiante, Lejeune analisa a relao que ocasionalmente h entre a autobiografia e o
romance. Segundo o autor, caso o leitor tenha razes para suspeitar que o romance apresente
circunstncias referentes vida do escritor, mas que este optou por negar essa identidade ou no
afirm-la explicitamente, porm, se o leitor comprovar que haja a identidade entre o autor e o
personagem, nesse caso, portanto, est diante do romance autobiogrfico. Conforme Lejeune,
essa modalidade narrativa apresenta as seguintes peculiaridades:
1) O romance autobiogrfico engloba tanto narrativas em primeira pessoa (identidade
do narrador e do personagem) quanto narrativas impessoais (personagens designados em
terceira pessoa), ele se define por seu contedo;
2) diferena da autobiografia, o romance autobiogrfico comporta graus de identidade
com o autor;
3) A semelhana suposta pelo leitor pode variar de um vago ar de famlia entre o
personagem e o autor at quase transparncia que leva a dizer que aquele o autor (LEJEUNE,
2008, p. 25).
Simetricamente ao pacto autobiogrfico, Lejeune registra tambm o conceito de pacto
romanesco, que se revela basicamente em dois aspectos:
1) A prtica patente da no identidade, isto , o autor e o personagem no tem o mesmo
nome;
2) O atestado de ficcionalidade, em geral, exposto no subttulo romance, na capa ou na
folha de rosto (LEJEUNE, 2008, p. 27).
Uma vez estabelecidos esses conceitos, Lejeune dispe um quadro terico somente
para as narrativas autodiegticas em que classifica as possveis relaes combinatrias entre o
nome do autor, o nome do personagem e a natureza do pacto firmado pelo escritor. O referido
esquema fornece a sntese dessas possibilidades provveis e o tipo de pacto estabelecido entre
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o leitor e o texto.
Verifica-se no quadro que trs situaes so possveis para o nome do personagem e
para o tipo de pacto firmado. O personagem: 1) tem um nome diferente do autor; 2) no tem
nome; 3) tem o mesmo nome do autor. O pacto: 1) romanesco; 2) ausente; 3) autobiogrfico.
Teoricamente, o quadro apresenta nove combinaes, no entanto, apenas sete so possveis, pois
h dois quadrantes vazios. Lejeune excluiu o resultado de combinao tanto da identidade do
nome e do pacto romanesco, quanto da diferena de nome e do pacto autobiogrfico. Veremos
adiante que dois anos depois a publicao deste quadro, um dos quadrantes vazios preenchido
atravs de uma obra produzida pelo romancista e professor universitrio Serge Doubrovsky.
Em 1992, Clara Rocha publica Mscaras de Narciso: estudos sobre a literatura
autobiogrfica de Portugal. Nesta obra, alm de a autora analisar algumas produes
autobiogrficas do sistema literrio de Portugal, ela apresenta inicialmente um texto terico
a propsito das modalidades de escritas do eu, que serve de introduo s referidas analises.
Na abertura, a autora registra que a escrita autobiogrfica agrega dois movimentos de sentidos
opostos; por um lado, tm-se a tentativa de concentrao do eu e/ou a procura de um centro
prprio; por outro, h a disperso ou desagregao da coerncia desse eu. Portanto, chocamse na narrativa uma fora centrpeta e uma fora centrfuga. Nesse movimento contnuo, o
indivduo se reconhece oscilante, dramtico e em dilogo consigo mesmo e com outrem
(ROCHA, 1992, p. 27).
Segundo Rocha, de modo geral, o fenmeno da escrita autobiogrfica ocorre
frequentemente na maturidade ou na velhice. O fato de a memria ser fragmentada e voltil
permite ainda que as instncias narrativas do eu contemple mltiplas possibilidades tcnicocomposicionais. Deste modo, a autobiografia no coagida a seguir a ordem cronolgica do
calendrio. So-lhe admitidos desvios temporais, flashbacks, antecipaes, associaes entre
episdios que pertencem h tempos distintos (ROCHA, 1992, p. 33). Nessa perspectiva, a
construo do eu atravs da linguagem textual corresponde a um segundo nascimento, e o
indivduo que se narra outro, duplo da pessoa real. Esse novo eu reconstrudo pelo eu vivido
uma personagem, que apenas difere da personagem de fico por ser protagonista duma
vida da qual o prprio eu no autor, somente coautor (ROCHA, 1992, p. 46). Portanto, o
heri autobiogrfico uma recriao, a combinao entre uma pessoa real e uma personagem
inventada, o resultado de um processo simultaneamente de autodescoberta e de modelao de
uma imagem (ROCHA, 1992, p. 49).
No sentido de sintetizar as provveis gneses da escrita autobiogrfica, Rocha aponta as
sete principais motivaes que esto por trs da publicao de uma autobiografia:
1) O escritor pode responder expectativa do leitor que deseja conhecer na intimidade
uma figura pblica (manuteno do mito do autor);
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2) Corrigir ou desmentir opinies erradas de que foi ou pode vir a ser vtima;
3) Dar-se corajosamente na revelao do seu lado bom e do seu lado mau;
4) Pedir uma absolvio (modalidade das confisses crists);
5) Fazer a crnica pessoal de um tempo, transformar a autobiografia num testemunho;
6) Tentar recuperar o passado atravs da memria;
7) Exprimir a angstia do futuro, a vertigem do escoamento do tempo, a cronofobia,
ou seja, a compreenso do tempo como oponente da realizao pessoal (ROCHA, 1992, p. 3334).
Em 1977, Doubrovsky aps analisar a teoria normativa e o quadro sntese de Lejeune,
decide preencher um dos quadrantes vazios atravs de uma obra que combine o pacto romanesco
com o uso do prprio nome. Desse modo, o quadrante superior da direita passa a ser ocupado pelo
termo autofico, cunhado pelo prprio autor (Doubrovsky) para definir sua obra Fils. O autor
apresenta o vocbulo na contracapa do referido livro da seguinte forma: Autobiografia? No,
isto um privilgio reservado aos importantes desse mundo, no entardecer de suas vidas e em
belo estilo. Fico de acontecimentos e fatos estritamente reais; se quiserem, autofices.1
Antes da obra de Doubrovsky, Roland Barthes, em 1975, publica uma autobiografia
nos moldes do quadro de Lejeune. O referido autor firma o pacto atravs do prprio ttulo
Roland Barthes por Roland Barthes. No entanto, na contra capa da obra ele escreve: Tudo
isso deve ser considerado como dito por um personagem de um romance.2 Talvez Barthes
j estivesse lanando uma autofico quando paradoxalmente afirmava e quebrava o referido
pacto autobiogrfico de Lejeune. Doubrovsky, possivelmente, conhecia a obra de Barthes, e
mediante a leitura da teoria de Lejeune, escreveu Fils, desde ento, o termo autofico passou
estar na ordem do dia, ou ainda, segundo Colonna, tornou-se uma mitomania literria entre
os escritores contemporneos (COLONNA, 2004, p. 14).
Em 2004, Vincent Colonna publica Autofictions & autres mythomanies littraires, obra
que imediatamente tornou-se referncia terica de estudos sobre a autofico. O livro analisa as
principais caractersticas dessa modalidade narrativa, juntamente com o percurso de sua prtica
no Ocidente. Conforme Colonna, desde que h escritores, h uma fabulao de si, deste modo,
o autor registra que desde Luciano de Samsata, escritor grego do sculo II, com a obra Histria
verdadeira, a autofico j era uma prtica evidente, embora no inteiramente esclarecida. Para
o autor, autofico so as composies literrias em que o escritor se apresenta com o nome
prprio em uma histria ficcional, aceita por conformao convencional (romance, comdia) ou
atravs de um contrato estabelecido com o leitor (COLONNA, 2004, p. 70-71). Colonna aponta
1 Autobiographie? Non, cest um privilge reserv aux importants de ce monde, au soir de leur vie et dans um
beau style. Fiction d`evnements et de faits strictement rels; si lon veut, autofictions.
2 Tout ceci doit tre considr comme dit par un personnage de roman.
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que h desde Luciano de Samsata trs modelos de compor uma escrita autoficcional:
1) Autofico fantstica: a narrativa que apresenta grandes possibilidades fantasiosas.
O autor assume a condio de um protagonista homnimo e se insere num contexto inverossmil,
lugares imaginrios, sem referncia a sua histria de vida;
2) Autofico especular: nessa narrativa o autor no o protagonista, apenas um
personagem secundrio da histria. Nesta o autor se posiciona de forma autorreflexiva e prope
interpretaes e modos de leitura a respeito da trama;
3) Autofico biogrfica: esse o modelo narrativo mais constante na atualidade. O
autor protagonista narra a sua vida, e ao mesmo tempo, a ficcionaliza (COLONNA, 2004, p.
67-145).
Nota-se que nas trs modalidades narrativas, a identidade do autor no colocada
em dvida. O terceiro modelo autofico biogrfica se aproxima bastante do que Lejeune
definiu como romance autobiogrfico, mas com a diferena de que neste existe uma possvel
semelhana entre o autor e o personagem, e naquele h a confirmao plena da identidade
entre eles. Doubrovsky e Colonna concordam com a homonmia nas trs instncias narrativas.
Entretanto, o primeiro aproxima-se mais da autobiografia, enquanto que o segundo orbita mais
o mbito da fico. No final da obra, Colonna apresenta uma pequena antologia de definies e
recorrncias do vocbulo autofico.
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brasileira.
A capa de Um homem sem profisso: memrias e confisses sob as ordens de mame
V.I 1890-1919 de Andrade apresenta um sistema de signos que adverte o leitor que esse livro
trata-se de uma autobiografia. A capa vermelha da publicao original de 1954 preenchida
no fundo com um desenho pueril de Non, filho de Oswald com Kami. Alm disso, o ttulo
contm os termos memrias e confisses que so vocbulos clssicos dessa modalidade
de escrita. Entretanto, a frase Um homem sem profisso e sob as ordens de mame denota o
tom irnico por parte de Oswald ao abordar a si mesmo. Alm disso, temos o recorte temporal
estabelecido, ou seja, do final do sculo XIX at os eventos prvios ao modernismo de 1922.
A obra autobiogrfica de Oswald de Andrade se organiza apenas em duas partes. A
primeira constitui um prefcio de seis pginas escrito por Antnio Candido, amigo de Oswald
na poca, que tece breves comentrios acerca do livro. A segunda a histria de vida do autor
registrada em duzentas e uma pginas sem absolutamente nenhuma interrupo, h no ser
atravs de um espaamento duplo entre os pargrafos que sinaliza o fim de um assunto e incio
do seguinte. Vale salientar que essa arquitetura composicional dificulta o processo de leitura,
uma vez que h precrias opes de pausa, ainda mais se levarmos em conta a dimenso e a
complexidade do livro.
Um homem sem profisso comea com o narrador-autor-personagem apresentando e
comentando sua prpria obra, num pargrafo de literariedade notvel:
Este livro uma matinada. Apesar de ser o meu livro da orfandade. Em 1912,
chegando de minha primeira viagem Europa, e encontrando morta minha me, nos
mudamos logo de moradia, eu e meu pai. Ao fechar o aposento dela, j com a casa
vazia de mveis e pessoas, me ajoelhei para beijar o cho, no local onde mame
falecera. Mas meu corao sorria para vida. E assim foi durante largo perodo, at
murcharem uma a uma as ptalas da esperana que a coragem, a idade e a sade
faziam vicejar (ANDRADE, 1954, p. 19. Grifos meus).
Observam-se nesse primeiro pargrafo desvios temporais, antecipaes, e ainda, podese l-lo como uma sntese da prpria obra. Do mesmo modo, constata-se a relao de identidade
entre o autor, o narrador na primeira pessoa e o personagem, ou seja, com a referida capa e essa
leitura inicial temos a consolidao do pacto autobiogrfico. Depreende-se atravs desta citao
que o vocbulo matinada possui sentido ambguo, por um lado pode significar a alvorada,
que neste contexto aponta para o nascimento e maturao de Oswald de Andrade, por outro
lado, pode tambm denotar algazarra, qualitativo plenamente reconhecido no autor, uma vez
que o mesmo conduzia sua vida pela crtica tradio e averso aos preceitos socioculturais
contemporneos.
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tal descrio espacial serve tambm para situar o centro a partir do qual ele construir o seu
mundo memorialstico pela diegese literria. Portanto, nesse sentido, alm da presena do mito
de Narciso, temos tambm presente o mito de Zeus como quem organiza o caos da memria.
Segundo Oswald, um dos motivos que o conduziu a escrever Um homem sem profisso
se deve ao um encontro especial com Antnio Candido, em que este diz que uma literatura s
adquire maioridade com memrias, cartas e documentos pessoais e me fez jurar que tentarei
escrever j este dirio confessional. Desse modo, ressalta o narrador de forma sbita, pois, se
preciso comear, comecemos pelo comeo (ANDRADE, 1954, p. 23). A primeira lembrana
que Oswald narra remete-se a sua precoce experincia de carter fsico sexual. Conforme conta
o autor, sentando-me porta da entrada e apertando as pernas, senti um prazer estranho que
vinha das virilhas. Que idade teria? Trs ou quatro anos no mximo (ANDRADE, 1954, p.
24). Como veremos adiante, outra caracterstica presente do mito de Zeus a aventura ertica
do deus grego, que ocorre da mesma forma no duplo de Oswald.
Seguindo os ritos comuns em autobiografias, o autor ir nos contar suas experincias
de a primeira vez... nas contingentes esferas da vida pessoal. A subsequente experincia
refere-se primeira viagem que faz ao Guaruj com os pais, fato importante que ficou na
memria afetiva do personagem (ANDRADE, 1954, p. 27). No mbito da atividade literria,
Oswald destaca a influncia do seu tio Herculano para sua formao de escritor, pois, para o
autor sendo o tio um literato, no soou mal essa palavra em casa, quando, muito cedo, eu
me declarei tambm disposto a escrever (ANDRADE, 1954, p. 29). Entretanto, o narrador
tinha conscincia da herana dos terrenos da Vila Cerqueira Csar, desse modo, a literatura no
constitua compromisso com as necessidades financeiras bsicas, como indica o ttulo da obra,
Oswald se v ironicamente como Um homem sem profisso.
Segundo o narrador, a influncia para sua formao de escritor no se deu apenas pela
imagem do tio, mas tambm pelo contato com seu primo Paulo, filho de Herculano, que lhe exps
o enredo de um conto que escrevia titulado O fantasma das praias. Registra Oswald que essa
histria me deslumbrou de tal modo que, quando Paulo partiu para o Rio, eu sorrateiramente
me aproveitei do assunto e escrevi O fantasma das praias. esse plgio o marco inicial de
minha vida literria (ANDRADE, 1954, p. 29-30). Nesse momento compreende-se o lado
confessional que assume as narrativas autobiogrficas, a franca exposio das transgresses
visa tambm absolvio das mesmas. Posteriormente ao fato do plgio, Oswald declara que
nas noites quietas, meus pais deitavam-se cedo. Eu procurava, sentado mesa de jantar, ensaiar
num caderno a minha nascente literatura sem motivos (ANDRADE, 1954, p. 49).
Na temtica de relacionamentos, o personagem declara que o seu primeiro amor na
infncia foi Sara, entretanto, longos anos depois, ao visitar os antigos vizinhos a moa lhe passou
completamente despercebida. Estava feia, ossuda, alta. Era outra pessoa (ANDRADE, 1954,
53
p. 53). Essa citao aponta que no percurso dessa composio autobiogrfica, o autor compe
os personagens secundrios da narrativa de forma cmica e caricatural, pois, na sequncia,
vrios deles aparecem descritos por caractersticas fixas e ridculas.
Conforme vimos em Rocha, a escrita autobiogrfica agrega dois movimentos de sentidos
opostos, por um lado, tm-se a tentativa de concentrao do eu, por outro, a disperso ou
desagregao da coerncia desse eu. Deste modo, uma fora centrpeta e uma fora centrfuga
duelam no mbito narrativo. Um homem sem profisso oscila entre essas duas foras, visto
que em vrias passagens ocorre o descentramento do eu. Nessas ocasies, a autobiografia
preenchida pela crnica de fundo histrico, como por exemplo, nota-se o espao que ocupa
a descrio da instalao e funcionamento do primeiro bonde eltrico em So Paulo, ou em
menor grau, a Revolta da Chibata, a gripe espanhola e a Primeira Guerra Mundial. Portanto,
a crnica o gnero amplamente utilizado pelo autor nas passagens em que o peso do eu
diminudo na sua autobiografia.
O autor apresenta em algumas passagens os livros que contriburam para sua formao
de leitor. Ainda na infncia, ele teve contato com as Espumas flutuantes, de Castro Alves;
Carlos Magnos e os doze pares de Frana; e, aos doze anos lia A ilha misteriosa, de Jlio
Verne. Posteriormente, na escola, o professor Gervsio de Arajo incentiva o nascente autor a
continuar sua trajetria na literatura. Oswald tambm dedica a esse professor o fato de ter se
tornado escritor, uma vez que o mesmo
declarava, mostrando as minhas composies, que eu possua uma decidida vocao
literria e que, como escritor, saberia honrar meu pas. Tomado de estmulo, ampliei
minha intimidade com o professor que me aconselhou logo a ler Os miserveis, de
Vitor Hugo (ANDRADE, 1954, p. 83).
Nessa citao, o autor utiliza um recurso literrio presente nas biografias de Plutarco, que
so as vises profticas a respeito da grandeza literria do protagonista no futuro. Nesse caso,
o referido professor pronuncia a profecia de que Oswald se tornaria um escritor que honraria
o pas. Na sequncia escreve o autor: enveredei por tragdias gregas, peas de Shakespeare e
Maeterlinck. Foi a que conheci, menino de loja, vivo, moreno, de negros cabelos, meu amigo
e editor Jos Olympio (ANDRADE, 1954, p. 83).
O narrador conta-nos que ao ler A relquia, de Ea de Queiroz, teve a sua primeira
crise de catolicismo, e registra que tendo da igreja a pior ideia, nunca deixei de manter em
mim um profundo sentimento religioso, de que nunca tentei me libertar. A isso chamo eu hoje
sentimento rfico (ANDRADE, 1954, p. 84). Depois de Oswald completar os estudos bsicos,
em 1909, ele admitido, a pedido de seu pai, para trabalhar na redao jornalstica do Dirio
popular de So Paulo. Adiante, em 1911, o autor funda O pirralho, jornal de carter satrico e
54
panfletrio. Nesse projeto juntou-se uma scia de poetas, escritores e jornalistas improvisados
(ANDRADE, 1954, p. 98-99). Reiterando o que afirmamos anteriormente, nessa autobiografia
o narrador muda de tpico de um pargrafo para o prximo usando somente um espaamento
duplo como recurso de sinalizao.
Aps explanar sobre o referido jornal, o autor registra que aos 20 anos eu tivera minha
iniciao sexual com duas hspedes de minha prpria casa (ANDRADE, 1954, p. 99). Em
seguida desse episdio e de algumas reflexes digressivas sociolgicas a respeito dos bordeis
no Brasil, o narrador retorna ao tpico do jornalismo. Segundo o autor, com o desenvolvimento
do seu prprio jornal que lutava pelo civilismo de Rui contra a ditadura de Pinheiro Machado,
pode demitir-se do Dirio popular e ter autonomia intelectual no seu peridico (ANDRADE,
1954, p. 103).
A primeira viagem a Europa de Oswald constitui uma das partes menos interessante
de Um homem sem profisso, sobretudo, se considerarmos a repercusso que teve as teorias
modernistas no Brasil vindas da Europa que foram densamente sublinhadas pelas histrias da
literatura nacional. Aps a referida viagem, o personagem questiona-se:
Por que gostava eu mais da Europa do que do Brasil? Os meus ideais de escritor
entraram grandemente nessa precoce tomada de posio. Tinha-se aberto um novo
front em minha vida. Nunca fui com a nossa literatura vigente. A no ser Machado de
Assis e Euclides da Cunha, nada nela me interessava (ANDRADE, 1954, p. 119).
Alm do sistema literrio, a outra parte que fascinara Oswald em relao Europa era
a existncia livre de artistas, com amores tambm livres e a boemia (ANDRADE, 1954, p.
120). Para o narrador, no Brasil tudo era considerado pecado e a Europa simbolizava a ideia de
liberdade sexual. Observa o autor, atravs de um intertexto com sua obra que
Quando Serafim Ponte Grande, recm chegado a Paris, dizia que agora podia trepar;
exprimia o meu desafogo. Meu pai me avisara que as mulheres eram fceis. Mas, no
Brasil tudo era feio, tudo era complicado. Sem dvida, atribuo o nmero imenso de
crimes sexuais aqui praticados pelos ditos tarados, dois mil e tantos em cerca de
dois anos, a essa conteno mantida pela nossa mentalidade colonizada, pelo pas
sem divrcio e onde, apenas nas classes altas, se esboa um movimento de liberdade
de ideias correspondente a evoluo moral do mundo. O tarado filho da falta de
divrcio. Na Europa, o amor nunca foi pecado. No era preciso matar para possuir
uma mulher. No havia l, sanes terrveis como aqui pelo crime de adultrio ou
seduo. Enfim o que existia era uma vida sexual satisfatria, consciente e livre. Os
contos de Maupassant j tinham me elucidado a esse respeito (ANDRADE, 1954, p.
122).
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Passado o perodo lutuoso do heri, num chal, veio a nascer o filho primognito de
Oswald com Kami, apelidado de Non, uma sntese de nosso nen com que meus pais me
haviam chamado na infncia (ANDRADE, 1954, p. 129).
Interessante obervar a crtica literria que o autor registra na sua autobiografia. Segundo
Oswald, o cnone literrio brasileiro do incio do sculo XX resumia-se a Olavo Bilac e Coelho
Neto, este ltimo, teve em vida um breve perodo de notoriedade, atualmente ningum se lembra
dos seus romances. Por conseguinte, conclui o narrador que houvera um surto de Simbolismo
com Cruz e Sousa e Alphonsus Guimares mas a literatura oficial abafava tudo. Bilac e Coelho
Neto, Coelho Neto e Bilac (ANDRADE, 1954, p. 133).
Durante a viagem no transatlntico para Europa, Oswald tinha conhecido a pequena
danarina Carmen Lydia, cujo nome artstico era Landa Kosbach. O autor batizara a referida
bailarina na Itlia, e aps alguns anos, devido Primeira Guerra Mundial ela migra para o
Brasil. Nesse momento, sublinha o narrador: Landa tem dezesseis anos. uma flor de carne
musculosa e doirada. Com a velha atrs, cheia de vidrilhos (ANDRADE, 1954, p. 139). A
velha a guardi da moa, que o protagonista conhecera tambm no navio. A partir desse
momento a vida do personagem se transforma em uma obsesso para casar-se com a sua nova
Dulcinia.
No episdio de Landa, depreendemos que a escrita de Um homem sem profisso apresenta
uma srie de intertextos com a literatura clssica e moderna, em especial, as tragdias. No
percurso da composio de Oswald encontramos referncias a Homero, dipo, Macbeth, Otelo,
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Irmos Grimm, Dom Quixote, Virglio, a bblia, dentre outras obras de cunho sociolgico e
filosfico.
Aps o tumultuoso envolvimento com Landa, o protagonista toma uma espcie de
atitude crist superior e passa a narrar como conheceu Mrio de Andrade, Di Cavalcanti,
Monteiro Lobato e outros. Oswald retorna em nova aventura ertica com Deisi, descrita como
esqueltica e dramtica, com uma mecha de cabelos na testa, alcunhada de Miss Cclone
(ANDRADE, 1954, p. 175). Ele aluga uma garonire em 1917, e a partir desse momento
comea a ter uma roda de intelectuais que o visitam periodicamente, que so em sntese, os
precursores do modernismo em So Paulo. Nessa parte a prpria narrativa autobiogrfica de
Oswald assume uma feio modernista atravs de uma tcnica-compositiva de cartas, bilhetes
e intertextos com Memrias sentimentais de Joo Miramar, que dialogam com a presente
autobiografia.
Depois de narrar o falecimento do pai, ocorrido em 1919, e defender Anita Malfatti da
crtica de Monteiro Lobato, a autobiografia de Oswald tem seu clmax e desfecho com a triste
morte de Deisi, por posteriores complicaes de um aborto sugerido pelo cime do protagonista.
Registra o autor: sinto-me s, perdido numa imensa noite de orfandade. A amada que me deu a
vida partiu sem me dizer adeus (ANDRADE, 1954, p. 218). Nesse ponto, a narrativa concluise na orfandade, uma vez que a matinada, ou seja, a maturao j estava concluda.
Retomando o exposto at o momento, a autobiografia de Oswald de Andrade enquadrase no conceito de Lejeune, visto que uma narrativa retrospectiva em prosa que focaliza em
particular o desenvolvimento de sua personalidade. Pode-se afirmar que Um homem sem profisso
apresenta trs mitos: Narciso, Zeus e Teseu. A propsito das motivaes que podem presidir a
escrita autobiogrfica, encontra-se em Oswald quatro das sete enunciadas por Rocha: 2) dar-se
corajosamente na revelao do seu lado bom e do seu lado mau; 4) pedir absolvio; 5)
fazer a crnica pessoal de um tempo, transformar a autobiografia num testemunho; 6) tentar
recuperar o passado atravs da memria.
De acordo com a abordagem de Colonna, a autobiografia de Oswald classificada como
uma autofico biogrfica, isto , o autor protagonista narra a sua vida, e ao mesmo tempo, a
ficcionaliza.
Consideraes finais
Em sntese, o exame de Um homem sem profisso: memrias e confisses sob as ordens
de mame V.I 1890-1919 mostra que a autobiografia de Oswald de Andrade apresenta as
seguintes peculiaridades:
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Referncias
ANDRADE, Oswald. Um homem sem profisso: memrias e confisses V.I sob as ordens de
mame. So Paulo: Jos Olympio, 1954.
BARTHES, Roland. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975.
COLONNA, Vincent. Autofictions & autres mythomanies littraires. Auch: Tristram, 2004.
DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galile, 1977.
DURAND, Gilbert. Campos do imaginrio. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
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A DOUTRINA CRIST:
ELOQUNCIA E CLAREZA
Carina Kilian1
UNISC
1 INTRODUO
A Retrica uma metalinguagem. Por meio dela analisam-se os mais variados discursos
(verbais ou no verbais) nos quais esteja presente o objetivo persuasivo. Um deles o discurso
religioso. Em A doutrina crist, texto escrito por Santo Agostinho (2011) para instruir os
pregadores religiosos, observamos uma defesa da verdade que, segundo o bispo de Hipona,
somente pode ser obtida por meio da f religiosa. Essa verdade se encontra apenas nas Sagradas
Escrituras. Nesse sentido, com a referida obra, Agostinho (2011) elabora um manual de tcnicas
para leitura, interpretao e transmisso do sentido correto expresso nos textos bblicos.
Agostinho (2011) segue os preceitos da Retrica Clssica, adaptando-os s necessidades da
pregao religiosa.
Santo Agostinho (2011) segue a concepo expressa por Plato no Fedro, segundo a
qual a Retrica legtima s se estiver ao servio do bem e da verdade. Mas em contraposio
a Plato, a verdade da qual ele fala a verdade da revelao crist e no a verdade obtida na
Filosofia por meio somente da fora do intelecto humano. O pregador religioso deve transmitir
da forma mais clara possvel o contedo da Revelao. Mas tambm deve ser um apologista,
dado que deve defender o cristianismo dos ataques dos intelectuais pagos. Nessas duas tarefas
necessitar dos recursos da arte Retrica.
Veremos aqui como Santo Agostinho (2011) considera, no Livro IV de sua obra - A
doutrina crist, o modo a ser usada aquela parte da Retrica que os romanos chamaram elocutio
e que se ocupa da expresso do discurso.
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Agostinho (2011) disserta sobre a melhor maneira de expor a doutrina crist. Em vrios trechos,
o bispo de Hipona insiste em que a arte Retrica s pode ser empregada para defender a verdade
crist. Mas aqui Agostinho (2011), mesmo que sua posio se origine no Fedro de Plato, se
afasta da maneira usual e tradicional de considerar a Retrica. Com efeito, Aristteles, Ccero e
Quintiliano ligaram a Retrica no com a verdade seno com o verossmil. De fato, na Retrica,
no se pode falar de uma verdade nica, mas de verdades e, mais precisamente, do que
verossmil.
A Retrica, diz Aristteles (2005), ensina a argumentar em favor dos dois lados de
uma questo. Segundo esse filsofo grego, o raciocnio retrico tem como premissas aquelas
opinies aceitas pela maioria, pelo fato de serem verossmeis. Ele no parte de proposies que
devam ser aceitas por estar em conformidade com uma determinada doutrina religiosa.
O bispo de Hipona afirma que um fato, que pela arte da Retrica possvel persuadir
o que verdadeiro como o que falso (AGOSTINHO, 2011, IV, 2, 3, p. 208), logo, a f crist
no pode ficar desamparada perante a mentira. Dessa forma, ele pergunta por qual motivo as
pessoas honestas tambm no fariam uso das tcnicas da Retrica para promover o bem, e a
partir disso que ele inicia seu trabalho.
Para o bispo de Hipona, Eis o que constitui o talento da palavra ou da eloquncia: os
princpios e preceitos dessa arte unidos ao emprego engenhoso da linguagem, especialmente
exercitada a realar a riqueza do vocabulrio e do estilo (AGOSTINHO, 2011, IV, 2, 3, p.209).
Assim, a Retrica torna-se uma grande aliada para a defesa da f crist, embora Santo Agostinho
(2011) condene os usos que os pagos fizeram dela.
A respeito da eloquncia, sabemos que, desde Aristteles (2005, III, 1404b, p. 244), a
(...) virtude suprema da expresso enunciativa a clareza. Sinal disso que, se o discurso no
comunicar algo com clareza, no perfar a sua funo prpria. E ele nem deve ser rasteiro, nem
acima de seu valor, mas sim adequado.
Dessa forma, a clareza fundamental para o bom entendimento de todos, j que o
auditrio pode ser constitudo de pessoas com nveis diferentes de conhecimento. Ademais, a
adequao do estilo ao assunto outro fator que desempenha muita fora na persuaso, pois
ele quem d o tom desencadeador da adeso do auditrio tese do orador.
A Retrica tem aplicao em diferentes mbitos da linguagem (verbal ou no verbal),
mas sua conceituao varia entre os prprios autores. Lausberg (1967), por exemplo, a divide
em Retrica de sentido lato (qualquer discurso) e Retrica de sentido restrito (Retrica escolar,
do mbito jurdico), que objeto de ensino desde o sculo V a.C. A Retrica um sistema
mais ou menos bem elaborado de formas de pensamento e de linguagem, as quais podem servir
finalidade de quem discursa para obter, em determinada situao, o efeito que pretende (3)
(LAUSBERG, 1967, p.75).
61
Para esse autor, a Retrica definida como uma arte que se utiliza do pensamento
e dos recursos da linguagem. No nvel do pensamento, esto a inventio e a dispositio. Elas
tm por finalidade encadear os pensamentos para promover a credibilidade. J no nvel da
linguagem, na elocutio, est a anlise dos recursos lingusticos que o orador deve escolher se
quiser conseguir a adeso de sua audincia. A elocutio ensina como o orador deve se expressar
para ser compreendido.
Contudo, muitas vezes, a clareza no alcanada devido ao mau emprego das categorias
lingusticas no discurso (LAUSBERG, 1967). Elas desencadeiam o fenmeno chamado
obscuridade lingustica, do qual Santo Agostinho (2011) tambm se ocupa na Doutrina crist
ao tentar elucidar o significado do discurso bblico.
Para Lausberg (1967, 130, p.126,), a clareza (...) consiste na compreensibilidade
intelectual do discurso. A compreensibilidade intelectual , ela prpria, condio prvia da
credibilidade: s aquilo, que compreendido, pode ser crvel.
Portanto, a compreensibilidade do discurso depende do bom desempenho do orador ao
empregar corretamente as categorias lingusticas, mas no somente isso. Ao orador, compete
uma srie de habilidades que fazem parte de sua formao. Segundo Ccero (2009, I, 138, p.169),
(...) o primeiro ofcio do orador discursar de maneira adequada para atingir a persuaso
(...).
No De oratore, Crasso expe que toda a faculdade do orador se organiza em cinco
partes: a primeira (inveno) encontrar o que dizer; a segunda (disposio), organizar o assunto
conforme a importncia; a terceira (elocuo) ornar o discurso; a quarta (memria), guardar os
temas na memria; a quinta (ao) atuar com graa. Ademais, preciso discursar de maneira
clara para obter a adeso dos ouvintes ou leitores:
Ouvira tambm o que se ensina acerca dos ornamentos do discurso propriamente
dito: em primeiro lugar, preceitua-se que, no discurso, falemos de maneira pura e
correta, em seguida, de modo claro e lmpido, ento ornadamente, depois, de maneira
adequada dignidade dos temas e, por assim, dizer, decorosa (...) (CCERO, 2009, I,
142-146, p.170).
Nesse trecho, fica salientada a importncia do estilo que deve ser claro e lmpido, ornado
quando necessrio, e adequado aos temas sobre os quais disserta.
Ccero (2009, I, 150, p. 171) afirma tambm que a melhor atividade do orador a
escrita: A escrita a melhor e mais importante realizadora e mestre do discurso; e no h
insulto nisso; se a preparao e a reflexo supera o discurso improvisado e fortuito, evidente
que a escrita assdua e cuidadosa ser superior a ela. J Plato, filsofo grego, considera que a
melhor amiga do orador a fala, pois um texto escrito no consegue explicar todos os seus os
sentidos possveis sem a presena do autor.
62
Na eloquncia, o orador precisa adaptar o seu discurso a um estilo. Para Reboul (2004,
p. 62),
O melhor estilo, ou seja, o mais eficaz, aquele que se adapta ao assunto. Os latinos
distinguiam trs gneros de estilo: o nobre (grave), o simples (tenue) e o ameno
(medium), que d lugar anedota e ao humor. O orador eficaz adota o estilo que
convm a seu assunto: o nobre para comover (movere), sobretudo na perorao; o
simples para informar e explicar (docere), sobretudo na narrao e na confirmao; o
ameno para agradar (delectere), sobretudo no exrdio e na digresso.
Santo Agostinho (2011), por sua vez, considera importante misturar os trs gneros de
estilo. O melhor, para ele, ir variando os trs estilos medida que o assunto se presta a isso.
Ainda que nosso orador capacitado tenha sempre questes importantes a tratar,
ele no deve faz-lo constantemente em estilo sublime, mas em estilo simples, se
estiver a ensinar; e em estilo temperado, se estiver a censurar ou louvar. Mas quando
for preciso determinar ao os ouvintes que deveriam agir, mas que resistem, ele
empregar, ento, para expor as grandes verdades, o estilo sublime e os acentos
prprios a comover os coraes. E algumas vezes, a respeito de uma mesma questo
importante, empregar o estilo simples para ensinar o estilo temperado para enaltecer,
e o sublime para fazer voltar verdade um esprito desviado (AGOSTINHO, 2011,
IV, 20, 38, p. 245-246).
63
Para Aristteles (2005, III, 1404b, p. 244), a (...) virtude suprema da expresso
enunciativa a clareza. Sinal disso que, se o discurso no comunicar algo com clareza, no
perfar a sua funo prpria. Em outras palavras, se o discurso no for claro, no ir persuadir,
conforme j citamos Lausberg (1967) e o prprio Aristteles (2005).
Segundo o filsofo grego, no discurso, trs modos significativos podem ser empregados:
o sentido prprio, o sentido apropriado e a metfora. O prprio o sentido que se mostra no
uso comum de uma expresso; apropriado um uso no familiar do termo ou expresso, por
exemplo ao usar uma palavra em sentido tcnico ou quando lhe outorgamos um sentido arcaico;
e a metfora um significado transposto de uma palavra para outra, efetuado numa relao de
transferncia e/ou substituio.
Ainda, para Aristteles (2005), sobretudo o estilo apropriado [que] torna o assunto
convincente, pois, por paralogismo, o esprito do ouvinte levado a pensar que aquele que
est a falar diz a verdade (ARISTTELES, 2005, III, 7, 1408a, p. 257). Outrossim, preciso
adequar o estilo ao auditrio, pois, na verdade, o rstico e o instrudo no falam do mesmo
modo (ARISTTELES, 2005, III, 7, 1408a, p. 258). necessrio, ainda, ter cuidado e adequar
a expresso a cada gnero do discurso, se deliberativo, judicirio ou epidctico, bem como
observar se o texto oral ou escrito.
3 ELOQUNCIA ECLESISTICA
a partir desses elementos da Retrica Clssica (habilidades do orador, discurso e
auditrio) que Santo Agostinho (2011) elabora a sua Retrica Religiosa. Para ele, o que importa
a compreenso satisfatria dos sentidos expressos nas Sagradas Escrituras, bem como a sua
transmisso adequada aos fiis. Dessa forma, o discurso cristo atingir o seu final persuasivo:
Um homem fala com tanto maior sabedoria, quanto maior ou menor progresso faz
na cincia das santas Escrituras. E eu no me refiro ao progresso que consiste em
ler bastante as Escrituras, ou aprend-las de cor, mas do progresso que consiste em
64
Logo, h na Doutrina crist uma hermenutica das Sagradas Escrituras, seguida de uma
teoria sobre a eloquncia apropriada pregao crist. Contudo, na ptica de Santo Agostinho
(2011), se o orador no tiver inclinao para a leitura de obras eclesisticas, para meditar sobre
seu contedo e para escrever suas ideias conforme a f, de nada lhe serviro os preceitos da
Retrica.
Seguindo a Retrica Clssica, Santo Agostinho (2011) define o Procedimento do orador
cristo:
O pregador o que interpreta e ensina as divinas Escrituras. Como defensor da f
verdadeira e adversrio do erro, deve mediante o discurso ensinar o bem e refutar o
mal. Nesta tarefa, o mestre deve tratar de conquistar o hostil, motivar o indiferente
e informar o ignorante sobre o que deve ser feito ou esperado. Mas ao encontrar
ouvintes benvolos, atentos dispostos a aprender ou que os tenha assim conquistado,
dever prosseguir seu discurso como pedem as circunstncias.
Caso a questo a ser tratada seja desconhecida e for preciso esclarecer os ouvintes, que
faa a exposio. Onde houver dvidas, que ele convena, por raciocnios apoiados
em provas.
oportuno dar sua exposio maior fora, caso tenha sido preciso convencer os
ouvinte, alm de ensin-los, e tambm para que no se aborream no cumprimento do
que j conhecem ou para lev-los a pr sua vida em coerncia com as ideias reconhecidas
como verdadeiras. A, com efeito, so necessrias exortaes, invectivas, movimentos
vivos, reprimendas e todo outro procedimento capaz de comover os coraes.
Na verdade, a quase totalidade dos homens, em sua atividade oratria, no deixa de
agir dessa maneira (AGOSTINHO, 2011, IV, 4, 6, p.211).
Santo Agostinho foi professor de Retrica e o seu grande referente era Ccero, autor em
lngua latina, j que o bispo de Hipona antipatizava com a lngua grega. Dessa forma, boa parte
das citaes em A doutrina crist fundamentada em conceitos de Ccero. Citamos abaixo uma
referncia do bispo ao orador romano sobre o vnculo necessrio entre eloquncia e sabedoria:
Tal observao no escapou aos que julgavam outrora a eloquncia dever ser ensinada.
Reconheceram, com efeito, que a sabedoria sem eloquncia foi pouco til s cidades,
mas, em troca, a eloquncia sem sabedoria lhes foi frequentemente bastante nociva e
nunca til (Ccero, De inventione, lber I, 1) (AGOSTINHO, 2011, IV, 5, 7, p.212).
Acima de tudo, para Santo Agostinho (2011), quando da eloquncia, o orador religioso
65
precisa ser fiel s palavras das Sagradas Escrituras. Refora ainda que a sabedoria e a eloquncia
juntas so fundamentais para o efeito persuasivo.
, pois, de toda necessidade para o orador que tem o dever de falar com sabedoria,
ainda que no consiga faz-lo com eloquncia ser fiel s palavras das Escrituras.
Pois quanto mais ele se reconhece pobre quanto s suas prprias palavras, mais
convm sentir-se rico quanto quelas outras palavras. Justificar, desse modo, o
que disser com as suas prprias palavras. Assim, quem era menor por seu prprio
vocabulrio crescer pelo testemunho das magnficas palavras da Escritura. Ele
agradar, certamente, ao provar com citaes escritursticas, j que pode desagradar
com suas palavras pessoais.
Entretanto, o orador que desejar falar, no somente com sabedoria, mas tambm com
eloquncia, ser mais til se puder empregar essas duas coisas (AGOSTINHO, 2011,
IV, 5, 8, p. 213).
Com efeito, os que falam eloquentemente so escutados com prazer e os que falam
sabiamente, com proveito (AGOSTINHO, 2011, IV, 5, 8, p. 214).
Sabe-se que na parte da eloquncia, h o uso de figuras retricas. Santo Agostinho (2011)
no as estuda detalhadamente na Doutrina crist. Elas j tinham sido analisadas por Aristteles
na sua Potica e na sua Retrica e tambm por Quintiliano. Mesmo assim, ele aborda algumas
delas quando analisa textos, principalmente, de So Paulo e de outros autores, demonstrando
o modo ideal de estudo das Escrituras. Isto , convm que o orador cristo compreenda que
h sentidos figurados, os quais no podem ser tomados como literais. Ele adverte que toda a
palavra que contradiz os preceitos de f, caridade e amor est em sentido figurado.
No que se refere formulao de uma Retrica Religiosa, Santo Agostinho (2011) vai
elaborando algumas concluses. A primeira trata-se da clareza da expresso ser mais importante
do que a prpria eloquncia, pois a clareza que permite a credibilidade do auditrio, mas
o ideal so as duas juntas, pois a eloquncia promove a adeso do auditrio. Sua segunda
concluso reservar as dificuldades a auditrio escolhido, partilhando, assim, da posio de
Plato, Aristteles e Ccero ao considerar a adequao do tema ao auditrio.
Por mais difceis que sejam as verdades sobre as quais j temos certo conhecimento,
no devemos poupar esforo algum, em nossos dilogos, para dar a conhec-las aos
outros. Se tivermos auditrio ou interlocutor, desejoso de aprender e dotado de aptido
intelectual que o permita perceber as verdades expostas, de qualquer modo seja, no
nos preocupemos no ensino com o grau de eloquncia, mas sim com a clareza na
exposio (AGOSTINHO, 2011, IV, 9, 23, p. 229).
Segundo Santo Agostinho (2011), por ser a clareza muito importante, s vezes,
66
preciso abrir mo da elegncia ou mesmo abdicar do modo correto de falar conforme prega a
gramtica:
D-se renncia elegncia, no, porm, para cair na trivialidade. Tal e deve ser
a aplicao do doutor sbio em instruir: que ele prefira a uma expresso obscura e
ambgua, pelo prprio fato de ser latina, uma expresso mais familiar aos ignorantes
do que aos cultos. Isso quando esta apresenta, na linguagem vulgar, sentido claro e
determinado (AGOSTINHO, 2011, IV, 10, 24, p. 229).
A defesa da clareza se d porque a melhor forma de ensinar aquela pela qual quem
escuta no s ouve a verdade, mas a entende. (AGOSTINHO, 2011, IV, 10, 24, p. 231). Por
isso, sua terceira concluso falar com clareza. Dessa forma, o orador precisa proferir um
discurso claro, objetivo e tambm com certa graa, quando quiser agradar.
A quarta concluso do bispo de Hipona falar com clareza e elegncia: Em suma,
na sua funo de instruir, a eloquncia consiste em falar no para tornar agradvel o que
desagradava, nem para fazer ser cumprido o que repugnava, mas para tornar esclarecido o que
estava obscuro (AGOSTINHO, 2011, IV, 11, 26, p. 232). Dessa forma, a eloquncia assume
o carter no agradvel do discurso, mas tambm um papel importante na clareza das ideias
expostas.
Portanto, para Santo Agostinho (2011) no se pode discursar de qualquer forma. Se o
orador (...) pretende agradar ou convencer seu auditrio, no o conseguir falando de qualquer
modo (AGOSTINHO, 2011, IV, 12, 27, p. 233). Logo, o estilo do discurso a ser empregado
precisa ser adequado ao tipo de assunto.
portanto necessrio que o orador eclesistico, ao persuadir a respeito de dever a
ser cumprido, no somente ensine para instruir e agrade para cativar, mas, ainda,
convena para vencer. No lhe resta, com efeito, seno um meio para levar o ouvinte
a dar seu consentimento: o de convencer pelo poder da eloquncia, no caso em que
a demonstrao da verdade unida ao encanto da expresso no conseguiu faz-lo
(AGOSTINHO, 2011, 13,29, p. 236).
67
Conforme Santo Agostinho (2011), a eloquncia a ser seguida aquela proposta por
Cipriano: uma eloquncia sria e sbria, o qual a desenvolveu numa etapa posterior de seus
estudos retricos (AGOSTINHO, 2011, IV, 15,31,p.237).
No que se refere ao estilo, Santo Agostinho (2011) os relaciona aos trs objetivos:
instruir, agradar e converter. O primeiro deles relaciona-se ao estilo simples; o segundo, ao
estilo temperado; e o terceiro, ao estilo sublime.
Pois a esses trs objetivos (instruir, agradar e converter) correspondem
trs tipos de estilos, como parece ter desejado demonstrar aquele mestre
de eloquncia romana quando disse de modo anlogo: Ser eloquente
poder tratar assuntos menores em estilo simples; assuntos mdios em
estilo temperado e grandes assuntos em estilo sublime (Ccero, De
Oratore, 29,10s). (AGOSTINHO, 2011, IV, 18, 34, p.242).
Segundo Santo Agostinho (2011), o Carter original da eloquncia sacra tratar as
questes pequenas como se fossem grandes, j que o fundamento de toda a Retrica Crist
agir para a salvao da alma humana. Enfatiza, sobretudo, que no h nada maior que Deus, por
isso qualquer que seja a forma empregada para louv-lo nunca ser suficiente.
4 CONSIDERAES FINAIS
A clareza no discurso religioso torna-se fundamental para a compreenso da palavra
divina, a fim de cativar o auditrio. J a eloquncia, empregada em todos os casos, mas
principalmente necessria para converter quando a demonstrao no suficiente. O discurso,
por seu turno, deve ser adequado ao pblico e, nele, deve predominar um estilo oratrio de
acordo com o tema e com as intenes do orador. Este, de sua parte, precisa adotar vrias
tcnicas oratrias para atingir seus objetivos. Sua principal caracterstica o proferimento com
sabedoria.
Dessa forma, Santo Agostinho (2011) espelhado nos tratadistas da Retrica, com
referncia predominante a Ccero, vai adaptando, na Doutrina crist, os preceitos da Retrica
Clssica, formando assim um manual de Retrica Religiosa, com dicas de como estudar,
compreender e repassar a mensagem das Sagradas Escrituras.
Nosso trabalho visa a preencher uma lacuna nos estudos retricos atuais. No se deve
esquecer que foi no mbito da pregao religiosa que a Retrica sobreviveu a partir do sculo
XVII quando a busca da certeza e da evidncia, motivada pelo surgimento da Filosofia e da
Cincia moderna, a colocou em desprestgio.
68
REFERNCIAS
AGOSTINHO, Santo. Bispo de Hipona, 354-430. A doutrina crist: manual de exegese e
formao crist. Traduo de Nair de Assis Oliveira. 3. ed. So Paulo: Paulus, 2011. (Patrstica;
17)
ARISTTELES. Retrica. Traduo de Manuel Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto e
Abel do Nascimento Pena. Centro de Clssicos da Universidade de Lisboa. Centro de Filosofia
da Universidade de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
CCERO, Marco Tlio. Dilogo sobre as divises da oratria. Traduo de Mauro Vieira
Maciel. Uruguaiana: M.V. Maciel, 1998.
______. De oratore. Books I and II. London: William Heinemann Ldt.; Cambridge,
Massachusetts: Harvard University Press, 1942.
______. Sobre o orador. Traduo de Adriano Scatolin. In: SCATOLIN, Adriano. A inveno
no Do orador de Ccero: um estudo luz de Ad Familiares I, 9, 23. 2009. Tese (Doutorado
em Letras Clssicas) - Departamento de Letras Clssicas e Vernculas. Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas. So Paulo, 2009.
______. Divisions de l art oratoire. Topiques. Traduo francesa de Henri Bornecque. Paris:
Les Belles Lettres, 2002.
______. De l invention. Traduo francesa de Guy Achard. Paris: Les Belles Lettes, 2002.
LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retrica literria. Traduo de R. M. Rosado Fernandes.
3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1967.
PLATO. Grgias. O banquete. Fedro. Srie Clssicos Gregos e Latinos. Lisboa/So
Paulo: Verbo, 1973.
REBOUL, Olivier. Introduo retrica. So Paulo: Martins Fontes, 2004.
69
REFERENCIAL TERICO
Segundo Pereira (2011, p.45) explica que:
Para a Lingustica no existem variantes melhores ou piores dentro de um sistema
lingustico. H variantes que so consideradas de prestgios, estigmatizadas ou
neutras.
OBJETIVOS
- Pesquisar e aprofundar estudos na rea da lingustica e suas variaes na Lngua
Brasileira de Sinais, dentro do estado do Rio Grande do Sul;
- Comparar estas variaes dentro de um contexto de diferenas culturais e sociais de
cada regio;
- Analisar os preconceitos lingusticos existentes em relao ao uso LIBRAS.
METODOLOGIA
70
- Coleta de dados por entrevistas semi estruturadas realizadas com sujeitos surdos,
formados no curso de Licenciatura Plena de Letras Libras;
- Entrevistas sinalizadas (Libras), com apresentao dos sinais e gravao em vdeo.
Ex.: sinalizando a palavra PRECONCEITO
RESULTADOS
- Existem variaes lingusticas diferentes em cada regio do Estado do Rio Grande do
Sul;
- Concentram-se as maiores diferenas ao norte do Estado;
71
BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Lei Federal n 10.436 de 24 de abril de 2002. Disponvel em www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/2002/l10436.htm. Acessado em junho de 2013.
PEREIRA, Karina vila. Estudo sobre a Variao Lingustica da Libras no Contexto da
Educao de Surdos. Pelotas/RS: Ed. Universitria UFPEL, 2011.
STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianpolis/SC: Ed. UFSC,
2008.
72
73
O corpo feminino o fio que tece o poema eleito para o presente trabalho, Ejercicios
materiales, cujo ttulo o mesmo do livro. O poema marcado por um tom austero, bem ao
gosto vareliano, pois traz a instncia divina ao dilogo e expe o ser humano entregue nas mos
de Deus, como um animal em sacrifcio. Alguns crticos, como Adolfo Castan e Eduardo
Chirinos, percebem, j no ttulo do poema, uma aluso obra Ejercicios espirituales (1548), de
San Ignacio de Loyola, cujo objetivo ltimo o de servir de guia aos que desejam ascender
graa divina e purificar a alma. Mas Ejercicios materiales, apontam eles, tem uma motivao
diferente: aqui, os exerccios giram em torno da carne, do material, do corpreo. Alm disso,
enquanto no primeiro Loyola enfatiza a figura de Cristo, em Blanca Varela tem-se como sujeito
de destaque o homem ou, antes, a mulher, coberta, composta por toda sua feminilidade, corpo
em sacrifcio capaz de se descarnalizar como qualquer corpo, mas que, ao mesmo tempo, o
nico com capacidade de gerar vida:
convertir lo interior en exterior sin usar el
cuchillo
sobrevolar el tiempo memoria arriba
y regresar al punto de partida
al paraso irrespirable
a la ardorosa helada inmovilidad
de la cabeza enterrada en la arena
sobre una nica y estremecida extremidad
lo exterior jams ser interior
el reptil se despoja de sus bragas de seda
y conoce la felicidad de penetrarse a s
mismo
como la noche
como la piedra
como el ocano
conocimiento
amor propio sin testigos
conocerse para poder olvidarse
dejarse atrs
una interrogacin cualquiera
rengueando al final del camino
un nudo de carne saltarina
un rancio bocadillo
cado de la agujereada faltriquera de dios
enfrentarse al matarife
74
75
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De fato, o poema de Varela aponta negativamente essas questes do cristianismo ocidental e o sujeito potico reconhece que lo exterior jams ser interior. Porm, destaca-se
que, apesar de o espao delineado por Blanca Varela no ser um espao religioso-cristo, pode
ser considerado um lugar sagrado, pois h a aluso ao ventre materno, lo nico realmente
hmedo y misterioso de/ nuestra existncia/ el gran pozo el ascenso a la santidad/ el lugar de
los hechos (v. 59-63). Mircea Eliade sublinha que, na experincia do espao profano, ainda
intervm valores os quais, de alguma maneira, remontam experincia religiosa do espao; por
exemplo, lugares diferentes dos outros que, de certo modo, at para o sujeito no religioso, carregam uma qualidade nica: so os lugares sagrados do seu universo privado, como se neles
um ser no religioso tivesse tido a revelao de uma outra realidade, diferente daquela de que
participa em sua existncia cotidiana (ELIADE, 1992, p. 28).
Alm disso, entre os espaos profano e sagrado h um limiar, uma porta que os divide,
simbolizando uma passagem. Eliade, nesse sentido, assim coloca:
No interior do recinto sagrado, o mundo profano transcendido [...] no recinto
sagrado, torna-se possvel a comunicao com os deuses; consequentemente deve
existir uma porta para o alto, por onde [...] o homem pode subir simbolicamente ao
cu (ELIADE, 1992, p. 29).
Considerando que em Blanca Varela o aspecto divino est intimamente ligado ao corpreo, em
um sentido de queda, essa porta poderia representar el gran ojo de la vida que s as mulheres tm o dom de possuir, e a passagem recm-citada pode ser expressa j nos primeiros
versos do poema: y regresar al punto de partida/al paraso irrespirable/a la ardorosa helada
inmovilidad/ de la cabeza enterrada en la arena (v. 4-7). A imagem da cabea enterrada na
areia acompanha tal hiptese interpretativa, j que, simbolicamente, a posio de cabea para
baixo designa o oposto da ascenso ao cu, do polo de Deus; ao contrrio, afunda-se em direo
ao submundo animal, s regies inferiores (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). E l, no
centro feminino, onde a vida gerada, onde se forma a matria humana. Essa relao inversa,
do sagrado que se acha no material, pode ser percebida tambm nos versos finais do poema:
gravedad de la nube enquistada en la grasa/ gravedad de la gracia que es grasa perecible (v.
79-80). Varela joga com as palavras gracia e grasa, que se assemelham na grafia e no som, acentuando a proximidade das duas instncias opostas.
H uma tenso constante entre o sagrado e o profano em todo o poema. Emblemtico
em Varela, o dilogo com o religioso tenso; talvez aqui essa conversao seja mais forte e
spera pelo modo como o eu potico designa deus: matarife, el divino con parsimonia de
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verdugo. A nica identificao possvel que se estabelece entre ele e o sujeito se d atravs do
sofrimento: no es fcil responderse/ y escucharse al mismo tiempo/ el azogue no resiste/ se
hincha y quiebra la imagen/ constelndola de estigmas (v. 43-47). Tem-se, aqui, uma autocontemplao como passo para a contemplao divina, mas essa tentativa de contemplao pessoal
insuficiente: o sujeito no consegue se reconhecer como imagem e semelhana de deus, o nico vnculo possvel pela dor. Alm disso, a prpria poeta comenta, em uma entrevista citada
por Ina Salazar, que desde pequena descobriu a surdez dos maiores, de Deus. Assim, decidiu
responder a si mesma, inventando vozes para suprir a solido. De acordo com a ensasta:
La palabra es el lazo, pero es el lazo con la ausencia, el vaco, y ese espacio vacante
va a aparecer representado por el trmino Dios, omnipresente en toda la obra. Signo
lingstico que ha perdido su referente y tambin significante al que la poeta le va
a otorgar diversos significados a veces contradictorios. As como se habla de una
teologa negativa podra definirse como negativa la comunicacin de la poeta con
Dios (SALAZAR, 2013, p. 9).
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porm, que desliza por entre os dedos, da mesma forma como escorrega atravs do tempo
contvel, do espao mensurvel [...] para refugiar-se no mundo de baixo, de onde vem e
onde a imaginamos intemporal, permanente e imvel na sua completude (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 815). Enquanto fmea, ela enigmtica, secreta, com inmeras
metamorfoses. Essas qualificaes podem ser percebidas no poema, visto que a serpente/mulher
designada despida de sua roupa ntima e conhecedora da felicidade de penetrar-se a si mesma.
Em outras palavras: voltada ao seu centro interno, a mulher capaz de gerar matria que a sua
extenso, a metamorfose feminina se d no corpo, atravs da gestao.
Nesse sentido, h uma transformao no decorrer do poema que remete ao corpo
feminino e, assim, ideia de nascimento:
as cados para siempre
abrimos lentamente las piernas
para contemplar bizqueando
el gran ojo de la vida
lo nico realmente hmedo y misterioso de nuestra existencia
el gran pozo
el ascenso a la santidad
el lugar de los hechos
entonces no antes ni despus
se empieza a hablar con lengua de ngel
y la palabra se torna digerible
y es amable el silbo de los aires
que brotan quedamente y circulan
por nuestros puros orificios terrenales
protegidos e intactos
bajo el velln sin mcula del divino cordero
O ato de contemplao centra-se no rgo genital feminino, o lugar de los hechos;
l, nesse lugar exato, que ocorre a transformao, onde se comea a falar com lngua de
anjo, marcando a sacralizao desse local. Pode-se pensar, certamente, que se trata da gerao
e nascimento de um filho, mas, levando em conta a questo da palavra y la palabra se torna
digerible , o nascimento enquanto aspecto divino estaria na prpria criao do poema, o
nascimento e a materialidade da palavra escrita, palavra potica que transcende o corpreo: En
el poema se hace hablar al cuerpo, y ste por el lenguaje se trasciende (SALAZAR, 2013, p.
13); palavra que, aps digerida, internalizada, se exterioriza, e isso representado no poema de
uma forma bastante corporal, que coloca lado a lado o humano e o animal: santa molleja/ santa/
vaciada/ redimida letrina (v. 73-76). Percebe-se que o sentido convencional da maternidade
subvertido, pois o parto comparado evacuao, relao que pode ser estabelecida por
80
um vis negativo, primeiro pelo sofrimento mesmo de parir um filho/ criar um poema, e pelo
fato de, uma vez fora, o interior se converter em exterior. Apesar de ter sido criado imagem
e semelhana do criador/ me, nunca sero iguais e nunca mais haver o regresso: lo exterior
jams ser interior (v. 9).
Assim, os exerccios materiais de Blanca Varela, bem como as regras espirituais de
Loyola tambm ensinam, guiam o leitor; todavia o caminho de ascese enfoca a matria, a
constatao e aceitao da gracia enquanto grasa perecible. A graa, o divino centra-se no
corpreo, e a ideia de gerar, ainda que haja o reconhecimento de que el exterior jamas ser
interior, preenchida por um certo otimismo: apesar de estarmos en la mano de dios, sendo, assim, sujeitos finitos, atravs do corpo que geramos, criamos o outro, nossa extenso,
que perpetuar e transcender o meramente material. Esse pensamento refora o possvel vis
metapotico relacionado ao ato de dar luz, pois o poema palavra, registro e registrar nossa
passagem pelo mundo uma forma de eternizar-nos.
Referncias bibliogrficas
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANDT, Alain. Dicionrio de smbolos. 24. ed. Rio de Janeiro:
Jos Olympio, 2009.
CHIRINOS, Eduardo. El rptil sin sus bragas de seda: una lectura de los Ejercicios materiales
de Blanca Varela a la luz de los Ejercicios espirituales de San Ignacio. In: DREYFUS, Mariela;
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82
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diz respeito oralidade (apud BERGERON, 2010, p.41). Dessa maneira, oratura no possui
material escrito e sua produo d-se de forma coletiva, torna-se individual somente quando
recolhida pelo estudioso/historiador, pois, at ento, constituda por um narrador pontual e de
um ouvinte receptor. O texto oral passa de boca em boca e de boca a ouvido e no possui um
autor conhecido; por isso, a comunidade pode apropriar-se dessa autoria, ou seja, a literatura
oral/oratura possui autor annimo e coletivo.
Paul Sbillot (1881) ao rotular toda criao popular de oratura refere-se cultura
popular, porm nem toda literatura popular de origem oral, mas sua difuso na maioria das
vezes sim. A cultura popular equivale ao processo mtuo de influncias e transformaes que
algo est sujeito, assim como o folclore2, que, por sua vez, a cultura popular transformada
em tradio. Com isso, a oratura, por se tratar de manifestaes culturais do povo, reflete a
diversidade tnica e a transformao sofrida pela a sociedade temporalmente. Naturalmente,
a cultura popular brasileira sofreu, e ainda sofre influncia de diversas etnias, como: europeia,
africana e indgena.
Lus da Cmara Cascudo, na introduo do livro Cantos Populares do Brasil, de Silvio
Romero, diz que o folclore , essencialmente, a cincia do homem comum, a cultura tradicional
e esta independe das lnguas e da Histria oficial. [...] Essa normalidade popular, que expressa
pelo folclore, literatura oral e etnografia, matria real e expressiva para o estudo do social
(CASCUDO, 1988, p.26). A oratura uma tradio de carter social, visto que se trata de uma
atividade popular, onde sua existncia, preservao e difuso dependem da comunidade, ou
seja, requer a presena do outro para ser conservada.
O folclore vai alm do texto em si. Ele composto pelo texto oral ou escrito, pela forma
como o narrador passa esse texto para os ouvintes/leitores, ou seja, a performance utilizada por
ele, a forma como o ouvinte/leitor recebe e a leitura que ele faz. Por isso, para ser um contador
de histrias necessrio talento e presena especiais para se prevalecer desse ttulo que
tambm objeto de reconhecimento coletivo. [...] Sua arte domnio da performance, e no da
simples competncia expressiva (BERGERON, 2010, p.48). A performance est diretamente
relacionada com a forma com que o texto recebido pelo leitor, seja ela atravs de palavras,
expresses, gestos, olhares, etc. Assistir a uma representao teatral emblematiza, assim, aquilo
ao que tende o que potencialmente todo ato de leitura (ZUMTHOR, 2000, p. 72).
O texto3 materializado virtualmente na memria coletiva, atualizado com a lngua da
poca e com marcas locais, tornando-se patrimnio cultural da comunidade de que faz parte.
2 O termo folclore ser utilizado neste trabalho como sinnimo de literatura oral e no como histria inventada e
de pouca credibilidade, como costuma ser compreendida popularmente.
3 O termo texto empregado como concebe a Anlise do Discurso pecheuxiana: no apenas um dado lingustico, mas tambm um fato de discursivo, de natureza heterognea, que pode ser tanto oral quanto escrito
(ORLANDI, 2010).
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Por isso, diz-se que no existe autor e nem dono da Literatura Popular. Ela propriedade de
todos, o que d o direito de intervir e transmitir como sua a autoria. O mais frequente invocado
o anonimato; alguns consideram de modo dinmico uma cano tornar-se popular quando se
perder a lembrana de sua origem (ZUMTHOR, 1997, p.25), esse processo de memorizao e
repetio faz com que cada obra seja nica e indita, pois cada verso possui a reproduo e a
recriao do autor. Alm da liberdade para acrescentar marcas pessoais, marcas locais e intervir
no enredo; ou seja, a produo oral uma obra viva em constante mutao, acompanhando a
evoluo da lngua, do espao e do tempo em que est inserido. Segundo Bergeron (2010),
o texto deve atualizar-se de acordo com o estado atual da lngua e a da localidade em que se
encontra presente. Cada vez que a historia contada, ela diferente, tornando-se um momento
nico e irreversvel, podendo sofrer inmeras alteraes no texto sem causar prejuzo. Da
mesma forma que sofre alteraes no contexto em que est sendo apresentada, a literatura oral
tambm sofre alteraes de acordo com a poca e o contexto social em que est inserido. Como
j mencionado, ela conservada virtualmente na memria e apresentada de acordo com a
interpretao que o narrador teve, quando era leitor.
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Entretanto, a verdade que nem tda poesia narrativa constitui um romance. O romance
possui peculiaridades essenciais, que o distinguem das demais poesias narrativas. No
romance, em geral, os personagens vm cena falando e praticando de acrdo com
sua ndole e situao, assim como o prprio poeta narrador, e no final, via de regra, h
uma catstrofe (1959, p.5).
Nesse contexto, possvel dizer que os Romances de Tradio Oral fazem parte da
tradio popular brasileira.
De acordo com o livro Presena do Romanceiro: verses maranhenses (1967), de Antnio
Lopes, as primeiras pesquisas de cunho cientfico a respeito do folclore brasileiro iniciaram
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com o escritor maranhense Celso de Magalhes, quando publicou, em 1873, uma srie de
artigos que continham inmeros romances de tradio oral, transcritos com o ttulo de A poesia
popular brasileira, na maior parte deteve-se aos encontrados no Maranho. Slvio Romero e
posteriormente Cmara Cascudo tambm recolheram alguns romances, com o intuito de tentar
salvar, o mais cedo possvel, as melodias dos romances e xcaras tradicionais, ainda hoje to
parcamente registradas (LIMA, 1977, p.21). Diferentemente dos demais, Slvio Romero no
pretendia, com a transcrio dos cantos, iniciar um estudo sobre o folclore brasileiro, mas, sim,
cada vez mais, afirmar o Brasil como dependente cultural de Portugal. evidente a origem
portuguesa de alguns e a transformao mestia de outros (ROMERO, 1985, p.44). Foram
encontrados romances semelhantes nas cinco regies brasileiras, porm cada uma com sua
peculiaridade, ou seja, so diversas verses de um mesmo romance.
Como aconteceu na Europa, os romances receberam no Maranho alteraes,
trocadilhos, palavras novas, antimetboles, repeties, o que se verificar a cada passo
da leitura das verses maranhenses compendiadas no nosso trabalho. A linguagem das
verses dos romances que ainda encontramos no Maranho basta para tirar qualquer
dvida quanto ao seu carter popular, ou melhor, lidimamente folclrico (LOPES,
1948, p.9).
Conforme comentado, existem verses recolhidas nas cinco regies do pas, porm mais
comum encontrar nas regies Norte e Nordeste. Muitas verses foram encontradas em todo
contexto dessas regies, muitos chamam de histria cantada, cano de roda... Nenhum dos
informantes mencionou a palavra romance na acepo do romanceiro tradicional [...] a expresso
corriqueira estria de trancoso cantada ou simplesmente estria cantada (LIMA, 1977,
p.24). Algumas vezes esses textos so identificados de outras formas, por exemplo, crianas
brincando de roda ou encenando alguma histrica trgica com personagens.
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recebe esse nome por tratar-se de folhetos presos em um pequeno pedao de cordel ou barbante,
que ficavam expostos em casas e locais pblicos.
(...)
O CORDEL veio ao Brasil
Com os colonizadores,
Por migrantes romanceiros,
Saudosistas, trovadores,
Que liam e escreviam versos
Pra minorar suas dores
(...)4
Quanto poca e ao local de surgimento da literatura de cordel possvel dizer que sua
primeira manifestao aconteceu em meados do sculo XVII em Portugal (PROENA. 1976),
atravessou o Atlntico com os colonizadores e chegou ao Nordeste brasileiro, onde teve sua
maior divulgao e incorporao nas tradies locais. A princpio a primeira literatura de
cordel data de 1562 e vincula-se ao nome de Gil Vicente, alguns dos textos permanecem sendo
divulgadas atravs de folhetos e conservadas conforme sua origem.
O cordel lusitano possui caractersticas diversas do cordel desenvolvido no Brasil. Os
folhetos de Portugal aproximam-se dos contos de fadas, ou seja, instauram um tempo e um
espao prprios, alheios s convenes cronolgicas e geogrficas, um tempo e um espao
que podem ser de qualquer poca e qualquer local (ABREU, 2006, p.69). J no Nordeste
tm grande relevncia as cantorias, espetculos que compreendem a apresentao de poemas
e desafios (idem, 2006, p.73), alm de possuir forma bem codificada, diferente da de Portugal,
que no possua uniformidade em sua produo.
No Nordeste, por condies sociais e culturais peculiares, foi possvel o surgimento
da literatura de cordel, da maneira como se tornou hoje em dia, caracterstica da
prpria fisionomia da regio. Fatores de formao social contriburam para isso: a
organizao da sociedade patriarcal; o surgimento de manifestaes messinicas; o
aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos; as secas peridicas provocando
desequilbrios econmicos e sociais; as lutas de famlias que deram oportunidade,
entre outros fatores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores
como instrumento do pensamento coletivo, das manifestaes da memria popular.
(BATISTA, 1997, p.74)
A literatura de cordel das terras lusitanas teve seus primeiros registros na cultura escrita,
j no Nordeste brasileiro o processo aconteceu de forma diferente. Na verdade, as primeiras
4 Trecho retirado do poema Breve histria do Cordel de Medeiros Braga, disponvel no site http://www.camarabrasileira.com/cordel111.htm acesso em 08/09/13.
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Apesar das semelhanas, hoje a literatura de cordel brasileira independente da literatura
portuguesa e continua a ser difundida no Nordeste brasileiro. Os cantadores e jogralescos
animam as festas populares, publicam e vendem seus textos que, por sua vez, so consumidos
pela comunidade local, por estudantes e por pesquisadores da rea.
4. Uma viagem pelo Atlntico Cordis e Romances Relaes
Aps esse breve esclarecimento sobre a teoria e a origem dos romances de tradio
oral e da literatura de cordel, pode-se constatar que ambos os gneros literrios atravessaram
o Oceano Atlntico com os colonizadores e sofreram diversas influncias at tornarem-se o
que so hoje e pertencerem ao folclore brasileiro. Verses de romances no so registradas
com tanta frequncia atualmente e os cordis contemporneos tambm esto bem distintos dos
primeiros folhetins publicados, porm a semelhana entre ambos continua sendo notvel.
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O romance de tradio oral faz parte das mais antigas manifestaes literrias conhecidas
pelos estudiosos e registradas em documentos oficiais da academia. De acordo com Joo David
Pinto-Correia, a primeira prova documental, isto , escrita, de um romance para o mundo
hispnico data de 1421 (romance Gentil dona gentil dona em castelhano) (1984, p.54).
Conforme relatado anteriormente, o romanceiro esteve presente primeiramente na Pennsula
Ibrica, da qual migrou para outras localidades atravs das inmeras colonizaes realizadas
por esses povos. A data de 1421 no significa que Gentil dona o primeiro texto e nem que
o romance foi criado nesse ano, uma vez que o romanceiro de tradio oral e depende da
memorizao para ser conservado e transmitido. Desta forma, no coincide com a tradio
escrita e demonstra que talvez ele tenha surgido anteriormente, em meados do sculo XIII ou
XIV. Do mesmo modo, o nome literatura de cordel vem de Portugal e, como sabido, devido ao
fato de serem folhetins presos por barbante ou cordel expostos em locais pblicos. Esse nome
lhe foi dado, possivelmente pela primeira vez, pelo escritor portugus Tefilo Braga no sculo
XVII.
Alguns historiadores e pesquisadores literrios relacionam a literatura de cordel com os
romances de tradio oral, devido poesia narrativa e seus principais temas. A presena da
literatura de cordel no Nordeste tem razes lusitanas; veio-nos com o romanceiro peninsular,
e possivelmente comeam estes romances a ser divulgados, entre ns, j no sculo XVI,
ou, no mais tardar, no XVII, trazidos pelos colonos em suas bagagens (PROENA, 1976,
p.28). Entretanto, quando se trata do cordel brasileiro e do cordel portugus, a pesquisadora
Mrcia Abreu (2006) desvincula-os, pois estes no possuem muita semelhana na forma e na
temtica, os primeiros cordis no Brasil seriam reprodues dos cordis de Portugal, mas os
produzidos em territrio brasileiro j no possuam caractersticas lusitanas, tendo em vista
que o texto portugus era escrito em prosa e quando reproduzido no Brasil j possua versos
e rimas, caracterstica principal dos cordis nordestinos e dos romances. Alis, a presena do
teor potico nos cordis deve-se a proximidade com a literatura oral, aproximando-o mais do
romanceiro, j a prosa, especifica portuguesa, deve-se a cultura escrita dos folhetins. possvel
dizer que, a aproximao com as narrativas orais parte das estratgias de criao, para que
sejam facilmente memorizadas, para tanto necessria a presena de rimas e de estrofes que
sejam em sextilhas, dcimas, setessilbicas ou em decassilbicos prevendo rimas ABCBDC,
ABCBDDB ou ABBAACCDDC (CAVALCANTE, 1982). Contudo, preciso alm de construir
versos e estrofes de maneira coerente, necessrio que todo o texto dialogue e possua unidade
narrativa, ou seja, sua estrutura deve centra-se no desenrolar de uma nica ao, com causa e
consequncia.
O mesmo processo de criao ocorre com os romances, todavia estes no possuem fase
escrita. Tecnicamente, os romances compreendem-se em narrativas orais que contam histrias
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com forma fixa, no Brasil no heptassilabos e possuem, quase sempre, uma nica rima (do
segundo com o quarto verso). Dessa forma, muitos estudiosos definem o romance como uma
poesia de carter narrativo, s vezes cantada, outrora narrada. possvel encontr-los em versos
e com melodia lrica, assim como em modinhas, cantigas e em forma de prosa. Muitos dos
romances tradicionais tambm perdem a sua condio de narrativa pica e se transformam em
fragmentos lricos, como se fossem modinhas e canes (LIMA, 1977, p.24). Antnio Lopes
(1967) tambm comenta que encontrou romances em que algumas verses h alternncia entre
versos e prosas e acredita que isso tenha acontecido j quando chegou ao Brasil, visto que,
em seus estudos, no encontrou tal situao na tradio de Portugal. Menciona tambm que
isso pode ser parte da performance do contador, pois alguns repetem versos para ter tempo de
recordar o que vem adiante, ou se feito em duplas para dar tempo para o seguinte se aprontar,
entre outras tcnicas.
importante comentar sobre o ritmo musical dos romances, pois os cordis nordestinos
possuem musicalidade em sua poesia. Segundo Proena (1976), o cantador de cordel no
precisa ter boa voz, canta acima do tom do seu instrumento, no se preocupa com o compasso
musical e sim com os versos e o ritmo. Desse modo, ao definir Romance Tradicional, David
Pinto-Correia parafraseia Menndez Pidal e menciona, como caracterstica fundamental, a
existncia de melodia: os romances so poemas pico-lricos que se cantam ao som de um
instrumento, quer em danas corais, quer em reunies efectuadas para simples recreio ou para o
trabalho em comum (1984, p.23). de conhecimento a presena de melodia acompanhando
as narrativas orais, como um costume da Idade Mdia, porm as primeiras transcries foram
feitas sem mencionar esse detalhe, ou por ausncia dele ou por mero descuido5. Ainda hoje,
quando registram os romances cantados seja em escrita ou gravado em udio/vdeo, no
possvel saber se utilizam a mesma melodia da Idade Mdia, que antes era atonal e agora passa
a ser tonal.
Em algumas verses maranhenses que colhemos no h estrofao regular e outras
no tm estrofes: so corridas, como diz o povo, apresentando a sequncia dos
versos algumas interrupes por exigncia de enredo, e principalmente da mudana
de interlocutor, ou para tomar flego, como nos explicou, certa vez, um contador
(LOPES, 1948, p.10).
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contedo. Por isso diz-se que so narrativas abertas e esto unidas ao processo de memorizao
e reproduo. Segundo Siqueira (2009), os romanceiros so influenciados pelo quotidiano dos
transmissores, priorizando personagens universais e com nomes reais, a fim de dar veracidade
histria. Alm disso, cada cantador coloca marcas pessoais e temporais na histria que conta,
por isso, os romances so enredos aplicveis e verossmeis em qualquer tempo e espao. Tal
como a literatura de cordel, os poetas evitam o acumulo de personagens, tanto que no comum
encontrar personagens secundrios e tramas paralelas. A descrio do ambiente como a flora e
a fauna no so bem-vindos na histria, assim como a interveno direta do narrador, tudo isso
para evitar o desvio de ateno do leitor/ouvinte e desrespeitar a ideia de desdobramento de
uma nica ao.
Como comentado, o romance uma narrativa curta, j o cordel pode vir a ter at 32
pginas. Esse carter longo d-se tambm pelo fato de possurem uma espcie de sinopse da
histria no inicio dos folhetos, comum a esses textos, pois facilita a compreenso e ajuda a
formar uma histria bonita, para as narrativas orais, a maneira como os fatos so apresentados
importante tanto quanto o enredo em si, assim como a repetio. Ambos so instrumentos
da criao (ABREU, 2006). Tanto o romanceiro quanto o cordel possuem enredos fantsticos
em sua trama e contam um nico episdio por histria. No entanto, h pequenas diferenas
no teor dessas histrias, visto que os romances so variaes de uma mesma histria que vai
sendo contada, recontada e reinventada oralmente com o passar dos sculos. J o cordel so
criaes novas, inditas e com assuntos contemporneos, principalmente aps o sculo XIX,
quando passaram a possuir o carter de folhetim e a oralidade passou a ser um mecanismo da
escrita e de divulgao. Para tanto, os temas e motivos dos romances vo desde histrias de
reis, donzelas, adultrio, morte, etc, mantendo sempre o tom trgico e os finais inesperados que
atraem a ateno dos adultos e, principalmente, das crianas. Como, por exemplo, o romance
conhecido como O Famanaz, recolhido em Santo Antnio de Almas, Maranho, em 1916. O
referido romance conta a histria de um conde que foi a guerra e morreu devido ao seu cavalo
ter cado por cima de seu corpo, existem verses em que o cavalo personificado e responde as
acusaes do pai do conde.
D. Roldo foi na guerra, foi na guerra e no voltou
S deram por falta dele quando a tropa retirou
O pai dele, quando soube, no seu cavalo montou
Procurando pelo filho, muitos dias caminhou,
Andando por secas e mecas onde Cristo no passou [...]
(LOPES, 1967, p.167)
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No cordel citado acima, possvel notar a presena da personificao de animais, nesse caso um
bode que foi eleito vereador. H outros que presam mais a histria de realezas e de mitos locais,
como O prncipe Ribamar e o Reino das 5 pontas ou A origem das amazonas. Nesse cordel,
o contador faz um jogo entre o passado, o presente e elementos mticos: h prncipe, espao
naves, Saci, Caapora e a crena no Deus catlico.
[...] O Ribamar do presente
Difere com o do passado
Este pobre e inconsciente,
Aquele foi potentado
Do dagora todos zombam
O outro foi magistrado [...]
(BATISTA, 1976, p.42)
Constata-se que os romances possuem origem medieval e preservam isso nas poesias
narradas, j o cordel nordestino no possui mais laos com o cordel lusitano, mas preserva
personagens medievais em enredos contemporneos aos leitores, alm de trazer elementos
do folclore popular tanto universal: diabo, bruxas e lobisomem, como locais: Saci, Caapora,
Chacrinha, Pssaros encantados, Ubajaras, etc.
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Concluso
Concluindo, a literatura popular, nesses textos, caracteriza-se por priorizar a oralidade,
no quer isso dizer que seja somente por isso, pois tambm pelo teor imaginativo de seus
enredos, pela a observao, pela participao do leitor durante a performance e a crtica da
vida cotidiana de sua poca. Para enfatizar, constata-se que os folhetos e os romances possuem
grande afinidade com os textos jornalsticos e tm grande aceitao do pblico, pois no h
crime, catstrofe, pblica ou privada, que no germine a curiosidade e d subsistncia para
outras histrias.
Tanto a literatura de cordel quanto o romance de tradio oral esto presentes h sculos
em nossa sociedade, e mesmo com o desenvolvimento de tecnologias e a tradio escrita cada
vez mais difundida, permanecero por mais sculos e continuaro despertando a curiosidade
do leitor, do ouvinte e dos pesquisadores. Essa curiosidade suscitada pela temporalidade
desses textos, pelos seus temas e motivos e performances. Para ser um contador de histrias
necessrio talento e presena especiais para se prevalecer desse ttulo que tambm objeto de
reconhecimento coletivo. [...] Sua arte domnio da performance, e no da simples competncia
expressiva (BERGERON, 2010, p.48).
Portanto, esse trabalho props fazer uma breve comparao entre esses gneros literrios,
que possuem diversas caratersticas em comum e despertam tanto interesse e ateno daqueles
que estudam e gostam de partilhar sobre o folclore popular. Ademais, a literatura de cordel e o
romance de tradio oral so materializados virtualmente na memria coletiva, atualizado com
a lngua da poca e com marcas locais, tornando-se patrimnio cultural da comunidade de que
faz parte.
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observada faz com que a pessoa entre em estado de confronto com a cmera e o cineasta, que
gera o estado de agonia, envolvendo ao e deciso sobre seus atos atribuindo, portando,
cmera o papel protagonista da narrativa. (Paranagu, 2003).
O momento da sada de campo com a cmera na mo no significa tratar o documentrio
como uma arte instantnea. Existe invariavelmente uma busca da ao, captura do cenrio e
som natural. Uma ao prevista, esperada, e principalmente provocada. A subjetividade outra
questo presente no documentrio, o momento da indexao, da escolha da tomada, da seleo
de cenas, passa sempre pelo autor, diretor. Segundo Furtado (citado por MOURO e LABAKI
2005), pela subjetividade do autor que constri um personagem, e o que cineasta faz com a
cmera chamar a ateno para algo, preste ateno nisso! (p. 140), atribuindo asseres
sobre o mundo.
Muito mais alm da importncia do documentrio representar a verdade est a tica,
segundo Piccinin:
(...) o discurso do documentrio empresta realidade a nosso sentimento no mundo
ao mesmo tempo em que organiza os acontecimentos para o espectador. Imprimi-lhe
por isso sentido, atendendo funo primeira da narrativa de organizar a experincia
e de registrar a memria da histria dado o fato de que o faz oferecendo-se como
verdade. (2011, p. 04).
Ao se lidar com o sentimento no mundo, a verdade secundria, as asseres presentes
no documentrio podem ser falaciosas ou tendenciosas. Quando se trata de um fato histrico,
vai depender sempre de qual verdade e/ou qual realidade o cineasta est propondo, sendo o
espectador livre para atribuir a sua interpretao sobre essa verdade, aceitando-a ou refutando-a.
Assim, as asseres de um documentrio proporcionam uma interao entre cineasta, diegese,
verdade e espectador.
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12 (doze) camponeses do distrito. Alm da locuo em primeira pessoa, escolhida por saber o
que melhor se passa com o personagem que viveu a experincia, o documentrio no se restringe
somente a locuo para registrar seu ponto de vista, Degregori utiliza outros meios disponveis
para falar com o espectador, como em dados momentos a legenda da cena apresentada.
Somente com a trilha sonora o espectador tem o instante capturado pela cmera e a explicao
da cena por meio de palavras escritas: Legenda 01: cada desenho tem uma histria, alguns
foram feitos em Chungui, outros em Ayacucho, em Lima e os ltimos em Tquio; Legenda 02:
Porm, minhas anotaes fiz ao lado dos camponeses, e eles mesmos me indicavam como havia
ocorrido os fatos e eu fazia as anotaes e assim s vezes no chegava a utilizar o gravador.
O documentrio tambm se valeu, como estratgia narrativa, do som natural, a captura de
rudos, barulhos de animais, vento, o passo na estrada, canto da tristeza e um som instrumental
com ar de melancolia que introduzia os testemunhos. Das vrias estratgias utilizadas como
msica, fala e imagem, em Chungui: horror sin lgrimas, temos a insero dos desenhos
feitos por Jimzes para registrar a histria narrada pelos peruanos. Em alguns momentos do
documentrio so eles que ganham espao central como estratgia narrativa.
O cenrio principal Chungui, distrito peruano, em que narrado o perodo do
antroplogo no local, a catalogao das fossas e o processo de testemunho e pedido de auxlio
do povo. Alm do distrito, tambm aparece a oficina de Jimnez, primeiro em Ayacucho e
mais tarde em Lima. Os personagens so os camponeses que sobreviveram guerrilha interna
e testemunham sobre o que presenciaram no local, alm da perda de familiares e amigos, e
tambm Jimnez, responsvel por narrar todo o processo de resgate e registro de uma histria
de horror. Ele termina a narrativa contando a dificuldade para seguir vivendo depois de ter
presenciado a dor dos camponeses, e o tempo que precisou para conseguir narrar tudo o que
escutou em Chungui.
O processo de aceitao do campons com a presena do outro no local, o modo como
Jimnez comeou a compartilhar trabalhos e festas tambm foi reportado no documentrio,
que tambm foi utilizado como um meio para solicitar o auxlio do Estado. Os camponeses
aproveitaram para pedir ajuda atravs de algumas reinvindicaes, como gua potvel e
educao.
O documentrio abre com a voz over de uma testemunha narrando o momento em
que crianas so assassinadas para no chorar e incomodar integrantes do Sendero Luminoso,
denunciando aos militares onde que eles estavam. Saindo os guerrilheiros, os militares faziam
o mesmo, justificando que a erva m deve ser cortada desde a raiz, quem chora um terrorista,
logo deve morrer. Temos a locuo em voz over e a narrativa contada pelos desenhos de
Jimnez, representando o ato narrado.
Na sequncia a voz over muda, aparece Jimnez e a legenda explicando a cena. Logo,
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a locuo passa a ser do antroplogo que comea a explicar como conseguiu a confiana dos
sobreviventes da guerrilha, desaparecendo a barreira entre pesquisador e a testemunha.
A cmera na mo outro recurso utilizado. Atravs de imagens intencionalmente
tremidas, temos a representao do distrito em runas, logo aparece o testemunho de um
campons apresentando as fossas com os restos mortais e pertences de quem no sobreviveu
ao massacre. A interferncia do cineasta no momento da coleta do testemunho tambm est
presente na narrativa.
Entre testemunhos das vtimas, permeia o testemunho de Jimnez: contavam o que foi
os anos de barbrie, comecei a fazer os desenhos, assim como est desenhando, assim ocorreu,
me diziam.
A narrativa vai explicando sobre o distrito de Chungui, suas 40 fossas e mais de 200
desaparecidos, entre camponeses e camponesas, mais de 70 mil vtimas em todo o Peru. O
testemunho de um povo que durante a guerrilha tinha como destino a morte: no pensavam
em nada, qualquer momento iriam morrer. Chungui, onde tudo comeou, o documentrio
ao chegar ao final apresenta a histria inicial de Sendero Luminoso. Como os professores se
instalaram e propagaram nas universidades sua ideologia: dominar os ricos, em 1982, segundo
passo obrigar os camponeses a abandonar suas casas para serem mortos sem culpa de nada.
A narrativa vai para a oficina do pai de Edilberto, Florentino Jimnez, em Ayacucho, ele
reporta a necessidade que estava sentindo de contar tudo o que ouviu. Entre novos testemunhos,
a narrativa muda novamente de cenrio, vai para Lima outro local da oficina de Jimnez. Este
queria continuar seu trabalho de antroplogo, entretanto, relata que a sua memria no o deixa
seguir vivendo.
O ltimo testemunho em forma de cano, a cano da tristeza do povo de Chungui,
entoada por uma camponesa que sofreu com a barbrie. O desenho que aparece na narrativa
representa o desejo de um povo que continua vivendo depois de tudo o que ocorreu, retratando a
vida que voltou ao distrito e um pedido de auxlio ao Estado. A presena da festa, msica e dana
para amenizar a dor. A imagem final de Jimnez, em um prdio destrudo, observando um
quadro verde, possivelmente uma das universidades utilizadas pelos guerrilheiros para formar
adeptos. E o ltimo desenho: assim chora o meu povo quando ningum mais se lembra. O
antroplogo caminha em direo a um nevoeiro que o encobre. Vem a dedicatria s vtimas e
um breve texto contextualizando a atuao de Sendero Luminoso e as Foras Armadas.
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de socializao e de formao de uma identidade que resgata uma memria social, mas que, ao
mesmo tempo, luta pelo esquecimento de um trauma. Ento, narrar preciso. Um narrar, que
com o auxlio das novas narrativas emergentes, contribui para um novo sentir peruano.
REFERNCIAS
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PPGL Editores, 2008.
105
INTRODUO
O presente trabalho faz parte do projeto de pesquisa Vozes marginais na literatura
brasileira dos anos 60 at o presente e o incio do estudo sobre a produo literria do
ficcionista Plnio Marcos.
Este incio comea no livro O assassinato do ano do caralho grande, de 1996. Ele
dividido em duas partes, sendo que a primeira uma noveleta policial e a segunda a pea
teatral. O foco da anlise ser na primeira parte e o objetivo deste texto mostrar como a feio
marginal se revela nesta narrativa.
Apoiado nas concepes tericas de Sergius Gonzaga (1981) sobre a literatura marginal
pretende-se apontar aspectos que comprovam uma voz ativa dos menos favorecidos pelo sistema
dominante na obra. Alm do teor marginal expresso nos personagens, podem-se apontar marcas
deste teor na vida artstica e poltica do autor.
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o efeito esperado. Ela interpelada, na sequncia, por Ritona Capataz: Mas, porra, trocando
tudo isso que a senhora falou em midos, o que querem aqui?. (MARCOS, 1996, p. 14).
Neste caso, possvel perceber a variedade lingustica escolhida por cada grupo durante
a comunicao. Dona Ciloca e a comitiva com uma variedade mais formal e o pessoal do circo
com a sua variedade prpria, mais informal, sem um monitoramento para se aproximar de uma
formalidade exigida pelo outro grupo.
Alm dos recursos lingusticos como aspecto principal na relao de poder estabelecida,
se tem a postura dos moradores urbanos sobre os ciganos. Neste conflito, possvel perceber
como Dona Ciloca, o delegado e membros da comitiva, buscam menosprezar os circenses,
como membros inferiores da sociedade: raa maldita (p. 31), cigano tem parte com o diabo
(p. 31), cigano no presta mesmo (p. 31), entre outros termos ofensivos.
A busca da superioridade pela primeira-dama e por outros moradores da cidade se d,
como possvel perceber nos termos citados acima, no discurso usado durante a investigao
do suposto crime. Os moradores utilizam a instncia discursiva para inferiorizar os ciganos e o
delegado usa a violncia para impor a sua autoridade.
No houve levantamento de provas, isolamento de rea, nem qualquer procedimento
inicial de investigao: o delegado partiu diretamente para o interrogatrio no prprio picadeiro,
sem deslocamento para a delegacia.
O chefe de polcia Alencastro se utiliza da violncia verbal para intimidar os artistas
circenses e at da tortura fsica o cozinheiro Lili inquirido sob uma prtica de afogamento
em um balde, o que ocasionou uma confisso falsa por parte do membro do circo.
Todas as figuras ligadas ao circo so apresentadas sob suas respectivas funes: h
Pipo, o palhao; Franz, o domador; Lili, o cozinheiro, entre outros. Todavia, a dona do circo
apresentada de uma maneira diferente: a me da tribo, Di.
Di apresentada como uma sacerdotisa - figura ligada espiritualidade - e como uma
mulher com certos poderes adquiridos com a experincia de uma vida de viagens. Ela a
nica pessoa do circo que consegue confrontar Dona Ciloca. Enquanto que aquela lida com
assuntos terrenos, sem preocupaes com o interior, esta centra as suas atitudes no equilbrio
espiritual, na lei do retorno. O encontro entre as duas mulheres, lderes de seus grupos, bem
observado pelo narrador:
A me da tribo, serenamente, colocou seu olhar no rosto da Dona Ciloca. Aqueles
olhos, luzeiros brilhantes encravados no rosto enrugado, ainda conservando traos
de rara beleza. Olhos bruxos. Chaves que penetravam nos mistrios, que decifravam
segredos. Olhos de olhadora. Di e sua magia de olhar. Uma arte. (MARCOS, 1996,
p. 15).
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Dona Ciloca atingida por este primeiro contato, todavia permanece com o seu mpeto
de prejudicar os artistas do circo, ainda que estivesse anestesiada pelo olhar de Di.
Di olhou Dona Ciloca e a agitao, a arrogncia, a agressividade que ela
trazia ao chegar se dissiparam. A impresso que dava era que tinham injetado
na mulher do prefeito um tranquilizante de efeito imediato. Ela e seu grupo
invasor se acalmaram. Era isso que Di queria. Serenados os nimos, era mais
fcil o entendimento entre as partes. (MARCOS, 1996, p. 17).
Todos os que trabalham no circo partilham da crena de Di, que Sara, a virgem negra,
a protetora deles. Portanto, o grupo circense est ligado espiritualidade, e todos se apoiam
nesta crena, pregada por Di, para a resoluo benfica do caso do ano Janjo.
Assim, possvel perceber a dicotomia gente da cidade X gente do circo. De um lado,
temos o grupo urbano liderado pela Dona Ciloca, ligada as coisas terrenas e a metrpole,
agressiva com os nmades; do outro lado, temos o circo comandado pela Di, sacerdotisa
equilibrada, conectada ao mundo espiritual e cigana por natureza.
A gente da cidade tenta afirmar o seu prestgio de habitantes de um centro urbano
inferiorizando os artistas circenses. Desta forma, possvel afirmar a feio marginal expressa
na relao entre estes dois grupos. Os ciganos so as figuras que esto margem do sistema
padro em um ambiente urbano, essa condio se estabelece a partir do momento em que os
moradores da cidade buscam se diferenciar deles.
A MARGINALIDADE NO CIRCO
Entre as trs concepes possveis no que tange a marginalidade na literatura, a partir do
que j foi exposto, a obra se enquadra na terceira corrente de literatura marginal:
Esta terceira manifestao da literatura proclamada marginal ligaria-se mais
ao problema da escolha de protagonistas, situaes ou cenrios do que a
adeso a uma linguagem experimentalista. Embora alguns dos autores dessa
tendncia autodefinam-se como malditos, no pairam acima ou abaixo do
organismo social, como queriam os malditos do romantismo europeu. Sua
rebeldia d-se no momento em que tentam enquadrar, no corpus artstico, as
fraes eliminadas do processo de produo capitalista. (GONZAGA, 1981,
p. 151).
Neste sentido, os ciganos so estas fraes eliminadas. Marcados como seres diferentes
pelos moradores da cidade interiorana atravs da dicotomia estabelecida, os artistas circenses
so marginalizados mais pelos atores sociais do processo de produo capitalista do que pela
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CONSIDERAES FINAIS
A obra O assassinato do ano do caralho grande tem como tema principal o suposto
crime expresso no ttulo da histria. A novela possui um foco narrativo que expe uma dicotomia
construda nas relaes de poder estabelecidas entre o povo da cidade e o povo cigano.
Plnio Marcos carrega o estigma de escritor maldito pela perseguio sofrida na poca da
ditadura militar e conseguia distribuir os seus livros por um caminho fora do eixo do mercado
editorial dominante.
Portanto, o objeto de estudo pode ser includo em duas correntes da literatura marginal:
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pela editorao e por conceder voz aos excludos do sistema capitalista. importante salientar,
que a incluso da obra a essas correntes no significa que o autor ou a sua produo literria
ser eternamente envolvida nestas concepes, ou seja, o estado de marginalidade pode ser
transitrio, muito efmero na literatura. (PONGE, 1981, p. 139).
REFERNCIAS
FOUCAULT, Michel. A microfsica do poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Edies Gerais, 1979.
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STIO VISITADO: http://www.pliniomarcos.com
111
112
possuir vitalidade, parte dele morre. Percebo a morte no mbito metafrico, isto , enquanto
poesia que revela o abandono e - ou busca de dada realidade no pretrito, cujo processo pode
ser compreendido luz do que diz Bachelard, isto , como:
(...) um pas que ganha vida, que ganha vida adormecendo, no sentido de um repouso
eterno; todo um vale que se aprofunda e se enobrece, que ganha uma profundidade
insondvel para sepultar a desgraa humana por inteiro, para tornar-se a ptria da
morte humana. (1997, p. 49)
O oximoro morte - vida, proposto por Bachelard, converge no movimento de profundidade
do eu para consigo mesmo que, em Solombra, aparece explicitamente do eu para o outro,
ou talvez, do eu, que por no conhecer seus possveis eus, aprofunda-se na imagem, criada
por ele, do outro. Quaisquer dos citados movimentos podem ser compreendidos pela categoria
filosfica imensido ntima, tambm fundamentada pelo filsofo. Por essa perspectiva, ocorre
a sugesto de sentimento que explica o insondvel do ser em seu desenvolvimento pleno, pois
elenca o espao como constituio primordial de zona de conflito identitario. Para Bachelard,
a imensido est em ns. Est ligada a uma espcie de expanso de ser que a vida
refreia, que a prudncia detm, mas que retorna na solido. Quando estamos imveis,
estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensido o movimento do
homem imvel. A imensido uma das caractersticas dinmicas do devaneio
tranquilo (1993, p.190)
113
114
possvel identificar que o sujeito lrico consciente do profano escoamento temporal,
pois (...) todas as horas fogem; contudo faz desse escoamento seu respaldo para a ausncia
de preciso/homogeneidade (v.13) de sua histria. Isso se justifica caso seja compreendido o
instante (v.4) como resposta da vivncia presente, imbuda de amor, na primeira estrofe.
A investigao do tempo, enquanto ambivalente na natureza humana, cuja presena/
ausncia inclina o sujeito a se questionar em que medida reatualiza sua histria no espelho,
encontra eco em Mircea Eliade. Para ele, algo da concepo religiosa do mundo prolonga-se
ainda no comportamento do homem profano, embora ele nem sempre tenha conscincia dessa
herana imemorial (1969, p.48).
O tempo sagrado tende a ser reversvel, pois um tempo mtico que considera o primordial
e vigora o ontolgico por natureza; no muda nem se esgota, por isso pode ser chamado
simplesmente de tempo. No tempo profano, a durao temporal ordinria, circunscreve
atos privados de significao religiosa, inseridos na continuidade, pois os momentos no so
recuperveis e tambm no se repetem (ELIADE, 1969, p.65).
inegvel a condio dupla do sujeito lrico do sexto poema, imbricado na busca de
outras histrias que o compe, as quais so desveladas pelo aspecto especular da temporalidade,
dividida em tempo x tempo. O primeiro, o tempo, coloca o amor em prova e revela, pela
terminologia na fuga das horas, o seu afogamento e sua extino em lgrima e cegueira; um
tempo que escoa, apaga-se e sugere um fim, o profano.
O instante, evidenciado no quarto verso, instaura o aspecto sacro do tempo e revela o
desejo do sujeito em perpetuar o momento sem pronunciar-se sobre a cronologia (v.4 e v.5). O
tempo, pela capacidade transfiguradora, elementar ao processo que organiza o perdurvel na
memria, pois a descontinuidade dos acontecimentos que ela imortaliza (v.8) incita ao sonhador
reviver e/ou projetar o que singular em cada tempo. Esse tempo conecta os instantes na
memria.
Mircea Eliade sustenta que o tempo sagrado torna possvel o tempo ordinrio; a durao
profana em que se desenrola toda a existncia humana (1969, p. 78). Por essa via considero,
ento, que a memria, no poema, promulga a tentativa de comungar, atravs do tempo,
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(...) tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram portanto tudo o que os mitos
contam a respeito de sua atividade criadora pertence esfera do sagrado e, por
consequncia, participa do ser. (...) quanto mais o homem religioso tanto mais
dispe de modelos exemplares para seus comportamentos e aes (1992, p.85).
Entender o mito, pelo olhar que possibilita um diferente entendimento sobre a transfigurao
da existncia, permite que eu o compreenda como vivo, ainda que elucubre caractersticas
dormentes. A reatualizao de qualquer mito assume dada existncia, numa proliferao
constante, quando revive e transcende o plano arquetpico. Em Solombra um possvel veculo
para essa existncia a ressignificao fundamenta pela mobilidade de imagens que se mostram
espelhos, os quais explicitam que a essncia infinita se contempla sob mltiplas formas ou que
refletem em diversos graus a irradiao do Ser nico (...) (CHEVALIER &GHEERBRANT,
1997, p. 397) Na compreenso desse ser, considero o mito pela perspectiva de narrativa; ele
conta a histria, no caso em questo, a do sujeito solombresco.
A busca dessa histria3, empreendida pelo sujeito-lrico em questo, pode ser entendida
luz da alienao/revelao do percurso realizado pelo menino Narciso4. Mesmo que renegue o
3 Ou a negao dessa histria, que por outra perspectiva de leitura (pela via da psicanlise, talvez), tende a revelar a razo de sentimento de incompreenso. Isso acontece no verso seis quando o sujeito, ao reconhecer-se em
unidade ilha revela desconhecer a prpria identidade.
4 Antes de imaginar as possibilidades da vivncia desse mito e at mesmo suas reatualizaes no poema em
questo, necessrio conhec-lo. Para tanto, busco em As metamorfoses, de Ovdio, o extrato para uma parfrase:
o poema de Ovdio concebe Narciso como fruto da unio forada de Cfiso (deus-rio) com a ninfa Lirope. O menino, muito belo, deixa sua me muito preocupada com seu destino, levando-a a consultar o adivinho Tirsias. Este
responde que o filho viver muito, mas, para isso, no dever se conhecer. Narciso segue, ento, solitariamente.
Ocorre que a ninfa Eco apaixona-se perdidamente pelo belo jovem e o segue de longe em suas caadas. Incapaz
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amor do outro, isto , da menina Eco (outro), ele vai ao encontro de (outra) imagem apaixonante
oferecida pela gua do Tspias. Nessa medida, no se pode dizer que Narciso negligencia por
completo todo e qualquer amor, pois morre em busca deste.
No contato com essas informaes, surgem as seguintes indagaes: a imagem que
Narciso encontra na gua -realmente- uma parte de si mesmo oculta, porm desconhecida
para sua momentnea existncia? O solitrio menino, de fato, no sabe que o ser encontrado
no lago ele mesmo?
No poema, assim como no mito de Narciso, as vivncias, apesar de fragmentadas, so
descontinuas. Prova disso est no reflexo do que Narciso v quando se projeta para beber gua
j que no conviveu/convive com tal imagem, pois s a (re) conhece quando consegue matar
aquela sede, isto :
(...) Enquanto [Narciso] tentava / Saciar sua sede naquela gua, no mais profundo
de seu ser, / Um outro tipo de sede comeou a crescer quando viu/ Uma imagem na
lagoa. Apaixonou-se/ Por aquela imagem sem corpo, e encontrou substncia/ Em algo
que era apenas um reflexo (...) (OVDIO, 2003, p.61)
A sugesto do reflexo eu - outro presente em pelo menos dois dos versos do poema:
e na minha memria s imortalidade (v.8) e E de teus olhos abertos/ nos meus fechados.
Com o intuito de pensar na possibilidade de condio especular da memria e de como os
olhos do outro podem, em ltima instncia, refletir os do eu compreendo que, em ambos os
versos, h uma pressuposio potica (fiel?) do imaginrio espelho: De um devaneio a outro,
o objeto j no o mesmo; ele se renova, e esse movimento uma renovao do sonhador
(BACHELARD, 1988, p. 151).
Segundo Bachelard, a palavra hbito est bastante desgastada para exprimir a ligao
de pronunciar o nome do amado, uma vez que no possui voz prpria, ela s pode repetir as ltimas palavras
pronunciadas por Narciso. Um dia, o rapaz percebe que algum o segue e repete suas ltimas palavras. Chama-a
e pergunta por que ela o evita. Ao tentar responder, Eco repete a ltima palavra proferida pelo amado. Narciso
pergunta: Quem voc? O jovem escuta como resposta: Voc. Eco fica desesperada por no conseguir fazer-se
entender, abraa-o e rejeitada. Narciso lhe diz: Para longe com seus braos, eu prefiro morrer a deixar que voc
me toque. Sendo rejeitada, a moa refugia-se nos bosques e montanhas e passa a morar sozinha, at que, sofrendo
as torturas do amor rejeitado, definha e se transforma em pedra, ficando somente o lamento da sua voz, repetindo as
slabas finais das palavras. As outras ninfas tambm tentaram se aproximar do rapaz e foram repelidas, por isso invocaram a justia, pedindo a Nmesis que as vingassem: que tambm ele possa amar e jamais possuir o objeto de
seu amor. Atendendo aos pedidos, a deusa conduz Narciso a um recanto, onde, ao sentir sede, ele se inclina sobre
uma fonte de guas cristalinas. Ao beber da gua, fica encantado com a imagem que v nas guas, apaixonando-se
por to bela figura. A partir da, no sai de perto das guas da fonte Tspias, buscando sempre um contato com a
imagem adorada. Passa a no se alimentar e comea a definhar. Embora sabendo que se tratava de sua prpria imagem, o reflexo que via nas guas lmpidas, morre perdidamente apaixonado por si mesmo, sem jamais conseguir
tocar-se. No lugar da morte de Narciso, nasceu uma linda flor, a qual recebeu o nome de narciso.
119
entre o corpo do sonhador, que no esquece, e o espao que se presta ao inolvidvel (1993, p.
34). As palavras do filsofo contribuem para a compreenso sobre o desejo do sujeito lrico em
relao intensificao do momento vivido (v.5) apontado na segunda estrofe. Nesse momento,
o tempo breve e, por se tratar de um instante, urgente. Porm, pelo fato desse tempo ser
vivido na condio de hbito, possvel que eu o considere profano.
O eu potico clama para que o instante seja habitado pelo atilamento acordado (v.4)
demonstrando, portanto, a efemeridade na vivncia do tempo metonmico que compe a
fuga das horas (v.1). Por essa via, o hbito mostra o alm do corriqueiro. Apesar da urgncia
demandada pela vivncia nesse tempo, vale dizer que a importncia dele pautada em termos de
sua recorrncia, pois percebida quando o hbito colocado disposio do ser pelos esforos
antigos (BACHELARD, 2007, p.64). Por essa perspectiva, considero o hbito componente
essencial do sonhador. Assim, a recorrncia revela-se diferena j que a matria do ser renovase (...) a ponto de organizar a solidariedade do passado e do futuro (BACHELARD, 2007,
p.64). Sendo assim, o instante tambm sagrado.
Vale dizer que o sujeito- lrico no agrega ao olhar (v.7 e v.9) o aspecto de corriqueiro o
qual atrelado ao afogamento do amor e/ou fuga das horas. O caso do olhar, ao considerar sua
potencia dinmica como um mecanismo que vivencia determinada histria (a da flor, nuvens e
datas) em dado tempo (o qual ditado pela voz do corao) funda e organiza a memria, pois
o instante a revela pela imortalidade. Devaneando no processo em que ela constituda, cujos
enunciadores se valem de imagens alm passado transcrevo o dizer de Raquel Souza:
j que a memria traz ao presente imagens do passado, posso dizer que a memria
tambm movimento. Mas quero marcar uma ideia de movimento no como
deslocamento de um espao! Refiro-me a um tipo de movimento que implica a
animao da imagem, fazendo-a deslocar no tempo de pretrito para o presente
(pergunto-me se em vez de presente eu no deveria usar gerndio!) ( 2010, p. 258)
A animao da imagem como, por exemplo, a da ilha, incita o deslocamento de tempo,
do espao e das sensaes, pois a trade da viso (flor, ar e datas) conduzida pela memria e
proporciona a presena de outro tempo sem deixar, no entanto, o vigente. Alm disso, a terceira
estrofe do poema em estudo, emersa pelo imaginrio da viso, reala a leitura do mito de
Narciso, sugerindo a imagem potica de um sujeito duplo.
Para tanto, a memria o veculo entre o contedo histrico temtico das imagens
poticas: flor, nuvens e datas. Apesar das imagens concentrarem inmeras e mltiplas
possibilidades de histria, na memria e por ela (pela viso e audio) que uma conexo
estabelecida como motivos de transgresso ( afogamento do amor -v.1- e a escuta do
prprio corao- v.8-) dos tempos. Com o intuito de resignificar a memria e de consider-la
120
transgressora do tempo, proponho a leitura de Raquel Souza quando diz que: (...) necessrio
trazer do fundo da memria certas imagens esfumaadas que ascendem a nossa conscincia,
porque foram despertadas por alguma coisa, e em torpor devaneante passamos a imagin-las
com vigor (2010, p. 258).
No poema em estudo, o despertar a que se refere Souza emendado pelo olhar distinto na
flor, na mensagem das nuvens e nas datas. Entretanto, o torpor devaneante est na escuta de
algo mais ntimo, o corao. A flor que, por ora, exibe a beleza do caule e das ptalas, um dia,
foi semente e, no mito, a flor com o miolo amarelo circundado por ptalas brancas, encontrada
onde o menino Narciso se debrua para encontrar a imagem que lhe completa. De acordo com
Bachelard, a vida floral proporciona um novo mpeto vida real, pois impele; transforma o ser;
a vida assume brancuras; a vida floresce; a imaginao se abre s mais longnquas metforas;
participa da vida de todas as flores (1997, p. 25). As nuvens tambm trazem consigo uma
poca remota, pois so: o smbolo da metamorfose viva, no por causa de alguma de suas
caractersticas, mas em virtude de seu prprio vir a ser (CHEVALIER & GHEERBRANT,
2007, p. 648). Logo, as datas balizam as vivncias, pois demarcam os ritos bem como a imagem
do vir a ser, a qual revelada pelas nuvens.
Prova que a flor (v.7) o veculo que permite o reconhecimento da vida do sujeito lrico
Narciso em seu momento de morte pode ser evidenciada no verso que separa, pelo imagtico
do espelho, uma face da outra: e na minha memria s imortalidade (v.8). Imagino que,
de um lado, o sujeito olha-se no espelho da flor e busca, pela mensagem das nuvens, atravs
da lembrana do outro, o anseio pela faceta originria, a qual eclode como resoluo para o
impasse da dualidade identitria eu mesma e mim.
De outro lado, no entanto, nas datas que est situado o aspecto irreversvel do tempo
nas facetas, imposto pela inefvel cronologia, cuja aluso lembra a simbologia da vida, uma
vez que cada data constituda por uma vivncia distinta e o somatrio delas demarcado
pelos ritos de passagem. Ou seja, para determinada data ser sucedida por outra necessrio que
a vigente, assim como a histria, se transforme para dar espao prxima. Essa possibilidade
dual da histria (ao mesmo tempo em que o sujeito est ciente das datas, ele escuta o prprio
corao) me motiva a repensar as revelaes do menino que no se conhece: Narciso em seu
caminhar, pode se perder ou se encontrar (CAVALCANTI, 1992, p. 11).
Ovdio relata que uma das primeiras vidas do jovem Narciso, a das caadas, apesar de ser
constituda por um grupo de comparsas, solitria, calma e alienante uma vez que o orgulhoso
menino no possui compromisso emocional com ningum. J a vida no compartilhada, isto ,
a da solido no lago, a qual proporciona a Narciso o saciar da sede, inaugura o desafio da morte
e lhe possibilita repartir a existncia com a imagem que abraa no Tspias. Isso me remete a
uma passagem de A potica do devaneio quando Bachelard prope identificarmos a histria
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atravs da seguinte indagao: (...) a que tempo, a que memria nos transporta o sonho diante
desses fogos que cavam o passado como cavam a cinza? (BACHELARD, 1988, p. 184).
A continuidade da imagem de Narciso, configurada pelo eu caador, alienado nos campos,
recusando o amor do outro (Eco) espelho do eu que, ao matar sua sede (re) conhece, na
imagem que bebe gua, um eu at ento desconhecido de si mesmo. A imagem em anlise
tambm sugerida pela leitura da primeira e segunda estrofes e pode, nesse caso, ser imaginada,
ainda, na leitura da quarta. Nesta, possvel imaginar duas possibilidades acerca do olhar, cujo
silncio (v.10) sugere a busca ensimesmada no espelho.
A duplicidade do olhar (aberto e fechado) revelada como sequncia/reunio, isto , como
o instante, assim como a ilha, do momento presente. Nessa perspectiva, imagino essa dualidade
como um espelho s avessas, no qual o eu, ao se olhar, enxerga um outro. A construo
do imagtico do espelho remete a determinado trecho do grande poema de Ovdio: (...) Se ao
menos pudesse/ Escapar de meu prprio corpo! Se ao menos pudesse Que prece mais estranha
para um apaixonado Ser afastado do meu amor! ( 2003, p.60)
Segundo o Dicionrio de Smbolos, algumas culturas indgenas consideram que o
momento de abertura dos olhos das esttuas sagradas perpetuado pelo efeito de vivificao,
pois A abertura dos olhos um rito de abertura ao conhecimento, um rito de iniciao
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 648-655). Alm da conscincia dos seus olhos
cerrados, em vista dos do outro que esto abertos, o sujeito lrico assume a ausncia da fala,
pois, caso contrrio, o efeito a morte. Logo, o eu potico profere um chamamento vida.
Revestido por antteses que compem o olhar e o falar, ver x no ver e o falar x
silenciar, no devaneio de morte, o sujeito lrico desvela e assume as possveis histrias de
outros tempos. Pelo fato de utilizar a memria como veculo, lana mo das lembranas para
evocar tal devaneio. Para imaginar essa viagem, mergulho na filosofia de Bachelard quando
explica que o devaneio da infncia o destino da viagem. E ela acontece especialmente pelo
sentido da viso na qual h uma fora que permite com que, at mesmo, a imaginao do olfato
seja veculo que transporta o sujeito para outros tempos:
As imagens visuais so to ntidas, formam com tanta naturalidade quadros que resumem
a vida, que tm um privilgio de fcil evocao nas nossas lembranas de infncia.
(...) Fechamos os olhos, e assim imediatamente nos pusemos a sonhar. E, ao sonhar,
simplesmente num devaneio sereno, vamos reencontr-las. ( BACHELARD,1988,
p.131132)
O espelho - memria, seja o imaginado pelo mar, ilha, flor, fala ou olhar, luz do eu
como imagem-reflexo do outro, cujo contedo configurador da vida Vida, serve de
veculo para o sonho da morte. Nesse espelho, o sonhador (seja em sonho ou viglia) transporta-
122
Logo, a dualidade do olhar, enquanto possibilidade que refora o eu a reconhecer-se
enquanto reflexo do outro, a totalidade imortal da memria que reflete a trans - formao
da vida (v.13). A dualidade incita, ainda, ao sujeito compreender-se, apesar de fragmentado,
em plenitude, pois conduz o mito a configurar uma linguagem circular do mesmo fenmeno,
que assume complexidade e profundidade cada vez maiores. E, pela repetio da imagem,
demonstra sua importncia. Espelho disso: as histrias que perseveram na memria - assumem
tal condio; isso porque a Memria... capaz de recordar e dispe de uma fora mgicoreligiosa ainda mais preciosa do que aquele que conhece a origem das coisas (ELIADE, 1986,
p.82)
Do mesmo modo que Narciso escuta sua voz pela boca de Eco j que ela repete o
som das suas ltimas palavras, o sujeito lrico do sexto poema de Solombra reflete, atravs da
exterioridade emanada por preceitos do tempo, o contedo da memria como substncia que
vigora o passado, isto , como elo do presente. E Bachelard diz: o amor nunca termina de
exprimir-se e se exprime tanto melhor quanto mais poeticamente sonhado (1988, p. 8). Um
processo parecido ocorre com os olhos do eu que esto no lugar dos olhos do outro.
No silncio, a ausncia do entendimento acerca de si mesmo, aludida por Cavalcanti,
est na imagem do eu (Narciso) de olhos fechados (v.11), enquanto o sono do no ser
est na imagem do outro de olhos abertos (v.10). Evitando que acontea a mesma morte,
ocorrida com o amor e evidenciada no terceiro verso, o sujeito lrico prefere calar-se e escolhe,
na ausncia da voz, o seu libi. Isso transcrito em verso: pois bem sei que falar o mesmo
que morrer (v.12).
Sugiro imaginar o calar e os olhos fechados enquanto conservao da vivncia do instante
habitado, ou seja, na sensao de estar na morte, mas permanecer na vida. Do mesmo modo que
123
o amor afogado, a vida transfigurada em outra realidade, numa realidade de morte. Sendo
assim, as confisses do sujeito solombresco, expressas no sexto poema, so movidas enquanto
construo e cincia da histria dupla e mvel, desdobradas entre as condies de se afirmar (v.
8) ou de se negar (v.11); de se reconhecer (v.10 e v.11) e de se ocultar (v.12).
Os olhos fechados (v.11) do eu e a ausncia do falar (v.12) representam a lembrana
do destino de Narciso. Quando sua genitora pergunta se o menino ter vida longa, o profeta
Tirsias enftico: claro que sim, se ele nunca descobrir a si mesmo. E Narciso viveu at
um belo dia se deparar com a morte, mais precisamente com a descoberta de si mesmo. Um
processo parecido ocorre no poema: a imagem - reflexo envolve o olhar do projetado (v.10
e v.11) bem como a cincia de que caso falar descobrir sua histria, isto , a transformao
evidenciada no verso: Da vida vida, suspensas fugas.
O entendimento da dual histria a respeito dos entes discursivos de Solombra, bem
como a subjetividade por eles invocada, requer que eu os entenda enquanto pares que, distantes
no tempo, revelam suas coincidncias. Para tanto, o mito de Narciso, na investigao do
rapaz belo que se olha no lago e se confunde com a imagem que v, objetiva um processo
de idealizao da imagem reflexo. Reatualizar o mito, no sexto poema de Solombra,
constitui uma maneira de imaginar o eu e de (re)incorpor-lo s muitas histrias que, vividas
no instante, proporcionam a habitao na tristeza(v.5), consequentemente na imaginao
da imagem outro.
sensato dizer que a memria se apresenta, em ultima instncia, como um dos mitemas
que revelam/possibilitam a transfigurao da realidade. A memria como espelho da realidade
permite ao sonhador, na investigao de seu processo histrico, revelar-se como quele que
consegue recordar-se dos seus nascimentos e de sua durao, consegue tambm libertar-se;
converte-se em senhor de seu destino. (ELIADE, 1986, p.83)
REFERENCIAS:
BACHELARD, Gaston. A gua e os sonhos: ensaio sobre a imaginao da matria. So Paulo:
Martins Fontes, 1997.
BACHELARD, Gaston. A potica do devaneio. So Paulo: Martins Fontes, 2001.
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos - ensaio sobre a imaginao do movimento. So
Paulo: Martins Fontes, 1997.
BACHELARD, Gaston. A intuio do instante. Campinas: Versus, 2007.
CAVALCANTI, Raissa. O mito de Narciso: o heri da conscincia. So Paulo: Rosari, 2003.
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cinematogrficas que muito influenciaram o documentrio, uma vez que o cinema Neorrealista
buscou representar o cotidiano da classe desfavorecida e, principalmente, porque os cineastas
da poca comearam a registrar o real e, logo depois, perceberam que para tanto tinham que
discutir os limites da realidade e da fico. Nesse sentindo, ainda que o cinema comece com
pretenses documentais e a diviso estrita entre o que fico e o que no fico seja difcil,
coube ao documentrio ocupar-se das chamadas narrativas no ficcionais.
128
realidade tal como ela percebida pelo sentido comum racional e secular:
as narrativas e imagens realistas mostram, muitas vezes, uma realidade suja, srdida,
violenta e desesperanada, uma realidade pouco palatvel que, entretanto, legvel.
Para leitores e espectadores alheios aos discursos acadmicos ou especializados, estes
retratos vividos do desmanche social oferecem ponteiros interpretativos porque o
Realismo esttico acionado carregado de verossimilhana e intensidade ficcional.
(JAGUARIBE, 2007, p. 9)
A autora observa que do Realismo a proposta de acessar maneiras cotidianas pelas quais
os indivduos expressam seus dilemas existenciais por meio de experincias subjetivas e sociais
que esto em circulao nas montagens da realidade social. Jaguaribe (2007, p. 16) diz ainda
que o paradoxo do Realismo consiste em inventar fices que parecem realidades.
Jaguaribe (2007, p. 10) ressalta ainda que as estticas do Realismo se apoiam na
representao da realidade naturalizada pelo sentido comum cotidiano. Elas ocultam seus
prprios mecanismos de ficcionalizao e, assim, as imagens representativas do Realismo
contemporneo tornam a realidade mais prxima dos leitores/espectadores. Uma vez que o
cinema lana mo cada vez mais de artifcios comuns da rotina dos indivduos, como, por
exemplo, ao utilizar como cenrio e tema de filmes e documentrios as favelas, as comunidades,
as pessoas que no so notcia. A linguagem outra, os personagens tambm, e isso possibilita
uma nova narrativa.
Os temas representados no cinema contemporneo assemelham-se com os temas tratados
pelos autores do Realismo do sculo XIX, como a misria e a excluso social, por exemplo,
considerados interessantes pelo pblico, uma vez que esses problemas ainda hoje assombram a
sociedade brasileira.
Na contemporaneidade, percebemos a busca dos meios de comunicao pelo real. As
narrativas contemporneas brasileiras buscam subsdios no romance realista do sculo XIX,
atravs da representao da realidade, de personagens simples da vida real, da narrativa detalhista
e da responsabilidade social. Assim, os reflexos dos autores do Realismo no esto apenas na
literatura contempornea, mas, tambm, como observamos, no cinema e no documentrio
objeto de estudo desta pesquisa , que acabam por produzir uma nova feio a esse ltimo, que,
influenciado pelo Realismo, resulta num hbrido entre fico e no-fico.
129
Apesar dos limites tnues entre o cinema e o documentrio, para muitos, o documentrio
entendido como oposto ao filme de fico, uma vez que o filme de fico trabalha com a
presena de atores, encenao, direo, cenrio, enquanto o documentrio, na grande maioria
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das vezes, apresenta personagens reais, em ambientes reais e com intervenes sutis de edio
e de direo. Ou seja, o documentrio est mais identificado com o registro do real, razo
pela qual, para Nichols (2005), o documentrio engaja-se no mundo pela representao: os
documentrios oferecem-nos um retrato ou uma representao reconhecvel do mundo. Pela
capacidade que tm o filme e a fita de udio de registrar situaes e acontecimentos com notvel
fidelidade, vemos nos documentrios pessoas, lugares e coisas que tambm poderamos ver por
ns mesmos, fora do cinema (NICHOLS, 2005, p. 28).
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p. 24), na maioria dos casos, o espectador sabe de antemo estar vendo uma fico ou um
documentrio e, assim, estabelece sua relao com a narrativa em funo desse saber. O
conceito da indexao trabalha a ideia de que um filme produzido para um destinado pblico.
Na maioria das vezes, a narrativa documentria chega j classificada ao espectador, seguindo
a inteno do autor. Quando vamos ao cinema, j estamos certos do que vamos assistir, no
vamos para tentar descobrir se uma narrativa uma fico ou um documentrio. O autor de
um documentrio indexa sua inteno atravs de mecanismos sociais diversos, direcionando
a recepo: O documentrio se sustenta sobre duas pernas, estilo e inteno, que esto em
estreita interao ao serem lanadas para a fruio espectatorial (RAMOS, 2008, p. 27).
133
cmeras.
Para a gravao do documentrio, as entrevistadas foram convidadas a subir at o palco
do Teatro Glauce Rocha. Ali, elas encontraram apenas uma cadeira de frente para Coutinho e
de costas para uma plateia vazia. A cena remete a uma sesso de terapia, pois o cineasta est
ali, principalmente, para ouvi-las, fazendo apenas discretas intervenes. O enquadramento
das cenas coloca as entrevistadas em close5, ou seja, na maior parte do tempo seus rostos
tomam conta da tela e a emoo de cada uma delas se evidencia ainda mais, uma vez que o
enquadramento no deixa mais nenhum espao sua volta.
O filme comea e a dvida tambm, pois de incio Coutinho joga em cena. Entre
as histrias divididas por entrevistadas e atrizes e aquelas que so contadas somente pelas
atrizes, h tambm aquelas que so contadas por uma entrevistada e que no so recontadas por
nenhuma atriz. O documentrio no tem legendas e nem crditos com o nome das entrevistadas
e atrizes.
Para compreender as evidncias do Realismo no documentrio a partir do tema proposto,
depois de identificarmos as marcas dos gneros, emergiram como indicados metodolgicos da
anlise Personagem, Cenrio, Cmera-olho, Montagem.
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histrias que so contadas em uma nica sequncia por uma entrevistada e repetidas por outra
atriz em outro momento do filme. O jogo criado pelo cineasta de utilizar a narrao de atrizes
com a narrao de personagens reais contando a mesma histria tornou ainda mais difcil o
entendimento dos limites do que se refere realidade e o que se trata de interpretao.
A inteno do diretor perturbar e jogar com a ateno do espectador no sentido de
no deixar claro se aquela mulher realmente viveu a histria que est contando ou se est
interpretando. Problematiza assim a ideia de que todo mundo em alguma medida interpreta
quando conta. Como destacou Figueiredo (2010), no filme o cineasta no d tanta importncia
para quem est narrando, mas, sim, para a forma com que a histria est sendo narrada, para
que se perceba que toda narrativa implica ficcionalizao em algum nvel, ainda que se trate
da histria de quem conta. Assim, atrizes e no atrizes se equivalem no sentido de que ambas,
em alguma medida, interpretam. Portanto, vivem uma personagem, ainda que de si mesmas, no
caso das entrevistadas no atrizes. neste jogo de no saber o que realidade ou interpretao
que surgem as primeiras marcas da mistura dos gneros. Ou seja, neste filme, mais importante
do que a exposio da vida-relato e o propsito de trazer tona o imaginrio do indivduo
comum, o deslizamento do documentrio para o campo da fico (FIGUEIREDO, 2010, p.
95).
Em Jogo de Cena, Coutinho mostra o desvelamento das marcas narrativas contemporneas
no momento em que ele alcana, talvez, o seu principal objetivo: mostrar o quanto impossvel
estabelecer limites entre a realidade e a fico. Lins (2007) destaca que Coutinho dissolve
distines entre o que encenado e o que real e produz mudanas ao longo do filme na forma
do espectador se relacionar com ele:
se diante das atrizes conhecidas somos tentados, inicialmente, a julgar seu desempenho,
Jogo de Cena nos retira desse lugar e propicia um outro tipo de experincia: a de
compartilhar com atrizes talentosas e reconhecidas angstias e dificuldades inerentes
encenao de personagens reais. Andra Beltro provoca em muitos momentos um
curto-circuito comovente entre suas sensaes e as da personagem. Fernanda Torres
interrompe algumas vezes sua atuao, diz a Coutinho que parece estar mentindo e
explicita a dureza de interpretar uma personagem real: a realidade esfrega na sua
cara onde voc poderia estar e no chegou. Marlia Pra interpreta uma personagem
extremamente emotiva, mas esbarra numa atuao distanciada. Jogo de Cena exibe
essas variaes na forma de atuar e leva o espectador a compreender a arte de
representar como algo instvel, inseguro e exposto a riscos extremamente prximo
do documentrio, tal como concebe Eduardo Coutinho. (LINS, 2007, p. 8).
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sou o cine-olho. Sou um olho mecnico. Eu, uma mquina, mostro-lhes o mundo
como apenas eu sou capaz de v-lo. Agora e para sempre, liberto-me da imobilidade
humana. Encontro-me em constante movimento. Me aproximo e me afasto dos objetos.
Rastejo ao seu redor, monto por cima deles. Acelero seguindo o focinho de um cavalo
galopante. Precipito-me a toda velocidade sobre a multido. (STAM, p. 60-61).
Ou seja, a cmera no foi vista como uma interveno, mas, sim, como a reproduo do
real, a captao da realidade: [...] a cmara deve colocar-se diretamente em contato com o real,
no se deve construir mentirinha nenhuma na frente da cmara para ser filmada. A cmara s
deve filmar o que existiria independentemente dela (BERNARDET, 1981, p. 52-53).
No entanto, para Coutinho essa ideia problematizada diante do fato de que, perante
uma cmera ligada, todos esto atuando. Entretanto, a cmera que o cineasta coloca diante
da entrevistada e na composio do cenrio escolhido nos d entender que invisvel. Ao
analisarmos o filme, percebemos que as entrevistadas no esto preocupadas com a cmera,
isso porque as entrevistadas de Coutinho oferecem a essa cmera bem mais que suas histrias,
suas aparncias, suas angstias, suas emoes. Por vezes, nos perguntamos se elas sabem que
esto sendo filmadas e se esse documentrio vai percorrer o mundo inteiro, pois ali estavam
sendo contadas histrias reais e ntimas.
Em relao montagem quando o real se mostra mais real em Jogo de Cena, a
caracterstica de contar a histria de pessoas comuns se define como uma marca da mistura da
fico e do documentrio, uma vez que o cineasta se utiliza de um recurso para jogar em cena:
a mistura de depoimentos reais com interpretaes de atrizes. Para Figueiredo (2012), o que
ocorre o desvelamento das mediaes, tanto da ordem da subjetividade quanto da tcnica. O
desvelar das marcas da narrativa contempornea no cinema evidencia a representao do real e
dissolve os limites entre fico e no-fico.
A principal marca que encontramos em Jogo de Cena que deixa clara essa busca em
tornar o real ainda mais real est na narrativa que se costura ao longo do filme. Em diversas
entrevistas, Coutinho afirma que ao se aproximar mais do real o documentrio vira fico.
Com essa colocao, o cineasta no pretende problematizar as tnues fronteiras entre o real e
a fico, pois para ele no importa muito o que real ou o que ficcional. O que interessa ao
documentarista despertar o imaginrio dos seus espectadores.
Jogo de Cena se despe de todos os efeitos especiais que a tecnologia oferece. A narrativa
se constri a partir de uma edio no linear composta por uma estrutura que costura as histrias
narradas. O documentrio no tem trilha sonora e o que d ritmo a filmagem o prprio som
ambiente, composto pelo rudo do palco, o som das entrevistadas subindo o acesso ao palco que
se d atravs de uma escada caracol. Entre uma entrevistada e outra, o corte seco e o que fica
em cena apenas o enquadramento da cadeira, que fica de costas para a plateia vazia, ou ento
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o enquadramento aberto, que mostra os bastidores da filmagem. Todos esses recursos, ou a falta
deles, mostra o desvelamento da narrativa, isto , quanto menos efeito de ps-produo, mais
real se torna.
Em Jogo de Cena, a mistura dos gneros no est somente na narrativa, nem mesmo nas
personagens ou no cenrio escolhido. Mas tambm nas interferncias do diretor, nas imagens
em que a equipe aparece, nos enquadramentos da cmera, na plateia vazia, nas pausas, nas
respiraes, nos olhares, nas ironias e na emoo de cada uma das mulheres, atrizes ou no.
Coutinho produz com maestria um documentrio de pouco mais de 100 minutos, que se passa
em um nico local, mas que nos prende do incio ao fim na busca por desvendar o que real e o
que fico, propondo a antiga discusso sobre a possibilidade da criao da vida de qualquer
nvel da experincia, ou seja, o fato de que somos intrpretes de ns mesmos. Esse o objetivo
de Coutinho: embaraar o espectador e propor um jogo de cena em sintonia com a marca
contempornea em que os documentrios se mostram cada vez mais misturados, flexibilizando
os gneros e tornando as marcas do real e da fico cada vez mais imperceptveis.
7. Consideraes finais
Destacamos que o documentrio apresenta as marcas da hibridizao dos gneros, tanto
no cenrio, quanto nas personagens, na composio da cena e na construo da narrativa que
explicita essas marcas. A principal marca dessa hibridizao est na inteno do cineasta em
jogar com o espectador entre uma cena e outra, entre uma histria verdadeira e uma fictcia,
apontando para a impossibilidade de delimit-las.
O jogo de Eduardo Coutinho, ao mesclar atrizes e entrevistadas, colocou os espectadores
diante a uma obra que se desveste diante de qualquer encobrimento. Os bastidores compem
a cena do filme, que se utiliza sutilmente de efeitos e de edio. Coutinho apresenta um
documentrio puro, no sentido de no investir, principalmente, na ps-produo e, dessa
forma, aponta para o desvelamento das marcas que compem uma narrativa que, de to real que
busca se apresentar, ficcionaliza-se.
No que diz respeito narrao das entrevistadas, o que entra em questo no apenas a
interpretao, mas principalmente o trabalho de memria que atriz e entrevistada tiveram que
desenvolver. Cada narrativa composta de detalhes e lembranas minuciosas. A emoo que
elas despertam nos espectadores que no momento da gravao estavam invisveis na plateia
vazia deu-se a partir da recordao das vivncias passadas que naquele momento invadiram
as narrativas.
Assim, Jogo de Cena no s representa uma reviravolta no trabalho de Eduardo Coutinho,
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como tambm pode ser considerado referncia de produto audiovisual contemporneo, que no
faz questo de esconder a impossibilidade de limites da fico e da no-fico. No podemos
deixar de levar em considerao tambm a hiptese de que filmar uma narrativa por si s
j ficcionalizar e que, se pensando assim, a dimenso ficcional faz-se presente na grande
maioria dos documentrios, principalmente no que diz respeito aos documentrios de Eduardo
Coutinho.
Entendemos que, mais do que buscar o desvelamento dos processos que deram origem
histria do documentrio, o que ocorreu foi o desejo de problematiz-lo. Nessa problematizao,
percebemos cada vez mais forte o documentrio contemporneo marcado por explicitar seus
processos de produo e problematizar os bastidores como contedo, como estratgia de
desvelamento. A discusso que permeia essa problemtica d-se no sentido de discutir o prprio
fazer documentrio e, tambm, a impossibilidade do registro absoluto do real. Tanto na fico
quanto no documentrio, a realidade sempre uma construo.
O audiovisual tem buscado representar de forma verossmil a sociedade como manifestao
esttica do Realismo contemporneo. Dessa forma, o real ofertado se apresenta a partir de
manifestaes de intensificao das realidades. Ou seja, na tentativa de chocar ao se mostrar um
real para alm do real, a narrativa vai alm da representao.
O que salta aos olhos em Jogo de Cena a dimenso que histrias de mulheres ditas
comuns ganham na interpretao das atrizes conhecidas. A perda de um filho ainda quando
beb contada pela me de forma segura e conformada, com certa superao. J a atriz Andra
Beltro, que interpreta a personagem, no consegue segurar o choro e vai s lgrimas. Coutinho
mostra que, para uma pessoa comum virar uma grande personagem, no preciso muita coisa,
basta ter uma boa histria, uma boa narrativa e a coragem de encarar a cmera.
O hibridismo entre o documentrio e a fico est claro em Jogo de Cena, apesar dos
truques utilizados pelo cineasta em tentar confundir o pblico. Mesmo deslizando para a fico,
Coutinho foge da caracterstica do cinema ficcional de levar o espectador pela mo durante
a trama. Coutinho no s confunde o espectador durante a trama, como tambm s guarda
boas surpresas para aqueles que, aguados pelas histrias, vo at os extras do DVD. Esses
truques do cineasta nos provocaram a analisar com o mesmo olhar da cmera-olho as histrias
ali contadas. No existem limites entres os gneros, eles se dissolvem, complementam-se e se
apropriam um do outro, na maioria das vezes, sem fazer questo de esconder as marcas, uma
vez que essa mistura prpria do contemporneo.
Jogo de Cena vai alm de instigar as marcas do real e da fico. O documentrio coloca
para a sociedade histrias reais, baseadas na vida real. Certamente existem mais elementos nesta documentada fico que so merecedores da nossa ateno. Elementos para outro olhar, para
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outra pesquisa, ou para a continuidade desta. Em Jogo de Cena, Coutinho prova que no apenas um dos maiores documentaristas brasileiros como apontam os veculos de comunicao.
tambm um grande diretor e a comprovao est no espao que ofereceu a essas mulheres de
colocarem suas superaes e tristezas da vida para o mundo atravs da lente de uma cmera. O
cineasta deu a elas, talvez, a importncia e o reconhecimento que muitas buscaram durante toda
a vida. No palco do Teatro Glauce Rocha, todas, de alguma forma, estavam interpretando, mas
nenhuma estava mentindo.
Referncias
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BERNARDET, Jean-Claude. O que cinema. 3.ed. So Paulo: Brasiliense, 1981. 117p.
BERNARDO, Gustavo. O problema do realismo de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.
COUTINH0, Afrnio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul-Americana, 2003.
FIGUEIREDO, Vera Lcia Follain de. Novos realismos, novos ilusionismos. In: MARGATO,
Isabel; GOMES, Renato Cordeiro. Ttulo: Novos Realismo. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2012.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real. Esttica, mdia e cultura. Rio de Janeiro:
Rocco, 2007.
JAGUARIBE, Beatriz. Fices do real: notas sobre as estticas do realismo e pedagogias do
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2010.
LINS, C. MESQUITA, C. Crer, no crer, crer apesar de tudo: a questo da crena nas imagens
na recente produo documental brasileira. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho <insira
aqui o seu GT>, do XVII Encontro da Comps, na UNIP, So Paulo, SP, em junho de 2008.
MATTOS, Carlos Alberto. Doc + fic: a era do hbrido (2011). Disponvel em: http://carmattos.
com/2011/02/25/doc-fic-a-era-do-hibrido/.
MOISS, Massaud. A literatura portuguesa. 16.ed. So Paulo: Cultrix, 1997.
NICHOLS, Bill. Introduo ao documentrio. 3.ed. Campinas: Papirus, 2008.
140
FILMES:
JOGO de cena. Direo: Eduardo Coutinho. Montagem: Jordana Berg. Rio de Janeiro: Matizar
(estdio); Videofilmes, 2007. 105 min, son., color., pelcula, 35 mm (1 DVD).
141
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As dicotomias existentes no Peru so, de certa forma, o retrato de sua histria. Se,
conforme afirma Manky (2007, p.92), uma abordagem simplista diria que h un Per moderno
y uno tradicional, cada grupo de caractersticas do pas estaria atrelado a tal diviso: riqueza,
occidentalidad, novedad; pobreza, andinidad, antigedad3. Considerando esta separao, a
literatura peruana expressa em sua arte o espao de lutas que propiciou tal configurao para
o pas. Alm disso, a luta aqui no deve ser entendida apenas no mbito social e poltico do
pas, mas na prpria tentativa de os inmeros escritores se consolidarem enquanto produtores
culturais.
O artista tem o poder de criar imagens que sedimentam as experincias vivenciadas pelo
povo. Essa capacidade definida por Bourdier, citado por Manky (2007), como el poder de
nominar4. Apesar de possuir caractersticas prprias, a literatura no um produto autnomo.
Ela apresenta significncias que, obviamente, retratam determinado imaginrio social, assim
como nele acaba interferindo. A literatura sin ser un producto autnomo respecto de otras
esferas, tiene caractersticas propias. Adems como cualquier sistema significante realizado, no
es pasivo: no solamente se manifiesta, sino que construye diferentes imaginarios.5 (MANKY,
2007, p. 92).
Diante disso, podemos justificar o fato de a literatura peruana retratar a crueldade
vivenciada no pas e praticada por bandos terroristas, como o Sendero Luminoso, assim como
pelas foras Armadas, nos anos de 1980. Inmeras narrativas contos e novelas so publicadas
a partir da referida dcada, apresentando o cenrio de violncia vivenciado pela populao. Esses
textos se constituem enquanto fices que expressam a realidade, demonstrando testemunhos
que resgatam a memria coletiva, mas que, ao mesmo tempo, demonstram subjetividades e
sentimentos particulares.
Los traumas y heridas generados en dicha poca, se han traducido en material
explotable para un grupo de escritores y escritoras que han producido cuentos y
novelas con el tema de la violencia como teln de fondo. Se puede adivinar, adems,
que para todos estos autores y autoras es importante dar testimonio, a travs de la
ficcin, de la miseria vivida en dichos aos y de ahondar, en las distintas historias y
situaciones experimentadas por las miles de vctimas. De igual manera, existe una
conciencia colectiva que apuesta por el no olvido de estos terribles sucesos que han
dejado graves secuelas6. (ALMENARA, 2013).
3 um Peru moderno e um tradicional, cada grupo de caractersticas do pas estaria atrelado a tal diviso: riqueza, ocidentalidade, novidade; pobreza, andinidade, antiguidade.
4 o poder de nomear.
5 Alm disso, como qualquer sistema significante realizado, no passivo: no somente se manifesta, mas tambm constri diferentes imaginrios.
6 Os traumas e feridas gerados em dita poca, foram traduzidos em material explorvel para um grupo de escrito-
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No cabe aqui discutir sobre a literariedade presente neste tipo de literatura. O fato
que a atual literatura peruana abriga em si a subjetividade e a memria de um povo. Retrata
sentimentos, emoes e um instrumento de resgate de um passado que ainda influencia o
presente e lana questionamentos quanto ao futuro.
El tema de los aos de la violencia sociopoltica sintagma que da a entender que
esta violencia nicamente se circunscribe a un perodo delimitado de un pasado
res e escritoras que produziram contos y novelas com o tema da violncia como pano de fundo. Pode-se adivinhar,
alm disso, que para todos estes autores e autoras importante dar testemunho, atravs da fico, da misria vivida
nestes anos y de afundar, nas distintas historias y situaes experimentadas pelas milhares de vtimas. De igual
maneira, existe uma conscincia coletiva que aposta no no esquecimento desses terrveis acontecimentos que
deixaram graves sequelas.
7 Pense-se a respeito nas crticas a La Hora Azul, novela de Alonso Cueto. A maioria delas tem sido sobre a posio que toma a respeito da violncia poltica, qualificando como uma novela superficial, que buscaria aproveitar
um drama nacional para vender. No se julga a partir de critrios estticos, nem parece existir a possibilidade de
valid-la internamente. Importaria mais o testemunho do que a arte.
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Este texto, que descreve a realidade foi, inmeras vezes, mesclado com a fico. A
literatura acabou se apropriando de uma experincia real para criar uma arte que denuncia os
abusos sofridos durante os 20 anos de terrorismo. A indiferena de boa parte da populao
peruana, principalmente dos habitantes de Lima, tambm reforada atravs dos depoimentos
e das sequelas descritas, assim como o assustador nmeros de mortos: 70 mil. Por isso, este
documento resalta la importancia de no olvidar lo ocurrido en este tiempo pues de hacerlo, el
pas correra el alto peligro de volver a repetir estos desmesurados episodios.11 (ALMENARA,
2013).
A obra La hora azul, do escritor peruano Alonso Cueto, foi ganhadora, no ano de 2005,
do prmio Herralde de Novela. Para Vich (2009), o texto se constitui com a inteno de nomear
a necessidade que o pas possui em revelar uma verdade oculta, mostrando, assim, a dimenso
menos conhecida da crueldade poltica. A narrativa justifica a argumentao j apresentada ao
contar a histria de Adrin Ormache, advogado que possui uma vida cmoda, mas que enfrenta
a descoberta do passado cruel que envolve, especificamente, seu falecido pai. Observemos o
resumo na contracapa da obra:
El doctor Adrin Ormache es un abogado prspero que vive en una zona acomodada de
Lima. Tiene un buen sueldo, un trabajo estable que le gusta y una familia encantadora.
Al cuidado de su madre, su infancia tambin ha transcurrido sin problemas. Adrin
slo ha visto espordicamente a su padre, de cuyas hazaas como oficial de la marina
peruana ha odo hablar. Tras su fallecimiento, descubre sin embargo que su padre
estuvo a cargo de un cuartel en la zona de Ayacucho, durante la guerra de Sendero
Luminoso. Gracias a ex subordinados suyos, se entera, adems, de que ordenaba las
sesin tortura y mandaba violar y ejecutar a las prisioneras. Pero en una ocasin su
padre le perdon la vida a una de ellas, que luego se escap del cuartel. Cuando
se entera de la existencia de esta misteriosa mujer, Adrin se propone conocerla.
12
(CUETO, contracapa).
testemunhos das vtimas de este penoso perodo de dilaceradora violncia; daqueles que sofreram torturas, abusos
sexuais, entre outras vilezas. Analisam-se, igualmente, as sequelas que teve esta nefasta experincia, assim como
os muitos crimes praticados e as inumerveis violaes aos direitos humanos.
11 este documento ressalta a importncia de no esquecer o ocorrido neste tempo, pois em faz-lo, o pas correria o alto perigo de voltar a repetir estes desmesurados episdios.
12 O doutor Adrin Ormache um advogado prspero que vive em uma zona acomodada de Lima. Tem um bom
salrio, um trabalho estvel de que gosta e uma famlia encantadora. Ao cuidado de sua me, sua infncia tambm
transcorreu sem problemas. Adrin viu esporadicamente a seu pai, de cujas faanhas como oficial da marinha peruana ouviu falar. Depois de seu falecimento, descobriu, no entanto, que seu pai esteve a cargo de um quartel na
zona de Ayacucho, durante a guerra de Sendero Luminoso. Graas a seus ex-subordinados, se interou, alm disso,
de que ordenava as sesses de tortura e mandava violentar e executar as prisioneiras. Mas, em una ocasio, seu
pai perdoou a vida a uma delas, que logo se escapou do quartel. Quando se inteira da existncia desta misteriosa
mulher, Adrin se prope a conoc-la.
146
13 A busca se inicia, como j mencionado anteriormente, com a morte da me de Adrin Ormache. Devido a isso,
seu irmo Rubn, que vive nos Estados Unidos, viaja a Lima para assistir aos funerais. Em uma conversa entre
ambos os irmos, Rubn confia a Adrin que seu padre mandava torturar a seus prisioneiros e violava as supostas
terroristas, e que logo, as entregava tropa para que fizesse o mesmo. em base a esta meno que Adrin se
lembra do pedido que seu pai lhe fez no leito de morte: buscar a una mulher chamada Miriam que havia conhecido
em Ayacucho. assim que Ormache filho inicia suas averiguaes sobre esta misteriosa mulher e, atravs dela,
descobre una dolorosa verdade que mudar sua vida para sempre.
147
148
entre Adrin e Miguel no final da novela. Ambos expressam a percepo de que a sociedade
lhes atribui um lugar e de que esto completamente sujeitos a ele. Ah cada uno es consciente
de que la sociedad les ha asignado un lugar y que casi estn completamente sujetos a l.16
(VICH, 2009, p. 245).
149
esse no-falar ou este falar pouco das personagens poderia ser a prpria resposta, o testemunho
de toda a crueldade e o terrorismo vivenciado pela populao peruana.
Alm disso, o autor afirma que no se trata solamente de que el subalterno no hable
en esta novela, sino que adems acumula su no hablar y ello se convierte en el signo de un
pasado todava actuante y de un presente lleno de heridas no resueltas18 (VICH, 2009, p. 240).
A simbologia de um passado ainda presente s permitida atravs da memria. So as marcas
de uma vivncia interiorizada e que podem ser recuperadas a qualquer instante com a ativao
de lembranas.
Ricouer (2007), salienta que a lembrana no consiste mais em evocar o passado, mas
em efetuar saberes aprendidos, arrumados num espao mental. No caso da obra, como se
a interiorizao dos acontecimentos compusesse os personagens. Como se a assimilao do
passado configurasse suas aes e, inclusive, justificasse esse no-dizer.
Alm disso, a percepo do outro pode ser um fator contribuinte para o questionamento
da prpria identidade. Na medida em que Adrin vai descobrindo os outros, representados por
Miriam e pelo filho Miguel que talvez fosse seu meio irmo, fato que no descoberto
no enredo , ia tambm se redescobrindo. Ela, em contrapartida, reconhecia na figura dele
o passado que se revelava como presente e que, de certa forma, institua uma ameaa sua
prpria identidade, que, aos poucos, era ressignificada. Esse confronto com outrem passa a ser
percebido, conforme aponta Ricoeur, como
um perigo para a identidade prpria, tanto a ns como a do eu. Certamente isso pode
constituir uma surpresa: ser mesmo preciso que nossa identidade seja frgil a ponto
de no conseguir suportar, no conseguir tolerar que outros tenham modos de levar
sua vida, de se compreender, de inscrever sua prpria identidade na trama do viverjuntos, diferentes dos nossos? Assim . So mesmo as humilhaes, os ataques reais
ou imaginrios autoestima, sob os golpes da alteridade mal tolerada, que fazem a
relao que o mesmo manem com o outro mudar de acolhida rejeio, excluso.
(RICOEUR, 2007, p. 94-95).
Ricoeur
150
A ltima frase da narrativa revela que ela tambm foi contada a algum. Uma forma de
proliferao da memria coletiva o narrar, seja ele de forma oral, seja de forma escrita. Se
Miriam e Miguel cultivavam o silncio, a perpetuao das lembranas cruis se garantiu por
aqueles que narraram os episdios vivenciados.
O fato que o advento da escrita propicia o efetivo acesso ao passado. O registro
escrito considerado a nossa memria artificial, j que uma das fontes de resguardo das
subjetividades e dos fatos histricos. No trecho a seguir, o sofrimento contado atravs de um
distanciamento no tempo. Mesmo assim, a narrativa capaz de fazer refletir a subjetividade
daqueles que sofreram o ato, bem como a prpria interioridade daquele que escuta ou que l o
testemunho. Obviamente, a experincia vivenciada por outro agregada em nossa bagagem de
conhecimento cultural:
19 Os oficiais botavam os corpos dos mortos em um barranco de lixo para que os porcos os comessem e os familiares no pudessem reconhec-los. Uma vez trs soldados mataram um beb diante de sua me e logo a violentaram junto ao corpo do filhinho. No sigas contando, pediu. Bom, mas na realidade tudo isso era uma resposta ao
que faziam os do Sendero Luminoso, que queimavam vivo aos seus prisioneiros e lhes penduravam cartazes aos
cadveres carbonizados. Um costume senderista muito estendido: executar aos prefeitos dos povos diante de suas
esposas e de seus filhos. Os matavam diante deles e os obrigavam a celebrar. Penduravam os cadveres dos bebs
nas rvores. Tudo isso me contaram.
151
() a las mujeres se les tiraba y ya despus a veces se les daba a la tropa para que se
las tiraran y despus les metieran bala, esas cosas haca20. (CUETO, 2005, p. 37).
Atravs da conversa que Ormache tem com o padre, podemos perceber que narrar,
capacidade inerente ao ser humano, pode ser considerado em seu poder teraputico:
20 () violentavam as mulheres e depois, s vezes, lhes davam tropa para que as violentasse e depois lhes
metiam bala, essas coisas fazia.
21 Junto a ele [o padre], dois ancios, um homem e uma mulher, cobertos de telas pretas e chapu. No falavam
espanhol. Pedi-lhe que lhes perguntasse se haviam conhecido Miriam. Ao ouvir seu nome, os olhos da mulher se
acenderam. Comeou a falar em quchua.
Sim, se lembra, me disse.
Que um dia vieram uns soldados e a levaram e no souberam mais, dizem. Dizem que pergunte se voc sabe algo.
Teria algum parente em Luricocha, em Huanta ou em Huamanga?
O homem sacudiu a cabea. Seu pai e sua me morreram, diz que no quiseram dar sua comida da bodega aos
senderistas, diz que os senderistas levaram seu irmo para obrigar-lo a brigar com eles.
Depois os senderistas assaltaram o posto policial aqui tambm. Ali mataram seu outro irmo. No voltaram nunca
a saber deles. No sabem nada de Miriam. A casa segue fechada. A casa j parece fantasma. Tambm no sabem
nada da famlia de Miriam.
152
Como vimos, o ato de contar sobre as atrocidades vivenciadas uma maneira de continuar
vivendo. Lembrar, para este povo, simboliza o desejo de que aquilo no mais acontea. O
prprio ato de ser ouvido se converte em consolo diante da impossibilidade de exigir e de se
fazer mudana. Assim,
() para relatar sufrimientos, es necesario encontrar del otro lado la voluntad
de escuchar Hay coyunturas polticas de transicin en que la voluntad de
reconstruccin es vivida como contradictoria con mensajes ligados a los horrores
del pasado. En el plano de las memorias individuales, el temor a ser incomprendido
tambin lleva a silencios. Encontrar a otros con capacidad de escuchar es central en el
proceso de quebrar silencios23 (JELN, 2003, p.35-36).
E foi exatamente isso que fizemos com a novela de Cueto. Ouvimos o narrar do autor,
refletimos sobre ele e acabamos de expor a nossa interpretao. Obviamente, nossa memria j
incorporou muito da memria do povo peruano, e esta leitura promoveu a nossa reconfigurao
enquanto leitores e sujeitos inseridos no mundo.
153
4 PALAVRAS FINAIS
Enquanto leitores, nos colocamos na posio de ouvintes. O conhecimento de uma
sociedade e de uma cultura pode ser propiciado atravs do texto literrio. Nessa perspectiva, o
narrar de Alonso Cueto nos foi significativo na medida em que fez refletir sobre uma srie de
questes que vo alm dos objetivos deste trabalho. Com certeza, a memria do povo peruano
a representao de sua histria, da marca subjetiva de seu viver.
A violncia narrada por Cueto faz da obra La hora azul uma espcie de texto documentrio
e enfatiza um cruel perodo da histria de Peru. Nela, compreendemos as noes de individual
e de coletivo e a influncia mtua que ambos os termos exercem.
As diferentes vozes que so apresentadas na novela analisada passaro a fazer parte da
memria de cada leitor que com ela tiver contato. Na realidade, a violao dos direitos humanos
algo que sensibiliza indivduos de diferentes naes. Apesar de no pertencemos ao mesmo
territrio geogrfico, h algo que nos une e que nos faz compreender o nosso prprio eu e o eu
do outro: o fato de sermos humanos.
REFERNCIAS
ALMENARA, Erika. Memoria y violencia en la hora azul de Alonso Cueto. Sitio oficial de
Alonso Cueto. Disponible en: http://www.alonsocueto.com.pe/p_hora_azul_Erika_Almenara.
html. Acceso en: 02 nov. 2013.
JELN, Elizabeth. Memorias y luchas polticas. In:______. Jams tan cerca arremeti lo lejos:
memoria y violencia poltica en el Per. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2003.
MANKY, Omar. La lucha por nominar: los significados de lo andino en la narrativa peruana
contempornea. Debates en Sociologa. Pontificia Universidad Catlica del Per, n. 32, p. 91108, 2007.
MIC, Jos Antonio Gimnez. Olvidar o no olvidar, sa es la cuestin. Superacin de la
memoria salvadora en la narrativa pituca post-Fujimori?. In: XLIV CONGRESO DE LA
ASOCIACIN CANADIENSE DE HISPANISTAS, 2008, Canad.
RICOEUR, Paul. A memria, a histria e o esquecimento. Traduo de Alan Franois [et al.].
Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
TICONA, Juan Alberto Osorio. Literatura peruana contempornea. Revista de Educacin,
Cultura y Sociedad. Lambayeque, n. 5, p. 154-159, oct. 2003.
154
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Alexandra; UBILLUZ, Juan Carlos; VICH, Vctor. Contra el sueo de los justos: la literatura
peruana ante la violencia poltica. Lima: IEP, 2009.
155
156
que no se mede pelos conceitos humanos de bem e mal, a gnose orientar a fico borgiana
contra os dogmas da razo, do sentimento e do historicismo, alm de libert-la do logos filosfico
tradicional. Alm disso, a figura do demiurgo, presente nos ensinamentos gnsticos, tambm
uma constante na obra do autor argentino, na medida em que A glosa borgiana consiste em nos
confundir com a divindade e fazer do mundo uma criao de seu (nosso) sonho. (LIMA, 1988,
p. 273). Entretanto, no podemos deixar de ressaltar que isso feito eliminando a orientao
religiosa assumida pela gnose e presente em outras formas de sua alada, como, por exemplo,
a Cabala. Dessa forma, o mundo se torna um erro [...] Afastada a via da salvao, Borges
l o mundo como uma catstrofe, diante da qual a nica apropriada vem a ser a produo do
assombro. (LIMA, 1988, p. 274)
O determinante filosfico mais contundente de seu esforo se refere reviso da
metafsica. Costa Lima cita em vrios textos uma das mximas de Borges que via a metafsica
como um ramo da literatura fantstica, conduta de quem a estetiza, valendo-se dela como uma
das matrias-primas da fico. Por fim, o escritor platino apreende a forma como a gnose se
relaciona com o tempo e com a individualidade, ainda que apresente leves distines:
Enquanto a seita gnstica fazia do presente a morada em que se prepara a escatologia de
cada um, Borges o enclausura em si mesmo, o afasta do passado e do futuro, tornando-o
redimvel pelo substituto da gnose, i.e., a palavra ficcional. Automaticamente, ele
assim nega a histria. No a nega apenas como disciplina; nega-a no prprio territrio
de sua possibilidade. (LIMA, 1988, p. 276)
157
Ou seja, o mundo por si s apresenta carter simulacral e Borges surge como o demiurgo de
outro mundo, superficcional, em que nada, nem mesmo os mitos j criados, tem autoridade.
Alm disso, a organizao da fico por estes parmetros no tem nada de redentora, j que
investe na ideia de mimesis como produtora da diferena, manifestao cara a Luiz Costa
Lima. Nem um paraso artificial (uso passivo do imaginrio, fantasioso), nem um espelho
(cotidiano como medida); as criaes de Borges permitem que o terico brasileiro revisite suas
concluses a respeito da mimese desde Mimesis e modernidade (1980), principalmente aquelas
que descartam a procura de referentes que possuam o estatuto de realidade. As relaes entre o
mundo imaginado e o real se transformam a partir das expectativas dos receptores, pois Um
produto no mimtico por efeito de propriedades objetivas suas. A objetividade declarada
em funo da semelhana (analogia) entre o esperado e o percebido (LIMA, 1988, p. 294)
O trecho pouco acrescenta a outros explcitos nos livros anteriores de Costa Lima,
mas serve para reintroduzir um par conceitual surgido em Mimesis e modernidade e que
retorna na observao da obra de Jorge Luis Borges. A criao alegrica, ou seja, aquela que
atravs dos ndices textuais atinge referentes culturais a partir dos quais se forma o objeto
representado, atende por nome de mimesis da representao (LIMA, 1988, p. 294). Esta no
se trata de repetio ou de redundncia, mas da atualizao (geralmente por intermdio de
novos sintagmas) do mundo em forma artstica. Aqui a interpretao no apenas codifica os
campos semnticos da obra, pois o horizonte do receptor se relaciona com o horizonte ainda
indeterminado e impreciso do texto. Sendo assim, a alegoria surge como um dos limites deste
tipo de compreenso do ficcional: Os segmentos do texto configuram uma presena e esta
tomada como analgica a um certo ausente.(LIMA, 1988, p. 295). Este tipo de lgica imperou
at a emergncia da modernidade, sustentada pela confiana da metafsica de uma essncia por
trs dos objetos. Sendo assim, a busca da semelhana , mesmo inconscientemente, inerente
a este tipo de mimese. Iser diria que nela a dinmica de seleo e combinao do ato de
fingir no subverte os parmetros aceitos pelos discursos j organizados. comum na histria
das manifestaes mimticas que elas suponham algo alm de si, afinal a est o fundamento
de sua funo comunicativa. A busca de um anlogo circunscreve mesmo o objeto ficcional
mais transgressor, pois o texto sempre est em certa medida ancorado nos padres culturais da
158
159
h qualquer libi da realidade contra a fico, o que cria o relativismo absoluto j expresso
por Harold Bloom, criado por um mundo ilusrio e especulativo, um labirinto, um espelho
que reflete outros espelhos (BLOOM, 2001, p. 53). Cnscio de que sua literatura poderia se
perder na hiperficcionalizao barata, em que tudo jogo lingustico, Borges mistura nomes
de locais, livros e autores reais por outros imaginados por ele, confundindo as representaes
(o que inclui todo tipo de ato imaginrio) com o espao mundano. Assim, o argentino pe em
cheque a tradio iluminista que relegara o maravilhoso e o pensamento mtico periferia das
formaes culturais e estabelece a fico como nico discurso humano legtimo, relacionado
com um novo tipo de leitor, liberto de determinantes extra-literrios:
[...] se tempo e espao so apenas parte de uma certa construo do mundo pelo
homem, ao homem ento possvel a construo doutros mundos. E, assim como
no estamos inexoravelmente fadados s dimenses da physis, no estamos fadados
a nenhum outro destino, a nenhuma outra modalidade de escravido. (LIMA, 1988,
p. 303)
Infelizmente, Costa Lima interrompe sua pesquisa em Borges, o que nos impede de
ouvir sua opinio a respeito da contemporaneidade, farta em textos que seguiram e repensaram
o legado do escritor argentino. Tentando preencher esta lacuna, gostaramos de desenvolver
breves comentrios a respeito de alguns autores que continuam a tradio da antiphysis em
tempos atuais, notabilizando-se por criar superfices to aprisionadoras quanto as de Borges.
Contudo, fazem isso por intermdio de outras tradies, a exemplo do romance acadmico,
cada vez mais popular na Inglaterra e Estados Unidos (principalmente no ps-guerra), quando
passa a figurar o ambiente universitrio e que, como veremos, encontra espao dentre alguns
dos mais destacados autores contemporneos.
*
O nome mais expressivo aqui, ainda que manipule a ideia de romance acadmico de
forma livre e recriadora, certamente o de Enrique Vila-Matas. O autor espanhol, recentemente
agraciado com o prmio Argital, pelo seu ltimo romance Ar de Dylan, fato que o consagrou
como um dos maiores escritores contemporneos, desenvolve entre um livro e outro uma
potica que deve muito de Jorge Luis Borges. Seus personagens refletem a persona criada
pelo escritor, obcecados por livros e por histrias metalpticas em que no h somente um, mas
vrios nveis ficcionais convivendo. Alm disso, a prpria vida se torna uma fbula em seus
romances, com personagens engajados em sociedades secretas absurdas, geralmente formadas
por escritores. Em livros como Bartleby e Cia e o emblemtico Histria abreviada da literatura
porttil autores reais da literatura so o centro da narrativa e convivem com outros inventados
por Vila-Matas, o que confunde as fronteiras entre fico e vida.
160
No primeiro livro, o autor conta, misturando ensaio e narrativa, a histria dos homens que
ele denomina de bartlebies, inspirado pelo clssico personagem de Melville. O termo se baseia
no leitmotiv do conto original prefiro no faz-lo, repetido pelo protagonista, para representar
um grupo de escritores que preferiu no fazer seu trabalho, isto , deixou, inexplicavelmente
de escrever. A lista dos detentores da estranha sndrome vai de Juan Rulfo a Robert Walser,
passando por Rimbaud e inclui autores inventados por Vila-Matas, a exemplo de Roberto Moretti
e Robert Derain. Sendo alguns dos autores desconhecidos do grande pblico, ao ler o romance
do autor espanhol impossvel saber quais personalidades so reais e quais so inventadas, da
mesma forma que no podemos distinguir se as histrias contadas a respeito deles so verdicas
ou no. Estamos diante de um universo que nos impede de julg-lo por critrios dicotmicos
como verdade/mentira, fato/inveno, razo/imaginao, pois tudo texto. Alm disso, Borges
e Vila-Matas riem juntos da falsa erudio do homem de letras ao misturar textos apcrifos,
citaes deslocadas e autores inventados com os fatos do sistema literrio universal.
Em Histria abreviada da literatura porttil, por exemplo, Vila-Matas conta a histria
de uma sociedade ficcional, fundada em 27 de Julho de 1924 (VILA-MATAS, 2011, p. 25)
por artistas reais que se autodenominam Shandys (nome que pode ser proveniente tanto do
famoso personagem de Sterne, quanto de um tipo de cerveja), e que nasceu do equvoco e
da casualidade (VILA-MATAS, 2011, p. 29). Sua peculiaridade est em ser constituda por
artistas cujo ideal a literatura porttil, ou melhor, aquela que pode ser carregada com o autor
em uma maleta pequena. Alm disso, existem outras particularidades divididas pelos membros,
como repulsa da prtica do suicdio, a menos que seja o da prpria escrita; castidade; dio contra
insgnias, medalhas ou distines de qualquer espcie; entusiasmo por miniaturas; obsesso
pelo numero 27; simpatia por pessoas negras e odradeks2 (duplos sombrios que fascinam e
assustam os conspiradores); entre outras peculiariedades.
Dessa forma, como em Bartleby e companhia estamos dentro de um universo
superficcional, regido pela lgica da antiphysis. Contudo, se em Borges o controle se manifestava
por intermdio da prpria fico, consciente de sua autoridade e relativizadora de todos os
discursos que poderiam lhe deslegitimar, em Vila-Matas parece estarmos em territrio mais
problemtico. Afinal, durante a dcada de 60, no mnimo, o romance sentiu o pice de uma crise
formal que pronunciava o seu fim. clebre o ensaio de 1967 The literature of exhaustion, de
John Barth, cujo contedo denunciava o esgotamento das possibilidades da forma romanesca.
O ensaio se popularizou mais pelo alarde que causou do que pela reflexo embasada e crtica
que propunha a respeito de um contexto de dvidas. O prprio Borges era mencionado como o
inaugurador de um momento para a arte em que ela se refugiava dentro de si, como se no tivesse
2 Seres que remetem ao universo kafkiano, mais explicitamente ao personagem-objeto do conto Preocupaes
de um pai de famlia. Lembrando que o autor tcheco um dos precursores mais clebres da prosa de Borges.
161
nada mais a dizer a respeito do mundo externo a ela. Se o romance foi salvo tempos depois,
principalmente por Gabriel Garcia Marquez e a saga dos Buenda, no deixou de produzir obras
que continuaram a tradio da exhaustion, livros repletos de referncias e tcnicas narrativas
difceis de serem apreciadas pelo chamado leitor comum, chegando-se ao extremo de termos
textos aparentemente voltados para o pblico iniciado.
este tipo de controle, a despeito da qualidade de seus textos, que Vila-Matas (se no o
inventou) exerce com excelncia. O autor, como vimos, se especializou em produzir enredos em
que a prpria constituio do ficcional o tema. Mas sua diferena determinante em relao
literatura que o antecedeu est no fato de sua fico no se constituir como um produto inventivo
e criador, mas um exerccio orientado pelos esforos ficcionais que o precederam. Como no
universo de Tradio e talento individual, de T. S. Eliot, o ato mimtico s adquire sentido
pelo conhecimento prvio das fices que o pr-determinam, em um nvel de especializao
nunca antes visto. Sendo assim, o texto de Vila-Matas ambiciona a dico do crtico-terico da
literatura, com nsia de manifestar e valorizar seu conhecimento. E isto no se manifesta
apenas na linguagem e estruturao do discurso, mimetizando o ensaio, mas tambm no espao
e nos personagens que habitam estes mundos, geralmente vinculados ao universo acadmico.
Professores, ensastas, escritores ligados universidades transitam por encontros, conjuras,
simpsios, colquios, seminrios e outros eventos ligados ao mundo das letras.
A prosdia da instituio literria j faz parte do romance, sua legitimao acadmica
a prpria dimenso do imaginrio explorada pela obra, o que transforma o trabalho de VilaMatas num dos exemplos mais pertinentes do exame do controle interno (autorreferencial)
da literatura desde Borges. Com a diferena de que, nesta nova etapa, no basta se entregar a
instabilidade da leitura do texto ficcional, abandonado s verdades dos outros discursos, mas
torna-se necessrio compreender o ficcional na sua transformao histrica, no mnimo desde
as vanguardas (movimentos sempre centrais nos livros do espanhol). Num de seus romances
mais emblemticos, O mal de Montano, o protagonista um escritor portador da doena que
intitula a obra. Ela consiste na incontrolvel condio do personagem central de viver sua vida
seguindo os moldes dos tipos literrios presentes nos livros que leu. Numa atualizao extrema
de Dom Quixote, os dilogos do heri so citaes de livros, seus gestos e atitudes repetem
outros j canonizados na literatura. Essa a imagem mais adequada para sua fico, um mundo
estagnado pelos modelos ficcionais que o mimetizou, uma volta no parafuso, gasto, mas sempre
presente do controle do imaginrio.
*
Outro autor importante para esta vertente antifsica da literatura, tambm argentino,
Ricardo Piglia, cujo romance Respirao artificial merece uma leitura mais prolongada. O
romance se divide em duas partes. A primeira delas, Se eu mesmo fosse o inverno sombrio,
162
dividida, por sua vez, em trs captulos. No primeiro deles, narrado pelo jovem escritor Renzi,
apresentada a troca de correspondncias entre este e seu tio Maggi. O velho parente do narrador,
professor de histria, ocupa-se com o estudo da vida de Enrique Osorio, intelectual oitocentista
que traiu Rosas e foi exilado, deixando um romance a ser publicado 130 anos no futuro, ou seja,
na mesma data em que Respirao artificial tem incio(1979).
O segundo captulo enfoca o encontro de Renzi com Luciano, senador sobrinho de
Osorio. Por fim, no terceiro captulo, leem-se partes da autobiografia de Osorio e das cartas de
Renzi, pelo ponto de vista de Arocena, censor ocupado com o trabalho de Maggi. J na segunda
parte, intitulada Descartes, passa-se ao encontro de Renzi com Vladimir Tardewski, amigo
de seu tio, enquanto ambos esperam a chegada de Maggi, que nunca vem. Enquanto isso, os
dois recm-conhecidos passam o tempo discutindo literatura em duas palestras principais. A
primeira, narrada por Tardewski, tem como ponto alto a discusso entre Renzi e Marconi sobre
os lugares de Arlt e Borges na literatura Argentina. J a segunda, narrada por Renzi, evidencia
uma inesperada tese de Tardewski a respeito de Kafka e Hitler.
A sinopse do livro demonstra sua similaridade com o tipo de fico antifsica exposta nestas
pginas. No por acaso, a imagem de literatura como laboratrio uma das predominantes
para descrever um tipo de texto no qual cada nvel leva a outro universo textual, em um jogo
intrincado de autorreferncia literria. A dita analogia j foi amplamente explorada por Mauro
Nunes de Gaspar Filho, na sua tese de doutoramento, na qual conclui que a prosastica de
Piglia destaca o exerccio literrio do cotidiano comum e, por isso, tambm s pode ser lida
ao desbravarmos suas regras internas e autocentradas. Como em Borges e Vila-Matas, no texto
de Piglia ensaio, histria, fico, tudo interpenetrvel, restando ao fim o registro da prpria
performance de todos estes gneros. Alm disso, assim como em Borges, no h sequer um
mito slido que fundamente a experincia literria e o sentido referencial nunca pr-dado.
A pergunta inicial do livro j revela o fracasso da referencializao: D uma
histria?. O autor sinaliza para a busca do artifcio preciso. Para a histria emergir, ela no
pode simplesmente existir, mas tem que servir ficcionalmente, ou seja, deve se sustentar como
construto artificial. O fato no nada sem sua disposio lingustica. Logo, mesmo o tom da
tragdia familiar descrita pelo narrador ganha ar duplamente ficcional, j que se assemelha s
histrias de Faulkner traduzidas por... Jorge Luis Borges, claro.
Nesse sentido, o tio de Renzi funciona como Godot, na clebre pea de Beckett. J que
no chega, obriga os que o esperam a se entregar ao jogo superficcional e cheio de armadilhas
da linguagem. A palestra entre ambos permite que surja uma imagem distinta de homem, j
esboada em Vila-Matas, ou seja, o homem feito citaes (PIGLIA, 2004, p. 203), como
Tardewski se intitula em certa passagem. Aquele cuja memria pode ser classificada de alheia,
pois povoada por outras vozes, na sua maioria, retiradas dos livros. Nesse sentido, falando de
163
Aqui talvez seja o momento de deixar claro que estes personagens, donos de uma
memria compartilhada e, por isso, donos do que Bakhtin chamaria de palavra semi-alheia,
promovem um tratamento diferenciado das categorias da narrativa. No seu ltimo romance, por
exemplo, Vila-Matas apresenta um personagem que, aps uma queda, herda a memria do pai,
analogia direta a Hamlet assombrado pelo espectro de seu progenitor. O heri shakespeariano
que tambm citado em Respirao artificial paradigmtico, pois, assim como acontece na
sua tragdia, a ideia de memria alheia se manifesta justamente por intermdio do maneirismo
resultante de um sujeito preso entre dois tempos.
Este tipo de personagem surge como portador de uma soluo para lidar com o tempo
contemporneo e que, inevitavelmente, nos remete teoria bakhtiniana. fcil perceber como
este tipo de romance academicista, repleto de palestras portadoras de opinies particulares em
debate, enfatiza o carter dialgico da romanesca. Mais do que isso, este romance reincorpora
os elementos que fazem dos dilogos socrticos uma das duas foras formadoras do gnero
romanesco, de acordo com o terico russo. Pois bem, no seu livro sobre Dostoivski, no
qual Bakhtin apresenta uma teoria para a evoluo do gnero que desemboca no romancista
oitocentista, o autor explica que os dilogos de Scrates so antes de tudo um gnero
memorialstico (BAKHTIN, 1997, p. 109), libertado posteriormente pelo acabamento artstico
aplicado a ele. Contudo, o romance herda a oralidade dos dilogos, e difunde, no seu percurso,
que falar ajudar a preservar um conhecimento a respeito do mundo. Entender o romance
enquanto gnero oral significa que ele mimetiza o homem que fala e se mantm pela construo
na fala da imagem-ideia. Ancrise e sncrese so os artifcios que ajudam a produzir heris
tagarelas, predicado que Scrates usa para se descrever no Fdon e, no por coincidncia,
adjetivo aplicvel aos heris de Rabelais e Dostoievski.
Como diz Irene Machado,[...] a oralidade do romance deve ser entendida como signo
da voz em funo comunicativa ou como prosa (MACHADO, 1995, p. 157). O romance feito
por Piglia e Vila-Matas enfatiza a inconclusibilidade da palavra, j que a tudo se segue ou pode
se seguir uma rplica. Esta situao se relaciona com o sistema de ideias que tem o dilogo
164
socrtico como decano. A prpria ideia de memria alheia como forma de lidar com o presente
j estava l e tem no Fdon, de Plato, sua manifestao mais bem acabada. Neste dilogo,
Scrates defende que aprender recordar, ou seja, se relacionar evocativamente com o passado,
uma vez que, para o filsofo grego, o esquecimento abandono do conhecimento, angstia que
permeia todos os romances aqui citados. Esta funo de preservao enfatizada no texto grego
pela eminncia da morte sentida pelo filsofo.
Sendo assim, esta tpica distentio animi, reveladora de um esprito voltado para trs,
to forte que no est apenas no tempo, mas se conjuga com a maneira como os personagens
de Respirao artificial se relacionam com o espao. Quando chegam ao hotel do professor
Maggi, por exemplo, o local descrito rapidamente e sem detalhes at nos depararmos com
os livros (PIGLIA, 2006, p.143). Da mesma forma, H uma escrivaninha encostada parede.
Uma cama. Um armrio. Uma poltrona. Alguns livros sobre uma estante. Aproximo-me e olho
os ttulos enquanto Tardewski telefona para o Clube [...] (PIGLIA, 2006, p.143).
A experincia advinda do mundo real est em baixa nestes textos. No Clube em que
Renzi conversa com Tardewski, este ltimo fala de um homem tambm sentado no lugar que
matou a mulher. Quando pensamos que se dar uma narrativa a respeito do sujeito, Tardewski
diz O senhor, sem dvida, digo a Renzi, ter lido meu compatriota Korzeniowski, o romancista
polons que escrevia em ingls [...] Vivia fascinado por este tipo de personagem. (PIGLIA,
2006, p. 104). A vida s funciona para estes personagens se refratada por um modelo encontrado
na literatura.
Toda esta apreenso citacional e distanciada do mundo medeia a maneira como o espao
descrita em muitos outros trechos do romance:
Da janela s dava para ver um muro cinzento e um pedao de cu sujo. Eu tambm,
claro, comecei a contar aos outros sobre a praa, as pombas, o movimento da rua. Por
que est rindo? engraado, diz Renzi. Parece uma verso Polonesa da caverna de
Plato (PIGLIA, 2006, p. 107)
165
*
Certamente de todos os romances aqui citados, Elizabeth Costello o mais acadmico.
Todo o enredo motivado por oito palestras conferidas pela personagem que intitula o romance,
escritora que transita pelo espao acadmico durante toda a sua existncia. Sendo assim, o
romance guiado pela estrutura dialgica mais bsica, na qual a personagem fala em pblico e
tem de lidar com as rplicas e trplicas de seus ouvintes. Como no romance dostoievskiano, aqui
o dilogo no o limiar da ao mas a prpria ao (BAKHTIN, 1997, p. 256). Dessa forma,
o narrador de Coetzee mantm inalienados a aventura e a ideia que a fundamenta, exposta pelos
personagens que atuam nela.
Assim como em Piglia e Vila-Matas, Coetzee sinalizar tambm para uma prosa presa
dentro da tradio ficcional borgiana e suas tcnicas, o que pode ser visto logo no incio do
romance, quando o narrador descreve a protagonista:
O tailleur azul, o cabelo oleoso so detalhes, sinais de um moderado realismo.
Fornece os pormenores, permite que os significados aflorem por si mesmos. Processo
inaugurado por Daniel Defoe. Robinson Crusoe, naufragado na praia, procura em
torno os companheiros de navio. Mas no h nenhum. Nunca mais os vi, nem sinal
deles, diz, a no ser trs chapus, um bon, e dois sapatos que no eram parceiros
[...] Nenhuma grande palavra, nenhum desespero, apenas chapus, bon, sapatos.
(COETZEE, 2004, p. 10-11).
O recurso preciso para focalizar uma mulher de citaes, carregada de memria alheia
e cuja palavra ir expressar, por meio de ideias fortes, muitas vezes polmicas, o que aprendeu
com o que leu. Alm disso, o medo do esquecimento tambm percorre explicitamente seu texto:
[...] todos sabemos, se formos realistas, que apenas questo de tempo que os livros que vocs
homenageiam, e cuja gnese tem algo a ver comigo, no sejam lidos e acabem no sendo mais
lembrados. (p. 27). Ainda que essa relao com a tradio no deixe de ser vista criticamente
j nas primeiras pginas da obra: Mas, falando srio, no podemos sugar para sempre os
clssicos, como parasitas. No estou me excluindo dessa acusao. Precisamos comear a fazer
nossas prprias invenes. (COETZEE, 2004, p. 21)
Ao longo do livro, Costello participar de muitos debates, envolvendo a prpria escrita,
a interpretao de livros famosos de estilos e perodos literrios, de linhas filosficas, at a
mais polmica, aquela que compara a matana de animais com holocausto. Ao passar o livro
inteiro falando e defendendo seu ponto de vista, a protagonista se filia ao tipo tagarela de
heris socrticos vistos at aqui. Idelogos que s existem plenamente enquanto falam de suas
convices e s podem se mover dentro de um enredo arquitetado pela ideia que as condiciona.
166
167
Piglias e Coetzees citados o mesmo que descortinar suas origens. Todo ato de escrita uma
performance da criao do prprio gnero. Contudo, diferentes de Borges, o mundo organizados
por eles no concebido demiurgicamente, mas sim brota de uma tradio manifestada pela
afirmao da palavra humana e de uma ideia nova de homem que surge e que ampara o desespero
do academicismo em crise. Por esta via, deve-se notar tambm que os autores preservam dentro
dos prprios textos o espao no qual suas obras ainda sobrevivem e so difundidas. Mais do
que isso, se Borges se opunha a um ideal expresso tanto por Plato quanto por Aristteles, ou
seja, o de que havia um cosmo bem feito ao qual a mimese se adequava, o resgate patolgico
e obsessivo da tradio uma busca deste mesmo cosmo e um distanciamento da maior
transgresso empreendida pelo argentino. Dessa forma, a referncia no totalmente produzida
pela obra, mas conta com construtos lingusticos razoavelmente adensados na experincia
livresca do receptor. isso que produz uma prosa crtica e ambivalente, pois vive a tenso da
inconclusibilidade, prpria do gnero romanesco, mas recheado por uma tradio interpretada
e conclusiva.
Nela a fico continua sendo nico discurso humanamente legtimo, mas ao invs de
simplesmente se contrapor ao monologismo oficial, como majoritariamente acontecia nos
dilogos socrticos, a fala ficcional aqui resgata um tipo de oficialidade conhecida por qualquer
iniciado nas letras, ou seja, a cannica, ainda que baseada na transgressiva hiptese borgiana
que vasculha a tradio em vrias direes (como na famosa proposta de ler-se a Odisseia
como posterior Eneida). Hamletianos, os trs livros analisados so assombrados por seus
pais, apresentam maneirismos que os desnaturalizam e envolvem a fico em um tipo interno de
controle poucas vezes vistos anteriormente. Se, como j escreveu Piglia, a crtica uma forma
de autobiografia, na qual a pessoa escreve sobre si achando que relata apenas suas leituras,
ento este tipo de romance um atestado autobiogrfico de ns enquanto homens de citaes,
perigosamente autocentrados em nosso prprio afazer e desconhecedores das paisagens de fora
da superlotada biblioteca de Babel que nos soterra.
Referncias bibliogrficas:
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoivski. Rio de Janeiro: Forense
Universitria, 1997.
BLOOM, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
COETZEE, J.M. Elizabeth Costello. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.
168
169
INTRODUO
O romance Lueji, o nascimento de um imprio, do escritor angolano Pepetela, foi
publicado pela primeira vez em Luanda, no ano de 1989, pela Unio de Escritores de Angola
(UEA), entidade que o autor ajudou a fundar.
Essa obra considerada um romance realista animista, de acordo com Pires Laranjeira
(2010). A referncia ao animismo deve-se ao fato de a narrativa apresentar muitos elementos que
correspondem ao que Tylor definiu como a doutrina da alma e de outros seres espirituais em
geral (p. 23) e tambm a crena na vida aps a morte, na presena de divindades controladoras
e espritos subordinados, resultando em algum tipo de adorao (p.427). Tambm Freud em
Animismo, Magia e Onipotncia dos pensamentos define inicialmente como uma doutrina: em
seu sentido mais estrito a doutrina de almas e, no mais amplo, a doutrina de seres espirituais
em geral. Essa doutrina abarca a ideia de que os objetos inanimados, os animais e os vegetais
tambm so animados por espritos ou por demnios (p. 87). Para o autor, a concepo animista,
que abarca os mitos, a primeira dentre as trs grandes concepes do universo (a segunda seria
a religiosa e a terceira e ltima, a cientfica).
Os elementos animistas em Lueji esto relacionados consulta aos mortos, ao uso de
objetos que possuem poder e a uma ligao permanente entre passado e presente, de maneira
que a vida dos personagens depende da sua observao dos preceitos ou at mesmo dos gostos
dos antepassados.
Para o autor, escrever esse romance constituiu um desafio, pois entrelaou duas estrias
- a lenda da rainha Lueji da Lunda h Quatro sculos atrs (pelo menos)... e da bailarina Lu,
Quatro sculos depois (amanh)... e que mesmo separadas por tantos sculos mantm a
correspondncia entre o mito e a contemporaneidade.
De acordo com Pires Laranjeira (2010), Pepetela buscou na lenda de Ilunga e Lueji na
Terra da Amizade, localizada na Lunda, a base lendria do romance e nos relatos de Henrique
de Carvalho sobre a expedio ao Muatinvua nos anos 80 do sc. XIX, a base histrica de
170
sua narrativa. Essa lenda de fundao da Lunda possui diferentes verses e o autor adaptou
e a modificou, mas como est dito na citao abaixo, to verdadeira como as outras e
fundamenta a definio de romance do realismo animista, como disse Pires Laranjeira:
- Ele mudou a estria, no ? [...] Vem um gajo, resolve mudar tudo...Os espritos...
se revoltaram, sabotaram tudo e adeus espetculo. Se ao mesmo o checo tivesse feito
oferendas... Nem queria ouvir falar, vem da terra da matemtica, da racionalidade
elevada ao infinito, no pode entender os improfissionais que ns somos. Improfissionais
feiticistas. Quer realismo, mas recusando o realismo de Kafka, e no entendeu qual
realismo aqui, o animista...
- uma verso.
- Que explica muito... Numa terra de muitas verdades, esta to verdadeira como as
outras. (PEPETELA, 2008, p. 74)1
Pepetela inova com uma surpreendente intercalao dos tempos na narrativa, dando um
salto no tempo na mesma pgina, s vezes no mesmo pargrafo, sem qualquer sinal que guie
o leitor, como nos trechos abaixo:
O poder um vcio, adquire-se usando-o, assim dissera Kondi. No, ela nunca se
viciaria. Trocava facilmente o lukano pela liberdade perdida. Hoje. Mais tarde
tambm?
Mais tarde se veria. Agora preciso deitar, descansar e esperar o mdico, Timteo,
amigo comum. Assim falou Uli e Lu obedeceu, se deitando logo.(p. 41)
[...]
Lu puxou o caderno que estava na cabeceira e se ps a escrever. Sons de marimba
e imagens de chanas amarelecidas se baralhavam nas palavras. Talvez tambm sons
amortecidos de palmas batidas ritualmente. Foi isso que despertou Lueji, sentada na
sala de audincias. Levantou vivamente a cabea e sua frente estava Kandala, o
adivinho, saudando. (p.47-48)
171
Aps a morte do pai, Lueji escolhida como rainha da Lunda, no lugar dos irmos que
perderam o direito natural ao trono por terem agredido e provocado a morte do pai. Lueji
orientada pelo adivinho Kandala para que aprenda a fazer a vontade dos antepassados, a fazer
chover e a governar mantendo a tradio de sua linhagem. A posse de uma mulher significa,
no entanto, uma inovao na tradio e durante seu reinado Lueji enfrenta as ameaas ao seu
governo, a revolta de seu irmo que ameaa com uma guerra e a impertinncia dos chefes locais
com pacfica resistncia, alterando os preceitos da tradio e com inteligncia, a rainha supera
e surpreende os membros do conselho. Encontrando dificuldades para manter-se no trono e
tentando evitar a guerra ameaada por Tchiguri, Lueji casa-se com um estrangeiro, por quem
est apaixonada o grande Tchibinda Ilunga - contrariando as expectativas dos conselheiros
que esperavam a escolha de um dos rapazes guerreiros do seu povo e tambm de seu irmo
Tchinguri, por quem fora apaixonada e que contava em ser o escolhido para continuar no poder.
A revolta dos conselheiros Tubungo no levada a cabo, no entanto, porque Lueji possui o
lukano a pulseira sagrada feita de tendes humanos- que lhe garantia a permanncia no
poder, entregue por seu pai e confirmado pelo adivinho Kandala. Outra importante dificuldade
enfrentada por Lueji foi a sua esterilidade, o que impediria a manuteno de sua linhagem no
poder. A rainha decide lutar pelo seu trono e entrega a seu marido uma de suas servas, que
engravida e cujo filho criado como filho da rainha e preparado para o trono. Lueji cumpre
assim, ao passar o governo para o seu filho, a promessa feita a seu pai Kondi.
A estria da rainha Lueji a inspirao da bailarina Lu para a criao de um bailado,
no qual ela tenta representar os sons e os passos das danas primitivas. Lu sente-se atrada
pelos sons das marimbas e, com a ajuda do msico Mabiala, comea a escrever a pea. O
bailarino parceiro de Lu Uli, um mdico por quem descobre que apaixonada, mas como
Uli a considera uma irm, no aceita as propostas e investidas de Lu, pois seria um incesto. A
paixo de Lu por Uli remete paixo de Lueji e Tchinguri, os irmos que foram amantes e que,
no entanto, no puderam viver juntos por causa das disputas de poder.
Ao planejar o bailado, Lu comea a ter problemas em sua vida amorosa, nos
172
relacionamentos e at sua av fica doente. Ao visitar a av, descobre, por intermdio da uma
tia mais velha, uma kimbanda (curandeira) que a pesquisa sobre a vida de Lueji e das razes
de fundao da Lunda incomodaram um esprito um cazumbi e que seria preciso trat-lo
com mais respeito, como ele esperava. A av entrega a Lu um amuleto, que a bailarina usar o
tempo todo e que lhe devolve a sorte. A bailarina mostra para as duas mais velhas a dana de
invocao da rosa de porcelana que fez para Lueji, Essa dana, aprovada pelas mais velhas,
o ritual mgico de Lu, seu talism, seu uanga. A av afirma: Pensa na flor, pensar na Lueji.
Se acreditas nessa dana, ela vai te ajudar. (p.313). O uso constante do amuleto dado pela av
garante a recuperao da sade de Lu, a execuo do bailado, a apresentao pblica da pea,
que conta a estria da rainha Lueji, que se torna um sucesso de pblico e de crtica.
Todos esses elementos mgicos que do sorte Lu e remetem vida da rainha Lueji
como a rosa de porcelana, a flor preferida de Lueji, usada por Lu na dana de invocao e que
se torna o seu uanga profissional podem ser considerados elementos do animismo. As rosas de
porcelanas rodeavam o lago da infncia de Lueji, mesmo lago azul-escuro ao luar da Lunda,
de onde ela viu a silhueta do homem eterno saindo da lua (p.11). No cenrio idealizado por
Lu para a execuo do bailado, tambm havia rosas de porcelana pintadas sobre fundo azul,
e a luz tambm seria azul, dando a dimenso da noite sobre o lago (p. 475). O sucesso no
espetculo sobre a estria de Lueji considerado, por Lu, como a sorte concedida pelo amuleto
que carrega, presente da av.
- E se triunfamos graas ao amuleto que a Lu tem no pescoo.
- [...] Esse amuleto eu conheo, dos mais velhos, no ?
- .
[...] pensar que a conjuno de astros ou de espritos favorvel refora a nossa
confiana... (p. 460).
173
Outra voz que se nota no romance a de um narrador que se confunde com o autor.
Como o escritor da estria de Lu que a persegue e passa a acompanhar sua trajetria at
receber a autorizao da bailarina para escrever um livro sobre o seu bailado, assim o autor
parece perseguir a rainha Lueji em sua busca pelas lendas de fundao da Lunda a origem
de Angola, seu pas - at encontrar na estria de Lu o roteiro do seu livro sobre Lueji:
...Com a ajuda dela, iria reconstituir o seu percurso solitrio. Percurso ao mais
profundo de si prpria, ao grito ltimo da gaivota.
[...] E me perguntei, porqu a persigo? Realmente s havia uma razo, aquele olhar
ausente. Afinal o pensamento dela estava na Lunda antiga. Nunca fui bom adivinho,
embora o senso comum atribua esse dom aos escritores. E sou eu realmente escritor?
H vinte anos me pergunto, apesar de nisso crer h mais de quarenta, quando imaginei
o primeiro conto. Angstias de quem se procura toda a vida, enchendo pginas para
resolver o enigma. (p. 26)
Outro trecho importante que colabora com essa ideia de um narrador-autor este em
que o narrador diz que deseja escrever um romance a partir do roteiro da Lu, da sua viso da
Lueji:
174
[...] Lu, deixa-me escrever um livro [...] A tua viso de Lueji, como est no roteiro.
Devolvo num romance. [...]
- Claro que pode. Isso foi s feito para um bailado. Pode fazer da um livro, at fico
muito satisfeita. (p. 474)
A grandeza do povo arrancada das cinzas da Histria e das falas dos mais-velhos
reaparece no bailado de Lu-Lueji cujos movimentos
fazem levantar imaginrias nuvens de p de terra calcinada das chanas, ali, sobre
o palco de madeira do Nacional, lavado e relavado para a ocasio, mas as pessoas
sentem nos narizes o irritantedoce gosto de poeiras antigas, depositadas na memria
colectiva que nunca aniquilada, por quantas ideologias se lhe ponha em cima (p.
480)
175
REFERNCIAS
CHAVES, Rita; MACDO, Tania (orgs). Portanto... Pepetela. So Paulo: Ateli Editorial,
2009.
FREUD, Sigmund. Animismo, Magia e a Onipotncia dos pensamentos. In: Totem e tabu
e outros trabalhos (1913-1914). Edio Standard das Obras Psicolgicas completas. Vol. XIII,
2006.
GARUBA, Harry. Exploraes no realismo animista: notas sobre a leitura e a escrita da
literatura, cultura e sociedade africana. Disponvel em http://seer.uniritter.edu.br/index.php/
nonada/article/viewFile/707/532
LARANJEIRA, Pires; MATA, Inocncia; SANTOS, Elsa Rodrigues dos (colab). Literaturas
Africanas de expresso portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 2010.
PEPETELA. Lueji, o nascimento de um imprio. 5. ed. Alfragide: Dom Quixote, 2008.
TYLOR, Edward B.; D.C.L., LL.D., F.R.S. Primitive culture: researches into the development
of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. Vol. I. Third edition, revised.
London: John Murray, Albemarle Street, 1891. Disponvel em
http://www.archive.org/stream/primitiveculture1891tylo#page/502/mode/2up
176
1. Introduo
No contexto de formao de lngua, Barthes (1970, I.1.1), escreve que lngua ... o
conjunto sistemtico das convenes necessrias para a comunicao, indiferente matria
dos sinais que a compem. Ento, lngua no um sistema individual, - visto que usado
para comunicao, e isto subentende a participao de mais de uma pessoa, - mas um conjunto
de sistemas que pertence a um grupo social ao qual determinado indivduo pertence. Saussure
(1972, pag. 37) complementa que...a lngua um conceito social. Da se extrai que cada
lngua se distingue das demais, pelos seus sons especficos e pela organizao peculiar desses
sons em formas funcionais.
Desde os primrdios, a linguagem considerada um instrumento no s de informao,
mas sim de argumentao e esta, por sua vez, se d na comunicao e pela comunicao, razo
pela qual a argumentao sempre situada, dando-se basicamente num processo de dilogo,
num contacto entre sujeitos (MOSCA, 2001, p. 27).
Os estudos da linguagem humana da era moderna teve seu incio por volta dos sculos
XVII e XIX. A partir da, os estudiosos comearam a se preocupar com esse desenvolvimento
e com a apresentao de gramticas que pudessem definir normas para melhor entendimento,
afirmando que as lnguas obedecem a princpios lgicos e racionais, e a partir dos quais tornase possvel definir a linguagem em geral.
Desde ento, passou-se a discutir a evoluo lingustica usando muito mais recursos
humanos do que tecnolgicos, visto que estes surgiram somente no final do sculo XX.
Essa formao da lngua ento direcionada aos grupos sociais, por exemplo, as
reas de conhecimento profissional como medicina, direito, economia, qumica e tambm a
contabilidade. Cada grupo de pessoas de uma mesma rea tem uma forma de conduta, e isto diz
respeito tambm forma de se comunicarem entre si.
177
178
descrita na Lei 6.404 de 15 de dezembro de 1976, bem como nas resolues 750/94 e 774/94 do
Conselho Federal de Contabilidade (CFC).
Com a edio da Lei 11.638/2007, criou-se a expectativa e a obrigatoriedade que a
contabilidade brasileira deve ser entendida tambm em contextos internacionais.
Este processo de convergncia s normas do IASB (International Accounting Standards
Board), foi necessrio no somente no Brasil, mas em todos os pases. Enquanto na Europa a
mudana de seus padres foi feita h mais de dez anos, no Brasil ocorreu somente em 2007 por
um processo impositivo legal, tendo sido definido por lei ordinria, com execuo em curtssimo
espao de tempo, acarretando com isso alguns atropelos na adaptao ao processo, visto que
a legislao apresentou, em termos gerais, uma nova estrutura para a contabilidade brasileira,
criando um novo lxico contbil, que teria que ser entendido e assimilado pelos profissionais da
rea e tambm pela docncia no curso superior de Cincias Contbeis.
Toda essa regulamentao teve que ser revista para que a contabilidade brasileira pudesse
ser equiparada aos padres exigidos pelo mercado internacional. A finalidade da convergncia
das normas contbeis brasileiras s normas internacionais assegurar a similaridade na
apresentao dos demonstrativos, mediante o uso de um vocabulrio universal, alm de facilitar
a leitura e o entendimento dos resultados apresentados por esta, tanto por um expert brasileiro
quanto por um estrangeiro.
Para que isto pudesse acontecer, o Brasil teve como obrigao fazer uma ampla reforma
de suas normas, quer seja adaptando procedimentos j existentes ou mesmo inserindo novos
procedimentos.
Esse processo todo trouxe a necessidade de uma ampla recapacitao profissional para
quem atua na rea, incluindo o meio universitrio, pois a convergncia no foi uma simples
traduo de alguns textos normativos do IASB, mas sim, houve a introduo de novas regras
contbeis, alm da insero de novos conceitos teoria contbil.
Para concretizar a convergncia, o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), rgo
normatizador e fiscalizador da profisso contbil no Brasil criou o Comit de Pronunciamentos
Contbeis CPC, idealizado a partir da unio de esforos e comunho de objetivos das
seguintes entidades: ABRASCA Associao Brasileira das Companhias Abertas; APIMEC
NACIONAL Associao dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais;
BM&FBOVESPA S.A. Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros; CFC Conselho Federal
de Contabilidade; IBRACON Instituto dos Auditores Independentes do Brasil; e FIPECAFI
Fundao Instituto de Pesquisas Contbeis, Atuariais e Financeiras. Foi formalmente criado
pela Resoluo n. 1.055, de 07 de outubro de 2.005 do Conselho Federal de Contabilidade
(CFC), para que este, alm de dele participar, lhe desse a infra-estrutura de apoio que viabilizasse
o atingimento de sua misso.
179
O que observamos nesse contexto que, com a evoluo tecnolgica e globalizao dos
negcios, evolui o lxico das reas de negcios como evolui tambm a linguagem de domnio
desses falantes.
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Enquanto a padronizao busca a uniformizao das normas e a harmonizao busca a
aproximao das normas, a convergncia preocupa-se em avaliar e caminhar para um mesmo
caminho, uma equivalncia terminolgica. Nesse contexto, tal adequao, ao considerar as
caractersticas locais, faz com que os pases adotem alguns procedimentos permitidos pelas
normas internacionais em detrimento de outros.
Portanto, harmonizao contbil um processo pelo qual vrios pases, de comum acordo,
realizam mudanas nos seus sistemas e normas contbeis, tornando-os compatveis, respeitando
as peculiaridades e caractersticas de cada regio. Esse processo parte da identificao das linhas
gerais no marco conceitual e na teoria geral da contabilidade desses pases que fundamentam
suas normas contbeis. Essa foi a primeira fase do processo de convergncia, vindo na sequncia
ento a convergncia total das normas ao padro internacional.
No Brasil, as primeiras alteraes foram feitas com relao a obrigatoriedade da
publicao da Demonstrao do Fluxo de Caixa (DFC). Em abril de 1999, o Instituto dos
Auditores Independentes do Brasil (IBRACON), editou a Norma e Procedimentos de
Contabilidade (NPC) n 20, que regulamentou a Demonstrao do Fluxo de Caixa no mbito de
sua competncia. A introduo dessa demonstrao foi feita em substituio Demonstrao das
Origens e Aplicaes de Recursos (DOAR), esta exigida no Art.176 da Lei 6.404/76. Contudo,
esta norma no tinha fora de lei, por isso, apenas as companhias abertas estavam obrigadas
a publicar esta demonstrao. A efetiva introduo, extensiva a todas as empresas somente
passou a valer a partir da edio da Lei Federal n 11.638/2007, a chamada Lei da Convergncia
Internacional.
A Norma Internacional em que se inspirou e a que se refere o Pronunciamento Tcnico CPC n 03 - o IAS 7 - Demonstrao dos Fluxos de Caixa, que baseou no Financial Accounting
Standard - FAS 95: Statement of Cash Flows (Demonstrao de Fluxo de Caixa). Este foi o
documento que definiu a estrutura da DFC.
181
A traduo do IAS 7, transformou-se em minuta do Pronunciamento Tcnico CPC 03/08
Demonstrao de Fluxos de Caixa - colocada em discusso em audincia pblica, pelo Comit
de Pronunciamentos Contbeis (CPC), em 2008.
O Enunciado Tcnico do CPC 03/08 prev que:
As informaes dos fluxos de caixa de uma entidade so teis para proporcionar aos
usurios das demonstraes contbeis uma base para avaliar a capacidade de a entidade
gerar caixa e equivalentes de caixa, bem como suas necessidades de liquidez.
Mesmo sendo uma tentativa de melhorar o contexto contbil existente, essa transio ao
modelo internacional no foi de pronto aceito pelos estudiosos da rea, como afirmam Santos e
Lustosa (1999 apud MARTINS, p. 302);
... o Balano e a Demonstrao do Resultado, se elaborados luz do custo histrico
puro e na ausncia de inflao, so a distribuio lgica e racional ao longo do tempo
do Fluxo de Caixa da empresa. [...] De outra forma, poder-se-ia afirmar: todos os
elementos do Balano e da Demonstrao de Resultado, sem exceo, passam, em
algum momento, pelo caixa. [...] o modelo do FASB, ao no atentar para os aspectos
financeiros que envolvem as transaes a prazo, distorce o poder informativo da
DFC.
Para minimizar a presso, a CVM (Comisso de Valores Mobilirios - 2008), defendeu
que fossem feitos acrscimos que abarcassem aspectos especficos e exclusivos para ajustar
os seus termos realidade brasileira, e que no afetaram o ncleo do que preceitua a Norma
Internacional IAS 7, - que deu origem ao CPC 03/08- , com os seguintes ajustes: foi acrescentada
a expresso e juros sobre o capital prprio nos itens que fazem referncia a dividendos; includa
a reconciliao entre o lucro lquido e o fluxo de caixa lquido das atividades operacionais
independentemente de a entidade usar o mtodo direto ou indireto, dos diferimentos, provises
e de outros ajustes ao lucro lquido.
O que observamos que ao mesmo tempo que determinados organismos reguladores
apresentam um modelo traduzido, tambm fazem ajustes que no constam dos documentos
originais, como o caso desse acrscimo sugerido pela CVM.
Para comprovar alguns desses fatos, optamos em analisar dois textos que tratam
da convergncia da contabilidade s normas internacionais que orientam a elaborao da
Demonstrao do Fluxo de Caixa (DFC), demonstrao esta que passou a ser obrigatria no
Brasil a partir da publicao da Lei 11.638 de 2007, que teve sua estrutura definida pela norma
internacional IAS 7 e no Brasil, pelo CPC 03 (em portugus brasileiro), comparando com a NIC
182
7, que definiu a estrutura da DFC para Portugal, portanto, texto em Portugus Europeu.
2. DISCUSSO TERICA
2.1 Os estudos terminolgicos de especialidades
O ponto alto dos estudos da terminologia contempornea pode ser concebido a partir da
publicao dos trabalhos do engenheiro austraco Eugen Wster (1898-1977), que apresentava
os fundamentos do que viria a constituir num campo de investigaes cada vez mais dinmico
na lingustica contempornea denominada de Terminologia, como especialidade da lexicologia
e da lexicografia, como afirma Barros.
A afirmao da Terminologia como disciplina cientfica que estuda os termos de uma
rea de especialidade se d, mais uma vez, pela contribuio de especialistas de outras
matrias, como Eugen Wster (1808-1977), engenheiro austraco que, nos anos de
1930, estabeleceu as bases da chamada Escola de Viena e mais tarde elaborou a sua
Teoria Geral da Terminologia (TGT). (BARROS, 2004 pg. 32)
A partir dessa definio da TGT por Wster, abre-se ento um campo de estudo do
termo, gerando um olhar mais direcionado s especialidades.
A terminologia uma disciplina cientfica que estuda os pressupostos, mtodos e
representaes das chamadas lnguas de especialidade. De outra forma, tambm o conjunto
sistematizado de termos de uma determinada rea ou profisso, por exemplo, o conjunto de
termos da Medicina, do Direito, da Economia ou da Contabilidade.
A Terminologia tem como um de seus objetivos a sistematizao de dicionrios ou
glossrios de termos de profisses e de reas de conhecimento cientfico. Esse trabalho tem
evoludo muito nos ltimos anos, com a criao de grupos de pesquisa em diversas universidades
brasileiras voltados para este fim.
A partir dos estudos lexicais, possvel criar dicionrios cada vez mais abrangentes e
tambm mais especficos, pois o lexicgrafo pode ter em mente confeccionar dicionrio que
abranja uma lngua de um pas como tambm uma linguagem de uma especialidade profissional
ou de uma rea da cincia, com os estudos terminogrficos do tipo glossrios de termos tcnicos
e cientficos ou mesmo de termos especializados em domnios literrios, estticos e culturais
mais amplos.
Com a evoluo das profisses provocada pela globalizao dos mercados, evolui tambm
o lxico especfico de cada rea profissional. O mesmo acontece na cincia e na tecnologia,
com o aumento das informaes e a facilidade de circulao nos meios cientficos e culturais.
183
184
buscado. Em ambas as lnguas estudadas, o termo equivalente deve ser contextualizado, para
que os usurios da pesquisa consigam entender, considerando o mesmo contexto de anlise.
Termo equivalente ou equivalncia aquele que, na lngua de chegada, exibe uma
identidade completa de sentidos e de uso com o termo da lngua de partida, no interior de um
mesmo domnio de aplicao. J a correspondncia ou termo correspondente, conforme ensina
Dubuc, (1985, p.55), ocorre quando o termo da lngua A recobre apenas parcialmente o campo
de significao do termo da lngua B ou vice-versa, ou ainda, um dos termos pode situar-se em
um nvel de lngua diferente de seu homlogo da outra lngua. Uma questo muito discutida
em Terminologia bilngue o problema da falta de isomorfismo entre os termos das diferentes
lnguas em uma rea de especialidade e vrios so os motivos atribudos a esse fenmeno. J
assunto pacificado entre estudiosos que, na pesquisa terminolgica bilngue, a existncia de
equivalentes totais muito rara, ocorrendo normalmente a correspondncia entre eles.
Conhecendo esta realidade, algumas solues indicadas, como ensina Barros (2004), so o
estabelecimento de um emprstimo para a lngua de chegada; utilizao do termo mais genrico
ou mais especfico da lngua de chegada, fazendo o registro dessa diferena; a criao de um
neologismo; a descrio do contedo conceptual do termo, ou ainda a indicao da ausncia de
equivalentes ou correspondentes.
No processo de internacionalizao da Contabilidade, Weffort (2005, pg. 84), define
que convergncia;
185
Ento, considerando estes conceitos, preciso deixar claro que, quando a contabilidade
busca a convergncia terminolgica, a normatizao brasileira dever criar toda uma terminologia
equivalente, enquanto que na harmonizao, poderia ocorrer uma proximidade semntica, onde
os termos se equivalem semanticamente.
Na composio dos corpora definidos para este estudo, foram segregados quarenta e
cinco (45) termos em cada texto que foram comparados no mesmo contexto. Este contexto diz
respeito a normatizao para elaborao da Demonstrao de Fluxo de Caixa.
A metodologia utilizada foi baseada na leitura de ambos os textos, comparando o contexto
de aplicao da norma contbil, ao mesmo tempo em que foram escolhidos os candidatos a
termos a serem analisados, considerando o conhecimento tcnico-contbil deste pesquisador,
que tambm contador e professor da rea. O critrio utilizado para a escolha foi a classificao
semntica e sua relao de equivalncia terminolgica. A Semntica o estudo do significado.
Incide sobre a relao entre significantes, tais como palavras, frases, sinais e smbolos, e o que
eles representam.
Utilizamos o formato de quadro composto de quatro colunas. Na coluna 01 consta a
ordem em que foram selecionados os termos, seguindo a sequncia dos textos; a coluna 02
apresenta os termos na lngua portuguesa do Brasil (PB); na coluna 03, os termos esto grafados
em portugus Europeu (PE) e finalmente, na coluna 04, apresentamos a anlise dos termos,
considerando os termos no PE em relao ao PB.
A anlise foi direcionada especificamente aos termos que se enquadraram na como no
equivalentes, uma vez que, no contexto tcnico contbil, esses termos podem trazer problemas
no momento da elaborao da demonstrao do fluxo de caixa da empresa, provocando dvida
na sua interpretao.
Tendo em vista que em algumas situaes aparecem mais de um termo ou um termo
composto, optamos em grifar aqueles que esto sendo comparados.
Aps o quadro, apresentamos nossas concluses em relao as anlises efetuadas.
A seguir, est disposto o quadro 01 com a devida anlise.
186
Seq
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
Portugus Brasileiro
Entidade
Demonstraes contbeis
Avaliar
Gerar caixa
Requerer
Caixa e equivalentes de caixa
Incremento
Reduzir os efeitos
Averiguar a exatido
Aplicaes financeiras
Entradas
Sadas
Capital de terceiros da entidade
Mantidos
Instrumentos patrimoniais
Aes preferenciais resgatveis
Apresentar
Desembolso
Projeo
Venda de mercadorias
Fornecedores de mercadorias
Prmios e sinistros
Lucro lquido ou prejuzo
Lucros e fluxos de caixa
Emisso de debntures
Notas promissrias
Amortizaes de emprstimos
Reduo do passivo
Arrendamento mercantil
Estoques
Recursos mantidos
Aluguis cobrados
Controlada no exterior
Convertidos
Taxa de cmbio vigente
Conciliar
Montante total
Despesa
Outros negcios
Arrendamento financeiro
Instrumentos patrimoniais
Instrumentos patrimoniais
Produtos bancrios
Controladora
Linhas de crdito
Portugus Europeu
Empresa
Demonstraes financeiras
Determinar
Gerar dinheiro
Exigir
Dinheiro e seus equivalentes
Aumento
Eliminar os efeitos
Verificar o rigor
Investimentos a curto prazo
Influxos
Exfluxos
Emprstimos obtidos pela empresa
Detidos
Capital prprio
Aces preferenciais adquiridas
Relatar
Reembolso
Previso
Venda de bens
Fornecedores de bens
Prmios e reclamaes
Resultados lquido
Rendimento e fluxos de caixa
Emisso de certificados de dvida
Livranas
Reembolsos de caixa
Reduo de uma dvida
Locao financeira
Inventrios
Fundos detidos
Rendas cobradas
Subsidiria estrangeira
Transpostos
Taxa real
Reconciliar
Quantia total
Gasto
Outras unidades
Locao financeira
Emisso de capital
Dvida de capital
Acordos bancrios
Empresa me
Facilidades de emprstimos
Classificao
Equivalente
Equivalente
No equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
No equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
No equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
No equivalente
Equivalente
Equivalente
No equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
No equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Equivalente
Quadro 01 - Relao dos termos para anlise Portugus brasileiro - Portugus Europeu
187
Observamos que, muito embora os dois termos possuam caractersticas especiais de
cada pas, ainda assim, no possvel consider-los equivalentes, que pode causar dificuldades
na interpretao.
No lxico portugus brasileiro, temos tambm o termo <arrendamento mercantil> em
contraponto ao termo locao financeira no lxico portugus europeu. O termo mercantil,
segundo Bueno (sd. pg. 426) est relacionado a mercadorias; mercado. Isto quer dizer que
arrendamento mercantil diz respeito ao aluguel de mercadoria, enquanto que o termo europeu
<locao financeira> est relacionado a emprstimo de dinheiro (financeiro). H uma grande
diferena a ser considerada no contexto profissional e normativo da Contabilidade quando se fala
em emprstimo financeiro e aluguel de mercadorias. Portanto, os termos no so equivalentes.
Finalmente, os termos <conciliar e reconciliar> que no contexto das normas esto postos
como equivalentes. Para Bueno (sd. pg. 153), <conciliar> significa harmonizar; pr de acordo;
congraar. Para o mesmo autor (op cit. pg. 558), reconciliar restabelecer relaes; restituir.
Vemos que ambos os termos possuem sentidos diferentes entre si nas duas lnguas estudadas.
188
3. CONCLUSES
Este estudo no teve a pretenso de esgotar o assunto apresentado, mas sim, levantar
uma discusso sobre alguns conceitos terminolgicos que se apresentam a partir de uma nova
realidade lexical de uma profisso regulamentada. A atividade profissional de contabilidade tem
um impacto na sociedade que pode distorcer um resultado de uma demonstrao da realidade
empresarial e, considerando que a legislao promoveu essa nova estrutura lexical, importante
que mais pesquisas sejam desenvolvidas visando clarear os impasses criados pelo legislador.
Neste opsculo, discutimos apenas alguns termos que so primordiais na definio dos
critrios para elaborao da DFC e, sem a pretenso de esgotar o assunto, pudemos observar
que no h uma equivalncia terminolgica que garante a totalidade da convergncia. Com
isso, conclumos que de suma importncia a elaborao de glossrios terminolgicos para
uniformizar a convergncia do lxico contbil brasileiro para as normas internacionais,
facilitando o trabalho do profissional contbil.
Referncias
BARBOSA. Maria Aparecida. Perspectivas e tarefas dos trabalhos terminolgicos: ensino da
metalinguagem tcnico-cientfica. In. Revista Brasileira de Lingustica. v. 9. n.1. So Paulo:
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BARROS, Lidia Almeida. Curso bsico de Terminologia. So Paulo: Editora da Universidade
de So Paulo, 2004.
BARTHES, Roland, Elementos de Semiologia. In: La semiologia (Buenos Aires, Tiempo
Contemporneo). So Paulo, Culgtrix-Editora da USP. 1971
BRASIL, Lei Federal 6.404 de 15 de Dezembro de 1976.
BRASIL. Lei Federal 11.638 de 28 de Dezembro de 2007.
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CABR, Maria Tereza. La Terminologa: Representacin y Comunicacin: Barcelona, Institut
Universitari de Lingustica Aplicada. Universitat Pompeu Fabra: 1999.
COLLI. Jos Alexandre e FONTANA. Marino, Contabilidade Bancria. Editora Atlas, So
Paulo, 1983.
DUBUC, R. Manuel pratique de terminologie. 2ed. Qubec: Linguatech, 1985.
189
190
INTRODUO
Cada poca, cultura ou espao da Amrica Latina exerce influncia sobre os sentidos
atribudos aos conflitos e na maneira como so enfocados. No Peru, vrios estudos vm se
desenvolvendo sobre as importantes transformaes nos significados polticos e sociais produzidas pela violncia, sobretudo, sobre as memrias em disputa. Nesse contexto, a literatura
peruana contempornea problematiza, em seu considervel corpus de textos, a profunda crise
sociocultural vivenciada no pas. Mais do que representar os conflitos, a experincia literria
pode permitir a reflexo sobre significados negados pelo discurso oficial, assim como desestabilizar certos padres de pensamento entorpecidos pelo silncio e pelo esquecimento institudos
na sociedade.
Em situaes conflituosas como a do Peru, constituda por mltiplas vozes e caracterizada, muitas vezes, por vises nebulosas sobre o ocorrido, o estabelecimento pelo governo ou por
outra entidade de uma verso oficial da histria que rejeita outras vises, faz surgir desacordos
sobre as memrias. A sociloga Elizabeth Jelin (2012) sustenta que as memrias so objeto de
disputa e salienta que as relaes de poder estabelecidas pela hegemonia esto sempre presentes
nesses conflitos. Se trata de una lucha por mi verdad, con promotores/as y emprendedores/
as, con intentos de monopolizacin y de apropiacin (JELIN, 2012, p. 25). Dessa forma, a
pesquisadora considera de extrema importncia que o sujeito seja colocado no ncleo das discusses, como agente de transformao simblica capaz de incorporar novas interpretaes ao
que passou.
Ao discutir sobre o ambiente de terror no Peru, a fico, enquanto experincia esttica
pode proporcionar a discusso sobre a violncia soterrada na cultura peruana e constituir-se
numa possibilidade de quebrar verdades unilaterais e abrir fissuras nos sentidos impostos pelos
191
discursos hegemnicos, permitindo observar o drama coletivo por meio de histrias pessoais.
Nessa perspectiva, propomos pensar sobre a narrativa da violncia a partir da memria dos
personagens no romance peruano Grandes miradas (2003), de Alonso Cueto, como uma possibilidade de observar como se constituem os indivduos a partir do sofrimento causado pelo
panorama de corrupo e violao dos direitos humanos durante o regime fujimorista. Para
alcanar o objetivo proposto, apresenta-se, primeiramente, um breve panorama sobre o cenrio
histrico de violncia peruana e suas relaes com a literatura. Logo aps, reflete-se sobre os
sentidos desvelados pelos personagens, cujas vidas foram interrompidas pela violncia e pelo
terror, ao se constiturem a partir de suas memrias e da memria do outro.
192
193
estima que durante o perodo de 1992 a 2000, aproximadamente 22.000 peruanos inocentes
foram detidos. A violncia poltica dirigida contra corpos individuais, com o fim de calar e castigar, tambm apresenta um objetivo social. Torna-se possvel, ento, considerar que a violncia
empreendida por diversos atores armados tratava de silenciar a sociedade civil para eliminar
qualquer esforo organizado de oposio aos projetos autoritrios que intencionavam impor. A
violncia, portanto, direcionada no somente s vtimas imediatas, mas transmitida ao corpo
social mais amplo como mensagem de que no se tolera a oposio.
Por dez anos, Fujimori consegue superar a oposio e as alegaes de abusos at sua
segunda reeleio em 2000, momento em que surgem protestos contra o vnculo entre o governo e o narcotrfico e aparecem os vladivideos. Esses vdeos mostram Vladimiro Montesinos,
chefe do SIN e mentor de Fujimori, entregando dinheiro para polticos e executivos da imprensa, entre outros (Youngers, 373- 374). Quando o presidente Fujimori foge do pas, torna-se
necessrio entender o passado recente repleto de obscuridades e conflitos.
Em relao s sequelas subjetivas deixadas pela violncia, os pesquisadores defendem
o surgimento da tendncia a esquecer ou a ter dificuldade de racionalizar os fatos dolorosos do
passado recente. O que est em jogo so as memrias em disputa, memrias sobre o que passou e por que ocorreu, sobre quem so os responsveis e o que fazer para que jamais voltem a
ocorrer as violaes dos direitos humanos e o autoritarismo. Nesse sentido, estudos sobre os
acontecimentos violentos da Guerra sucia encontram na literatura e na cultura, de um modo
geral, uma possibilidade de compreender melhor o ocorrido e de trazer tona discursos que
diferem dos sentidos comuns e das ideologias hegemnicas, ao dar voz s vtimas do conflito,
ocultadas pela elite.
A narrativa da violncia, ento, pode permitir o aparecimento de significados negados
por documentos oficiais e desestabilizar padres de pensamento estagnados e entorpecidos pelo
senso comum da discusso pblica pautado pelo silncio e pelo esquecimento. Segundo a historiadora Cecilia Mndez (2000), faltam reflexes sobre o passado recente, sobre o que aconteceu no pas durante os anos de conflito armado interno: Existe una tendencia a olvidar. [...]
lo cierto es que hay una cierta amnesia sobre el pasado reciente aqul marcado por casi una
dcada y media de guerra interna- se constata no slo entre los historiadores sino, en general, en
la poblacin (MNDEZ, 2000, p. 231). Conforme a autora, o no querer saber sobre as atrocidades cometidas durante a guerra suja parece permear a memria coletiva de vrios setores da
sociedade peruana.
Vctor Vich, investigador do Instituto de Estudos Peruanos, sustenta que o Peru contemporneo recusa a se assumir como uma sociedade ps-violncia poltica, isto , como uma sociedade que precisa se reinventar depois do que vivenciou. Exemplifica essa questo afirmando
que:
194
195
coletiva. A narrativa simplesmente emudece diante da crise que sufocava a sociedade peruana.
Desse modo, os primeiros textos que deram conta da guerra interna na literatura datam de 1986,
por mrito, quase exclusivo, de escritores andinos que sentiam a necessidade de publicar sobre
a violncia poltica. Talvez pelo motivo de estarem culturalmente mais prximos das vtimas do
conflito. Sensibilizados com a tragdia que cada vez ganhava maior proporo dieron cuenta
del drama que estaban viviendo las poblaciones serranas de indios y mestizos que quedaron
atrapadas entre dos fuegos, el desatado por los grupos subversivos y el de las fuerzas armadas
(DEGREGORI, 2007, p.61).
Acerca da expresso de distintas correntes literrias no universo cultural peruano, Degregori (2007) destaca que as diferenas entre narrativa andina e criolla no so de carter geogrfico, como muitos postulam, mas sociocultural. A narrativa andina, desde seu surgimento,
condenada a situao de subalternidade por seu insistente interesse por temas rurais e pelas
pequenas cidades da serra, ou seja, por tentar representar as vozes perifricas da realidade
peruana. Na perspectiva do pesquisador, somente nos anos de 1990 os escritores passam a
adotar o termo narrativa andina para se referir a sua produo literria como diferente da narrativa criolla. Os autores dessa vertente realizam um esforo para oferecer uma imagem ampla
do Peru, fazendo referncia a distintos setores sociais e abordando temas que caracterizam as
manifestaes culturais pertencentes ao imaginrio andino, revalorizao da tradio e violncia poltica.
A partir dos anos de 1990, os autores criollos, at ento mais interessados em temas
urbanos, comeam a escrever sobre a guerra e suas consequncias. De acordo com Vich (2009),
no final do sculo XIX e incio do XX, ocorre o surgimento significativo de textos nos quais a
representao da violncia poltica o tema central. Reforando essa ideia, Mark Cox afirma
que nos anos 2000 j era possvel ter acesso a um corpus sobre a temtica da violncia de mais
de 100 cuentos y 30 novelas publicados por 60 escritores. No ano de 2003, o nmero havia
aumentado significativamente, com 192 cuentos y 46 novelas publicados por 104 escritores, y
eso no incluye varias obras inditas (COX, 2004, p.67-68).
Destacamos algumas obras dentro do corpus de escritores andinos e criollos que refletem sobre a violncia social e poltica no Peru e como os sujeitos lidam com seus conflitos
e traumas nesse contexto. Cabe salientar que os textos mencionados no seguem uma ordem
pr-estabelecida, pois nesse momento, interessa a representao da realidade violenta e de seus
enfrentamentos. Em Adis Ayacucho (1986), Julio Ortega resgata do esquecimento os mortos
na guerra suja peruana, ressaltando a luta do povo andino para impedir que o Estado seja indiferente aos genocdios cometidos pelos militares. Luis Nieto Degregori se inclina pelo conto de
cunho social e desenvolve histrias em torno do fenmeno subversivo no Peru. Publicou em
1990, uma coleo de seus textos, sob o ttulo Con los ojos para siempre abiertos, e sua obra
196
mais recente Seores de estos reinos (1995), concedeu-lhe a aceitao da crtica, principalmente pelo premiado conto Mara Nieves.
scar Colchado constri no romance Rosa Cuchillo (1997) uma vigorosa imagem dos
anos de luta armada, vinculada com contedos mticos pertencentes ao universo do imaginrio
andino. Em Las mellizas de Huaguil, de Zen Zorrilla so representados os dramas gerados pela
transformao das sociedades andinas devido ao processo de migrao urbana. Personagens
desgarrados, pertencentes a um determinado universo cultural do pas, mas com sua identificao cultural que faz parte a outro, so representados em Los rios profundos, de Arguedas.
Ambientado no princpio da dcada de 1960, La violncia del tiempo (1991), de Miguel Gutirrez, destaca os obstculos que dificultam a ascenso dos setores populares emergentes ao
se enfrentarem no s com as barreiras impostas pelas classes elevadas, mas tambm com seu
prprio condicionamento social.
Dentro desse marco de reflexo, no se pode deixar de destacar o surgimento do romance histrico desenvolvido por autores como Luis Enrique Thord, com seus relatos Sol de
soles (1998), Fieta Jarque, com Yo me perdono (1998), Francisco Carrilo, com Diario del Inca
Garcilaso (1996) e scar Colchado, com Viva Luiz Pardo! (1996), obra em que apresenta
um personagem que se mantm intacto pela memria coletiva dos povos, apesar de ser quase
esquecido pela histria oficial. Esses escritores tentam construir uma imagem do passado por
meio da fico literria.
Entre os romances sobre a violncia poltica relacionados ao Sendero Luminoso - considerados famosos por serem premiados no exterior -, est Abril rojo (2006), de Santiago Rafael
Roncagliolo Lohmann. A narrativa de desenvolve em um perodo posterior aos enfrentamentos internos, o que possibilita refletir sobre suas sequelas e sobre as pautas do mundo andino.
Tambm distinguida com prmios a obra de Alonso Cueto, que alcana o reconhecimento da
crtica com seus livros Deseo de noche (1995), Amores de invierno (1994), El vuelo de la ceniza
(1995) e Cinco para las nueve y otros cuentos (1996). A experincia do autor com a realidade
peruana sob o regime Fujimori-Montesinos aumentou seu interesse por temas relacionados a
esse contexto. A partir da, escreve as novelas Grandes miradas (2003) e La hora azul (2005),
que lhe rendeu o prmio Herralde de Novela e o prmio da Casa Editorial da Repblica China,
por melhor novela escrita em espanhol no binio 2004-2005.
Cada uma das narrativas, tanto andina como criolla, traz consigo um conjunto de representaes que tem a possibilidade de ativar mltiplos sentidos e discusses sobre a inquietude
do ser em um contexto em que a violncia se apresenta sob diversas faces ou ainda, encontra-se
soterrada na cultura e nas instituies do estado. Na concepo de Vich (2009), a violncia no
Peru no est somente em exploses de plvora e armas, mas tambm em imagens e palavras
que a convocam e a perpetuam. Dessa forma, a experincia literria pode proporcionar a des-
197
coberta de facetas da realidade violenta atravs do olhar do outro, permitindo observar o drama
coletivo por meio de histrias pessoais. Segundo Degregori (2007, p.64), esa mirada valora aspectos de nuestro ser que no habamos descubierto o a los que tal vez no dbamos importancia.
Portanto, a narrativa peruana sobre a violncia, por meio do verossmil e do simblico, procura
abarcar eventos de um mundo real, transformando esse mundo em uma nova forma, buscando
resgat-lo do senso comum, pois nunca hay que olvidar que el sentido comn es a menudo la
represin comn (VICH, 2009, p. 11).
Nessa perspectiva, o romance Grandes miradas (2003), de Alonso Cueto retoma o panorama sombrio de corrupo e violao dos direitos humanos do regime fujimorista, permitindo
a visualizao de diferentes faces dos conflitos ocorridos nesse perodo. O autor adapta fatos
reais de um passado recente para a fico e, por meio de uma literatura investigativa, busca
algo oculto na obscuridade, persegue o que est alm das aparncias e tenta desvelar verdades
e memrias soterradas num cotidiano de violncia e corrupo.
A narrativa centra-se no assassinato de um juiz, ordenado por Montesinos durante o
governo de Fujimori. Guido Pazos assassinado por ser honrado e por no ditar suas sentenas
ao gosto do SIN - Servio de Inteligncia. A partir da, o romance apresenta os planos de Gabriela Celaya para vingar a morte de seu noivo, ainda que para isso seja preciso passar por um
processo de degradao.
Inicialmente, Gabriela uma personagem tranquila, que se prepara para casar e ser feliz.
Mas, seu mundo de cristal desmorona ao dar-se conta que Guido, na realidade, foi um homem
desamparado em um mundo governado pela corrupo e se converte em uma mulher destrutiva,
violenta e sedutora. Movida pela obsesso de investigar e vingar a morte de seu noivo, a personagem empreende um caminho de deteriorao moral, imbuindo-se de todas as artimanhas de
seus inimigos, revestindo-se com a pele da frieza e dispondo de armas mais letais do que a simples recorrncia s leis. A imagem e as reflexes da protagonista em frente ao espelho marcam
o momento em que vive sua transformao: Deba regresar a ese cuerpo. Buscar a travs de l,
en el comienzo de su infancia, el tesoro del mal que siempre haba tapiado con sus maneras y
razones [] Se hace la promesa de dar el salto al otro lado (CUETO, 2003, p. 234).
Esse processo de mudana da personagem pode ser entendido como uma espcie de
ritual necessrio para que possa ir adiante com seu plano de fazer justia e buscar a verdade.
Para atingir seus objetivos, Gabriela renuncia justia divina, justia institucional e tambm
justia dos meios de comunicao e arrisca sua vida em encontros com personagens corruptos e
figuras do poder, aos quais se entrega na suprema libertad de la repugnancia (CUETO, 2003,
p. 183). Nessa busca desenfreada da protagonista, vai se desvelando as obscuras relaes de
conivncia entre o governo e a mdia, assim como a submisso do poder judicial e militar aos
mandos de Fujimori e Montesinos. Essa situao expressa em vrias passagens da narrativa
198
como se pode perceber nas palavras do chefe do Servio de Inteligncia Nacional do Peru: [...]
tenemos ojos y odos en todas partes (CUETO, 2003, p. 118).
A figura de Gabriela tambm pode ser entendida como a representao da tenso entre
os fatos ocorridos e as permanentes reivindicaes e demandas da conscincia que, sustentadas
pelo exemplo de vida de Guido, podem provocar a reflexo das geraes futuras e, como consequncia, servir de conscincia para o surgimento de uma nova organizao, mais transparente
e democrtica. Assim, demonstra a personagem quando relata que:
Yo creo que Guido con lo que hizo, con lo que resisti, o sea con ese poquito que
aguant [], yo creo que ayud a cambiar las cosas, o sea yo creo que quien sea,
quien sea que resiste un poco, en cualquier sitio, o sea el que se niega a aceptar la
mugre que alguien le impone, ese tipo es el que ha cambiado o est cambiando algo,
o sea es el que nos salva un poco (CUETO, 2003, p. 326).
No dilogo final da protagonista com o pai de Guido, este expressa a opinio de que
preciso perdonar, ideia que Gabriela prefere substituir por entender. O desejo de saber e a
obsesso pela busca da verdade, empreendida pela protagonista, pode ser lida como um acercamento construo de uma memria ativa, capaz de se sobrepor a processos pr-estabelecidos
e buscar a (re)significao do passado. Conforme Ricoeur, lembrar-se no somente acolher,
receber uma imagem do passado, como tambm busc-la, fazer alguma coisa (RICOEUR,
2007, p. 71).
Ao abordar sobre memria e conflito, Elizabeth Jelin (2012) sustenta que necessrio
elaborar memrias e lembranas no lugar de reviv-las. A pesquisadora considera que a memria precisa ser ativa, e isso implica trabalho. Significa que a memria constri, tem responsabilidades e pode ser considerada como processo que visa transformao por possibilitar a
(re)interpretao e contextualizar os esquecimentos e silncios de conflitos. Ao se referir aos
trabalhos da memria, Jelin sustenta que se requiere trabajar, elabolarar, incorporar memorias y recuerdos en lugar de re-vivir y actuar (JELIN, 2012, p. 48). importante salientar que
a pesquisadora no considera as memrias apenas como um objeto de trabalho, mas como um
processo dinmico em que seres humanos transformam simbolicamente e elaboram sentidos do
passado. O enfoque proposto por Jelin (2012) considera que o carter das memrias construdo e pode mudar os significados, os silncios e os esquecimentos presentes na histria, tornando
possvel, dessa forma, estabelecer novas expectativas para o futuro. A sociloga acredita que
el sentido del pasado est en un presente, y en funcin de un futuro deseado (JELIN, 2012,
p. 46).
199
Consideraes finais
Nem toda a violncia provm do uso de armas de fogo. A misria moral e, sobretudo, a
corrupo dos polticos e de seus seguidores tambm so fatores que podem instituir o terror,
pois contaminam a cultura e pretendem manipular as memrias. Durante o governo de Fujimori
(1990-2000), a corrupo adquiriu essas conotaes, de tal forma que, sob um discurso aparentemente democrtico, efetivou o desmantelamento das instituies sociais provocando um estado de desorientao dos sujeitos devido carncia ou ao carter contraditrio das leis. Ocorre,
portanto, a decadncia da conscincia cidad, pois os corruptores, para se manterem no poder,
exigem o silncio, confiscam as memrias de seus opositores e debilitam os valores coletivos.
Nesse sentido, Grandes miradas (2003) permite visualizar diferentes faces do perodo sombrio
de violao dos direitos humanos e pode ser lida como um manifesto contra a amnsia poltica
ao ressuscitar as memrias ocultadas dos anos de violncia em que Fujimori e Montesinos eram
os amos do Peru.
O autor adapta fatos reais de um passado recente para a fico e, por meio de uma esttica investigativa, promove o entrecruzamento de vidas de sujeitos que passam pelos mesmos
caminhos, mas que olham o conflito de diferentes posies e elaboram memrias extremamente
diversas sobre o ocorrido. Interessa, aqui, os destinos e a vulnerabilidade de pessoas comuns
(jornalistas, juzes, a noiva do juiz), que no possuem a aspirao de mudar o mundo, mas que
precisam sobreviver ao ambiente de corrupo e terror imposto pelo regime fujimorista.
possvel ser honrado em um mundo corrupto? Quem escolhe ser honesto e por qu? Como se
narram os que decidem no ser? Quais as batalhas de memrias travadas nesse contexto? Esses
so alguns dos questionamentos levantados pelo romance.
Nesse estudo, adotou-se uma compreenso Hermenutica. Desse modo, muitos sentidos
podem ser desvelados a partir a obra estudada, pois esto sempre em construo, sendo que
no teve-se a pretenso de tirar concluses definitivas. Portanto, pensamos que uma das possibilidades de leitura de Grandes miradas (2003) pode ser a representao esttica da busca pelo
sujeito da face oculta da realidade peruana e da (re) elaborao de suas memrias, procurando
compreender dimenses negadas pelas relaes de poder, hierarquias sociais, desigualdade,
corrupo, subornos, torturas e todas as demais articulaes de dominao impostas pela violncia.
A obra observa as relaes entre os sujeitos, o que leva a pensar sobre a conduta dos
seres e a capacidade que estes apresentam ou no para reinterpretar o passado e atribuir novos
sentidos. O autor sugere significados, sem, com isso, pretender apresentar respostas prontas,
apenas conduz o leitor reflexo. Assim, torna-se possvel verificar, pelas investigaes da
200
REFERNCIAS
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201
202
O OLHAR DO RETORNO
RESENHA SOBRE O ROMANCE TEMPO DE MIGRAR
PARA O NORTE DE TAYEB SALIH
Elizabeth Suarique Gutirrez
FURG
Assim, Mustafa Said se tornou, apesar de mim,
uma parte de meu mundo, uma ideia de minha cabea,
um fantasma que recusa a seguir seu caminho.
Nesse primeiro instante o neto de Hajj Ahmad reage com todo seu corpo ao calor da
famlia. o momento do reencontro com sua histria, o retorno ao mundo no qual nada mudou.
No entanto, uma presena altera essa primeira olhada de seu lar, um forasteiro mora entre eles,
Mustafa Said, cuja histria vai modificar a sua relao com o mundo de razes e objetivos
certos, at implicar a sua sobrevivncia. Ele, o personagem narrador, ser o depositrio e ao
mesmo tempo a vtima do confronto de Mustafa Said com a vida do migrante.
O romance Tempo de Migrar para o norte traz consigo o deslocamento inevitvel das
geografias; alm da migrao do pensamento e dos valores. O fado do personagem que narra
ser testemunha da histria de Mustafa Said, mas essa misso provoca nele uma transformao
e um prprio olhar para dentro de si mesmo e de sua cultura. Ele vai se descobrir alheio da
tradio, pois, outros valores norteiam sua capacidade de juzo.
Esta leitura quer fazer nfase na transformao que sofre o personagem narrador, uma
descida violenta ao no lugar, ao espao vazio do migrante que no daqui, nem de l. O ponto
de partida do romance o retorno dele a sua aldeia, - personagem sem nome, mas com voz-,
e seu encontro com Mustafa Said, o forasteiro do povo. No comeo, sua relao com Mustafa
se d pela curiosidade que suscita o estranhamento no campo conhecido; no entanto, Mustafa
a armadilha pela qual ele, o personagem narrador, vai confrontar sua experincia europeia de
frente a esse lar que j foi transformado em sua simplicidade. Depois de uma srie de fatos, ele
no ter a vontade de renunciar em favor da conservao da tradio familiar, pelo contrrio,
o ideal de liberdade, do direito de se emancipar alm do gnero ou condio social, de fazer
escolha, a razo que o afasta do mundo antes conhecido.
No princpio, para o narrador, os europeus so semelhantes e no tm conflito com
203
eles: so exatamente iguais a ns, nascem e morrem e, na viagem entre o bero e o tmulo,
constroem sonhos alguns se realizam; outros no. (SALIH, 2004, p 9). Para o narrador a
natureza humana supera a diferena, uma questo culturalmente atingvel. Em contraste, a
histria de Mustafa e seu negcio com as mulheres fazem dele o avesso da harmonia com o
ocidente, o interessante do romance que em Mustafa se encaixa tambm o sudans exemplar
pelo seu destaque no campo intelectual e poltico. Mustafa representa as duas faces da moeda,
um estado de compreenso que supera a dualidade do personagem de Stevenson em Dr Jekill
and Mr Hyde, pois em Mustafa dificilmente pode-se pensar em duas personalidades, mas em
uma vitalidade com alicerces em um tipo de cidado do caminho entre o norte e o sul, surge
como signo de uma identidade conflitiva, mas no dicotmica.
Esta complexidade contrasta com o personagem narrador, ele, semelhana de Mustafa,
um migrante do norte que retorna, no entanto, com a ideia de se sentir prximo a sua terra. No
comeo, a harmonia se expressa quase como um anseio infantil meu corao esta optimista.
A fora, quero tomar da vida o que me de direito, quero dar com generosidade, quero que o
amor transborde do meu corao (SALIH, 2004, p 11). Assim, o estado de coisas para ele
simples e sem conflito.
Aos olhos do narrador, Mustafa representa a diferena. H surpresa do narrador ao
comprovar como esse homem de baixo perfil, tem a capacidade de intervir com sabedoria na
cotidianidade da aldeia - de sua aldeia, qual Mustafa no pertence-. O Mustafa vira mistrio,
e demanda uma explicao. O Mustafa concede o segredo de sua vida e, deste modo, depois
da conversa numa noite quente de julho, o pensamento do narrador muda por um momento,
embora ele mesmo no logre definir muito por que. Ao sair da casa de Mustafa ele reflete:
Minha mente serenou e os pensamentos negros, provocados por Mustafa Said, evaporaram-se.
A aldeia no mais parecia estar suspensa entre o cu e a terra, estava firme no solo, com suas
casas. (SALIH, 2004, p.48). A segurana dele est nessa paisagem estvel, embora seu olhar
sobre o povo seja diferente. A aldeia contemplada agora na penumbra do alvo, mas silenciada
pela histria ouvida.
Mustafa mostrou para ele um mundo sem razes, sem ligao e segurana, sem terra nem
passado. Para se proteger o narrador procura a presena da sua famlia e do seu av. O narrador
evita o deslocamento, ele persiste Ser que sou tambm uma mentira? mas eu sou daqui; ser
que isso no bastaria (SALIH, 2004, p.48). Apesar de seus esforos, o vu foi rasgado e aparece
a confisso: Eu tambm convivi entre eles, porm superficialmente, sem am-los, nem odilos (SALIH, 2004, p.48). Ele reconhece em si mesmo a sensao do migrante. A mudana na
viso de mundo daquele que mora fora da aldeia uma imagem arquetpica, comum noutras
tradies, o motivo da viagem transforma o olhar, aquele que regressa sente-se estrangeiro na
sua prpria terra. Essa identificao com Mustafa retorna como sensao incmoda, assim
204
que opera no pensamento do narrador cada vez que a presena de Mustafa aparece no relato dos
outros. aquela sensao de novo, de como as coisas mais normais podem de repente parecer
irreais aos olhos da gente (SALIH, 2004, p. 50). O mundo deixa de ser simples, o mundo entra
em conflito. Deste modo, surge um exerccio de interpretao por parte do narrador ao ver-se
atravs dos olhos do outro; no entanto, esse outro faz parte de si mesmo, de sua aldeia, uma
dupla volta do nu, aquela diferena sempre ficou dentro dele, o estrangeiro e o migrante. Aquele
que vai e volta, infelizmente, uma mentira revelada.
Por outro lado, Mustafa um devorador da linguagem, usa-a para ingressar no mundo
ingls e matar ao imprio em suas mulheres que no podem resistir a ele. O jovem gnio,
adiantado na lngua inglesa, aquela criatura extica, singularmente brilhante, dominador da
lngua, e o responsvel por provocar em suas mulheres o limite da paixo. As cenas de suicdio
e morte das mulheres podem ser lidas como smbolo a partir da concepo de erotismo do
Georges Baitalle,
En la vida humana, al contrario, la violencia sexual abre una herida. Pocas veces esa
herida vuelve a cerrarse por s misma; y es menester cerrarla. Incluso sin una atencin
constante, fundamentada por la angustia, no puede permanecer cerrada. La angustia
elemental vinculada al desorden de la sexualidad es significativa de la muerte. La
violencia de ese desorden, cuando el ser que la experimenta tiene conocimiento
de la muerte, vuelve a abrir en l el abismo que la muerte le revel. La asociacin
de la violencia de la muerte con la violencia sexual tiene ese doble sentido. De un
lado, la convulsin de la carne es tanto ms precipitada cuanto ms prxima est
del desfallecimiento; y, de otro lado, el desfallecimiento, con la condicin de que
deje tiempo para ello, favorece la voluptuosidad. La angustia mortal no inclina
necesariamente a la voluptuosidad, pero la voluptuosidad, en la angustia mortal, es
ms profunda.(BATAILLE, p.78)
205
as relaes. Alm disso, as relaes no interior da nao independente perduram agora com
uma burocracia que herda a mesma injustia social, nesse sentido, mudam os nomes, mas as
posies de poder no.
Os trechos citados so apenas indcios para o fato determinante que desencadeia
o conflito da tradio, o olhar do migrante, trata-se da solicitude de casamento da viva
do Mustafa Said. O narrador herda a histria de Mustafa como depositrio de seu passado
transmitido numa noite quente de julho, alm disso, tem de carregar com o seu futuro: a mulher
e os meninos. Apaixonado pela mulher, ele no consegue aceitar a subordinao da mulher na
aldeia, a posio dos homens, seu amigo Mahjub d voz ao problema:
O mundo no mudou tanto quanto voc pensa. verdade que muita coisa mudou:
Bombas-dagua em vez de rodas, arados de ferro substituram os de madeira,
comeamos a mandar nossas filhas para as escolas; rdios, automveis. Aprendemos
a tomar usque e cerveja no lugar de aguardente e do vinho de paino. No entanto,
outras coisas continuam iguais. (SALIH, 2004, p. 93)
206
REFERENCIAS
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SAID, Edward, cultura e imperialismo. So Paulo: Companhia das letras, 2011.
SALIH, Tayeb, Tempo de migrar para o norte. So Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004.
207
Este artigo apresenta ideias expostas na minha comunicao no II Encontro Sul Letras
com base no meu projeto de mestrado. Tratarei aqui especificamente da minha proposta descrita
em meu projeto de mestrado, iniciado poucos meses antes do evento, portanto, apresento
consideraes iniciais mas nenhuma concluso. Minha proposta realizar uma traduo
comentada de alguns poemas do uruguaio Juan Cunha e do peruano Emilio Westphalen, sendo
que o comum entre esses poemas fazerem parte da tendncia surrealista. O interesse no
surrealismo d-se por sua produo lrica nascida do automatismo psquico, onde as ideias se
associam livremente criando uma justaposio de imagens de linguagem onrica. Pretendo ver
como se traduz esse surrealismo francs em solo latino-americano. Acredito que existam
especificidades que o situa em seu lugar.
Para chegar na traduo comentada dos poemas selecionados, irei analisar sua potica
surrealista (imagens, temas, peculiaridades e formas), auxiliando na tarefa de investigao de
suas singularidades. Pois, a dificuldade de traduzir poesia est no seu valor nico, est na forma,
na qualidade esttica e no contedo. Tentarei captar toda a complexidade do texto, influencias e
contexto histrico-cultural para mergulhar no seu mundo e conseguir translada-lo para a nossa
lngua.
Pode-se dizer que a histria do surrealismo comea em 1919 com a criao da revista
Littrature (Literatura) por um grupo de jovens franceses que comeava a usar o termo
surrealismo. Na direo da revista encontramos Aragon, Breton e Soupault. Empregavam
o termo surrealismo para designar algumas das atividades e experincias que desenvolviam
sobre a escrita/literatura ligadas ao movimento Dad. Mas essa relao com o Dad est repleta
de divergncias e em 1922, Littrature abandona o movimento, volvendo-se cada vez mais
surrealista.
A revista Littrature desaparece e poucos meses depois aparece o Manifesto Surrealista de
Breton. Nasce ento a revista La Rvolution Surraliste (A Revoluo Surrealista) afirmando-o
208
como um novo movimento. Este projeto tem como tema de partida esse movimento. O nome
surrealismo, cunhado por Andr Breton, tem como inspirao o estado de fantasia supernaturalista
de Guillaume Apollinaire, trazendo a ideia de distanciamento da realidade comum afirmado
no primeiro manifesto surrealista escrito por Breton em 1924, data oficial do nascimento do
movimento surrealista.
Cabe lembrar aqui que o surrealismo nunca foi e nunca teve a pretenso de se erigir
enquanto uma filosofia, uma cincia, uma ideologia, um grupo ou uma corrente esttica (PONGE,
1991, p. 16). Como afirma Robert Ponge, na raiz do surrealismo est presena pelo menos
entre alguns setores da populao da semente da inquietao: uma certa insatisfao, a busca
de algo novo, de mudanas (PONGE, 1991, p. 18). Estamos falando do perodo ps-guerra,
sangrento e de disputas de poder internacionais, onde o surrealismo vem propor a revolta, o
no-conformismo e a liberdade integral do homem.
A potica surrealista est baseada no inconsciente como lugar gerador de imagens
que se pode utilizar na arte por meio de uma escritura automtica, onde a conscincia no
intervenha. O mundo onrico ganha grande importncia, e est diretamente relacionado as obras
de Sigmund Freud. Ele conseguiu provar cientificamente a existncia do inconsciente, apenas
suspeitado pelos romnticos. Segundo Freud, o homem regido pela lei do prazer, mas a
civilizao impe a lei da realidade ao seu consciente, reprimindo seus desejos que se alojam
no inconsciente. E Freud ensinou a conhecer o inconsciente com tcnicas hipnticas, anlises
dos sonhos e a livre associao de ideias.
Os surrealistas propem uma produo lrica nascida do automatismo psquico, onde
as ideias se associam livremente, espontaneamente, sem censura moral ou esttica, escrevendo
ou falando sem ateno, como brotam da alma do autor essas ideias. Desse conceito parte meu
projeto, pois nesse momento, surgem interrogaes. Como o surrealismo aspirava traduzir o
inconsciente nos textos? E, isso possvel? Quais tcnicas ou processos utilizados? Qual o
resultado esttico (imagens, sintaxe, forma dos textos)?
O surrealismo literrio possui algumas caractersticas que irei explorar - como sua
estrutura acumulativa (parece-se a uma interminvel suma de fragmentos); rico em metforas
raras e em arbitrariedades; rompe com a linearidade e cria uma multiperspectiva (de ideias
e imagens) para auxiliar a responder como traduzir o inconsciente e o que seria essa
surrealidade que prope o surrealismo aos textos.
Tratando especificamente da Amrica Latina, podemos falar que o surrealismo teve
grande repercusso na literatura hispano-americana, com presena marcante em pases como
Mxico, Argentina, Chile e Peru. Evidencias de que o surrealismo tocou nossa Amrica so as
produes, a partir de 1926, de Enrique Molina, Aim Csaire, Magloire Saint-Aude, Wilfredo
Lam, Roberto Matta, Octavio Paz, Csar Moro e E.A. Westphalen, exemplos como esses provam
209
Assim sendo, mesmo que foram muitos os contatos, o surrealismo ganha diferentes
tons ao brotar em solo americano. Em meu projeto proponho investigar mais profundamente
como se traduz o surrealismo, de origem francesa, em solo latino-americano. Quais so
as singularidades desse movimento nesse novo continente? Quais as imagens criadas pelo
inconsciente surrealista latino-americano?
Segundo Freud, em A Interpretao dos Sonhos, o material dos sonhos retirado da
realidade e da vida intelectual do indivduo. Ainda:
Quaisquer que sejam os estranhos resultados que atinjam, eles nunca podem de fato
libertar-se do mundo real [...]. Todo o material que compe o contedo de um sonho
derivado, de algum modo, da experincia, ou seja, foi reproduzido ou lembrado no
sonho ao menos isso podemos considerar como fato indiscutvel. (Freud, p. 22)
Mesmo que seja difcil entender essa ligao entre sonho e realidade eles no fogem da realidade
individual de cada um. Ainda que foram muitos os contatos com os franceses, o surrealismo
ganha diferentes tons ao brotar em solo americano.
Mais que explorar o sonho, temos aqui a vontade de buscar outra dimenso do real com
uma linguagem potica. Belluzo acrescenta que: As vanguardas artsticas dos anos 20 e 30, na
Amrica Latina, exercitadas em possibilidades abertas pelas vanguardas europeias, condensam
aspiraes ditas romnticas e novos processos de atuao de linguagem (BELLUZO, 1990,
p16).
Tambm levanto a pergunta do porqu que o surrealismo no vingou no Brasil. Aqui esse
movimento chegou de maneira tnue e com poucos representantes. E, mesmo os poucos artistas
que absorveram a esttica no so costumeiramente citados como surrealistas, por qu?
O surrealismo parece ter significado mais que apenas um novo movimento artstico, seria
uma oposio ao discurso oficial, o inconsciente a favor da liberdade. Qual foi a repercusso
210
que teve o surrealismo na Amrica Latina? Quais fatores intervieram na sua adeso ou rejeio?
Houve polmicas? Proponho investigar qual seria a especificidade do surrealismo na Amrica
Latina e que elementos expressivos o caracterizam. Ser que podemos estabelecer peculiaridades
regionais?
Abordando especficamente o Per, segundo Belluzo, el vanguardismo peruano de los
aos 20 fue exclusivamente potico (BELLUZO, 1990, p 46). Porm, mesmo breve e com
poucos expoentes, essa vanguarda teve grande qualidade literria. O surrealismo desponta no Peru
graas a duas personalidades, Csar Moro y Emilio Adolfo Westphalen. Eles se conhecem em
1934, quando Csar Moro volta de Paris depois de viver oito anos l em contato com surrealistas.
Em maio de 1935, os dois organizam a Primeira Exposio Surrealista Latinoamericana, na
Academia Alcedo de Lima. Em 1939, lanam a revista El uso de la palabra, de nico nmero;
em 1947, iniciam a publicao da revista Las moradas, com sete nmeros.
Nesse cenrio, foco precisamente em dois poetas, Emilio Westphalen e Juan Cunha,
que iro acrescentar mais informaes, mas tambm iniciar a segunda parte desse trabalho,
oferecendo material para a traduo.
O poeta Emilio Adolfo Westphalen Milano nasceu em 15 de julho de 1911 em Lima
e falece em 2001. Com apenas 22 anos, em 1933, publica seu primeiro livro Las nsulas
extraas. Depois, em 1935 publica Abolicin de la muerte que, juntamente com o primeiro
livro, responsvel pelo prestigio que ganhou como poeta. Esses dois livros compartem, como
afirma Ina Salazar no prlogo de Simulacro de sortilgios, con el surrealismo una f en la
palabra como fuerza libertadora (SALAZAR, 2009, p16). Esses dois livros contem poemas
com caractersticas surrealistas bem visveis que irei explorar.
Sua forte simpatia pelo surrealismo no refletiu em uma adeso ao movimento, porm
percebesse uma afinidade por toda sua obra potica. Cabe aqui indagarmos que sentido surrealista
inspira Westphalen em seu universo potico.
No livro Las nsulas a acumulao de frases desconexas e o jogo sonoro so caractersticas
marcantes. Seu experimento esta fundando na desarticulao sinttica. Segundo Chrystian
Zegarra (2005, p 82) o futurismo tambm foi um movimento relevante para Westphalen porque
nos poemas do livro Las nsulas pode-se perceber uma dinmica entre a rapidez e a lentido,
que opera como marco compositivo estrutural. Aqui podemos ver Westphal como questionador
dessa velocidade imposta pela sociedade moderna. Citando a Octavio Paz vemos com mais
clareza esse sentimento de que falamos:
La sociedad moderna, con su culto al trabajo, a la produccin e al consumo, ha hecho
del tiempo una crcel: la poesa rompe esa crcel. La poesa es una disipacin. As
nos revela que el tiempo lineal de la modernidad, el tiempo del progreso sin fin y del
211
trabajo sin fin, es un tiempo irreal. Lo real, dice la poesa es la paradoja del instante:
ese momento en que caben todos los tiempos y que dura ms que un parpadeo (PAZ,
163, p 164).
O poeta Juan Cunha nasceu em 03 de outubro de 1910 em Sauce de Llescas, uma pequena
cidade a 35 quilmetros de Montevidu. Aos 18 anos, Juan partiu para Montevidu e em 1929,
publica seu primeiro livro inteiro chamado El pjaro que vino de la noche com dinheiro que
seu pai mandava.
Juan Cunha no foi um homem merecidamente reconhecido em vida e foi esquecido
por longo tempo depois de morto. Como ele mesmo editava artesanalmente seus livros para
presentear seus amigos, muitas obras se estancaram a mesmo. Assim, faltam publicaes e os
anos que ficou sem publicar so responsveis pelo seu esquecimento. Morre em 07 de outubro
de 1985.
Desses poetas interessa pesquisar a potica surrealista de suas obras. Pretendo analisar
os elementos estticos que caracterizam estes poetas em relao ao surrealismo, como temas,
processos peculiares, formas, etc. Ver qual o resultado esttico dessa influncia surrealista e
como intervm na tarefa de traduo.
Dentre os vrios gneros, a traduo de poesia parece ser o mais controverso. Um poema
mais do que a forma em si, mais que o contedo desvinculado da forma, o modo como se
diz o que dito. Assim, no possvel isolar os significados expressos no poema, pois est
fundamentalmente ligado ao modo que expresso. Os significados vm acompanhados de um
tratamento de nvel fnico, rtmico e sinttico. O valor nico de um poema est na forma, na
qualidade esttica e no contedo. Por esse fato, que a traduo de poesia to controverso e
difcil. Como afirma Berman essa intraduzibilidade reflexo do valor do poema:
Que a poesia intraduzvel significa duas coisas: que ela no pode ser traduzida, por
causa dessa relao infinita que institui entre o som e o sentido, e que ela no o
deve ser, porque sua intraduzibilidade (assim como sua intangibilidade) constitui sua
verdade e seu valor. Dizer que um poema intraduzvel , no fundo, dizer que um
verdadeiro poema (BERMAN, 2007, p 40).
A dificuldade est em manter um equilbrio entre a forma e contedo. Como diz Haroldo
de Campos, no artigo Da traduo como criao e como crtica:
A traduo de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) antes de
tudo uma vivncia interior do mundo e da tcnica do traduzido. Como que se desmonta
e se remonta a mquina da criao, aquela fraglima beleza aparentemente intangvel
que nos oferece o produto acabado numa lngua estranha. E que, no entanto, se revela
212
suscetvel de uma vivisseco implacvel, que lhe revolve as entranhas, para traz-la
novamente luz num corpo lingstico diverso. Por isso mesmo a traduo crtica
(CAMPOS, 1992, p. 43).
O que quero propor uma reflexo sobre a traduo, a reflexo da traduo sobre si
mesma a partir da sua natureza de experincia (BERMAN, 2007, p 19).
Tentarei captar toda a complexidade do texto, influencias e contexto histrico-cultural
para mergulhar no seu mundo e conseguir translada-lo para a nossa lngua. A traduo um
modo de enriquecimento das culturas. Alm de contribuir para a divulgao da obra desses
dois poetas pouco conhecidos no Brasil e que no possuem at ento nenhuma obra potica
traduzida e publicada no Brasil.
Com essa pesquisa espera-se decifrar as caractersticas do surrealismo hispano-americano
provando que esse movimento teve caractersticas prprias em nosso continente. Alm disso,
apresentar a obra potica dos poetas uruguaio Juan Cunha e o peruano Emilio Adolfo Westphalen,
fato que ajudar a ver como se deu o movimento surrealista em seus respectivos pases.
Para concluir, proponho uma traduo comentada dos poemas selecionados desses dois
213
poetas. As vantagens esto no enriquecimento de se introduzir uma nova obra na nossa cultura,
tornando mais rico seu universo lingustico e alargando horizontes com a introduo de novos
estilos, outras expresses, ou seja, um outro modo de olhar.
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214
215
Gabriela, obra lanada com vinte mil exemplares - que se esgotam em quinze dias, recebe cinco
prmios literrios, somente no ano de 1959.
Em 1925, o Brasil vendeu no mercado externo mais de 64 mil toneladas de cacau. Nessa
poca, o coronelismo ainda se fazia presente nas plantaes de cacau, e certamente vigorava
em outras regies brasileiras, como no Rio Grande do Sul, nas charqueadas. Coronel seria o
ttulo concedido pela Guarda Nacional, s pessoas da elite capazes de arregimentar homens para
apoiar o governo em caso de revoltas ou guerras, mas com o tempo a palavra passou a designar
o chefe poltico local, homem de posses, geralmente proprietrio de terras ou comerciante.
Esses coronis ditavam regras, leis e acabavam por influenciar os costumes, as crenas e o
modo de agir do povo.
O estudo apresentado por este projeto visa contribuir para as pesquisas na rea da histria
e da literatura, traando um panorama de poca de acordo com as obras de Pedro Wayne e Jorge
Amado. Segundo Baccega (1995, p.89) s na histria que o homem existe e a literatura
nada mais que o discurso da existncia humana, das suas vrias possibilidades. Apresentar
os discursos do coronelismo e construir ficcionalmente a figura do coronel torna-se inovador ao
contrapor espaos geogrficos distintos, o sul e o nordeste do Brasil.
Baccega (1995, p. 66), ao tratar do discurso historiogrfico, afirma tambm que:
O que buscamos quando estudamos histria, quando procuramos conhecer o passado,
saber como os homens, em culturas diferentes, portanto com outros meios, lutaram
por seus valores; buscamos compreender o passado como construtor do nosso
presente, o qual j traz em si o futuro; buscamos avaliar, interpretar como ocorreram
as transformaes do homem no seu relacionamento com o mundo, no processo de
construo das sociedades.
A Histria e a Literatura, cada uma com suas peculiaridades, mantm uma estreita
relao. Essa relao permite traar um quadro mais rico do contexto social/texto ficcional,
como o caso do nosso foco da pesquisa, o coronelismo em dois espaos scio geogrficos
distintos. Nos ltimos anos, tem-se entendido a importncia da interdisciplinaridade entre as
reas, afinal, apesar de a literatura supor uma conscincia esttica, uma disciplina que trata,
antes de tudo, da realidade de quem escreve, trata do que poderia ter acontecido.
Ao contrrio, a narrativa histrica composta de seu aparato crtico e pelas notas de
rodap. Conforme afirma Prost (2008, p. 235):
As notas na margem inferior da pgina so essenciais para a histria: elas constituem
o sinal tangvel da argumentao. A prova s aceitvel se for verificvel. A verdade
no mbito da histria, conforme j afirmamos, aquilo que comprovado; no entanto,
s comprovado aquilo que possa ser verificado. O texto histrico serve-se, em
216
Ao tratar da riqueza do discurso literrio para o discurso histrico, Baccega afirma que a
literatura indispensvel para a compreenso da realidade, que caracteriza como uma dinmica
complexa e por vezes contraditria:
As questes colocadas no discurso literrio so questes do cotidiano, manifestadas
nos discursos do cotidiano, e a ele compete, exatamente, elevar essas questes a um
patamar superior, fazendo ver ao leitor que o que se apresenta como simples nada mais
que a simplificao s vezes ingnua, s vezes inconsciente, s vezes manipulada
complexidade da totalidade. Por isso, ele se caracteriza como o discurso das
possibilidades histricas; s ele capaz de revelar a dinmica complexa da realidade,
atravs de uma grande variedade de formas que, muitas vezes, se configuram como
contraditrias (BACCEGA, 1995, p. 76).
No caso da obra Gabriela, cravo e canela, publicada em 1958, Jorge Amado representa
a sociedade de Ilhus na poca transitria de 1925, um povo que compreendia o movimento
progressista que invadia cada vez mais seus hbitos e ideologias, mas sentia costumes e
pensamentos enraizados do at ento em vigor, o coronelismo. O discurso literrio do autor
permite a visualizao de um coronel j no mais desbravador ou de poder incontestvel, mas
uma figura que se depara com novas tradies, costumes e novas foras polticas, que acabam
por super-lo. Para Gualberto (1995, p. 94):
Foi assim que, no curso dos anos 1920, o coronelismo daria sinais claros de
esgotamento poltico. Ligado a uma sociedade pouco complexa, cujo funcionamento
era relativamente simples, ele era pouco vivel numa sociedade urbana que se
modernizava. Os coronis geriram a sociedade brasileira sem que houvesse normas,
atravs do arbtrio, da violncia e dos favores. Foram estas as formas de mediao
dos conflitos sociais e de satisfao das demandas pessoais. No momento em que essa
degradao tornava-se mais flagrante, novos personagens ganhavam destaque na cena
poltica.
217
Essa etapa de conquistas e lutas fez surgir homens com grande poder sobre a
terra e, consequentemente, com grande poder econmico. Atravs das plantaes de cacau, os
desbravadores fundaram cidades e vilarejos, acabando por reger tambm normas morais e de
218
conduta.
Na conquista inicial do espao, o desbravador era uma espcie de pioneiro que vivia
em equilbrio com esse espao ainda tomado por vastas reas de matas inexploradas.
Mas j era um portador da dinmica histrica, que foi assumida de vez pelo coronel.
Esse coronel superava a condio de simples conquistador de terras e assumia
a condio de proprietrio de terras, definindo como seu o espao conquistado
preestabelecendo o tipo de relaes econmicas e sociais que ali iria acontecer. Nesse
espao, o trabalhador se colocava no desconfortvel espao do perigo, pura luta pela
vida, pela sobrevivncia sob um mando absoluto (SOUSA, 2001, p. 87).
Coronel seria o ttulo concedido pela Guarda Nacional, s pessoas da elite
capazes de arregimentar homens para apoiar o governo em caso de revoltas ou guerras, mas
com o tempo a palavra passou a designar o chefe poltico local, homem de posses, geralmente
proprietrio de terras ou comerciante. Esses coronis ditavam regras, leis e acabavam por
influenciar os costumes, as crenas e o modo de agir do povo.
Os coronis da Guarda Nacional a esta altura um ttulo honorfico, j que as foras
armadas regulares desempenhavam todas as funes militares passaram a controlar
todo o processo poltico. Aqueles que j dominavam o poder local ganharam o primeiro
plano na cena poltica. O poder dos chefes locais fundadores da nossa vida poltica,
instituio central da sociedade associaram-se ao Estado de forma definitiva, atravs
de processos eleitorais fraudulentos (GUALBERTO, 1995, p. 55).
Na Repblica Velha, o sistema eleitoral era facilmente manipulado, especialmente
atravs do voto de cabresto, que consistia na compra de votos, em troca de bens materiais ou
favores. O voto de cabresto, alm de ser uma das principais marcas do coronelismo, contava
tambm, com o uso de capangas, utilizados para intimidar os eleitores.
Os coronis costumavam alterar votos, sumir com urnas e at falsificar documentos para
que pessoas pudessem votar vrias vezes, chegando at mesmo a utilizar nomes de falecidos nas
votaes. Essas fraudes permitiam que os coronis detivessem o poder por anos e estendessem
o mando e a hegemonia poltica para seus familiares ou outras pessoas de seu interesse.
Parece indiscutvel, pois, que o coronel, desde que chegou s cidades e assumiu o
comando do poder municipal, implantou uma estrutura regional to singular que
acabou por conformar a civilizao do cacau. Os componentes da estrutura, alis,
no permitem dvidas quanto civilizao. E, se foram inmeros os componentes
ainda acionados pelo coronel, como certos costumes, o tipo de habitao e o exerccio
pblico da administrao, no se pode esquecer a sua mobilidade entre a fazenda de
cacau e a cidade. E de tal maneira essa mobilidade se processou que, se o coronel por
219
um lado ruralizou a cidade, pelo outro urbanizou a fazenda (FILHO, 1978, p. 63).
A obra Xarqueada, de Pedro Wayne, publicada em 1937 e dedicada a rico Verssimo
e Jorge Amado, representa a vida saladeiril na provncia gacha. O ttulo do livro, grafado com
X, foi sugesto de Jorge Amado e Oswald de Andrade, conforme carta de ambos, escrita no Rio,
no carnaval de 1935.
Pedro Wayne foi um precursor na literatura rio-grandense, trazendo o elemento social
para sua obra, focalizando uma situao humana que existia no meio rural e que at ento no
era abordada pelos escritores regionais, que permaneciam no tema do Monarca das Coxilhas.
Xarqueada classificada como romance regional moderno do Rio Grande do Sul, abordando
todos os protagonistas do universo saladeril: o estancieiro, o capataz, os empregados com as
diversas funes da charqueada. A obra expe at mesmo a figura feminina nesse ambiente,
atravs da personagem Vera, esposa do estancieiro, e das personagens Daniela e Guriazinha.
Da mesma forma que a personagem Lus, Pedro Wayne trabalhou tambm como guardalivros na charqueada de seu sogro, retratando assim, com extrema veracidade, as cores e cheiros
da charqueada. Lus representa a possibilidade de mudanas e a esperana dos trabalhadores
saladeiris.
Se o tema central do romance gira em torno da experincia do guarda-livros que
se torna lder dos trabalhadores saladeiris, o romance envolve um contingente de
personagens e situaes tpicas de seus fazeres, permitindo uma observao dos
processos dinmicos do mundo rural rio-grandense, tomando como ponto privilegiado
de observao o espao da charqueada, base da economia gacha (MOREIRA, 2007,
p. 167).
220
221
seletivo, em que o grupo cultural seleciona os elementos que quer absorver e rejeita os que no
quer absorver e mantm assim a sua identidade (2003, p.31). Para estudar a reconfigurao do
povo de Ilhus, no momento transitrio da dcada de 1920, necessrio estar ciente de que:
Um sistema nunca um sistema eterno, permanente, ele se transforma continuamente.
H a necessidade de se compreender a presena da histria, criando uma dinmica
dentro do processo cultural. E a a questo da integridade cultural, da identidade
prpria, da genuinidade cultural continuam existindo, mas seguramente numa outra
dimenso, numa dimenso em que no existe fixao no passado, mas em que a
identidade entendida tambm dentro de um processo histrico em transformao
(POZENATO, 2003, p. 28).
Gabriela, cravo e canela, obra por vezes tratada como o Crepsculo dos coronis,
um dos romances de Jorge Amado mais famoso e difundido pelo mundo atravs de novelas,
seriados, histrias em quadrinhos, msicas, etc., contando com vinte e uma tradues para as
mais diversas lnguas, nos mais diversos pases. , tambm, um dos romances mais reconhecidos,
com cinco premiaes somente no ano de 1959, um ano aps seu lanamento. Uma das ltimas
adaptaes da obra foi realizada pela Tv Globo, com um seriado em 2012. Esse fascnio por
Gabriela no difcil de entender, j que o sucesso imediato da obra fez com que os primeiros
20.000 exemplares se esgotassem em 15 dias.
Classificado como um romance de costumes, Gabriela mostra a cidade invadida pelo
progresso, quando o mando dos coronis ameaado e substitudo por polticos mais versteis.
A narrativa gira em torno de dois conflitos: o primeiro, a luta poltica entre o coronel Ramiro
Bastos e o exportador de cacau Mundinho Falco; o segundo, o caso amoroso de Nacib com
Gabriela.
Jorge Amado, que se considera um romancista de vagabundos, putas e trabalhadores,
vivenciou a realidade das fazendas de cacau e sentiu de perto a violncia das lutas por conquista
de terras, o sofrimento dos trabalhadores e o poder dos coronis que praticamente fundaram a
regio de Ilhus. Certamente por essa vivncia marcante e seu forte engajamento poltico, o
autor opta por representar em suas obras o povo miservel, explorado e oprimido.
Em Gabriela, Jorge Amado apresenta um coronel opressor que se v diante de novas
foras polticas - que contestam seu mtodo, seu poder absoluto, sua forma de resolver as mais
diversas situaes com violncia, etc. Foras to marcantes, que juntamente com o progresso
e a modernidade inevitveis, acabam por superar a figura de um coronel at ento soberano e
inquestionvel.
O narrador do romance deixa evidente, logo no incio da obra, que a populao tem
conscincia do progresso que invade a cidade e vai modificando no s a fisionomia de Ilhus,
222
Ao afirmar que a obra literria permite desvendar processos histricos, em Gabriela,
a discusso do coronelismo expe desde a origem da nomenclatura desses coronis at a sua
importncia para a formao das cidades e seu poder absoluto e incontestvel. A populao de
Ilhus, apesar da conscincia do progresso e da necessidade de mudanas, tambm considera
sua origem e desenvolvimento aos desbravadores os atuais coronis. Especialmente as
personagens que vivenciaram de alguma forma esse desbravamento e luta pela posse de terras,
acabam defendendo a administrao e decises do coronel Ramiro Bastos, demorando mais
para aceitar as inovaes trazidas pela figura de Mundinho Falco. O romance de Jorge Amado
expe um coronel acostumado ao mando absoluto, a dar ordens e a no encontrar obstculos nas
suas decises, na sua forma de administrar a cidade de Ilhus e regio.
O coronelismo foi importante para o desenvolvimento da cidade de Ilhus, j que o coronel,
antes o desbravador daquelas terras, possibilita a formao de municpios, movimentando a
economia e auxiliando a populao, tornando terras, antes inabitveis, em vilas com certo grau
de organizao.
Apesar desse carter fundador, o coronelismo baseou-se no mando absoluto,
contribuindo, muitas vezes, para o atraso das cidades e a dificuldade de aceitar o novo. Os
coronis, ao defenderem a permanncia de certos costumes e tradies, garantiam tambm a
sua permanncia no poder.
Com a proclamao do Estado Novo e a industrializao, novas foras polticas surgem
para confrontar a figura do coronel. Pode-se ento, falar da superao dos coronis, que apesar
de no terem desaparecido, obrigaram-se a adaptar-se ao progresso e s mudanas impostas
pela modernizao.
223
Referncias
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela: crnica de uma cidade do interior. 65. ed. So
Paulo: Record, 1983.
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela: crnica de uma cidade do interior. 2. ed. So Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso. So Paulo: tica, 1995.
CESAR, Guilhermino. RS: Economia e poltica. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
FILHO, Adonias. Sul da Bahia: cho de cacau. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
1978.
GUALBERTO, Joo. A inveno do coronel: ensaio sobre as razes do imaginrio poltico
brasileiro. Vitria, ES: UFES Secretaria de Produo e Difuso Cultural, 1995.
MOREIRA, Maria Eunice. Charqueadas e Xarqueada: a vida saladeril na provncia gacha.
In: Letras de Hoje: Porto Alegre, v. 42, n. 2, p. 161-172, junho, 2007.
POZENATO, Jos Clemente. Processos culturais: reflexes sobre a dinmica cultural. Caxias
do Sul: Educs, 2003.
PROST, Antoine. Doze lies sobre a histria. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2008.
SOUSA, Antnio Pereira. Tenses de tempo: a saga do cacau na fico de Jorge Amado. Ilhus:
Editus, 2001.
WAYNE, Pedro. Xarqueada. Porto Alegre: IEL/Movimento, 1982.
224
INTRODUO
Para a realizao de um bom trabalho e de uma eficiente mediao de leitura por parte
da pesquisadora no grupo de leitores, necessrio que se conhea a relao que os jovens tm
com a leitura, a realidade leitora do Brasil e a importncia que a biblioteca escolar tem no
processo de aquisio e de permanncia do hbito leitor em crianas e adolescentes.
Para conhecer esses jovens leitores, a presente pesquisa ser desenvolvida em um mbito
escolar conhecido da pesquisadora e baseado em um trabalho realizado durante trs anos como
professora de lngua portuguesa de sries finais do ensino fundamental de uma escola municipal
localizada em So Jos do Herval/RS.
Atravs deste trabalho, a pesquisadora teve contato com o pblico leitor da instituio
e, por essa razo, sabe que a interveno sobre o aspecto da leitura neste local se faz muito
necessria.
Por essa razo, ser, primeiramente, realizado um estudo bibliogrfico dividido em trs
partes, em primeiro lugar ser feito um estudo sobre a importncia da escola e do professor
como mediador de leitura na biblioteca escolar, abordando de que forma o professor e a escola
podem influenciar o aluno na aquisio do prazer em ler, para isso sero utilizados os autores
Marisa Lajolo (2009), Graa Paulino e Rildo Cosson (2009) e Ezequiel da Silva (2009), que
tratam desta relao. Em segundo lugar, ser tratada a questo do letramento literrio, buscando
compreender de que forma a literatura se faz presente e sua importncia nessa relao leitor e
fruio de leitura, baseando-se novamente em Paulino e Cosson (2009), Maria Ins Campos
(2003), Regina Ziberman (2009) e Luiza Motta (2010). Em terceiro lugar, atravs da Sociologia
da Leitura, ser abordada a mediao do leitor, tendo, portanto, o leitor como principal foco da
leitura utilizando Michle Petit (2008), Jorge Larrosa (2002) e Tania Rsing (2009).
Para finalizar, ser descrita a metodologia do trabalho, expondo cada passo que ser
225
realizado na pesquisa, descrevendo o universo no qual ser inserido, bem como as atividades
que sero propostas ao grupo de leitores. Buscando, atravs deste projeto apresentar uma
possvel concluso, uma vez que o estudo se encontra em fase inicial, no possuindo, por esta
razo, resultados preliminares e to pouco conclusivos.
226
Dessa maneira, encontra-se alm do papel da escola como grande incentivadora da leitura,
o papel do professor que, apesar do curto espao de tempo entre as aulas, precisa incentivar seus
alunos a lerem, para que atravs dessa leitura, encontrarem um novo mundo, criando com ele
diferentes formas de pensar e de agir, porque segundo Lajolo (2009), as experincias de leitura
que a escola deve patrocinar precisam ter como objetivo capacitar os alunos para que, fora da
escola, lidem competentemente com a imprevisibilidade das situaes de leitura (no sentido
amplo e no sentido da expresso) exigidas pela vida social. (LAJOLO, 2009, p. 105)
Portanto, a partir de sua prtica diria atravs de suas disciplinas, os docentes tambm
possuem o papel de mediadores, pois, atravs dessa mediao e com a troca de experincias
entre professor-aluno-texto, que os alunos se formaro cidados de qualidade para o mundo em
que vivem.
Tratando os professores como mediadores de leitura, deve-se ressaltar um ponto
importante, o qual diz respeito ao prazer de ler existente no prprio professor, pois segundo
afirma com maestria Silva (2009), o professor l e faz ler os seus alunos. (SILVA, 2009,
p. 28). De modo que o professor que demonstra para seus alunos seus hbitos de leitura e a
maneira como se d sua relao com o ler, acaba servindo de exemplo para os demais.
Rsing (2009), por seu turno, sintetiza muito bem a importncia do professor como
mediador:
O importante que o professor, no exerccio da docncia, em sendo um leitor, aprecie
as peculiaridades das linguagens e, assim, passe essa paixo no processo de formao
de leitores [...] importante que tenha prazer na leitura de textos literrios, sejam eles
impressos ou apresentados em distintos suportes. (RSING, 2009, p. 134-135)
Alm disso, o professor, atravs da leitura, possui uma forma de interagir e atuar com
seus alunos, porque mesmo que no possa parecer, o professor sintetiza em sua imagem as
leituras e releituras que as crianas fazem em suas primeiras experincias de vida. Portanto,
atravs das leituras que fazem em sala de aula e por vezes fora dela por indicao do professor,
o aluno inicia seu processo de construo de valores e at mesmo sua construo de carter.
Alm da sala de aula, existem outros ambientes na escola que contribuem para a ligao
do leitor com a leitura um deles se encontra na biblioteca. No espao fsico escolar, existe, em
sua grande maioria, um espao destinado exclusivamente leitura e aos livros. Segundo Silva
(2009):
227
228
LETRAMENTO LITERRIO
Logo aps o contato do leitor com a leitura atravs dos mediadores necessrio
compreender a relevncia que o texto possui para esse leitor e, principalmente, a relevncia
que a leitura tem na sociedade. Ziberman (2009) descreve a relevncia da leitura na sociedade
moderna a partir da:
[...] funo que vem a exercer, como propiciadora do fortalecimento de um contingente
de consumidores necessrios ao mercado da indstria do livro e da cultura, e pelo
papel que vem desempenhar na educao, j que se coloca na base da aprendizagem
e acompanha os progressos dessa ltima durante suas vrias etapas. (ZIBERMAN,
2009, p. 24)
229
Tratando esse sujeito moderno como um leitor em potencial, importante ressaltar que
esse leitor se mostra diferente com o passar dos anos, de forma que o leitor atual se comporta
de forma distinta que seus antecessores na escola ou como os leitores adolescentes de dez anos
atrs.
Pensando em leitores jovens, Rsing (2009) descreve-os como ligados a vrias fontes
de informao ao mesmo tempo e com diferentes nveis de ateno. So espontneos em suas
manifestaes em meio eletrnico onde explicitam ideias, emoes, comentrios crticos..
(RSING, 2009, p. 130)
A rotina enfrentada pelos cidados no mundo atual faz com que haja reflexos dessa
230
rotina nesses sujeitos em sala de aula, j que, para esses jovens, tudo passa muito rpido, todo o
estmulo que recebem faz com que retenham sua ateno por poucos momentos, tudo se torna
fugaz e efmero. Em relao leitura, no existe muito interesse, j que, em teoria, essa ao
necessita de concentrao e dedicao, aes incomuns em um tempo onde toda e qualquer
informao est ao alcance de um simples clique.
O prazer de ler, ao contrrio do que muitas vezes se acredita e que erroneamente
praticado, est longe da leitura por obrigao. Para os leitores jovens, a obrigao j se mostra
por si s como uma barreira. Acredita-se que so necessrios muitos meios para que a interao
leitor-texto acontea, porm, segundo o que afirma a antroploga francesa Petit (2006), o
amor pela leitura muitas vezes nasce do desejo de roubar o objeto que embeleza o outro, pra
juntar-se a ele3.(traduo nossa). (PETIT, 2006, p. 101). Dessa maneira, apenas a imagem de
um ser influente para o leitor carregando consigo um livro serve como um mediador de leitura,
despertando na criana e no jovem a curiosidade pelo assunto que est sendo lido pelo outro e
que aps essa experincia possivelmente o interessar tambm.
Ainda de acordo com Petit (2008), a leitura praticada atualmente pelos jovens leitores
[...] convida a outras formas de vnculo social, a outras formas de compartilhar, de socializar,
diferentes daquelas em que todos se unem, como se fossem um s homem, ao redor de um chefe
ou de uma bandeira.. (PETIT, 2008, p. 94). Considerando, portanto, que a leitura dos jovens
se concebe atravs da socializao de seus dramas, encontrando por essa razo suas vivncias
refletidas nas obras em que leem. Para fazer uma boa descrio dessas crianas novamente
Petit (2008) afirma que as crianas interrogam os livros, sempre buscando o que neles est
secretamente em consonncia com suas prprias perguntas, o que quando ocorre se converte em
um presente para a criana que l, j que v ali refletido seus dramas pessoais.
Concluindo, portanto, a partir dos conceitos estudados at ento, que a leitura, alm
de ser considerada em sua importncia, deve tambm ter seu espao garantido na sociedade
atual; para tanto se mostram necessrios programas que incentivem leitura entre e para jovens
atravs de mediaes para o prazer, pelo simples deleite e, tambm, o prazer pelo contato e
aquisio de conhecimento, para que assim o leitor tenha conscincia do papel da leitura em
sua formao como cidado.
231
localizado ao norte do estado do Rio Grande do Sul que possui uma populao de 2.204
habitantes. Nesta escola, aps alguns anos de trabalho, foi constatada uma dificuldade presente
nos alunos, especialmente os alunos dos anos finais do Ensino Fundamental, pois, apesar de
terem uma biblioteca em boas condies de uso e bem equipada, no possuem o hbito da
leitura e to pouco desfrutam do perodo dedicado leitura e retirada de livros, que acontece
quinzenalmente. A escolha pela biblioteca, para servir como ambiente de aplicao se d pelo
fato que os sujeitos da pesquisa a frequentam quinzenalmente e no tm um bom aproveitamento
deste tempo para realizar seu perodo de leitura com prazer, visto que alguns dos alunos desta
escola veem esta atividade como desnecessria e entediante. Alm disso, a biblioteca se mostra
em timo estado de conservao, com espao amplo para que as turmas que a frequentam
possam ter fcil acesso a todos os livros disponveis, livros estes que se encontram, tambm,
em bom estado de conservao e por esta razo no deveria estar sendo to desmerecida pelos
alunos, como de fato acontece.
Baseada nessa situao problema, pretende-se criar um grupo de leitura, em turno inverso
ao de funcionamento da escola. Esta coleta de dados ser configurada como de amostragem
no-probabilstica, pois para Prodanov e Freitas (2009), o pesquisador seleciona os elementos
a que tem acesso, admitindo que esses possam, de alguma forma, representar o universo.
(PRODANOV E FREITAS, 2009, p. 109). Dessa maneira, este grupo ser composto por alunos
dos anos finais do Ensino Fundamental de 5 ano a 8 srie4- totalizando em mdia 150 alunos
no total e estimando a participao de 20 a 30 alunos para este grupo de mediao de leitura,
conforme a disposio de transporte e interesse na participao.
O trabalho de pesquisa ser iniciando por uma pesquisa exploratria, j que neste ponto
ser realizado um levantamento referente situao da leitura no Brasil e de como esta leitura
recebida pelos jovens de ensino fundamental. Sendo, portanto, bibliogrfica, pois conforme
Prodanov e Freitas (2009) a pesquisa bibliogrfica elaborada a partir de material j publicado
[...] com o objetivo de colocar o pesquisador em contato direto com todo o material j escrito
sobre o assunto da pesquisa. (PRODANOV E FREITAS, 2009, p. 54). Para tanto, a base
bibliogrfica desta dissertao ser nos postulados de Petit (2008), Larrosa (2003).
Apresentada a realidade da leitura para jovens e principalmente para jovens brasileiros
atravs da pesquisa bibliogrfica, a pesquisa se torna mais ativa, tomando caracterstica de
pesquisa qualitativa, pois caracterizado novamente em Prodanov e Freitas (2009) a pesquisa
tem o ambiente como fonte direta de dados. O pesquisador mantm contato direto com o
ambiente e o objeto de estudo em questo, necessitando um trabalho mais intensivo de campo.
4 A escola passou por adaptaes curriculares tendo sido implantado o ensino fundamental de nove anos no ano
de 2007, por esta razo o currculo ainda possui turmas configuradas no antigo sistema de oito anos e turmas novas
nesta reformulao.
232
(PRODANOV E FREITAS, 2009, p. 81). Com a criao do grupo de leitura em turno inverso,
necessrio conhecer a realidade dos alunos envolvidos no grupo e sua relao at o momento
com a leitura, para o levantamento destes dados, sero realizados questionrios com perguntas
abertas e fechadas para assim caracterizar o grupo como um todo em suas especificidades.
Novamente, no mbito da pesquisa bibliogrfica, ser realizado, tambm, um
levantamento dos livros ofertados pela biblioteca estudada, buscando descobrir se est
de acordo com os programas governamentais de incentivo leitura e ao aprimoramento do
acervo bibliogrfico, tais como FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao) e
especificamente o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola). Alm do levantamento do
acervo de livros da biblioteca, ser feita uma listagem dos possveis dispositivos que podero
ser utilizados posteriormente na prtica leitora, tais como computadores, aparelhos de DVDs,
projetores, acesso internet, todos estes itens em nmero suficiente e bom estado para uso do
grupo em questo.
Como o objetivo deste trabalho aproximar os alunos da leitura e assim despert-los
para o prazer de ler, aps as sondagens realizadas, a pesquisadora entrar em contato com este
grupo, fazendo o trabalho de mediadora entre os livros e os leitores, caracterizando assim a
pesquisa como uma pesquisa-ao de modo que, para Prodanov e Freitas (2009) a pesquisa
ao acontece quando h interesse coletivo na resoluo de um problema [...] com a pesquisa
ao, os pesquisadores pretendem desempenhar um papel ativo na prpria realidade dos fatos
observados. (PRODANOV E FREITAS, 2009, p. 76-77). Para tanto, o grupo de leitura criado
como centro desta pesquisa-ao se reunir semanalmente na biblioteca escolar, onde sero
realizadas diferentes prticas de leituras, a saber: coletivas mediadas e outras atividades propostas
pela pesquisadora visando interao dos alunos com as histrias lidas, pois, segundo Thiollent
(1988), os pesquisadores desempenham um papel ativo no equacionamento dos problemas
encontrados, no acompanhamento e na avaliao das aes desencadeadas em funo dos
problemas.. (THIOLLENT, 1988, p.15).
Com a participao semanal dos alunos, este grupo ser observado a princpio durante
trs meses e, a partir destas mediaes e das observaes feitas pela pesquisadora, ser feita
uma avaliao dos resultados, tomando como base o interesse e a pr-disposio apresentada
por eles ao iniciar o processo, durante o desenvolvimento e ao final. Por esta razo, como
adverte Thiollent (1988), a pesquisa-ao implica em pesquisadores que tm o que dizer e
o que fazer, uma vez que no se trata de simples levantamento de dados ou de relatrios a
serem arquivados. Com a pesquisa-ao os pesquisadores pretendem desempenhar um papel
ativo na prpria realidade, dos fatos observados.. (THIOLLENT, 1988, p. 16). Portanto, a
pesquisadora espera, por esse carter ativo, poder constatar ao final do processo da pesquisaao, uma mudana de atitude dos leitores estudados.
233
CONCLUSO
Apesar de encontrar-se em fase de inicial, conclui-se, a partir do estudado at ento, que
o trabalho se mostra de suma importncia para a comunidade escolar na qual est inserida, bem
como para a sociedade em geral, visto que se confirme o esperado e que os alunos envolvidos
se tornem leitores freqentes, os mesmos serviro de exemplo para os demais estudantes,
convertendo-se em mediadores de leitura para os demais, alm de se tornarem cidados mais
crticos e conscientes de seu papel como educando e como seres atuantes na sociedade em que
vivem.
REFERNCIAS
CAMPOS, M. I. B. Ensinar o prazer de ler. 3 ed. So Paulo: Olho dgua, 2003.
GIROTTO, C. G. G. S.; SOUZA, R. J. de. A hora do conto: desafios da sala de aula e da biblioteca
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T. M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. So Paulo: Global editora, 2009.
LARROSA, J. Notas sobre a experincia e o saber de experincia. In.: Revista Brasileira de
Educao, n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002.
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PETIT, M. Os jovens e a leitura: Uma nova perspectiva. Traduo Celina Olga de Souza. So
Paulo: Ed. 34, 2008.
234
235
INTRODUO
Theres a sign on the wall, but she wants to be sure
Cause you know sometimes words have two meanings
(PAGE e PLANT, 1971, fx. 4)
A msica da banda Led Zeppelin, epgrafe acima, da dcada de setenta, mas nunca
esteve to atual quando se analisa a linguagem utilizada nos dias de hoje nos chats da internet,
seja pela falta de contexto face a face, seja pela representao grfica das palavras, ou pela
entonao da voz. Como o aviso na parede que aparece descrito na msica, s vezes as pessoas
no esto totalmente certas quanto mensagem recebida pelos meios digitais, pois l do mesmo
modo como na letra da msica, as palavras e expresses usadas podem ter dois sentidos, seno
mais.
Assim, este estudo prope-se a analisar que elementos lingusticos se tornam mais
relevantes no momento da leitura interpretao/compreenso do texto lido, no chat da rede
social Facebook, estabelecendo uma relao de interdependncia entre contexto e linguagem
utilizada.
Para analisar as trocas de mensagens on line, o presente trabalho parte do conceito de
contexto tal como consta em um dicionrio geral da lngua, aditando a esse conceito genrico
de contexto, a focalizao proposta por Van Dijk (2012). O amlgama terico fez-se necessrio
para que se pudesse analisar o discurso contido nas mensagens de texto do Facebook, pois nesse
meio digital preciso que se considere uma configurao contextual varivel, ou seja, preciso
ter bem presente que o contexto no tem uma caracterizao rgida e muito menos fixa. Para dar
conta dessa possibilidade, Van Dijk prope os modelos de contexto que so entendidos por ele
como: a interface geral entre sociedade, situao, interao e discurso (VAN DIJK, 2012).
Tambm foram retomados os conceitos de modelos de contexto, propostos por Marcuschi
(2008 e 2010), em que o autor aborda o contexto enquanto a base, que liga o texto ao discurso,
236
FUNDAMENTAO TERICA
Conceito de Contexto
A palavra contexto meio vaga, fluida, podendo ter vrios sentidos, alm de ser utilizada em
muitas disciplinas desde a biologia, passando pela sociologia e antropologia at a lingustica.
Se, por exemplo, algum pesquisar o termo contexto no Google, encontrar aproximadamente
sessenta e um milhes e seiscentos mil ocorrncias na internet, para a palavra escrita com a
grafia em portugus; se fizer a mesma busca utilizando o termo context, a palavra em lngua
inglesa, esse nmero sobe para duzentos e setenta e oito milhes de ocorrncias. Por isso, nada
mais coerente do que iniciar um estudo desta natureza pela definio do termo contexto. Assim,
de acordo com o verbete encontrado no Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa, h oito
definies possveis, as quais so listadas a seguir:
Contexto (s) [Do lat. Contextu.] S.m. 1. Encadeamento das ideias dum escrito. 2. V.
contextura (1): Todo o contexto enfim de sua vida,/Por diversos pedaos repartida.
(Fr. Francisco de S. Carlos, A Assuno, p. 24). 3. Aquilo que constitui o texto do seu
todo; composio. 4.Realidade em que se insere determinado fato ou acontecimento:
A incorporao do romantismo ao contexto nacional haveria de processar-se em
termos de uma conciliao. (Paulo Mercadante, A Conscincia Conservadora no
Brasil, p.183) 5. Argumento, assunto. 6. Semiol. V. referente. (3) 7. E. Ling. Ambiente
(9). 8. E. Ling. Numa situao de comunicao, caractersticas extralingusticas
que determinam a produo lingustica, como, por ex., o grau de formalidade ou de
intimidade entre os falantes. (FERREIRA, 2010, p. 570)
Ao se ler as oito definies presentes no dicionrio utilizado para este estudo tem-se a
impresso de que a maioria delas o considera como um recorte da realidade fsica ou social,
fixo, estratificado, mas importante salientar que, no caso considerado, o contexto se apresenta
de forma flexvel, dinmica e autoconfigurvel, ou seja, caso fosse necessrio optar por uma das
definies do dicionrio citado, a escolhida seria a seguinte: Aquilo que constitui o texto do
237
seu todo (FERREIRA, 2010), por considerar que h mais que analisar do que o prprio texto,
este contexto se aproximaria de forma mais adequada.
desse modo, recorrendo a dicionrios gerais da lngua, que Van Dijk (2012) introduz
suas ponderaes a respeito do que seja contexto, mostrando que apesar de haver muitos sentidos
para a palavra, h que se focalizar sua anlise em relao produo textual, no confundindo
o conceito de contexto com o de pano de fundo genrico. Segundo o autor:
H milhares de livros, em muitas disciplinas, em cujos ttulos aparece a palavra
contexto, mas a grande maioria desses estudos usa a palavra informalmente, como
ambiente circundante, condies, situao ou pano de fundo de carter
social, poltico, geogrfico ou econmico, mas quase nunca no sentido especfico de
contexto do texto ou da conversa. (VAN DIJK, 2012, p.9)
Ou seja, Van Dijk no nega a definio proposta pelo dicionrio geral, no entanto cr
que a definio fornecida vaga demais para a anlise da fala, ou do discurso. Levando em
considerao a compreenso do texto, ele defende que se deve considerar a estruturao de
modelos de contextos pragmticos especficos para a interao verbal.
Ou seja, os modelos de contexto do conta da variao pessoal e social ao mesmo tempo,
portanto tambm do estilo e de quaisquer outras formas de variao significativa de
lngua. E, desse modo, como os participantes podem representar subjetivamente no
s os aspectos relevantes-para-eles do evento comunicativo, mas tambm estruturas
sociais mais amplas, tais como grupos, organizaes, e instituies, os modelos de
contexto so a interface geral entre sociedade, situao interao e discurso.
Marcuschi (2008) tambm relaciona a ideia de contexto com a de fonte do sentido do
texto, sendo impossvel separar o texto do seu contexto discursivo. Para ele, citando Coutinho
(2004), o discurso o objeto do dizer e visto como prtica lingustica codificada, associada a
uma prtica social (scio-institucional) historicamente situada (Ibid., p. 43). Para Marcuschi,
o texto um objeto de figura, uma esquematizao que conduz a uma figura ou figurao
(MARCUSCHI, 2008, p. 84); e entre os dois est o gnero que faz a ligao entre o texto e o
discurso, novamente, citando Coutinho, reproduz a seguinte citao:
Gnero so modelos correspondentes a formas sociais reconhecveis nas situaes
de comunicao em que ocorrem. Sua estabilidade relativa ao momento histricosocial em que surge e circula (Coutinho, 2004, 35-37)
238
conceito de contexto em relao tecnologia digital, listando uma srie de gneros j presentes
em ambientes virtuais.
Os gneros emergentes nessa nova tecnologia so variados, mas a maioria deles tem
similaridades em outros ambientes, tanto na oralidade como na escrita. Contudo,
sequer se consolidaram, esses gneros eletrnicos j provocam polmicas quanto
natureza e a proporo de seu impacto na linguagem e na vida social. Isso porque
os ambientes virtuais so extremamente versteis e hoje competem, em importncia,
entre as atividades comunicativas, ao lado do papel e do som. (MARCUSCHI, 2010,
p. 15)
Considerando o ambiente virtual como uma tecnologia que propiciou a emergncia de
vrios gneros, este estudo utiliza o modelo de Crystal (2005) para restringir ainda mais a rea
de anlise proposta.
Assim que a internet passou a fazer parte da vida diria das pessoas, a escrita nesse meio
se tornou mais informal, de acordo com Crystal (2005). Os e-mails so um timo exemplo de
239
fala/escrita, algo que no se caracteriza nem como linguagem falada e nem como linguagem
escrita.
Quando Homer Simpson pergunta aos amigos o que um e-mail?, eles coam a
cabea. Lenny responde: uma coisa de computador, como, hn, uma carta eltrica.
Carl acrescenta: Ou um telefonema silencioso. E quando levamos em considerao
as outras funes da Internet, a dificuldade de se chegar a uma caracterizao simples
em termos de fala ou escrita convencional se torna ainda maior. (CRYSTAL, 2005,
p.77)
Mas, ao mesmo tempo, Crystal (2005) acredita que essas interaes podem existir em
conjunto umas com as outras, no necessariamente de modo uniforme, o que em se tratando
de contexto, algo perfeitamente vivel, se ele for verstil e flexvel, como a linguagem est
sendo em cada uma das situaes interativas consideradas. Assim, se entendido enquanto gnero
narrativo surgido num dado suporte, pode-se apreender o modo como as pessoas adequam sua
linguagem para entender e serem entendidas, inclusive, na interao via computador.
Muitas das expectativas e prticas que associamos lngua falada e escrita no se
realizam mais, e novas oportunidades surgem. Portanto, as pessoas percebem que
tm de lidar com esse potencial de comunicao disponvel e se deparam, ento, com
um problema, Elas precisam aprender as regras de como se comunicar via e-mail,
socializar-se em grupos de bate-papo, construir uma pgina da web que seja funcional
240
241
242
Facebook, e se utilizam de pginas na rede social para divulgar seus produtos e servios.
O chat no sincrnico, por sua vez, utilizado quando o usurio publica textos, fotos e
vdeos em seu perfil, podendo escolher por meio de configuraes na publicao, quem poder
ver e tambm comentar o que publicou.
O foco deste estudo, entretanto, no a rede social em si, e sim a linguagem utilizada
para a comunicao por meio dela. Em primeiro lugar, analisou-se a linguagem presente no
chat de mensagens instantneas, e o modo como os smiles, as repeties de letras e de sinais
de pontuao interagem com o texto convencional. Para tanto, foram utilizados dois trechos de
conversas online, um com poucas incidncias dessas novas formas de representao, e outro,
em que os smiles e repeties complementam a linguagem do texto, gerando sentido.
28/04/2013
Falante 1
qual a boa pra hj?
21:37
Falante 2
domingo sempre assim... dia de descanso, programa slvio santos
rsrs
pelo menos eu tenho TV, n
^_^
21:47
Falante 1
no sei pq, mas eu no te invejo
ahuahaa
[...]
23:17
Falante 1
q tdio... e eu nem tenho tv
23:17
Falante 2
lembro de algum ter comentado antes q no me invejava pelo programa q eu tava
vendo
tsc
ningum mandou terminar todas as suas leituras
rs
23:17
Falante 1
eu quis dizer que com tv meu tdio seria pior
auhauaah
23:18
243
Falante 2
hahaha
vdd
li mal
23:18
Falante 1
rsrs
Nas conversas do chat foi possvel observar a incidncia de repeties de letras, omisses
de vogais e um smile. Na primeira mensagem do Falante 2 (21:17), aps citar um trecho da
msica Domingo, da banda Tits, ele utiliza duas grafias incomuns rsrs e ^_^ . A primeira, uma
representao de risos, em tom de brincadeira; a segunda, um smile, representando uma pessoa
rindo com muita intensidade - os sinais circunflexos representam olhos fechados e o travesso
representa a boca. Com isso, nesse trecho, o Falante 2 sinaliza ao Falante 1 que est brincando,
fazendo uma piada. O trecho da msica tambm importante, porque da forma como foi citada,
sem referncia ao (compositor, cantor) artista, tem-se a impresso que o Falante 2, acreditava
que o Falante 1 reconheceria o trecho e entenderia a piada.
Posterior a isso, a vez do Falante 1 (21:47) tomar a palavra, ele rebate a brincadeira
feita anteriormente e utiliza em sua mensagem a abreviatura pq e o neologismo ahuahaa. A
primeira significa a expresso porque, que na grafia da internet escrita com essas duas letras,
todas as vezes em que a expresso aparece. Isso se d em funo da comunicao virtual desse
tipo primar pela velocidade na digitao, tentando imprimir ao texto o dinamismo da fala.
Essa omisso de letras tambm aparece posteriormente na expresso vdd que representa a
palavra verdade. A grafia ahuahaa representa o som da risada de uma pessoa, significando
uma intensificao da risada anterior e pode variar de intensidade, dependendo da extenso
com que for grafada. Nota-se tambm que a falta de pontuao, geralmente, no compromete
o entendimento das mensagens, e que cada nova linha de escrita representa a separao de
sentenas, como fariam os sinais de pontuao.
Na segunda parte da conversa, o Falante 1 (23:17) reclama do tdio e menciona de novo
o fato de no ter televiso em casa: e eu nem tenho TV; entretanto, o Falante 2 entende que o
aparelho de televiso ajudaria o Falante 1 a passar o tempo, sentido contrrio ao pretendido pelo
autor da mensagem. Nesse caso, pode-se constatar que numa interao face a face, a entonao,
ou uma expresso facial, emitida pelo produtor da mensagem e captada pelo receptor, atuaria
como um elemento fundamental para a intercompreenso.
244
MENINA
criei um ask s pra poder perguntar coisas pra um menino :)
22:50
MENINO
hauahuaha
q diver
mas no pode ser annimo?
22:51
MENINA
pode :/ mas eu s queria um motivo pra justificar
que eu tenha criado uma coisa dessas
hdushdushudhsudhsudhusdushd
22:51
MENINO
uahuahahauau
eu ia te perguntar alguma coisa l
22:52
MENINA
ihhhhhhhhhh
l vem
hahah
22:54
MENINO
mas como no achei nenhuma pergunta eu desisti
22:54
MENINA
:(
Nessa outra conversa, a presena de smiles mais frequente, a Menina os utiliza em
quase todas as mensagens. Na primeira mensagem, ela introduz uma nova forma de interao
pelo Facebook, quando escreve criei um ask s pra perguntar coisas pra um menino, no caso,
ela se refere a um aplicativo chamado Ask.fm que pode ser incorporado rede social pelo usurio,
este aplicativo ou app, na linguagem dos internautas consiste em uma espcie de chat no
sincrnico em que os usurios fazem perguntas uns para os outros, de forma aberta aos demais
usurios e no utilizando dispositivos virtuais de mensagens instantneas. Na mensagem, a
usuria utiliza um smile sorrindo, que pode significar orgulho ou piada.
O Menino (22:50) acha divertida a atitude da menina ao esclarecer que utiliza o aplicativo,
e para isso usa a palavra diver, ou seja, a metade da palavra divertido. Novamente, aparece a
reduo de palavras, em parte, para maximizar a velocidade da digitao ou a pressa.
245
O outro smile que a Menina (22:51) usa (:/), pode ser compreendido como um sorriso
embaraado, expressando um pouco de vergonha, por considerar que o aplicativo seja bobo
ou que o menino v caoar dela. Em seguida, ela coloca a interjeio de risos bastante extensa
como se estivesse gargalhando. Nota-se que essa risada tem muito poucas vogais, mas essa
variao na forma grfica em relao grafia de risada, apresentada no primeiro exemplo,
aceita sem dificuldade no contexto do Facebook, e isso no causa estranhamento, quando o
receptor recebe a mensagem.
Quando o Menino (22:51) diz que iria fazer uma pergunta para a menina no aplicativo,
ela interpreta que ele faria alguma piada com ela l, ento utiliza a interjeio ihhhhhhhhhh, para
expressar um tom de brincadeira. Nota-se que a forma grfica tenta imitar a sonoridade da fala.
Nesta interjeio, a grande quantidade de ags indica a durao do som, quem l a palavra no
contexto do Facebook, pode ter a sensao de estar ouvindo a pronncia da palavra.
Observou-se, ainda, nas duas conversas o tempo de resposta entre um usurio e outro, o
que Crystal chama de lag, ou seja, atraso. Numa conversa face a face, ou por telefone, o tempo
de resposta bem menor, mas na rede social tal atraso pode ter vrias explicaes, desde o tempo
gasto para as pessoas digitarem sua mensagem, at o desinteresse em prosseguir a conversa, ou
mesmo eventuais problemas na rede, os quais possam dificultar a troca de mensagens.
CONCLUSO
Aps considerar o conceito mais abrangente de contexto, encontrado em Ferreira (2010),
o qual envolve as condies extralingusticas que determinam a produo lingustica e, alm
disso, introduzir a proposta terica de Van Dijk (2012) que postula ser necessrio delimitar o
conceito de contexto para aprimorar o seu estudo - quando aplicado lngua, este artigo aborda
o contexto enquanto envolvendo especificamente o tipo de comunicao, seu meio, sua funo e
por isso as comunicaes via internet so dadas como novos gneros, tais como os referidos em
Marcuschi (2009 e 2010). Aliado a esses conceitos de gnero, foi enfocado o gnero discursivo
da Inetrnet, mais propriamente dito, trazendo as consideraes de Crystal (2005), que o refere
como a comunicao mediada por computador ou netspeak. Esse autor considera os gneros
utilizados no meio digital como hbridos da lngua falada e da lngua escrita, no entanto sem
ser nem lngua falada nem escrita, ou seja, aproveitando-se de caractersticas de uma e de outra
para criar uma nova forma de linguagem.
A anlise feita versou sobre dois excertos de duas conversas extradas do chat da rede
social Facebook. A primeira, com pouca incidncia de smiles, a segunda com incidncia maior
e complementar, em que os smiles contribuam para a compreenso. Nessas conversas tambm
246
se observou a omisso de partes das letras que compem as palavras, alm da repetio de
letras e da criao de interjeies para sinalizar a entonao e, tambm, para veicular novos
sentidos.
Finalizando, conclui-se que a linguagem utilizada na Internet deve ser entendida
realmente como uma criadora de novas possibilidades discursivas, pois a linguagem empregada
nesse meio, se utilizada em qualquer outro gnero em qualquer outro veculo de comunicao,
causaria estranheza quanto grafia das palavras, uso excessivo de interjeies e smiles. Os
smiles e as repeties usados, entretanto, auxiliam o entendimento da mensagem da mesma
forma que a entonao vocal e as expresses faciais auxiliam a intercompreenso nas formas de
conversao tradicional. Contudo, eventualmente, podem ocorrer situaes em que as mensagens
transmitam sentido diferente daquele que o emissor tinha a inteno de transmitir. Ou seja,
mesmo com os novos recursos e com os esforos dos usurios no sentido de gerar mensagens
cada vez mais simples e prximas da experincia lingustica dos falantes e escreventes comuns,
as palavras ainda podem ter dois ou mais sentidos, como na msica do Led Zepellin, citada no
incio deste artigo.
Referncias:
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MARCUSCHI, Luiz A.. Produo textual, anlise de gneros e compreenso. 3. ed. So
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__________; XAVIER, Antonio Carlos (Org.).Hipertexto e gneros digitais:novas formas de
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PAGE, J.; PLANT, R. Stairway to heaven. In.: ZEPPELIN, Led. 1971. Londres. Atlantic.
247
Introduo
Os dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)
nos mostram que a expectativa de vida dos brasileiros aumentou 25,4 anos nos ltimos 50
anos, passando de 48 para 73,4. Como nos demais pases em desenvolvimento, no Brasil essa
mudana vem acontecendo de forma cada vez mais acelerada: de 2010 para 2011 a expectativa
de vida dos brasileiros aumentou em 3 meses e 22 dias e hoje de 74 anos e 29 dias (VEJA,
29/11/2012).
Segundo a CEPAL Comisso Econmica para a Amrica Latina (2012), a reduo
proporcional da populao jovem e o aumento na proporo e no nmero absoluto de idosos
modificam a participao dos grupos na vida econmica e as relaes polticas e sociais do pas.
Semelhante a pases desenvolvidos, altera-se a pirmide etria brasileira, com o estreitamento
em sua base e, pela crescente parcela de idosos, o alargamento do topo. Ao viver mais, os
brasileiros se deparam com questes que vo desde o acolhimento familiar at a discriminao
social, da acessibilidade e da mobilidade urbana at as questes publicas e legais envolvendo
sade e previdncia. Todas essas alteraes deveriam despertar o interesse do mercado em
desenvolver produtos e servios direcionados a nova gerao de idosos, um seguimento que,
alm de crescente, apresenta um perfil cada vez mais diferenciado, participativo e exigente.
Focados no enunciado, voltamos nossos olhos para a mdia impressa, por ser importante
representao de nossa sociedade e de sua conjuntura. Percebemos no entanto a escassez de
revistas especficas para o pblico idoso. As abordagens ficam geralmente restritas a artigos
ligados sade e veiculados em publicaes de organizaes profissionais dessa rea. At
mesmo o mercado publicitrio limitado a medicamentos, emprstimos, planos de sade e
aposentadoria.
As imagens e as palavras possuem um papel muito importante na informao, divulgao
e manipulao de ideias ou produtos na mdia. Por isso, para anlise (sob a luz da teoria da
248
enunciao de Bakhtin) da viso que nossa sociedade possui sobre o idoso, procuramos na
mdia impressa (e nas suas verses virtuais) publicaes que fazem parte de nossa cultura h
dcadas. Considerando a representatividade da mulher na sociedade brasileira, inclusive entre
a populao de idosos, escolhemos para essa anlise, alm da revista Veja, pela amplitude
de pblico e de temas que aborda, a revista Claudia, direcionada principalmente ao pblico
feminino. Os dados de 2009 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD) reforam
nossa escolha:
(...) o nmero de idosos no Brasil de cerca de 21 milhes de pessoas, correspondendo
a 11,3% do total da populao. Destes, 16,5 milhes vivem na rea urbana e 3,4
milhes na rea rural. Destaca-se ainda a Sntese de Indicadores Sociais do IBGE
de 2010, que demonstra o percentual de 56% da populao acima de 60 anos como
sendo de mulheres idosas.
Pelo que se percebe nos trabalhos sobre gnero social, apesar da tendncia cultural de
reconhecer as diferencias entre mulher e homem, ainda persiste o sedimentado senso comum
sexista da desigualdade em grande parte do discurso miditico. Alm do processo lento e
dialgico de tecer as dimenses socioculturais das identidades masculinas e femininas em todas
as suas amplas variaes e diferenas, o envelhecimento mundial da populao nos impe
estudar a percepo social da nova identidade da mulher e do homem idoso na atualidade.
249
anos de idade, no Brasil. Esto sendo coletadas reportagens publicadas nos exemplares dos
anos 1997 (anterior ao inicio da elaborao do Estatuto do Idoso), em 2005 (aps a aprovao
do estatuto do Idoso) e na atualidade (2013 uma dcada aps a aprovao do Estatuto do
Idoso). A observao desses perodos especficos pode nos esclarecer se o Estatuto do Idoso e
todo o contexto para sua aprovao e posterior concretizao causou algum impacto na esfera
social do jornalismo, levando-nos a desvendar as implicaes de nosso objetivo geral: analisar
por meio da teoria da enunciao de Bakhtin como as revistas Claudia e Veja, por meio de
seus enunciados, representam o idoso e temas de interesse para esse pblico-alvo, dentro de
perodos de tempo determinados.
Dialogismo
A palavra uma espcie de ponte lanada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre
mim numa extremidade, na outra se apoia sobre o meu interlocutor. A palavra o
territrio comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 2006).
250
grupo social.
Tomando como exemplo o gnero miditico reportagem, que est sendo estudado nesta
pesquisa, em especial no material impresso das revistas Veja e Cludia, sempre se ter espao
para muitas vozes sociais, pelo menos duas, inclusive de posies sociais diferentes, mesmo
que no explicitadas no discurso. Esta natureza interdiscursiva da linguagem o dialogismo
bakhtiniano. Mesmo num enunciado de natureza aparentemente monolgica h uma comunicao
responsiva, uma discusso ideolgica com quem est em contato com o material, em que as
respostas so antecipadas, existem confirmaes textuais, contradies, antagonismos.
Bakhtin prope o princpio do dialogismo como a essncia do funcionamento da
linguagem, afirmando que:
A verdadeira substncia da lngua no constituda por um sistema abstrato de formas
lingsticas nem pela enunciao monolgica isolada, nem pelo ato psicofisiolgico
de sua produo, mas pelo fenmeno social da interao verbal, realizada atravs
da enunciao ou das enunciaes. A interao verbal constitui assim a realidade
fundamental da lngua (BAKHTIN, 2006).
Por isso, seria muito limitado fazer uma relao direta entre dialogismo e a palavra
dilogo. O dialogismo constroi caminhos que vo alm do ato da fala entre duas ou mais pessoas.
Tambm no se reduz s relaes entre os sujeitos nos processos discursivos. Com relao ao
dialogismo bakhtiniano, Flores (2009) explana que:
O dialogismo constitutivo de todo discurso. uma propriedade da linguagem
(discurso) que estabelece inter-relao permanente com outros discursos e o discurso
do outro. Isso se deve ao fato de o discurso trazer ressonncias de j-ditos, responder a
dizeres diversos (passados, presente e futuros) e fazer projees e/ou antecipaes do
discurso-resposta. Essa inter-relao permanente com discursos de outrem caracteriza
a dinamicidade da linguagem, sua natureza heterognea e a instaurao de variadas
relaes de sentido. [...] O dialogismo, sendo um principio intrnseco do discurso,
aparece nas diferentes noes desenvolvidas pela teoria bakhtiniana, como linguagem,
palavra, signo ideolgico, enunciado, sujeito, estilo e compreenso.
251
Gneros discursivos
O ser humano no fala e no escreve de qualquer jeito, ele depende da atividade
compreensiva e responsiva do outro sujeito, principio da dialogicidade da linguagem e do
processamento de constituio e identificao dos gneros discursivos. Os gneros organizam
os discursos, quer sejam eles cotidianos, ou mais formais.
Segundo Bronckart (1999), os gneros discursivos constituem-se como diferentes formas
textuais (verbais e orais) histricas e socialmente situadas. Esta afirmao refora os pressupostos
backtinianos de que os discursos se materializam em consonncia com as necessidades da esfera
de atividade humana (trabalho, famlia, escola, etc.) em que so construdos. Resumidamente,
os gneros discursivos referem-se conjugao de contedo, estilo e construo, aliados a um
dado enunciado numa esfera da comunicao, transcendendo a simples ideia de agrupamento
de caractersticas textuais semelhantes.
252
253
254
que aquele que mais vive, mais sabe. Porem, os tempos mudam, e de forma muito veloz. De
fato, em uma sociedade moderna, em que os avanos tecnolgicos no mais surpreendem,
infelizmente se valoriza mais a produtividade e a utilidade imediata, do que a experincia do
ser humano acumulada durante anos.
No ano de 2013 o Estatuto do Idoso, Lei N 10.741, de 1 de Outubro de 2003, completa
uma dcada de existncia no pas. De grande importncia para a cidadania dos idosos o Estatuto
representa o marco regulatrio que visa assegurar os direitos da pessoa idosa com idade igual
ou superior a 60 (sessenta) anos.
Art. 2 - O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes pessoa humana,
sem prejuzo da proteo integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei
ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservao de sua
sade, fsica e mental, e seu aperfeioamento moral, intelectual, espiritual e social,
em condies de liberdade e dignidade.
Como se sabe, no Brasil, existe ainda um grande distanciamento entre a Lei e a realidade
dos idosos, ou seja, entre o discurso e sua real efetivao. Para que a Lei se efetive necessrio
a existncia de sua ampla divulgao na sociedade, possibilitando s pessoas o conhecimento
desse importante instrumento jurdico.
Ao se investigar na mdia a participao (direta ou indiretamente) da terceira idade na
sociedade brasileira, percebemos que existe uma grande lacuna. Pode-se entender claramente
que nossa sociedade no est acostumada, ainda, a conviver com idosos que no envelheceram,
com idosos ativos e dispostos, que esbanjam mais vitalidade que muitos jovens.
Art. 20. O idoso tem direito a educao, cultura, esporte, lazer, diverses, espetculos,
produtos e servios que respeitem sua peculiar condio de idade.
255
Gnero Social
Na sociedade ocidental, desde a revoluo industrial e a organizao das cidades at
meados do sculo XX, os papis sociais das mulheres e homens eram bem mais definidos.
Vinculavam as atribuies femininas ao micro universo privado: em posies sociais subalternas
s mulheres cabiam as questes domsticas, o cuidado com os filhos e do marido. As prprias
revistas femininas tratavam apenas de temas que tinham como objetivo ajudar a rainha do lar
em suas tarefas. E aos homens cabiam s decises do universo pblico: eram provedores com
atribuies polticas e posies sociais pblicas. No Brasil a constituio de 1969, vigente at
1988, definia a famlia como a base da sociedade, onde o homem o chefe e a mulher, sua
principal auxiliar.
Tambm havia um vnculo muito forte do imaginrio e do comportamento da sociedade
ocidental com as questes de sexo, gnero, desejo sexual e posio social. A pessoa que
nascesse com o sexo feminino seria uma mulher, com interesse por homens e posies sociais
subalternas, maternais, acessrias. Aquele que nascia com a genitlia masculina seria, portanto,
um homem, com desejo por mulheres e posies sociais pblicas, provedoras, protagonistas,
(CARRARA, 2013).
Com a entrada da mulher no universo pblico, alguns homens assumiram tarefas antes
tipicamente femininas, compartilhando atribuies como afazeres domsticos e cuidado com
os filhos. O homem, assim como a mulher, cultua seu corpo, revela seu lado narcisista, assume
sua homo ou bissexualidade.
Assim, ao instaurarem o pressuposto de que a figura feminina conquistou espao
na sociedade, os textos miditicos mostram que o espao do homem modificou-se.
Determinar o que biolgico e o que socialmente definido no comportamento
humano um campo de investigao cercado ainda de questionamentos. Enquanto isso,
a divulgao de imagens e de representaes colabora para a aceitao, manuteno e
alterao de valores sociais pela maioria da populao. A constatao de que o homem
mudou refere-se a um tema que no deixa de ser polmico em algumas reas do
conhecimento, bem definido em outras e, com certeza, est sendo bem aproveitado no
universo da comunicao. (GHILARDI-LUCENA, 2005).
256
Mtodo:
Metodologicamente, est sendo realizada a anlise e classificao de enunciados
coletados nos exemplares dos anos 1997 (anterior ao inicio da elaborao do Estatuto do Idoso);
2005 (aps a aprovao do Estatuto do Idoso) e atualidade (2013 uma dcada aps a aprovao
do Estatuto do Idoso) de duas revistas nacionais: Claudia e Veja.
Uma anlise quantitativa das reportagens nestes exemplares permite identificar se, nos
cortes sociotemporais selecionados, o idoso considerado pelos peridicos como pblico leitor
de destaque, se h referncias e contedos especficos que se destine a esses leitores. Tambm
indicar a existncia ou no de um nmero maior de reportagens direcionadas especialmente
ao pblico feminino.
A anlise qualitativa tem como base a teoria da enunciao de Bakhtin, especialmente
valorao e dialogismo, de forma a identificar as mltiplas vozes sociais convocadas pelos
autores dos enunciados analisados. Por sua vez, tais enunciados sero extrados das reportagens
sobre idosos encontradas nos cortes sociotemporais escolhidos. Ser observado tambm se
essas vozes viro para cooperar com o sentido proposto para a reportagem, ou para desfazer
as argumentaes contrrias ao autor. Ainda, referindo-nos a metodologia trabalhalhar-se-,
tambm, com a teoria/anlise de enquadramento de Erving Goffman (2012) que no entendimento
de Silva (2011):
A anlise de enquadramento nos fornece os instrumentos para analisar os padres
de apresentao, seleo, nfase e excluso textuais atravs dos quais os jornalistas
organizam o discurso, escolhendo, separando, excluindo ou enfatizando determinados
aspectos de uma realidade, desenhando uma angulao especfica (SILVA, 2011,
p.2).
Consideraes finais
Apesar de a pesquisa estar inconclusa, tendo em vista que o ltimo corte temporal
escolhido o ano corrente (2013) por corresponder a uma dcada aps a aprovao do
Estatuto do Idoso, a desvalorizao dos cidados que esto fora do mercado de trabalho formal
257
(oficialmente inativos) evidenciada pela escassez de reportagens sobre ou para idosos nas
revistas selecionadas.
De qualquer maneira, estamos certos de que ao finalizar nossa proposta inicial de:
analisar como se materializam os conceitos bakhtinianos de dialogismo e valorao
na comunicao jornalstica das reportagens sobre e/ou para idosos, selecionados nas revistas
Cludia e Veja;
analisar se e como os enunciados jornalsticos contribuem para a valorizao do
envelhecimento populacional como sugere o Estatuto do Idoso;
observar a evoluo dos temas relacionados ao idoso nos trs perodos sugeridos, por
meio da anlise contextual das reportagens selecionadas;
verificar a existncia de algum impacto real e no apenas retrico do estatuto do idoso
nos enunciados das reportagens analisadas;
acreditando que o discurso de um se inscreve no discurso do outro, conforme nos
esclarece Bakhtin, refletir at que ponto isso ocultado ou revelado nas publicaes;
considerando a representatividade da mulher na populao idosa e urbana, identificar
se estas revistas abordam em suas reportagens temas direcionados especificamente ao pblico
feminino ou, se tratando do idoso, em sua maioria so genricos a todos os gneros sociais;
atravs da Teoria Enunciativa de Bakhtin repensar o processo do envelhecimento e o
papel do idoso na sociedade brasileira atual, contribuindo para sua melhor incluso social;
poderemos contribuir para a reflexo sobre as reais condies sociais do indivduo com
mais de 60 anos, abrir caminho para novas pesquisas que venham a valorizar seu papel atual
em nossa sociedade, sugerir projetos e atividades de incluso social e reconhecer a importncia
econmica do trabalho da mulher idosa no seio familiar.
Referncias
BAKHTIN, Mikhail. Esttica da criao verbal. 6 ed. Traduo de: Paulo Bezerra. So Paulo:
Martins Fontes, 2011.
________. (Voloshinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do
mtodo sociolgico na cincia da linguagem. 12 ed. So Paulo: Hucitec, 2006.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de Linguagem, textos e discursos: por um interacionismo
scio-discursivo. Traduo de Anna Rachel Machado. So Paulo: Educ,1999.
BRASIL. Estatuto do idoso: lei federal n 10.741, de 01 de outubro de 2003. Braslia, DF:
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004.
258
259
INTRODUO
Este artigo tem como foco de interesse um dos textos da coluna Por a, de Mariana
Kalil, publicada no caderno Donna do jornal Zero Hora dominical. Trata-se do texto A base de
chacoalhadas, veiculado no dia oito de setembro de dois mil e treze. Frente a isso, realizar-se-
uma anlise dos recursos lingusticos que constituem o texto e constroem os efeitos de sentido
deste. Tais recursos compem um texto diferente do comum, bem-humorado, embora trate de
uma temtica simples e cotidiana, banal at. A propsito, os textos publicados na coluna, de
modo geral, possuem essas caractersticas.
A escolha deste texto ocorreu devido aos recursos multissemiticos utilizados, os quais
acionam vrias manifestaes de linguagem, mais dinmicas e amplas que as comumente
utilizadas em textos de colunistas de jornais impressos. Voltados ao universo feminino, os textos
da escritora buscam cativar o interesse de mulheres de diversas faixas etrias, alm claro do
pblico masculino que tambm interage e questiona acerca desse universo.
O artigo ir analisar o texto frente aos diferentes recursos utilizados pela autora, bem
como os efeitos de sentidos que estes recursos projetam no texto, tendo como embasamento
terico principal autores como: Jos Luiz Fiorin e Emile Benveniste, os quais daro sustentao
s anlises feitas no decorrer do trabalho.
Para a realizao deste trabalho e alcance dos objetivos almejados este ser organizado
em trs sees, assim constitudas: na primeira seo, discorremos sobre o valor dos signos
nos enunciados; na segunda seo, sobre a constituio dos textos sincrticos; e, na terceira,
efetuamos a anlise do texto escolhido.
260
261
sociedades. Ela fornece um modelo semitico singular, que simultaneamente formal na sua
estrutura e funcionamento. Ao falar sobre a lngua enquanto sistema de signos, Benveniste
(BENVENISTE,1989, p.63) apresenta algumas especificaes: 1 ela se manifesta pela
enunciao, que contm referncia a uma dada situao; falar , sempre falar de; 2 ela
consiste formalmente de unidades distintas, sendo que cada uma um signo; 3 ela produzida
e recebida nos mesmos valores de referncia por todos os membros da comunidade; 4 ela a
nica atualizao da comunicao intersubjetiva.
na relao de eu/tu que o signo desenvolve papel fundamental, pois por meio
dele que se realizam globalmente relaes de interpretao. O homem sempre se coloca de
maneira individual em oposio ao seu co-enunciador e interpreta o que lhe exposto tambm
individualmente, trazendo em si todas suas concepes ao abordar determinado referente.
Conforme Benveniste (BENVENISTE, 1989, p.68):
Aquele que fala se refere sempre pelo mesmo indicador eu a ele- mesmo que fala.
Ora, este ato de discurso enuncia eu aparecer, cada vez que ele reproduzido, como
o mesmo ato para aquele que o entende, mas para aquele que o enuncia, cada vez
um ato novo, ainda que repetido mil vezes, porque ele realiza cada vez a insero do
locutor num momento novo do tempo e numa textura diferente de circunstncias e de
discursos.
A lngua o sistema dentro do qual o signo ganha espao e valor, porm ela investida
de dupla significncia, onde dois modos distintos de significar se sobrepem ou se unem para
significar, so eles: o modo semitico e o modo semntico. O modo semitico designa o modo
de significao que prprio do signo lingustico e que o constitui como unidade e deve ser
reconhecido; j o modo semntico tem sua significao engendrada no discurso e deve ser
compreendido. De acordo com Benveniste (BENVENISTE, 1989, p.66):
A diferena entre reconhecer e compreender envia duas faculdades distintas do
esprito: a de perceber a identidade entre o anterior e o atual, de uma parte , e a de
perceber a significao nova , de outra [...]
A lngua o nico sistema em que a significao se articula assim em duas
dimenses.
Frente a essa dupla significncia da lngua, cada vez mais se criam modelos textuais
e ampliam-se as linguagens, a fim de usufruir dessas potencialidades que a lngua apresenta.
Pode-se notar que cada vez mais se mesclam sistemas de signos na construo de textos: a
linguagem verbal, que tem como unidade bsica a palavra (signos); e a linguagem no-verbal,
expressa atravs de imagens, sons, cores, formas... Esses textos que utilizam mais de uma
262
2. ENUNCIAO E ENUNCIADO
A lngua se organiza enquanto sistema e, por meio deste sistema, o homem busca
transpor emoes, pensamentos... Assim, o homem organiza enunciados, os quais surgem em
determinadas situaes comunicacionais, num determinado espao, num determinado momento
e fazendo referncia a determinada pessoa.
A enunciao envolve a tomada da palavra diante da relao eu-tu, ou seja, os sujeitos
se apropriam da lngua e a atualizam de acordo com suas vivncias, conceitos e ideologias.
A apropriao ocorre por meio da seleo dos signos lingusticos comuns aos sujeitos. J a
atualizao decorre da expresso e compreenso de uma ideia relativa aos interlocutores e a
situao em que essa lngua est sendo utilizada. O estudo da enunciao se concretiza atravs
do enunciado que a materializao deste processo. Afirma Benveniste, (BENVENISTE,1989,
p.83):
A enunciao supe a converso individual da lngua em discurso... a semantizao
da lngua que est no centro deste aspecto da enunciao , e ela conduz teoria do
signo e anlise da significncia.
Assim, um enunciado pode ter vrios sentidos dependendo do contexto no qual ele
produzido, do conhecimento pragmtico dos interlocutores e dos diferentes sentidos gerados no
seu uso. A enunciao deve ser realizada integralmente pelos participantes, bem como a escolha
de signos em determinadas circunstncias comunicacionais para que o enunciado seja executado
plenamente e seus objetivos atingidos sem dar vazo ao que no se pretende enunciar.
Na construo dos enunciados, o indivduo busca salvar sua face, e para tanto faz
projees mentais dos sentidos que suas enunciaes podem produzir diante do outro, para que,
assim, se evitem ms interpretaes que resultem em situaes desagradveis. Por esse motivo,
agir com polidez pode amenizar momentos desagradveis aos indivduos participantes do ato
comunicativo. FIORIN (FIORIN,2003, p.175):
263
A polidez lingstica tem por efeito diminuir os efeitos negativos dos atos ameaadores
da face, de ado-los. para isso que recorremos aos atos de fala indiretos:no se d
uma ordem brutalmente, mas exprime-se um desejo.H outras estratgias de polidez
lingstica : no se critica um trabalho, se fazer uma srie de preliminares que mostram
que ele est bom.
H ainda nos atos enunciativos o que dito explicitamente e pode ser questionado e o
que pressuposto, o qual depender da interpretao que outro indivduo tiver acerca do que foi
enunciado. Em muitos momentos o pressuposto ou subentendido apresentado por linguagens
no verbais e produzem efeitos de sentido no texto diferente do esperado enquanto texto apenas
verbal.
264
mnima (ex.: vida x morte); a segunda etapa a do nvel narrativo, na qual organiza-se a narrativa
do ponto de vista de um sujeito cujo objetivo persuadir outro a fazer algo; e a terceira
etapa o nvel discursivo, que quando a narrativa assumida pelo sujeito da enunciao.
neste nvel que tomam forma as escolhas enunciativas voltadas persuaso do enunciatrio.
Por exemplo, no nvel discursivo que se inserem as imagens, que os personagens ganham
identidade (forma, nome, idade), que o local se materializa como uma cidade determinada...
assim, tambm neste nvel que se mostram os recursos verbais e no verbais utilizados pelo
enunciador na constituio do enunciado.
A semitica discursiva tem-se mostrado de grande importncia frente utilizao
cada vez mais recorrente de textos sincrticos, os quais fazem uso de imagens, cores, formas
que aproximam o leitor e o fato ocorrido, produzindo efeitos de sentido como sensibilizao,
encantamento, proximidade ou distanciamento, alm de persuadi-lo. Pode-se citar, como
exemplo, os textos jornalsticos que fazem uso de fotografias e infogrficos, alm da linguagem
verbal. Tais elementos entram na constituio do texto e, alm de informarem, produzem efeitos
de sentido, como o de realidade. A propsito, efeito de realidade ou de referente, o principal
efeito de sentido que se constri quando da utilizao de fotografias.
Tambm h que se considerar que algumas escolhas verbais, como grias, linguagem
informal, utilizao do eu-tu/aqui/agora, produzem nos textos outros efeitos de sentido, como
o efeito de subjetividade e aproximao entre enunciador e enunciatrio, simulando uma
relao de intimidade, de informalidade, de cumplicidade entre ambos.
265
primeira pessoa do singular nas formas verbais (comecei, termino, corri...) cria uma atmosfera
de pessoalidade, de informalidade que em alguns momentos a faz parecer amiga da leitora e
demonstra que a autora vivencia os mesmos conflitos e questionamentos de seu pblico. Como
o trecho que aparece:
Comecei meu prprio desafio Medida certa.
Termino a primeira semana com a sensao de dever cumprido. Corri trs dias na
esteira, fiz trs aulas de pilates, cortei doces e carboidratos.
Toda a vez que um locutor assume seu papel na enunciao, ele instaura um alocutrio
com uma posio de resposta, e por esse motivo o locutor fala de si e coloca-se a um mesmo
nvel lingustico do alocutrio. De acordo com Benveniste (BENVENISTE, 1989, p.250), Eu
designa aquele que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o eu: dizendo eu ,
no posso deixar de falar de mim. dessa maneira que a autora explicita suas posies sobre
ela, levando seus leitores a acreditar em algo, experimentar e fazer o que se quer que seja feito.
Essa escolha pela primeira pessoa produz efeitos de sentido de subjetividade, de pessoalidade,
de aproximao entre enunciador e enunciatrio.
Alm disso, a autora faz uso de pronomes que remetem a pessoa dela, ou seja , os
pronomes pessoais do caso reto e tambm oblquos como: eu, me, mim. Alm do pronome
possessivo: minha. Tais escolhas concorrem para construir o estilo enunciativo da autora.
Veja-se o trecho:
A minha primeira chacoalhada aconteceu no domingo passado quando meu penltimo
jeans que ainda me servia me levou a uma luta corporal contra mim mesma no cho
do quarto na tentativa de fechar o maldito boto
Essa passagem demonstra que assim como os leitores da coluna, a autora sofre com
problemas referentes ao aumento de peso que atormenta a vida das mulheres brasileiras. De
acordo com Benveniste (BENVENISTE, 1989, p.84):
...desde que ele se declara locutor e assume a lngua , ele implanta no outro diante de
si, qualquer que seja o grau de presena que ele atribua a este outro.Toda enunciao
, explicita ou implicitamente, uma alocuo, ela postula um alocutrio.
Alm disso, tambm muitos dos marcos temporais instaurados no texto tomam como
referncia o tempo presente, o agora da enunciao, como por exemplo as formas verbais:
comecei, corri, fiz, cortei, matriculei, descobri, consultei, comprei...Todas essas formas tm
o agora da enunciao como tempo de referncia, ou seja, so atos considerados passados em
266
Na modalidade visual, Mariana faz uso de imagens como os dois cachorros que so:
um shih tzu branco, e outro Yorkshire Terrie de pelagem negra e marrom. Esses dois ces
fazem comentrios sobre o que a autora diz, avaliam e questionam suas palavras. Certamente,
a escolha destes dois mascotes tambm significativa, j que representam cezinhos que
comumente so mascotes do pblico feminino, principal leitor da coluna. As imagens desses
dois cachorrinhos, tambm produzem efeitos de sentido tanto de realidade, j que ali est foto
materializando a imagem de dois pequenos ces, quanto de aproximao, j que incita a ideia
de que a autora, assim como a maioria das mulheres, gosta de bichinhos, possui cezinhos como
mascotes. Obviamente, tais estratgias enunciativas esto a servio da adeso do enunciatrio,
da identificao deste com o autor.
Alm dos dois mascotes, ainda aparecem nesse texto imagens de quatro mulheres
diferentes, as quais so utilizadas para ilustrar com uma boa dose de exagero sensaes,
emoes femininas diante de determinadas situaes. As imagens seguem abaixo:
267
As imagens das mulheres tambm impingem uma atmosfera ldica ao texto. O exagero
aqui serve ao riso, descontrao. uma forma criativa de brincar com a tendncia ao exagero
268
prpria de muitas mulheres, que gritam, se descabelam, fazem drama por coisa pouca. Nesse
sentido, tais imagens tambm projetam efeitos de sentido de aproximao, de identificao, de
cumplicidade entre enunciador e enunciatrio.
Mariana tambm faz uso de recursos semiticos muito utilizados em histrias em
quadrinhos, como o uso dos bales para representar a fala das personagens. Esses bales, em
alguns momentos, quando vm em forma de um crculo mais ou menos regular, mostram que
os personagens esto falando com a autora, ou com o leitor, ou entre eles. Outras vezes os
bales assumem formas pontiagudas, representando os gritos desses mesmos personagens para
alertar, lembrar e representar sensaes que so comuns aos que vivenciaram a experincia por
ela relatada.
269
A autora da coluna Por A trabalha com o texto sincrtico de maneira que os recursos
semiticos por ela utilizados influenciem na construo visual e tambm interpretativa do texto,
ampliando as possibilidades de construo de sentidos por parte do leitor e tornando o texto
atraente e instigante. O texto carrega consigo todo um vis de imaginrio atravs das ilustraes
usadas e das personagens.
5.CONSIDERAES FINAIS
A leitura do texto, associada s imagens permitem que a mulher antenada e que
vive num contexto ps-moderno tenha grande identificao com o texto escrito por Mariana
Kalil. De linguagem fcil, imagens reiteradas e assuntos que interessam ao pblico feminino,
ela acaba por aproximar-se das leitoras e tratar de assuntos que instigam esse universo, to
cheio de dvidas e incompreenses, relatando de maneira simples, despojada e bem-humorada
inquietaes comuns a todas as mulheres.
Alm de usar termos comuns na linguagem cotidiana, seus recursos semiticos e de
linguagem aproximam e enunciadora dos leitores, criando um clima de intimidade que diferencia
seu texto dos demais. No texto, explicita-se a subjetividade do enunciador, principalmente
pelas marcas enunciativas. Tambm se evidencia uma dose de sentimentalismo bem prprio do
universo feminino, o que se pode notar atravs da afeio demonstrada pelas mascotes, as quais
so marcas recorrentes em seu trabalho e remontam sociedade atual onde os animaizinhos de
estimao tm ocupado lugar de destaque e importncia na nova estruturao familiar .
Representando por meio de bales as constantes dvidas, questionamentos, relaes
de instabilidade e inseguranas femininas, ela acaba por demonstrar que mesmo atuando
em diferentes papis sociais a essncia feminina a mesma e caracteriza-se subjetivamente
trazendo tona a idia de fuga que mobiliza e une as mulheres num determinado contexto,
diferenciando-as dos demais seres humanos que as cercam, tornando-as especiais, parecidas
mas incomparveis entre si.
Enfim, as escolhas enunciativas utilizadas pela autora do ao texto uma identidade
prpria e bem peculiar, diferente das demais colunas que estamos acostumados a ver publicadas
em jornais impressos. A juno de diferentes recursos (verbais e no verbais) faz surgir um
texto criativo e bem-humorado, prprio para uma leitura descontrada, num momento de lazer.
270
REFERNCIAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de.Teoria Semitica do Texto. So Paulo. tica,1997.
BENVENISTE, Emile. Problemas de lingstica geral II. Traduo Eduardo Guimares.
Campinas,SP: Pontes,1989.
BENVENISTE, Emile. Problemas de Lingustica Geral I. 4. ed.Campinas,SP:Pontes,1995.
FIORIN, Jos Luiz. Teoria dos Signos.In: FIORIN, J.L. Introduo Lingstica. 2. ed.So
Paulo:Contexto,2003.
FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: FIORIN, J. L.(Org.) .Introduo Lingstica. 2. ed.
So Paulo:Contexto,2003.
271
ANEXO:
272
Na virada do sculo XIX para o sculo XX teve incio no Brasil uma mobilizao
engendrada por intelectuais em prol do destino da educao e da formao do futuro cidado
brasileiro. Foi um perodo marcado por intensa campanha de clara feio positivista que buscava
a divulgao de valores decorrentes da universalizao do acesso ao sistema escolar, ligada
nova condio republicana.
O nacionalismo entrou de forma definitiva no cotidiano, civismo e moralismo faziam
parte do cenrio nacional, intelectuais como Olavo Bilac e Coelho Neto viajavam pelo Brasil
na tentativa de consolidao de valores patriticos e de asseverar as relaes e estruturas sociais
para regenerar o pas. No Rio Grande do Sul encontramos em Joo Simes Lopes Neto um
exponente deste pensamento, o de difuso de valores cvicos atravs da educao, ou melhor,
de livros de leitura para escola.
No ano de 1904 o autor pelotense proferiu uma conferncia na Biblioteca Pblica de
Pelotas denominada Educao cvica Terra Gacha (Apresentao de um livro), na qual
expos seu plano editorial e literrio que visava o leitor escolar. De contedo cvico como
explicita bem desde o ttulo e seguindo o movimento que estava sendo feito por muitos autores
nacionais que difundiam preceitos nacionalistas atravs de conferncias e de suas obras para a
escola- a palestra aponta para estas diretrizes, para em seguida fazer uma referncia matria
local e edio de um livro. Na conferncia so citadas as obras de cunho patritico Educao
Nacional, de Jos Verssimo (1890) e Por que me ufano de meu pas, de Afonso Celso (1900),
que serviriam de inspirao para o autor. Alm destas, como inspirao maior, aparece Cuore
(ou Corao), obra do italiano Edmondo De Amicis, escrita em 1886 e caracterizada pelo desejo
de seu autor de prestar um servio ao seu pas incutindo nos jovens leitores valores morais e
sociais, sobre os quais deviam ser construdos os pilares da Itlia moderna recm-unificada que
ainda apresentava sinais de sua antiga fragmentao, no s poltica, mas tambm cultural e
lingustica.
Durante sua explanao o escritor deixou transparecer seu propsito: para alm do plano
editorial e literrio que visava o leitor escolar no intuito de estimul-lo e educ-lo dentro da
273
tica nacionalista, Simes Lopes buscava tambm a valorizao da cultura local e da tradio
popular.
Sonho fazer um livro simples, saudvel, cantante de alegria e carinho, que os homens,
rindo da sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianas, que nele, com
a sua ingnua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde
em torrente alterosa de civismo(...) que pudesse condensar o corao meigo, valente
e virtuoso da me brasileira; a serenidade dos nossos heris, a independncia e a
firmeza dos nossos maiores, a probidade dos nossos estadistas(...) que ressalta-se a
terra, o povo, a ptria(...) Sonho fazer um livro assim que concretizasse a tradio, a
histria, ensinamentos cvicos e as aspiraes ptrias. (LOPES NETO, in TAMBARA,
ARRIADA, 2009, p.234)
Seguindo, portanto, o curso dos acontecimentos protagonizados por autores da poca que
se dedicavam tarefa de propagao de ideais cvicos atravs da publicao de livros para
uso pedaggico, Simes Lopes Neto passou a se dedicar ao seu prprio projeto literrio - a
concepo de um livro voltado ao leitor escolar ou que de alguma maneira cumprisse o propsito
de educar -, no qual noes de unidade nacional estivessem interligadas s peculiaridades
regionais. At onde se sabe tal projeto nunca chegou a ser de fato totalmente efetivado, em
274
torno desta produo, que em parte foi realmente concebida, encontramos sempre informaes
desencontradas, acompanhadas de suposies. A obra Terra gacha Histrias de infncia
passou cerca de cem anos esquecida, somente vindo a conhecimento pblico por meio da
biografia do autor escrita por Carlos Francisco Sica Diniz e publicada em 2003. Sica Diniz viu
os manuscritos, dois cadernos com cerca de setenta pginas cada, ao visitar o jurista pelotense
Mozart Russomano, eles estavam numa pequena mala onde pararam escritos e pertences do
autor aps sua morte. O jurista a havia herdado da viva de Simes em reconhecimento por
ajuda prestada em um processo de obteno de penso. Talvez por uma avaliao precipitada
de seu contedo por parte de Russomano, ou quem sabe pelas repetidas queixas feitas pela
viva do autor que atribua atividade literria parte da culpa pela decadncia social do casal, o
fato que ambos decidiram mant-lo em segredo. Adquirido pelo biblifilo Fausto Domingues
aps a morte do jurista, o livro pretendido por Simes Lopes Neto, e que provavelmente parte
deste projeto pedaggico maior, enfim foi editado. Com organizao e reviso de Lus Augusto
Fischer, os manuscritos de Terra Gacha foram publicados em edio primorosa, exatamente
como foram concebidos por Joo Simes Lopes Neto.
A ideologia positivista, em voga poca, identificava a escola como meio adequado
para que se incutissem na populao jovem valores necessrios ordem social. Assim, autores
europeus, e tambm brasileiros, se lanavam produo de obras para leitura escolar que
tinham por objetivo a formao do cidado como membros realmente participativos da nao.
Eram projetos que viam a educao como um todo e a leitura como elemento fundamental deste
processo constitutivo.
O livro italiano Cuore traz uma singela histria narrada por um menino da escola
primria no perodo ps-unificao. Tambm esta uma obra de profundo fervor cvico, atravs
dela quis seu autor contribuir para a formao de jovens cidados e da nao italiana. Cuore
mostra o dia a dia de uma escola de Turin, na qual professores, alunos e respectivas famlias
participam de histrias que possibilitam uma narrativa sensvel inseridas em contexto que
apresenta um pano de fundo socialista.
Escrito para ser lido principalmente na rede escolar italiana, o livro obteve maior
sucesso primeiramente fora da escola. Antnio Faeti comenta que a obra traduziu em suas
pginas a realidade social do pas naquele instante; os leitores foram atrados pelos
protagonistas operrios, artfices, pedreiros, ofendidos do trabalho, pelas condies de vida das
classes subalternas (in MORETTI, 2009, p.143). Talvez por isso a obra Cuore fosse de uso
sucessivo nas bibliotecas das sees socialistas em que sempre se achava em companhia de Os
Miserveis, de Victor Hugo(...).(FAETI in MORETTI, 2009, p.143) necessrio lembrar que
aquele era um momento de grande expectativa de renascimento social na Itlia.
O recurso utilizado por De Amicis para que a grande massa de leitores aprovasse e
275
aderisse a um projeto de formao de uma verdadeira nao italiana foi, sem dvida, o forte
componente emocional. Os jovens leitores deveriam ser conquistados pelo corao, para que
abraassem a causa nacional. A obra, at os dias atuais, vem suscitando reaes diversas, muitos
a renegam por consider-la de forte apelo sentimental, mas no h como negar a importncia
histrica de Cuore como propagador de valores que apontavam para a necessidade de constituio
de uma identidade nacional, de uma nao una, de princpios morais que norteassem o estado
recm-unificado. O propsito do autor era realmente sensibilizar os leitores juvenis atravs
de passagens de grande apelo emocional, despertando-lhes o ideal maior de amor ptria,
tomando por esteio a famlia, clula principal da sociedade. Cuore, alm de ter sido um livro
de leitura com funo moralizadora e inteno educativa, cvica, patritica, cumpriu um papel
social importante no que diz respeito integrao cultural e uniformizao da lngua falada no
territrio italiano.
O advento das escolas pblicas propicia, at certo ponto, a integrao entre as classes
sociais, e esta se traduz no texto atravs da diversificada origem social dos alunos, lado a lado
nos bancos escolares esto filhos de operrios e de burgueses. Fica claro na obra do italiano que
a solidariedade entre as classes e, principalmente, a convivncia pacfica entre elas- deve ser o
suporte principal na construo de uma nao coesa em torno de uma nica conscincia. O que
permeia a obra so valores familiares aliados a valores sociais, em senso majoritariamente laico,
numa clara aluso ao pensamento socialista do qual Edmondo De Amicis retira seu material
narrativo e guia suas aes.
O uso do Cuore no sistema escolar foi de reconhecido valor formativo, alcanando
sucesso no s na Itlia, mas no resto da Europa e tambm na Amrica. Foram 40 edies nos
dois primeiros meses e meio, ao fim de dez anos alcanava o expressivo nmero de 197 edies.
At meados do sculo XX, a histria contada pelo menino Enrico Bottini foi traduzida em outros
quarenta idiomas, o que vem a corroborar o seu xito. Cuore considerado o produto mais
notvel da ao educativa ps-unificao, a ele seguiram-se outras obras, sem que, entretanto,
tenham tido tamanha repercusso.
No Brasil, a proclamao da Repblica despertou sentimentos semelhantes aos do
contexto italiano, a valorizao da ptria, a necessidade de afirmao do Estado e a noo da
importncia de uma educao laica faziam parte da ordem geral. Neste sentido a recepo de
Cuore, ou Corao, no poderia ser diferente, um grande sucesso. A Livraria e Editores Francisco
Alves, do Rio de Janeiro, editou Corao. Dirio de um menino, em 1891, poucos anos aps
sua publicao na Itlia, numa traduo do renomado literato Joo Ribeiro. Na primeira edio
brasileira a obra foi apresentada como um notvel livro de educao moral e cvica - obra-prima
dos livros de leitura. Foi sistematicamente reeditada pela Francisco Alves at 1968, quando
registrou a 53 edio. O livro italiano inspirou muitos autores e obras foram publicadas aos
276
moldes da italiana. E a recepo positiva da singela historia italiana no esmaeceu visto que at
a dcada de 60 ela foi muito utilizada em salas de aula Brasil a fora. Alm das repetidas edies
da Livraria e Editores Francisco Alves, do Rio de Janeiro, em 1907, Corao foi publicado
pela Livraria Universal de Pelotas. provvel que Simes Lopes Neto tenha tido contato com
esta edio pelotense, mas o certo que na ocasio desta publicao ele j conhecia bem a obra
italiana, posto que a citasse enfaticamente na conferncia de 1904.
Na formao de um texto identificamos o olhar do prprio escritor sobre o que o
cerca aliado leitura que ele faz do passado, numa reinterpretao, numa apropriao de textos
pr-existentes. um mosaico de citaes - ao qual se refere Julia Kristeva na definio de
intertextualidade-, um texto original que absorvido, transformado e transferido para outro
contexto possibilita uma nova criao literria: (...) todo texto se constri como mosaico de
citaes, todo texto absoro e transformao de um outro texto. (KRISTEVA, 1974, p. 64).
A intertextualidade, ou seja, a presena efetiva de um texto em outro, um conceito chave para
a anlise comparativa destas duas obras. Terra Gacha, como sinalizou Simes Lopes Neto na
conferncia de 1904, foi realmente escrita nos moldes da obra italiana, sua narrativa carrega
traos que possibilitam apontar para essa estreita ligao, seja no que tange a sua organizao,
a sua estrutura, ou em relao a personagens, um dilogo franco e aberto, principalmente em
relao a seu segundo tomo, o que trata do ano escolar.
Terra gacha Histrias da infncia dividida em duas partes: As frias, na
estncia e O estudo, no colgio. A obra que assim como Cuore escrita na forma de um
dirio - inicia com o relato feito pelo menino Maio da inaugurao do Colgio Municipal, na
cidade, em seguida ele e sua famlia dirigem-se para a estncia, onde se desenvolve toda a
primeira parte. A escola ser retomada no segundo tomo, passando a ser a partir da o centro da
narrativa. Na primeira parte, a da temporada de frias no campo, o menino descreve costumes
e hbitos da vida rural, e mais, explica sobre medidas agrrias, esclarece significados de termos
como gacho, monarca, expe as atribuies de um capataz, conta detalhes sobre sua famlia,
valorizando os laos no s familiares, mas tambm de amizade. Um destes laos conferido
atravs da presena da personagem si Mariana, uma antiga agregada da estncia, contadora
de histrias, personagem que torna possvel a insero de algumas lendas e relatos da tradio
oral, mescladas fico. Todo este universo vem entremeado de reflexes sobre como proceder
diante das mais variadas situaes, tudo sob a tica infantil, o que torna a narrativa suave e
singela.
O segundo tomo de Terra Gacha realmente se assemelha muito ao Cuore, nos dois
textos temos o mundo da escola visto atravs dos olhos de dois meninos que aprendem atravs
de vivncias, de alegrias e de sofrimentos, os valores de vida que correspondem representao
de mundo dada pelos autores. Maio, por indicao do pai, fez anotaes sobre os acontecimentos
277
das frias; agora, durante o ano, tudo ser organizado e ele vai registrar tambm s situaes
vividas na escola:
Eu hoje tive bastante o que fazer. o caso: meu pai quer diz ele que para eu
desembaraar a letra quer que eu passe a limpo e muito limpas as notas que
l na estncia eu tomei num caderno e mais, tambm quer que v tomando notas
de tudo o que se passa no Colgio, durante as aulas, para eu ir fazendo um dirio
da minha, ou antes, da nossa vida escolar. Diz ele que mais tarde, quando eu for j
moo e tiver bigodes Viva! Quando eu tiver bigodinho! hei de rir-me de umas
coisas, por fteis, singelas ou tolas, darei valor a outras por serem srias e proveitosas
e terei saudades tanto de umas como de outras. Assim que j tenho rabiscado uma
boa poro de folhas de almao. Vou escrevendo como Deus servido e a cachola
me ajuda; naturalmente a redao com erros e a caligrafia com garranchos Quando
me vejo muito atrapalhado, querendo dizer o que penso, mas no sabendo bem como
faz-lo, ento que papai me acode, explica o meu prprio pensamento e depois,
manda sem mais conversa: Anda, j entendeste: agora escreve. Dar o que sair.
E eu que me arranje. Ora j se viu! Mas no faz mal. Agora j sei bem o que que
ele quer. Em vez de contar, falando, o que se passou comigo durante o dia, tinha de o
contar escrevendo. Pois que assim seja. H de ser tudo tim-tim por tim-tim! Por isso
que j relatei mais ou menos o que se passou nos meus trs primeiros dias de Colgio
Municipal. (LOPES NETO, p.7)
As duas obras, como vimos, compreendem captulos que funcionam como um dirio
escolar, no sentido prtico e objetivo, nele so anotados acontecimentos de dentro e de fora
da escola sob a forma de episdios e encontros. So episdios que, todavia, no se atm ao
ordinrio, eles possibilitam em ambas as obras, reflexes sobre a realidade das sociedades em
que se inserem. Mesmo que na obra italiana as questes sociais adquiram maior relevncia que
na brasileira, a valorizao da educao na obra de Simes Lopes, atribuindo-lhe papel decisivo
na formao de cidados e nao, tambm traz a tona temas desta ordem. H que se pensar que
De Amicis autor de uma obra acabada, que foi publicada e obteve sucesso e reconhecimento,
ao passo que a obra do autor pelotense no foi de fato totalmente concebida, so muitas lacunas
e interrupes, as quais infelizmente- nos do por vezes a sensao de pouco aproveitamento
do grande potencial do material que o autor tinha em mos.
Nas duas obras os captulos levam ttulos e obedecem a uma ordem cronolgica. A
escola o pano de fundo (considerando nesta anlise o segundo tomo de Terra gacha) e
por meio dos acontecimentos que giram em torno dela desenvolvem-se as narrativas. As duas
histrias transcorrem durante um ano escolstico e referem-se ao perodo real em que foram
escritas. Os narradores so meninos por volta dos dez anos, mas no interior dos dois tecidos
narrativos esto inseridos outros enredos, de cunho histrico, que no so narrados pelos
278
garotos.
O dirio do pequeno italiano Enrico, um estudante que cursa a terceira srie de uma
escola municipal da cidade italiana de Turim nos anos de 1881 e 1882, tambm foi escrito por
sugesto de seu pai, Alberto Bottini, que quem corrige as anotaes do garoto. O sumrio
de Cuore dividido pelos meses do calendrio escolar, de outubro a julho, sendo, portanto,
composto por dez partes. Cada uma destas divises compreende vrios captulos sem que,
entretanto, obedeam a um nmero fixo, algumas partes so compostas por sete, outras por
dez ou at por doze captulos. Em cada uma destas partes que correspondem aos meses do ano
escolar, exceo de julho, encontramos pequenos enredos denominados conto mensal, so
histrias apresentadas pelo professor, por escrito para posterior cpia por parte dos alunos, e
que apresentam tramas portadoras de referncias histricas e preceitos morais. Alguns destes
contos so introduzidos na narrativa pelo prprio Enrico, o caso do primeiro, do ms de
outubro Todo ms, disse, ele vai escrever um, vai nos entregar por escrito, e ser sempre o
relato de uma ao bonita e verdadeira, realizada por um garoto. O pequeno patriota de Pdua
o ttulo deste. Eis os fatos. (DE AMICIS, 2011, p. 31) Outros contos compem o conjunto dos
captulos sem que haja a interferncia direta do narrador menino, a narrao passa a ser feita em
terceira pessoa. J em Mrito civil, o conto do ms de abril, a narrativa gira em torno do feito
heroico de um menino da regio. A forma como o enredo inserido na obra foge um pouco do
padro adotado at ento. Professor e alunos participam da homenagem pblica a tal garoto, a
narrao da comemorao feita por Enrico, e mescla-se do conto mensal propriamente dito
que tem por narrador o prefeito da cidade.
Os contos tem o objetivo de fortalecer o esprito cvico ou as virtudes morais, apelando
para o sentimentalismo do leitor e ressaltando pensamentos otimistas frente s dificuldades da
vida, numa viso que, no muito raro, se afasta da realidade. A inteno do autor fazer com que
o leitor sinta-se parte do texto, identificando-se com os personagens e com os eventos narrados
e com eles aprendendo valores de conduta tica. Estes relatos que integram a narrativa maior
so protagonizados tambm por meninos; alm dos dois j citados encontramos outros sete
O pequeno vigia lombardo, O pequeno escritor florentino, O tocador de tambor sardo,
O enfermeiro de Tata, Sangue romanholo, Dos Apeninos aos Andes e Naufrgio -, que
compem o vasto tecido narrativo que inclui personagens de vrios pontos da Itlia. Tambm
esto presentes em cada ms cartas dos pais e da irm nas quais valores morais em forma de
conselhos so direcionados ao menino Enrico. Tanto os contos quanto as cartas esto inseridos
de forma coesa dentro da narrativa maior e servem de passagem ou ligao entre argumentos,
sendo que as ltimas funcionam como contraponto ao olhar infantil do menino. Cabe ressaltar
que precede o primeiro captulo uma pequena introduo ou dedicatria, nela est dito qual o
propsito e a quem se destina o livro:
279
Este livro dedicado em especial aos jovens do primeiro grau, aqueles entre nove e
treze anos, e poderia ser intitulado: Histria de um ano escolar, escrita por um aluno
da terceira srie de uma escola municipal da Itlia. E, ao dizer que foi escrita por
um aluno da terceira srie, no quer dizer que tenha sido escrita propriamente por
ele, tal como est impressa. Ele ia anotando num caderno, do jeito que sabia, aquilo
que havia visto, sentido, pensado, dentro e fora da escola. E, no fim do ano, seu pai
corrigiu aquelas anotaes, cuidando para no alterar as ideias, e conservar, tanto
quanto possvel, as palavras do filho. Ento, quatro anos depois, j no Ensino Mdio, o
menino releu o caderno e acrescentou alguma coisa pessoal, valendo-se da lembrana
ainda fresca das pessoas e das coisas. Agora, jovens, leiam este livro: espero que
gostem dele e que lhes faa bem. (DE AMICIS, 2011, p.11)
Nas duas obras, portanto, identificamos a orientao paterna no sentido de realizao do dirio
por parte dos dois meninos. Em todas as edies brasileiras de Cuore da Francisco Alves Livraria
e Editora, exceo da primeira, foi suprimida a introduo na qual o pai de Enrico explicava
como deviam ser realizadas tais anotaes. Logo, Simes Lopes Neto deve ter tido contato com
um exemplar da primeira edio ou, quem sabe, com um exemplar de uma edio espanhola ou
portenha, visto que na Argentina a obra teve estrondoso sucesso.
Em Terra Gacha, Maio, ao ser orientado pelo pai a escrever suas experincias, recebeu
a incumbncia de faz-lo tambm durante as suas frias. A narrativa As frias, na estncia
composta por cinquenta e oito captulos. No segundo tomo os ttulos correspondem a episdios
ou dias vividos na escola ou mesmo fora dela, mas sempre durante o perodo escolstico.
Quarenta e oito captulos fazem parte de O estudo, no colgio, entre estes encontramos os
trs anteriormente citados cujo ttulo se repete: Historinha de Portugal. Os referidos captulos
levam consigo o complemento, entre parnteses, Ditado de hoje, na lio de escrita. Os trechos
so narrados em terceira pessoa e trazem fatos da histria da pennsula ibrica. Alm destes trs
tambm h outros de feio histrica, em Lembranas, saudades... e Fundao da cidade do
Rio de Janeiro aspectos da histria da ento capital federal so relatados por um colega que
oriundo daquela cidade. Outro captulo, denominado Mato Grosso, leva a mesma indicao
de ditado na lio de escrita, e, por sua vez, conta com a participao do menino nascido no
referido estado. So conferncias cvicas, como se refere a elas o professor, e consistem em
apresentao dos alunos de caractersticas e fatos histricos dos estados, cidades em questo,
enquanto o resto da turma anota o que vai sendo exposto. Assim como na obra italiana os
meninos so oriundos de vrias regies da Itlia, em Terra gacha os alunos so representantes
de todos os estados brasileiros.
Cuore um livro que ao mesmo tempo em que cria um mosaico de peas variadas
no lhes d a descrio exata ou completa de todas elas, no sabemos nada do irmo menor de
Enrico - o menino aparece somente no incio da histria-, no sabemos o nome de sua me, no
280
fica claro o porqu de tanta disparidade em relao idade dos meninos da classe alguns so
muito pequenos para a terceira srie-, o que se pode deduzir que personagens to distintos
estejam ali para cumprir um papel especfico dentro do painel social criado por De Amicis. Nem
mesmo sobre as aulas propriamente ditas so feitas referncias importantes, o foco narrativo
no a educao em si, a preocupao do autor recai sobre os fundamentos, os pilares da
sociedade, e a escola junto com famlia e trabalho- formam a engrenagem social.
Por outro lado, em Terra Gacha a reflexo sobre educao se faz presente em algumas
passagens nas quais a narrao toma a direo de uma anlise do que envolve o processo
educativo, a forma como o professor ensina, a crtica a outros estabelecimentos de ensino onde
a prtica decorar o contedo, a ateno em sala de aula, at mesmo a postura ao sentar, estes
so alguns pontos referidos por Maio em seu dirio.
Cuore, como j mencionado, reconhecido por ter sido veculo de integrao
lingustica de uma Itlia recm-unificada politicamente, mas ainda fragmentada culturalmente;
ainda assim, no h na obra uma reflexo maior sobre a lngua. Os dialetos ficaram de fora da
narrativa, at por que a necessidade de uniformizao lingustica era premente e a tentativa de
De Amicis de prestar um servio ao pas tambm em relao lngua falada, buscando faz-lo
atravs de um manual de leitura escolar, precisava, obrigatoriamente, privilegiar a lngua de
maior prestgio. Outro aspecto a ser assinalado a quase ausncia de expresses coloquiais, ao
contrrio de Terra Gacha, em que traos de oralidade so trazidos para o texto, deixando-o leve
e aprazvel. Alm disso, na obra do pelotense o uso da lngua culta est mesclado a expresses
tpicas regionais; De Amicis conduz um movimento de uniformizao lingustico, enquanto
Simes Lopes Neto ressalta o linguajar tpico regional. preciso salientar, entretanto, o fato de
que no Brasil o portugus era, mesmo que com variaes, falado em todas as regies e na Itlia
no existia uma lngua nacional de uso cotidiano; somente 3% da populao falava o italiano,
de origem toscana, poca da unificao. Dante Alighieri, Alessandro Manzoni, posteriormente
De Amicis, muitos autores contriburam para que uma nica lngua fosse falada em toda a Itlia,
mas isto s ocorreu de forma definitiva com o advento da televiso na dcada de 50.
Apesar de todo o sucesso editorial, desde sua publicao a obra Cuore tem sido
criticada, e talvez critic-la seja mesmo uma tarefa exequvel, afinal, as histrias dos pequenos
heris so carregadas de sentimentalismo e a narrativa est distante do que poderamos levar em
considerao na hora de qualificar uma obra literria como de qualidade maior. Ainda assim, no
possvel falar de literatura para a infncia na Itlia deixando de lado aquela que, pelo menos
at a metade do sculo XX, foi obra fundamental no processo formativo de geraes inteiras de
italianos. Com Cuore foi possvel avanar consideravelmente na direo da unificao nacional
tendo por meio efetivo uma obra literria; a obra cumpriu um papel importante na constituio
da nova nao e na afirmao da lngua nacional.
281
Como foi visto ao longo desta exposio, as duas obras compreendem dirios escritos
por meninos em idade escolar e realmente apresentam estrutura similar. A anlise em Terra
Gacha Histrias de infncia recaiu principalmente sobre o segundo tomo, O estudo, no
colgio, devido maior quantidade de pontos em comum com Cuore. Apesar de estarem
inseridas em contextos diferentes, as duas obras tinham a mesma inteno: levar ao leitor
escolar noes de civismo, de respeito ptria, aos pais, incentivando uma conduta virtuosa e
valorizando o estudo e o trabalho.
Em uma anlise mais pontual possvel identificar vrios temas em comum, tendo
por base o mundo da escola. O papel do professor - e como ele se posiciona frente aos alunos
- aparece com destaque nas duas obras. O processo educativo em si adquire relevncia em
algumas passagens do texto simoniano, ao passo que na obra italiana a abordagem basicamente
por vis social, privilegiando questes relativas s diferenas entre as classes. Escola, famlia e
trabalho esto interligados na obra de De Amicis e so os pilares da narrativa.
Em relao inacabada Terra Gacha Histrias de infncia surgem alguns impasses,
no h como fazer uma anlise em termos de recepo e crtica, mesmo que se reconhea a
repercusso do intenso movimento literrio em torno do assunto civismo ou o alcance que
algumas obras que portavam ideais nacionalistas obtinham, qualquer inferncia neste sentido
seria inconsistente. O que contribui favoravelmente para uma avaliao de uma possvel recepo
positiva da obra o fato de que Simes Lopes Neto consegue realizar de maneira efetiva a
ligao entre preceitos nacionalistas e valorizao da cultura local e da tradio popular.
possvel reconhecer na obra o esforo do autor em demonstrar sua ideia de integrao nacional
a partir do olhar das provncias, pois o que para ele parece constituir a verdadeira nao a
valorizao de sua heterogeneidade, de sua multiplicidade cultural. Alm disso, a reflexo sobre
o processo educativo em si, demonstra seu olhar avanado para a poca.
Na obra italiana o mundo da escola a representao da sociedade e de suas diferenas,
o ambiente onde se encontra a maior diversidade, o local de formao, de crescimento
e da paz social. O envolvimento entre os alunos se d muitas vezes de forma paternalista,
eles aprendem com seus pais e professores como se comportar com generosidade, mas a obra
deixa transparecer, no entanto, a condio de superioridade de um ou outro aluno. O trabalho
exaltado em todo o percurso da obra, mas a ele no conferido o poder de resgate de uma
condio social inferior. A reflexo maior em Cuore, portanto, sobre a sociedade, a Itlia estava
feita, precisava ser feito o italiano1, e neste sentido, De Amicis parece ter cumprido seu papel
de escritor de uma obra formativa. E interessante pensar que uma obra escrita para difundir os
ideais do Risorgimento italiano tenha tido tamanho reconhecimento a ponto de inspirar outros
autores, entre eles Simes Lopes Neto, a produzir outras obras de mesmo feitio.
282
REFERNCIAS
BASTOS, Maria Helena Cmara. Cuore, de Edmondo De Amicis. Um sucesso editorial
disponvel em: www.portcom.intercom.org.br acesso de 10 de nov a 12 de dez de 2013
CELSO, Afonso. Por que me ufano de meu pas Laemert & C. Livreiros (verso digital, 2002, ebooks Brasil)
Editores, 1908.
Pelotas: Ed
POA: BELS
Roma-ITA: Ed Le Monnier,
2011
TAMBARA, Elomar, ARRIADA, Eduardo. Civismo e educao na Primeira Repblica Joo Simes Lopes Neto disponvel em: < seer.ufrgs.br/asphe/article/download/29036/pdf>
acesso de 10 nov a 12 dez de 2013
VERSSIMO, Jos. A educao nacional POA: Ed Mercado Aberto, 1985
283
1. INTRODUO
No sculo XIX, a sociedade brasileira experimentou mudanas significativas causadas
pela transferncia da Corte Real para o Brasil. desse perodo que se pontuou um aspecto a ser
levado em considerao: a condio das mulheres. Como Ubiratan Machado explica (2001), no
incio do sculo XIX, a condio da mulher poderia ser comparada a de escrava. As mulheres
raramente podiam ir sozinhas a qualquer lugar nem mesmo igreja ou visitar seus parentes.
Para piorar a situao, poucas sabiam ler. Alm disso, as suas preferncias de leitura eram
criticadas por crticos do perodo que desaprovavam a tendncia das mulheres a lerem o que
eles chamavam de romances aucarados (LAJOLO e ZILBERMAN, 1996, p. 243). De acordo
com Lajolo e Zilberman (1996), essas crticas mostram que o universo de leitura da mulher
brasileira dos mais restritos, no que, alis, se afina bastante sociedade em que vive. Iletrada
na maioria dos casos, a mulher brasileira faz parte de um mundo para o qual o livro, a leitura e
a alta cultura no parecem ter maior significado. Alm disso, era considerado um risco social
as mulheres lerem e escreverem porque ainda vigorava a mentalidade de que letras e tretas
s serviam para atrapalhar a mulher. Se fosse analfabeta, timo. Para as que aprendiam a ler,
muitas delas contrariando a orientao domstica, bastava a leitura do missal. (MACHADO,
2001, p. 256).
No entanto, de acordo com Maria Amlia Teles (1999),de 1840 em diante, esse cenrio
comeou a mudar, pois aumentou o nmero de escolas para meninas, j que muitas mulheres
comearam a reivindicar seu direito educao. Essas escolas preparavam as moas para
a vida dos sales, despertavam o interesse pela poesia e a curiosidade pelo romance, porm
nada mais ofereciam (MACHADO, 2001, p. 256).Com a alfabetizao gradual das mulheres,
1 Artigo desenvolvido para a disciplina de Teorias Cognitivas do Texto, do Mestrado em Letras da Universidade
de Santa Cruz do Sul.
284
2. FUNDAMENTOS TERICOS
2.1 Representao: entre o emprico e o mental
Em obra utilizada como referncia no presente estudo, Marcuschi pauta-se por Geertz
no que diz respeito anlise das interaes humanas: O homem um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu (MARCUSCHI, 2007, p. 124), ou seja, analisar a cultura
seria analisar de forma situada essa teia de significados, que segundo o autor, no pode ser
estudada experimentalmente, mas sim compreensivamente.
De acordo com Marcuschi (2007), a ordem de nossos conhecimentos e das instituies
que a sustentam no seria uma ordem natural e mundana, mas sim uma ordem cognitiva, histrica
e sociointerativa. Desse modo, a questo no seria saber se o mundo est pronto, incumbindonos de capt-lo conceitualmente, ou, ento, descobrir se possui uma ordem dependente do
mobilirio de nossas mentes abarrotadas de verdades, mas o essencial seria compreender como
a ordem percebida, construda, comunicada e utilizada.
Dizer que a verdade uma relao entre o mundo e o que dizemos sobre ele um tanto
simplista no ponto de vista de Marcuschi (2007), pois o problema est muito mais na natureza
do dito e na natureza do acesso ao mundo do que na natureza da coisa em si mesma, j que
nada bvio e o papel da linguagem na comunicao portentoso. O autor ainda complementa
suas observaes, dizendo que as coisas so no porque as pensamos, mas porque elas podem
justamente ser pensadas e o seu modo de ser no uma questo emprica, e sim uma questo
285
Citando Donald Davidson, Marcuschi explica que a crena torna-se uma condio do
conhecimento, pois as crenas no so individuais ou simples fruto de uma subjetividade
privada, mas de uma comunidade de mentes (MARCUSCHI, 2007, p. 131). Assim sendo, a
coerncia deve ser estabelecida entre um juzo e todos os demais juzos acerca de uma coisa
ou das coisas a ela relacionados. No podemos dizer que tudo aquilo em que acreditamos
verdadeiro, pois temos crenas falsas, j que para uma crena ser considerada verdadeira ela
deve estar de acordo com o corpo geral de crenas:
A verdade e o conhecimento so produes discursivas, mas o mundo no. As verdades
so produes discursivas elaboradas na relao intersubjetiva tendo como ponto de
interseco o mundo emprico e mentes de tal modo constitudas que podem agir
intersubjetivamente com base em princpios e regularidades que operam de modo
similar. (MARCUSCHI, 2007, p. 132)
286
2.3 Contexto
Desde o seu nascimento, o ser humano est inserido em um ou mais grupos sociais. De
acordo com DellIsola (2001), os contextos social e cultural esto intimamente correlacionados,
pois a sociedade e a cultura auxiliam o indivduo no processo de aquisio de conhecimentos, j
que ele depende da vida em conjunto com os outros. A autora tambm explica que:
O conhecimento do mundo pelo indivduo predominantemente social. O indivduo
volta-se para fora de si, externaliza toda sua potencialidade com o objetivo de construir,
criar e recriar o mundo. O mundo social exerce presso sobre o homem e ele internaliza,
reabsorve, em sua conscincia individual, um mundo particular sob a sua tica. Cada
indivduo um ser social que apresenta uma viso de mundo prpria, relacionada
ao conjunto de experincias por ele vivenciadas. A informao sociocultural parte
importante do conhecimento registrado na memria. (DELLISOLA, 2001, p. 103)
287
relao ao seu ambiente. importante ressaltar que no a situao social que influencia
o discurso, mas a maneira como os participantes definem essa situao (VAN DIJK, 2012,
p. 11), desse modo, importante considerar a identidade e os papis dos participantes, lugar,
tempo, instituio, as aes polticas e o conhecimento poltico, entre outros aspectos.
De acordo com o autor, os contextos definidos como modelos mentais, controlam o
processo de produo e compreenso do discurso (influncia da sociedade sobre o texto ou a
fala), assim os usurios da lngua podem moldar o seu discurso apropriadamente de acordo com
a situao em que se encontram.
Os contextos so ao mesmo tempo pessoais e sociais. So sociais, pois tm uma base social
em termos das cognies sociais compartilhadas (ideologias, valores, atitudes, conhecimentos,
gramtica, regras e normas), e so pessoais j que cada indivduo pode representar os fatos
compartilhados de uma maneira subjetiva em relao as suas perspectivas, opinies, emoes,
etc.
Nossa vida diria, como uma sequncia de experincias vividas, uma complexa
estrutura de modelos mentais. Os contextos no so um tipo de situao social objetiva, e
sim construtos dos participantes, subjetivos embora socialmente fundamentados, a respeito das
propriedades que para eles so relevantes em tal situao, isto , modelos mentais (VAN DIJK,
2012, p. 87). Os modelos mentais, de acordo com Van Dijk (2012) representam o modo como
os usurios da lngua interpretam ou constroem do seu jeito os eventos, em funo de objetivos
pessoais, conhecimentos ou experincias prvias.
O autor ainda explica que os contextos so um tipo especial de modelo mental da
experincia diria. So os modelos de contexto que organizam os modos como nosso discurso
estruturado e ajustado estrategicamente situao comunicativa. Esses modelos mentais so
representaes dinmicas e no estticas, pois:
Como os acontecimentos da vida de todos os dias so algo que acontece
continuadamente, seus modelos mentais precisam ser representaes dinmicas, e
no representaes meramente estticas: o tempo, o lugar, as pessoas, as relaes
entre pessoas, bem como suas propriedades e aes, esto constantemente mudando
durante a experincia (VAN DIJK, 2012, p. 105).
288
3. O ESTUDO
3.1 O Jornal das Senhoras
O Jornal das Senhoras foi fundado em 1 de janeiro de 1852, no Rio de Janeiro, por
Joana Paula Manso de Noronha, uma argentina de nascimento. Essa revista parece ter sido
a primeira publicao produzida por mulheres e direcionada ao pblico feminino, no Brasil.
Ela era publicada aos domingos e possua vrias sees: moda, literatura, belas artes, teatro
e crtica. Nas suas oito pginas com duas colunas, o pblico feminino podia encontrar cartas,
versos e tradues de alguns artigos e narrativas ficcionais. No artigo de abertura, publicado
em 1 de janeiro de 1852, a diretora apresentou o objetivo editorial do Jornal das Senhoras:
propagar a ilustrao, e cooperar com todas as suas foras para o melhoramento social e para
a emancipao moral da mulher.
Aps seis meses de publicao, a revista passou a ser dirigida por Violante Bivar e
Velasco, uma baiana, at 12 de junho de 1853; desse perodo em diante, a revista Jornal das
Senhoras foi editada e dirigida por Gervasia Nunezia Pires dos Santos Neves.
Tanto Joana Paula M. de Noronha quanto Violante B. e Velasco publicaram muitos
artigos sobre a emancipao moral e intelectual da mulher. No entanto, no perodo em que
Violante esteve frente da revista, muitos artigos sobre religio comearam a ser publicados
no Jornal das Senhoras, como Os prazeres e vantagens da religio, (18 de julho de 1852)
e O sentimento religioso, (1 de agosto de 1852). Sob a direo de Gervasia, os artigos
que tratavam especificamente da emancipao moral e intelectual da mulher desapareceram
do Jornal das Senhoras, mas esse tpico ainda esteve presente na revista sendo abordado de
um modo mais sutil, j que por emancipao moral da mulher, as diretoras entendiam prover
instruo e educao para as mulheres, para, desse modo, ajud-las a desenvolver seus papis
de esposas e mes. Nesse sentido, artigos para instruir as mulheres passaram a ser publicados
frequentemente na revista. Um exemplo Vantagens do ler (31 de julho de 1853) o qual
apresenta os benefcios da leitura, ao pblico leitor da revista.
De acordo com Eliane Vasconcellos (2000), Joana Paula Manso de Noronha nasceu
na Argentina, em 26 de junho de 1819, em uma famlia culta e progressista. Casou-se no
Rio de Janeiro, em 1844, com o msico portugus Francisco S Noronha. O casal teve duas
filhas, Eullia e Hermnia. Aps passarem um tempo nos Estados Unidos e em Cuba, a famlia
retornou para o Brasil, onde Joana se tornou cidad brasileira para poder estudar medicina.
Pela poca em que fundou o Jornal das Senhoras, o marido apaixonou-se por outra mulher
e a abandonou. Joana ento retornou Argentina, e em 1859 foi nomeada para o cargo de
diretora da primeira escola primria mista de Buenos Aires. Escreveu, na poca, para os jornais
289
290
janeiro de 1852).
No artigo Emancipao moral da mulher, escrito pela prpria editora, a mulher foi
representada atravs de vrios adjetivos que mostram como era vista em relao ao homem,
se um adjetivo no usado diretamente, podemos pressup-lo de acordo com o que dito na
frase.
Adjetivo
Injustiada/ Tiranizada
Coisificada
Inferior
Escravizada
Ignorante
Vitimada
Embrutecida
Serva
Desgraada
291
No mesmo artigo, a autora utiliza adjetivos positivos para descrever a mulher com o
intuito de justificar o verdadeiro papel da mulher em relao ao homem perante a famlia e a
sociedade. Anote-se, em especial, a frase inicial do conjunto de frases selecionado em que a
conjuno adversativa contudo alerta para o fato um tanto inesperado, para a sociedade da
poca, de ser a mulher que d a vida aos homens e perpetua a raa humana.
Adjetivo
Procriadora
Companheira
Graciosa/meiga/risonha
Santa/imaculada
292
a mulher caracterizada pelo autor como um segundo Deus, crucificado outra vez, j que as
mulheres eram tratadas como escravas e viviam como sofredoras:
Se pareceis escravas e se viveis soffredoras em um mundo que vos no faz justia,
vossos suspiros sobem at o Co, apenas espirados de vossos labios immaculados,
e que vossas palavras deso sobre a terra como o orvalho damor para abrandar os
coraes daquelles que vos persegurem.
O que ser a mulher? Crdes que seja um brinco de um instante, que se possa prescindir
e quebrar? [...] A mulher Deus mesmo, revelado em toda a sua graa, rindo-se em
toda sua belleza, falando a nossos coraes com todo o seu amor.
A mulher a palavra de consolao, e o futuro visvel, afim de que ns tenhmos
coragem para viver. [...]
Um s instante de amor da mulher a constancia de uma longa vida; pelos labios da
mulher que passa o sopro de Deus.
293
denotam sua condio sem rebuscamento ou eufemismo, como no perodo de Joana e Violante,
j referidas, desaparecem. No entanto, podemos notar uma caracterizao da mulher de forma
indireta atravs dos ttulos dos artigos que passam a ser publicados. Alguns desses ttulos so:
Modo de restituir o lustro as fazendas lisas (12 de junho de 1853), Efeitos saudveis da
ginstica (26 de junho de 1853), Massa de batatas para o uso do toucador (03 de julho de
1853), As dores de dentes (04 de setembro de 1853), Meio de obter sem destilao a essncia
de flores odorferas (11 de setembro de 1853), Modo de curar as verrugas (30 de outubro de
1853).
Podemos inferir atravs dos ttulos mencionados, que a mulher indiretamente
caracterizada como dona de casa, pois quem geralmente se preocupa em ter conhecimento
sobre como curar verrugas ou em saber como preparar massa de batatas, so mulheres do lar
que no tm outra preocupao que no a vida domstica, no tendo oportunidade de ser seno
esposas e mes sem oportunidades de ter uma instruo mais elevada, de cunho cientfico. Essa
anlise, claro, levando-se em considerao o sculo XIX, perodo em que a educao destinada
s mulheres era muito diferente da atualidade, ainda que at nossos dias o salrio das mulheres
que exercem as mesmas funes masculinas ainda mais baixo.
4. COMENTRIOS FINAIS
Considerando-se o perodo em que a editora foi Joana Paula Manso de Noronha, os
textos selecionados do perodo em que ela foi editora da revista, contm uma caracterizao
lingustica bastante negativa das mulheres. A autora expe a chaga, faz a exposio do modo
como as mulheres eram tratadas, sem chegar a fazer contestao. Por exemplo, os adjetivos da
amostra selecionada foram escravizada, serva, ignorante e desgraada, no expressando os ideais
de mulher que Joana possua, claro. O levantamento dos adjetivos utilizados no artigo traduz o
modo de conceber o papel social da mulher tpico da poca. A redatora embasou-se naquilo que
sabia a respeito da vida das mulheres -seu conhecimento prvio -,evidenciando a forma como a
mulher era representada nos coraes e mentes da sociedade do sculo XIX.Tambm no outro
artigo do mesmo perodo, a jornalista apresenta a mulher idealizada como me e esposa, sempre
presente, mas s visvel quando necessrio, permanentemente disposio da famlia, do pater
familiae. Nos artigos do perodo de Gervsia dos Santos Neves, as publicaes caracterizam
as mulheres como donas de casa, e no modo de expresso utilizado, no se percebe revolta,
mas at aceitao, podendo-se perceber que devido s crenas e ideologias daquele perodo
histrico, a imagem da mulher era construda dessa forma, pois como j vimos anteriormente,
pouco estudava e estava sujeita ao homem para prover o seu sustento. Seu papel era de figurante,
294
Referncias
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sociocultural. Belo Horizonte: Formato, 2001.
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cultura e categorizao In: Cognio, linguagem e prticas interacionais. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2007.
295
TELES, Maria Amlia de A. Brasil Imprio (1822-1889) In: Breve histria do feminismo no
Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1999.
296
Introduo
Este trabalho almeja explorar o potencial descritivo dos frames semnticos como recurso
de descrio complementar aos procedimentos lexicogrficos tradicionais. Como desdobramento
desse objetivo inicial, proporemos uma aplicao da lgica que rege a organizao da base de dados
lexical FrameNet a uma proposta de dicionrio temtico do futebol. Para tal, apresentaremos a
lexicografia, que est inserida em conjunto de abordagens conhecido como Cincias do Lxico.
A Lexicografia ocupa-se de duas atividades: primeiramente, a criao de dicionrios, sejam eles
de lngua ou especializados desse ltimo, ocupa-se a Terminografia, conforme veremos;
em segundo lugar, ocupa-se dos estudos acerca dos diversos tipos de dicionrios um ramo
da Lingustica Aplicada. Em seguida, apresentaremos as plataformas FrameNet, construda
com base no conceito de frame semntico, de Charles Fillmore, e The Kicktionary, uma base
lexical multilngue de dados voltada linguagem do futebol e, da mesma forma, orientada pelo
conceito de frame. Por fim, proporemos um modelo de glosa para um vocbulo da linguagem
futebolstica em Portugus do Brasil, nos moldes oferecidos pela plataforma FrameNet.
297
tipo evidenciam o conhecimento geralmente sem perceber dos falantes sobre a necessidade
de conhecer o lxico da lngua que desejam aprender, o que nos leva centralidade1 do lxico
nas lnguas naturais.
Conforme Lorente (2004), a Lexicografia interessa-se pelo estudo do lxico de forma
completa e integrada (p. 19). Insere-se em um contexto mais amplo denominado Lexicologia,
cujos desdobramentos privilegiam a Morfologia, a Sintaxe, a Semntica, a Pragmtica e
a atividade de elaborar dicionrios e demais aplicaes que envolvem o lxico. Como nos
diz Lorente (2004), a Lexicologia comumente chamada de Morfologia Lexical, Semntica
Lexical, Lexicografia e Terminologia. Esse conjunto de abordagens sugere uma diversidade
no tratamento dos fenmenos que tangem ao lxico: como quer Lorente (2004) so diferentes
perspectivas, ou explicaes parciais2, complementares, sobre o fenmeno que se propem a
estudar. Essas abordagens ainda tomam a linguagem como produto da cognio e do convvio
em sociedade dividido pelos falantes, de modo que as descries de lnguas so orientadas para
esses falantes e seus respectivos contextos.
Os estudos do lxico nascem na antiguidade, precisamente na Grcia. A preocupao dos
gramticos gregos era a ortografia correta, ou como escrever corretamente, nas palavras de
Lorente (2004). Foi nessa poca que tambm surgiram os glossrios literrios e cientficos,
estabelecendo que a hiptese de que o lxico infinito (p. 21). Conforme a metfora
anteriormente citada o lxico o pulmo das lnguas possvel perceber a importncia
desse componente para a existncia de uma lngua. Conforme Krieger (?), funo do lxico
nomear os seres, os objetos, as aes e os processos que identificam o mundo fenomenolgico e
o mundo percebido pelo ser humano. Como ingrediente fundamental de uma lngua, o lxico
uma entidade mutvel (mudana diacrnica, no sentido puramente saussureano), multifacetada,
como coloca a professora Krieger. Embora descontnuo, na medida em que mutvel, o
lxico apresenta, tambm, aspectos regulares, denominados por Krieger como regularidades
constitutivas, como estruturas gramaticais (ou os morfemas, unidades de significado que
cotejam a gramtica). As unidades bsicas dessas investigaes so as palavras e, como j
nos referimos, os morfemas, no que tange Morfologia. A Lexicografia, por sua vez, tem a
preocupao de enquadrar as palavras no molde dicionarstico, nas palavras de Krieger.
Acompanhando as palavras, viriam informaes de natureza metalingustica, os chamados
dados descritivos, que integrariam a articulao interna do verbete: etimologia da palavra
(sua (s) origem (ns)), sua classe gramatica, seu gnero, nmero etc.
Na seo intitulada o lxico no dicionrio, que integra o artigo Lexicografia: o lxico no
1 Conforme Krieger (s/d), o lxico o pulmo das lnguas. Retomaremos essa metfora no decorrer deste
artigo.
2 Percebe-se o tom estruturalista adotado pela autora em questo (grifo meu).
298
299
de uma lngua. A inteno desse homem ao criar uma obra desse tipo era proteger o Latim
dos seus derivados preciso lembrar que o Latim era a lngua prestigiada na poca, sendo
a lngua oficial da igreja e da Universidade. Alm disso, como nos diz Krieger valendo-se
das palavras de Rey (1970), o dicionrio tambm facilitaria o aprendizado de outras lnguas
vivas, alm de garantir seu bom uso. Alm disso, como pontua Krieger, o dicionrio goza de
notria autoridade em sociedades de cultura ou, em sociedades em que a cultura das letras
valorada, parafraseando Krieger.
O dicionrio tem por funo representar e sistematizar o lxico de uma lngua, e isso se
d na forma dos verbetes, que delimitam as fronteiras de significado e o funcionamento das
palavras. Retomando uma ideia trazida por Krieger, o lxico uma entidade mutvel, viva, e,
portanto, o contedo dos dicionrios apenas uma representao das palavras que integram
uma lngua. Os dicionrios, usando um termo da prpria lexicgrafa, projetam uma imagem
do lxico. Nesse sentido, o lxico tomado como um componente linear, com organizao
interna prpria e estabelecido a priori. Como afirma Krieger, um dicionrio um texto com
regras prprias de organizao, e a criao de um texto desse tipo requer, de forma simultnea,
saberes de ordem terica e pragmtica.
Apresentada a lexicografia em linhas gerais, cabe abordar suas tipologias. O fazer
lexicogrfico, como alude Krieger, no algo homogneo: volta-se a diferentes fins, e, nesse
sentido, tem objetivos e pblicos distintos. Essas tipologias, de uma certa maneira, tambm
dizem respeito aos critrios organizacionais relacionados prtica dicionarstica. So esses
princpios que definem, entre outras coisas, o perfil de usurio a que a obra se dedicar. Os
princpios metodolgicos giram em torno das nomenclaturas e do conjunto de entradas que
compem um texto dicionarstico. Essa nomenclatura diz respeito estrutura mrfica dos itens
lexicais e no contempla suas formas flexionadas. O modelo clssico de registro de palavras o
seguinte: para substantivos e adjetivos, valem suas formas grafadas no masculino e no singular;
para os verbos, o que conta a forma infinitiva4. No que tange s entradas propriamente, um
dos desafios so as lexias complexas, as quais suscitam a possibilidade de uma nova entrada
para descrev-las, ou a abertura de uma subentrada relacionada s partes que constituem a tal
lexia complexa. Essas entidades possuem significados que so por vezes difceis de delimitar,
alm da j mencionada problemtica das entradas juntas ou separadas, conforme j pontuamos,
a partir das contribuies de Krieger. Por exemplo, a lexia complexa cabea-dura pode ser
registrada como subentrada do item cabea, assim como limpa-trilho, da mesma forma, pode
receber uma entrada parte.
A homonmia outro desafio ao registro de unidades lexicais em um dicionrio. Geralmente,
itens homnimos so sistematizados em entradas distintas em um dicionrio.
4 Processo conhecido como lematizao (grifo nosso).
300
Da mesma forma, os sentidos especializados de itens lexicais vigoram no fim das entradas
de dicionrios comuns ou mundanos, usando um termo de Josette Rey-debove (1986) retomado
pela professora Krieger em seu artigo.
Como j nos referimos, a elaborao de uma obra de carter lexicogrfico implica uma srie
de escolhas metodolgicas, como nos diz Krieger de forma categrica. Geralmente o significado
aparece em uma entrada de forma estratificada: alm de sua definio, tem-se a palavra com
suas marcas de uso, que contemplam aspectos sociolingusticos de variao como formal
e informal, culto e popular, coloquial e gria, conhecimento especializado etc. Dentre essas
marcas de uso, inclui-se a polissemia. Isso o que faz de um dicionrio uma obra estruturada.
Primeiramente, tem-se o funcionamento discursivo das palavras como elas atuam em situaes
de uso e em segundo lugar tem-se sua dimenso semntica seu significado. Em relao a
esse ltimo fator, diz-se, pois, que o dicionrio uma obra orientada de forma semasiolgica:
parte do signo em direo ao significado. Como prope Krieger, o carter semasiolgico de
um dicionrio permite um equacionamento entre significado e seus definidores, isto, , na
metalinguagem que auxilia o consulente na compreenso do significado. Esses procedimentos
tambm nos remete a uma noo de base para a lexicografia: a acepo. A acepo est ligada ao
significado de uma palavra, que deve ser sistematizado pelo lexicgrafo por meio da definio.
Como nos diz Krieger, definir uma elaborao cognitiva do lexicgrafo, ou seja, ainda nas
palavras da linguista, a definio consiste na metalinguagem que define os mltiplos dizeres
de um item lexical (Krieger, 1993). Para a terica, esse um ponto fundamental na elaborao
dicionarstica. No que tange s palavras gramaticais, a metalinguagem empregada em sua
descrio basear-se- em seu funcionamento dentro da gramtica da lngua.
At aqui temos nos referido ao dicionrio monolngue ou de lngua, que se ocupam do
lxico de uma lngua, de forma geral, tendo como objeto de descrio a palavra. Passaremos
agora outra ramificao da lexicografia, a Terminologia, cujo objeto de descrio o termo.
A terminologia tem por objetivo elaborar glossrios e bancos de dados representativos do
conhecimento especializado. Essa dicotomia entre palavra e termo nos remete s j citadas
problemticas especficas e os diferentes objetos de cada tradio lexicogrfica. O termo, como
bem aponta Krieger, pode ser definido como a palavra em uso profissional: o termo vincula
conceitos de reas especficas do conhecimento, como a msica, a medicina, a culinria etc. Essa
separao entre a tradio lexicogrfica e terminolgica no rgida, como enfatiza Krieger: h
uma espcie de retroalimentao, na medida em que a prtica lexicogrfica sofre vulgarizao
terminolgica palavras corriqueiras viram termos ao adquirirem sentidos especializados
mesma proporo que a Terminologia colhe algumas unidades lexicais da linguagem corriqueira
e confere-lhes valor especializado5.
5 Retomaremos esse ponto na parte aplicada deste artigo: mostraremos que no domnio do futebol muito fre-
301
Essa oposio entre palavra e termo, como aponta Krieger, tem um fundo epistemolgico,
afinal, o lxico no um bloco heterogneo, pois, segundo a lexicgrafa, possui vrios
ngulos de composio. O lxico, portanto, influenciado, ou moldado por trs fatores
fundamentais: tempo, espao e registro. Em relao ao tempo, fala-se em variao diacrnica,
que diz respeito s mudanas que os itens lexicais apresentam conforme a passagem do tempo,
ou em um espao de tempo determinado; a variao diatpica, que diz respeito s influncias do
espao que os falantes ocupam sobre a estrutura lingustica do idioma daquela comunidade; por
fim, temos a variao diastrtica, que diz respeito ao j mencionado registro culto, literrio,
formal, popular, coloquial e especializado. A terminologia, como j nos referimos, contempla
esse ltimo o domnio especializado.
Tendo situado de forma sinttica a lexicografia e a terminologia, no espectro dos estudos do
lxico, vlida de meno a vertente aplicada desses estudos.
Como nos diz Lorente (2004), as aplicaes lexicais, fundamentalmente, contemplam duas
atividades: a criao de analisadores sintticos e morfolgicos, voltados a uma sistematizao
eficiente do lxico (p. 28), e aquilo qu se pode chamar de lexicografia computacional, que se
ocupa da representao integrada da informao lexical e do enriquecimento automtico dos
dicionrios monolngues. Os principais desafios enfrentados nessas aplicaes dizem respeito
sistematizao da polissemia, e da sinonmia, processos relacionados diretamente ambiguidade
lexical. Os procedimentos da lexicografia computacional tambm dizem respeito ao que se
chama de engenharia lingustica: uma srie de esforos para efetuar a extrao automtica de
termos, desenvolver sistemas de recuperao de informao, criar tesauros e ontologias por
meio de programas de computador.
Nesta seo procuramos traar um breve panorama da lexicografia e de suas aplicaes no
mbito do estudo cientfico das cincias do lxico. Passaremos agora a duas dessas aplicaes,
a FrameNet (Fillmore et ali, 2003) e o The Kicktionary (Schmidt, 2009), para, ento, chegarmos
parte aplicada deste artigo.
A FrameNet
A FrameNet um projeto desenvolvido na Califrnia, na Universidade de Berkeley, nos
Estados Unidos. Esse projeto tem como objetivo catalogar todas as valncias dos itens lexicais
da lngua inglesa e disp-los para consulta online por intermdio dos frames semnticos,
propostos por Fillmore (1977, 1982, 1985).
302
Ao digitar uma unidade lexical no campo de busca (search), o consulente tem acesso aos frames
que aquela unidade evoca. Vejamos quais frames semnticos a unidade lexical burn.v em
Portugus, queimar evoca:
303
Os frames, embora sejam entidades conceptuais que estruturam a cognio do seres
humanos, podem ser conceptualizados por unidades lexicais, eu seriam as representaes
lingusticas desses mesmos frames.
A definio do frame a primeira informao que a FrameNet prov ao usurio: no
caso desse frame, a definio um experienciador est envolvido em uma situao em que
uma parte de seu corpo machucada por uma entidade que machuca. As expresses em itlico
denotam os elementos de frame, ou seja, os constituintes dessas representaes mentais a que
Fillmore intitula frame. Alm da UL burn.v, evocam esse frame demais unidades lexicais cujo
significado associado ao ato de machucar-se.
A presena de uma definio j aproxima a FrameNet aos procedimentos clssicos de
elaborao de dicionrios. Semelhantemente a um dicionrio, a FrameNet parte da perspectiva
semasiolgica: do frame para o significado, porm. Essa definio diz respeito ao frame, que
considerada a categoria superordenada s unidades lexicais priorizando a descrio do frame,
as unidades lexicais podem ser obtidas a partir da situao que o frame evoca, ao invs de
descrever uma unidade lexical por vez. Esse processo amplia o potencial descritivo do campo
semntico coberto pelo frame e, ao mesmo tempo, poupam lexicgrafo da definio exaustiva
daquelas unidades lexicais que dizem respeito, por exemplo, ao dano fsico queimar, bater,
quebrar etc. A FrameNet, assim como um dicionrio convencional, tambm prov informaes
acerca do contexto de uso das unidades lexicais relacionadas aos frames preciso frisar que
as sentenas que ilustram as realizaes das unidades lexicais so todas retiradas de corpora, ou
seja, so evidncias de uso real da lngua, o que exclui a introspeco do linguista como fonte
304
de dados de pesquisa.
Alm dessas informaes, a FrameNet tambm prev o inventariado de todas as valncias
possveis para os itens lexicais do ingls, isto : almejam sistematizar todas as possibilidades
combinatrias usadas pelos falantes da lngua inglesa:
Na figura, possvel observar uma sentena cuja estrutura obedece ao modelo SN+SP on:
queimar as pernas nos bancos de metal.
A FrameNet certamente um recurso lexical marcadamente influenciado pela lexicografia
tradicional. Acreditamos que as informaes brevemente trazidas aqui tenham colaborado para
assentar o fato de que tal aplicao tem muito a contribuir srie de abordagens existentes no
paradigma de estudos que se conhece como Lexicografia.
6 Note-se a anterioridade dessa hiptese: a verso da teoria dos frames que est na base da FrameNet Fillmore
(1983) e continuada em Fillmore (1985), onde as cenas j no so mais consideradas. (grifo nosso)
7 Reside aqui a diferena elementar entre as duas verses da teoria: em Fillmore (1982, 1985) o frame passa a ser
a entidade conceptual abstrata e a unidade lexical, por sua vez, sua representao lingustica. Em outras palavras,
cabe ao frame aquilo que era atribudo cena: estruturar um evento de forma abstrata na mente dos falantes (grifo
nosso).
305
Figura 5 frame passe e seus elementos de frame conforme a plataforma The Kicktionary
Dentre as ULs que evocam o frame passe, encontra-se o verbo to pass passar, em Portugus.
Alm desse, podemos citar cruzar, assistir, centralizar, alm de alguns substantivos como
cruzamento, passe longo etc.
Se comparado FrameNet, o The Kictionary apresenta algumas inconsistncias que
se justificam, em primeiro lugar, pelo fato de o pesquisador alemo no ser um linguista
propriamente dito, mas um informata. Alm de ter compilado os corpora obtidos atravs do
site da UEFA, o pesquisador tambm desenvolveu as prprias ferramentas de anotao de
corpus, o que algo admirvel. Porm, dentre as crticas que poderamos citar, diramos que h
306
inconsistncias do ponto de vista terico, primeiramente: as cenas j foram recusadas por seu
prprio idealizador, Charles Fillmore, mas Schmidt as mantm. Em segundo lugar, o nmero de
sentenas anotadas oferecidos para a lngua inglesa notavelmente inferior riqueza de dados
oferecida para a lngua alem no coincidentemente a lngua do proponente do projeto. Ainda,
os dados dispostos na plataforma carecem de descrio: por exemplo, os frames no possuem
glosa, ao contrrio das cenas, que so genericamente descritas atravs de meno aos frames
que as compem.
Com base nessas observaes, proporemos um modelo de glosa que complemente as
informaes oferecidas pela plataforma de Schmidt. Nosso modelo tomar como base as glosas
da FrameNet, que se mostram muito didticas no que tange sistematizao das informaes
lexicais.
307
Descreveremos a entrada para o sentido prototpico desse verbo, cujo nmero de ocorrncias
(173) foi o maior: tocar transferir a posse de bola entre jogadores da mesma equipe, conforme
mostram as sentenas do estudo de corpus:
15 depois , com o domnio completo do jogo
tocando bem a bola , o jogo parecia confinado
e
de primeira para Muller , que lanou
Andr recebeu uma bola da esquerda e
tocou
rapidamente
para Guilherme na ponta esquerda ,
Aos 15 min , Leonardo
tocou
recebeu
para Zinho que chuta . Marco Aurlio
25 do Palmeiras e lana Paulo Isidoro . Ele toca
espalma
de primeira para o meia-esquerda (
um lado e para o outro . Recebe a bola e
toca
Borodiuk
questo de tempo , pois novamente
tocava
com percia para Caso completar os 3 a
Marcelinho
Tendo elegido o sentido prototpico do referido verbo, e de posse de algumas ocorrncias desse
sentido prototpico, podemos propor uma glosa nos moldes da FrameNet. Tambm preciso
referir-se aos padres valenciais (outro tipo de informao metalingustica que pode ser til
na representao dicionarsticas do lxico de uma lngua), que podem ser depreendidos das
concordncias supracitadas.
308
Frame: Passe
Unidade Lexical: tocar.v
Definio: Ato de transferir a posse de bola entre jogadores da mesma equipe. O jogador que
passa transfere a bola para o jogador que recebe.
Sentenas exemplo:
Padres Valenciais:
1.SV+ SP de + SP para
2.SV ger+ SN
Relaes de sentido:
309
que tangem ao uso da linguagem como o caso dos dicionrios, desde os tempos antigos.
Consideraes finais:
Esperamos ter tido sucesso na defesa de nossa hiptese de que os frames semnticos
podem vir a complementar procedimentos tradicionais da prtica lexicogrfica leia-se
compilao de dicionrios gerais e especializados. Cremos que as aplicaes computacionais
que envolvem informao morfossinttica (partes do discurso, por exemplo) e semnticas
(as camadas dedicadas ao registro das informaes contidas nos frames) so uma importante
contribuio da lexicografia computacional para o processamento da linguagem natural, algo
que est presente em praticamente todas as ferramentas de comunicao da ps-modernidade.
Tambm vlido de meno o desafio encontrado na sistematizao do lxico
futebolstico logo, especializado: corroborando com a hiptese de Krieger, o lxico do futebol
sofre influncias do lxico geral do portugus brasileiro o a acepo do verbo tocar em
contexto futebolstico, por exemplo. Outro desafio diz respeito s lexias complexas do domnio
futebolstico: chute longo, passe de calcanhar, gol de bicicleta, entre outras, representam um
desafio cuja soluo reside na adoo de um ponto de vista metodolgico para a descrio e
sistematizao do significado relacionados a essas lexias.
Referncias:
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York: Mouton de Gruyter, pp. 101-132, 2009;
310
311
Gilka da Costa de Melo Machado nasceu no Rio de Janeiro em 1893. A poeta estreia
com Cristais partidos em 1915. Ainda publicou Estados de alma (1917), Mulher nua (1922),
Meu glorioso pecado (1928), Carne e alma (1931), Sublimao (1938) e Velha poesia (1965).
Gilka aparece em uma posio secundria nas principais histrias da literatura brasileira. Sua
produo, na viso dos historiadores e estudiosos da literatura brasileira, se enquadra em um
perodo em que convergiram tendncias parnasianas e simbolistas. Ao longo de sua carreira, a
poeta se deparou com crticas severas ao teor ertico de seus versos. Por outro lado, tambm
encontrou algumas opinies favorveis, que a consideraram uma das mais importantes vozes da
poesia brasileira do sculo XX.
Ao penetrar no tecido simblico de Cristais partidos, identificamos algumas imagens
recorrentes, entre elas, a da Lua. O astro noturno ocupa um espao privilegiado na lrica gilkiana,
sendo uma constante em outros livros, como Estados de alma. Buscamos, no presente texto,
mostrar como a imagem da Lua apresentada pela poeta em duas composies: Falando
lua e Luar de inverno. importante frisarmos que este trabalho consiste em um recorte
da dissertao de mestrado Uma leitura de Cristais partidos, de Gilka Machado pelo vis do
imaginrio, em que tencionamos compreender como as imagens simblicas atuam na produo
de sentido do texto lrico. O referencial terico se fundamenta, sobretudo, na antropologia do
imaginrio de Gilbert Durand, em que se destacam a dimenso simblica da imagem e a sua
essncia epifnica. Alm das reflexes e das interpretaes sobre os smbolos propostas por
Durand, contamos tambm com o auxlio do Dicionrio de smbolos, de Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, bem como as consideraes de Gaston Bachelard e de Mircea Eliade.
Gilbert Durand (1971) acredita que a nossa conscincia dispe de duas formas para
representar o mundo sensvel: uma direta, em que o objeto se apresenta ao esprito, na percepo
ou simples sensao, e outra indireta, em que impossvel ter um contato direto com a coisa.
O smbolo se aproxima do pensamento indireto, uma vez que, neste caso, o objeto ausente s
consegue se re-presentar para ns atravs de uma imagem.
312
O smbolo, apesar de ser inserido pelo autor na categoria dos signos lingusticos, se afasta
do simples signo, porque seu significado no representvel e no remete ao objeto sensvel,
mas somente a um sentido. A imagem simblica, na percepo de Durand, procura representar o
inefvel, o indizvel. O autor (1971, p. 15) sublinha que al no poder representar la irrepresentable
trascendencia, la imagen simblica es transfiguracin de una representacin concreta con un
sentido totalmente abstracto. Nesse sentido, a imagem simblica essencialmente epifnica,
transcende o significado convencional e instaura um sentido secreto, um significado novo.
Durand estabelece uma classificao dos smbolos, baseada nas trs dominantes reflexas
verificadas na criana recm-nascida: a dominante postural, a dominante digestiva e a dominante
copulativa. Nesses reflexos motores primordiais esto presentes as trs linhas dinmicas do
imaginrio humano. Cada dominante sugere uma matria, uma tcnica e um instrumento ou
utenslio, conforme explica o terico:
[...] o primeiro gesto, a dominante postural, exige as matrias luminosas, visuais e
as tcnicas de separao, de purificao, de que as armas, as flechas, os gldios so
smbolos frequentes. O segundo gesto, ligado decida digestiva, implica as matrias
de profundidade; a gua ou a terra cavernosa suscita os utenslios continentes, as taas
e os cofres, e faz tender para os devaneios tcnicos da bebida e do continente. Enfim,
os gestos rtmicos, de que a sexualidade o modelo natural acabado, projetam-se
nos ritmos sazonais e no seu cortejo astral, anexando todos os substitutos tcnicos do
ciclo: a roda e a roda de fiar, a vasilha onde se bate a manteiga e o isqueiro [briquet], e,
por fim, sobredeterminam toda a frico tecnolgica pela rtmica sexual. (DURAND,
2002, p. 55)
313
que muitos estudiosos perceberam a polivalncia das representaes lunares. Para o ele (2002,
p. 288) a lua um astro ao mesmo tempo propcio e nefasto [...]. Gilka explora essa dualidade
no poema Falando lua. Nas primeiras estrofes, o eu lrico nos apresenta uma Lua dominada
pela melancolia:
Triste como a saudade, a dor suprema,
raias Lua, do horizonte porta!
vens aureolada por luzente estema,
como uma virgem morta.
Como s formosa, minha Lua, quando,
esparzindo no cu teus raios lentos
as almas de tristezas vais semeando,
para colher lamentos!...
(p. 43)
Nos versos acima, vemos que a seleo lexical (triste, saudade, dor, virgem
morta, tristezas, lamentos) traduz um sentido negativo. O fato de a Lua estar envolta por
uma luzente estema, na primeira estrofe, nos remete sua fase obscura, ou seja, Lua Nova. A
imagem da virgem morta, por sua vez, acentua a ideia de morte, suscitando o frio e o lgubre
associados ao astro noturno. Porm, o sujeito potico, mesmo delineando essa caracterizao
mrbida da Lua, mantm um tom cordial ao se dirigir a ela, como verificamos no segmento
Como s formosa, minha Lua [...] (p. 43), na segunda estrofe. Sendo a Lua aquela que semeia
tristeza nas almas humanas e colhe os lamentos, ela possui um influxo negativo sobre o eu. O
movimento vagaroso do luar, indicado pelo verbo esparzir, que significa dispersar aos poucos
e, no plano sonoro, pelas rimas externas ando e ento, refora uma impresso negativa sobre
a Lua.
Contrariando essa perspectiva, nas estrofes que seguem, deparamo-nos com uma Lua
mistificada que tem uma ao benfica sobre o eu lrico. H uma nfase sobre a sua capacidade
iluminadora, verificada na reiterao da palavra luz e no emprego da imagem da lanterna,
smbolo da luz:
[...]
Lua amiga, marmrea Lua-cheia,
alma da Noite, mstica lanterna,
minha dor traz luz, de luz semeia
a minha noite eterna.
314
(p. 43)
A Lua Cheia considerada a fase em que o astro se encontra no seu auge, corresponde
fase da luz, oposta sombria (Lua Nova). possvel pensarmos que a sua capacidade
iluminadora se redobra, o que explica a ao benfica sobre o eu. Na quarta estrofe, a forma,
o brilho e a aparncia nacarada da prola a aproximam do astro das noites. Alis, a origem da
prola, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009), pode estar nas guas ou na prpria lua.
Delicadeza e pureza, qualidades sugeridas pela prola, tambm esto subjacentes imagem da
rosa, consolidando, portanto, uma revalorizao positiva do astro. No seu eterno viver, morrer e
renascer, a Lua, como reconhece o eu, tmulo do passado, por que nela se refletem as vidas
j extintas.
A Lua guardi como pressupem as denominaes consoladora amiga e irm das
almas boas. A imagem do anjo anuncia esse carter, visto que representa uma entidade divina
que protege, cuida. O smbolo do cofre, veiculado no poema, aponta para uma forma fechada
e continente, que podemos associar ao invlucro do tero materno. A Lua, como uma me,
encerra o amor, ela consola, alenta as almas sofredoras:
[...]
Cofre de amor, inviolvel cofre!
anjo que a minha solido povoas,
consoladora amiga de quem sofre
irm das almas boas,
[...]
(p. 44)
Percebemos que o sujeito potico reanima uma influncia materna da Lua, chegando a
humaniz-la. Essa viso do eu se aproxima, de alguma forma, das reflexes de Chevalier e
Gheerbrant (2009, p. 564) acerca do astro noturno. Eles ressaltam esse simbolismo materno da
Lua ao afirmarem que:
Na mitologia, folclore, contos populares e poesia, este smbolo [a Lua] diz respeito
divindade da mulher e fora fecundadora da vida, encarnadas nas divindades da
fecundidade vegetal e animal, fundidas no culto da Grande Me (Mater magna). Essa
315
Porm, conforme estudiosos (2009, p. 564), a Lua est presente no 18 arcano principal
do Tar. A partir das leituras feitas por determinados intrpretes, os autores entendem que
esse arcano manifestaria, entre outros aspectos, a tristeza, a solido e a falsidade. No poema
analisado, o astro noturno considerado pelo eu como uma fogueira, smbolo de destruio,
na medida em que suscita o fogo que queima e aniquila. A imagem das cinzas tambm exprime
esse sentido de morte. Logo, a Lua apresentada sob o signo do nefasto, ela enganadora, j
que atrai os sonhos e os elimina:
[...]
Lua fogueira dos jardins celestes,
que lanas magas, malfazejas luzes,
e os nossos sonhos atraindo, prestes,
a cinzas os reduzes.
[...]
(p. 44)
Por outro lado, a imagem da Virgem Maria, empregada no poema, na tradio crist,
simboliza pureza, maternidade e benevolncia. Novamente, se institui uma ligao entre a Lua
e a figura da me. A Lua se revela meio divina e meio humana, como sugere a imagem de Maria.
Ela adquire uma imponncia, elevada a uma condio superior:
[...]
Lua reflexo da imortal e pura
alma da excelsa e celestial Maria,
fonte que entornas da estrelada altura
tua luz sombria...
[...]
(p. 44)
Nas estrofes examinadas, o sujeito lrico continua revelando o carter dual da Lua
mediante imagens valorizadas positivamente (cofre de amor, anjo, Maria) e outras
valorizadas negativamente (fogueira, demnio, cinzas). Um misticismo e um mistrio
rondam o astro noturno, que, harmoniza o benfazejo e malfazejo.
316
Depois de uma srie de afirmaes, o eu lrico d voz s suas inquietaes. Vemos
que a ambiguidade da Lua reafirmada na invocao das figuras do anjo e do demnio,
que remetem oposio entre o bem e o mal. O uso da conjuno ou no segmento anjo
ou demnio demonstra essa indefinio do astro na percepo do eu potico. Se, por um
lado, a Lua faz recordar o amor do passado, por outro, essa lembrana sinnimo de angstia
e de saudade. interessante notarmos que, conforme expe o sujeito lrico, a luz do astro
no tem efeito sobre a mgoa e a saudade. Isso nos aproxima da passividade da Lua, j que
sua luminosidade resultado do reflexo da luz do sol. Como reconhece o eu o luar gera,
simultaneamente, benefcios e malefcios, ou seja, tem uma boa e m influncia sobre o
indivduo, como verificamos nos versos a seguir:
[...]
Mas, dize: porque sempre que te fito
anjo ou demnio que no empreo vagas
fazes lembrar-me de um amor maldito,
l, das cerleas plagas?
Porque razo os raios teus no agem
contra esta mgoa, esta saudade crua,
e desse que amo vens trazer-me a imagem
na claridade tua?
[...]
(p. 44)
No entanto, nas ltimas estrofes, parece-nos que o eu volta a crer nas foras superiores
do astro noturno, adotando um tom de splica. A Lua figura como intercessora dos apaixonados
e dos amores impossveis1. Ela , sublinha Mircea Eliade (1993) senhora de todas as coisas
vivas e considerada a divindade que urde o vu csmico e tece os destinos humanos. Portanto,
tem poder sobre a vida humana, o que significa que ela, como nos mostra o eu, consegue atar
um destino ao outro, um ser ao outro:
[...]
Oh! Se possvel, astro meu, te fosse
Fazer esse ente dedicar-me afeto,
como o viver, ento, ser-me-ia doce,
1 Em algumas histrias de amor, s vezes, observamos que o amante olha para a lua, na esperana de que em
algum lugar, sua amada faa o mesmo.
317
de ventura repleto!...
Ao menos, Lua branca, Lua fria,
minora o mal que a alma me oprime e invade,
nos raios teus um seu suspiro envia,
leva-lhe esta saudade...
Nada h que o teu silncio desencante,
nem que atenue teu fulgor daninho
e foges nvea pomba soluante,
procura de ninho...
(p. 45)
Na estrofe final, o sujeito potico reitera a dualidade da Lua, considerada soberana e
vulnervel. Nada capaz de romper com o seu silncio, do mesmo modo que nada consegue
ofuscar o seu brilho intenso. Contudo, a imagem da pomba que foge procura do ninho denota
fragilidade. Reconhecemos, ento, a ambivalncia que, de acordo com Durand (1971), pode
haver em um mesmo smbolo, como o caso da Lua. A harmonizao entre os valores positivos
e os negativos nos faz integrar essa imagem no Regime Noturno do imaginrio. A imaginao
noturna, segundo autor (2002), permite um estreitamento e at uma reconciliao entre as
contradies. A Lua na sua essncia uma ligadora, unificadora de qualidades inconciliveis.
Em algumas tradies, o astro aparece vinculado tcnica da tecelagem e a aranha surge
como seu atributo. A esse respeito Eliade (1993) expe que:
harmonias, simetrias, assimilaes, participaes, coordenadas pelos ritmos lunares,
constituem um tecido sem fim, uma rede de fios invisveis, que liga, ao mesmo
tempo, homens, chuvas, vegetaes, fecundidades, sade, animais, morte, regenerao,
vida post mortem, etc. (ELIADE, 1993, p.148).
Esse simbolismo lunar se manifesta atravs de imagens como o fio, o tear, a teia e a
aranha, presentes no poema Luar de inverno. Na primeira estrofe, coexistem a treva e a luz,
pois o brilho da Lua atravessa a escurido da noite: Projeta-se na treva a amarelada chama/ da
Lua que parece um crio a se esgotar;/ um luar de cera se derrama.../ ceroso torna-se todo o ar.
(p. 46). A imagem do crio, que simboliza a luz, reforada pela aluso chama, cor amarela
e cera. A vela se deixa consumir para iluminar, traduzindo, assim, uma ideia de sacrifcio. J o
amarelo, assinalam Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 40-41), indicia o declnio, a morte, apesar
de tambm ser a cor da eternidade. Sob tais aspectos, inferimos que essa luz amarelada do crio
que se consome pouco a pouco aponta para a fase minguante da Lua.
318
Na segunda estrofe, a noite se impe sobre a terra tornando-a um espao esquecido,
como se nele habitasse a morte: Da tristeza interior do meu sonho, contemplo/ a noite aberta
como um templo abandonado,/ um carcomido templo, [...] (p. 47). Para Chevalier e Gheerbrant
(2009) o templo configura a representao do mundo divino, no plano terrestre, considerado o
lugar reservado aos deuses. Enquanto na terra reinam a solido e o silncio, no cu as estrelas
so o sinal da vida que nasce: [...] Do cu na larga abboda ogival,/ fulge, de lado a lado,/ o
lume de estranhas/ pupilas de polcromas aranhas,/ que abrem por toda a altura os olhos de
cristal. (p. 47). A abboda representa a cpula celeste e, na sua forma, a aliana entre as
linhas curvas do alto e das retas da base simboliza a unio do cu e da terra. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 6). Como j dito, a aranha mantm uma ligao com a Lua, segundo
Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 70), ela surge, em primeiro lugar, como epifania lunar,
dedicada fiao e tecelagem. Os tericos (2009, p 71) notam que, em algumas culturas,
esse animal simboliza a divindade responsvel pela criao do Cosmos. No poema, as aranhas
esto presentes na abboda do templo e seus olhos irradiam luz, o que nos leva a identific-las
com as estrelas no cu2.
Na terceira estrofe, a neblina indica pureza e opacidade e pressupe um estado
indeterminado. Ela parece formar uma espcie de teia envolvendo todo o espao. Os verbos
passar, perpassa, embaraa, em sequncia, supe o curso da agulha na costura, e, o
entrelaamento dos fios, por sua vez, compe o tecido do Cosmos. No nvel sonoro, a incidncia
dos fonemas f e s enfatiza a sutileza presente nesse ambiente impregnado de nvoas. A
terra vai ganhando um aspecto vago, ermo, e isso se reflete sobre o universo, em que todo o
movimento se torna brando. Essa lentido se evidencia no segmento de quando em quando,
no verbo escorregar, no advrbio lentamente e, sobretudo, na sonoridade produzida pelas
rimas ando e ente:
[...]
Fina
neblina,
pelos espaos,
em fios frios, em fluidos traos,
passa,
perpassa,
o ar embaraa,
a luz da lua tonando baa.
De quando em quando,
2 Conforme Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 405), naglptica maia, as estrelas so muitas vezes representadas
como olhos, de onde brotam raios de luz.
319
do cu sombrio,
uma aranha escorregando, lentamente,
por um fio
luzidio,
desce...
atravessa o infinito uma estrela cadente.
[...]
(p. 47).
O movimento vagaroso da aranha descendo pelo fio, no poema, lembra a queda de uma
estrela cadente. Em ambos os casos, um elemento atravessa, transpe os limites do universo.
Existe, ento, um fio csmico que liga o cu e a terra, o divino e o humano, e a aranha surge
como intermediria entres os dois planos. A aranha a tecedora, ela produz o fio e, ao mesmo
tempo, forma a trama que d origem ao tecido csmico.
Se observarmos atentamente a diagramao das duas estrofes anteriores, veremos que
h, primeiro, uma linha crescente, medida em que os versos curtos, paulatinamente, do lugar
aos mais longos e, na sequncia, uma linha decrescente, sinalizando a descida, quando versos
de maior extenso so sucedidos por outros de menor extenso. O sentido se inverte na quinta
e sexta estrofe na pgina, pois os versos seguem um andamento que vai do decrescente para o
crescente:
[...]
Embevecida e queda
fico-me, horas inteiras, a fitar,
da neblina atravs da delgada urdidura,
a Lua, que se me afigura
um capulho de seda
a se desfiar
num tear...
E a teia aumenta,
na transparncia de uma gaze
frouxa, flutuante, alvacenta...
Torna-se a luz astral imperceptvel quase.
Calmamente, a subir, a Lua o zenite ganha,
e tanto de neblina e ter se adensa
a vaporosa teia emaranha,
que a Lua, assim suspensa,
suponho o vulo ser de uma celeste aranha.
[...]
(p. 47-48)
320
Esses movimentos de descer e subir e vice-versa, inscritos na diagramao do poema,
sugerem o andamento dos fios no tear e a trajetria da aranha ao urdir a sua teia.
Em meio a essa tnue trama composta pelos fios de neblina, a Lua ganha um aspecto mrbido,
o que atua diretamente sobre os sentidos do sujeito potico como uma espcie de narctico. A
Lua comparada com um capulho de seda, o casulo do bicho-da-seda, cuja cor se assemelha
ao amarelo. O fio da seda possui um brilho caracterstico, por isso, possvel aproxim-lo do
luar. A Lua se desfia como um capulho de seda, como se dela se desprendessem fios de luz,
ou seja, o luar. Mas, essa luminosidade lunar apresenta um tom amarelado, revelando uma
aparncia doentia e melanclica.
Na sexta estrofe, domina o espao uma espcie de teia csmica, formada pela conjuno
de dois elementos: o luar e a neblina. Ambos conferem s coisas um tom velado, encobrem sem
ocultar totalmente, indeterminam, parecem os finssimos fios de uma teia. Na seleo vocabular,
os substantivos transparncia, gaze, neblina, ter e os adjetivos frouxa, flutuante,
alvacenta, imperceptvel, vaporosa enunciam a sutileza e a fragilidade. Ao supor que a
Lua seja o vulo de uma aranha celestial3, o eu nos envia para a crena da criadora csmica4.
A Lua e a aranha so consideradas as senhoras do destino, ambas tecem e tecer significa criar
(ELIADE, 1993). A imagem do ovo tambm evoca essa ideia de criao, pois uma promessa
de vida. Lua, assim, pode ser atribudo esse papel de gerar as formas vivas.
Na estrofe final, o eu lrico manifesta uma necessidade de elevao da alma, implcita, ao
longo do poema, no referencial etreo. Nessa ltima estrofe, o vocabulrio selecionado acentua
ainda mais esse esforo ascensional do eu: nos verbos ascender, voar, subir, vagar
errar e no substantivo alturas. No nvel das imagens, destacamos a borboleta, que conforme
Chevalier e Gheerbrant (2009), alm de simbolizar ligeireza e inconstncia, representa a alma
que se liberta do corpo material. Atrado pela luminosidade, o pensamento do eu voa e sobe
cada vez mais, numa escalada rumo ao cu, que, no fim, se resume em um imenso vazio.
O olhar, enfatizado pela repetio do vocbulo, para os autores (2009, p. 653), pode ser o
instrumento das ordens interiores: ele mata, fascina, seduz, assim como exprime. O aranhol da
neblina, uma grande teia celeste a aprisionar as almas errantes, uma vez que, por trs da sua
transparncia quase sempre existe uma armadilha:
[...]
Ao fulgor magnetizante
3 Eliade (1993) mostra que, em alguns mitos, a Lua vista como uma enorme aranha.
4 Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 71) explicitam que entre os povos da frica ocidental [...] existe a crena de
que foi Anans, a aranha, quem preparou a matria dos primeiros homens, criou o Sol, a Lua e as estrelas; depois,
Nyam, o deus do cu insuflou a vida no homem.
321
A transcendncia configura um relaxamento da alma do eu lrico, como em um devaneio
noturno. Na noite, todos os limites espaciais so superados e o tempo minimizado, permitindo
essa experincia transcendente. Na percepo de Gaston Bachelard (2006, p. 12), o devaneio
esboa um repouso, um bem-estar do ser5. Mas, no poema em pauta, esse bem-estar passageiro,
pois o sujeito potico acaba se deparando com um grande nada, como supe a imagem do
aranhol de neblina. Esse vazio que se apresenta no espao etreo, na verdade, corresponde a um
vazio no prprio ntimo desse eu. Nesse sentido, o movimento de subida pode ocultar uma
interiorizao do eu.
Percebemos ainda que a tendncia ascensional e as matrias luminosas, veiculadas
no poema, aproximam-nos do Regime Diurno da imaginao. Porm, verificamos que esse
esquema de subida est ligado no s imagens simblicas diurnas, como nos prope Durand
(2002), mas s noturnas. H uma profuso luminosa em meio atmosfera penumbrosa da noite.
O autor (2002, p. 268) explica que a valorizao da noite faz-se muitas vezes em termos de
iluminao. Ele acrescenta que a potica noturna tolera as obscuras claridades (p. 268).
A constncia de recursos imagticos como o vu, a teia, o ter, a neblina, os fios e o luar
evidenciam essa meia-luz caracterstica da atmosfera noturna.
Neste trabalho, detemo-nos sobre dois poemas de Cristais partidos, Falando lua e
Luar de inverno, nos quais emergem algumas das principais caractersticas atribudas ao astro
noturno. O primeiro rene, como demonstramos em nossa anlise, qualidades contraditrias,
tendncia tpica do Regime Noturno do imaginrio. A Lua exerce um influxo positivo e, ao
mesmo tempo, negativo sobre o eu lrico. Esse antagonismo inerente a ela conforme as vises
de Durand (2002) e de Eliade (1993), j que , concomitantemente, vida e morte, ser e no-ser,
5 Bachelard (2006) entende que o devaneio potico consiste no espao em que as imagens se liberam. Diferentemente do devaneio comum, esse devaneio potico possui forma de uma escrita, ou pelo menos constitui uma
promessa de escrita. Tambm assinala o autor que o devaneio potico no contado, nem se comunica atravs do
relato, como o caso do sonho noturno, mas sim por meio das palavras escritas.
322
luz e trevas, etc. Gilka retoma esse aspecto, mas, por outro lado, o extrapola, quando apresenta
uma Lua meio mstica e meio humana. A antropormofizao do astro se consolida atravs de
imagens como a o cofre de amor, a Virgem Maria, que evocam uma funo materna: a Lua
consola, acolhe, cuida das almas humanas.
No segundo poema, Luar de inverno, observamos, alm da prpria imagem da Lua, a
predominncia do fio, do tear, da teia e da aranha, elementos vinculados ao simbolismo lunar.
O sujeito potico retoma a ideia de um tecido csmico, apresentando a aranha e a Lua como
tecedoras desse tecido. O desejo de elevao se fez presente no decorrer do poema a partir
das referncias ao espao celeste e s matrias luminosas. Embora o esquema ascensional e a
busca pela iluminao sejam caractersticas do Regime Diurno, notamos que ambos surgem
em um contexto que noturno. na Noite que o eu consegue transcender em uma espcie
de devaneio noturno, que promove um bem-estar do ser. Porm, nessa transcendncia o sujeito
lrico se encontra, no fim, preso em um grande aranhol de neblina, ou seja, em um imenso vazio.
Percebemos um processo de introspeco, porque esse vazio no espao etreo reflete o prprio
ntimo do eu.
Tanto a imagem simblica quanto a poesia tm a capacidade de evocar uma infinidade
de possveis sentidos. Dessa forma, as leituras delineadas neste texto so apenas uma pequena
amostra de como a imagem da Lua emerge nos poemas de Gilka Machado. Elas constituem um
esboo de um primeiro exerccio (empreendido na dissertao de mestrado) em que tentamos
entender como as imagens atuam no processo de produo de sentido do texto lrico. Acreditamos
que a obra de Gilka possui um universo semntico (e simblico) inesgotvel.
REFERNCIAS
BACHELARD, Gaston. A potica do espao. Traduo de Antonio de Pdua Danesi. So
Paulo: Martins Fontes, 2008.
____. A potica do devaneio. Traduo de Antonio de Pdua Danesi. So Paulo: Martins
Fontes, 2006.
____. A gua e os sonhos. Traduo de Antonio de Pdua Danesi. So Paulo: Martins Fontes,
2002.
____. O ar e os sonhos. Traduo de Antonio de Pdua Danesi. So Paulo: Martins Fontes,
1990.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos. Traduo de Vera da
323
324
INTRODUO
At o sculo passado a literatura era hegemonicamente construda linguisticamente, pela
palavra escrita. Na contemporaneidade outras linguagens passaram a figurar na composio
literria. Um grande nome que representa essa inovao esttica o escritor paranaense Valncio
Xavier. Tendo trabalhado como cineasta, roteirista, diretor de TV e crtico, como escritor traz
para a sua obra essas experincias, compondo um verdadeiro mosaico intertextual, criado a
partir da linguagem imagtica e lingustica em uma relao no hierrquica, mas dialgica
e complementar. Assim, amplia-se o prprio conceito de recepo dessas obras hbridas,
solicitando um leitor mais atento e interativo. Nossa anlise ser sobre a narrativa que intitula a
obra: RrEmbranas da Meninas de Rua Morta Nua e Outros Livros (2006).
Com o advento da fotografia a imagem passa a ganhar visibilidade e importncia,
veiculada nos jornais e, depois, na publicidade. Essa exploso dos recursos imagticos na
contemporaneidade nos leva ao que podemos chamar de banalizao do olhar: olhamos,
mas o que vemos no nos toca. De acordo com Walter Benjamin (1986), estamos na fase de
reprodutibilidade tcnica, na qual as construes artsticas perdem sua aura esttica e, assim,
deixam de ser compreendidas como arte para serem objetos de consumo. Ao trazer imagens
veiculadas em outros suportes, como o jornal, livros de histria, livros de anatomia, entre outros,
Xavier interage com outros cdigos e permite que o leitor tenha um novo olhar em relao
essas imagens e suas relaes com o texto, construdo fragmentariamente, o que pode nos
levar a pensar na prpria configurao do mundo moderno. A fim de compreendermos como
a intertextualidade entre diferentes cdigos passa a compor a literatura, faremos uma breve
reviso terica sobre as mudanas que o conceito de intertextualidade sofreu na disciplina da
literatura comparada. Para uma melhor compreenso das imagens veiculadas em RrEmbranas
da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros, nos apoiaremos teoricamente nas ideias propostas
325
por Roland Barthes, na obra A Cmara Clara: nota sobre a fotografia (1984), na qual apresenta
conceitos como spectrum, spectator, studium e punctum, que nos auxiliaro na leitura das
imagens fotogrficas trazidas para a narrativa citada.
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328
Assim, a literatura comparada se estabelece em uma relao entre outras reas do saber e
da produo esttica, proporcionando um entendimento renovado sobre o carter interdisciplinar
da prpria intertextualidade.
329
Ao transpor as fotografias veiculadas nos jornais da poca sobre o caso da menina morta
nua e partindo da ideia de Barthes de que a fotografia tem o poder de representar a prpria
realidade de forma absoluta, Xavier ope em um jogo plurissignificativo a impossibilidade
que a literatura, enquanto construo essencialmente ficcional, de remeter-se ao real exato
em contraste ao absoluto da fotografia. O que Samoyault apontou como referencialidade - a
referncia ao real mediada pelo intertexto - Valncio Xavier subverte e problematiza, j que
a realidade que aciona em suas narrativas apresenta-se por ser exatamente como aconteceu.
Sobre o referente, Barthes nos diz que a fotografia veicula seu referente de modo indissocivel
o referente est sempre nela: um cachimbo, nela, sempre um cachimbo, intransigentemente.
(BARTHES, 1984, p.15).
A fim de ler as imagens fotogrficas, Barthes elenca trs prticas
(emoes ou intenes) que interagem nesse processo. A primeira terminologia apresentada por
Barthes a do operador, que define-se como sendo o prprio fotogrfo que escolhe uma cena
e a enquadra pelo seu olhar o que quer registrar. A segunda delas o spectador, aquele que v
a imagem fotografada, o espectador. J a terceira prtica denominada como spectrum: o
referente, o alvo, enfim, o que fotografado. De acordo com o terico aquele que fotografado
no remete totalidade da pessoa em sim, mas a um recorte, uma parte do seu ser, focalizado
em um momento, o que leva a falta de identificao entre a imagem e o indivduo retratado
nela:
Eu queria, em suma, que minha imagem, mbil, sacudida entre mil fotos variveis, ao
sabor das situaes, das idades, coincidisse sempre com o meu eu (profundo, como
sabido); mas o contrrio que preciso dizer: sou eu que no coincido jamais com
minha imagem; pois a imagem que pesada, imvel, obstinada (por isso a sociedade
se apia nela), e sou eu que sou leve, difuso, disperso e que como um ludio, no fico
no lugar, agitando-me em meu frasco: ah, se ao menos a Fotografia pudesse me dar um
corpo neutro, anatmico, um corpo que nada signifique. (BARTHES, 1984, p.24)
Retomando a discusso acerca da prtica do spectator, Barthes diz que certas fotos
provocam nele um interesse maior que outras. Para essa espcie de fascnio que algumas imagens
fotogrficas proporcionam em oposio a outras que somente passamos o olhar, d-se o nome
de aventura. O interesse por determinada fotografia se d pela presena de dois elementos: o
studium e o punctum. O studium refere-se ao interesse geral, ao afeto mdio que o spectator
tem em relao imagem essa espcie de interesse pode ser acionada pela extenso que
compe a foto, enfim, uma curiosidade mediana. J o segundo elemento, o punctum, no
procurado pelo spectator, mas ele prprio quem parte da cena focalizada na fotografia e fere
aquele que a v: O punctum de uma foto esse acaso que, nela, me punge (mas tambm me
mortifica, me fere. (BARTHES, 1984, p. 46)
330
Um conceito exposto por Barthes que ser caro as nossas reflexes a ideia de fotografia
unria: aquela que transforma a realidade sem duplic-la - h uma unidade composicional,
coeso. Para o terico, um exemplo de fotografia unria apresenta-se justamente nas veiculadas
em reportagens, justamente as que figuram na narrativa de Rrembranas da Menina de Rua
Morta Nua. Nesta narrativa vamos perceber as fotografias unrias, plenas de sentidos, em
dilogo e, tambm contraste, com a construo extremamente fragmentada da histria. A
narrativa apresenta-se pelo mosaico, quase caleidoscpico, de fragmentos do real e fotografias
unrias veiculadas pelas prprias reportagens. A fotografia sempre contingncia, ao contrrio
do texto que pode, atravs de uma palavra, remeter a inmeras significaes, mas a partir do
detalhe ao qual o punctum pode ser acionado tem-se a possibilidade de ir alm daquilo que se
v a subjetividade na leitura da fotografia.
Sendo a fotografia uma imagem do que realmente aconteceu, no podemos duvidar que
o que est posto ali tenha sido real no passado: temos o que Barthes denomina como isto-foi,
a referncia sendo a prpria ordem fundadora da fotografia. A ideia do isto-foi nos remete ao
passado e nos faz refletir que o que est posto imageticamente j est morto. o real, mas sem vida.
Para Barthes a fotografia no uma cpia do real, mas sim uma emanao do real passado.
Dada as ideias tericas propostas por Roland Barthes tentaremos, a partir de suas
terminologias, perceber como Xalncio Xavier se apropria dessas imagens mortas, porm
indiscutivelmente reais, para compor suas tramas narrativas. Parecemos que ao retirar da
plataforma jornalstica para inseri-las na produo ficcional, o autor pode ter criado novos
punctuns para essas fotografias a fim de proporcionar ao leitor outras percepes e sentidos
sobre essas imagens fotogrficas. Ao associar produes lingusticas e imagticas, em dialgo, o
autor solicita ao leitor uma nova postura visual e interpretativa que (re) significa essas interaes
entre letra e imagem to banalizadas no mundo contemporneo.
331
Xavier se utiliza de materiais e dos recortes que foi acumulando ao longo da vida
para narrar histrias, e nesse sentido que a pgina do jornal adquire importncia
nessa nova textualidade hipertextual, no apenas por possibilitar uma mobilidade
maior no que se refere montagem e relao textoimagem, mas tambm porque,
no jornal, encontram-se fragmentos da realidade. Ou seja, o espao ideal para uma
obra experimental, misturando literatura e realidade, em que o leitor se torna coresponsvel pela atribuio dos sentidos ao texto. (NETO, 2008, p.121)
A intertextualidade na produo de Xavier apresenta-se, de acordo com as ideias de
Samoyault, como hipertextuais, j que h um modo de derivao que transforma os hipotextos
em outros distintos, seja pela simples colagem dos mesmos na pgina branca do livro, seja por
transformao, proposital ou casual, dos hipotextos. Ao trazer os intertextos de modo explcito
para a narrativa, colando-os e estruturando-os de modo a que ganhem novas possibilidades de
leitura, Valncio Xavier cria uma fico essencialmente intertextual ou mesmo um novo modo,
contemporneo e que rompe com a tradio literria, de contar histrias. Trata-se, sem dvida,
de uma quebra no paradigma composicional da fico.
Detendo-nos na narrativa de Rrembranas da Menina de Rua Morta Nua, percebemos,
logo na leitura do ttulo, a duplicao do r inicial. Essa pequena digresso, em dilogo com a
narrativa que segue, parece j nos sugerir que se trata de uma histria memorialstica, que vai
relembrar, talvez duplamente, algo passado. Voltando-nos a Barthes, no qual via na imagem
fotogrfica um passado que efetivamente existiu, mas que est morto podemos entender essa
construo lingustica como uma pista de que o que ser narrado j est morto, perdido,
mas que ser relembrado a partir de dois pontos: (a) a literatura em si compreendida como a
memria da prpria literatura e, por isso, em sua construo, tudo apresenta-se como memria
e (b) o retorno ao ano de 1993, na qual a menina realmente foi encontrada morta nua e ser (re)
lembrada na narrativa. interessante perceber que, como sabemos, a memria nunca apresentase de maneira una, completa, ela sempre nos acomete fragmentariamente, em lapsos. Parecenos que Valncio Xavier une a forma, a estrutura construda por recortes, ao prprio tema ou
enredo da narrativa (re)lembrar s pode se dar fragmentariamente e isto est na composio
esttica do escritor paranaense.
A narrativa inicia-se com um recorte de jornal que apresenta o programa de cunho
jornalstico, transmitido pela emissora SBT, Aqui e Agora. Grande nome do jornal em questo,
o jornalista Gil Gomes tornou-se na dcada de 90 uma personalidade bastante popular no
Brasil, graas sua narrao um tanto teatral e peculiar, fazendo o que hoje conhecemos como
jornalismo investigativo ir s fontes diretamente. Ao apresentar logo no incio da narrativa a
voz enunciativa de Gil Gomes, o autor de Rrembranas da Menina de Rua Morta Nua, j indica
o carter bastante popular e especulativo da histria que ser contada. O enredo da narrativa
332
consiste em contar, a partir de fragmentos, como a menina, sem nome (seu nome aparece com
uma tarja), de oito anos, foi encontrada morta e nua em um caixo de um trem-fantasma, no
Copacabana Center Park, em Diadema/SP. Na rede narrativa vo surgindo diversos textos
e discursos: um bilhete entregue a Valncio Xavier em um sinal, narraes de Gil Gomes,
recortes de jornal, nmeros que parecem aleatrios, comentrios do prprio Xavier, transcrio
de dilogos e entrevistas, alm de fotografias jornalsticas. H na narrativa uma espcie de
denncia social, tpica do jornalismo investigativo veiculada em telejornais populares no qual
Aqui e Agora foi, sem dvida, precursor.
Percebemos certa composio irnica, obviamente estruturada a partir de intertextos
imagticos e lingusticos, na narrativa. Ao montar sua rede narrativa, o autor, usando recursos
metanarrativos, nos incita a olhar de outro modo para o que est posto ali. Na imagem a seguir
percebemos sua linguagem irnica e critica:
333
menina morta nua apresenta-se renovada pela fico intertextual que lhe permite novas reflexes
e experincia esttica. Sobre a banalizao que as imagens fotogrficas adquiriram em nossa
sociedade atual, Barthes nos fala textualmente:
O outro meio de tornar a Fotografia sensata generaliz-la, gregariz-la, banaliz-la,
a ponto de no haver mais adiante dela nenhuma outra imagem em relao qual ela
possa se marcar, afirmar sua especialidade, seu escndalo, sua loucura. isso que ocorre
em nossa sociedade, na qual a Fotografia esmaga com sua tirania as outras imagens: no
mais gravuras, no mais pintura figurativa, a no ser doravante, por submisso fascinada
(e fascinante) ao modelo fotogrfico. (BARTHES, 1984, p. 173)
Dessa forma, como vimos em Barthes, na fotografia h uma relao inerente entre
a imagem e seu referente, sendo ela carregada de sentido e, assim, no ficcional, j o signo
lingustico configura-se pela sua natureza plurissignificativa, essencialmente ficcional. Assim,
ao convergir os dois cdigos na narrativa de Rrembranas da Menina de Rua Morta Nua, o autor
estabelece uma relao de coeso entre os signos no ficcionais e os ficcionais, reconfigurando
o spectrum e a prpria relao com um passado morto, que foi, mas Rrembrado a partir da
fico.
334
CONSIDERAES FINAIS
A produo esttica de Valncio Xavier configura-se como um grande mosaico
intertextual. Ao trazer para a sua produo ficcional fragmentos textuais veiculados a priori em
outras plataformas, como o cinema, televiso, jornais, entre outros, o escritor cria uma universo
narrativo que subverte o conceito tradicional de produo literria. Os estudos comparatistas,
como vimos, apontam para o fato de que a intertextualidade no mero recurso lingustico,
335
Referncias
ARISTTELES. Potica. Porto Alegre: Globo, 1966.
BARTHES, R. A Cmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2004.
BENJAMIN, W. Magia e Tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura.
Trad. Srgio Paulo Rouanet, 2. ed., Brasiliense, 1986.
BUENO, K. A. Palavra e Imagem em Valncio Xavier: a recuperao do passado na interseco
da memria e da inveno. Revista Letrnica, v.5, n.3, 2012.
336
337
338
abre a obra:
O presente livro um mero ensaio sem a menor pretenso originalidade (...) no
mais que uma compilao das principais regras da economia nacional, e seu nico
mrito consiste na conscienciosidade com que tratei de aproveitar e adaptar ao estado
atual do Brasil, as lies dos grandes mestres da cincia (...), resolvi a sua publicao
em forma de livro, contribuindo tambm para essa minha resoluo a lacuna em que
nossa j to rica literatura nacional causa a falta de obras sobre este assunto, que mais
que nenhum outro deve prender a ateno de naes que ainda se acham no primeiro
estdio do seu desenvolvimento. Quis por minha vez e na estrita rbita de minhas
foras, contribuir para o progresso de minha ptria adotiva... (KOSERITZ, 1870,
p. 5, grifos nossos)
O autor fala da lei orgnica dos contrastes que, atravs de foras compostas pelo
dualismo, regulam a sociedade e apresenta uma dualidade entre o trabalho, que satisfaz as
necessidades, e o gozo, que no possvel sem o trabalho, porque um condiciona o outro. O
alemo critica a burguesia, que no trabalha, pois ela contraria a lei suprema da natureza que
o trabalho, sendo em virtude de seu cio que gerada a escravido, essa maldio de todas as
pocas (KOSERITZ, 1870, p. 9). E em seguida expe a sua misso:
Esclarecer o povo sobre os dogmas dessa cincia, que quase uma religio, deve ser o
maior empenho da imprensa; vamos tratar de expor neste trabalho os frutos de nossos
estudos a respeito, fazendo aplicao das recentes conquistas desta cincia ecltica ao
estado atual do nosso pas. (KOSERITZ, 1870, p.11, grifos nossos)
Koseritz aborda sobre a lei do trabalho como o evangelho do mundo material e, para
tratar dela, utiliza os pressupostos do liberal Adam Smith (1723-1790), um dos representantes
da economia poltica clssica, que foi um dos elaboradores da teoria do valor-trabalho, ou seja,
o valor de uma mercadoria equivale ao trabalho socialmente necessrio para produzi-la.
Em Pesquisa sobre a natureza e as causas da riqueza das naes (1776), Smith sustenta
trs teses que sero utilizadas no texto de Koseritz: 1) s produtivo o trabalho manual, que cria
bens materiais que tm valor objetivo de troca; 2) os cientistas, os polticos, os governantes, os
professores, em suma, todos os produtores de bens imateriais, contribuem apenas indiretamente
para a formao da riqueza nacional, razo pela qual a riqueza de uma nao ser tanto
maior quanto menor for o mundo dos ociosos; 3) alcana-se o pice da sabedoria quando o
Estado, deixando cada indivduo livre para alcanar o mximo bem-estar pessoal, assegurar
automaticamente o mximo bem-estar a todos os indivduos (REALE; ANTISERI, 2005, p.
302).
Para Koseritz, os aristocratas vivem no cio, sem trabalhar, destinando todo o trabalho
339
aos escravos, vivendo apenas do gozo que somente o complemento do trabalho; o gozo destri
todas as faculdades fsicas e morais, desmoraliza e aniquila e consequncia de sua influncia
desmoralizadora que surge a triste partilha da escravido, dessa maldio de todas as pocas
(KOSERITZ, 1870, p. 9), percebendo-se a um intuito abolicionista. Postura semelhante a que
apresenta na novela Laura, tambm um perfil de mulher, na qual o personagem Artur Moreira
critica a sociedade carioca por viver no cio, sendo a personagem Laura, uma donzela orgulhosa,
insubmissa, sem postura de dona de casa e de me, um exemplo do que uma educao para o
lazer (dana, msica, literatura) pode ocasionar.
O estudioso faz um mapeamento de alguns sistemas econmicos ao longo de seu estudo:
trata da economia dos gregos e dos romanos, e dos aspectos econmicos da Idade Mdia, at
chegar ao que denomina sistema colonial e mercantil, nos quais aborda os tempos modernos
(KOSERITZ, 1870, p. 35). Koseritz traa um programa poltico-econmico no qual defende a
diminuio de impostos que, segundo ele, inviabilizam o desenvolvimento do pas, incentivando
o crescimento das fbricas e a adoo de meios tecnolgicos para a acelerao da produo,
pois com uma produo maior de valores pelo trabalho nacional, maior seria a acumulao de
capital.
O autor assimila o movimento da economia lei do progresso humano, pois o
desenvolvimento de um deriva o crescimento do outro, sendo o progresso uma espcie de
verdade, qual a existncia humana tem de chegar. Quando discorre sobre o desenvolvimento
do esprito econmico, que gera o acmulo de capital, Koseritz aproveita para tecer crticas aos
brasileiros e, com laivos de germanismo, aborda a suposta superioridade da raa germnica que
substituiu os gregos e os romanos no domnio do mundo (KOSERITZ, 1870, p. 275).
Koseritz trata tambm do problema da concorrncia e, para isso, baseia-se nas palavras
do positivista ingls Stuart Mill (1806-1873), pregando a livre concorrncia entre os produtores
e entre os proprietrios de estabelecimentos, o que acarretaria uma baixa no preo dos produtos
e, em virtude disso, traria melhorias para a populao. Segundo o autor, era necessrio um
livre movimento econmico que abalaria a rotina e que tornaria possvel o Brasil livrar-se das
amarras do passado colonial.
Outro aspecto importante no texto a escolha das profisses, o que se constitui em
algo essencial para um pas em desenvolvimento, pois, devido necessidade de mo de obra,
os trabalhadores no podem migrar de uma profisso a outra como ocorre no Velho Mundo
(KOSERITZ, 1870, p. 356). E ainda mais fundamental, para o autor, a questo da educao
que um dos meios de o pas obter o progresso, porm, novamente a exaltao da ptria de
origem aparece quando expe que a sua instruo melhor e mais divulgada nas massas do
que noutro qualquer pas (KOSERITZ, 1870, 405).
No Brasil, assim como na Prssia, o ensino deveria ser pblico, gratuito e obrigatrio,
340
mas deveria haver liberdade para o ensino particular. O programa educacional que traa
estende-se tambm cultura, pois o estabelecimento de academias, de museus, bibliotecas etc.
tambm inegvel competncia do Estado e da maior importncia para o progresso das naes
(KOSERITZ, 1870, p. 406).
Esse escrito remete a uma srie de textos intitulada Sobre instruo, publicada por
Koseritz em 1862, no jornal Eco do Sul. Esses textos traam um programa para o ensino no
pas, em que o autor posicionando-se como professor busca contribuir para melhorias no
ensino, apresentando a educao como ponto fundamental para o desenvolvimento econmico
e como um meio de transformao da juventude, pois o programa de instruo que apresenta
no jornal visa preparao dos alunos para as academias do Imprio e para os exames das
universidades da Europa. O autor ainda escreveu, anos antes, o Resumo de histria universal,
para servir como uma espcie de livro didtico para seus alunos.
Ren Gertz (1999) compilou uma srie de artigos e conferncias sem, no entanto, realizar
um estudo sobre esses textos, pois seu intuito era torn-los acessveis ao grande pblico, os
quais sero analisados na sequncia do presente artigo.
Em Roma perante o sculo1 (1871), Koseritz critica ferozmente a alta cpula do Clero
(papas, bispos e, principalmente, os jesutas). No entanto, mantm um posicionamento catlico,
desaprovando apenas os executores do poder na Igreja e no a instituio e o evangelho. Ao
abordar a forma como os jesutas pregavam aos ndios, por exemplo, manifesta-se nos seguintes
termos:
Os dogmas do amor ao prximo, da igualdade dos direitos perante Deus, da
irmandade de todas as criaturas humanas, do Deus que todo amor e que morreu para
resgatar nossos pecados esses dogmas to nobres e to eloquentes em sua austera
simplicidade, no eram revelados aos convertidos, a quem podiam ensinar coisas que
convinha ignorarem, alm de sujeitarem-se melhor escravido que sombra da Cruz
de Glgota lhes era imposta, pela mundana ambio desses sacrlegos sacerdotes, que,
para satisfazerem os seus fins de domnio e de cobia, no hesitavam em revestir a
religio de formas carnavalescas. (KOSERITZ, 1871, apud GERTZ, 1999, p. 150)
No artigo, o jornalista expe que os jesutas valiam-se dos ndios como soldados de
guerras, treinando-os para defender as colnias e posiciona-se, tambm, contra os papas que,
para ele, so marcados pela ambio do ouro e do poder. Outro aspecto importante no texto a
defesa da liberdade religiosa, a rainha do sculo (KOSERITZ, 1871, apud GERTZ, 1999, p.
159), e do casamento civil, duas das lutas que o jornalista travou em prol dos alemes, e com
1 O jornal Correio do Povo, de 18 de fevereiro de 2013, publicou uma cronologia desse dia em outros anos, no
qual consta a seguinte informao: 1872: Nas diversas igrejas da Capital lida a pastoral do bispo dom Sebastio,
excomungando o livro do escritor Carlos von Koseritz Roma perante o sculo , por ser um livro mpio, hertico, imoral, escandaloso e perniciosssimo.
341
isso critica novamente o Brasil em seu atraso, pois os jesutas encontram agasalho: neste
Brasil que ilesas ainda conserva as tradies do passado, que no conhece liberdade em matria
de religio, cujo governo repele o casamento civil (KOSERITZ, 1871, apud GERTZ, 1999, p.
156).
Cabe lembrar que um dos problemas encontrados pelos imigrantes alemes era ligado ao
ensino, pois eles tencionavam preservar as suas tradies atravs do ensino do idioma alemo, o
que se tornava difcil, em virtude de ser o ensino um encargo dos jesutas nas provncias. Com
isso, observa-se que, nesse artigo, Koseritz apresenta um duplo intuito: defender interesses dos
imigrados, luta que manteve em sua carreira jornalstica e poltica, e pregar contra os jesutas que
constituam parte da herana do passado colonial do pas, com o dever de alertar a populao de
que ainda h pessoas, inclusive representantes polticos, que fazem apologia a essa sociedade
religiosa.
Ao final do artigo, em um parntese, justificando alguma crtica devido suposta
incoerncia de seu cristianismo, Koseritz d um esclarecimento, mostrando que se utilizou
do Evangelho e do conceito de revelao divina apenas como uma hiptese para demonstrar ao
pblico brasileiro, catlico em sua maioria, a falsidade dos princpios jesuticos. E acrescenta
que:
se tivssemos feito o contrrio e declarado desde o incio que todo o mito bblico e
cristo s tem valor histrico-cultural para ns, os nossos artigos teriam provocado
desde o incio indignao entre espritos bitolados e ns provavelmente no teramos
alcanado nosso objetivo de fazer campanha contra os jesutas. (KOSERITZ, 1871,
apud GERTZ, 1999, p. 164)
A citao exposta indica que Koseritz talvez tenha escrito o texto indo contra as suas
crenas filosficas, a fim de ser lido por um maior nmero de pessoas e, assim, alert-las dos
malefcios que os jesutas traziam para a sociedade e para o pas, evidenciando mais uma
vez a importncia da misso que assumia: ser um guia para os leitores da provncia gacha,
brasileiros e alemes. Esse posicionamento de ir contra a sua crena para atrair leitores tambm
est presente na novela Um drama no mar, na qual o narrador fala de um Deus onipotente e
onipresente que a tudo domina sujeitando-se a ele e manifestando-se contra os ateus.
Em Bosquejos etnolgicos (1884), Koseritz aborda, primeiramente, o que denomina
subsdios etnolgicos, ou seja, os artefatos enfeites e ornamentos dos selvagens que
viviam no Rio Grande do Sul. Sobre essa coletnea de artigos, Oberacker Jr. afirma que o
alemo:
preocupava-se, estimulado pelo evolucionismo darwinista, em seguida com a
paleontologia e etnologia gachas, escrevendo muitos artigos a respeito destes
342
Koseritz, nesses estudos, mostra a ligao com a Escola de Recife, em seu intuito
de compilao e estudo crtico das coisas brasileiras, e o vnculo ao germanismo justifica a
Exposio teuto-brasileira organizada pelo jornalista, com durao de quatro meses, entre
1881 e 1882, uma vez que ele era representante da organizao alem Centralverein fr
Handelsgeographie. O evento, porm, aumentou a divergncia entre Koseritz e Ter Brueggen,
presidente do Conselho Fiscal e financiador da folha Deutsche Zeitung (OBERACKER JR.,
1959, p. 27).
A amostra dispunha do apoio moral e financeiro do Governo Provincial e, por isso, o
cnsul honorrio alemo Ter Brueggen deveria foment-la ou, pelo menos, assumir uma postura
neutra. No entanto, o cnsul manifestou sua insatisfao perante o prestgio de seu compatriota
e combateu a exposio de vrias formas.
Nas primeiras pginas do texto, Koseritz escreve sobre o acervo perdido no incndio
da exposio, descrevendo peas raras que pertenciam sua coleo. O autor no estabelece
nenhuma polmica, no cita o nome do cnsul, apenas detalha os artefatos para que, pelo menos,
haja um registro escrito de sua existncia, um esboo, como o ttulo dos artigos j aponta.
Koseritz descreve os objetos de uso dos selvagens que ainda viviam nas matas da
provncia no sculo XIX, sendo eles atrasados porque desconhecem completamente o
uso de roupas, com exceo de um ou outro cobertor de l, que roubam nas casas assaltadas
(KOSERITZ, 1884, apud GERTZ, 1999, p. 95). O autor julga pejorativamente os indgenas
como inferiores e como aproveitadores, ao contrrio, por exemplo, do que escreve anos antes em
Roma perante o sculo (1871), indo de encontro postura do ndio edificada pelos romnticos
e pelos nacionalistas.
A viso pejorativa do indgena no se estende a todos os primitivos do pas, pois so os
ndios que vivem no Rio Grande do Sul que, para ele, eram atrasados, no s em comparao
com o elemento branco, mas em comparao com os prprios indgenas do norte do Brasil,
pois o meio no lhes era propcio devido ao tempo e pobreza de recursos. Aps a abordagem
do modo de vida dos indgenas na provncia, Koseritz retoma a problemtica da exposio e do
acervo incendiado. Como se v, o intuito de contribuir para o conhecimento da provncia est
presente e Koseritz ainda aponta para a importncia da conservao de artefatos encontrados,
instruindo o povo atravs da imprensa diria, que foi onde os seus artigos foram primeiramente
publicados.
343
Apesar de Koseritz no falar do folclore em seus artigos, cabe salientar a sua contribuio
para o resgate da tradio de poesia oral do Rio Grande do Sul e de seu trabalho em conjunto
com Slvio Romero, pois o historiador afirma que em 1879 encomendamos a nosso grande e
saudoso amigo Carlos de Koseritz, fazer estudo e colheita da poesia popular rio-grandense para
incluir na coleo dos Cantos Populares do Brasil que andvamos preparando (ROMERO,
2013, p. 55), a maioria delas versando sobre a Revoluo Farroupilha.
Em A terra e o homem luz da moderna cincia (1884), a mais filosfica publicao
de Koseritz, h a exposio do que considera os dois erros da humanidade: o erro geocntrico
e o erro antropocntrico, equvocos que o autor pretende retificar atravs de ensinamentos
filosficos, mantendo o intuito de contribuir para o desenvolvimento da ptria adotiva, como j
verificamos nos artigos anteriormente analisados, o que fica evidente nas primeiras linhas do
texto:
No ignoro que a tarefa que hoje enceto superior s minhas foras e que vou acender
as iras de muitos (...). Mas, senhores, entendo que o homem deve sempre ter a coragem
de suas convices e que o valente Eppur si muove! de Galilei deve servir de regra a
todos aqueles que podem contribuir, ainda que em nfima escala, para o grande triunfo
da VERDADE sobre as trevas da superstio (...). (KOSERITZ, 1884, apud GERTZ,
1999, p. 19)
344
Newton. A partir de ento, evidencia-se o cunho didtico da conferncia, pois o orador principia
a narrar e a explicar atravs da morfologia orgnica, da biologia, da paleontologia, da geologia,
da fsica a formao do universo. E, contrapondo comprovaes cientficas aos trechos da
Bblia, desconstri o mito bblico da criao com um acento irnico: E Deus fez tudo isso em
24 horas, deixando, entretanto, todos os vestgios de um longussimo trabalho de transformao
em milhes de milnios! (KOSERITZ, 1884, apud GERTZ, 1999, p. 28).
Segundo o conferencista, no h a criao como prega o mito bblico, pois foi a
matria que evoluiu e causou as transformaes que ocorreram ao longo dos sculos, ideias
essas vinculadas ao pensamento do alemo Ernst Haeckel (1834-1919), um dos representantes
do positivismo materialista na Alemanha e do monismo materialista, com teses baseadas no
dualismo entre matria e esprito em uma luta contra as metafsicas da transcendncia, pois
onde comea a f, acaba a cincia. Koseritz liga-se, ento, filosofia positivista alem que se
caracterizava pela:
luta contra o dualismo de matria e esprito e contra as metafsicas da transcendncia,
luta travada em nome de outra metafsica: a metafsica materialista. Em essncia,
os monistas materialistas alemes pretenderam decretar o triunfo definitivo do
mecanicismo biolgico e, simultaneamente, a derrocada da concepo espiritualista e
teleolgica do homem e da natureza. (REALE; ANTISERI, 2005, p. 328)
O autor cita outro filsofo alemo, Eduard von Hartmann (1842-1906), a fim de esclarecer
que a matria indestrutvel e, por isso, no pode ser criada, posicionamento que reafirma com
a citao de mais um alemo representante do positivismo materialista, Ludwig Bchner (18241899) que, em Fora e matria (1855), afirma que a hiptese materialista a nica vigente. Ao
valer-se dos estudos de Haeckel e Bchner, Koseritz evidencia que est ligado ao positivismo
de tendncia dogmtica que sustentava a hiptese cientificista-materialista no s como a nica
passvel de proposio, mas tambm como a nica hiptese definitiva e resolutiva de todo
problema cientfico e filosfico (REALE; ANTISERI, 2005, p. 328).
Ao desconstruir o mito bblico, o conferencista aborda uma srie de avanos cientficos
que se contrapem criao divina, o que ocorre, por exemplo, quando trata do fato de Deus
ter criado as estrelas, citando o astrnomo francs Jrme Lalande (1732-1807) 2 que afirma ter
estudado o firmamento inteiro sem encontrar vestgio de Deus. O narrador irnico da histria do
universo faz um apelo aos seus ouvintes: Senhores, apelo para vs todos: o mais crente dentre
2 Koseritz cita inmeros autores como, por exemplo, o filsofo Ren Descartes (1596-1650), o fsico PierreSimon de Laplace (1749-1827), o astrnomo e matemtico Nicolau Coprnico (1473-1543), o astrnomo Willian
Herschel (1738-1822), o naturalista Carl von Linn (1707-1778), o filsofo Immanuel Kant (1724-1804), o escritor Wolfgang Goethe (1749-1832), que cita tambm em Laura: tambm um perfil de mulher, o bilogo Thomas
Henry Huxley (1825-1895) que desenvolveu as doutrinas de Darwin, o mdico Karl Vogt (1817-1895), etc.
345
vs acreditar que a terra seja o centro do universo e que o sol, a lua e todos os outros astros s
foram criados para fazer servio de lampies (KOSERITZ, 1884, apud GERTZ, 1999, p. 30).
Como aponta Koseritz, Herbert Spencer (1820-1903) antecede Darwin a respeito da
teoria da evoluo, ao lanar A hiptese do desenvolvimento, em 1852. Para Spencer, a filosofia
a cincia dos primeiros princpios, partindo dos princpios mais elevados a que a cincia
chegou e que so, para ele: a indestrutibilidade da matria; a continuidade do movimento; a
persistncia da fora. Esses princpios referem-se a todas as cincias e encontram sua unificao
no princpio mais geral que seria o da redistribuio contnua da matria e do movimento, e a
lei dessa incessante mudana a da evoluo da espcie, conceitos esses que o conferencista
utiliza para justificar a inexistncia de uma criao do universo e para contestar o movimento
da terra que caracterizam o erro geocntrico.
Charles Darwin (1809-1882) desenvolve a teoria evolucionista que sustentava que as
espcies se originam da seleo, pelo ambiente, das mais aptas entre as variaes hereditrias
existentes (REALE; ANTISERI, 2005, p. 344), ou seja, a evoluo poderia ser vislumbrada
como uma srie de adaptaes, cada uma adquirida ou no por determinada espcie, sob a
presso do processo de seleo, por um longo perodo de tempo. Darwin ainda trata de uma
origem comum para o homem e para os outros seres vivos, pois para ele o homem e os outros
animais vertebrados receberam, como base, o mesmo processo geral, atravessando o mesmo
estgio primitivo. Essas ideias foram expostas por Koseritz em sua conferncia: a verdade
que o homem s se distingue de muitos animais pelo grau e os meios do progresso de que
dispe (KOSERITZ, 1884, apud GERTZ, 1999, p. 69).
Como se v nas breves aluses, os filsofos citados por Koseritz e as ideias que so
expostas na conferncia esto arraigadas nos avanos em cincia e em filosofia no sculo XIX,
pois esses princpios cientficos so o meio utilizado para desconstruir a religio catlica e
o alemo como um homem de letras atualizado nas correntes em voga na Europa tenta
transp-las para a nova nao, a fim de instruir os brasileiros na luta por uma laicizao do
estado e da inteligncia. O autor trata da teoria da evoluo em conformidade com os resultados
da investigao geolgica e paleontolgica e afirma que:
Provei com dados da cincia que tudo isso falso e creio que nenhum homem de
bom senso deixar de reconhecer que a histria da criao, tal como narra a Bblia,
no passa de um mito, inventado por gente ignorante em poca de absoluto atraso
intelectual. (KOSERITZ, 1884, apud GERTZ, 1999, p. 36)
346
a mesma Bblia (KOSERITZ, 1884, apud GERTZ, 1999, p. 53). Para Koseritz, o homem
tambm parte de um processo evolutivo que se deu no decorrer de milhes de anos, como
demonstra a paleontologia, e desconstruindo, novamente, a Bblia afirma:
o homem que fez Deus imagem sua, dotando-o com todos os atributos da natureza
humana, dando-lhe uma individualidade, revestindo-o de paixes, emprestandolhe amor e ira; o Deus das religies crists um perfeito antropomorfismo e s se
distingue do ideal da mitologia grega pelo fato de reunir numa s individualidade
todas as virtudes e todos os dios que os gregos emprestavam a diferentes deuses.
(KOSERITZ, 1884, apud GERTZ, 1999, p. 54)
347
Como j apontamos, h uma relao paradoxal entre os escritos filosficos, foco deste
artigo, e da obra ficcional de Koseritz. O resumo de economia nacional ao apontar aspectos
negativos da sociedade brasileira aproxima-se da novela Laura, tambm um perfil de mulher que
apresenta como enredo o casamento como uma transao comercial, criticando os poderosos
348
que distribuem cargos polticos sem avaliar a competncia do indivduo e sim a o seu nome e,
alm disso, critica a educao dada s mulheres que no ensina o valor do trabalho:
Os nossos pais educavam mes de famlia, ns educamos leoas de salo. contristador
ver-se como todas as classes se empenham em transformar as suas filhas em damas. E
onde fica a dona de casa, a me de famlia? Oh! sim, realmente tempo de acabar-se
com o abuso da educao superficial e do piano, que hoje fere os ouvidos do transeunte
em todas as casas. tempo de ensinarmos a nossas filhas o valor dos minutos que voam
e do trabalho que nobilita; tempo de lhes fazer compreender que a verdadeira misso
da mulher no no baile, no concerto, no teatro, mas no lar domstico. Ensinemo-las
a pensar, a clara e logicamente pensar, ainda que seja s um quarto de hora por dia;
tratemos de desenvolver nelas a nobre emulao de serem mais alguma coisa do que
figurinos da moda, livremo-las da frase, do desejo de brilhar nos sales; demos-lhe
em dote, em vez dessa tintura superficial de instruo, que se resume em dizerem
quatro frases banais em francs, pensar lgico, s razo, sobriedade, amor ao trabalho
e esprito econmico, e afinal conseguiremos ter uma gerao de mes prprias a nos
darem rapazes aptos para serem algum dia homens normais, que possam livrar-nos da
tirania da frase e fazer com que o Rio de Janeiro no seja mais o Paraso de quanta
cocotte emrita que queira deixar Paris para fazer fortuna custa dos tolos e perverter
os nossos costumes. (KOSERITZ, 2013, p. 53-53)
J a novela Um drama no mar contrape-se aos artigos Roma perante o sculo e A terra
e o homem luz da moderna cincia devido posicionamento religioso conflitante. No adendo ao
primeiro artigo e na exposio e desmistificao do erro antropocntrico e geocntrico, Koseritz
manifesta a sua descrena em um Deus que tenha criado o mundo e que controle a natureza, j
na novela encontramos a seguinte exclamao nas palavras do narrador:
ento que ao mesmo tempo nos sentimos enormemente grandes em face desses
terrveis elementos, que fazemos obedecer ao nosso quero, e infinitamente
pequenos em relao a Deus, nosso criador, que tamanho poder doou ao homem, com
a inteligncia; ento que compreendemos bem a palavra Deus. (KOSERITZ, 2013,
p. 17)
Entretanto, no podemos adotar uma postura ingnua e equiparar o autor ao narrador, visto
que o ltimo uma criao ficcional, como o so os personagens, o tempo, o espao, o enredo,
etc. O que podemos afirmar aqui que o alemo, que vivia em uma cidade com predomnio
de catlicos, no poderia escrever uma obra que se colocasse de encontro aos preceitos aceitos
como verdade absoluta; o seu intuito de informar sobre o drama verdico, que ocorrera em
uma embarcao nas proximidades da cidade de Rio Grande, era maior. Ademais na novela
h o predomnio da esttica romntica, com a idealizao dos personagens, da natureza, com
349
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
CARNEIRO, Jos Fernando. Karl Von Koseritz. Porto Alegre: IEL, 1959.
CESAR, Guilhermino. Histria da literatura do Rio Grande do Sul. 3 ed. Porto Alegre:
Instituto Estadual do Livro: Corag, 2006.
______. Carlos von Koseritz. In: Fundamentos da cultura Rio-Grandense. 3 volumes. Porto
Alegre: Editora UFRGS, 1954-1960.
______. Koseritz e o naturalismo. Porto Alegre: Revista Organon n 12 da faculdade de
Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1968.
KOSERITZ, Carlos de. Resumo de Histria Universal. Pelotas: Tipografia de Luis Jos de
Campos, 1856.
______. A donzela de Veneza. Pelotas: Tipografia Comercial, 1859.
______. Sobre instruo. Eco do Sul, Rio Grande, fev./13 mar., 1862.
______. Um drama no mar. Eco do Sul. Rio Grande, 11 out. a 4 nov. de 1862.
350
351
352
e diante do corpo morto de Antnio, o conto tem seu incio, obedecendo uma ordem inversa
de acontecimentos, pois a narrativa comea no meio do discurso de Billy, e em seguida ir
rememorar sua trajetria ao lado de Antnio desde a infncia dos dois, terminando quase no
momento presente da narrativa, onde o corpo j est morto e estendido sobre a mesa da cozinha.
No h como afirmar o momento exato da morte de Antnio, o leitor sequer tem conhecimento
se foi mesmo durante o discurso que ela ocorreu, fazendo com que o fato tenha menos importncia do que suas causas, salientando que esta ao o que menos importa na narrativa, mais
interessantes so os motivos do assassinato.
E dessa forma, sem mencionar os movimentos da ao, que o narrador tambm consegue fixar a ateno do leitor at o final, e o surpreende, obrigando-o a reler o conto para ter
certeza do que aconteceu realmente, este carter cclico estudado pelo prprio Bettega:
esta unidade de efeito, segundo Poe, que vai nortear a construo do conto, desde sua primeira frase, com vistas ao final. Assim, o modelo da histria curta estaria
ligado ideia de uma trama premeditada, de maneira que o desenlace governe todo
seu desenvolvimento anterior. Tal desenlace daria unidade aos incidentes narrados,
amarrando-os numa sincronia ntima que, ento, se verifica em todo enredo aquilo
que, j no sculo XX, o formalista russo Tomachevski viria a chamar de desfecho
regressivo (BARBOSA, 2012, p.66).
Para Bettega, que em sua tese de doutorado se dedica a analisar alguns aspectos da
teoria do conto, com a finalidade de descrever os momentos da sua trajetria como escritor, o
bom conto deve obrigar o leitor sua releitura. O final, que deve ser surpreendente, deve ainda
possuir elementos que faam o leitor por em dvida a primeira leitura (geralmente a mais superficial), obrigando-o a retornar e dar novos significados ao texto lido. Neste conto, este efeito
adquirido atravs do tempo da narrativa, que complexo, tratando-se de uma narrativa curta,
pois inicia no presente, faz um retorno memorialstico e termina num presente mais prximo
ainda, quase no limite entre o acontecimento e o narrado, conforme demonstra o final do conto:
Mas deve ser o cansao que ainda me faz ouvir os dentinhos roando um no outro, o
barulho do porto, e minhas mos e o canivete, o desejo absurdo e agora Madri j est
to distante, Antnio, no fundo tu sabes que tudo sempre foi o vero interminvel de
Santa Helena, as ruas de Ortigueira e ns dois do lado de c, iguais, como na sombra
das pereiras e as mos geis e trmulas e sfregas e bbadas, o canivete, a fome, essa
fome que me faz ouvir gritinhos aos milhares, o rilhar, mas certo que s pode ser o
cansao, porque eu sei que no h mais nenhum, Antnio, que no sobrou mais nada
alm desse buraco vivo, as mos, o canivete, o gosto adocicado vermelho na boca
353
e nenhum bichinho, Antnio, apenas teu corpo rijo e nu, estendido sobre a mesa da
cozinha. (BARBOSA, 1994, p.23-24).
Alm de demonstrar a brincadeira, o trecho faz referncia ao universo de um dos intertextos. Neste momento do conto o personagem incorpora o papel de outro personagem, troca
semelhante s brincadeiras de crianas, que, alm de lanar um olhar crtico a certos gestos
infantis que devem ser repreendidos, estabelece o jogo de fico dentro da fico, chamando
ateno para os papis que iro se inverter no desfecho do conto, pois agora Billy (o bandido) que mata Antnio e narra seu feito, contrariando a biografia de Pat Garret que executou
assassino Billy the kid em nome da lei. Esse mesmo procedimento metalingustico caracterstica de outros contos de Bettega, como Autoretrato (do livro Deixe o quarto como est),
Teatro de bonecos (de Os Lados do crculo), por exemplo.
No s neste conto, mas tambm em boa parte do livro O voo da trapezista, h um
confronto entre cidade do interior versus grande centro urbano. Na confeco do duplo, o autor aproveita-se deste impasse geogrfico para intensificar o contraste entre as personagens. A
partir disso, instaura-se na narrativa uma lgica da razo (representada pela vida em grandes
centros urbanos) versus uma lgica da loucura (mentalidade de quem vive sempre a mesma
rotina montona do interior), como explica o narrador nos seguintes trechos:
sei que a ti pode parecer estranho, nem tanto pelos anos passados e muitas outras coisas que nos separam, mas pela lgica racional e s que a responsabilidade te trouxe;
pode parecer estranho que algum, de vez em quando (no incio era s de vez em
354
quando, Antnio) busque outra vez no escuro aquele deslocar-se rpido e fragmentado
(BARBOSA, 1994, p.15).
Ou ainda:
Tu no entendes porque mudaste muito, e isso era inevitvel, mas na tua ausncia fui
obrigado a continuar sozinho os dias espichados de Santa Helena, suando copiosamente em galpes abafados por um sol que multiplicava os graus sobre o zinco, e eu
me espremendo por entre o mobilirio em desuso (BARBOSA, 1994, p.16).
A partir destes trechos, pode-se entender que o intensificador da loucura que leva o
narrador ao assassinato causado pelo afastamento e toda a vida que o seu outro possui, e que
Billy no consegue viver. Antnio tinha grandes responsabilidades, vivia o movimento agitado
da cidade grande, que o afastou de suas origens, e fez com que seu primo do interior s fosse
relembrado aps a morte de seus pais. Motivo que obriga Antnio a retornar casa das Ortigueiras (espao principal da ao), por interesse econmico, e no afetivo, pois no de saudade, e nem para rever o primo ou relembrar os velhos tempos que Antnio regressa, e o narrador
tem conscincia disso, conforme demonstra o trecho: Tio Milton morreu, e tua me seis meses
depois. A casa em Ortigueira agora definitivamente tua, e eu a nica pessoa que dispunhas para
mant-la(BARBOSA, 1994, p.20).
Outro elemento que distancia os dois personagens a inteligncia: Antnio era mais
inteligente, e, ao que tudo indica, teve mais oportunidades que Billy de estudar e adquirir uma
profisso. Mas o narrador, apesar dessas limitaes, tem uma conscincia fria de seus fracassos,
e os justifica:
Sempre descobrimos juntos, Antnio, os misteriozinhos que a vida nos ia revelando
a partir da infncia, embora a mim isso nunca resultasse em qualquer ganho pratico,
alguma coisa que ajudasse a forjar uma maneira de agir, uma conduta positiva, pois as
experincias se fundiam de modo desordenado na massa esponjosa do meu crebro e
ganhavam esse jeito de ar escasso, voltil, um janeiro se derretendo depois do almoo.
Na tua vida, Antonio, ao contrrio, todas as coisas adquiriam sentido e o teu caminho
se abria limpo, cristalino, e tu encantavas teus pais, os professores, todos que te viam
gnio nos almoos de domingo na casa da v, na escola, na sala de aula (BARBOSA,
1994, p. 17).
Tambm faz parte da construo do personagem Antnio o mesmo tipo de procedimento gradativo de suas qualificaes, porm, neste personagem so as qualificaes que vo
se elevando com o passar da narrativa. Aps abandonar aquele espao que nada mais tem a lhe
355
oferecer, Antnio faz faculdade, torna-se professor, constitui famlia, d palestras sobre assuntos importantes, enquanto o narrador, que fica no interior, e no faz referncias ao que realizou
na sua vida, parece ter apenas conseguido aperfeioar mtodos de tortura e caada de ratos.
A crueldade humana, em sua habilidade para aperfeioar o mal, assim como mtodos de
sacrifcio, so temtica recorrente na obra de Amilcar Bettega Barbosa. O mesmo carter metdico trabalhado pelo protagonista do conto Aprendizado do livro Deixe o quarto como est,
no qual o personagem desenvolve variados mtodos de chutar gatos de rua, ou em A aventura
prtico-intelectual do Sr. Alexandre Costa, do livro Os lados do crculo, no qual o intelectual
Sr. Alexandre (protagonista) recolhe os mendigos de rua e os assassina aps dar-lhes um teto,
banho e um bom prato de comida, preparada pelo prprio protagonista. Ambos os personagens
demonstram a predisposio para a crueldade e a frieza com que desfrutam de tempo e organizam rotinas para elaborar suas maldades.
Esta predisposio s aes violentas, que j faziam parte de Billy desde a infncia
(buscando o prazer e satisfao caando, triturando com as prprias mos e, depois, comendo
os ratos), culminaram no assassinato de Antnio, que na cena final do conto est despido sobre
a mesa da cozinha, e ao que tudo indica lhe acontecer o mesmo que aos ratos.
Outro elemento que recorrente nos contos de Bettega e que se faz presente nesse, o
carter irnico de seus textos. Neste conto ela se faz presente no discurso de Billy, e no conflito
entre as personagens. Durante todo o discurso as qualidades de Antnio, como sanidade, inteligncia, lgica racional etc., so referidas em tom de enaltecimento, por outro lado, toda vez que
o personagem evocado, o narrador tem que explicar porque tudo aconteceu, sei que talvez
no entendas, Antnio, ou tu no entendes porque mudaste muito, so as construes que
mais se repetem ao longo do texto. Dessa forma, a inteligncia de Antnio sagazmente questionada, pois no foi til para salvar-lhe a vida. O personagem inteligente que no entende o
que se passa na ao, pois a lgica que predomina no a lgica da razo, e sim a da loucura e
das emoes violentas. Diante do quadro de loucura que se passa, de nada servem os diplomas
e a inteligncia do antagonista.
Encaminhando a anlise para o final, a questo do duplo que se manifesta a do duplo
monstruoso. Por se tratar de uma temtica do fantstico, e este ser o principal gnero ao qual
se dedica Amilcar Bettega Barbosa, o duplo quando manifestado em seus contos chama mais
a ateno pelo aspecto real que pode suscitar durante a leitura. Esses contos que tem o duplo
como temtica, so mais realistas (ou seja: passveis de acontecer na realidade) do que fantsticos, instaurando um paradoxo desde a estrutura do gnero, que ilusrio por si s e apenas
se justifica se as personagens forem interpretadas como loucas. Apenas em O rosto pode-se
afirmar que o duplo tem carter totalmente fantstico, pois alm da temtica a situao representada de carter inslito.
356
Segundo a concepo de Ren Girard, no captulo Do desejo mimtico ao duplo monstruoso, que pertence ao livro A violncia e o sagrado: os duplos so sempre monstruosos;
os monstros so sempre duplicados, dessa forma, o monstro duplicado trata-se de Billy, que
manifesta seu carter monstruoso atravs da violncia com relao aos ratos e com relao ao
seu prprio duplo. Alm disso, tem-se a presena de ritual para matar os ratos, numa espcie de
sacrifcio, no para satisfao religiosa, mas para satisfao de um prazer prprio em aniquilar
o outro, e tambm a necessidade de manifestar as duas identidades, tanto da vtima como a do
sacrificador, buscando igual-las, abolindo as diferenas.
Outro aspecto tratado por Girard, mas tambm tratado em outros textos que se dedicam
questo do duplo, a rivalidade presente. Apesar de s termos acesso a uma das partes (a de
Billy), o desejo de possuir o mesmo objeto que o outro coloca no incio os dois personagens
to diferentes em p de igualdade e justifica estruturalmente a disputa. Logo aps, a morte do
outro dar um fim ao conflito do eu (protagonista).
Referncias:
BARBOSA, Amilcar Bettega. Deixe o quarto como est: ou estudos para a composio do
cansao. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.
______. Os lados do crculo. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.
______. O voo da trapezista. Porto Alegre: WS Editor, 1999.
BORGES, Jorge Luis. Histria universal da infmia. So Paulo: Companhia das Letras,
2012.
GARRETT, Pat. Billy the Kid. Porto Alegre: LP&M, 2011.
GIRARD, Ren. A violncia e o sagrado. So Paulo: Paz e Terra, 1998.
357
introduo
As atuais demandas no ensino de lngua materna tm pressionado professores e
pesquisadores a uma busca constante por concepes de linguagem mais coerentes e de novas
metodologias para o ensino em sala de aula, mais adequadas s realidades educacionais. Essa
demanda que se impe no ensino no se origina apenas na necessidade de se fazer cumprir as
diretrizes e orientaes postas por documentos oficiais que prescrevem o fazer do professor,
mas tambm no compromisso em formar os alunos para o exerccio da cidadania plena. Nesse
sentido, o presente trabalho pretende apresentar a proposta de pesquisa para a dissertao de
mestrado que trata da aplicao de uma nova metodologia de ensino de lngua materna o
Projeto Didtico de Gnero (doravante, PDG). Essa nova metodologia foi desenvolvida pelas
professoras-pesquisadoras Ana Maria de Mattos Guimares e Dorotea Frank Kerch, atravs
das aes realizadas no projeto intitulado: Por uma formao continuada cooperativa para
o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produo textual escrita no Ensino
Fundamental. 1
Inicialmente, proceder-se- a uma breve sntese do quadro terico-metodolgico
que est na base conceitual dos PDGs. O objetivo principal dessa sntese a retomada de
conceitos-chave para a construo de um PDG, como os conceitos de gneros textuais,
domnios discursivos, sequncias didticas, letramento e interdisciplinaridade. Em seguida,
ser apresentado o plano geral do PDG, proposto no projeto de pesquisa, no qual se justifica o
1 O referido projeto vinculado ao Programa Observatrio da Educao (OBEDUC) da Capes e ao Programa de Ps Programa de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada da Unisinos
358
uso dos artigos de divulgao cientfica em sala de aula na tentativa de promover o processo de
ensino-aprendizagem interdisciplinar.
Espera-se que o conjunto dessas informaes possa esclarecer o objetivo da pesquisa
proposta e que de fato aponte um caminho de construo do aprendizado interdisciplinar em
sala de aula.
A partir do exposto acima, possvel pensar a lngua como fenmeno da interao social
e a produo de textos como manifestaes desse fenmeno. Essa concepo de linguagem
apresentada por Geraldi pode estabelecer conexo com o que postula o Interacionismo
Sociodiscursivo (ISD) acerca da concepo de linguagem presente nos PDGs. Em relao a
isso, Bronckart afirma que:
[...] A linguagem humana se apresenta, inicialmente, como uma produo interativa
associada s atividades sociais, sendo ela o instrumento pelo qual os interactantes,
intencionalmente, emitem pretenses validade relativas s propriedades do meio em
que essa atividade se desenvolve (BRONCKART, 2012, p. 34)
O carter interacional da linguagem, destacado na fala dos dois tericos, configura-se como
princpio essencial que permeia toda a construo de um PDG, uma vez que qualquer produo
textual que se realiza numa abordagem como essa, deve cumprir um fim sociodiscursivo, que
s se desenvolve na e pela interao social. Dessa maneira, possvel dizer, grosso modo, que
359
o principio da sociointeratividade a espinha dorsal dos PDGs. Assim sendo, trs conceitoschave os corporificam: o conceito de gnero textual, de prtica social (oriunda dos projetos de
letramento) e de sequncia didtica com gneros textuais.
Compreender o conceito de gnero textual exige primeiramente que se compreenda o
conceito de texto. Segundo Oliveira (in MARTELLOTA, 2010, p. 194), o texto a unidade
comunicativa bsica, aquilo que as pessoas tm a declarar uma s outras. Em consonncia a
essa definio, o texto, num PDG, tomado como unidade lingustica, dotada de sentido, sendo
produto de interao sociodiscursiva. A partir da apropriao do conceito de texto, passa-se a
pensar em tipificaes de textos, o que consequentemente leva ideia de gneros. A expresso
gnero textual , segundo Marcuschi (2002, p. 22-23), uma referncia a textos materializados
que encontramos em nossa vida diria e que apresentam caractersticas scio-comunicativas.
Ou seja, gnero textual composto por um conjunto de caractersticas comunicativas que balizam
a produo de um texto. Essas caractersticas so desde a organizao estrutural, lingusticas,
discursivas, at os suportes de comunicao prprios para o gnero.
Outra caracterstica dos gneros textuais, de grande relevncia para os PDGs, so os
fins discursivos, ou seja, a finalidade dada ao texto. Essa finalidade inerente ao gnero textual
advm de uma situao sociocomunicativa e de uma necessidade de interao sociodiscursiva.
Essa situao interao leva ao segundo conceito fundante do PDG: a prtica social.
Esse conceito oriundo dos projetos de letramento e da prpria concepo de letramento
que, segundo Soares (2001, p.21), caracteriza os mais variados nveis de inseres nas prticas
de leitura e escrita, que vo desde a plena apropriao pelo indivduo das tecnologias do ler
e escrever at o uso dessas tecnologias pelo indivduo analfabeto, atravs da intermediao de
outros indivduos com nveis de letramento mais desenvolvidos. Em relao aos projetos de
letramento, Kleiman, apresenta a seguinte definio:
[...] um conjunto de atividades que se origina de um interesse real na vida dos alunos
e cuja realizao envolve o uso da escrita, isto , a leitura de textos que, de fato,
circulam na sociedade e a produo de textos que sero realmente lidos, em um trabalho
coletivo de alunos e professor, cada um segundo sua capacidade. (KLEIMAN, 2000,
p. 238).
Das definies postas pelas autoras acerca de letramento e projetos de letramento, pode-se
inferir a concepo de prtica social como sendo todas as aes necessrias para o cumprimento
de uma demanda comunicativa, imposta pelo convvio em sociedade; por exemplo, a situao
de uma devoluo de mercadoria defeituosa. Essa situao consiste numa prtica social para
qual preciso um agir discursivo que se materializa num dado gnero textual, seja ele escrito ou
oral. Por tudo isso, pode-se dizer que levar em conta as prticas sociais no ensino dos gneros
360
361
Com base nas palavras das autoras, possvel perceber que o PDG constitui-se numa
metodologia que prioriza, sobretudo, o desenvolvimento lingustico do aluno, pois no se restringe
apenas didatizao de um gnero textual, nas quais, muitas vezes, se procede a interminveis
estudos gramaticais da lngua e do texto. O PDG, como dizem as referidas linguistas, um
olhar, entendido aqui como um tratamento mais interacional e menos conteudista do ensino
de lngua.
362
Da citao acima, pode-se depreender que o artigo DCM, carrega em sua essncia
particularidades herdadas do discurso cientfico (direcionado comunidade cientfica) do
discurso miditico (em que o discurso cientfico reinterpretado pela mdia) e do discurso
didtico (que busca, atravs do processo de explicao didtica, fazer algum compreender
um fenmeno). Por esse carter discursivo hbrido, acredita-se que os artigos DCM podem ser
excelentes objetos de ensino em PDGs.
Aliando a hibridizao discursiva do gnero prtica social e s sequncias didticas,
tambm necessrio levar em conta o contexto de produo textual. Para que o PDG leve o
aluno a produzir genunos artigos DCM preciso favorecer uma situao em que o aluno precisa
exercer o papel enunciador de cientista que divulga seus experimentos ou descobertas. Uma
situao assim, configura-se num autntico contexto de produo textual de artigos DCM.
nesse ponto que a parceria entre as disciplinas de biologia e lngua portuguesa
necessria para a realizao do PDG proposto no referido projeto de pesquisa. Aos alunos
ser proposto um estudo prtico de parasitas encontrados em areias de praas pblicas, onde
crianas pequenas costumam brincar. Todo o estudo e experimentos no campo da biologia sero
devidamente orientados pela professora da respectiva matria. Ao mesmo tempo, nas aulas
363
de lngua portuguesa, os alunos passaro pelo PDG que promover o letramento cientfico,
capacitando-os na escrita de artigos DCM.
As principais etapas previstas no projeto de pesquisa que sustentam a construo dos
PDGs constituem-se em procedimentos de anlise pr-didtica de artigos de DCM, em que
se procede a uma seleo de textos pertinentes dinmica do PDG, assim como a um estudo
das propriedades lingusticas, estruturais e discursivas a serem exploradas nas oficinas de
atividades didticas; planejamento e construo das atividades didticas para o PDG que
devem promover o aprendizado sobre as caractersticas e a aplicabilidade social do gnero;
aplicao das oficinas didticas interdisciplinares etapa em que as atividades planejadas
devem ser colocadas efetivamente em prtica, e anlise da aplicao do PDG, na qual se espera
verificar o grau de letramento cientfico atingido pelos alunos.
Ao final desse PDG interdisciplinar, espera-se que os alunos aprendam a escrever
textos para divulgar as pesquisas que eles mesmos realizaram no campo da biologia, ou seja,
autnticos artigos DCM, destinados a serem realmente publicados. Com essa pesquisa, pretendese promover a aprendizagem realmente interdisciplinar e o letramento cientfico dos alunos,
tornando-os capazes de assumirem papeis enunciativos reais.
consideraes finais
Nesse artigo, pretendeu-se realizar uma sntese da pesquisa de mestrado que estamos
realizando. Alm disso, procedemos a uma breve reflexo sobre as bases tericas constitutivas
dos PDGs, assim como da dinmica de aplicao do PDG proposto no projeto de pesquisa.
Espera-se que a elaborao do PDG, nos moldes propostos no projeto de pesquisa,
possa demonstrar um real trabalho interdisciplinar entre as disciplinas participantes do PDG e
o efetivo letramento cientfico dos alunos. Por fim, espera-se ainda que a pesquisa demonstre
a importncia dos estudos dos conceitos-chave debatidos nesse trabalho, para o planejamento
dessa metodologia de ensino que o PDG representa. Sem a apropriao desses conceitos, a
tarefa de elaborar uma metodologia de ensino que privilegie uma concepo de linguagem
como atividade de interao estar, muito provavelmente, fadada ao fracasso.
No se pretende que o PDG proposto no projeto de pesquisa seja tomado como receita
a ser seguida risca por professores que queiram ensinar a produo textual de artigos DCM,
mas que sirva como base que os inspire e os estimule a realizar reformulaes e/ou adaptaes
para melhor atender a suas realidades escolares. As construes e desconstrues compartilhadas
entre os professores certamente podem enriquecer um PDG, acrescentando novas atividades e
tcnicas em seu planejamento.
364
referncias
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scio-discursivo; trad. Ana Rachel Machado, Pricles Cunha. 2 ed., So Paulo: EDUC, 2012.
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Dolz, J. e SCHNEUWLY, B. Traduo e organizao: Roxane Rojo e Glas Sales Cordeiro.
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365
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SOARES, Magda Becker. O que letramento? In: ______. Letramento: um tema em trs
gneros. Belo Horizonte: Autntica, 2001.p.15-25
366
INTRODUO
Nos ltimos tempos, tem-se procurado proporcionar ao estudante, durante a educao
bsica, o desenvolvimento pleno das competncias e habilidades que envolvem a compreenso
e a produo de textos, uma vez que, entre outros, um dos propsitos desse nvel de escolaridade
o de preparar o sujeito em formao para a cidadania. Dentro desse contexto, a leitura e o
estudo de diferentes gneros textuais, em todas as reas do conhecimento, faz-se fundamental.
O gnero que, entretanto, ganhou maior espao nas grades curriculares, sobretudo das srias
finais do ensino mdio, foi o dissertativo-argumentativo.
Vale destacar que a nfase dada ao estudo desse gnero no recente. Sobretudo depois
de a redao passar a ser obrigatria nos exames vestibulares de todo o pas, como requisito
parcial para ingresso ao ensino superior, iniciou-se, nas escolas brasileiras, um maior incentivo
ao trabalho com o gnero dissertativo-argumentativo, na busca de preparar os alunos para as
avaliaes externas que, em geral, utilizam-no como requisito parcial do processo de avaliao.
Isso ocorre, em especial, por esse ser um texto que, por exigir razes e argumentos capazes de
sustentar uma opinio ou tese, permite avaliar o estgio de formao cidad e preparo intelectual
do estudante que o escreve.
Em meio a esse processo envolvendo atividades de leitura e de escrita, um problema que
se instala o da avaliao do texto, posto que os professores de Lngua Portuguesa esto, em
geral, acompanhados de uma grande quantidade de textos para avaliar, no s em sua prtica
docente, na educao bsica e na superior, mas tambm, e sobretudo, nas bancas de avaliao
de redao de processos seletivos, como Enem e vestibulares. importante referir, outrossim,
que essa situao-problema se intensifica em processos seletivos, visto que, para o ingresso do
estudante maioria dos cursos de graduao brasileiros, a avaliao de sua redao deve ser
feita por mais de um avaliador, o que tem como consequncia as frequentes discrepncias entre
367
1 REVISO DE LITERATURA
1.1 TEORIA DA ARGUMENTAO NA LNGUA (ADL)
1.1.1 Fundamentos da ADL
A teoria escolhida para embasar esta pesquisa foi a Teoria da Argumentao na
Lngua (ADL), criada por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre em 1983, uma vez que
essa uma teoria que dispe de ferramentas necessrias para a compreenso da organizao
semntico-argumentativa do corpus escolhido. Pode-se observar que os princpios e conceitos
da Teoria dos Blocos Semnticos terceira fase da ADL , podero, em especial, subsidiar a
proposta de avaliao da organizao semntica que ser apresentada nas fases seguintes desta
investigao.
Como a ADL foi sendo revista por Ducrot desde sua criao, tendo a colaborao de
Marion Carel, a partir de 1992, para que seja possvel ter uma compreenso mais ampla da
teoria, importante partir de seus fundamentos, os quais se encontram, consoante (BARBISAN,
2002, p. 136), nos princpios e conceitos saussurianos, a saber, de signo lingustico, de valor
lingustico, de relaes paradigmticas e sintagmtica e de lngua e fala. Estes dois ltimos,
mais especificamente, influenciaram as definies dadas por Ducrot para frase e enunciado e,
por conseguinte, para texto e discurso.
Cabe tambm destacar que a ADL considerada uma teoria enunciativa, uma vez que
prev um locutor produzindo um enunciado a um interlocutor. Dentro desse contexto, destaquese que tanto locutor quanto interlocutor so seres discursivos e no devem ser confundidos
com seres reais. Ademais, para (DUCROT, 1987), a enunciao deve ser compreendida como
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369
A constatao de que no discurso atualiza-se uma crena em detrimento de outra
como se pode verificar nos enunciados Pedro trabalhou pouco e Pedro trabalhou um pouco
a impossibilidade de se admitir a crena de que o trabalho leva ao xito conduz (DUCROT,
1990) modificao do conceito de argumentatividade, entendido, na forma standard da ADL,
como o conjunto de concluses possveis.
370
371
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diz, por exemplo, Chamo livre a quem faz o que a sociedade probe, a AI da palavra livre,
nesse caso, Proibido DC faz, que no o sentido que livre tem na lngua, mas o sentido que o
anarquista lhe d em seu discurso.
Dentro desse esprito, na prxima seo, apresentam-se os modos de conexo entre
enunciados em textos, os quais, como nota (GRAEFF, 2012), tanto podem ser por similaridade
quando se expande, reitera ou exemplifica um ponto de vista como por contiguidade
quando ocorre progresso temtica no texto, por meio da relao entre AI e AE.
Notadamente, o principal encadeamento argumentativo que esse trecho permite evocar
roubou pequena quantidade mesmo assim sofreu grande punio, ao qual se pode associar o
aspecto argumentativo PEQUENO DELITO PT GRANDE PUNIO, que pode ser a AI de
injustia. Em vista disso, tem-se, nesse trecho, um julgamento argumentativo completo ou um
motivo argumentativo.
Ademais, conforme (CAREL, 2012), ao pensar como os enunciados se organizam em
2 (Un hiver, louvrage manqua. Pas de feu ni de pain dans de galetas. Lhomme, la fille et lenfant eurent froid et
faim. Lhomme vola. Je ne sais ce quil vola, je ne sais o il vola. Ce que je sais, cest que de ce vol il rsulta trois
jours de pain et de feu pour la femme et pour lenfant, et cinq ans de prision pour lhomme.)
373
motivos argumentativos, possvel identificar dois casos: o caso que resulta num s julgamento
argumentativo e o caso que resulta em dois julgamentos argumentativos. Note-se que, no caso
1, por exemplo, Ele tinha medo. Sentia seu sangue gelar., no se pode utilizar a expresso
por exemplo. Observe-se: Ele tinha medo. *Por exemplo, ele sentia seu sangue gelar. J no
caso 2, como Ele tinha todo tempo medo. Uma vez que algum gritasse, ele se sobressaltava.,
notadamente possvel o emprego de por exemplo, como se verifica no trecho Ele tinha todo
tempo medo. Por exemplo, uma vez que algum gritasse, ele se sobressaltava.
Seguindo nessa direo, (GRAEFF, 2012, p. 201) afirma que, no caso 1, trata-se de
conexo por contiguidade e que, no caso 2, trata-se de conexo por similaridade, defendendo a
ideia de que a continuao do discurso se faz por contiguidade do sentido da AI de medo com a
AE de ter medo (ter medo DC sentir o sangue gelar, ou ainda, ter medo PT no sentir o sangue
gelar). J no segundo caso, existem dois julgamentos argumentativos, podendo-se colocar, entre
os enunciados, a expresso por exemplo. Percebe-se que os dois julgamentos argumentativos
expressam um mesmo aspecto, que a AI de medo; e, portanto, o encadeamento assim que
algum gritasse, ele se sobressaltava tem uma relao de similaridade com o enunciado Ele
tinha medo todo o tempo.
Por fim, (GRAEFF, 2012, p. 205) observa que a conexo por contiguidade produzida
pelas relaes entre AI e AE de uma unidade lingustica e que a conexo por similaridade
produzida pelas relaes entre enunciados que exprimem o mesmo aspecto argumentativo.
Esses enunciados tm a mesma AI e, entre eles, pode-se colocar a expresso por exemplo.
374
argumentativo, apresentaram coerncia global, isto , que foram desenvolvidos dentro de blocos
semnticos relacionados a um mesmo contedo temtico e apresentaram um bloco semntico
principal em relao ao qual existe(m) outro(s) que ou so subordinado(s). Realizar-se-, pois,
nessa fase da pesquisa, a interpretao dos resultados obtidos para verificao das hipteses.
Na sequncia deste trabalho, segue a anlise de uma redao do Enem (2012), cujo tema
era a O movimento imigratrio para o Brasil no sculo XXI, publicada no Guia do Participante
(2013), por intermdio da qual se pode verificar como ocorrer a anlise do corpus da pesquisa
nas etapas seguintes. Confira-se:
O primeiro encadeamento argumentativo que esse trecho permite evocar [Japoneses,
italianos, portugueses, aorianos ou espanhis desembarcarem no Brasil, no sculo XIX,
portanto enriquecerem a cultura brasileira] ao qual se pode associar o aspecto argumentativo
[imigrar para o Brasil no sculo XIX DC enriquecer a cultura brasileira], que constitui uma AI
contextual de imigrao positiva.
A seguir, pode-se evocar o encadeamento [desembarcar no Brasil, no sculo XXI,
portanto desafiar a sociedade e a economia brasileiras] ao qual possvel associar o aspecto
[desembarcar no Brasil, no sculo XXI, DC desafio], que constitui uma AI contextual de
imigrao desafiadora. Note-se que esse pargrafo introdutrio inteiro tem a funo de
explicitar a tese de que a imigrao do sculo XIX foi uma imigrao positiva para o Brasil e
que a imigrao do sculo XXI traz desafios sociedade e economia brasileiras.
375
Pode-se perceber que esse pargrafo de desenvolvimento do texto foi introduzido,
inicialmente, por uma estratgia argumentativa de comparao e o primeiro encadeamento
argumentativo evocado [instalar-se no sculo XXI, no Brasil, portanto ter melhores e mais
dignas condies de vida], a cujo encadeamento pode-se associar o aspecto [imigrar para o
Brasil no sculo XXI DC ter melhores condies de vida]. Notadamente, esse aspecto tem a
funo de reiterar a AI de imigrao positiva. A seguir, o encadeamento evocado [haver Crise
Econmica em seu pas portanto ver-se obrigado a se dirigir a outra nao, como Brasil], ao
qual se pode associar o aspecto [perigo econmico no pas DC imigrar], que constitui uma AI
contextual de prudente, isto , numa situao de perigo econmico, toma-se precauo por meio
de fuga a outro pas. Pode-se perceber que a interdependncia semntica criada entre os dois
predicados desse encadeamento possibilita construir, contextualmente, o conceito de prudncia.
Por conseguinte, por ser um sentido criado discursivamente, no a estrutura lingustica que o
dispe.
Posteriormente, h uma estratgia argumentativa de exemplificao explicitada por
meio de uma AE direita do encadeamento argumentativo anterior. Verifique-se que [Crise
Econmica na Espanha portanto grande quantidade de espanhis na periferia de So Paulo]
funciona como um exemplo de imigrao para o Brasil, motivada por perigo econmico no
pas, no caso, na Espanha. A esse encadeamento possvel associar o aspecto [Crise Econmica
Espanhola DC problema para o Brasil], o qual tambm auxilia na defesa da tese que constitui a
AI de imigrao desafiadora.
Note-se que essa AI reiterada tambm por outros encadeamentos que esse trecho
permite evocar. Por exemplo, [frao da sociedade que reside na periferia de So Paulo portanto
dificuldade em dividir seu espao inadequado para sobrevivncia com os europeus] a que se
associa o aspecto [ser da periferia de So Paulo DC ter dificuldade em dividir espao com
europeus] que reitera a AI de imigrao desafiadora e que, isoladamente, acrescenta a ideia
de egosmo.
Para comprovar ainda melhor a tese do texto, o aluno que o escreveu tambm utilizou
uma estratgia argumentativa de citao de pesquisa. Confira-se que [segundo A Folha de So
Paulo, ser espanhol e viver nos arredores de SP portanto ter conflitos com os brasileiros] um
encadeamento que, ao ser associado ao aspecto [ser espanhol e viver na periferia de SP DC ter
conflitos com brasileiros], constri um sentido de imigrao desafiadora, da mesma forma que
376
Note-se que esse trecho permite evocar o encadeamento argumentativo [chegada de
migrantes portanto sofrimento da economia brasileira] ao qual se pode associar o aspecto
[chegada de imigrantes DC sofrimento da economia brasileira], que tambm repete a AI de
imigrao desafiadora. Cumpre destacar, aqui, que todos esses encadeamentos que reiteram a
AI explicitada na tese conectam-se a ela por similaridade.
A seguir, encontra-se um enunciado amparado na estrutura de no s... mas tambm
reconhecida por (CAREL, 2005) como segmentos que contm discursos complexos. Verifiquese que, em [existem no s trabalhadores desqualificados mas tambm profissionais graduados],
a inverso no seria possvel, como [*existem no s profissionais graduados mas tambm
trabalhadores desqualificados]. Claramente, a prpria lngua vetaria a construo desse
enunciado, visto que, esquerda, encontra-se um discurso normativo, como [ser trabalhador
desqualificado portanto no ser um problema] e, direita, encontra-se o discurso transgressivo
[ser trabalhador graduado mesmo assim ser um problema].
A estrutura acaba por ser explicitada na sequncia, por meio do encadeamento [ser
profissional graduado mesmo assim integrar setores informais da economia, pela pouca oferta
destinada], cujo aspecto [ser profissional graduado PT integrar setor informal da economia]
corresponde a uma AI contextual de injustia.
Pode-se verificar, a seguir, haver progresso temtica no texto, por meio do acrscimo
a essa AI, de uma AE direita, que se conecta por contiguidade. Isso pode ser expresso pelo
encadeamento evocado [ocupar setores informais da economia portanto Estado deixar de
arrecadar capital e de aproveitar mo de obra disponvel], ao qual se associa o aspecto [ocupar
setor informal da economia DC prejuzos ao Estado], que constitui uma AI contextual de
imigrao negativa.
O primeiro encadeamento que esse trecho permite evocar [preparar a sociedade e
a economia brasileiras para a chegada de novos imigrantes portanto tomar medidas] ao qual
se pode associar o aspecto argumentativo [preparar o Brasil para receber imigrantes DC
tomar medidas], que constitui uma AI contextual de precauo. A seguir, conecta-se a esse
encadeamento, por meio de uma AE direita, o encadeamento [tomar medidas portanto Estado
oferecer incentivos s empresas que empregarem os recm-chegados], ao qual se associa o
aspecto [tomar medidas DC incentivo s empresas empregadoras de imigrantes]. Ressalte-se
que esse aspecto expressa uma soluo para o problema abordado, havendo, nesse caso, relao
entre AI e AE e, portanto, conexo entre os enunciados por contiguidade.
Na sequncia, evocam-se outros encadeamentos que, como os anteriores, explicitam
propostas de soluo para o problema. Confiram-se: [empresas oferecerem treinamentos aos
recm-chegados portanto prepar-los para o mercado brasileiro]; [imigrar para o Brasil portanto
governo procurar habitao para o imigrante]; [imigrar para o Brasil portanto brasileiro respeitar
o imigrante] e [imigrante do passado ou do presente portanto somente ter a acrescentar ao
brasileiro].
Vale destacar que todas as propostas de soluo apontadas so exequveis. No entanto, o
fechamento do texto com a ideia de que a imigrao do sculo XXI somente tem a acrescentar
ao brasileiro, associada, por exemplo, ideia de que o Estado deve garantir habitao dos
estrangeiros no pas, possvel dizer que se introduz uma nova tese no texto, que, inclusive,
rejeita a ideia de imigrao negativa revelada no seu desenvolvimento.
CONCLUSO
Como j comentado inicialmente, embora em fase inicial, esta pesquisa busca
testar e propor uma proposta de avaliao da organizao semntica de textos dissertativoargumentativos, com base na Teoria dos Blocos Semnticos, capaz de qualificar a avaliao
semntica de redaes, principalmente de processos seletivos, em que a objetividade se faz
extremamente necessria.
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Por meio da anlise aqui realizada, pde-se verificar que essa redao avaliada com nota
mxima no Enem (2012) realmente atende s qualidades esperadas de um texto dissertativoargumentativo, visto que, segundo A redao no Enem 2012: guia do participante (INEP/
MEC, 2013), a redao atender s exigncias de elaborao desse gnero, se combinar,
fundamentalmente, dois princpios de estruturao: o primeiro, que normatiza a apresentao
de uma tese desenvolvida por meio de justificativas capazes de comprov-la e de uma concluso
que d um fecho discusso elaborada no texto; e o segundo princpio que determina a
utilizao de estratgias argumentativas entre outras, exemplos, dados estatsticos, pesquisas,
fatos comprovveis e aluses histricas que exponham o problema discutido no texto e sejam
capazes de detalhar os argumentos utilizados.
Confirmam-se, ademais, as hipteses de que a tese explicita um bloco semntico
que, ao longo do desenvolvimento da redao, reiterado por meio de diferentes estratgias
argumentativas e a de que a conexo entre os enunciados do pargrafo introdutrio com os do
desenvolvimento do texto se deu, nesse texto, pelo processo de similaridade que, como nota
(GRAEFF, 2012), produzido pelas relaes entre enunciados que exprimem o mesmo aspecto
argumentativo. Verificou-se, em vista disso, a reiterao da AI de imigrao (do sculo XXI)
desafiadora, a qual, em partes do texto, tambm considerada uma imigrao negativa para o
Brasil.
Por meio da concluso da redao, em que o aluno apresenta propostas de interveno
social para o problema abordado, surge a AI de imigrao positiva, para tambm fazer referncia
imigrao para o Brasil no sculo XXI. Reconhece-se, pois, o acrscimo de uma nova tese
ao texto, isto , de um novo bloco semntico responsvel por progredi-lo tematicamente. Por
conseguinte, confirmou-se que a conexo por contiguidade que relaciona AI e AE a
responsvel por dar progresso temtica ao texto.
REFERNCIAS
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______. O que argumentar? Desenredo, Passo Fundo, Ed. da Universidade de Passo Fundo,
379
380
381
Essa convocao serviu para tratar diversos assuntos relativos ao teatro local e,
dentre eles, provavelmente, questes referentes inaugurao do mesmo que ocorreria em,
aproximadamente, cinco meses.
382
Como pode ser visto na citao anterior, a cidade de Pelotas j contava com espetculos
teatrais encenados no prdio conhecido como Theatrinho Sete de Abril, uma aluso ao prdio
do Theatro Sete de Abril que estava sendo construdo, sendo inaugurado no dia 2 de dezembro
de 1834. Segundo Lothar Hessel (1999), as primeiras sociedades dramticas, que tinham por
tarefa administrar os teatros, formaram-se em Porto Alegre, sendo a primeira fundada em 1832
e conhecida como Sociedade do Teatrinho idealizadora do projeto para implantao do
Theatro So Pedro, em 1833, que seria inaugurado em 27 de junho de 1858. Entretanto, viu-se
no anncio publicado anteriormente que Rio Grande j possua uma sociedade teatral em abril
de 1832 e com um teatro em construo prestes a ser inaugurado, ou seja, possivelmente tal
associao tenha surgido no ano anterior (ou anos anteriores) tomando o posto da cidade de
Porto Alegre como pioneira nesse quesito.
Em agosto de 1832, quando se aproximam as comemoraes referentes independncia
do Brasil, surge a primeira manifestao em relao inaugurao do teatro de Rio Grande, que
receber o nome de Teatro Sete de Setembro:
Consta-nos tambm, que na noite desse dia se pe em cena pela primeira vez, no
novo Teatro Sete de setembro, uma famosa pea sria, com a sua farsa no fim, e que
h outros entretenimentos, que a Sociedade do mesmo Teatro tem designado, para
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No dia 10 de setembro de 1832, tem-se a relao de festejos pelo patritico dia que
relembra a independncia nacional, o dia 7 de setembro. Como consta publicado no jornal O
Noticiador, neste dia, alguns jovens reuniram-se e saram pelas ruas da cidade de Rio Grande,
erguendo em frente ao novo teatro local a bandeira do Brasil. Enfim, inaugurou-se o novo teatro
da cidade de Rio Grande, onde, primeiramente, Carlos Antonio da Silva Soares recitou um
elogio e, na sequncia, se representou a comdia O bom amigo, do portugus Antnio Xavier
de Azevedo (1784 - 1814). Aps a representao teatral, seguiram-se as festividades com a
execuo do Hino Nacional.
Em relao estrutura do Teatro Sete de Setembro, tem-se o seguinte relato: O
novo Teatro formava uma perspectiva encantadora e elegante. Trs ordens de camarotes,
uniformemente ornados eram ocupados pelo amvel e belo sexo e a plateia por conspcuos
e respeitveis cidados. (O Noticiador, 10 set. 1832, p. 1). J sobre a execuo da pea de
Antnio Xavier, os crticos locais destacam a pureza da linguagem, os gestos apropriados e o
quo bem foram representados das personagens; alm da msica harmoniosa que se fazia ouvir
nos intervalos dos atos. Ao final do espetculo e das manifestaes patriticas, o pblico ainda
pode assistir uma farsa intitulada O Casamento por gazeta, na qual se destaca que em tudo
isto fez sentir a Companhia com bastante espirito e jocosidade, o engraado do enredo e a boa
execuo dos atores. (O Noticiador, 10 set. 1832, p. 1). Assim, deu-se a estreia do Teatro Sete
de Setembro. Ainda nessa edio do peridico, ressalta-se a importncia da Sociedade Teatral
rio-grandina e o quanto esse prdio poder contribuir assim como o fez para a cultura
local:
Ns no podemos deixar de manifestar o nosso prazer por vermos nesta vila um
teatro ereto por uma sociedade composta de cidados que se no poupou a trabalhos e
a despesas para a sua concluso; o qual serviria de escola para se aprenderem os bons
costumes, aumentar a civilizao e para se festejar os Dias Nacionais, e as nossas
belas instituies livres. (O Noticiador, 10 set. 1832, p. 1-2).
V-se, portanto, o quanto o teatro viria a colaborar para a afirmao da cidade de Rio
Grande como polo cultural, visto que, ao mesmo tempo que entretinha, colaborava para a
construo da cidadania, pois, nas palavras de Jos Murilo de Carvalho (2002), as pessoas se
tornavam cidads medida que passavam a se sentir parte de uma nao e de um Estado.. Assim
sendo, os membros da Sociedade teatral honraram seu papel de cidado, pois no pouparam
esforos para proporcionar ao pblico rio-grandino um prdio em que poderiam festejar os dias
patriticos, o que chamavam de aumentar a civilidade.
384
Entretanto, necessrio ressaltar que essa exaltao aos cidados compreende a ideia
de construo de uma identidade imaginada, ainda nos termos de Jos Murilo de Carvalho
(1998), visto que cada indivduo busca construir, em sua mente, uma imagem da comunidade
em que est inserido, ou seja, ainda que os limites de uma nao no existam concretamente,
seus indivduos so capazes de criar e imaginar tais fronteiras. Sabe-se, por exemplo, que
os escravos eram proibidos de frequentar o teatro e, portanto, constata-se que as descries
realizadas nO Noticiador no representava de fato todos os cidados rio-grandinos, mas, sim,
uma elite intelectual.
Jos Murilo de Carvalho (1981) desenvolve a revelao do perfil das elites intelectuais
brasileiras do perodo imperial e os fatores que contriburam para a construo do Estado
imperial no sculo XIX. Segundo o autor, as elites so grupos distintos de grandes massas e at
mesmo de outros grupos elitistas. Assim, a elite intelectual, para Carvalho, no seria aquela
formada por grandes homens, mas que tem certa homogeneidade, tanto ideolgico como em
relao a sua formao, seja acadmica ou poltica, e que empreendiam alguma dominao
poltica. Esses exerciam a socializao desse grupo de pessoas e assim fortificavam a questo
da homogeneidade que contribuiu com o processo de formao do Estado. , nesse sentido, que
se deve entender a referncia aos cidados rio-grandinos.
A partir dos dados expostos, constata-se, portanto, a importncia de traar uma linha
temporal que compreenda desde a implantao do Teatro Sete de Setembro ao longo do sculo
XIX, visto que, ao olhar para a formao da literatura em Rio Grande, percebe-se uma cadeia
linear, sendo influenciada pelos textos representados no teatro local e pelos livros importados,
assim como influenciando os autores locais de textos teatrais ou no que viriam nas dcadas
seguinte, o que sugere a formao de um sistema literrio, com base nas ideias propostas por
Itamar Even-Zohar (2007), em El sistema literrio.
Segundo Antonio Candido (2009), em Formao da literatura brasileira, o sistema
literrio formado a partir do processo autor obra leitor, o que provoca a condio
mnima para a existncia de um fenmeno literrio. Dessa maneira, o autor estabelece uma
distino entre manifestaes literrias e sistema literrio, em que as primeiras tratam-se de
obras que, ainda que possuam sua importncia, no fazem parte da tradio literria nacional,
isto , no influenciam os produtores posteriores a elas.
Nesse sentido, estudiosos do campo da Teoria da Histria da Literatura e da historiografia
literria sul-rio-grandense, como, por exemplo, Guilhermino Csar (1971) e Regina Zilberman
(1992), consideram que com surgimento da Sociedade do Partenon Literrio, em 1868, se
estabelece um marco divisrio na literatura gacha, compreendendo, segundo tais tericos, a
distino entre manifestaes literrias e uma literatura mais consistente, enquanto sistema
literrio, como pode ser verificado a partir da declarao At aqui, antes do aparecimento do
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Segundo Jorge de Souza Arajo (1999), Rio Grande parece ter sido de fato uma cidade
onde se lia muito, sobretudo no sculo passado3. Pela documentao disponvel, seguramente
a que mais se distingue no nmero e na variedade dos livros (p. 288). Dentre os inventrios
pesquisados por Arajo, encontrou-se livros de quase todas as especialidades como medicina,
direito, religio, letras, histria, crtica teatral, entre outros. Assim sendo, possvel entender
1 Sua nica referncia biogrfica encontrada at o momento consta no livreto intituladoRelao dos festejos,
que fizeram os portugueses residentes na vila do Rio Grande do Sul, em demonstrao de seu jbilo pelo restabelecimento da paz, e da liberdade, na sua ptria, de 1834, de autoria de Francisco Xavier Ferreira e transcrito por
Ana Cristina Pinto Matias. Na segunda pgina desta obra, pode-se constatar que Carlos Antonio da Silva Soares
era oficial da Guarda Nacional e promotor pblico, conforme a seguir: os Srs. Antonio Jose Affonso Guimares,
e Manoel Gomes da Silva, vereadores da Cmara Municipal, Porfrio Ferreira Nunes, comandante da Guarda Nacional e Carlos Antonio da Silva Soares, oficial da mesma guarda, e promotor pblico. (MATIAS, 2009)
2 Francisco Xavier Ferreira (1771-1838) foi farmacutico, jornalista, poeta e poltico. Em sua tipografia foi
impresso Hino que se cantou na noite do dia 24 do corrente, pela feliz notcia da Gloriosa Elevao do Sr. Dom
Pedro II ao Trono do Brasil, sendo este o primeiro texto publicado na cidade de Rio Grande-RS. Nessa mesma
tipografia, imprimiu o jornalO Noticiador, o primeiro jornal rio-grandino.
3 O autor refere-se ao sculo XIX.
387
como que a literatura rio-grandina estava em comunho com a brasileira, visto que havia a
circulao de livros e jornais diversos, devido s livrarias e tipografias presentes na cidade,
alm da preocupao com a educao de seus cidados por meio de locais de ensino e um teatro
capaz de contribuir para o entretenimento e civilidade.
A importncia do teatro pode igualmente ser verificada pela publicao das peas
teatrais apresentadas, na dcada de 1840, na cidade de Rio Grande por Jos Manoel Rego
Viana (1809-1846), autor da pea Os jesutas ou o bastardo del Rey, e Manoel Jos da Silva
Bastos (1823-1861), com a pea O castelo de Oppenheim ou o tribunal secreto, dramas que se
tornaram os primeiros livros publicados na imprensa local. De mesmo modo, a contribuio
para o incentivo da produo literria local pode ser medida pelos poemas publicados no jornal
ORio-Grandense, em decorrncia da vinda do ator Joo Caetano dos Santos a Rio Grande, em
1854.
Dentre as peas encenadas pela companhia teatral do ator Joo Caetano, grande parte
so de autoria de teatrlogos europeus do sculo XIX, como, por exemplo, a do dramaturgo
francs Anicet Bourgeois (1806-1870), intitulada A Dama de Saint Tropez; o drama Dom Cesar
de Bazan, dos franceses Adolphe dEnnery (1811-1899) e Philippe-Franois Dumanoir (18061865); A gargalhada, de composio do francs JacquesArago; Otelo ou O Mouro de Veneza,
de William Shakespeare (1564-1616), numa traduo de Gonalves de Magalhes (1811-1882);
e Antnio Jos ou O Poeta e a Inquisio, tambm de Gonalves de Magalhes, sendo esta a
primeira tragdia escrita por um brasileiro, em 1838, e com abordagem nacional.
Estas representaes e o prprio ator Joo Caetano serviram para fomentar a produo
literria da cidade. Assim, foi realizada a coleta no Jornal O Rio-grandense de poemas originados
a partir desses espetculos, o que proporcionou o conhecimento de poetas locais, como Augusto
Candido, Teodolindo Antnio da Rosa, Antonio Jos Caetano da Silva e, o j conhecido como
dramaturgo, Manoel Jos da Silva Bastos.
Atravs dos relatos e das anlises dos poemas4, pode-se observar melhor no s a
produo literria presente nas cidades de Rio Grande, no sculo XIX, mas tambm resgatar
o histrico do ambiente nessa provncia. Alm disso, nota-se que os poemas do extremo sul
brasileiro estavam seguindo o mesmo movimento que os da corte, pois as caractersticas formais
e temticas so semelhantes.
Ao averiguar a colaborao do Teatro Sete de Setembro na manuteno da literatura
como atividade sociocultural, na cidade gacha de Rio Grande, no sculo XIX, poderei verificar
qual sua importncia para a formao da literatura local e sul-rio-grandense e, dessa forma, se
4 Alguns poemas e suas respectivas anlises podem ser encontrados no artigo, de minha autoria, A vinda do
maior ator do Imprio ao extremo sul brasileiro, disponvel em: http://www.mafua.ufsc.br/numero15/ensaios/a_
vinda_do_maior_ator_do_imperio_ao_extremo_sul_brasileiro.html
388
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390
1 Referente literatura de dispora cubana, apoio-me nos estudos de Jess J. Barquet, Ambrosio For-
391
iniciada en 1959 y conocida con nombres diversos y polmicos como exilio, emigracin o destierro posrevolucionario, dicha dispora, an vigente, cuenta con un vasto
corpus potico que no permite ser concebido como una entidad cerrada, uniforme y
unifocal, puesto que se trata de un corpus dinmico y multiforme en temas y estilos,
con mltiples focos de produccin dispersos por el mundo (los Estados Unidos, Espaa, Mxico, Francia, Venezuela, Chile, Repblica Dominicana, Puerto Rico, Colombia, Suiza, Sudfrica, Inglaterra Suecia), corpus que desde los aos setenta vive
en constante renovacin y enriquecimiento producto de las sucesivas emigraciones
de poetas ya formado en la Isla y de los tambin sucesivos brotes de autores autctonos, es decir, los formados literariamente fuera del pas o que publican sus primeros
libros ya en el destierro (BARQUET, 2002, p. 20).
Esta produo diasprica, pode ser distribuda em trs grandes grupos, de acordo com o
pensamento de Alonso (2005). O primeiro deles faz referncia aos que deixaram Cuba durante
os primeiros anos da Revoluo. O segundo grupo est relacionado ao xodo de El Mariel, em
1980. E o terceiro representado pelas migraes iniciadas na dcada de oitenta estendendo-se
a atualidade. Odette Alonso observa, ao se deter na produo potica feminina, que devido a um
salto temporal interessante possvel a identificao apenas de dois grandes grupos. O primeiro
abrangendo o perodo antes da Revoluo a as dcadas de sessenta e setenta; e o segundo grupo
identificado, abarca desde os ltimos anos dos anos oitenta at atualidade.2
Seguindo este pensamento de ordenao temporal da produo literria em estudo, ao
referir-me ao discurso da dispora vale recordar que si la cultura moderna consagra el protagonismo del individuo, es con el discurso de la alta modernidade que estamos en el tejido
imagtico de la persona, asocindose la identidad al desempeo de roles ficcionales sucesivos o
simultneos (BOLAOS, 2008, p.16). Este sujeito que se apresenta em condio migrante, de
dispora, e que se busca pela palavra e pelo verso. E, nesse contexto, a significao da dispora
est intimamente relacionada aos novos conceitos geopolticos, ao passo que
hoje assistimos a uma exploso do conceito, que responde a uma diversificada existncia e produo diasprica, tambm a sua conscincia reflexiva. Em conseqncia,
intensifica-se a anlise das prticas culturais dos generalizados movimentos migratrios desta poca, abre-se o conceito a entendimentos matizados, complexos, at con2 So integrantes do primeiro grupo as poetisas: Pura del Prado, Ana Rosa Nez, Amelia del Castillo,
Juana Rosa Pita, Mercedes Cortzar, Rita Geada, Gladys Zaldvar, Mireya Robles, Marta Padilla, Nivaria Tejera, Uva de Aragn, Lourdes Gil, Maya Islas, Alina Galliano, Irradia Iturralde, Isel Rivero, Mara
Elena Blanco, Magali Alabau, Lilliam Moro, Laura Ymayo Tartakoff, Carlota Caulfield y Belkis Cuza
Mal, entre otras. J as poetisas integrantes do segundo grupo so: Minerva Salado, Chely Lima, Dana Chaviano, Cira Andrs, Mara Elena Cruz Varela, Elena Tamargo, Damaris Caldern, Mara Elena
Hernndez Caballero, Sonia Daz Corrales, Odette Alonso, Zoe Valds, Aime Gonzlez Bolaos, Luca
Ballester, Rita Martn, Alessandra Molina y Ldice Alemn, entre otras (ALONSO , 2005).
392
temporneos3; observa Karen Caplan (1996). Caplan ao estudar os clssicos tericos da dispora, como Edward Said e James Clifford, identifica uma diversidade de concepo nas noes
de viagem e de deslocamento como modalidade discursiva metafrica. Destaca o ponto de vista
de Edward Said por ir alm da viso modernista centrada na dicotomia exlio e regresso4, ao
identificar o intelectual migrante como um figura integrante do mundo transnacional. Ao passo
que observa a postura de James Clifford ao interessar-se pela dimenso diasprica ao refletir
sobre a capacidade em se criar vnculos entre os atores do processo diasprico de origem comum, em distintos lugares.
Com Clifford,
o conceito de dispora se enriquece na diferenciao no-excludente com outras formas de deslocamento (exlio, expatriao, migrao), referido a histrias de habilidade e relocalizao, criao de identidade na disperso e a
partir de escombros da histria. Em J. Clifford, a teoria, mais do que ter um
lugar, mostra itinerrios. Assim, apresenta a dispora como um termo desestabilizador que fala de roteiros e razes, cambiante nas condies de mundo
globalizado (BOLAOS, 2010, p. 169).
De acordo com Avtar Brah (1998) a dispora relaciona-se aos movimentos migratrios
generalizados. Onde nem sempre a idia de retorno ao lugar de partida move o sujeito diasprico5. Este sujeito transformador de seu prprio discurso. O qual se constri e se reconstri,
em pleno trnsito. Aludindo a metfora proposta por Stuart Hall ao estudar a dispora tendo
como foco a matriz caribenha: dispora sobre dispora. O sujeito viajante em seu itinerrio
pratica uma espcie de apropriao antropofgica dos traos das culturas, resultando em suas
constantes (re)invenes e (des)centralizaes; onde o centro cultural est em qualquer lugar
3 Recorro ao aporte terico de James Clifford, Homi K. Bhabha, Stuart Hall, Edward Said, Michel
Foucault, Frederic Jameson, Gayatri Spivak, Avtar Brah, Karen Caplan, Silvia Spitta, Simone Harel,
Pierre Ouellet, Lucien Lequin.
4 Neste sentido, observa-se uma relativa novidade de noo do sujeito cosmopolita da dispora, dife-
rente do modelo modernista de exilado ou turista, que emerge no contexto crtico europeu-americano
ps-moderno dos anos 80 (BOLAOS, 2010, p. 168).
5 Bolaos nos sinaliza que interesa no solo de donde se parti, sino las formas de desplazamiento y
la proyeccin en comunidades imaginadas que se integran entre identidad y alteridad, en contacto con
otras prcticas culturales y sociopolticas. Se transforma el sujeto diasprico en el viaje transcultural,
que puede ser una sntesis simblica de un conjunto de experiencias viajeras, transformador tambin de
los espacios que transita (BOLAOS, 2008, p.18).
393
e em lugar nenhum.
De acordo com Hall (2003), as prticas artsticas da dispora no apresentam-se apenas
como uma viagem de redescoberta, nem de retorno, mas um espao e um tempo de produo,
de construo, de apropriao e de reconstruo do sujeito viajante e de sua cultura identitria,
ou culturas plurais identitrias. E, assim, essa
potica alcanza particular relevancia el viaje transcultural, tan expresivo de la consciencia diasprica que tiene en su centro un sujeto de mltiples centros. Y puede pensarse que si toda dispora implica, al menos, un viaje; el viaje, como clsica metfora
de la modernidad, no resulta siempre una experiencia diasprica (BOLAOS, 2008,
p. 16).
Neste articulado sistema de relaes, a viagem transcultural como metfora central abre
espao para que o prprio sujeito autoral se reconhea como poeta em trnsito, como ser itinerante. Com este pensamento vejo mais forte a teia discursiva, destas mulheres memoriosas e
viajantes, a interrogar-me e a seduzir-me por segui-las em dispora.
No momento atual do estudo, centralizo meu olhar na obra de Juana Rosa Pita6 na
tentativa de aproximar-me deste sujeito que se apresenta em condio migrante, de dispora
e que se busca descobrir pela palavra e pelo verso. O sujeito transita entre as lembranas, ora
silenciadas, ora gritadas pela voz da palavra, de seu lugar de origem contrapondo-o a realidade
a qual est imerso.
Em Crnicas del Caribe (1983), a memria habita a palavra que busca recuperar
sueos malversados (PITA, 1983). E Juana Rosa faz volar la pluma sobre sua Isla durmiente transformando memrias em espaos vitais no itinerrio do sujeito diasprico. Sobre los
espacios, que la poeta intenta habitar y por ellos es habitada, se desarrolla las heterotopias como
mapas prprios, conectando espacios incompatibles, creados por la memria y la imaginacin
(BOLAOS, 2008, p.23).
Na primeira parte de Crnicas del Caribe - Pembulo - sonho, tempo e luz buscam
terra firme para fixar razes e, assim, refletir as imagens e a nostalgia da terra me:
Dentro de este palacio estn mis sueos
Dentro de cada sueo un mundo
Y en todos ellos t
6 Juana Rosa Pita nasceu em Havana, Cuba, em 1939. Em 1961, deixa a Ilha, iniciando sua viagem
diasprica marcada pela residencia em Washington, Boston, Madrid, Nova Orleans, Miami, atualmente
reside em Boston. Entre suas obras poticas esto Pan de Sol (1976), Mar entre rejas (1977), Manual
de magia (1979), Eurdice en la fuente (1979), Viajes de Penlope (1980), Cnicas del Caribe (1893),
Sobros de Luz (1990), Cantar de Isla (2003), Pensamiento del tiempo (2005).
394
O sujeito transita entre as lembranas, ora silenciadas, ora gritadas pela voz da palavra,
de seu lugar de origem contrapondo-o a realidade a qual est imerso. A cada itinerrio de sua
viagem planta rvores, fixa razes, e a cada nova migrao essas razes no so arrancadas, mas
prendem-se mais a terra abrigo e de solo em solo vo formando teias. Teias que tecem o sujeito
viajante e que o prendem a cada terra, a cada rvore que brota em solo ora to estrangeiro, ora
to particular, terra frtil da palavra:
Del suelo no pasas
me deca mi abuelo pero eran
otros dias de tierra colorada
y de tierra colada en mis sandlias
Luego fue el primer vuelo sin regreso
y me segu cayendo
pero ya no haba suelo de donde no pasar:
haba solo una ire
Para hundirme mejor
y siempre estar pasando a la escritura
(zapatos impecables)
aunque no hubiera empanaditas
de cazn para trayectos largos
395
[...]
Con rbol de la guarda
ya no paso del suelo submarino:
gracias por retornarme
la plataforma solidaria en voz
de mi Caribe amado (1983, p. 31)
Nos poemas Crnicas del caribe I, Crnicas del caribe II e Crnicas del caribe
III, aflora a comunho cultural que constri o sujeito aludindo a metfora de Hall de dispora
sobre dispora, evidenciando as constantes (re)invenes e (des)centralizaes. Onde as caractersticas fsicas, genticas no so mais as responsveis por definir a origem, a identidade
do indivduo. Hbrido o sujeito renasce em cada encontro com o outro, serenando fronteiras e
entregando-se a viagem interior, abrindo-se a alteridade.
Desde que Amrico Vespucio trajo
la fantasia florentina a Amrica
un semi puede tomar el rostro
de Simonetta: ojos
estilo Botticelli y alma (1983, p. 23)
La caza del ngel estrutura a terceira parte de Crnicas del caribe. Povoado de anjos
mensageiros da memria, o sujeito viajante no importando o lugar que esteja sabe e sente a
presena do seu anjo protetor, sua terra me. Em viagem no est desprotegido, est livre para
bater asas e ir buscar-se pelos ares da memria ou pelas guas do mar;
Estas siempre al umbral de La alegra
aceptando el dolor: poner los ojos
en el silente mundo de lo sido
donde habita el amor
Hay mares y hay amares
pero hay un solo azul que cumple al cielo
y una sola caricia que da acceso
al sueo y a la voz
Tambin los pueblos tienen sus caminos
de sangre a ningnlado: hasta el momento
de la palabra justa e indeleble
que les merece el sol (1983, p. 60)
396
A sua busca por encontrar um espao prprio faz contraponto aos espaos fludos do mar, dos
sonhos, do cu povoados de anjos, seres que acompanham e habitam todo lugar pelo qual circula o
sujeito viajante. Nestes espaos,
las heterotopas aparecen como espacios del imaginario, onricos, proyectivos, con
frecuencia marginales, clandestinos, de conflictos, omisiones, ausencias, en los que
hasta se reinventa el pas natal. Constituyen refugios mticos donde los sujetos diaspricos se encuentran en una memoria compartida, habitada desde adentro por las ms
complejas ficciones de la identidad (BOLAOS, 2008, p. 22).
O sujeito tece imagens e memrias que vo formando peas de um quebra cabea identitrio, onde as imagens, os espaos e os momentos de vida vo se completando e se refletindo.
En ese fulgor, sobresale el renovado sentido de la escritura, concebida a partir del autoconocimiento y la recreacin identitaria (BOLAOS, 2008, p. 32), onde a palavra o fio que une
as (multi) travessias. Como pontuou Bolaos (2008) o texto potico apresenta-se como uma
metfora do exlio que bem pode ser uma metfora da escritura.
A obra de Juana Rosa Pita, exemplo impar da prtica artstica da dispora, no apresenta-se apenas como uma viagem de redescoberta, nem de retorno, mas um espao e um tempo de
produo, de construo, de apropriao e de reconstruo do sujeito viajante e de sua cultura
identitria, ou culturas plurais identitrias, como j externou Hall (2003). Sua produo potica
traa uma singular cartografia do espao multicultural dos trnsitos, tematizando encontros,
anagnrises e epifanias; tambm dramticas lembranas e vivncias de solido, perda e desenraizamento, todos representativos do ofcio potico e da dispora (BOLAOS, 2010). O
sujeito autoral se reconhea como poeta em trnsito, como ser itinerante que de dispora em
dispora vai tecendo sua identidade.
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2000.
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400
1 INTRODUO
O trabalho na rea da comunicao, dentro do jornalismo, faz despertar muitos
questionamentos sobre o conceito to propagado da imparcialidade jornalstica tornando-a
quase um mito. Os prprios tericos da comunicao j admitem que a imparcialidade
inatingvel e falam, hoje, em objetividade. Seja a imparcialidade ou a objetividade, o que o
jornalismo difunde que a construo das notcias isenta de segundas intenes a no ser a
de informar.
Entretanto, se a lngua no transparente, ao contrrio, opaca, passvel de falhas, ser
que possvel ter o controle dos sentidos daquilo que escrevemos? E possvel escrever sem
ser afetado pelo meio em que vivemos?
Nesse sentido, o olhar da AD na cobertura feita pela Rede Globo de Televiso campanha
Diretas-J!, a qual pedia eleies diretas para a presidncia da Repblica, em um contexto de
redemocratizao do pas aps um perodo ditatorial, representa um importante passo para os
tericos que buscam trabalhar conceitos como o da imparcialidade no jornalismo.
A escolha do corpus justifica-se pela polmica que a cobertura da Rede Globo provocou
na poca, cujas consequncias ressoam ainda nos dias atuais. Tanto, que em seu portal de
memrias na internet, a emissora criou uma seo denominada Erros, onde admite apenas duas
falhas em sua trajetria: na cobertura das Diretas J! e no debate entre Lula e Collor na eleio
para a presidncia da Repblica em 1989.
O trabalho, que ainda est na fase inicial, parte do seguinte questionamento: possvel
pensar em imparcialidade no jornalismo, especialmente na cobertura das Diretas J! feita pela
Rede Globo, tendo como base terica a teoria materialista dos sentidos, que considera a lngua
1 Trabalho baseado no Projeto de Dissertao apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo como requisito parcial obteno do ttulo de mestre em Letras, sob orientao da professora Dra. Carme Regina Schons.
401
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sobre o que dito. Contudo, todo discurso aberto em suas relaes de sentido e por isso que
no existe uma nica interpretao, mas gestos de interpretao provocados pelos efeitos de
sentido produzidos por um determinado discurso.
[...] todo discurso o ndice potencial de uma agitao nas filiaes scio-histricas
de identificao, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas
filiaes e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construdo ou no,
mas de todo modo atravessado pelas determinaes inconscientes) de deslocamento
no seu espao: no h identificao plenamente bem sucedida, isto , ligao sciohistrica que no seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma infelicidade no
sentido performativo do termo isto , no caso, por um erro de pessoa, isto sobre
o outro, objeto de identificao. (PCHEUX, 2008, p. 56, grifo do autor).
Essas filiaes a que Pcheux se refere fazem parte da memria discursiva, ativada pelos
sujeitos no discurso. o j dito, que traz tona o interdiscurso. A memria interdiscurso, como
definimos na anlise de discurso o saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas
palavras faam sentido. Ela se constitui pelo j-dito que possibilita todo dizer. (ORLANDI,
1999, p. 64).
Entretanto, a retomada desse j dito acontece de forma inconsciente, o que d lugar
aos dois esquecimentos percebidos e desenvolvidos por Pcheux (1995): o esquecimento n 1,
o qual defende que o sujeito no pode se encontrar fora da formao discursiva que o domina
(iluso de ser a origem do dizer); e o esquecimento de n 2, que a seleo de formas e sequncia
numa formao discursiva que se determinam em relao de parfrase (iluso do controle dos
sentidos do dizer).
405
sob uma ideologia e de que s h ideologia pelo e para o sujeito, avanando para o conceito de
interpelao dos indivduos em sujeitos pela ideologia.
Tomar a lngua como plana, transparente, unvoca e homognea deixar-se levar
pelas iluses provocadas pela prpria ideologia dominante, que, em sua nsia por
manter a todo custo um imaginrio de sociedade sem conflito de classes, impe o
monologismo, o sentido nico, nas constantes tentativas de silenciar o que sempre
vem irromper: o prprio jogo de foras entre as ideologias. (Schons e Mittmann, 2013,
p. 299).
406
histrico, que determinam o sentido de uma palavra, expresso ou texto. [...] As formaes
discursivas intervm nas formaes ideolgicas enquanto componentes. (FUCHS, PCHEUX,
1997, p. 167).
As relaes ideolgicas de classes so compostas por diferentes formaes discursivas.
Assim, as formaes discursivas nada mais so que as projees das formaes ideolgicas na
linguagem. So as formaes discursivas que determinam o que pode e o que deve ser dito num
discurso.
3.4 Memria
O que dizemos tem relao com outros dizeres, fenmeno reconhecido na AD por memria
discursiva. Entende-se por memria discursiva os dizeres que se atualizam na enunciao.
Dizeres, esses, que so parte de um processo histrico, de uma rede de significantes.
A memria discursiva o chamado saber discursivo. trabalhada pela noo de
interdiscurso, ou seja, pelo j dito. S possvel haver significao atravs da inscrio da
lngua na histria.
Nessa perspectiva, o interdiscurso, longe de ser efeito integrador da discursividade tornase desde ento seu princpio de funcionamento: porque os elementos da sequncia
textual, funcionando em uma formao discursiva dada, podem ser importados
(metaforizados) de uma sequncia pertencente a uma outra formao discursiva que as
referncias discursivas podem se construir e se deslocar historicamente. (PCHEUX,
2012, p. 158).
A memria integra aquilo que pode ser comparado a um processo na AD: para se tornar
sujeito, preciso assujeitar-se, pois s se constitui-se como sujeito pela lngua; e para que
as palavras tenham sentido preciso que j tenham um sentido estabilizado. Assim que
dizemos que ele historicamente determinado, pelo interdiscurso, pela memria do dizer: algo
fala antes, em outro lugar, independentemente. (PCHEUX, 2008, p. 64).
Da mesma forma que a lngua est sujeita a falhas, a memria constituda de
esquecimentos, embora no sejam conscientes.
3.5 Sujeito
Inconsciente e ideologia esto imbricados na constituio dos sujeitos, segundo a
teoria da anlise do discurso francesa. S h prtica atravs de e sob uma ideologia; s h
407
ideologia pelo sujeito e para sujeitos. (PCHEUX, 1995, p. 149, grifo do autor). O sujeito foi
excludo da lingustica textual e somente retornou cena da enunciao pela AD.
Todavia, o sujeito no se d conta daquilo que o determina, ou seja, do funcionamento
constante da ideologia em seus sentidos. Desse ponto de vista, falar do sujeito falar de
efeito de linguagem; sujeito enquanto um ser de linguagem que foi falado antes de falar, que
traz marcas do discurso do Outro, o que implica considerar que o sujeito no origem do
dizer nem controla tudo o que diz. (MAGALHES; MARIANI, 2010, p. 402).
O sujeito constitudo a partir da relao com o outro. , ento, no mnimo dois,
sendo um o falante emprico e o outro o enunciador lingustico. O sujeito da AD um lugar
de sujeito. De fato, ele (o sujeito) no pode ser apreendido, a no ser no interior de cada uma
das buscas do analista, em funo de seu desgnio interpretativo e de sua posio quanto
lngua. (MAZIRE, 2007, p. 22).
O sujeito, no discurso, percebido a partir de lugares determinados socialmente.
Devemos ainda acrescentar que a interpelao do indivduo em sujeito de seu discurso se
efetua pela identificao do sujeito com a formao discursiva que o domina. (ORLANDI,
2010, p. 19). Desta identificao, resulta a forma-sujeito, prximo conceito a ser trabalhado
neste estudo.
3.6 Formas-Sujeito
As formas-sujeito podem ser definidas como as formas de existncia histrica dos
indivduos, responsveis pela iluso de unidade do sujeito. [...] O sentido determinado pelas
posies ideolgicas que esto em jogo nos processos scio-histricos no qual as palavras,
expresses e proposies so produzidas (isto , reproduzidas). (PCHEUX, 1995, p. 160).
Ao se identificar com a formao discursiva que o constitui, o sujeito assume uma
forma-sujeito que tende a esquecer o interdiscurso no intradiscurso. O efeito da determinao
do interdiscurso na forma-sujeito se d atravs da tomada de posio. [...] A tomada de posio
resulta de um retorno do Sujeito no sujeito [...]. (PCHEUX, 1995, p. 172, grifo do autor).
As formas-sujeito assumidas pelos locutores se carregam de poder conforme a posio
social de quem fala e aparecem dando crdito, peso ao que dito ou, ao contrrio, desqualificando
a informao.
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motivo, constitui-se pelo esquecimento. A memria o saber discursivo que faz com que
as palavras faam sentido: palavras j ditas e esquecidas, ao longo do tempo e de nossas
experincias de linguagem que, no entanto nos afetam em seu esquecimento. (ORLANDI,
2010, p. 65, grifo da autora).
So tratadas duas formas de esquecimento pela AD, conforme Pcheux (1995). Uma,
da ordem de constituio do sujeito e do sentido, aquela em que o sujeito, no podendo
se encontrar fora da formao discursiva que o determina, esquece que existe uma formao
discursiva que o domina. Isso porque o sujeito acaba tendo a iluso de que a origem do que
diz. A outra forma de esquecimento se d quando o sujeito esquece que h outros sentidos
possveis para o que ele diz.
Desses dois esquecimentos tm origem as duas iluses: a da origem do dizer e do controle
do que se diz. E o que est alm do controle do sujeito, ou seja, o equvoco, constitutivo do
prprio sujeito. Estar exposto ao equvoco e falha mergulhar na opacidade dos sentidos,
estar exposto contradio, no-coincidncia entre as palavras e as coisas, entre o que se diz
e o que se quer dizer. (MARIANI, 1998, p. 93).
A falha e o equvoco levam opacidade da lngua. [...] A lngua no transparente, no
mero instrumento que serve para transmitir um sentido j-presente, constitudo anteriormente
discursivizao, os analistas, no obstante, se debruaram sobre o que se deve entender por
lngua. (MAZIRE, 2007, p. 16, grifo da autora).
Consoante com as definies feitas at aqui, o silncio, por sua vez, pode ser entendido
como um espao de sentidos possveis, no como um implcito, mas como aquilo que poderia
ter sido dito e no foi.
Por outro lado, h uma dimenso do silncio que remete ao carter de incompletude
da linguagem: todo dizer uma relao fundamental com o no-dizer. Essa dimenso
nos leva a apreciar a errncia dos sentidos (a sua migrao), a vontade do um (da
unidade, do sentido fixo), o lugar do non sense, o equvoco, a incompletude (lugar
dos muitos sentidos, do fugaz, do no-apreensvel), no como meros acidentes da
linguagem, mas como o cerne mesmo de seu funcionamento. (ORLANDI, 2007, p.
12, grifo da autora).
As questes dos silenciamentos podem ser observadas, tambm, sob o vis da censura,
como um sentido proibido, interditado, como o que aconteceu no Brasil no perodo em que foi
realizada as Diretas J! (1983/1984).
Orlandi (2007) distingue o silncio fundador, que aquele existente nas palavras (o no
dito), e a poltica do silncio que se divide em silncio constitutivo (para dizer, preciso nodizer) e o silncio local, o qual refere-se censura e os sentidos interditados.
409
4 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS
O corpus de pesquisa composto pelos 14 vdeos da cobertura jornalstica da Rede Globo
s Diretas J! e outros nove vdeos de depoimentos de profissionais envolvidos disponveis na
seo Erros, no portal de memria da emissora na internet. A escolha deste corpus justifica-se
pela grande polmica que a cobertura causou, provocando o surgimento do bordo popular: o
povo no bobo, abaixo a Rede Globo.
Tendo em vista no sero coletados dados especificamente para o trabalho, a pesquisa ter
como base os dados secundrios. O mtodo de abordagem tem carter qualitativo (se observada
a abordagem do problema) o hipottico-dedutivo, o qual, inicia-se com um problema ou uma
lacuna no conhecimento cientfico, passando pela formulao de hipteses e por um processo
de inferncia indutiva, o qual testa a predio da ocorrncia de fenmenos abrangidos pela
referida hiptese. (FREITAS; PRODANOV, 2009, p. 41).
Da necessidade de testar, validar uma possvel resposta para um problema, que
surge o mtodo hipottico-dedutivo, o qual determina que o valor de uma teoria est em sua
corroborao, isto , no fato de no ter sido ainda rejeitada, aps ter passado por severas provas.
(KCHE, 2007, p.75),
J o meio tcnico de investigao o mtodo observacional, pois apenas ser feita a
observao (e posterior anlise) de fatos que j aconteceram. Sobre a observao, devemos
consider-la como ponto de partida para todo estudo cientfico e meio para verificar e validar
os conhecimentos adquiridos. No se pode, portanto, falar em cincia sem fazer referncia
observao. (RUDIO, 2007, p 39).
No que se refere aos objetivos, esta pesquisa classifica-se como descritiva e explicativa.
descritiva porque, segundo Freitas e Prodanov (2009) o pesquisador apenas registra e descreve
os fatos observados sem interferir neles, e explicativa, tambm, porque alm de descrever os
fenmenos observados, ser realizada uma anlise do corpus explicando as causas dos fatos,
classificando e categorizando-os.
Quanto aos procedimentos tcnicos, ou seja, a maneira de obteno dos dados a serem
analisados, esta pesquisa classifica-se como bibliogrfica na construo do referencial terico
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411
5 CONSIDERAES FINAIS
A pesquisa est em sua fase inicial, com o desenvolvimento do projeto. Por esse motivo,
ainda cedo para traar consideraes. Entretanto, espera-se que contribua para o ensino na rea
da lingustica, demonstrando que dentre as diferentes teorias existentes, a anlise do discurso de
linha francesa permite ir alm do contexto lingustico, por trabalhar a lngua sem desvincul-la
da situao histrico-social, colocada em funcionamento por sujeitos dentro de condies de
produo especficas.
Essencialmente empregada em corpus de anlise de cunho poltico, ao voltar seu olhar
sobre os meios de comunicao de massa, a AD se aproxima do cotidiano da vida dos estudantes,
embebidos do excesso de informaes advindas de jornais e revistas de grande circulao e
programas de TV, possibilitando um olhar mais crtico e reflexivo sobre a sociedade e a forma
como est organizada.
Essa aproximao tambm pode ser buscada com o ensino nos cursos de Comunicao
Social e de Jornalismo. Em consonncia com a linha de pesquisa na qual o trabalho est inscrito
Constituio e Interpretao do Texto e do Discurso a anlise do discurso pcheutiana pode
trazer importantes contribuies compreenso dos papeis do jornalista, das grandes empresas
comunicacionais e dos prprios leitores/telespectadores e apontar um caminho mais realista
dentro do jornalismo, dando relevncia para a sua funo social, a de informar apesar de.
REFERNCIAS
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideolgicos do estado. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
BIAZUS, Camila Baldicera; PETRI, Verli. Aproximaes e contradies: movimentos entre
ideologia e inconsciente. Entremeios: revista de estudos do discurso, Pouso Alegre: Universidade
do Vale do Sapuca (UNIVS). v. 6, jan/2013. Disponvel em: <http://www.entremeios.inf.br/
published/97.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2013.
KCHE, Jos Carlos. Fundamentos de metodologia cientfica: teoria da cincia e iniciao
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Deste modo, o estranho apareceria no momento em que algo que era tradicionalmente
aceito, e foi esquecido no passado, reaparece como um possvel vir a ser. Um exemplo citado
por Freud a antiga crena de que o morto torna-se inimigo do seu sobrevivente e procura
lev-lo para partilhar com ele a sua nova existncia (FREUD, 1996, p. 302), crena essa que
no mantida pelos sujeitos modernos, criados na era cientificista. No entanto, no momento
em que o indivduo confrontado com algo que parece apontar para o sobrenatural, como a
existncia de um fantasma, ele retorna a esses pensamentos que outrora foram convencionais,
estabelecendo-se, a, o estranho.
J no que tangencia a presena do estranho na literatura, Freud afirmar que essa se d
de maneira diferente, pois na fico novas regras de normalidade e aceitao so estabelecidas
pelo escritor. Assim, o leitor pode aceitar com facilidade fatos que causariam estranheza caso
fossem transpostos para a realidade, como a fala de animais nos contos de fada. Segundo o psicanalista, adaptamos nosso julgamento realidade imaginria que nos imposta pelo escritor
(FREUD, 1996, p. 311), havendo estranhamento apenas quando o mundo ficcional corresponde
ao terreno, o que implicaria na transgresso de leis equivalentes s da normalidade.
a partir dessa oposio entre um mundo ficcional que estabelece leis prprias e aquele que simula as regras da realidade que o blgaro Tzvetan Todorov institui seus conceitos de
fantstico, estranho e maravilhoso na obra Introduo literatura fantstica. Para Todorov, o
fantstico se d no momento em que o leitor hesita entre a existncia ficcional de um universo
diferente ou correspondente ao concreto, como se nota no seguinte trecho:
Somos assim transportados ao mago do fantstico. Num mundo que exatamente
o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, slfides nem vampiros, produz-se um
acontecimento que no pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar.
Aquele que o percebe deve optar por uma das duas solues possveis; ou se trata de
uma iluso dos sentidos, de um produto da imaginao e nesse caso as leis do mundo
continuam a ser o que so; ou ento o acontecimento realmente ocorreu, parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade regida por leis desconhecidas para
ns. (TODOROV, 2004, p. 30)
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zombaram dele por sua calvcie, sendo elas devoradas, como punio, por duas ursas que saem
de um mato. No conto do porto-alegrense, doze crianas so ingeridas pela ursa menor e rapidamente digeridas; enquanto outras trinta so engolidas pela ursa maior, vindo a encontrar em seu
interior condies propcias para o desenvolvimento de uma cidadezinha, a partir da qual so
capazes de levar uma vida quase normal, com o estabelecimento de instituies de educao,
sade e o seguimento de um sacerdote chamado o Grande Profeta.
Entretanto, os filhos desses primeiros habitantes que constituram curiosa raa de
anes (SCLIAR, 1978, p. 14) do origem a uma segunda gerao, maior e mais desordeira
que eles, desrespeitosos a toda e qualquer autoridade. Um dia, ao zombarem do Grande Profeta,
dizendo-lhe Sobre, calvo! Sobe, calvo!) (SCLIAR, 1978, p. 14), este os amaldioa em nome
do Senhor e eles so rapidamente atacados por duas ursas, conforme consta na seguinte passagem:
Doze so engolidos pela ursa menor e destrudos. Mas trinta descem pelo esfago
da ursa maior e chegam ao estmago grande cavidade, onde reina a mais negra
escurido. E ali ficam chorando e se lamentando: Ai de ns! Ai de ns! Finalmente,
ascendem uma luz. (SCLIAR, 1978, p. 14)
Nesse conto, Scliar oferece uma continuao para a parbola bblica, dando um tom
inslito a ela ao estabelecer a continuidade da vida das crianas dentro do estmago da ursa.
O leitor aceita uma explicao sobrenatural para a narrativa, podendo essa ser classificada no
gnero do fantstico-maravilhoso, principalmente a partir do momento em que narrada a sobrevivncia das crianas, vindo esse fato a ser repetido quando da morte da segunda gerao
de moradores da cidadezinha. A frase final do texto Finalmente, ascendem uma luz, aponta
para o incio de um ciclo da maldio lanada pelo profeta.
Outro conto que causa estranheza A vaca, cujo enredo gira em torno de um naufrgio na costa africana que deixa apenas dois sobreviventes que se refugiam em uma ilha: um
marinheiro e a vaca Carola. Sem ter do que alimentar-se, o marinheiro encontra no animal uma
fonte para sua subsistncia, nutrindo-se a partir de seu leite e dormindo prximo a ela durante as
noites frias que o flagelam. O ponto de mudana no conto se d no momento em que o homem
inicia a comer o animal por quem at ento se mostrava apegado:
Ele cortava um pedao de carne tenra gostava muito de lngua e devorava-o cru,
ainda quente, o sangue escorrendo pelo queixo. A vaca nem mugia. Lambia as feridas,
apenas. O marinheiro tinha sempre o cuidado de no ferir rgos vitais; se tirava um
pulmo, deixava o outro; comeu o bao, mas no o corao, etc. (SCLIAR, 1978, p.
19)
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O ato do devoramento de um animal ainda vivo apenas o incio da construo da atmosfera estranha que permeia o conto, sendo desenvolvida em relatos mais cruis do narrador
onisciente, como nos seguintes fragmentos: Uma noite arrancou um dos olhos de Carola, misturou-o com gua do mar e engoliu esta leve massa e O marinheiro arrancou um dos chifres
de Carola e improvisou uma corneta (SCLIAR, 1978, p. 19). Aqui, a crueldade do homem com
a vaca funciona como metfora para a animalizao do sujeito, que no mundo contemporneo
perde a solidariedade com o prximo e a substitui por uma busca constante pelo bem individual,
centrando-se em si mesmo.
Tal narrativa pode ser definida como estranha pura, pois os eventos narrados apesarem
de poderem ser explicadas por meios racionais, so, de uma maneira ou de outra, incrveis,
extraordinrios, chocantes, singulares, inquietantes (TODOROV, 1978, p. 53). Nota-se a possibilidade da ocorrncia de um ato como o relatado em A vaca no mundo real, entretanto, no
h uma aceitao desses atos, pois esses so de alto teor de crueldade, tornando-se inaceitveis
para o leitor. O pice da narrativa se d quando o marinheiro incendeia a vaca para atrair a ateno de um navio que passava prximo ilha e que viria a resgat-lo:
O rapaz desesperava-se: a noite caa e o navio afastava-se da ilha. Finalmente, o rapaz
deitou Carola no cho e jogou um fsforo no ventre ulcerado de Carola, onde um pouco de gordura aparecia. Rapidamente, a vaca incendiou-se. Em meio fumaa negra,
fitava o marinheiro com o seu nico olho bom. O rapaz julgou estremeceu, julgou ter
visto uma lgrima. Mas foi s impresso. (SCLIAR, 1978, p. 19)
O conto que se segue no livro Co, que narra a histria de um canino geneticamente
modificado para cumprir uma nica funo: proteger o ser humano. O cachorro do conto, Bilbo,
uma criao japonesa aprimorada, que embora seja menor do que um copo de usque, mantm a ferocidade de um lobo (SCLIAR, 1978, p. 21). Bilbo prova ser de grande obedincia
quando seu dono, Armando, manda-o agarrar um mendigo pela perna e devor-lo, ao que ele
obedece exemplarmente:
Com uma hbil manobra da minscula cabecinha, Bilbo jogou sua presa no cho. A
seguir, iniciando pela prpria perna onde tinha os dentes ferrados, comeou metodicamente a mastigar. Primeiro comeu o membro inferior; depois passou para o coto da
perna, de l ao abdmen, ao trax, e cabea. Tudo muito rapidamente; ao mesmo
tempo ia sorvendo o sangue, de modo a no sujar a grama verde. (SCLIAR, 1978, p.
23)
No entanto, o co mostra no ser fiel apenas ao dono, mas sim quele que proferir as
palavras de ordem certas. Heitor, amigo de Armando, pede que Bilbo lhe seja dado em troca de
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uma antiga dvida; Armando nega e Heitor o chama aos berros de marginal e ladro, fazendo
com que o at ento dono seja devorado por seu co. Posteriormente, a esposa de Heitor duvida que Armando tivesse dado Bilbo ao seu marido, conforme ele afirmara, e o acusa de ser
Ladro! Marginal! (SCLIAR, 1978, p. 23), dando incio ao terceiro processo de devoramento
pelo cachorro.
A criao de um cachorro devorador de humanos aparece como representativa da mesma perda de valores observada nos contos anteriormente analisados. Se em A vaca o comportamento da personagem em relao a um animal que causa estranhamento, em Co o
animal, forjado por seres humanos, que pratica aes brbaras a mando de sujeitos que objetivam ferir outros de sua mesma espcie. Nesse conto, o fantstico-maravilhoso usado para representar a sociedade contempornea em sua face mais suja, mostrando o sujeito como algum
que preza apenas pelo prprio bem estar e despreza a existncia alheia.
Em Torneio de pesca, o conto se passa na praia da Alegria, onde acontece o tradicional torneio de pescadores, no qual participam figuras importantes praticantes da pescaria. Tudo
corre normalmente: peixes so pescados e os competidores confraternizam, at o momento em
que surge a figura de um sujeito desconhecido e sua famlia, sendo eles indivduos sujos, mal
educados e pouco aceitveis ao convvio (SCLIAR, 1978, p. 28). A partir desse momento da
narrativa comeam a aparecer relatos que vo tecendo a trama fantstica que se estabelece a
partir da, como na seguinte passagem:
Mas na manh seguinte, comparece praia o homem Antnio era seu nome e, sem
pedir permisso, entrega-se s seguintes manobras: arregaa as calas at os joelhos.
Entra na gua, introduzindo-se entre as linhas de pesca dos esportistas. Mergulha os
braos, at os cotovelos. Pronuncia em voz baixa algumas palavras. E quando retira
os braos, tir-los cheios de peixes! (SCLIAR, 1978, p. 28)
A presena do sujeito considerado estrangeiro causa incmodo aos demais participantes do torneio, uma vez que eles esto em um ambiente no qual se sentem pertencentes, onde
ditam e obedecem as mesmas regras. Antnio, o forasteiro, causa desconforto ao invadir a gua
e pescar com as prprias mes, contrariando a conveno de se fazer tal atividade com o uso
de varas para pesca. Neste momento, quando h a referncia ao fato de ele pronunciar em voz
baixa algumas palavras, uma aura mgica em torno dessa personagem construda.
Os participantes do torneio, juntamente do Presidente do Clube de Pesca, ao irem confrontar Antnio sobre seus hbitos estranhos, encontram ele e sua famlia devorando os peixes
crus e ainda vivos, o que causa revolta entre o grupo. Uma medida drstica tomada e o homem
tem seus braos amputados como punio por seu comportamento, sendo tal atitude considerada aceitvel e necessria pelas demais personagens, evidenciando o grotesco e o brutalismo
420
presentes na sociedade contempornea. Tal narrativa pode ser includa no subgnero do estranho puro, pois apresenta uma situao chocante e violenta que passvel de acontecer, o que
no diminui sua aura de estranhamento.
O ltimo conto no qual o estranho se manifesta a ser analisado no presente estudo Canibal. Neste, um avio tripulado por Brbara e Angelina, irms de criao, cai na Bolvia, em
um territrio onde no h alimentos disponveis na natureza para aliment-las. Brbara trouxera
com si uma grande quantidade de alimentos, mas nega-se a dividi-los com a irm, engordando
e mostrando-se saudvel enquanto a outra enfraquece por falta de comida. Sem ter outra sada
para sobreviver, Angelina inicia um processo de comer partes do prprio corpo: Angelina comeu os dedos das mos, depois os dos ps. Seguiram-se as pernas e as coxas (SCLIAR, 1978,
p. 39).
Nessa narrativa o tema que vem tona a antropofagia, prtica inaceitvel na sociedade
moderna que consiste em um ser humano comer uma ou mais partes de outro ser da mesma
espcie. Contudo, aqui se comete um auto-canibalismo, o que gera um desconforto ainda
maior para quem l o texto. Apesar da situao absurda vivenciada pelas duas, elas mantm um
relacionamento cordial, como se v no seguinte excerto:
Brbara ajudava-a a preparar as refeies, aplicando torniquetes, ensinando como
aproveitar o tutano dos ossos, etc. No dcimo quinto dia, Angelina viu-se obrigada
a abrir o ventre. O primeiro rgo que extraiu foi o fgado. Como estava com muita fome, devorou-o cru, apesar dos avisos de Brbara, para que o fritasse primeiro.
Como resultado, ao fim da refeio continuava com fome. Pediu Brbara um pedao
de po para passar no molhinho. Brbara negou-se a atender o pedido, relembrando as
ponderaes j feitas. (SCLIAR, 1978, p. 39)
421
nessas narrativas, estando esse tema presente em todos os contos analisados, com exceo de
Torneio de pesca, fato este que ser comentado nas concluses finais do presente ensaio.
3. Consideraes finais
Ao longo do presente ensaio, objetivou-se mostrar como o fantstico e seus subgneros
se manifestam em cinco contos da obra O carnaval dos animais, de Moacyr Scliar. Observouse que nos contos As ursas e Co o fantstico-maravilhoso que se faz presente, enquanto
A vaca e Torneio de pesca podem ser classificados como pertencentes ao subgnero do
estranho puro. J Canibal, parece no ser passvel de ser delimitado em apenas uma das manifestaes do fantstico propostas por Todorov, podendo o texto se aproximar tanto do estranho
puro, quanto do fantstico-maravilhoso.
Alm da presena do fantstico, todos os contos, exceto Torneio de pesca, trazem o
tema do devoramento de pessoas ou animais por outros seres. A reincidncia dessa temtica
aponta para a violncia e o inslito presentes nessa seleo contstisca, fazendo uma aluso
ao absurdo da vida contempornea na qual o homem confronta-se com seu semelhante a todo
instante, passando por cima de princpios morais para atingir seu objetivo. Esse devoramento,
portanto, aparece como metfora para o egosmo humano e a constante busca por satisfao
prpria, o que o leva a consumir e devorar o outro.
Outro fato a ser observado a utilizao de animais como alegoria ou smbolos nos
contos analisados acima, como o caso de As ursas, A vaca e Co. Cabe ressaltar que
Scliar lanou O carnaval dos animais no ano de 1968, perodo no qual o Brasil enfrentava uma
dura represso sob o regime militar, razo essa que justifica o uso de referncias animalescas
para tratar de uma sociedade humana corrompida e violenta. A respeito disso, Drio Taciano de
Freitas Jnior, em sua dissertao de mestrado, aponta que os eventos nos quais esses animais
aparecem so anlogos
s situaes que chocam a sociedade e podem, atualmente, ser encontradas em notcias de peridicos, jornais, enfim, nos meios de comunicao de massa em geral. Os
textos presentes pertencem, sobretudo, a um gnero literrio que se constitui num
choque ao leitor, pois, neles, nota-se, de maneira mais aguda, os impasses da crise que
atravessa a sociedade contempornea. (JNIOR, 2009, p. 57)
A partir do comentrio acima se pode notar que o fantstico aparece para apresentar situaes absurdas que reproduzem questes do cotidiano humano. Portanto, os contos de Scliar
so um retrato de questes sociais da contemporaneidade revestidas sob uma face fantstica e
422
Referncias
FREUD, Sigmund. O estranho. In: Obras completas de Sigmund Freud: edio standard
brasileira. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 237-269.
JNIOR, Drio Taciano de Freitas. O simbolismo animal medieval: um safri literrio em Moacyr Scliar e Manoel de Barros. 2009. Dissertao (Mestrado em Estudos Literrios), Universidade Federal de Gois, Goinia, 2009. Disponvel em: <http://pos.letras.ufg.br/uploads/26/
original_dario.pdf>. Acesso em: 07. set. 2013.
SCLIAR, Moacyr. O carnaval dos animais. 2. Ed. Porto Alegre: Movimento, 1970.
TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura fantstica. 3. ed. So Paulo: Perspectivas,
2004.
423
424
textos literrios, as canes e suas letras (muitas, influenciadas diretamente pela literatura no
apenas de Ramil, mas de outros escritores) surgem como elementos interconectados com todo
o restante de suas produes, configurando, juntamente com as obras literrias, uma unidade.
Cada um dos elos citados ajuda a dar forma a esta unidade na diversidade, justamente
um dos objetivos propostos por Ramil em A esttica do frio (2004). Tal pensamento acaba por
ser empregado como mote durante esta pesquisa, buscando trazer um pouco do rico universo do
artista, atravs de todas suas formas de expresso, visando, com a abordagem adotada, revelar o
universo simblico de um artista que, em cada uma de suas obras, projeta elementos e smbolos
presentes em seu imaginrio, o qual transcende a esfera individual, e passa a ser compartilhado
com seus leitores.
Ramil evoca em suas criaes, um imaginrio sulino, carregado de elementos e smbolos
da cultura local, mas com um olhar ao longe, buscando o mais universal do ser humano: o
indivduo e suas buscas, os encontros e desencontros que do forma aos nossos caminhos e
escolhas, onde quer que estejamos. Sem importar de onde vemos ou para onde vamos.
Por meio de Satolep, Vitor Ramil incorpora alguns elementos preponderantes da
cultura sul-rio-grandense que remetem ao imaginrio do sul, recriado em seu livro. Utilizandose de fotografias antigas, personagens histricos e imagens poticas construdas por ele, o autor
cria uma narrativa em que os elementos da cultura sulina surgem com fora e configuram,
assim, a mtica Satolep, como palco da memria afetiva e do imaginrio de um indivduo em
busca de si. Selbor, o personagem protagonista da obra, retorna a sua cidade natal, na tentativa
de completar um ciclo em sua vida, iniciado com a sada de Satolep, mas ao se fechar um ciclo,
sempre se abre um novo, o que acaba lanando o personagem em uma espiral de acontecimentos
atravs de uma contnua deambulao pela cidade.
Com o estudo apresentado, busca-se analisar os elementos que compem o imaginrio
construdo por Ramil em sua narrativa, a fim de melhor compreender a obra, percebendo-se,
igualmente, a importncia do papel de cada elemento na constituio da narrativa e na construo
de um imaginrio sulino. Para tanto, recorre-se a alguns tericos do Imaginrio, como Gilbert
Durand e Gaston Bachelard, bem como aos tericos da imagem fotogrfica Roland Barthes e
Philippe Dubois, no intuito de embasar teoricamente a anlise pretendida.
A estrutura do trabalho divide-se essencialmente em trs partes: a primeira busca
apresentar o autor e sua trajetria, visando uma imerso em seu universo criativo a fim de
melhor compreender a obra analisada. Nessa primeira parte, o leitor poder conhecer um pouco
mais da vida e obra de Vitor Ramil, msico, compositor, letrista, intrprete, escritor. Por meio da
fortuna crtica consultada, pode-se tambm constatar diferentes olhares ante a recepo de suas
obras no universo da palavra. Conhecido por suas canes, bem como pela criao do conceito
de Esttica do Frio, percebe-se que ainda h um amplo espao a ser conquistado pelo autor
425
nas terras da academia. Pouco a pouco (devido sua recente produo literria), seu trabalho
comea a ser descoberto, conforme se pode constatar a partir de alguns poucos pesquisadores
que vm se debruando sobre suas obras.
A segunda parte aborda a questo imagstica presente em Satolep, e analisa a importncia
das imagens fotogrficas contidas na obra. Para tanto, so tomadas como referncia diferentes
abordagens tericas relacionadas fotografia. Tambm so apresentados distintos conceitos
de imagem, com o intuito de ampliar a discusso relativa ao plano visual da obra. No menos
importantes do que os textos que as acompanham, as imagens surgem como parte de um segundo
plano de leitura do livro, tornando-se peas-chave para o entendimento de uma educao do
olhar, almejada pelo protagonista do romance analisado.
A terceira e ltima parte deste trabalho aprofunda a imerso no imaginrio satolepiano,
buscando investigar imagens simblicas recorrentes em Satolep e analisar a obra sob o olhar
transcendente de Bachelard, Durand, Jung e Campbell, predominantemente. Atravs do vis
intimista da narrativa, busca-se acompanhar a flnerie, penetrar a bruma que envolve a cidade,
a paisagem mida e onrica que compe Satolep; busca-se imergir em suas guas, ora de
chuva, ora de marolas, ora de solides; mergulhar no reflexo espelhado da cidade e, ento, dar
seguimento dana circular da espiral, sempre ansiosa por recomeos.
Em cada uma das trs partes, so apontados diferentes elementos simblicos da anlise,
cada uma dessas unidades funciona como um ncleo, ou, na linguagem dos mosaicos, um
nicho, formado por suas pequenas tesselas. Ao longo do trabalho, cada um dos trs ncleos
vai se juntando com os demais, a fim de comporem, em comunho, a totalidade deste mosaico,
construdo pela presente interpretao da obra.
A anlise realizada no espera colocar em linha reta os sinuosos sentidos presentes
em Satolep, tampouco encerrar a narrativa em uma frmula de compreenso da mesma. A
inteno primeira e constante foi apenas a de seguir tais caminhos bifurcados, entregando-se ao
jogo da leitura como uma experincia sentida, desperta a cada virar de pginas.
Este trabalho resultado dessa percepo e surge como uma possibilidade de direo
entre as tantas que surgem diante da obra, tendo sempre em mente o conselho de Walter
Benjamin: saber orientar-se numa cidade no significa muito. No entanto, perder-se numa
cidade, como algum se perde numa floresta, requer instruo (BENJAMIN, 1994:73). Alm
de perder-se na cidade, tambm preciso perder-se no tempo, como indica a prpria epgrafe
da obra, que remete disperso da ordem do tempo, propondo uma entrega narrativa e suas
imagens como em uma jornada rumo ao desconhecido.
Dessa maneira, uma vez que, para conhecer uma cidade preciso saber submergir em
suas ruas, e em seu tempo, entende-se Satolep como um convite a perder-se, sendo este um
caminho possvel para experienciar a cidade em sua totalidade, para, s ento, tornar-se um
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A inveno de Satolep...
Nascido em sete de abril de 1962, na cidade de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul,
Vitor Hugo Alves Ramil iniciou cedo sua carreira artstica. Irmo mais novo de uma prole de
seis filhos (entre eles a dupla de msicos Kleiton e Kledir), o caula da dona Dalva e do seu
Kleber encontrou desde o bero inspirao para uma trajetria que hoje j ultrapassa os trinta
anos. Foi no meio familiar que deu os primeiros passos, tanto na msica quanto nas letras.
Tendo crescido em um ambiente bastante musical, Ramil, desde muito cedo, inicia a escrever e
a compor. Em 1981, com apenas dezoito anos, lana seu primeiro lbum: Estrela, estrela, com
composies prprias, incluindo a cano-ttulo do disco que mais tarde seria tambm gravada
pelas vozes de Gal Costa, Milton Nascimento e Maria Rita.
Seu segundo disco, A paixo de V segundo ele prprio, lanado em 1984, traz sua
primeira milonga1, composta aos dezesseis anos, Semeadura, que mais tarde seria traduzida
para o espanhol como Siembra e cantada por Mercedes Sosa. O lbum tambm contm
Milonga de Manuel Flores, composio musical baseada no poema homnimo de Jorge Luis
Borges (cano que ressurgiria com sua verso original, em espanhol, no lbum Dlibb2,
de 2010), numa demonstrao da precoce aproximao com a cultura dos pases vizinhos,
observada ao longo de sua produo:
3 Poema do livro Para las seis cuerdas (1965) de Jorge Luis Borges. Obra composta por onze milongas, das
quais seis delas j foram musicadas por Vitor Ramil.
427
A influncia das sonoridades e da literatura oriundas do outro lado do Rio da Prata, bem
como o contato com a lngua espanhola, presente em muitas de suas obras, como no exemplo
da cano citada, d-se em parte pela prpria origem do artista: o pai oriundo do Uruguai e o
av da Espanha. Aos onze anos de idade, j escrevia e foi ganhador de um concurso nacional de
contos, no mbito do Rio Grande do Sul. Apaixonado pelo escritor Jorge Luis Borges, conta que
quando o leu pela primeira vez, aos treze anos, mesmo sem entender plenamente o contedo da
obra sentiu-se fisgado pela linguagem do escritor argentino.
Desde ento, pode-se notar que a influncia de Borges entrelaou-se na potica de Ramil,
gerando uma inspirao criativa, iniciada com a primeira cano, musicada em 1984, e que o
acompanhou at seu recente trabalho musical, Dlibb (2010).
Foi tambm no perodo de sua adolescncia, segundo entrevistas consultadas, que o
artista criou o anagrama Satolep, por entender que continha a sonoridade ideal para usar em
suas canes. A fim de comear a entender o imaginrio criado por Vitor Ramil, preciso,
primeiramente, desvendar a gnese da sua talvez mais renomada criao: a cidade de Satolep.
Inspirada na antiga Pelotas, cidade gacha localizada no extremo sul do Brasil, Satolep desponta,
ao mesmo tempo, como cenrio e personagem de letras de canes e de textos escritos pelo
artista, bem como intitula o romance de 2008.
A inveno de Satolep se d desde cedo no universo criativo de Vitor Ramil: a cidade
surge pela primeira vez na composio da cano Satolep (1984), integrante do segundo lbum
428
do artista: A paixo de V segundo ele prprio. Na msica, surge este habitante, caminhante
da cidade, um flneur4, a falar das impresses que vai colhendo pelas ruas e, ao final, narra sua
experincia, utilizando importantes smbolos, presentes de forma bastante incisiva em Satolep,
na composio dos caminhos de pedra e nuvem, aos quais ir se referir constantemente o
personagem Selbor, no romance de 2008.
A cidade surge na composio Satolep, versando sobre um indivduo a perambular por
sua histria, atravs das ruas e smbolos de sua cidade, conforme se pode atestar nos seguintes
trechos:
Sinto hoje em Satolep
O que h muito no sentia
O limiar da verdade
Roando na face nua
As coisas no tm segredo
No corredor dessa nossa casa
(...)
S, caminho pelas ruas
Como quem repete um mantra
O vento encharca os olhos
O frio me traz alegria
Fao um filme da cidade
Sob a lente do meu olho verde
Nada escapa da minha viso.
Muito antes das charqueadas
Da invaso de Zeca Netto
Eu existo em Satolep
E nela serei pra sempre
O nome de cada pedra
E as luzes perdidas na neblina
Quem viver ver que estou ali.
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6 A letra ficcionaliza a apresentao do tenor italiano Enrico Caruso durante sua passagem pelo Brasil e
pela Argentina, em 1917, tendo como palco o Theatro Sete de Abril em Pelotas, o primeiro construdo no
estado.
430
igualmente nesse lbum que a temtica da cidade fica mais evidente, segundo podese perceber nas letras de canes como Milonga das sete cidades: Milonga feita solta
no tempo/ Jamais milonga solta no espao/ Sete cidades frias so sua morada, canta Ramil,
traduzindo em cidades os sete elementos fundamentais que daro vida Esttica do Frio: Rigor,
Profundidade, Clareza, Conciso, Pureza, Leveza e Melancolia.
As sete propriedades fundadoras do conceito surgem para falar de sete cidades percorridas
7 Poeta gacho (1900-1980) cuja temtica da obra versava sobre o homem do campo.
8 Outro poeta gacho (1902-1972) de forte vis regionalista.
9 Escritor gacho (1865-1916), pelotense, autor, entre outros, de Contos gauchescos e Lendas do sul.
431
por Ramil durante a criao de suas composies, todas regidas pelo frio, e que serviram de
inspirao para a composio da msica, cada uma delas percebida de forma diferenciada,
com uma especificidade prpria. Desse modo, cada propriedade transforma-se em uma imagem
potica distinta de cada localidade. Conforme o terico do Imaginrio, Gaston Bachelard, a
imagem torna-se um ser novo da nossa linguagem, expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela
expressa noutras palavras, ela ao mesmo tempo um devir de expresso e um devir do nosso
ser. (BACHELARD, 2008:8).
Dessa forma, as sete cidades surgem como sete imagens relacionadas aos sete elementos
fundamentais que moldam a Esttica do Frio, criando, com tal caracterstica, cada uma, um
devir de uma expresso, de um ser que se cria atravs de sua representao.
432
a umidade, a chuva, a cidade, o intimismo, a neblina e sua fantasmagoria, conferindo a ela uma
qualidade irreal, como se no fizesse parte do mundo real e fosse apenas uma miragem visada
pelo narrador.
No fundo, isso tudo apenas o que meu olho inventa: Satolep. No tabuleiro rigoroso
dessas ruas e na arquitetura minuciosa desses prdios a vida contempornea explode
em sua diversidade. Quando a noite chega, mil outras vezes a exploso se espalha em
coisas que a cidade sonha. E a neblina desce e se instala. Esttica do frio. (RAMIL,
1992:270).
Tais trechos acabam por serem suprimidos da verso final, publicada em 2004, mas
demonstram a trajetria da formao do imaginrio do artista em suas letras e escritas, ao passo
que apontam a permanncia de imagens e temas que sero recorrentes em sua obra musical e
literria.
Na literatura, a novela Pequod (1995), primeiro livro de Vitor Ramil, traz Satolep como
palco e serve de inspirao para a histria contada quase que autobiograficamente, baseada em
algumas memrias de infncia do prprio autor. Nela, a cidade surge como um espao rico em
smbolos relacionados ao tempo e ao pai do narrador.
Um pouco como o relgio e o tempo, um pouco como Ahab, a cidade11 rigidamente
planejada dissolve-se na neblina, transformando-se numa cidade infinita. Luzes
indefinidas sinalizam as ruas retas que se cruzam at a margem de um rio silencioso
que se aproxima sem ser visto. (RAMIL, 1995:27).
433
Imbudo pelo desafio de aprender a ver, Selbor se estabelece na cidade em sua carreira
de fotgrafo. J em seu primeiro trabalho, conhece um rapaz que est prestes a deixar a casa
dos pais e, como ele prprio fez outrora, iniciar-se na arte do mundo. Selbor acompanha-o at
a estao e, ao embarcar, o jovem perde uma enigmtica pasta, cheia de folhas datilografadas
que, em sua primeira pgina, misteriosamente contm o nome do fotgrafo. Aos poucos, Selbor
descobre que os escritos contidos na pasta parecem descrever previamente cenas de fotos suas,
antes mesmo de elas acontecerem.
O inusitado acontecimento lana-o em uma enigmtica jornada em busca de sentido, e
o faz embarcar num misterioso abismo de imagens, perdendo-se em uma constante deambulao
por Satolep. Tudo na tentativa de capturar fragmentos que o ajudaro a compor a elucidao
desse estranho jogo em que ele se v envolvido, o de dar nascimento a um novo olhar e, enfim,
aprender a ver. Jornada que culminaria na ideia de uma exposio por ele denominada o grande
crculo.
Desponta novamente a figura do flneur que, segundo o filsofo Walter Benjamin, a
respeito da obra do poeta Baudelaire e sua relao com a cidade de Paris, seria aquele que v
a cidade sem disfarces (BENJAMIN, 2000:56). A cidade representaria seu templo, seu local
de culto (...) o verdadeiro lugar sagrado da flnerie (ROUANET, 1992:50), ou seja, a arte de
flanar, percorrendo os caminhos e sentidos da cidade. O flneur considerado o alegorista da
cidade, detentor de todas as significaes urbanas, do saber integral da cidade, do seu perto e do
seu longe, do seu presente e do seu passado. (ROUANET, 1992:50).
Ao perambular por suas ruas, como um estranho a tentar apreender a realidade do
entorno, Selbor torna-se o tpico flneur urbano a andar a esmo e captar recortes do mundo da
cidade. Os espaos interior e exterior fundem-se, um completa-se no outro, numa relao de
complementaridade. H um preenchimento a cada captura fotogrfica, como se tais imagens da
cidade trouxessem explicaes que vo ao encontro dos anseios existenciais de Selbor. Atravs
da mquina fotogrfica, ele olha o mundo e busca compreend-lo. Na rede de fotografias que
acaba por construir em torno de si, procura entender a prpria trajetria de vida. Lancei-me
na afluncia dessas ruas e nelas fiz meu aprendizado, conta um dos personagens ao fotgrafo,
como que ao indicar-lhe um caminho, a exemplo do seu. (RAMIL, 2008:51). Ao olhar o mundo
que o cerca, ele no apenas capta o que v, mas reflete sobre as imagens da cidade.
Satolep magia... eu olhava a rua... as pessoas l fora abriam caminho no resto de luz
avermelhada do fim de tarde. Embora seu ritmo fosse acelerado, eu as observava com
tanta avidez, que pareciam estar andando devagar. Eram em grande nmero, mas a
luminosidade resta espessa entre elas. Homens enrgicos, concisos, vtreos; mulheres
plsticas, ntidas, verticais. O frio os delineava. (RAMIL, 2008:26).
434
435
REFERNCIAS:
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capitalismo. Obras escolhidas III. So Paulo: Brasiliense, 2000.
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http://www.vitorramil.com.br/textos/delibab_pt.htm. Acesso em: 11 jan 2012.
ROUANET, Srgio Paulo. a cidade que habita os homens ou so eles que moram nela?.Revista
USP. Dossi Walter Benjamin. So Paulo, v.1, n. 15, set/out./nov. 1992. p. 49-75.
436
1. Introduo
O conto Branca de Neve um dos mais conhecidos da literatura mundial, foi
traduzido em mais de cento e setenta idiomas, possui diversas verses entre comdias, dramas,
romances, pardias. Tambm o encontramos representado no cinema em diversas realizaes
desde 1902.
O conto original Branca de Neve foi um dos contos compilados pelos irmos Jakob e
Wilhelm Grimm, alemes oriundos da cidade de Hanau, entre vrias outras histrias clssicas,
tais como Rapunzel, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, entre outras. A coletnea dos
Grimm foi publicada em 1812 e, apesar de seu destaque posterior, o sucesso dos contos no foi
imediato. Inicialmente, diversos leitores no apreciaram o excesso de detalhes cruis e de notas
de rodap presentes nos textos, dado ao rigor filolgico dos seus organizadores. Provavelmente
este foi um dos fatores impeditivos do sucesso imediato dos contos.
O conto Branca de Neve possui algumas verses contemporneas importantes para
cinema e televiso, dentre elas o filme Espelho, Espelho Meu, do diretor Tarsem Singh,
lanado em 2012, o seriado Once Upon a Time criado por Edward Kitsis e Adam Horowitz,
estreado no Brasil em 2012 no canal Sony. A trama do seriado se passa na cidade fictcia de
Storybrooke, em Maine, EUA, na qual a filha e o neto de Branca de Neve tentam quebrar
uma maldio poderosa que transportou os personagens dos contos de fadas para essa cidade.
Acrescente-se ainda a Branca de Neve e o Caador, dirigido por Rupert Sanders, em 2012.
A adaptao de Branca de Neve e o Caador, foco deste artigo, apresenta como
principais caractersticas a disputa de poder entre a Rainha Ravenna e Branca de Neve, a
vingana e a busca eterna pela beleza, aspectos bastante caractersticos do comportamento
na sociedade atual, reconhecida pelo individualismo, pela valorizao das aparncias e pelo
hiperconsumo, tal como afirmam Gilles Lipovetsky e Zygmunt Bauman.
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2. Conto de Fadas
Os contos so histrias, ou narrativas inventadas, transmitidas de gerao em gerao
e apresentam em seu contedo elementos que remetem s experincias de vida, que dizem
do modo como os seres humanos evoluem e se afirmam como comunidade, povo ou nao.
Segundo Italo Calvino,
... as fbulas so verdadeiras. So, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e
variada casustica de vivncias humanas, uma explicao geral da vida, nascida em
tempos remotos e alimentada pela lenta ruminao das conscincias camponesas at
nossos dias; so o catlogo do destino que pode caber a um homem e a uma mulher,
sobretudo pela parte da vida que justamente o perfazer de um destino: a juventude,
do nascimento que tantas vezes carrega consigo um auspcio ou uma condenao, ao
afastamento de casa, s provas para tornar-se adulto e depois maduro, para confirmarse como ser humano. (CALVINO, 1992, p.15).
Os contos eram destinados aos adultos, com o intuito de passar uma mensagem de ajuda,
ou superao. Darnton (1986) analisa a presena dos contos na sociedade camponesa no incio
da Frana moderna, assinalando a luta diria pela sobrevivncia que caracteriza esse perodo da
histria. Nessa sociedade graam a fome, a mortalidade e a pobreza, alm do grande nmero de
madrastas, rfos, sacrifcios e magias. Todo este conjunto de condies sociais, alm de todo o
misticismo medieval, influenciam os contos, pois estes sempre eram narrados e adaptados pelos
camponeses, de acordo com o contexto e a realidade em que viviam.
Grande parte dos contos narrados nesse perodo, conforme Darnton, aliavam-se
subnutrio, pois a busca por alimentos um tpico de importncia em vrios contos, nos
quais notamos a prioridade na alimentao de heris, realeza e homens, em detrimento de
camponeses mais pobres e mulheres. Exemplos explcitos disso so os conto Joo e Maria
Chapeuzinho Vermelho, e Cinderela, em que a comida ganha papel de destaque na trama
narrativa. Tambm o oferecimento da ma, em Branca de Neve, remete a esse apelo
438
alimentao.
Entretanto, isso nos mostra que os camponeses buscavam sobreviver e almejavam uma
nova ordem social, pois os poderosos da poca cobravam abusivamente altas taxas de impostos,
do pouco que os camponeses produziam. Por isso, endividavam-se cada vez mais, as dvidas
aumentavam, bem como o dio e inveja, e os conflitos de interesse perseguiam a sociedade.
Conforme esclarece Darnton (1986), a vida era precria e a luta pela sobrevivncia resumia-se
aos mais simples desejos, desde adquirir uma vestimenta, at possuir alimentos para fazer uma
refeio completa. Dessa forma, o povo da aldeia era infeliz e vivia em constante desarmonia,
de forma que muitos dos moradores migravam para floresta, na busca de ascenso social e,
consequentemente, uma vida melhor.
Darnton apresenta uma abordagem histrica desses contos, mostrando sua estreita
vinculao s condies sociais e culturais em que eram produzidos e veiculados. Desse modo,
os contos no eram destinados s crianas, nem sequer usados para preveni-las a respeito dos
perigos e da desobedincia aos pais, logo, no poderiam ser referidos a vinculaes pedaggicas
e psicolgicas, uma vez que tambm no existia o conceito de criana.
Isso implica que os contos foram transformados, pois a modernidade trouxe os cdigos
civis e o reconhecimento das crianas como sujeitos dotados de uma especificidade. Nesse
contexto, os contos de fadas comearam a ser vistos a partir de novos horizontes, principalmente
estudos com enfoques psicanaltico e pedaggico, passando a fazer parte do cotidiano das
crianas, como tambm do nosso. Alm disso, as narrativas tradicionais, a despeito de tratarem
de temas que atravessam o tempo, relacionados aos dilemas do crescimento, aos ritos de
passagem, s relaes familiares e aos conflitos psquicos, tambm se prestam a uma srie de
releituras, que incorporam elementos socias e culturais de cada poca. transformaram-se nos
modelos atuais de contos de fadas, tendo em vista um mundo especfico da criana com suas
particularidades.
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crianas, no eram destinados a esse pblico. Esses contos, tambm conhecidos como fantsticos,
no contexto da sociedade medieval europeia eram transmitidos por camponeses que aprenderam
a arte de narrar, contar histrias, ainda na infncia, antes mesmo da alfabetizao chegar ao
campo. Na maioria das vezes, os contos eram transmitidos em momentos de descontrao, em
reunies beira da lareira, em que mulheres e homens trabalhavam, elas fiando, eles em meio
s suas caixas de ferramentas. Os objetivos das histrias eram diversos, poderiam servir tanto
para divertir os adultos, quanto para assustar as crianas.
Como vimos, segundo Darnton (1986) esses contos mostravam a sociedade da poca, seu
modo de pensar e se posicionar perante as dificuldades enfrentadas pela populao camponesa.
Logo, a histria da Branca de Neve assemelha-se a de outras personagens, como Cinderela
e Bela Adormecida, e tantas outras, em que as jovens sofreram com abusos e maus tratos de
suas madrastas. Esses contos apresentam muitos aspectos sociais e culturais semelhantes, tais
como mortes precoces de familiares, misria, fome, abandono, inveja, raiva, dio, problemas
financeiros, impostos abusivos. Em meio a tantas dificuldades, encontramos tambm jovens
vivas, senhoras e senhores, com seus filhos para sustentar, rfos, madrastas, magias, rituais,
bruxas, magos, reis.
Branca de Neve e Cinderela, por exemplo, assemelham-se em questes relacionadas
morte, pois ambas perderam as mes e ficaram nas mos de madrastas cruis, travando uma
luta pela sobrevivncia em um mundo de emoes reprimidas, em que o dio e a inveja saltam
tona.
Em Branca de Neve a morte precoce de sua me acontece logo nos primeiros trechos
do conto, e todo o desenrolar da trama se d em virtude desse acontecimento. Seu pai, o Rei,
casa-se com uma bela mulher, essa, porm, orgulhosa e vaidosa, no admitia que nenhuma
mulher no mundo fosse mais formosa do que ela. Por isso, incansavelmente contempla sua bela
imagem, por horas, diante de seu fiel amigo, o espelho mgico, a quem sempre pergunta:
Dize a pura verdade, dize, espelho meu:
H no mundo mulher mais bela do que eu?
E num belo dia, o espelho respondeu:
Aqui neste quarto sois vs, com certeza,
Mas Branca de Neve possui mais beleza.
A partir desse momento, a rainha ento passa a odiar e invejar Branca de Neve com todo
rancor que poderia existir na face da Terra. Inicia, ento, o martrio da jovem ingnua e rf
Branca de Neve. A madrasta, possessa de dio e rancor, chama um caador e dize-lhe:
Leva a menina para a floresta, bem longe. No suporto mais v-la perto de mim.
440
Mata-a e, como prova de que cumpriste a minha ordem, traze-me o seu pulmo e o
seu fgado. (GRIMM, p.359).
Outro ponto que podemos considerar no conto da Branca de Neve diz respeito s
questes como a fome e o consequente canibalismo. Na verso do conto pelos Grimm, a rainha
ordena ao caador que leve a menina para floresta, mate-a e, como prova de que a ordem fora
executada, pede que o pulmo e o fgado da jovem garota sejam trazidos, para que possa comlos com sal. Esse episdio de canibalismo, que hoje pode nos chocar uma prtica considerada
perfeitamente aceitvel na sociedade da poca, tendo em vista a misria e, consequentemente,
o canibalismo servir como fonte alimentar.
O caador, apiedando-se da menina, que implorava a ele que no a matasse, observando-a
to bela e to jovem, a solta, dizendo para que fugisse e no retornasse mais. Esse fato remete
a outra caracterstica habitual da sociedade, pois era uma situao corriqueira, abandonar os
filhos e crianas pelas florestas para que as feras as devorassem, ou para tentarem a sorte longe
do caos, de intrigas, misrias e rancores, pois seus familiares no tinham como cuidar de si, e
um filho era um problema a mais.
Ainda com relao aos tpicos da sobrevivncia e da alimentao, cabe destacar que a
madrasta, na tentativa de tirar a vida de Branca de Neve, s obtm xito quando esta come uma
ma envenenada oferecida por uma velha senhora que nada mais era do que a prpria madrasta
disfarada. A ma, neste ponto, representa no apenas um alimento, to cobiado por todos,
tambm um alimento variado e fresco, considerado artigo de luxo.
Com relao ao perfil da madrasta, podemos tom-lo como um arqutipo, que se encaixa
no conceito de primeira mulher, cunhado por Lipovetsky (2000), como aquela depreciada,
diablica, mal vista por todos, por ser ftil. A madastra do conto, como sabemos, cultuava a
beleza e a vaidade como determinantes em sua vida, fato que no condiz com a sociedade da
poca, pobre e faminta. Portanto, existe aqui uma grande desigualdade e um grande contraste
social.
Em contrapartida, Branca de Neve, como figura arquetpica, poderia ser definida, de
acordo com Lipovetsky (2000), como a segunda mulher, por representar o smbolo de mulher
sensvel, amada e adorada, aquela reconhecvel como dona do lar, me e, ao mesmo tempo,
esposa e amante de seu prncipe, vivendo assim felizes para sempre, porm, sem autonomia e
determinao.
A seguir, trabalharemos a adaptao do conto dos irmos Grimm para uma verso
atualizada, buscando observar aspectos como vaidade e beleza, relacionados condio
feminina, na verso cinematogrfica de Branca de Neve e o Caador.
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nobre, mas herdou o direito ao trono, visto que sua sede de vingana da rainha no se d apenas
por ter perdido seu pai, mas tambm por estar em busca do que seu de direito, seu trono.
Adicionalmente, sua relao com o caador e o filho do Duque, que faz analogia ao prncipe,
de personalidade forte. Branca de Nev, portanto, no faz, nessa adaptao, um papel de
mulher frgil e que necessita de um provedor, ela faz sim o papel de uma mulher decidida e que
luta para atingir seus objetivos e no necessita do amparo afetivo de um homem.
Ainda em Branca de Neve e o caador, podemos destacar vrias outras relaes
em que Branca de Neve aparece com essa personalidade forte e determinada, como no
seu enfrentamento com a rainha, que, por conseguinte, tambm se mostra determinada e de
personalidade forte. Cabe destacar tambm o perfil de liderana de Branca de Neve em sua
relao com o duque, antigo amigo de seu pai, e com a populao que lhe d suporte, por ver
nela a evidente presena de uma lder, motivadora e idealizadora.
evidente, que o papel da Branca de Neve nas variadas verses do conto apresenta
mudanas de carcter social em relao mulher. Entretanto, em Branca de Neve e o caador
entendemos que esse papel desempenhado de forma a reforar o carter de independncia das
mulheres em nossa sociedade dos dias atuais.
444
Questes como essas esto evidentemente presentes em nossa sociedade atual, pois
o dinheiro e o poder norteiam muitas, seno grande parte das decises da sociedade em que
vivemos, pois a gratificao pessoal significa antes de mais nada a posse de bens e a possibilidade
de ganhar prestgio social, com ampla cobertura miditica. O poder do dinheiro parece sempre
ter movido os atos humanos, conforme vemos representado na verso do conto compilada pelos
Grimm, na cena em que o prncipe tenta comprar os anes, revelando seu desejo de que gostaria
de levar Branca de Neve consigo para o castelo: por favor, lhe dou muito ouro, mas desde que
deixem a lev-la comigo (GRIMM, p. 367).
As verses contemporneas de histrias clssicas como Branca de Neve podem
nos ajudar a compreender e avaliar melhor muitas aspectos da psique humana, potencializados
ou modificados na interao com diferentes condies sociais e culturais.
4. Consideraes Finais
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difundidos, prestam-se a contnuas releituras que, por sua vez, carregam os valores de cada
poca, os quais influenciam diretamente a forma como essas obras literrias so adaptadas para
o cinema, buscando uma aproximao maior com o pblico espectador.
Referncias Bibliogrficas
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446
SUNDERS, R. Branca de Neve e o Caador. (Snow White and the Huntsman, Rupert Sunders,
2012, EUA,Universal Pictures, 2h e 6 min.)
447
O conto um dos gneros que mais se destacam no quadro literrio da atualidade, uma
vez que apresenta rapidez, conciso e intensidade, caractersticas que marcam a sociedade atual.
O conto moderno considerado criao de Edgar Allan Poe(1809 - 1849), o primeiro a pensar
em caractersticas especficas do gnero. Outros grandes escritores seguiram o seu trao e, alm
de exmios contistas, tambm se tornaram referncia no estudo terico do conto ao abord-los
em ensaios. o caso de Julio Cortzar, Mempo Giardinelli e Ricardo Piglia. O intuito deste o
trabalho estabelecer reflexes iniciais sobre o gnero conto a partir das poticas delineadas
por essa trade argentina de escritores-tericos. Para isso, vamos explicitar as poticas de cada
um deles.
Em Valise de Cronpio , de Julio Cortzar, h trs ensaios que tratam do assunto. Cortzar
tambm se encaixa em nosso propsito; ao refletir sobre o conto, ele frequentemente o compara
ao romance, o que tambm devemos fazer a partir desse momento.
O primeiro texto de Valise de Cronpio que diz respeito ao conto pertence a um ensaio
maior, sobre Edgar Allan Poe. Poe considerado o pai do conto contemporneo por, em meados
do sculo 19, preconizar o conto como um gnero e propor (e colocar em prtica) como o ponto
inicial na criao a inteno do autor de obter certo efeito, inteno a partir da qual o escritor
conceber e combinar os fatos narrados para que se consiga o efeito desejado. Para Cortzar
(1993), a economia no ali somente uma questo de tema, mas tambm de forma, pois as
histrias devem ser escritas com a mxima economia de meios, para que o episdio narrado
possa coincidir com a sua expresso verbal.
Cortzar enfatiza que,
no conto vai ocorrer algo, e esse algo ser intenso. Todo rodeio desnecessrio sempre
que no seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente digresso por meio da qual o
contista nos agarra desde a primeira frase e nos predispe para recebermos em cheio
impacto do acontecimento. (CORTZAR, 1993, p. 124).
448
Segundo o escritor argentino, Poe foi o primeiro a compreender que, para o conto
afirmar-se como um gnero, era necessrio, sobretudo, rigor em sua composio. Ele notou
que os preceitos que regem um conto no podiam ser os mesmo dos de um romance e que um
conto no diferia do romance apenas pelo tamanho, mas sim pela intensidade. A partir desse
pressuposto, podemos dizer que
a eficcia de um conto depende da sua intensidade como acontecimento
puro, isto , que todo comentrio ao acontecimento em si (e que em forma
de descries preparatrias, dilogos marginais, consideraes a posteriori
alimentam o corpo de um romance e de um conto ruim) deve ser radicalmente
suprimido. (CORTZAR, 1993, p. 122).
Ricardo Piglia (1994) , em um ensaio curto, porm essencial nas discusses sobre o
gnero Teses sobre o conto, afirma que h sempre duas histrias no conto: uma visvel e
uma secreta, e a histria secreta a chave da forma do conto e de suas variantes.
449
O autor completa dizendo que um efeito de surpresa se produz quando a histria secreta
emerge ao final do conto e aparece na superfcie. No mesmo texto, Piglia (1994) assevera que
na modernidade abandonam-se o final surpreendente e a estrutura fechada. Alm disso, a tenso
entre a histria visvel e a secreta nunca se resolve, pois a histria secreta se conta de um modo
cada vez mais elusivo: O conto clssico la Poe contava uma histria anunciando que havia
outra; o conto moderno conta duas histrias como se fossem uma s. (PIGLIA, 1994, p. 80).
Para Cortzar (1993, p. 157) em Alguns aspectos do conto, a narrativa deve sequestrar
o leitor, o que s possvel por um estilo cheio de intensidade e tenso, um estilo nos quais
os elementos formais e expressivos se ajustem, sem a menor concesso, ndole do tema. O
autor ento esclarece: O que chamo de intensidade num conto consiste na eliminao de todas
as ideias ou situaes intermdias, de todos os recheios ou fases de transio que o romance
permite e mesmo exige. (CORTZAR, 1993, p. 157).
Neste mesmo ensaio, ele faz uma comparao famosa, na qual aproxima o conto a uma
fotografia, para diferenci-lo do romance, que se assemelharia ao cinema:
Um filme por princpio uma ordem aberta, romanesca, enquanto que uma fotografia
bem realizada pressupe uma justa limitao prvia, imposta em parte pelo reduzido
campo que a cmara abrange e pela forma com que o fotgrafo utiliza esteticamente
essa limitao. (1994, p. 146)
Porm, para ser possvel um livro que provoque no leitor as sensaes de estar lendo um
romance e ao mesmo tempo um livro de contos, deve-se utilizar em cada capitulo a construo
dramtica do conto, que tenha a unidade de impresso, que funcione independentemente do
conjunto. Ou seja, que seja significativo quando quebra seus prprios limites com essa exploso
de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito alm da pequena e s vezes
miservel histria que conta (CORTZAR, 1993, p. 153). Ao mesmo tempo, esse livro deve
450
Referncias
CORTZAR, Julio. Valise de cronpio. So Paulo: Perspectiva, 1993.
GIARDINELLI, Tempo. Assim se escreve um conto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
HEMINGWAY, Ernest. In our time. New York: Scribner, 1970.
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto In:O laboratrio do escritor. So Paulo: Iluminuras,
1994.
451
1 Consideraes iniciais
Desde o perodo em que cursava a graduao em Letras Portugus-Espanhol, sempre
tive a preocupao acerca da formao de professores de lnguas estrangeiras (LE). Por estudar
outras lnguas fora da graduao e conviver, na universidade, com professores em formao de
ingls e francs, percebi as diferenas que nos marcavam.
Surgiu a possibilidade de realizar o mestrado investigando as identidades de professores
de lngua espanhola, lngua francesa e lngua inglesa. As suas representaes identitrias como
profissionais da linguagem no so mais ou menos complexas s identidades de um engenheiro,
de um atendente de loja ou de uma me: quando o assunto em questo a identidade, todas as
pessoas, independente de quaisquer fatores, convivem com as fissuras, com a liquidez e com os
conflitos causados pelas mltiplas identidades que as constituem.
Ao realizar as coletas de dados, tive disposio as subjetivaes desses professores no
que se refere identidade e, consequentemente, lngua (que os constitui) e cultura. Ainda
que minha dissertao tivesse como objetivo estudar as identidades, os discursos produzidos
pelos professores deixaram pistas bastante significativas em relao aos aspectos culturais das
LEs que estudam (estudaram), o que me motivou a escrever este projeto. Assim, no projeto
de tese que apresento, proponho-me a estudar sobre as relaes que os professores de LEs
estabelecem com as culturas i/materiais de suas LEs, que embora muitas vezes sustentem suas
prxis discursivas, mostram-se silenciadas nos discursos dos professores ao dialogarem sobre
cultura.
2 Justificativa
Ao longo da anlise e interpretao de dados da minha dissertao de mestrado, pude
verificar que os professores de lnguas estrangeiras (LE), sujeitos da pesquisa, no se sentiam
biculturais (ou multiculturais) por no dominarem termo utilizado por eles a cultura de suas
452
LEs. Pude observar que a noo de cultura dos sujeitos estava vinculada somente cultura visvel,
material (artes, geografia, arquitetura, culinria etc.). Embora os mesmos dados analisados e
interpretados apontem que esses professores internalizaram e agregaram as culturas das lnguas
estrangeiras, intrnsecas s LEs, eles no tm a conscincia da cultura i/material que existe pelas
e nas prticas discursivas.
Os professores de LEs so os mediadores entre as LEs que ensinam e seus alunos. Seu
ensino talvez mais do que qualquer disciplina capaz de fornecer um material que facilite
ao educando o entendimento de si, como um ser social e histrico, porque atravs do estudo
de LE o aluno capaz de olhar para si mesmo com um distanciamento crtico, provocado pelo
contato com a lngua e cultura estrangeiras (MOITA LOPES, 1996). O ensino de LEs no pode
ser resumido ao conhecimento de outras lnguas, como um simples conjunto de novos sons,
novas estruturas gramaticais e etiquetas colocadas em palavras j conhecidas. A aquisio de
LEs requer que os professores medeiem o acesso de seus alunos ao universo complexo das LEs
que, inevitavelmente, prescinde novos olhares sobre sentimentos, objetos e aes impossveis
de serem alcanados sem o entendimento da cultura do outro.
Ao questionar qualquer pessoa sobre qual significado ela d cultura, provavelmente ela
responder que cultura arte, cinema, msica, culinria etc. No discordo desse conceito
de cultura, mas esse conceito refere-se apenas cultura palpvel, concreta e que pode ser vista,
ouvida e sentida pelo paladar.
Entretanto, a aquisio de uma lngua estrangeira exige de alunos e professores muito
mais do que o conhecimento das culturas materiais, porque aprender uma nova lngua implica
apreender novas culturas que esto entrelaadas prpria lngua, que no so visveis, tampouco
palpveis e esto arraigadas a ela.
Essa cultura invisvel facilmente percebida quando tentamos traduzir palavras da lngua
materna (LM) para a lngua estrangeira e no encontramos um correspondente que d conta do
significado que atribumos a elas. O exemplo que vejo ser mais citado na lngua portuguesa,
falada no Brasil, a palavra saudade. Ainda que consigamos traduzi-la, parece que nenhuma
traduo corresponde ao sentimento e significao que ns, brasileiros, conferimos a essa
palavra. Da mesma forma, quando pertencemos e nos sentimos pertencentes lngua estrangeira
e sua cultura, h termos cujos significados no correspondem a nenhuma palavra da LM. O
professor de francs, sujeito da minha dissertao de mestrado, citou a palavra chagrin como
um exemplo de palavra intraduzvel para o portugus. Ele a utiliza, conhece seu significado,
mas diz que no h qualquer termo da lngua portuguesa que expresse o significado apreendido
por ele para chagrin, na lngua francesa.
Verifiquei, na dissertao de mestrado, que os professores de LEs apreenderam as
culturas invisveis das lnguas que falam, mas ignoram sua existncia ao dizerem que no so
453
biculturais. Ademais, ao serem questionados sobre cultura em todos os dados fornecidos por
eles, discorreram somente sobre as culturas materiais.
Neste sentido, faz-se necessrio desenvolver um estudo que analise e interprete as
relaes de professores de LEs com as culturas material e imaterial das lnguas que falam,
tendo em vista as relaes intrnsecas entre lngua, cultura e identidade, sobretudo quando se
pode relacionar a culturalidade problemtica das identidades, j que a aceitao de que se
bicultural e que se pertence a comunidades de LEs pode implicar em conflitos identitrios e
receios em relao perda de uma identidade (ilusria) nacional.
3 Objetivos
O objetivo geral da pesquisa analisar as relaes de professores de LEs com as culturas
das lnguas que falam. O objetivo geral da pesquisa desdobrado em objetivos especficos
com a finalidade de atingi-lo. Para isso, pretendo verificar as noes de cultura dos sujeitos da
pesquisa, conhecer as suas representaes culturais como brasileiros, conhecer as representaes
que fazem sobre as culturas dos pases das LEs que ensinam, averiguar como os professores
se filiam ao hibridismo cultural e estudar os possveis conflitos identitrios emergentes das
culturas pelas quais transitam.
4 Pressupostos tericos
Apresento neste captulo algumas pesquisas realizadas na rea de Lingustica Aplicada
(LA) sobre a cultura e o ensino de LEs. No segundo momento, discuto alguns conceitos
essenciais para a pesquisa, provenientes do campo dos Estudos Culturais e, tambm, as teorias da
linguagem, que fundamentaro a anlise e a interpretao dos dados, do Crculo de Bakhtin.
4.1 Pesquisas em LA
Nesta seo trago pesquisas que tratam de assuntos relativos cultura de LEs, de forma
a estabelecer um dilogo com o projeto de pesquisa que proponho.
Assis (2008) relata a experincia de um trabalho com o tema cultura nas aulas de
espanhol como lngua estrangeira, inserido num projeto interdisciplinar sobre a ditadura
imposta pelos meios de comunicao em relao ao consumo. Assis realizou o projeto em
uma escola da rede privada de ensino, de Juiz de Fora MG, utilizando textos publicitrios do
mundo hispnico, ao mesmo tempo em que os professores de lngua portuguesa utilizavam
454
455
Outro autor que contribui para o entendimento do termo cultura Pino (2005). Ele
escreve um livro sobre as origens da constituio cultural das crianas, a partir das perspectivas
de Vigotsky, e dedica um captulo para falar de cultura, discorrendo sobre o termo a partir de
vrias reas do conhecimento. Interessa-me, no projeto, apresentar sua viso de cultura dentro
da perspectiva sociolgica, sobre a qual fala que a cultura faz parte do modo de ser, de agir e
1 Pretendo discorrer sobre a origem e as mudanas sofridas pela palavra cultura na tese. Por questes de limites
de pginas, no o farei neste artigo.
456
de expressar-se dos indivduos e dos grupos humanos e que o que a caracteriza a significao
que os significados sociais, os valores e as normas tm para eles (PINO, 2005, p. 78). O autor
tambm traz o conceito de cultura a partir dos estudos antropolgicos, parafraseando Clifford
Geertz:
[...] Geertz deixa claro que a cultura , para ele, um conjunto de mecanismos
simblicos para controle do comportamento ou sistemas de significados criados
historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direo s
nossas vidas. Razo porque a cultura fornece o vnculo entre o que os homens so
intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, um por um.
(PINO, 2005, p. 86)
Ademais, ao discorrer sobre a cultura em Vigotski, Pino diz que a cultura produzida
pela vida social e pela atividade social do homem e, concluindo o captulo de seu livro sobre
cultura, diz que:
[...] podemos afirmar que todas as produes humanas, ou seja, aquelas que renem
as caractersticas que lhes conferem o sentido do humano, so produes culturais e
se caracterizam por serem constitudas por dois componentes: um material e outro
simblico, um dado pela natureza e outro agregado pelo homem. (PINO, 2005, p.
91)
Os elementos culturais agregados pelo homem esto conectados sua prtica discursiva.
Agrego, ainda, discusso sobre cultura, as ideias de Thompson (2009). Primeiro, ele fala da
cultura descritiva da qual fazem parte aos valores, convenes e hbitos de uma determinada
sociedade ou de um determinado perodo histrico, enquanto a concepo simblica de cultura
refere-se aos fenmenos culturais (simblicos) e o estudo da cultura como a interpretao dos
smbolos. Thompson tambm fala da concepo de cultura simblica: [...] cultura o padro
de significados incorporados nas formas simblicas, que inclui aes, manifestaes verbais e
objetos significativos de vrios tipos, em virtude dos quais os indivduos comunicam-se entre si
e partilham suas experincias, concepes e crenas (THOMPSON, 2009, p. 176).
A descrio simblica, descrita por Thompson (2009), o meio pelo qual se podem
desvelar as culturas dos professores de lnguas estrangeiras, sujeitos da pesquisa, atravs
da linguagem (smbolos). Assim, renegociando e revogando as culturas, os professores
ressignificam a prpria maneira de refletir e refratar o mundo, j que as experincias que vivem
com diferentes culturas e lnguas fazem com que eles construam novos significados para o
mundo que habitam. E como cada experincia nica e irrepetvel, natural que cada professor
de LE reflita e refrate o mundo de maneiras distintas.
457
O dilogo constitudo por relaes dialgicas que so compostas por posies avaliativas
dos diferentes indivduos. Essas posies assumidas pelos sujeitos esto em constante processo
de renovao. Assim, os fios dialgicos que compem o discurso dos indivduos s podem ser
entendidos a partir das diferentes vozes sociais advindas dos enunciados de diferentes sujeitos,
com diferentes valores axiolgicos. Nas relaes dialgicas se observam os dizeres anteriores
(j-ditos) e a antecipao de futuros dizeres, permitindo observar inter-relaes de sentido
diversas (DI FANTI, 2009, p. 202). Interessam as relaes complexas que se estabelecem
por meio dos enunciados do locutor e do interlocutor e a forma como eles ressignificam o j
dito.
Finalizando esta breve reviso da literatura que ser utilizada na tese, fundamental dizer
que as culturas, assim como as identidades, constituem os professores atravs da linguagem. Ao
propor-me a investigar a inconscincia dos professores de LEs em relao s culturas invisveis,
que esto enraizadas nas LEs que enunciam e no so percebidas concretamente, pretendo,
tambm, investigar as possveis causas do desconhecimento da existncia dessas culturas que
esto intrnsecas aos enunciados. Acredito que uma das provveis causas est ligada s questes
de identidade, porque ao constituir-se como um ser bi ou multicultural, acentuam-se os conflitos
identitrios e, talvez, seja demasiado desestabilizador para os professores de LEs sentirem-se
no pertencentes a uma nica comunidade (lembro que as questes de identidade e pertena
fazem parte do imaginrio que o ser humano constri para que se sinta menos instvel no
mundo cheio de fissuras e fragmentos no qual vivemos): a comunidade nacional, a mater.
458
5 Metodologia
Ao projetar um estudo cuja fundamentao terica est respaldada na literatura advinda
da Lingustica Aplicada, dos Estudos Culturais e das ideias propostas pelo Crculo de Bakhtin
necessrio analisar, enfatizar e compreender os processos de significao dos sujeitos estudados.
Desta forma, esta investigao fundamenta-se em pressupostos de pesquisa qualitativa.
Ser realizado um estudo com um grupo de seis a dez professores de LEs. Os critrios
para a seleo dos professores participantes da pesquisa so: (1) que no sejam professores de
Ensino Superior e (2) que no estejam cursando (ou no tenham cursado) uma ps-graduao.
A partir da seleo dos professores, pretendo realizar a primeira coleta de dados, que
consistir na escritura de textos, sob o ttulo Cultura. A escrita de textos com um ttulo aberto
permitir aos professores escreverem livremente sobre o assunto. Aps a realizao da coleta,
os textos produzidos pelos professores sero analisados e interpretados luz das ideias do
Crculo de Bakhtin e de todo o referencial terico que sustenta esta pesquisa.
Esse primeiro momento, em que os textos sero estudados, ser fundamental para a
elaborao de uma entrevista dirigida, respeitando a literatura utilizada no estudo, que culminar
na segunda coleta de dados. O uso da entrevista como forma de obter dados, propiciar um novo
contexto de enunciao, j que haver um dilogo, diferentemente dos textos escritos de forma
solitria, sem qualquer interveno da pesquisadora. As entrevistas sero individuais, gravadas
em udio e vdeo. Em relao ao uso de entrevistas como forma de obter dados, Gaskell diz que
a entrevista qualitativa pode desempenhar um papel vital na combinao com outros mtodos
(2002, p. 65), neste caso, a unio entre os dados dos textos e das entrevistas dirigidas pode
fornecer um material rico para a elaborao da tese.
Aps a realizao das entrevistas que constituiro a segunda coleta , sero transcritos
todos os udios obtidos, para que se possa realizar a anlise e interpretao dos dados, legitimados
pela concepo de linguagem bakhtiniana, e, posteriormente, ser realizada a escrita da tese.
REFERNCIAS
ASSIS, J. F. de. A cultura na aula de espanhol como lngua estrangeira: relato de experincia.
Educao em destaque. Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 102-113, 2. sem. 2008.
DI FANTI, M. da G. Dilogo. In: FLORES, V. do N.; BARBISAN, L. B.; FINATTO; M. J. B.;
TEIXEIRA, M. (Org.). Dicionrio de lingustica da enunciao. So Paulo: Contexto, 2009. p. 81.
459
______ . Relaes dialgicas. In: FLORES, V. do N.; BARBISAN, L. B.; FINATTO; M. J. B.;
TEIXEIRA, M. (Org.). Dicionrio de lingustica da enunciao. So Paulo: Contexto, 2009.
p. 202.
FONTANINI, I. et AL. Aquisio de lngua estrangeira: s possvel dissociada de sua cultura?
Acta Scientiarum: human and social sciences. Maring, v. 25, n. 1, p. 119-122, 2003.
GASKELL, G. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M. W; GASKELL, G. (Ed.).
Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prtico. Trad. Pedrinho A.
Guareschi. Petrpolis: Editora Vozes, 2002. p. 64-89.
MOITA LOPES, L. P. da. Oficina de lingustica aplicada: a natureza social e educacional dos
processos de ensino/aprendizagem de lnguas. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
PINO, A. As marcas do humano: s origens da constituio cultural da criana na perspectiva
de Lev S. Vigotski. So Paulo: Cortez, 2005.
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crtica na era dos meios
de comunicao de massa. Traduo do Grupo de Estudos sobre Ideologia, Comunicao e
Representaes Sociais da ps-graduao da PUCRS. 8. Ed. Petrpolis: Vozes, 2009.
WILLIAMS, R. Palavras-chave: um vocabulrio de cultura e sociedade. Trad. De Sandra
Guardini Vasconcelos. So Paulo: Boitempo, 2007.
460
INTRODUO
Luandino Vieira, escritor angolano dedicado a expor as mazelas dos musseques (favelas)
durante a guerra pela descolonizao, em sua trilogia De rios velhos e guerrilheiros deslocase das periferias e volta seu olhar para as matas e os rios. O narrador dessa trilogia, da qual
foram lanados apenas dois livros, Diamantino Kinhoka Kene Vua que traz ao presente
da enunciao, por meio de memrias fragmentadas, a luta pela libertao de Angola e atravs
dessas lembranas analisar as marcas deixadas pela guerra.
Para o desenvolvimento deste artigo propomos analisar como se d a recriao do
passado de guerras angolanas cuja nfase reavaliar o colonialismo, discutindo passado e
presente angolanos, por meio de memrias fragmentadas. Nessa discusso utilizaremos De
rios velhos e guerrilheiros II: O livro dos guerrilheiros (2009) 1, em cuja obra o escritor Jos
Luandino Vieira traz para discusso questes referente guerra angolana pela descolonizao
portuguesa atravs do olhar dos guerrilheiros.
Sabemos que diversos autores africanos, entre eles Pepetela com o romance Mayombe
tambm abordam essa temtica em suas obras. No entanto, Luandino o faz com um grande
distanciamento do acontecimento histrico (em torno de 30 anos), tendo, assim, condies de
reflexo acerca dos propsitos dessa guerra, ou seja, fazendo uma reviso crtica do passado
histrico de guerrilhas com uma perspectiva no presente, amparado nas memrias de cinco
guerrilheiros. Em nossa reflexo no trabalharemos com todas as narrativas, apenas as que
apresentam paratextos2 notas de rodap assinadas como N. do A. (notas do autor) que
1 Segundo livro da trilogia, o primeiro : De rios velhos e guerrilheiros I: o livro dos rios.
2 Celestino Sebastio (Kakinda), de Tenda Rialozo; Kibiaka, a quem chamavam o Parabelo; e, Zapata,
melhor dizendo: Ferrujado e Kadisu.
461
462
Essa breve introduo evoca mais um tpico a ser explorado, pois percebemos a
3 De rios velhos e guerrilheiros I: o livro dos rios.
4 Luandino Vieira prope que este livro seja lido devagar, porque exige um grande esforo de interpretao (nota
publicada por Andrea Sanches no Novo Jornal, 2009).
5 Essa introduo escrita apenas com letras maisculas.
6 Doravante as citaes sero indicadas apenas pelo nmero de pgina, a indicao da obra/edio encontra-se
nas referncias bibliogrficas.
463
interligao entre a individualidade (EU) tanto do narrador Kene Vua, quanto dos guerrilheiros
que tem suas histrias contadas por meio da memria do mesmo e a coletividade da qual o
narrador faz parte (OS GUERRILHEIROS). Alm disso, encontramos o elo que h entre as
histrias desses guerrilheiros: a misso realizada no Kalongololo em 1971. Ainda nessas poucas
linhas de introduo, podemos notar a presena da oralidade como matria para a memria (que
ser repassada aos mais novos, que as recebero com alegria e relembradas pelos mais velhos
que sentiro tristeza nesse processo de rememorao), visto que so referidas suas fontes:
notcias, mujimbos (boatos) e lembranas.
No captulo que sucede EU, OS GUERRILHEIROS, temos a apresentao do
narrador, Diamantino Kinhoka, por meio de um captulo sem ttulo. No mesmo, o narrador
apresenta sua legitimidade para narrar a experincia histrica coletiva, atuando como portavoz, j que tem a autorizao que sempre a amizade e a camaradagem aceitam, sendo quissoco
(irmandade) nosso o da luta de libertao (p. 11). No entanto, apesar de ter a autorizao
para isso, o narrador reconhece a dificuldade de faz-lo, pois
nunca lhes poderia direitamente contar. Porque, se dou gabo, sempre tem quem vai
duvidar que foi mais que poderia ser; se dou maldizer, sendo eu prprio ex-guerrilheiro,
que so invejias a verdade de suas vidas sempre no possvel de escrever, ainda que
desejada [...] Da que a verdade de suas vidas sempre no possvel de escrever, ainda
que, desejada, mas, menos ainda desejada se possvel. (p.12).
Ainda quanto memria, o narrador Diamantino afirma que dos livros da memria e
tradio no nosso povo que aquele com quem tens de comer as folhas do macunde na tribulao,
tem de ser aquele que repartes com ele o feijo na abundncia (p. 12) e ainda A gente fizemos a
revoluo, nossas memrias tm o sangue do tempo (p. 12). Percebemos em tais trechos o tom
memorialstico, por meio do qual Kene Vua, reconstruir as valerosas vidas dos guerrilheiros
e com isso, sua prpria histria.
Diante dessas passagens do texto literrio, trazemos para discusso a obra Memria
e Identidade (2011), do antroplogo francs Jol Candau. Nessa obra, Candau traz-nos duas
questes que esto a todo o momento sendo discutidas, principalmente, nas cincias humanas e
sociais, fazendo, assim, um panorama de reflexes de distintas reas do conhecimento incluindo
em suas discusses autores como Pierre Nora, Paul Ricoeur, Stuart Hall, Jacques Le Goff,
Maurice Halbwachs, entre inmeros outros, porm A Memria Coletiva, de Halbwachs, e Os
Lugares de Memria, de Nora ocupam a centralidade do texto. Ao trazer a tona discusses
acerca de memria e identidade, Candau alerta que impossvel indissociarmos esses dois
termos, pois um sujeito sem memria no pode construir sua identidade, do mesmo modo que
sua memria decorre de questes ligadas construo da identidade. Essa proposta de relao
464
entre memria e identidade no inovadora, j que Jacques Le Goff (1990) j havia afirmado
que a memria um elemento essencial do que costuma chamar identidade, individual ou
coletiva, cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje,
na febre e na angstia. (LE GOFF, 1990, p. 476)
Interessa-nos, sobretudo, a formulao de Candau acerca da problemtica entre as
memrias individuais e coletivas tambm da quase impossibilidade de compartilhamento de
memrias, visto que cada ser constri sua prpria memria. Portanto, diante de um acontecimento
histrico, por exemplo, a guerrilha, cada ser construir sua memria. Essa impossibilidade
de memria coletiva trazida pelo narrador Kene Vua, ao afirmar que no tem condies de
narrar a experincia histrica dessa coletividade, mesmo tendo legitimidade para isso, por ter
participado na guerra pela descolonizao em Angola Da que a verdade de suas vidas sempre
no possvel de escrever, ainda que, desejada, mas, menos ainda desejada se possvel. (p. 12)
Como forma de discutir essa impossibilidade, Candau decompe a memria em trs nveis:
- protomemria: a incorporao da memria social, por meio de, por exemplo, gestos
e linguagem que so realizados quase automaticamente quase sem tomada de conscincia
(CANDAU, 2011, p. 23);
- memria de evocao: a memria propriamente dita evocao deliberada ou invocao
involuntria de lembranas autobiogrficas ou pertencentes a uma memria enciclopdica
(CANDAU, 2011, p. 23).
- metamemria: a representao que cada sujeito faz de sua prpria memria, seu
conhecimento e discurso sobre ela tambm a construo explcita da identidade (CANDAU,
2011, p.23).
Diante dessa taxonomia da memria, Candau afirma que tais terminologias so
aplicadas apenas individualidade, visto que quando passados ao social, as significaes desses
termos mudam ou invalidam-se. Por exemplo, a protomemria ativada ao caminharmos com
certas gestualidades, sem nos darmos conta, porm impossvel dizer que uma sociedade
inteira caminhe igualmente, ou que todos tenham a mesma memria de evocao, ou seja,
lembranas autobiogrficas idnticas. A nica memria passvel de compartilhamento a
metamemria, porque durante a produo de discursos acerca de um acontecimento histrico,
em nosso caso de estudo a guerrilha, h uma tentativa de narrativa comum que geralmente
acompanham a valorizao de uma identidade local. (CANDAU, 2011, p. 25) Acreditamos
que na narrativa ora estudada de Luandino no h essa valorizao da identidade local, mas
sim um modo de trazer novamente discusso questes referentes construo da identidade
angolana, problematizando os rumos da guerrilha nos dias de hoje.
Para tratar acerca dessa probabilidade de memria coletiva, que um modo de
representao da metamemria, um enunciado que membros de um grupo vo produzir a
465
respeito de uma memria supostamente comum a todos os membros desse grupo (CANDAU,
2011, p. 24) no podendo ser tratado como uma faculdade do ser humano, j que um grupo no
tem suas lembranas de acordo com uma conveno social, apenas uma parte capaz disso,
Candau prope que nos utilizemos das retricas holistas, termo entendido pelo autor como
o emprego de termos, expresses, figuras que visam designar conjuntos supostamente
estveis, durveis e homogneos, conjuntos que so conceituados como outra coisa
que a simples soma das partes e tidos como agregador de elementos considerados, por
natureza ou conveno, como isomorfos. Designamos assim um reagrupamento de
indivduos (a comunidade, a sociedade, o povo), bem como representaes, crenas,
recordaes (ideologia X ou Y, a religio popular, a conscincia ou a memria coletiva)
ou ainda elementos imaginrios (identidade tnica, identidade cultural). (CANDAU,
2011, p. 29)
466
a memria.
467
Com essa nota percebemos que Luandino expe a tnue fronteira entre literatura e
histria, porque se refere ao seu personagem como um ser real, bem como ser real a entrevista
concedida por Kakinda ao mulato oxigenado de sotaque portugus (p. 13). Quanto s relaes
entre literatura e histria nos pases africanos, podemos perceber que h de modo acentuado
tal relao, j que a prtica histrica foi intensamente articulada pelos escritores7 atravs da
fico. Ou seja, os projetos literrios de escritores de Angola, por exemplo, indicam no s uma
recriao das realidades, mas a construo de sua prpria Histria. Assim, tal como fico e
Histria se confundem em Angola, pois o texto literrio est inevitavelmente ligado ao contexto
social, a obra de Luandino apresenta essa questo expressa tanto literariamente, quanto por
meio de notas editorias que no so parte integrante do texto literrio, mesmo que elucidativas
do mesmo.
Esse problema expresso ainda mais na segunda nota de rodap, presente na narrativa de
Kibiaka o assobiador de passarinho (p. 43), nessa nota o autor afirma ser Kibiaka personagem
de outro romance seu Ns, os do Makulusu
Quando ouvi pelo ex-guerrilheiro Kene Vua o meu amigo Diamantininho Kinhoka,
o Kapapa esta biografia, apressei-me a ler-lhe, do meu livro Ns, os do Makulusu
umas passagens referentes a uma personagem. Chamava-se Kibiaka. Tinha me
surgido, em sonhos, no Tarrafal de Santiago, Cabo Verde, naquela semana do ano de
1967 em que todas as noites me apareciam os factos ou as palavras que davam origem,
no dia seguinte, escrita [...] Contei tudo isto ao Kapapa. Ele me olhou, assanhado,
com a minha dvida e ripostou sem pestanejar: <<E qual , branco?!...O quilulo do
av dele tavisou nos sonhos. Te confiou entanto que escritor...>> - e acabou de beber
sua cervejinha, sem nunca mais. Sempre achei questo de preguia mental aceitar
coincidncia ou interveno sobrenatural para explicar factos reais. Para tudo tem que
ter uma explicao cabal, mesmo que ningum a saiba. s questo de pacincia e
tempo. Pacincia, vou tendo; tempo que a cada dia que passa, fica mais curto. Terei
de aceitar a coincidncia? (p. 53).
468
8 Em 2004, Rui Filomeno de S foi indicado pelo MPLA para integrar uma comisso (coordenada por Afonso
Van-Dnem Mbinda) cuja misso era de escrever a histria do MPLA.
9 No fim dos anos 40 Agostinho Neto e Antnio Jacinto, entre outros, com o movimento Vamos descobrir
Angola visavam, por meio da literatura, instigar no povo a busca pelo desvencilhamento da poltica e cultura
impostas pelos colonizadores portugueses.
469
Quando, s vezes, ponho diante de meus olhos aos grandes errores e tribulaes, aos
muitos sofrimentos que por ns passaram e vejo a figura de tantas vidas, e no menos
mortes, no livro da nossa luta, pergunto saber: vivem, nossos mortos, se vivos os vejo
em meus sonhos? (p. 97)
470
CONSIDERAES FINAIS
Esse trabalho procurou discutir como ocorre a ressignificao da histria, atravs da
memria, na fico de Luandino Vieira. O mesmo utiliza diferentes estratgias intertextuais e
paratextuais para evocar tais questes. Quanto a isso, Rita Chaves afirma que O retomar do
passado, dentro de modelos variados e com intenes diferentes, com efeito, converte-se numa
prtica recorrente na prosa de fico contempornea (CHAVES, 2004, p. 160).
Diante disso, podemos afirmar que Luandino enquadra-se no que se refere Chaves, j
que tanto a forma quanto as intenes so distintas, pois a retomada do passado em De rios
velhos e guerrilheiros II: o livro dos guerrilheiros no se d como forma de denncia dos
problemas enfrentados pelo MPLA, como em Mayombe, de Pepetela, mas evoca esse passado
como modo de depurao, refletindo os rumos tomados pela revoluo nos quais a revoluo
no trouxe a to sonhada igualdade No se trata de um regresso ao tempo que precedeu
ciso para recuperar in totun os signos daquela ordem cultural, mas sim de resgatar alguns dos
referentes que se podem integrar aos tempos que se seguem (CHAVES, 2004, p. 161).
Assim, Luandino est refletindo a realidade que o cerca, em uma atualidade poltica
e histrica incertas evocando o passado como um modo de pensarmos nos rumos que sero
tomados futuramente em Angola, para que no se cometam os mesmos errores, para que
todas as pulgas possam ser retiradas da pele dessa ona chamada Angola, alertando as geraes
futuras, pois como dito pelo prprio Luandino em entrevista no se pode construir o futuro
como tanto tinham sonhado nas longas noites da guerrilha mas tem de se continuar a lutar
no presente para que o nosso futuro no seja mais construdo pelos outros (VIEIRA apud
RIBEIRO, 2012, p. 165). Desse modo, o autor nos demonstra que no por ter terminado
a revoluo que a resistncia deva terminar, pelo contrrio ela deve continuar sendo diria,
para que os rumos da nao sejam tomados consoantes populao, no de modo arbitrrio,
construdos por outras pessoas.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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2011.
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CHAVES, Rita. O passado presente na literatura africana. In: Revista Via Atlntica. So Paulo,
n 7, p. 147-161, out. 2004.
471
472
473
documental de cada item dever conter seu descritivo, alm disso, tambm deve ser efetuada a
restaurao, do que se configurar necessrio, um estudo histrico e artstico e o armazenamento
adequado de cada artigo.
O Instituto Bruno Segalla foi criado em 2005 e uma OSCIP (Organizao Civil de
Interesse Pblico) sem fins lucrativos e aberta ao pblico, que preserva, estuda comunica e
expe bens culturais relacionados vida e a obra de Bruno Segalla. Localizado no antigo estdio
e oficina do artista, na Rua Andrade Neves, 603, Caxias do Sul RS, o IBS constitudo por
um Museu e um Atelier e trabalha na promoo da cultura, defesa e conservao do patrimnio
histrico, artstico e cultural, bem como da educao, formao e incluso por meio das aes
culturais, projetos socioculturais e salvaguarda do acervo. O Instituto um museu cadastrado no
SBM (Sistema Brasileiro de Museus/Ibram/Minc) e no SEM-RS (Sistema Estadual de Museus
do Rio Grande do Sul).
O IBS est sempre disposto a receber itens novos para o seu acerco. Amigos do artista
ainda possuem peas, documentos e informaes relevantes sobre a histria e a obra de Segalla.
No ltimo ano foram recebidas as doaes de 19 medalhas da coleo do Sr. Raul Tessari, alm
de 180 medalhas que estavam guardadas pela famlia na empresa de Bruno Segalla Filho e de
um pantgrafo (mquina utilizada para fazer transferir e redimensionar figuras, que pode ser
regulada de modo a executar tambm ampliaes e redues nas propores desejadas) que foi
utilizado pelo artista na ampliao e confeo de moedas e medalhas.
O artista caxiense Bruno Segalla1 nasceu no ano de 1922, filho de Antnio Segalla e
Maria Panarotto. Em 1933 Maria se separa de Antnio, acredita-se que seja o primeiro disquite
anunciado na cidade de Caxias do Sul, com isso dirigi-se Porto Alegre onde estuda para ser
parteira e assim educa seus quatros filhos sozinha. Em 1935, aos 13 anos, Segalla comea
a trabalhar no setor de gravaes da Metalrgica Eberle S/A, onde desenhava, modelava e
cunhava, chamando a ateno de seus colegas de trabalho por sua habilidade. durante os
primeiros anos como metalrgico que adquire conhecimentos tcnicos em contatos com moldes
de talheres e de medalhas religiosas.
Em 1948 casa-se com Almira da Silva, com quem teve cinco filhos e dois anos aps
assume a modelagem e a gravao de todos os modelos de medalhas que a empresa Eberle
fabricava. E aos 28 anos que produz um de seus trabalhos mais interessantes: auxialdo por lentes
de aumento e uma ferrmenta contendo um pequeno pedao diamantado na ponta, grava a efgie
de Getlio Vargas na cabea de um alfinete, com o propsito de, segundo o mesmo: realizar
1 As informaes sobre a vida de Bruno Segalla fornecidas nesta justificativa esto brevemente documentadas em
arquivos produzidos pelos funcionrios IBS desde 2005 para auxiliar os trabalhos do local, sem fins de publicao.
So relatos e datas (as quais percebo algumas divergncias entre as mesmas) fornecidas pela famlia e observaes
retiradas de jornais e entrevistas com o artista. No h uma biografia destinada ao pblico em geral, acredito que
este projeto de tese poder contribuir para uma produo biogrfica a ser publicada.
474
uma gravura o menor possvel. A partir dessa gravao se torna conhecido regionalmente, pois
o alfinete exposto na Festa Nacional da Uva de 1950 e tambm na cidade de Porto Alegre.
No mesmo ano cria a medalha em comemorao aos 75 anos da Imigrao Italiana no Rio
Grande do Sul e cria sua primeira medalha para da Festa da Uva. Segalla futuramente ir criar
as medalhas alusivas a outras edies da Festa Nacional da Uva.
Ao mesmo tempo em que se dedica a profisso, Segalla est envolvido com as posies
polticas esquerdstas. Em 1952 se elege presidente do Sindicado dos Metalrgicos de Caxias
do Sul, permanecendo frente do Sindicato por 12 anos. Em 1955 se elege vereador, por um
partido de esquerda, e faz viagens a Europa e Unio Sovitica, atuando como delegado sindical
em congressos internacionais, representando seu pas. Neste mesmo perodo faz amizade com
Luiz Carlos Prestes, adotando o socialismo como ideal poltico.
Em 1957, Segalla reconhecido como uma liderana sindical no apenas dentro do
municpio, mas tambm em mbito regional, estadual e nacional. J, a nvel internacional, se
torna membro integrante da Federao Sindical dos Metalrgicos (FSM) situada em Praga. Em
1961, organiza uma palestra jundo a Luis Carlos Prestes no Cine Centra, em Caxias do Sul,
ocasionando violenta manifestao anticomunista procinada pelo clero local. J em 1963
eleito Suplente a Deputado Estadual pela extinta Aliana Repblicana Socialista e no mesmo
ano que organiza a 1 greve em Caxias do Sul, quando aproximadamente cinco mil metalrgicos
cruzam os braos revindicando melhoria salarial. nessa poca que Bruno Segalla e sua famlia
passam a sofrer fortes calnias e ameaas, o que leva a sua priso em 1964, ano do golpe militar,
cassado pelo AI 2. Bruno fica encarcerado por aproximadamente trs meses.
Sua cassao poltica por 15 anos e o obscurantimo reinante no perodo ditatorial o faz
retornar efetivamente sua arte e dedica-se a modelar medalhas, de criao prpria, e pequenas
esculturas. Segue trabalhando na Metalrgia Eberle. Em 1974 cria uma srie de medalhas
comemorativas aos 100 anos da Imigrao Italiana no Rio Grande do Sul, modela tambm a
medalha comemorativa a intalao da agncia do Banco do Brasil em Milo. No ano seguinte
preso pela segunda vez, pelo perodo de um ms, acusado de tentativa de organizao do
Partido Comunista. H relatos em que neste perodo Segalla foi torturado, em entrevista
Daniela Goulat o artista plstico declarou: Os caras no eram fceis. (1998), referindo-se aos
militares da poca. Nos anos que seguem os anos 1970 dedica-se a confeco de diversos bustos
e medalhas sob encomenda, assim como permanece a executar criaes prprias.
Em 1980, aps deixar a Metalrgica Eberle, funda junto ao seu atelier a empresa de
gravaes em matrizes denominada: BS Gravaes, hoje o espao da antiga empresa abriga
a galeria de exposies do IBS, e no ano seguinte filia-se ao partido PDT. No final dos anos
1980 participa ativamente das eleies presidenciais, aprofundando sua amizade com Leonel
Brizola. Na dcada seguinte surgem os primeiros prottipos da obra Monumento Jesus 3
475
Milnio e executa a Medalha Rio 922, que distribuda a chefes de Estado na Eco 92, mesmo
ano em que se candidata a deputado federal pelo PDT.
Em 1995 modela a medalha Jubileu de Prada para Universidade de Caxias do Sul, no ano
decorrent inicia o trabalho da esttua de Gigia Bandera Instinto Primeiro, em comemorao
aos 100 anos da Metalrgica Eberle S/A, que est exposta na Praa Dante Alighieri. Em 1999
cria a medalha de Santo Yncio de Loyola para a UNISINOS, recebe a homenagem Destaque
Comunitrio Valores da Terra da prefeitura de Caxias do Sul, alm de ser homenageado como
personalidade de Caxias do Sul do sculo XX, pela sua contribuio cidade como artista
plstico em pesquisa realizada pela UCS.
Segue criando medalhas e esculturas at o ano de 2001. Neste ano executou a medalha
Mrito Alexandre Campagnoni para a Universidade de Caxias do Sul e tambm define o
modelo para o Monumento Jesus 3 Milnio. A construo do monumento, inaugurado apenas
em 2004, inciada por uma equipe de engenheiros e escultures.
Bruno Segalla falece em agosto de 2001, aos 78 anos, em decorrncia a complicaes
pulmonares, causadas pelo fumo e pela constante exposio aos resduos dos metais utilizados
para a cunhagem das medalhas.
Os anos de trabalho e ativismo poltico de Bruno Segalla se mesclam com a histria
de Caxias do Sul, e as aes promovidas pelo IBS vm aguando ainda mais a curiosidade
dos que no tiveram a oportunidade de conhec-lo. Ademais, encontro no momento apenas
um registro em livro sobre Segalla, Daniela Goulart, 1998, pblica na obra Personagens de
Caxias do Sul (EDUCS), um singelo texto acerca do artista, relatando o seu modo de trabalho
a partir de uma entrevista. Neste livro Bruno Segalla divide espao com outras personalidades
do municpio, como o empresrio Raul Randon e o poltico Pedro Simon. Destaco tambm o
lanamento do DVD intitulado Bruno Segalla, em 2012, dirigido por Samuel Bovo a partir
de pesquisas realizadas pela diretora do Instituto, Rejane Rosa de Oliveira. O documentrio
contm depoimentos de familiares e amigos destacando a busca de Segalla em representar
atravs da arte os ideais e valores que tanto defendia.
O aniversrio de uma dcada da instituio que homenageia o artista est sendo bastante
referido nas reunies do conselho e diretoria do espao, percebeu-se a necessidade da criao
de um memorial relatando estes dez anos de empenho, trabalho e divulgao de sua obra.
Juntamente a este relatrio, foi intuda a necessidade de redigir uma biografia de Segalla, que
auxiliaria ainda mais no desenvolvimento do espao. Prope-se ento, atravs da leitura social
das medalhas, resinificar aspectos relevantes sobre sua vida e obra e sobre sua importncia
2 A medalha Rio 92, criada e executada por Bruno Segalla, citada na obra A moeda atravs dos tempos (1993)
de Benedito Camargo Madeira, o autor a aponta como uma moeda comemorativa brasileira e a descreve (p. 49)
mas, infelizmente, em momento algum, cita o nome do artista criador da mesma.
476
poltica e social de sua figura para a regio, alm de colaborar com o estudo histrico e artstico
dessa produo numismtica que to necessrio no momento. Tornam-se urgente estes registros
para a preservao da memria coletiva scio-regional.
Esse pr-projeto de tese concebe a arte medalhstica como linguagem, sendo assim
enquadrando-se em um Doutorado em Letras, e como texto visual dentro de um contexto,
seja ele histrico, poltico, regional e/ou social. Segundo Madeira (1993), a numismtica ou
numria, a cincia que estuda as moedas e medalhas atravs dos tempos, modernamente esta
cincia incorpora tambm o estudo do papel-moeda e das condecoraes. Na antiguidade, a
numismtica foi o maior meio de comunicao e veculo de divulgao da cultura, dos costumes
dos povos e das artes:
As imagens, os sinais e as inscries gravadas nas peas monetrias permitem
numismtica, com preciso cientfica reconstruir os acontecimentos da poca,
resguardando desse modo para a posteridade a memria da civilizao. (MADEIRA,
1993, p. 15).
477
O trabalho est alocado dentro dos processos culturais. Num primeiro momento, o
conceito de discurso e leitura social devero fundamentar as discusses dessa proposta de
estudo que concebe a arte medalhstica como linguagem e tem como tema a produo artstica,
e em alguns momentos as influncias culturais e polticas, de Bruno Segalla no contexto scioregional de Caxias do Sul.
preciso compreender que as Artes Visuais e a Histria so discursos produzidos
por uma cultura, em vrios nveis: poltico, social, jurdico, ficcional, entre outros. Alm
disso, o referencial terico tambm se faz importante para definir outros conceitos que sero
fundamentais para a leitura das fontes de pesquisa, por isso, antes de passarmos anlise das
medalhas, necessrio definir alguns conceitos que sero importantes no decorrer da pesquisa,
so eles: Cultura, Arte, Trabalho, Histria, Modo de Produo, Economia e Formao Poltica. A
definio destes conceitos, ainda no esgotados, visa atingir os objetivos propostos e responder
ao problema de pesquisa e suas questes.
A obra A histria cultural: entre prticas e representaes (1990), de Roger Chartier,
tem como o objetivo demonstrar a linguagem como forma de veculo social e as formas de
perceber as criaes artsticas como um modo de denunciar e formular crticas sobre o meio
social. Observando este ponto e recebendo a obra de Bruno Segalla, percebe-se que os desenhos,
modelagens e objetos produzidos por um artista podem ser considerados narrativas de um
momento social. Deste modo, constroem um discurso a partir das suas leituras, e elas so ao
mesmo tempo, individual (do artista) e coletivas (do meio social a qual pertencem), esse ltimo
se d na relao com o outro.
Para Paulo Freire (2003), o ato de ler significa compreender a relao entre uma produo
passvel de leitura e seu contexto, esse processo implica sempre uma percepo crtica, uma
interpretao e a ressignificao do lido. Tanto na leitura escrita como na leitura visual, usando
as palavras de Freire: o movimento do mundo para com a palavra e da palavra para o mundo
est sempre presente.
Ao contemplar uma obra de arte e fazer uma crtica artstica sobre a mesma, observo
a necessidade de colocar em questo o contexto vivenciado pelo artista. Armindo Trevisan
(1990) menciona em seu livro que pertinente dizer que a leitura biogrfica tem importncia,
mesmo quando a vida do autor aparentemente no traz elementos interessantes todos. Ao
ler e interpretar o contexto, o artista cria o texto visual e tambm se coloca na obra, pois suas
experincias, seu ambiente, seus relacionamentos, suas viagens, suas memrias e sua histria
esto nele e esto no seu trabalho:
At certo ponto a biografia de um artista ajuda a compreender sua obra. Note-se que
usamos a expresso: leitura biogrfica-intencional. Queremos significar que as ideias
478
estticas dos artistas, suas pretenses conscientes, tambm devem merecer ateno
quando reveladas. Seria irrazovel desconhecer os cadernos de Leonardo da Vinci
ou a correspondncia de Van Gogh. (TREVISAN, 1990, p. 146).
Portando ser necessrio compreender como o artista plstico Bruno Segalla, que traz a
sua histria individual, se apropria de aspectos histricos e da memria coletiva, para dialogar
com seu espao. Penso ento que a anlise do discurso tambm dar suporte para abranger como
o artista se relaciona com seu meio social e cultural, e como ele ressignifica esse contexto em
suas produes. Complemento as consideraes acrescentando o texto de Ecla Bosi (2001),
que ao fazer consideraes acerca do indivduo como testemunha, alega que a memria se
desenvolve a partir de laos de convivncia familiar e tambm profissional. Por muito que se
deva memria coletiva, o indivduo, ser nico, que recorda, memoriza e tem acesso a estas
camadas significativas do passado. (p. 408-411). Segalla, ao criar, no se distanciava do seu
ofcio e criava, muitas vezes, fazendo relao com sua formao poltica.
Slvia Helena Barpi Cardoso, em sua obra Discurso e Ensino define discurso como a
prtica da linguagem constituda diferentes condies histricas e/ou sociais: o discurso ,
pois, um lugar de investimentos sociais, histricos, ideolgicos, psquicos, por meio de sujeitos
interagindo em situaes concretas. (p. 21, 2005).
Sendo assim, pode-se pensar que o discurso depende e se d num contexto, seja ele
social, poltico, cultural ou econmico. O sentido atribudo pelo artista em sua obra uma
reconduo do contexto em que essa obra foi produzida e de sua leitura social. Em sua pesquisa,
Maria Helena Wagner Rossi (2003) afirma que o termo leitura pode ser confundido com
apreciao, percepo, recepo, acesso, apreenso, compreenso, atribuio de sentido, e que
todos servem para denotar o processo que o leitor vive na relao com a obra/imagem, seja na
interatividade, na pintura, no museu [...] (ROSSI, 2003, p. 19). Refletindo acerca da afirmao
de Rossi acredito que podemos verificar que o artista sendo autor tambm leitor, pois no
discurso de sua obra, no perceptvel somente as imagens cunhadas na medalha, mas tambm
o modo como ele interpreta e atribui outro significado a um tema, dialogando com os processos
culturais em que est inserido.
Portanto, para aprofundar as questes j mencionadas e tratar de conceitos como
patrimnio, memria, identidade e leitura social e buscaremos as teorias de crticos de arte.
Tais referenciais daro suporte para contextualizar a histrica da cidade de Caxias do Sul,
trazendo as questes a respeito da imigrao italiana, aspectos elitsticos, sociais, polticos e
ideolgicos que possam reconhecer o artista. Os autores tambm fundamentaro as diferentes
possibilidades da histria e da memria cultural, o dilogo entre o texto visual e as leituras
que constroem o contexto como representao, para ento compreender os processos culturais
479
480
sendo seguido com sucesso e aval do Instituto Bruno Segalla e dos familiares do artista.
Referncias bibliogrficas
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TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
481
Introduo
Uma anlise de Avalovara sob a perspectiva de suas sonoridades desvela um rico
conjunto de cenas impregnadas dos mais variados sons, que vo desde as manifestaes musicais
eruditas e populares, passando pelos rudos urbanos, sons mecnicos e sons da natureza, at os
sons de seus personagens no humanos. Esses variados conjuntos de cenrios acsticos formam
o que se pode denominar de Paisagens Sonoras, conceito cunhado por Murray Schafer em seu
projeto denominado The World Soundscape Project, iniciado a partir de um grupo de pesquisa
formado na Simon Frayser University, no Canad. Nesse contexto tambm merece destaque o
msico norte-americano John Cage que em suas incurses pela msica aleatria, traz os sons
do ambiente como elementos constitutivos de suas composies, antecipando-se a abordagem
de Schafer sobre paisagem sonora.
Nas composies musicais de Schafer intituladas Vox Naturae, de 1997, e Caleidoscpio,
de 1967, e tambm nas composies de John Cage, Music Of Changes e Imaginary Landscape
No. 4 de 1951 e 433 de 1952, a imaginao do ouvinte fica aguada pela percepo de cenas
visuais associadas aos diferentes sons ambientes inseridos ou apenas percebidos ao longo das
peas musicais. Da mesma forma, na obra de Osman Lins, a imaginao do leitor transporta-se
para as nuances dos incontveis detalhes das cenas sonoras que se sucedem no transcorrer da
narrativa. Uma multiplicidade de linguagens representadas na descrio literria movimenta
o imaginrio do leitor, levando-o percepo de um caleidoscpio sonoro que impregna os
cenrios do romance, conduzindo-o a inevitveis reflexes sobre os diferentes temas, ampliando,
assim, a sua viso imaginativa.
As concepes delineadas a partir da vertente literria da ecocrtica servem de
fundamentao para uma anlise dos cenrios acsticos construdos ao longo do romance
Avalovara em que a fuso de elementos humanos e no humanos demonstra a inteno do autor
482
em realar a importncia no somente do homem, mas do todo. Nesse sentido, seres humanos
se mesclam, como no final quando Abel e a Inominada se fundem, aps a morte de ambos
por Olavo Hayano. Mesclam-se tambm seres humanos com animais (Ceclia e os lees) e
com a natureza e seus infindveis seres abrigados pelo tapete mgico. Ao mesmo tempo que
Lins refora a dualidade e sua importncia para a harmonia do cosmos, apresenta tambm
uma soluo ficcional para essas mesmas dualidades, antecipando-se s ideias que moldaram e
formalizaram o pensamento dos estudiosos da ecocrtica.
As relaes entre essa vertente e os estudos sobre os sons tanto de Schafer quanto de
Gage, se tornam evidentes no empenho da ecocrtica de explorar a interdisciplinaridade e
restabelecer uma unidade entre o homem e seus entornos e nas intenes de Gage e de Schafer
de alargar o campo da msica, envolvendo tambm os sons do cotidiano do ambiente urbano e
da natureza.
Paisagem sonora
O termo paisagem sonora (soundscape) foi criado pelo msico canadense Murray
Schafer que, semelhana do termo landscape (paisagem visual), o define como sendo um
espao fsico contendo um certo nmero de sons caractersticos.
Com o objetivo de estabelecer uma caracterizao mais apropriada para o termo paisagem
sonora, Schafer faz algumas consideraes:
A paisagem sonora qualquer campo de estudo acstico. Podemos referirmo-nos a
uma composio musical, a um programa de rdio ou mesmo a um ambiente acstico
como paisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acstico como um campo de
estudo, do mesmo modo que podemos estudar as caractersticas de uma determinada
paisagem. Todavia, formular uma impresso exata de uma paisagem sonora mais
difcil do que a de uma paisagem visual. No existe nada em sonografia que corresponda
impresso instantnea que a fotografia consegue criar (SCHAFER, 2001, p. 23).
483
que envolvem a evoluo histrica desta mesma sociedade, ao contrrio da anlise da evoluo
sonora, para a qual a ausncia tecnolgica de meios de registro das sonoridades caractersticas
impediu a formao de arquivos que permitissem a audio dos diferentes espaos sonoros ao
longo do tempo. Antes da inveno do gravador, as descries literrias davam uma ideia do
universo sonoro inerente s especificidades de cada comunidade ao redor do mundo. Muito
antes da revoluo eltrica, a notao musical possibilitou a reproduo musical nos ambientes
de concerto.
A msica faz parte do romance Avalovara de diferentes formas, das quais destacamos a
representao verbal referente a instrumentos musicais, a personagens msicos, a obras musicais,
utilizao de recursos rtmicos e onomatopaicos, a produo de efeitos acsticos e musicais
como elemento sonoro da linguagem. As referncias sonoras conferem uma maior significncia
trama da vida individual e coletiva dos personagens, criando uma rica ambientao musical.
Permeia o romance a vocalizao da palavra e a referncia ao uso da voz humana, e aos vrios
tipos de instrumentos de corda.
484
natureza. Esta interao se manifesta tambm nas emisses sonoras artificiais produzidas pelo
homem, muitas das quais podem se constituir em um tipo de lixo.
Segundo uma definio de ecocrtica, entre outras, constante no livro The Ecocriticism
Reader:
A ecocrtica o estudo da relao entre a literatura e o ambiente fsico. Assim como
a crtica feminista examina a lngua e a literatura de um ponto de vista consciente dos
gneros, e a crtica marxista traz para sua interpretao dos textos uma conscincia
dos modos de produo e das classes econmicas, a ecocrtica adota uma abordagem
dos estudos literrios centrada na Terra (GLOTFELTY, 1996, p. xix. In: GARRARD,
2006, p. 14).
485
[...]
Determinar o modo pelo qual os sons se afetam e se modificam (e a ns mesmos) em
situao de campo tarefa infinitamente mais difcil do que separar sons individuais
em um laboratrio [...]. (2001, p. 185)
Schafer classifica os sons de acordo com suas caractersticas fsicas, de acordo com seus
aspectos referenciais e pelas suas qualidades estticas.
Quando se analisam os sons em si sem considerar a fonte sonora, o foco se volta para as
caractersticas fsicas dos sons, pois uma mesma fonte pode emitir diferentes objetos sonoros.
No plano horizontal tem-se ataque, corpo e queda. No plano vertical tem-se durao, frequncia
e dinmica (intensidade). Segundo Pierre Schaeffer, o som pode ser classificado de acordo com
o que ele denominou de massa, que indica a presena de uma nica frequncia (som musical)
ou de vrias frequncias (rudos) e de gro, que significa modulaes regulares de amplitude
(trmulos) ou de frequncia (vibratos).
J a classificao referencial atribui relevncia para a fonte sonora como geradora dos
sons: sons naturais, sons humanos, sons e sociedade (aqui entra a msica), sons mecnicos,
quietude e silncio, sons indicadores, sons mitolgicos, sons das utopias, sons psicognicos das
alucinaes e sonhos.
Catalogar os sons pelas suas qualidades estticas se constitui em um procedimento
mais complexo pelo fato de requerer estudos de aspectos subjetivos envolvendo percepes
psicolgicas, conforme Schafer afirma: Os sons afetam os indivduos de modo diferente e, com
frequncia um nico som pode estimular uma variedade de reaes to ampla que facilmente o
pesquisador poder tornar-se confuso ou desalentado. (SCHAFER, 2001, p.205)
Com vistas a uma melhor caracterizao dos sons dentro de um espao acstico, tanto no
que concerne a objetos sonoros quanto a eventos sonoros, alguns aspectos podem ser invocados,
tais como: distncia do som de seu observador, se ele se destaca ou se apenas perceptvel, se
semanticamente destacvel ou se faz parte de um contexto ou mensagem mais ampla, se a
textura do ambiente sonoro similar e diferente, se o ambiente propicia reverberao, eco ou
outros efeitos.
Em que pese a abundncia de sonoridades ao longo da narrativa em Avalovara, seria
impossvel destacar os sons individualmente e analisar suas caractersticas sob o aspecto
de objetos sonoros, tendo em vista que a descrio de sonoridades no contexto da narrativa
literria fica limitada expresso verbal, cabendo ao leitor reproduzir em sua imaginao as
inmeras nuances de cada som representado pelo autor, associadas ao espao cnico. Assim,
a classificao dos diferentes sons presentes nas paisagens sonoras do romance deve se ater s
fontes que os originam (eventos sonoros). Em algumas passagens caractersticas sonoras como
dinmica (fortes ou fracos) e a altura (frequncia) dos sons so expressas por Osman Lins.
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Natividade ante a sua almofada de rendeira, quatro bilros nas mos. [...] Vai
mudando sobre o risco os alfinetes e cruza em torno deles as linhas, os bilros
de madeira estalando um contra outro, sempre quatro a quatro, um par na
mo esquerda e um par na direita, abandona-os, toma outros dois pares entre
muitos da almofada, trana-os. O rumor seco e breve das cabeas dos bilros,
polidas pelo uso de anos, ressoa alegremente no silncio. Natividade acha-o
parecido com o dos corrupios ao vento e com o barulho de um fio dgua entre
seixos. Pe-se a cantar em voz baixa. O menino em que concentra toda a sua
carga de amor e que s vezes assusta-a com seus olhos ao mesmo tempo
rapaces e neutros entreabre a porta, teso e sem elegncia, duro, o uniforme
cinza com vermelhos no quepe: Mame est dormindo no sof. No cante.
Ela interrompe a cano e a porta se fecha sem rudo. Estalam menos rpidos
os bilros (LINS, 1995, R 10, p. 73).
488
perspectiva, pode-se trazer o Pastoril em Avalovara (tema T), a msica na famlia de Abel
(tema T), a Sonata K462 de Mozart (temas P, O, R, N e E), a Cantata Catulli Carmina (temas
O, E e N), e o Salmo In Convertendo Dominus de Andr Campra (tema A 14).
Quanto representao do Pastoril:
[...] aps a evoluo e exibio na praia, as pastoras exibem-se na casa da famlia de
Abel, conforme a tradio crist de canto do Terno de Reis: As pastoras, vibrando os
pandeirinhos enfeitados com fitas coloridas, cantam na sala. Ecoam, ensurdecedores,
nas salas e quartos da casa, os instrumentos e as quatorze vozes agudas das meninas
(LINS, 1995, T 17, p. 266).
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das lojas estremecem, o estridor, abafam o estridor o rudo dos motores e as buzinas
raivosas dos transportes que despejam, a cada dia til, nesta rea, quatro milhes
e seiscentas mil pessoas, a cada dia til, vindas de todas as nascentes de todas as
nascentes dos ventos e depois e depois arrastam-nas de volta, o asfalto, operrios
esburacam o cho (LINS, 1995, R 20, p. 304).
Nessa cena dos motociclistas em Chambord, Abel tem que gritar para ouvir sua voz,
porque os intensos rudos das mquinas no lhe permite escutar a si mesmo com uma intensidade
normal de entoao da voz.
Para Schafer (2001, p. 299), o espao acstico de um objeto sonoro o volume de
espao no qual o som pode ser ouvido. O mximo espao acstico habitado pelo homem ser a
491
Consideraes finais
Depreende-se da leitura de Avalovara que a ecologia acstica, na forma de expresso
literria, j se fazia presente nas obras de Osman Lins, ainda que no estivesse teoricamente
caracterizada, antecipando-se, deste modo, s ideias que moldaram e formalizaram o pensamento
dos estudiosos da ecocrtica.
A leitura do romance sugere o deslocamento do homem de sua centralidade no universo
para torn-lo um ente partcipe de um mundo literrio complexo e composto igualitariamente
por seres mticos onde permeiam sons da natureza associados ao mar e s paisagens buclicas
e seus animais e tambm sons mecnicos oriundos de mquinas e automveis.
Osman Lins explora com muita propriedade as variadas possibilidades sonoras em
Avalovara, destacando-as e mesclando-as nas diferentes cenas. H uma riqueza sonora presente
nos diferentes momentos da narrativa, caracterizada pela descrio de grande variedade de estilos
musicais, que vo desde o erudito at a msica genuinamente popular. Alm disso, apresenta os
rudos das mquinas nas cidades misturados aos sons da natureza, concretizando em sua obra
as concepes musicais de Murray Schafer acerca da Paisagem Sonora (soundscape). Desta
forma percebe-se que as reflexes de Schafer acerca da sonoplastia ambiente adulterada por
sons artificiais da sociedade moderna, gravada em diferentes cenrios do cotidiano encontram
paralelo nas paisagens sonoras, abundantes nas mltiplas cenas de Avalovara, em uma
combinao de temporalidade acstica com a espacialidade cnica, definidoras, por si s, do
conceito de paisagem sonora.
492
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494
495
496
pois que Battelli estrangeiro e cada vez mais prestes a partir para a Itlia [...]. (DAL
FARRA, 2002, p. 245)
A poetisa inicia a sua escrita diarstica com uma reflexo sobre o prprio fazer diarstico,
anunciando a sua falta de pretenso e, ao mesmo tempo, o seu esprito paradoxal, perceptvel,
mais adiante, nas passagens do Dirio.
Ainda no mesmo texto, de 11/01/1930, como a um suposto interlocutor Florbela se
explica:
[...] No tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas, no viso nenhum
objectivo, no tenho em vista nenhum fim. Quando morrer, possvel que algum, ao
ler estes descosidos monlogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa, to
rara neste mundo uma alma se debruce com um pouco de piedade, um pouco de
compreenso, em silncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu
no pude: conhecer-me. (grifo do autor)
A falta de finalidade apontada por Florbela ao tentar justificar a sua escrita j foi expressa
anteriormente, de simplesmente atirar naquele texto o que os ouvidos dos outros no
recolhem. O dirio um exerccio de catarse e de confidncia, um interlocutor a quem Florbela
no necessita intimidar-se. Como explica Lejeune (2008), o dirio pode ter vrias funes, das
quais so destacadas aqui as funes de desabafar e conhecer-se. Quanto primeira utilidade,
O papel um amigo. Tomando-o como confidente, livramo-nos de emoes sem
constranger o outro. Decepes, raiva, melancolia, dvidas, mas tambm esperanas e
alegria: o papel permite express-las pela primeira vez, com toda a liberdade. O dirio
um espao onde o eu escapa momentaneamente presso social [...]. (Lejeune,
2008, p. 262).
4 Todos os excertos do Dirio aqui utilizados so da publicao organizada por Maria Lcia Dal Farra: ESPANCA, Florbela. Afinado Desconcerto: contos, cartas, dirio. Org. Maria Lcia Dal Farra. So Paulo: Iluminuras,
2002. Daqui em diante, referir-me-ei apenas data de entrada do Dirio e data no cabealho das Cartas.
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Como confidente e como espelho, o dirio o depsito de suas vozes e a via para a
tentativa de construo e descoberta desse sujeito, a que julga no conhecer. Depara-se, aqui,
com um eu desconhecido, que, ao mesmo tempo, busca conhecer-se, construir-se pelo olhar do
outro, no de dentro para fora, mas num movimento inverso, de fora para dentro. O dirio
apresentado como um espelho da diarista Florbela, um autorretrato. Mas ser que se consegue,
a partir dos fragmentos do Dirio, conhecer e re-conhecer a poetisa?
O esprito paradoxal, afirmado neste primeiro vestgio, antecipa o que ser o seu dirio,
a sua escritura: impossibilidade de conhecimento. Em um jogo de construo e desconstruo,
suas afirmaes confundem e impossibilitam o leitor de tentar audaciosamente traar um perfil
exato dessa mulher Quixote:
Sou uma cptica que cr em tudo, uma desiludida cheia de iluses, uma revoltada que
aceita sorridente, todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave
e metdica at a mania, atenta a todas as subtilezas dum raciocnio claro e lcido,
no deixo, no entanto, de ser uma espcie de D.Quixote fmea a combater moinhos
de vento, quimrica e fantstica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras
vida [...]. (27-7-1930)
Como Quixote, a mulher Florbela a pobre idealista, fidalga louca, quimrica, amazona
a combater seus prprios moinhos de vento. Alm do Quixote, Florbela , ainda, a Charneca.
Esse sujeito feminino, que se multiplica e se autorrepresenta, encontra na sua fuso com
natureza as imagens da Charneca Alentejana: mulher e Charneca, Florbela e Charneca, mais
uma autorrepresentao deste eu:
A Charneca spera e selvagem, mesmo vestida das suas cores predilectas: roxo e
doirado. Giesta, urze, rosmaninhos, esteva: plantas amargas e rudes, sempre sequiosas,
sempre solitrias, em face dum cu onde se acende o sol que as queima e o luar que
as faz sonhar sonhos irrealizveis de pobrezinhas que nunca sero princesas. assim
que tambm sou, Charneca em Flor.(27-7-1930- Carta)
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5 Grifo do autor.
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O meu mundo no como o dos outros, quero demais, exijo demais, h em mim uma
sede de infinito, uma angstia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou
longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta,
atormentada, uma alma que no sente bem onde est, que tem saudades... sei l de
qu!
Esse eu busca pela sua afirmao do eu, mas, mais ainda, um conhecimento,
autoconhecimento. Entretanto, esse eu feminino que se autoafirma, e no se revela, at
ento, o mesmo eu que se desvela e nos conta de si, a partir de uma lembrana passada,
aparentemente longnqua: [...] O que tu fostes, s tu o sabes: uma corajosa rapariga, sempre
sincera consigo mesma.(12/01/1930). Neste dilogo em que o tu, o interlocutor, o eu
feminino, v-se que j no o mesmo eu que se afirma no presente, um eu efmero,
passado, talvez inexistente. Quando o sujeito se depara por conhecer-se e se autodefinir, esse
eu j deixou de ser. A diarista cose e descose os sujeitos e apresenta imagens fugidias de uma
Florbela que existiu em outro momento.
ainda apontando para um paradoxo, que se tem o fragmento de 06/02/1930, o qual
consiste em uma indefinio da vida e do eu que expressa a prpria condio feminina na
sociedade registrada nos dirios ntimos do sculo XX: A minha vida Que gchis! Se eu
nem mesmo sei o que quero!. A indefinio e a insatisfao so tpicas desse tipo de escritura
feminina, onde h liberdade para a reflexo. Nota-se uma constante oscilao em seus escritos:
equilbrio e desequilbrio, afirmao e indefinio, conhecimento e no-conhecimento.
O paradoxo fica mais ntido quando, ao tratar da sua inconformidade consigo mesma, a
diarista entra em conflito com o orgulho e a exaltao anteriormente expressos: Estou cansada,
cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo e com os outros. Diz-me porque no
nasci igual aos outros, sem dvidas, sem desejos de impossvel? E isto que me traz sempre
desvairada, incompatvel com a vida que toda a gente vive....6 E como poetisa, afirma-se em
penitncia: Eu sou apenas poetisa: poetisa nos versos e miseravelmente na vida, por mal dos
meus pecados. (14-10-1930 Carta a Battelli). A simplicidade e a objetividade com as quais
se define como poetisa nos remete, ao mesmo tempo, a uma disfarada modstia ou falta do
orgulho por vezes presente nos seus escritos diarsticos.
Nascer igual aos outros significa no ser poeta, no ser mulher, ou seja, no ser a poetisa
que almeja o infinito, a Napoleo de saias, j autorrepresentada anteriormente. A poetisa encontrase, assim, parte desse mundo que a rodeia, das pessoas que compem o seu crculo social, e
mesmo da sua famlia. Ser mulher e ser poeta, ser poetisa, almejar o infinito almejar mesmo
6 Tal enunciado encontra-se sem datao, no volume do Dirio organizado por Maria Lcia Dal Farra, e este
localizado entre os registros de 11/11/1930 (Carta a Guido Battelli) e 15/11/1930 (Dirio).
500
Esse sujeito, que se autorrepresenta pela Sror e pela poetisa, se revela como uma
invlida e uma exilada da vida (05-07-1930- carta). Assim, as imagens convergentes e
divergentes desse eu feminino so delineadas e autocaracterizadas nas linhas confessionais
e inquiridoras do Dirio e das Cartas, onde se veste dessa mscara frgil da exilada, da poetisa
que impelida ao seu destino, do qual no pode esquivar-se: Est escrito que hei-de ser sempre
a mesma eterna isolada... Porqu? (02/08/1930). A imagem do poeta enquanto ser maldito,
to utilizada pelo romantismo, aqui assemelhada, por Florbela, a sua condio de poetisa,
e a sua condio exclusivamente feminina. E a indagao final, em busca de uma resposta
impossvel, porque assim o autoconhecimento a que se busca, manifesta a sua insatisfao
com a sua condio, exposta em vrias passagens, e culmina com a resignao e o sentimento
de aniquilao total.
Em 03/02/1930, Florbela escreve: Chuva, vento, dores, tristeza...e sempre a Florbela,
a Florbela, a Florbela!! [...]. Em tal fragmento, encontra-se manifesta a associao dos
fenmenos naturais chuva e vento aos sentimentos dores e tristeza, para compor
os traos de personalidade deste sujeito. Alm disso, a inconformidade com esses traos e a
aparente imutabilidade do sujeito expressa ainda
No fragmento, o que acaba por contrariar no s a imagem vivificante da mulher Charneca,
como tambm do sujeito dinmico: mutvel ele se desconstri e se re-constri, a partir das
vrias imagens entrelaadas nas linhas do Dirio e da Correspondncia.
A Florbela vigorosa, corajosa e prepotente, de outras passagens do Dirio, parece perder
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a sua fora e desistir de lutar, resignando-se: [...] Sou o ramo de salgueiro que se inclina e
diz sim a todos os ventos. (28/04/1930). Dessa forma, a morte, o aniquilamento a nica
via de evaso, e no mais o seu Dirio. Ao mesmo tempo, a imagem do ramo de salgueiro
a se inclinar remete fora de sobrevivncia e resistncia que possui esse sujeito. E o ramo
de salgueiro constri essa imagem paradoxal. A resignao, por vezes combatida, acaba por
encontrar consolo apenas na aniquilao. Florbela v a morte como uma companheira, a quem
vai ao encontro:
O Dirio de Maria Bashkirtseff qualquer coisa de profundamente triste, de
tragicamente humano. S no compreendo naquela grande alma o medo da morte. [...]
Como no compreendeu ela que o nico remate possvel cpula do seu maravilhoso
palcio de quimeras, de ambio, de amor, de glria, poderia apenas ser realizado
por essas linhas serenas, purssimas, indecifrveis, que s a morte sabe esculpir? [...].
(24/01/1930)
502
A resposta a esse questionamento que fez parte e foi resultado dos seus conflitos foi dada
logo a seguir, em 08 de dezembro de 1930. No havia decidido, havia sido compelida, j lhe
faltavam as palavras e os gestos. Fora obrigada a silenciar-se. Ao invs da resignao em vida,
ao invs de usar a mscara da mulher comum no mundo real, Florbela decidiu pela resignao,
o aniquilamento que iria mant-la como sempre foi. Eu sou Eu!, e continuou sendo. Ela, como
sempre, decidiu a sua vida. Calou-se, como deveriam todas as mulheres em sua poca, que, de
diversas formas, foram expressas por ela em seu dirio, e em sua epistolografia do ltimo ano,
no seu mltiplo e paradoxal eu feminino, fragmentado e indefinido.
Tanto no seu Dirio, como em sua epistolografia do ltimo ano, esse eu se multiplica
e se dilacera, a Florbela foi a Bela, foi a Sror, foi a pantera, imagens femininas vrias, que ela
manifestou nesses escritos e que representavam as mscaras das vrias mulheres que ela vestia,
ou que continham nela. Todas foram desconstrudas pelos conflitos no resolvidos. E a poetisa
acabou por se reconhecer no D.Quixote, um personagem porventura masculino, mas cuja
imagem abarcou o reconhecimento que a poetisa faz da sua condio em uma carta endereada
ao professor Guido Battelli, em 11/11/1930:
[...] viverei com certeza um tero do que poderia viver porque todas as pedras me
ferem, todos os espinhos me laceram. D.Quixote sem crenas nem iluses, batalho
continuamente por um ideal que no existe; e esta constante exaltao, desesperada e
desiludida, destrambelha-me os nervos e mata-me.
Esvaram-se todas as mulheres, e por ltimo, foi-se o D. Quixote florbeliano, sem as suas
quimeras impossveis. Sonhou em ser grande, lutou contra seus prprios gigantes, desiludiu-se
com a realidade. A morte da palavra e do corpo foi apenas a afirmao da impossibilidade desse
sujeito feminino de viver sem iluses.
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504
505
A vinculao entre literatura e histria, discutida por Chabal, permite que reconheamos
uma dinmica especfica na produo literria de Mia Couto, o que remete a um novo espao
ficicional na literatura, especificamente, neste caso, a moambicana. O leitor, onde quer que se
encontre periferia ou centro , implicado diretamente no desenvolvimento, reconhecimento e
formalizao cannica dessa produo literria. Diferentemente do passado, o imediatismo atual
da comunicao acelera esses movimentos e altera o significado do presente. Aproximam-se
as geografias, diluem-se as fronteiras e alteram-se as relaes temporais.
Considerando que fico e histria se imbricam, entrelaando funes, podemos aferir
que leitor e cidado so papis de um mesmo ator em ambos os cenrios, do mesmo modo
que escritor e historiador. Os leitores no mais se estabelecem somente como receptores, so
modernamente (ou ps-modernamente, se preferirmos) construtores dessa literatura tanto
quanto ela o de cada um, uma vez que ela seja um componente da formao identitria coletiva
e, em conseqncia, do indivduo. Chabal, ao discutir a relao identidade nacional e literatura
em Moambique, afirma:
506
inserimos o escritor Mia Couto como formador da histria da literatura moambicana, alm de
construtor da identidade histrica do pas. Dessa posio de leitura encontramos em Fonseca e
Cury:
Da viagem real ao deslocamento imaginrio, do cruzamento de tempos crtica do
presente, os textos de Mia Couto inserem-se tanto na releitura da histria como na
ficcionalizao da condio do homem contemporneo. Muitas vezes, o escritor parte
de fatos histricos, de acontecimentos reais, para neles inserir vozes que a histria
reprimiu, para reler acontecimentos reinventando seu contexto, envolvendo-os com
uma aura de fantasia, hipertrofiando o real ao atravess-lo pelas vises mticas que
marcam seu projeto literrio. (FONSECA, 2008, p. 83-84)
A releitura da histria e a ficcionalizao da condio do homem contemporneo,
referidas pelas autoras, o que percebemos como uma noo mais ampla de literatura, presente
em Mia Couto, que possibilita uma dinmica constante de atualizao do real e da fico.
A literatura moambicana seria, desse modo, na sua formalizao, uma representao mais
abrangente, uma segmentao da cultura e no somente uma criao ficcional. Escolhemos
um autor e um pas, mas poderamos estender nossas consideraes por muitos outros, pois
a relao entre a escrita, enquanto discurso, e a nao, enquanto identidade, uma dialtica
constituda e discutida intensamente desde a segunda metade do sculo XX.
Se o Romantismo privilegiou a afirmao da autoria, os tempos de ps tendem a
destacar a imerso do autor no processo de instaurao da prpria obra. Se antes o escritor era
uma espcie de proprietrio, hoje figurativamente meeiro, participando do prprio enredo,
podendo situar-se como um narrador, uma personagem e/ou assumir a metalinguagem como
possibilidade narrativa. Assim, h uma aproximao entre autor e leitor, como sujeitos sociais
em diferentes papis e/ou funes.
A prpria condio de escrita literria permite uma incluso de novas vozes com vrios
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508
construir uma enunciao mais crtica, que no se furte a marcar posturas num mundo
atravessado por intensas divises.
Essas idias e conceitos [...] configuram a escrita de Mia Couto no contexto das
tendncias contemporneas da assim chamada crtica ps-colonial. Profundamente
local moambicana, africana, do Terceiro Mundo , profundamente universal
no tratamento dos temas, dos sempre mesclados espaos de produo da cultura.
(FONSECA; CURY, 2008, p. 106-107)
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poemas, crnicas, contos, romances, textos teatrais e o que ele chama de intervenes suas
falas em eventos3 e que trazem a posio de um ficcionista, de um cidado moambicano e de
um homem contemporneo. A possibilidade de agregar passado e futuro no presente da histria
da literatura/da nao a oportunidade maior das literaturas africanas, enquanto gestadas no
colonialismo histrico e (re)nascidas no perodo a que Homi Bhabha chama de deslizamento
do prefixo ps (2003, p.20).
Pleiteamos que Mia Couto faz uso dessa oportunidade e se registra como um inequvoco
representante de uma literatura moambicana, considerando-a (re)nascida no perodo colonial
tomamos por medida a formalizao da idia de nao e consolidada na contemporaneidade
esta no sentido de redefinio dos espaos culturais. Sobre essa atualidade, seguimos Bhabha
quando ele afirma que:
O trabalho fronteirio da cultura exige um encontro com o novo que no seja parte
do continuum de passado e presente. Ele cria uma idia do novo como ato insurgente
de traduo cultural. Essa arte no apenas retoma o passado como causa social ou
precedente esttico; ela renova o passado, refigurando-o como um entre-lugar
contingente, que inova e interrompe a atuao do presente. O passado-presente
torna-se parte da necessidade, e no da nostalgia, de viver. (BHABHA, 2003, p. 27)
510
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primeiro romance de Mia, que coincidente com a abertura poltica do regime, pode considerarse provisoriamente o final deste perodo de ps-independncia (LARANJEIRA, 1995, p.
262).
O autor, num captulo dedicado a Mia, destaca que seus textos colocam em situao
de exposio as vrias culturas e crenas do homem moambicano (LARANJEIRA, 1995,
p. 312) e que a sua criatividade um modo de moambicanidade (LARANJEIRA, 1995, p.
314). A anlise de Laranjeira prioriza as inovaes do escritor moambicano, com destaque para
o seu trabalho com a matria diversificada do espao etno-social que abrange universos
culturais muito variegados (LARANJEIRA, 1995, p. 312), e para caractersticas como: o uso
de paratextos, a criatividade e inventividade da linguagem, o realismo no traado de aces
e caracteres, a intromisso, de chofre, do imaginrio ancestral, do fantstico, que transforma
esse realismo quase social num imprevisto realismo animista e o humor, construdo atravs da
intriga, de situaes e acontecimentos, de personagens e seus nomes, da narrao, da linguagem,
da enunciao (LARANJEIRA, 1995, p. 312-316). Ao final de seus apontamentos, ele situa o
fazer literrio de Mia como um projeto, passvel de reconhecimento, ao dizer:
esse afeioar de linguagens, culturas e humores que Mia Couto entende como o
projecto de moambicanidade: h este mosaico, no tanto de raas, mas de culturas,
das culturas que esto a marcar parte de uma coisa que ainda s um projecto: a
moambicanidade.4 (LARANJEIRA, 1995, p. 318)
512
Como escritor, a Nao que me interessa a alma humana. Escrevi um livro a que
chamei Cada Homem Uma Raa. Agora, vos posso dizer: Cada pessoa uma nao.
Ns aqui somos uma espcie de assembleia de naes. (COUTO, 2005, p. 96)
Mia Couto, ao mesmo tempo que se submete a uma tradio dplice [textos literrios
e textos culturais-orais], em que o sistema literrio se cruza com outros sistemas
culturais, numa relao interdiscursiva, est em simultneo a criar essa tradio em
termos prospectivos, deixando antever outras concretizaes afins. (LEITE, 2003, p.
57)
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Aberta, 1995.
LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulaes ps-coloniais. Lisboa: Colibri,
2003.
514
O acervo deixado por rio Rodrigues, constitudo em sua maioria de poemas abrangendo
variadas temticas como o amor, a religiosidade, o saudosismo materno, etc. traz, tambm,
assuntos que giram em torno do sentimento de inquietude acerca da inverso de valores da
sociedade contempornea. Morador de So Jos do Norte RS, o poeta que se autodenominava
pobre, utilizou-se da arte potica como um meio de criticar a classe dominante e dar voz a uma
parcela da sociedade que se encontrava/encontra excluda, tanto no que concerne s questes
socioeconmicas, quanto arte em geral.
Pensar o carter marginal dentro da literatura ainda bastante controverso tendo em vista
a dificuldade de se estabelecer a definio de marginalidade no mbito literrio. Alm disso, o
entendimento de marginalidade ainda se mantem com um carter pouco cientfico, intricando
a delimitao de quem, por que e como so esses marginais. Contudo, ao assumirmos as ideias
propostas por Ponge (1981), podemos supor que a literatura marginal se estabelece como
aquela no pertencente s obras da classe dominante. Salientamos que mesmo essa definio
ainda passvel de problematizaes, uma vez que, como menciona o terico o estado de
marginalidade pode ser muito transitrio, muito efmero; (PONGE, 1981).
Alm disso, ao pensarmos o termo marginal, devemos ter em mente a transitoriedade
existente na significao estabelecida expresso. Em outras palavras, o que no sculo passado
era estigmatizado, hoje, para alguns, perde o sentido pejorativo e passa a ser uma espcie
de elogio, pois evoca uma simbologia de independncia e autonomia literria, como explica
MATTOSO (1982):
Na verdade, marginal simplesmente o adjetivo mais usado e conhecido para qualificar
o trabalho de determinados artistas, tambm chamado independentes ou alternativos
(por comparao com a imprensa nanica, teoricamente autnoma em relao grande
imprensa e contestadora em relao ao sistema). (MATTOSO, 1982, p.8)
1 Trabalho apresentado sob a orientao da Prof.Dra. Luciana Paiva Coronel no II Encontro Sul Letras realizado
nos dias 25, 26 e 27 de Novembro de 2013.
515
Ainda no que diz respeito busca de uma teorizao sobre a definio de literatura
marginal, Gonzaga (1981) nos apresenta um esquema no qual possibilita caracterizar a Literatura
como sendo marginal em trs diferentes tipologias. O estudioso aponta que a obra, para estar
inserida dentro do que entendemos como margem, tende a se encaixar em pelo menos um dos
seguintes aspectos: marginais da editorao; marginais da linguagem; marginais pela temtica
abordada.
Tomando como exemplo o autor rio Rodrigues, podemos estabelecer que ele est
inserido, em um primeiro momento, no que o terico considera marginal da editorao. A
respeito disto Gonzaga (1981) explica que so autores de obras que no seguem os padres
normais de editorao, distribuio e circulao. Alm disso, compem produtos graficamente
inferiores em que o raio de ao raramente transcende o local onde foram produzidos. No que
concerne ao modo de distribuio da obra de rio, fica ntido que o poeta no se encaixou no
crculo da editorao padro, uma vez que grande parte de sua obra teve difuso artesanal, ou
seja, vendas em rodas de conversas e mesas de bar, com valores simblicos e espontneos.
Ao expor a obra do Poeta Pobre como marginal dentro do mercado editorial, vale dar
meno ao livro impresso no ano de 2003. Coletneas 2003, apesar de ter sido impresso e tido
espao em eventos formais como a Feira do Livro de Rio Grande, no contou com uma editora
padro, tendo como colaboradora uma Grfica da cidade (Salisgraf). Portanto, fica claro que a
falta de editoras e a limitao de espaos para a circulao da obra so pontos elementares que
fazem da obra do autor se inserir em um dos aspectos conceituados como Literatura Marginal.
Alm da questo do meio editorial, podemos pensar uma outra perspectiva trazida por
GONZAGA (1981) no que concerne marginalidade literria: o espao e a voz do excludo
dentro das obras. A respeito disso, o estudioso afirma:
Esta terceira manifestao da literatura proclamada marginal ligaria-se mais ao
problema da escolha de protagonistas, situaes e cenrios do que adeso a uma
linguagem experimentalista. Embora alguns dos autores dessa tendncia autodefinamse como malditos, no pairam acima ou abaixo do organismo social, como queriam
os malditos do romantismo europeu. Sua rebeldia d-se no momento em que tentam
enquadrar, no corpus artstico, as fraes eliminadas do processo de produo
capitalista. (GONZAGA, 1981, p.151).
516
que o autor problematiza, ao longo das estrofes, a desigualdade social, atentando para o quo
menosprezadas so as pessoas das classes inferiores:
Debaixo das marquises/ onde dormem os infelizes,/ Sobre as folhas de jornais/ Quantos
morrem congelados/ Dormindo desabrigados/ Nas cruis noites hibernais.// So as
vtimas do relento/ Que ali morrem sonolentos/ Sem um gemido de dor/ Atirados
m sorte/ A sofrer at a morte/ Ao relento, que horror// E os direitos humanos/ Onde
esto? S vejo insanos/ Pelas ruas a padecer,/ Virando latas de lixo/ Disputando com os
bichos/ Resto de po pra comer.// Crianas, jovens e velhos/ Andarilhos neste mundo,/
Num sofrimento profundo/ Loucos de fome e de frio,/ a legio dos desgraados/
Que anda por todo o lado/ E a sociedade no viu.// A sociedade assassina/ Quase
sempre dobra a esquina/ Sem ao menos olhar pra trs,/ Por que se olhar de frente/ Vai
ver bandos de indigentes/ E por eles pouco faz.// Gente simples e esquecida/ Que a
vida condenou/ A viver como indigente,/ Seus crimes foram carentes/ E a sociedade
os matou. (RODRIGUES, 2003, p. 41)
Nota-se que, ao longo do poema, o eu-lrico se utiliza de uma linguagem que, embora
formal, desperta a ateno do leitor pelo impacto proporcionado. Ao relatar o sofrimento daqueles
que nas ruas (sobre)vivem, o sujeito potico caracteriza a sociedade como assassina, uma vez
que, ao negligenciar a existncia e condies em que os indigentes vivem, torna-se cmplice
de um sistema segregador e desigual. Alm disso, ainda analisando as escolhas lexicais,
nos defrontamos com palavras como infelizes, insanos, andarilhos e desgraados,
todas caracterizando ora os sujeitos ora o modo de vida desfavorecido a que so submetidos,
demonstrando, logo, a maneira como so percebidos ou referidos.
Ainda em Coletneas 2003 (2003), rio Rodrigues apresenta uma srie de crnicas
que abrangem diferentes temticas. Dentre tais escritos, destacamos As Realezas terrestres
em que possvel percebermos outras caractersticas ainda de cunho bastante crtico, como
por exemplo, a reprovao classe dominante pelos disfarces acionados para mascarar a
verdadeira condio humana: mortal. Ao enfatizar tal condicionamento que o homem possui, o
narrador desenvolve questes como a cultura consumista desenfreada, uma vez que os sujeitos
contemporneos normalmente so induzidos a crer na necessidade de apropriarem-se de bens
os quais so desnecessrios a suas vidas, como podemos perceber no trecho a seguir:
Mera iluso, presuno tola da imperfeio humana que est condicionada a vs
fantasias e caprichos da matria que disfara seus odores mais pesados com finas
essncias e parfuns franceses, importados da Europa, mas que na realidade no
dissimulam os odores insuportveis de um corpo em putrefao no tmulo onde no
h lugar para tais vaidades infelizmente e onde todos ns, pobres mortais, via de regra,
somos idnticos devido as mesmas circunstncias. (RODRIGUES, 2003, p.11).
517
Ao longo das estrofes fica bastante claro para o leitor que a crena religiosa o apego
final para o sujeito potico. Podemos entender este fato em uma perspectiva na qual a religio
vista como um objeto norteador da vida. Em outras palavras, atravs da religiosidade e de sua
moral que o poeta e o sujeito potico denunciam as prticas de vida do homem contemporneo.
Ainda que haja uma grande presena de questes religiosas na maioria de seus escritos, rio
Rodrigues no exclui o tom revoltoso quando tematiza e d voz ao excludo. Pelo contrrio, o
autor traa uma relao entre a tica religiosa e a civil, como podemos observar nas seguintes
estrofes retiradas de Um senhor da nobreza (2003):
Pobre de ti, Senhor da nobreza,/ O quanto falsa a tua realeza/ Os teus castelos de
prazeres vos/ No destes conta em tua vaidade/ Que para Deus, rico na verdade/
quem pratica o bem de corao.// No partilhaste em meio a riqueza/ Uma migalha de
tua farta mesa/ A quem pedia respondeste no/ Fechaste a porta para o indigente/ Mas
hs de vir aqui novamente/ Atravs da reencarnao.// Sem cumprir em ti a lei, e um
dia/ Hs de tornar pedinte a quem pedia/ A mesma porta tu irs bater/ S que ao invs
de rico abastado/ Virs a terra pobre e desgraado/ A implorar um po para o viver.
(RODRIGUES, 2003, p.23).
518
Referncias Bibliogrficas:
http://www.iriorodrigues.furg.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6&Itemid
=12 (Acesso em Janeiro de 2014)
GONZAGA, Srgius. In: FERREIRA, Joo-Francisco (org). Crtica Literria em nossos dias
e literatura marginal. Porto Alegre: Editora da Universidade, UFRGS, 1981.
MATTOSO, Glauco. O que poesia marginal. So Paulo: Brasiliense, 1982.
PONGE, Robert. In: FERREIRA, Joo-Francisco (org). Crtica Literria em nossos dias e
literatura marginal. Porto Alegre: Editora da Universidade, UFRGS, 1981.
RODRIGUES, rio. Poeta Pobre: Poesias. Rio Grande, 1998.
______. rio. Coletnea 2003. Rio Grande: Salisgraf, 2003.
519
INTRODUO
Desde que o homem desenvolveu a escrita e, consequentemente, comeou a ler, a leitura
passou a ser encarada como uma significativa prtica para o desenvolvimento e o aperfeioamento cognitivos. Sua importncia pauta nos mais diversos segmentos, e estudos envolvendo
sua disseminao so cada vez mais frequentes na rea da Lingustica.
As teorias mais recentes sobre a leitura apontam que vrios processos so necessrios
para que ela ocorra. Entre eles esto o reconhecimento e a memorizao das letras e das slabas,
a decodificao das palavras, a interpretao das frases e dos perodos segundo contextos externos e internos e a compreenso textual. Ler, dessa forma, no apenas reconhecer letras para
unir slabas e ser capaz de pronunci-las. Mais do que isso, a leitura implica uma interao que
pressupe uma relao entre texto, autor e leitor.
Dessa forma, o objetivo deste artigo mostrar que leituras truncadas, ou seja, com
problemas de coeso e coerncia, prejudicam a leitura, afetando o desempenho leitor e, consequentemente, a compreenso textual. Para isso, no primeiro captulo retomado o conceito de
leitura, bem como sua importncia para a insero social. No segundo, fala-se sobre o quanto
520
a qualidade sinttica do material lido essencial para que seja semanticamente entendido. Em
seguida, analisada uma adaptao de linguagem empobrecida do clssico A Pequena Sereia,
de Hans Christian Andersen, a fim de se demonstrar os prejuzos para o leitor que tem contato
somete com esse tipo de material.
1. A IMPORTNCIA DA LEITURA
Ler um ato complexo. Muito mais que uma prtica que envolve prazer ou decodificao de palavras, a leitura implica interpretar o que h por detrs de unies silbicas. Para
isso, o leitor deve-se colocar no texto de modo a utilizar seu conhecimento de mundo para dele
extrair experincias significativas. Dessa forma, para que a leitura de fato ocorra, no basta ler
palavras, mas preciso aprofundar verticalmente essa prtica, de modo que texto e leitor estabeleam relaes expressivas entre si. Ou, de acordo com Tumolo (2008), existe, atualmente,
o consenso em caracterizar leitura como um processo interativo implicando uma interao entre
a informao apresentada no texto e a informao contribuda pelo leitor (p. 132).
Nesse sentido, segundo Morais (1996), o que vale, para a sociedade, no ser ledor,
mas leitor (p. 16). Ou seja, no mundo atual a leitura desempenha um papel social que se cumpre na medida em que os indivduos a praticam de forma a utilizarem-na como ferramenta de
conhecimento, e no como mera atividade decodificadora.
Ler, dessa forma, indiscutivelmente um problema da sociedade. O desenvolvimento
econmico condicionado pela possibilidade que tero todos os homens e mulheres ativos (e
no apenas certas camadas sociais) de tratar a informao escrita de uma maneira eficaz (ibid.,
p. 19-20). Em outras palavras, na medida em que a leitura uma prtica social, aquele que fica
margem dela fica, tambm, margem da prpria sociedade.
Ora, estar marginalizado com relao leitura no significa, aqui, a ausncia de livros,
mas a falta de qualidade deles, uma vez que a performance [do leitor] varia muito com o tipo
de material a ser lido (ibid., p. 18). Isto , para que a leitura acontea, no basta apenas a oferta
de livros, ainda que ela seja de extrema importncia. Portanto, para que a experincia de ler se
torne enriquecedora, o tipo de material ofertado deve ser considerado. Assim, quando se renem as condies materiais e cognitivas da atividade de leitura, a dimenso pessoal da leitura
pode realmente expandir-se (ibid., p. 25).
521
cia com relao linguagem do texto, mais especificamente sua sintaxe e sua semntica.
Entende-se por sintaxe tudo o que se relaciona construo frasal, a qual, se bem constituda,
contribuir com a semntica textual, ou seja, com seu significado.
Segundo Scherer e Tomitch (2008), conetivos so cruciais para facilitar e melhorar a
compreenso do texto (p. 106). Ou seja, os conetivos, ou conjunes, responsveis por associar uma frase outra, de modo a estabelecer relaes semnticas entre elas, tm papel fundamental na compreenso leitora, uma vez que essas palavras so responsveis pela constituio
da teia na qual a estrutura do texto envolvida.
Ainda conforme as pesquisadoras,
a presena de conectores acelera o tempo de leitura devido a uma reduo de inferncias exigidas do leitor a fim de compreender a prxima informao. Seguindo o
mesmo raciocnio, a sua presena deve tambm facilitar a percepo das relaes
semnticas entre unidades textuais e, consequentemente, produzir uma representao
na memria de forma mais acurada e integrada. (ibid., p. 107)
Em suma, um texto que apresenta uma sintaxe bem estruturada auxilia o leitor durante o
processo de leitura, facilitando no s sua interpretao, como tambm sua memorizao. Alm
disso, um texto escrito de maneira coesa contribui para a construo de sua coerncia, alm de
internalizar no leitor aprendizagens essenciais com relao escrita.
522
523
Dando um salto rumo ao conflito da histria, chega o momento em que a sereia lamenta
sua cauda, uma vez que ela simboliza a impossibilidade da realizao de seu amor por um homem, pois revela sua natureza no-humana:
ao ouvir isso, a pequena sereia gemeu e contemplou com tristeza sua cauda de peixe.
Procuremos ser felizes assim disse a velha. pular e danar nos trezentos anos
que temos de vida, que tempo suficiente. Depois, pode-se, com igual proveito, descansar no tmulo. Hoje noite, haver baile na Corte! (ibid., p. 15)
Novamente, a presena de adjuntos adverbiais (com tristeza) auxilia o leitor a constituir o tecido narrativo. A insero da fala da av por meio de travesses bem demarcada e a
presena de dilogos bem elaborados e argumentados imprescindvel para que se perceba a
complexidade do conflito da obra3.
Ao longo de toda a obra original, possvel perceber a preocupao com a linguagem e
a conscincia de que por meio dela que o leitor experiencia a histria. Dessa forma, imprescindvel que ela seja bem elaborada e bem estruturada, uma vez que cada frase colabora para a
tessitura narrativa. O respeito com o texto denota tambm o respeito com leitor, o qual, ao tomar
contato com obras bem escritas, torna-se mais exigente no s com relao quilo que l, mas,
num sentido geral, quilo que recebe da sociedade.
3 Como o objetivo do artigo analisar a linguagem truncada das adaptaes, sero analisados apenas esses dois
trechos da obra original, uma vez que seria redundante a compilao de outros excertos.
524
Percebe-se que, embora haja uma relao de subordinao entre os dois perodos, ela
apresenta um encadeamento simples entre as frases, como se a preocupao fosse apenas dar
a informao, e no inserir o leitor no contexto da obra, permitindo a ele experienci-la. Notase tambm a falta de pontuao antes da orao por quem se apaixonou, a qual, por ser uma
subordinada adjetiva explicativa, deve, obrigatoriamente, ser precedida por vrgula.
Na sequncia, exposta a passagem que revelada mais ou menos na metade do conto original, ou seja, o momento em que a sereia repreendida por seu desejo de se unir a um
humano. Percebe-se que a explicao para o impedimento da realizao amorosa bastante
simplria e no exatamente autoexplicativa, afinal, nessa verso o impedimento do pai o nico
empecilho:
mas seu pai o rei dos mares lhe disse:
-minha filha voc no pode amar um humano, voc uma sereia! Veja, voc tem cauda, os humanos tm pernas! (ibid., p. 2)
a pequena sereia estava to apaixonada que concordou com a bruxa. Tomou a poo
mgica e desmaiou, quando acordou estava na praia, o lindo prncipe encontrou-a e
fez dela sua amiga (ibid., p. 8)
mas a pequena sereia estava muda, no podia falar de seu amor. Um dia soube que ele
525
iria se casar, resolveu visitar o prncipe enquanto ele dormia para se despedir, chorou
e no teve coragem de deix-lo. (ibid., p.9)
Fica evidente que a narrativa sofre um atropelamento, uma vez que no demarca pargrafo e amontoa as frases, como se bastassem vrgulas para separ-las. Isso comprovado pelos
perodos atravancados, compostos principalmente por coordenao aditiva, como se a relao
entre todas as frases fosse mera adio. quase impossvel, portanto, respirar e refletir durante
a leitura.
Ao longo de toda a adaptao, os problemas de paragrafao e pontuao persistem,
assim como os perodos permanecem unidos por relaes de adio, na maior parte das vezes.
Isso com relao linguagem, uma vez que a prpria narrativa um resumo muito mal elaborado do clssico original. Em outras palavras, fica evidente que no h uma preocupao em
manter o alto nvel da linguagem, preservar a essncia da narrativa nem em fazer o leitor ao
menos tomar cincia da existncia da verdadeira histria4, pois, o que vale, nesse caso, no a
qualidade.
5. DISCUSSO
Com base nas anlises acima, possvel discutir algumas questes com relao linguagem das obras adaptadas ao pblico infantil. Batista e Martins (1996) ensinam que, para se
fazer uma adaptao que
venha a manter a aura do texto original, preciso que o adaptador tenha uma conscincia pragmtica, isto , apresente domnio semitico da estrutura original e saiba
onde realizar a supresso da massa vocabular e na prpria estrutura do texto-base. (p.
35)
Nota-se que no isso o que ocorre com o exemplar analisado, uma vez que a principal
temtica da histria de Andersen (o desejo da sereia pela alma imortal) no nem sequer citada.
Talvez muitos pensem que essa omisso ocorra por se tratar de algo intil ao universo mirim,
considerando-se a viso deturpada de que a criana, em sua inocncia to resguardada pelos
adultos, no capaz de compreender o drama vivenciado pela sereiazinha. Por isso, em vez de
publicarem algo que complexifique o pensamento infantil, h editoras que preferem simplific4 O estudo do exemplar em questo e de demais adaptaes permitiu concluir que as narrativas so adaptadas segundo a verso da Disney, e no a de Andersen. Alm disso, o fato de serem publicados resumos, e no adaptaes,
evidencia que a editora pressupe que o leitor tenha conhecimento prvio da animao, o que um absurdo, pois
ningum compra um livro que necessita de um filme para explic-lo.
526
lo, destinando s crianas obras mais divertidas, amenas e apelativas, em detrimento de uma
leitura desafiadora.
Conforme Machado (2002), isso comprova, tambm, que, na adaptao,
quando se trata de histrias j de sada consideradas infantis, como o caso dos contos
de fadas, bastante frequente que surjam resultados que so um total absurdo, sados
de cabeas que desejam censurar e exercer seu poder sobre os pequenos e que no
revelam grandes doses de sensibilidade ou inteligncia para lidar com um material
to precioso. (p. 75)
Seu argumento vai ao encontro do que Batista e Martins (op. cit.) explicam em relao
ao fato de que, na adaptao textual em casos como o do exemplar analisado,
o apropriador est interessado em comprimir o original e em primeiro lugar se torna
mais censor do que criador, porque mutila o imaginrio do texto original e o substitui
por uma estrutura em forma de mosaico, deixando fissuras entre as partes. Diante
deste fato que podemos afirmar que o texto adaptado, sem um embasamento terico,
nada mais do que um texto que serve apenas para estmulo do leitor e no contribui
para a adequada formao dele. (p. 2)
Ou seja, adaptar uma obra com coeso, coerncia e qualidade implica, principalmente,
conhec-la bem e dominar teorias de adaptao e leitura, pois, conforme defende Machado (op.
cit.), o adaptador dessas histrias [mal adaptadas], por no estar acostumado a conviver de
perto com muita leitura, passa por cima do fato de que no se l literalmente (p. 77).
Ainda resta lembrar a quantidade de problemas de pontuao encontrada, o que tambm
d mais fora ideia de que, alm de no haver uma preocupao com a linguagem veiculada
nessas verses empobrecidas, as editoras no dispem de profissionais qualificados para a elaborao adequada de um material de leitura.
Logo, em vez de publicaram adaptaes fiis ao conto original, as editoras veiculam
resumos literrios mutilados, empobrecidos e, algumas vezes, at mesmo copiados da verso
da Disney. Isso prova que essas empresas de editorao ou so extremamente negligentes ao
ofertar seus produtos, ou no esto, definitivamente, interessadas em formar leitores, mas apenas em conquistar lucro atravs do oferecimento de um texto simplrio e apelativo a um pblico
pouco crtico.
527
cONCLUSO
Ao longo dos anos, a importncia da leitura vem sendo reconhecida pelas mais diversas
reas. Sua prtica defendida e considerada como essencial para o desenvolvimento cognitivo
humano. Estudos mais recentes em Lingustica apontam que, especialmente entre as crianas,
ler uma atividade que, alm de prazerosa, auxilia no desenvolvimento da memria e da escrita. Com base nisso, a difuso de livros torna-se cada vez mais comum, e o pblico infantil
largamente beneficiado com essa oferta.
Entretanto, nem sempre a oferta de obras literrias o suficiente para que esse desenvolvimento acontea, uma vez que, com a inteno de baratear livros, muitas editoras fazem resumos de narrativas clssicas, chamando-as de adaptaes, as quais, muitas vezes, apresentam
uma linguagem to empobrecida que em nada contribui para o pblico mirim.
Problemas de paragrafao, pontuao e sintaxe, ao lado da falta de qualidade literria,
em longo prazo, podem no contribuir para a formao do leitor, transformando a criana num
indivduo que no possui gosto pela literatura e apresenta dificuldades na escrita e na interpretao das vrias leituras que pode fazer do mundo sua volta. Alm disso, quando atrelados
a adaptaes mutiladas e pouco preocupadas com seu leitor, os pequenos ficam impedidos de
sonhar e transgredir os padres reducionistas impostos por uma sociedade massificadora.
Assim, imprescindvel que o pblico infantil no seja subestimado quando se trata de
literatura. Pesquisas como essa so o ponto de partida para que se repensem as prticas pedaggicas e se passe a olhar para os pequenos com novos olhos, encarando-os como seres pensante.
Discusses sobre os problemas do ensino no Brasil so apenas o incio da grande mudana que
se pode provocar nas escolas e na sociedade.
REFERNCIAS
ANDERSEN, Hans Christian. A Pequena Sereia. Traduo de Per Johns. Porto Alegre: Kuarup, 1994. (Coleo Era Uma Vez... Andersen)
BATISTA, Orlando Nunes; MARTINS, Alfredo Peixoto. Teoria da adaptao textual. Campo
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BELLI STUDIO. A Pequena Sereia. Todolivro. s.l.; s.d. (Coleo Fbulas de Ouro)
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528
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In: TOMITCH, Lda. Aspectos cognitivos e instrucionais da leitura. So Paulo: Edusc, 2008.
(Coleo Cincias Sociais)
529
Introduo
A partir da proposta feita ao Ncleo Universitrio de Traduo (NUTRA)de fazer uma
verso, em lngua inglesa, do catlogo de Ps-Graduao da Pr-Reitoria de Pesquisa e PsGraduao da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), foi possvel desenvolver este trabalho, onde sero resumidos os dois primeiros captulos eas principais concepes de traduo
descritas por Travaglia (2003). Aps essas consideraes, o foco ser exemplificar como essas
concepes tericas foram comparadas com a verso feita na prtica e dialogar diretamente
com partes do texto que explicitem como e por que a Traduo interpretativa ou desentido
(TRAVAGLIA, 2003, p. 45) foi escolhida como aquemais se aproxima da concepo que os
tradutores adotaram durante as etapas do trabalho de traduo.
Objetivos
Os principais objetivos deste trabalho so analisar trs concepes de traduo apresentadas por Travaglia (2003) e estabelecer um dilogo entre a teoria e a prtica do processo
tradutrio que levou em considerao esse livro e a verso para a lngua inglesa do Catlogo de
Ps-Graduao da PROPESP. Esta pesquisa almeja, ainda, identificar exemplos que demonstrem como a concepo de Traduo interpretativa ou de sentido fez parte do processo de verso do Catlogo e discutir os motivos que levaram os tradutores a optarem por essa concepo
como a que mais se aproximou do processo tradutrio.
530
Metodologia
A presente pesquisa iniciou com a elaborao da verso, para a lngua inglesa, do Catlogo de Ps-Graduao da PROPESP, realizada em parceria com os orientadores deste trabalho. Foram realizadas discusses acerca dos termos a serem utilizados no processo tradutrio,
levando em considerao, dentre outros aspectos, o tipo do texto traduzido e o pblico-alvo
do documento. A partir dessas discusses, foi possvel associar o processo de traduo com as
concepes de Travaglia (2003), que foram analisadas novamente pelos membros da equipe e
relacionadas s discusses e escolhas lingusticas pertinentes. A partir de ento, considerando
que as trs concepes eram divergentes e que, apesar de abrangerem algumas caractersticas
em comum, somente uma delas se encaixava no procedimento realizado, o foco foi selecionar
uma delas como principal ou dominante. O conceito que mais se aproximou da prtica tradutria em questo foi o de Traduo interpretativa ou de sentido, em que para traduzir indispensvel compreender e interpretar (TRAVAGLIA, 2003, p. 49). O procedimento seguinte
foi analisar exemplos das discusses que levavam essa concepo como base, identificando os
termos discutidos e selecionados.
Resultados
A partir da realizao do referido trabalho, foi possvel concluir que a prtica da traduo pode e deve dialogar com a teoria, de modo a esclarecer ao tradutor que sua prtica pode
ser classificada e baseada em teorias. Tambm, pode-se mencionar alguns dos termos discutidos
pelos tradutores e o motivo de essas escolhas serem pautadas pela concepo da Traduo
interpretativa ou de sentido. O primeiro termo Ps-Graduao, em que foi cogitada a possibilidade de ser traduzido como Graduate Programs e Graduate School, mas foi finalmente
traduzido como Graduate Education. O termo Graduate Education foi escolhido por indicar
um sentido mais amplo, que abrange tanto os cursos de mestrado e doutorado como as outras
atividades pertinentes de ensino, pesquisa e extenso, o que foi confirmado pela adoo do
termo por parte de uma conceituada universidade americana em seu site institucional. O segundo termo que gerou bastante discusso e pesquisa foi o dos objetivos, pois a equipe sentiu a
necessidade de diferenciar entre Objectives ou Goals no contexto especfico dos cursos de psgraduao. A equipe selecionou o vocbulo Goals por apresentar um significado mais amplo
e, assim, se adequar mais ao contexto lingustico em questo, reservando o termo objectives
para os objetivos secundrios ou especficos, desdobrados a partir do objetivo principal, sempre
531
vertido como Goal. Finalmente, para que o texto vertido construsse a equivalncia (cf. COSTA
et al, 2005, p. 26) necessria em relao palavra formar, muito utilizada no trabalho em questo, a equipe decidiu que deveria traduzi-la de forma diferente em algumas de suas ocorrncias
no texto, sempre levando em considerao o contexto no qual era inserida. Quando referida a
Formar profissionais capazes de planejar, a palavra formar e a frase foram vertidas como Providing professionals with the skills to plan. J quando o contexto mencionava Formar recursos
humanos, a palavra Formar foi traduzida como Educating, ficando a frase Educating human
resources. Considerando todos esses exemplos, possvel relacionar a concepo de Traduo
interpretativa ou de sentido ao processo de traduo, pois ao escolher o termo de acordo com
o contexto no qual trabalhamos, o tradutor, alm de traduzir, interpreta o texto e imprime suas
escolhas na traduo.
Referncias Bibliogrficas
ALVES, F.; MAGALHES, C.; PAGANO, A.; Traduzir com autonomia: estratgias para o
tradutor em formao. So Paulo: Contexto, 2000, p. 9-26.
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TRAVAGLIA, Neuza Gonalves. Traduo retextualizao: a traduo numa perspectiva textual. Uberlndia:EDUFU, 2003, 239 p.
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Introduo
Este trabalho tem como objetivo principal mostrar como relevante o uso da oralidade atravs de debates regrados nas salas de aula de lngua materna. Isso no significa que os
educandos no faam uso da oralidade nos contextos sociais que esto inseridos, mas que eles
precisam perceber que esse uso deve ter critrios ou regras de manifestao democrtica conforme o meio e o propsito para qual ele foi dirigido.
2. Ancoragem terica
2.1 Oralidade, dialogismo na linguagem, interacionismo
sociodiscursivo e o ensino de lngua materna
A oralidade o meio de uso da linguagem mais simples para o ser humano, porque se
aprende a falar antes de escrever. Porm nos espaos escolares o uso democrtico da oralidade
precisa encontrar mais espao. Observa-se que nas salas de aula, de ensino de Lngua Materna, se enfatiza os gneros escritos, ainda que conste nos PCNs a relevncia de se aprimorar os
discursos orais. Como menciona Marchuschi os gneros textuais falados no possuem ainda
estudos em grande abrangncia (MARCHUSCHI, 2008, p. 187).
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Com base nesse aspecto, postula-se que o espao da oralidade na interao do aluno
significativo para sua atividade discursiva nos meios sociais. Um educador comprometido com
o exerccio da cidadania precisa criar condies para que o aluno possa desenvolver sua competncia discursiva. (PCNs, p. 23)
Assim, a leitura, a pesquisa de textos e o debate sobre um assunto pr-estabelecido aos
educandos foram as situaes pelas quais eles puderam pensar mais efetivamente sobre seus
pontos de vista e conhecimento de mundo, alm de perceberem as opinies dos autores dos
textos lidos. Segundo Bakhtin, os diversos campos de atividade humana esto ligados ao uso da
linguagem e o emprego da lngua efetua-se por enunciados. E, o enunciado de uso particular e
individual, porm cada campo de utilizao da lngua elabora seus tipos relativamente estveis
de enunciados, os quais formam os gneros de discurso.
No campo da oralidade esses enunciados dependem ainda da situao de comunicao
e dos contextos em que os alunos esto inseridos. O estudante precisa entender que o discurso
utilizado em um debate, por exemplo, mesmo que feito em sala de aula, no pode ser o mesmo
que ele usa com seus colegas, amigos em situaes informais. Mas, tambm, no pode entender essa diferena discursiva como um preconceito lingustico e sim, como uma adequao de
linguagem para cada contexto em que esteja inserido. Ao conceber a linguagem como heteroglossia, Bakhtin apresenta a realidade lingustica em perptuo movimento. (FARACO,
2005, p. 41) Mostrar essa viso da linguagem ao educando para que possa utiliz-la de acordo
com a mais prestigiada o caminho de valorizar a linguagem oral no contexto escolar.
O discurso formado por outros discursos que emanam em nossa sociedade. O interacionismo scio-discursivo (BRONCKART, 1999, P.35) que tem como propsito considerar as
aes humanas em suas dimenses sociais e discursivas constitutivas, prope que os discursos
so segmentos que entram na composio de gnero. Isto significa que, ao sugerir aos educandos o gnero debate, o educador deve construir juntamente com seus alunos a proposta de criao verbal, as marcas lingusticas, a sequncia lgica, o contexto de produo (BRONCKART,
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1999, P. 93), que d parmetros para organizao do texto oral no mundo fsico/social/subjetivo
que esse gnero apresenta.
3. O objeto de estudo
O texto oral, cujo objeto de estudo parte, o debate regrado, ou seja, os alunos da escola
devem produzir verbalmente as suas opinies, conhecimentos e colocaes crticas sobre o assunto proposto, previamente pesquisado e lido em jornais, revistas ou internet. O tema proposto
fora escolhido em sala de aula em conjunto com os educandos a violncia nas escolas. Muitos
educandos mencionaram vrias reportagens da mdia televisiva sobre os vdeos postados nas
redes sociais de adolescentes brigando antes ou depois dos turnos escolares. Como o assunto
gerou divergncia de opinies foi sugerido que cada aluno fizesse uma pesquisa prvia sobre
o assunto. Foi montado um roteiro de pesquisa com perguntas sugeridas por eles para serem
respondidas e discutidas no prximo encontro.
Tambm, observamos e escrevemos alguns critrios que deveriam ser feitos durante os
debates, tais como: organizao do espao fsico ( as mesas e cadeiras em crculo), monitoramento de tempo por pessoa (respeitando o direito que todos tem de se expressar), tratamento
respeitoso com o interlocutor, falar um de cada vez, esperar a sua vez de falar, ouvir o que o outro diz, ter o direito a rplica, em caso de discordncia, respeito a opinio do outro, argumentar
para comprovar as hipteses levantadas, interveno do professor, se necessrio, como mediador das discusses, o uso de exemplos reais de reportagens trazidas para a sala de aula, desde
que mencionadas a fonte e a data da mesma, adequao lingustica a situao de fala, ou seja,
usar a linguagem mais monitorada, sem uso de grias ou expresses populares como tipo, t
ligado, pior, cara, n, da, a, demor, abal, fal a gente ou nis- substituindo-o pelo pronome pessoal do caso reto ns, falou, os bonito, no viaja, troxa,
bolo, rolo, chapa quente, pegar fogo, meu bruxo, d uns bico, d uns rolzinho,
bucha, cachorra, buzum, bonde, os mano, vio, mala, balaqueiro, ningum
merece, responsa, t dominado, tomar bola nas costas, zoar, entre outras. Para cada
palavra ou expresso mencionada anteriormente eles foram criando um glossrio, escrevendo
o termo adequado para se falar.
Com o estabelecimento de critrios para o incio do debate no prximo encontro foi o
momento das discusses. Os alunos trouxeram textos j lidos e comearam-se as argumentaes sobre o tema combinado.
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Os gneros primrios so o nvel real com o qual a criana confrontada nas mltiplas prticas de linguagem, considerou-se o debate um gnero primrio, uma vez que no contexto escolar acarreta na manifestao oral do pensamento crtico e do conhecimento de mundo
do educando, sem complexidade lingustica, porque o aluno de 6 ano de Ensino Fundamental
um indivduo relativamente jovem, sem a maturidade ou experincia de vida que um poltico
teria em um debate televisivo, por exemplo. Claro que, ao se criar uma grade de critrios para o
uso da linguagem o discurso no to espontneo assim e passa a ser regrado. Isso significa que
se torna instrumento de criao para o gnero secundrio, permitindo-lhes agir e argumentar
em novas situaes. E essa o maior aprendizado para os estudantes, porque passam a sentir-se
seguros e competentes para usar a linguagem oral em outras situaes sociais.
Consideraes Finais
Para Bakhtin, de suma relevncia o encontro sociocultural das muitas vozes sociais
(heteroglossia) e a dinmica que se e estabelece: os pensamentos e opinies apoiam-se mutuamente, ou se contrapem parcial ou totalmente, se repetem, se arremedam, causam polmicas
ou confuses direta ou indiretamente entre outros fatores caractersticos de situaes de debate
orientado. (FARACO, 2009, p. 58). Tambm, buscou-se mostrar como o professor pode criar
uma grade de critrios avaliativos ressaltando o uso da variedade mais monitorada, sem preconceito lingustico para o desenvolvimento progressivo da intersubjetividade e autonomia oral
dos educandos a partir de discusses feitas na sala de aula.
Assim, percebe-se que tais atividades orais estimulam o educando a expressarem suas
opinies, exporem o conhecimento de mundo que possuem, alm de poder ampliar os argumentos para defesa de suas convices sociais de maneira autnoma, democrtica, criativa, respeitosa e adequada ao contexto escolar. A anlise lingustica se mostra real, situada e compreens-
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vel ao educando, uma vez que percebe a necessidade de usar a linguagem de maneira adequada
para que possa ser ouvido, compreendido, respeitado, apoiado ou contestado de forma coerente
e gentil. A gentileza e a cordialidade no ato de fala entre interlocutores um dos elementos
bsicos da essncia humana. O espao pedaggico da oralidade um texto para ser constantemente lido, interpretado, escrito e reescrito (Freire, 1999, p. 97). Por isso, quanto mais
prticas sociais sejam feitas nas escolas em conjunto ao uso da linguagem de maneira efetiva,
mais possibilidades de aprendizagem democrtica e significativa aos educandos.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Esttica da criao verbal. Esttica da criao verbal; introduo e traduo do russo Paulo Bezerra. 6 ed. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo scio-discursivo. Traduo de Anna Raquel Machado, Pericles Cunha. So Paulo: EDUC,
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo:
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ensino. In: ______. Gneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004,
p. 71-91.
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Introduo
Embora no haja dvida quanto existncia de uma vertente afro na literatura brasileira, a polmica sobre sua definio parece existir a muito tempo, no havendo uniformidade
nas posies defendidas no debate. E a discusso se estende, inclusive, muitas vezes, prpria
nomenclatura: literatura negra ou literatura afro-brasileira? Essa uma pergunta que ainda hoje
gera polmica. Nesse contexto, com base nas produes literrias e ensasticas de participantes
dos Cadernos negros, o presente trabalho busca discutir suas contribuies para a configurao
discursiva de um conceito de literatura afro-brasileira.
A srie Cadernos negros, organizada pelo grupo literrio Quilombhoje, consiste numa
antologia literria de publicao peridica, com nmeros anuais de contos e poesias, alternadamente, desde 1978 (h 36 anos). Assim, representando a antologia de literatura afro-brasileira
de vida mais longa, a srie vem constituindo um significativo espao coletivo e de esprito
comunitrio para uma produo at ento excluda ou marginalizada no mbito da tradio
literria brasileira e consequentemente do mercado editorial.1 Ao reunir escritores de diferentes
geraes e de diversas partes do Brasil, a proposta central da srie, declaradamente, dar visibilidade a textos e autores afrodescendentes e incentivar a leitura, trabalhando no sentido da
formao de pblico leitor.
Cumpre ressaltar que os Cadernos negros j so considerados a publicao peridica de
maior destaque no mbito da literatura afro-brasileira contempornea, sendo uma das principais
1 O grupo Quilombhoje parte do princpio de que a principal causa da reduzida visibilidade de escritores afrodescendentes que em suas obras retratam a vida e os valores da comunidade negra brasileira a dificuldade de
ingressar no mercado editorial e colocar seus livros disposio de um grande pblico. Assim, a publicao em
regime cooperativo apresenta-se como uma sada encontrada por muitos escritores negros para furar o bloqueio a
eles imposto no meio editorial e fazer suas obras chegarem ao leitor.
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Falante, Jornegro, bano, Jornegro, Nizinga, entre outros, afirmando ilustrar, de modo exemplar, as estratgias empreendidas pelos negros brasileiros (e acrescentemos as negras) para
produzir e divulgar um discurso identitrio que almeja interferir na estrutura e no exerccio
do poder poltico-cultural. A pesquisadora constata que os Cadernos negros podem ser vistos
como marcos da atmosfera cultural das trs ltimas dcadas, nas quais grupos como Palmares,
Movimento Negro Unificado e Negrcia propem estratgias diversificadas para combater as
manifestaes de racismo no Brasil, sugerindo um novo conjunto de representaes para esse
grupo tnico.
Souza (2006) defende que no h dvida de que a publicao dos Cadernos negros contribui em muito para a configurao discursiva de um conceito de literatura afro-brasileira. Para
Souza, a srie destaca-se em especial por manter uma produo marcada predominantemente
pelo protesto contra o racismo, tanto na prosa quanto poesia, na linha da tradio militante
vinculada ao Movimento Negro. Ao examinar o processo de inveno de um discurso de autorrepresentao no sentido de produo de identidades culturais afro-brasileiras, a estudiosa
demonstra que a srie inova na proposio de imagens que desestabilizam os esteretipos negativos dos afrodescendentes e na explicitao do desejo de emancip-los, por meio da concretizao de mudanas na ordem das representaes e dos lugares sociais, um tema quase ausente
na produo literria brasileira instituda.
Entre os temas mais recorrentes dessa produo literria, os mais significativos seriam:
a necessidade de compor contranarrativas da histria dos negros no Brasil; a cunhagem de outros significados para o termo negro e afins, no negativos; o estabelecimento de vnculos com
tradies de origem africana e com outras tradies de afrodescendentes da chamada dispora
negra; a discusso dos quadros de identidade cultural forjados para o pas e a insero dos negros, neste quadro, enquanto afro-brasileiros. (SOUZA, 2006, p. 17)
Eduardo de Assis Duarte (2011), em artigo intitulado Por um conceito de literatura
afro-brasileira, argumenta que, ao longo de sua existncia, os Cadernos negros pouco se distanciaram dessa postura incisiva, que se transformou em sua marca registrada e que termina
por afast-lo de uma linha menos empenhada em termos de militncia. Nessa perspectiva, sobressai o tema do negro, enquanto individualidade e coletividade, insero social e memria
cultural, assim como a busca de um pblico afrodescendente, a partir da formalizao de uma
linguagem que denuncia o esteretipo como agente discursivo da discriminao. (DUARTE,
2011, p. 377)
De modo complementar, Maria Nazareth Soares Fonseca (2011) observa que os Cadernos negros, desde seus primeiros nmeros, tiveram como proposta concreta a produo de
uma literatura que seja percebida como um dos instrumentos necessrios ao fortalecimento da
conscincia de ser negro. Segundo a autora, para ser coerente com essa proposta, a coletnea
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apresenta uma literatura comprometida, de certo modo, com uma posio poltica e com
formas de autoconhecimento. (FONSECA, 2011, p. 263).
J no primeiro nmero dos Cadernos negros (1978) concretiza-se a proposta de valorizao de uma esttica negra:
Ao propor uma esttica negra, os escritores que assumiram os Cadernos negros em
seus primeiros nmeros procuraram apagar do corpo negro os estigmas remanescentes do sistema escravocrata e das compartimentaes nas quais a sociedade brasileira
aloja os indivduos marcados pela pobreza s vezes miserabilidade e pela cor da
pele. (FONSECA, 2011, p. 264)
Ao traar um comparativo com um nmero mais atual da antologia, Fonseca (2011) alega que mesmo a publicao dos Cadernos negros n. 28 (2005) no oculta o seu compromisso
com a denncia dessas compartimentaes: Tal compromisso faz a publicao sair em busca
de um leitor disposto a refletir sobre a internalizao inevitvel das imagens negativas sobre
os indivduos marcados pela pigmentao no apenas da pele, mas tambm das oportunidade a
eles oferecidas (FONSECA, 2011, p. 264).
Portanto, a motivao inicial dos Cadernos negros diz bem do traado que os textos procuraram delinear nesses mais de 30 anos de existncia: a descoberta das razes negrssimas da
maioria de seus colaboradores e a inteno de levar adiante as sementes da conscincia para
a verdadeira democracia racial (CADERNOS NEGROS 1, 1978, prefcio). Nesse sentido, ao
comparar o texto de apresentao do primeiro nmero da publicao com o que encaminha os
contos do nmero 28, verificamos algumas indicaes da permanncia dos objetivos iniciais da
publicao, tais como quando afirmam: Correndo margem, o trabalho de Cadernos, que vem
desde 1978, abrange o resgate de ancestralidades e a indicao de caminhos possveis (RIBEIRO e BARBOSA, 2005, p. 9).
Alm disso, o trecho da apresentao do nmero 28 repisa sentidos expressos no prefcio do nmero 1, quando se propunha, via literatura, a legtima defesa dos valores do povo
negro brasileiro. No entanto, preciso atentar para o fato de que a proposta de uma escritura
assumidamente negritudinista cede lugar indicao de que a diversidade passa a ser a cara
do novo volume, considerando que, conforme declaram os organizadores, somos afrodescendentes, temos essa origem comum, mas temos tambm nossas individualidades, gostos e preferncias (RIBEIRO e BARBOSA, 2005, p. 9). Desse modo, a inteno inicial amplia-se para
acolher maior variedade de temas e abordagens medida que o projeto assume novas parcerias
a cada novo volume.
Cumpre destacar ainda que a partir do nmero 18 (1995), o peridico apresenta como
subttulo Contos/Poemas afro-brasileiros. O acrscimo dos subttulos fornece aos Cadernos
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negros uma significao mais ampla, atenuando a questo tnica, a qual, porm, j estava muito
transparente nos nmeros iniciais da coleo e ainda est presente na produo dos vrios escritores que publicam nos nmeros mais recentes.
A edio alusiva aos 20 anos de publicao da srie, Cadernos negros: os melhores contos (1998), tem seu prefcio escrito por Aldo Rebelo, com o ensaio crtico intitulado A Arte da
resistncia, no qual elenca trs mritos dessa publicao. Primeiramente, os contos e poemas
includos nas selees anuais dos Cadernos negros divulgam um valioso potencial criativo que
possivelmente estaria sendo desperdiado, pois seus autores dificilmente seriam publicados
por revistas ou editoras que privilegiam o valor mercantil das obras e o retorno garantido dos
investimentos. Em segundo lugar, Rebelo declara que, ao demonstrar que a arte da palavra
est ao alcance dos criadores de qualquer cor, os Cadernos negros e o Quilombhoje cumprem
funo inestimvel: os prosadores e poetas no repudiam suas origens raciais nem renegam as
experincias positivas ou dolorosas que os moldaram; seus textos se transformam, por isso,
em veios atravs dos quais a parcela negra e discriminada do povo afrodescendente rememora
suas condies desfavorveis de existncia, denuncia as arbitrariedades policiais ou a violncia
cotidiana de seus bairros, reclama de falta de oportunidades de trabalho e de acesso cultura,
queixa-se do desalento e da desunio das prprias comunidades, ao mesmo tempo em que fala
de seus sonhos, revela uma sensibilidade peculiar, expressa formas prprias de beleza e paixo.
O terceiro e ltimo mrito elencado diz respeito ao tempo de publicao anual ininterrupta dos
CN, haja vista que no fcil manter uma publicao cultural e progressiva por tanto tempo.
Desse modo, os Cadernos negros buscam ampliar a herana deixada por escritores negros brasileiros, consistindo em uma produo literria peridica que distende a questo tnica
em busca de novos arranjos de linguagem capazes de assumir as matrizes africanas presentes
na cultura brasileira da o termo afro-brasileiro adequar-se melhor que simplesmente negro
para a conceituao dessa literatura. Seguindo o caminho j trilhado por Solano Trindade e
outros escritores, vimos que propem no s trabalhar com temas relacionados cultura negra
no Brasil, mas tambm expandir o espao de publicao dos escritores negros, incentivando a
viso crtica sobre os preconceitos disseminados na sociedade e apontando para as possibilidades de apresentar o escritor como consciente de seu papel transformador.
No mbito histrico-literrio, importante ter em mente que os Cadernos negros comeam a ser publicadas na dcada de 1970, perodo em que se inicia o que Silviano Santiago
(1998) define como o momento histrico de transio do sculo XX para o seu fim, o qual
se definiria pelo luto dos que saem, apoiados pelos companheiros de luta e pela lembrana dos
fatos polticos recentes, e, ao mesmo tempo, pela audcia da nova gerao que entra arrombando a porta com impotentes e desmemoriados radicais da atualidade (SANTIAGO, 1998,
p. 11-12). Desse modo, os textos dos Cadernos negros, particularmente a partir da dcada de
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1990, podem ser vistos enquanto significativo referencial literrio afro-brasileiro no mbito dos
dilogos e das trocas instaladas pelo movimento negro na sociedade brasileira, ao lado das influncias do pensamento contemporneo, que propiciaram a compreenso da identidade como
categoria mvel, dual, construda no interior da vida cultural.
Adaptando a questo proposta por Stuart Hall (2003) no artigo Que negro esse na
cultura negra?, a definio do que este afro na expresso afro-brasileira, conforme proposta pelos Cadernos negros, parece apontar para a necessidade incontornvel de conviver e de circular num espao diversificado e de trnsito entre culturas diversas, marcado pelas questes de
gnero, etnia e classe. Esse espao coloca os afrodescendentes sempre na obrigao de aprender
e manejar uma cultura eurocntrica, pretensamente universal e absoluta, que lhes representa de
modo depreciativo.
No entanto, conforme demonstra Hall (2003), a visibilidade que, especificamente, os
negros comeam a desfrutar nos estudos contemporneos cuidadosamente regulada e segregada, chamando a ateno para as ambivalncias do mecanismo de abertura para a diferena
tema que deve ser levado em conta em uma discusso interessada em analisar a qualidade da
insero do afrodescendente e da cultura negra no mercado de bens simblicos e na indstria
cultural.
De todo modo, embora ainda hoje seja uma questo polmica, preciso reconhecer que
antes do surgimento dos Cadernos negros, em 1978, e da reflexo terica encaminhada por seus
colaboradores, no podemos afirmar ter existido no pas movimentos literrios que, a exemplo
do Renascimento Negro Norte-Americano ou da Negritude, empenharam-se em produzir uma
literatura de forte contedo reivindicativo, buscando valorizar outros princpios estticos, o que
no significa que antes mesmo da extino do trfico negreiro muitos escritores no tivessem
produzido textos em que a questo negra ou afro-brasileira fosse abordada.
Portanto, torna-se impossvel desconsiderar a contribuio dos Cadernos negros para
a constituio de um conceito de literatura afro-brasileira, como vem sendo preferencialmente
denominada no apenas pelo grupo Quilombhoje, mas tambm no mbito dos estudos acadmicos.
Referncias
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Belo Horizonte: Mazza Edies, 2002.
BERND, Zil. Introduo literatura negra. So Paulo: Brasiliense, 1988.
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1. INTRODUO
Em uma de suas conhecidas teses sobre o conceito da histria, escrita na dcada de
trinta do sculo XX, Walter Benjamin evoca a imagem de um anjo retratado em uma pintura de
Paul Klee, chamado de Angelus Novus. De acordo com a descrio do terico alemo, a figura
representada como se quisesse fugir de algo para que olha fixamente, com os olhos e a boca
escancarados e com as asas abertas. Seguindo a leitura de Benjamin, percebemos nessa obra o
arqutipo do que o autor supe ser o anjo da histria, com a face dirigida ao passado e com a
certeza de enxergar - onde ns apenas vemos um conjunto de acontecimentos uma srie de
catstrofes que culminam em runas que se acumulam formando uma imensa montanha. O texto
ainda nos revela a vontade que o anjo tem de parar e juntar os fragmentos deixados para trs,
que impedida tendo em vista a existncia de uma poderosa tempestade vinda do paraso, que
prende suas asas e o impede de fech-las. Nas palavras do prprio autor Essa tempestade o
que chamamos de progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226).
No por acaso, a passagem acima nos pe frente a um recurso utilizado por Benjamin
no apenas como mtodo de interpretao de sua poca, mas tambm como forma de exposio
de seu pensamento acerca de um perodo no qual a morte e a destruio, impulsionadas por
aparentes avanos tecnolgicos, espalhavam-se com fora nunca antes vista pela humanidade,
algo que viria a desembocar nos maiores conflitos armados testemunhados pela histria. Tratase, mais especificamente, de uma categoria de anlise j apresentada pelo filsofo naquilo que
seria sua mais significativa obra - O Nascimento do Drama Trgico Alemo ou seja, a representao alegrica.
Creditando escrita alegrica por imagens uma espcie de distanciamento entre sentido
1 Trabalho vinculado ao projeto de dissertao Sentidos Alegricos em Jos Saramago: A Caverna e a aventura
da modernidade, financiado pela Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior / CAPES,
desenvolvido junto ao Programa de Ps-graduao em Letras rea de concentrao estudos literrios - da Universidade Federal de Santa Maria e sob orientao do professor Dr. Pedro Brum Santos
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literal expresso e ausente, ou mesmo de acordo com a definio mais ampla indicativa de que
a alegoria diz a para significar b, Flvio Kothe bem define esse conceito no vis benjaminiano.
Logo, a alegoria:
Expressa algo que diferente, que o outro daquilo que representa. E este outro que
a alegoria revela e esconde, desvela e vela, que Benjamin vai querer decifrar: a viso
da histria como histria do sofrimento dos homens (KOTHE, 1978, p. 63).
Nesse distanciamento entre forma e contedo expresso, baseia-se uma das mais importantes consideraes feita por Benjamin em seu intuito de resgatar a alegoria de sua posio
inferior, enquanto forma de representao, imposta pela esttica romntica do sculo XVIII,
cuja valorao do smbolo apresentava-o como expresso artstica superior. Mesmo que Goethe, um dos principais partidrios da esttica do smbolo, via com entusiasmo nessa forma de
expresso artstica a possibilidade em se vislumbrar o universal no particular, justamente
em tal caracterstica que abre-se a crtica de Benjamin contra o caos gerado pelo romantismo
(BENJAMIN, 2011, p. 177), que apropriou-se da alegoria apenas como fundo escuro antittico
da clareza simblica.
O autor do estudo sobre o barroco alemo, entretanto, identifica na escrita alegrica no
era apenas uma frvola tcnica de ilustrao por imagens mas sim uma forma de expresso
to legtima como a escrita e a linguagem. A categoria de tempo considerada por Benjamin
surge, ento, como principal argumento favorvel a sua viso. Dessa forma:
A diferena entre a representao simblica e a alegrica est em que esta significa
apenas um conceito geral ou ideia diferentes dela mesma, enquanto aquele a prpria ideia tornada sensvel, corprea. No caso da alegoria h uma substituio, no do
smbolo o prprio conceito desce e integra-se ao mundo corpreo [...]. Por isso, a distino entre esses dois modos deve ser procurada no momentneo que a alegoria no
conhece. No outro caso( no smbolo) estamos perante uma totalidade momentnea ,
aqui existe uma progresso numa espcie de momentos (BENJAMIN, 2011, p. 175).
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um rosto melhor, de uma caveira. E se verdade que a esta falta toda a liberdade
simblica da expresso, toda a harmonia clssica, tudo que humano apesar disso, nessa figura extrema da dependncia da natureza exprime-se de forma significativa, e sob a forma de enigma, no apenas a natureza da existncia humana em geral,
mas tambm a historicidade biogrfica do indivduo (BENJAMIN, 2011, p.177).
A aluso imagem da caveira trabalha aqui como mecanismo tropolgico que nos remete ao entendimento da exposio barroca e mundana da histria, que por esse recurso alegrico
vista como a via crucis do mundo, vendo a vida a partir da morte. Com isso, Benjamin coloca
a alegoria barroca em um patamar para l da beleza, isso graas ao fato de a representao
histrica apreendida no drama barroco se mostrar no como uma narrativa rumo a um esplendoroso progresso, mas sim como trajeto de inevitvel declnio. A compreenso de tal evidncia,
ainda de acordo com Benjamin, dada pela presena de outra categoria-chave exposta pelo autor. Trata-se do conceito de runa, que se apresenta como correspondente, no reino das coisas,
ao que a alegoria no reino das ideias.
Embora amplamente distanciado temporalmente da grande maioria das produes benjaminianas, algo semelhante pode ser encontrado em uma parcela especfica da produo ficcional do escritor portugus Jos Saramago. Ao publicar, no incio dos anos 2000 o romance
A Caverna, finaliza aquilo que ele mesmo chamaria alguns anos depois de a trilogia involuntria formada tambm por Todos os Nomes, lanado em 1997 e Ensaio Sobre a Cegueira, de
1995. Essas obras receberam tal designao no por terem sido pensadas dessa forma, mas por
exprimirem retoricamente a viso do autor em relao ao mundo em que se vive na contemporaneidade2. A partir da ltima narrativa citada, central na produo do escritor portugus,
inaugura-se um novo desdobramento no projeto ficcional de Saramago, marcado por linhas
temticas renovadas. A esse respeito, o prprio autor reconhece que: Passei a tratar de assuntos srios de uma forma abstracta: considerar um determinado tema, mas despindo-me de toda
a circunstncia social, imediata, histrica e local (SARAMAGO, apud AGUILERA, 2010,
p.118).
Tal caracterstica seguramente lana a esse conjunto de obras aquilo que Maria Alzira
Seixo (1999) denomina de estratgia narrativa em jeito de alegoria. Essa inclinao, cuja escrita por imagens se mostra como um dos principais pilares, mostra-se como capaz de representar uma ampla gama de significaes inerentes a diferentes momentos de nossa histria, mesmo
os de mais difcil delimitao, como a modernidade.
Considera-se aqui que a hiptese de Marshall Berman (1992), retomada por David Harvey ( 2001), que considera a figura do mito Fustico como arqutipo desse momento em que, a
exemplo do personagem, o impulso modernizador necessitou destruir determinadas estrututu2 Trecho extrado da Cronobiografia A Consistncia dos Sonhos, de Fernando Aguilera.
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ras para se construirem outras - marcando dessa forma o que ambos os tericos chamam de a
tragdia do desenvolvimento mostra-se diretamente relacionada tempestade que empurra
para frente o anjo visto no quadro de Paul Klee. Da mesma forma, Cipriano Algor, principal
personagem de A Caverna , tambm se v imerso em uma tempestade operada pelo progresso,
fenmeno que tambm deixa para trs uma montanha de runas.
549
Deixaram a Cintura Agrcola para trs, a estrada agora, mais suja, atravessa a Cintura
Industrial rompendo pelo meio de instalaes fabris de todos os tamanhos, atividades
e feitios, com depsito esfricos e cilndricos de combustvel, estaes elctricas, redes de canalizao, condutas de ar, pontes suspensas, tubos de todas as grossuras, uns
vermelhos outros pretos, chamins lanando para atmosfera rolos de fumos txicos,
gruas de longos braos, laboratrios qumicos, refinarias de petrleo, cheiros ftidos,
amargos ou adocicados, rudos estridentes de brocas, zumbidos de serras mecnicas,
pancadas brutais de martelos de pilo, de vez em quando, uma zona de silncio, ningum sabe o que se estar produzindo ali (SARAMAGO,2000, p.13).
A considerar a relao que pode ser formulada entre as imagens aqui destacadas, a lembrana que surge, inicialmente, a do modelo de cidade-fbrica lembrado por Eric Hobsbawm (2012). Baseado na anlise de uma figura talvez no muito conhecida no campo da pesquisa
histrica, o professor alemo Ferdinand Toennies, o historiador ingls constri sua diferenciao entre as sociedades tradicionais e modernas no pela comparao entre as localidades
urbana e camponesa, mas sim pela contrastante relao percebida entre a cidade antiquada e a
cidade capitalista. Esta, por sua vez, apresenta-se como essencialmente comercial e, na medida
em que essa atividade domina o trabalho produtivo, logo se transforma em cidade-fbrica.
Dessa forma, como nos diz Hobsbawm a cidade era sem dvida o mais impressionante smbolo exterior do mundo industrial( HOBSBAWM, 2012, p. 319).
Mesmo que o posicionamento do autor citado em A Era do Capital origina-se da anlise
das ltimas dcadas do sculo XIX, mais especificamente 1887, salvo alguns desdobramentos,
este se mostra como uma formulao conceitual extremamente vlida ao enfrentamento do texto de Saramago. Isso prova tambm que as imagens apresentadas no romance, e isso j citamos
anteriormente, assumem a capacidade de serem entendidas como as legendas explicativas das
consequncias operadas pela ao progressiva da marcha moderna e sua destruio criativa3.
Nesse ponto, as relaes antitticas que elucidam a preponderncia do novo em relao ao velho e do artificial em substituio ao natural, expresses captadas em um outro nvel significativo que no o literal no mbito desses quadros imagticos, nos mostram como essa escrita por
imagens pode compreender a representao de extensos perodos de nossa histria.
Por meio dessas visualizaes, podemos compreender como a paisagem representada
mantm, em primeiro plano, traos da configurao socioeconmica que a determina, e como
as relaes de oposio que guiam parte das aes da trama marcam sua presena em um segundo plano de significaes. Algo parecido ocorre no momento em que pela primeira vez temos
3 Esse termo foi popularizado pelo economista austraco Joseph Schumpeter em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia para definir o carter de rompimento com velhas formas econmicas introduzido pelo capitalismo. Em Condio Ps-Moderna David Harvey utiliza esse conceito como pea chave para a compreenso da
modernidade.
550
acesso, novamente junto com o protagonista da narrativa, ao local que circunda seu lar e local
de trabalho.
Depois da Cintura Verde o oleiro tomou por uma estreada secundria, havia uns restos
esqulidos de bosque, uns campos mal amanhados, uma ribeira de guas escuras e ftidas, depois apareceram numa curva as runas de trs casas j sem janelas nem portas,
com os telhados meio cados e os espaos interiores quase devorados pela vegetao
que sempre irrompe dos escombros [...]. A povoao comeava a uns cem metros
alm, era pouco mais que a estrada que lhe passava ao meio, umas quantas ruas que a
ela vinham desembocar, uma praa irregular que fazia barriga para um lado s, a um
poo fechado com sua bomba de tirar gua e a grande roda de ferro, sombra de dois
pltanos (SARAMAGO 2000, p.28).
551
vas formas de emprego, mas sim somente para ter um lugar para morar. Isso faz do personagem
um tipo de sujeito no reinserido na nova formatao socioeconmica a qual se depara.
H ainda a presena na narrativa de um diferente grupo de indivduos, tambm no
reinseridos nessa nova ordem, e justamente por meio das descries do narrador que podemos
ter uma privilegiada viso da imagem construda em torno destes. A parcela territorial que completa a ambincia dos lugares de fora das bem protegidas entradas do Centro e seus arredores,
que abriga esses sujeitos, assim descrita pelo olhar detalhado do narrador:
Depois da Cintura Industrial principia a cidade, enfim, no a cidade propriamente dita,
esta avista-se l adiante, tocada como uma carcia pela primeira e rosada luz do sol ,
o que aqui se v so aglomeraes caticas de barracas feitas de quantos materiais,
na sua maioria precrios, pudessem ajudar a defender das intempries, sobretudo da
chuva e do frio, os seus mal abrigados moradores. , no dizer dos habitantes da cidade, um lugar assustador. De tempos a tempos, por estas paragens, e em nome do
axioma clssico que prega que a necessidade tambm legisla, um camio carregado
de alimentos assaltado e esvaziado em menos tempo do que leva a conta-lo (2000,
p. 14).
O mesmo Zygmunt Bauman, mais especificamente quando este, ao reconhecer que gradativamente o sistema capitalista passou da explorao para a excluso, identifica aquilo
que podemos definir como a consequente transformao do antigo bairro dos pobres, desdobramento por ele chamado de guetificao:
Numa palavra, a guetificao parte orgnica do mecanismo de disposio do lixo
ativado medida que os pobres no so mais teis como exrcito de reserva da produo e se tornam consumidores incapazes, e portanto inteis. O gueto no serve
como reservatrio de trabalho industrial disponvel, mas como um mero depsito
daqueles para os quais a sociedade circundante no faz uso econmico ou poltico
(BAUMAN,2001,p.108).
Bauman utiliza-se aqui da metfora do lixo para descrever a situao daqueles que,
como os moradores da regio das barracas vistos em A Caverna, nos mais se mostram teis
estrutura social posta, esta influenciada pela constante mudana nos meios de produo e gerao de capital.
Este mesmo grupo de indivduos, por sua vez, vem a se juntar destruio do trabalho
manual realizado em ambientes localizados fora do ambiente das grandes fbricas, representado na narrativa por meio do drama vivido por Cipriano Algor. Esses dois artefatos, somados
destruio e artificializao do espao natural, que embora sendo frutos de um aparente avano
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Mesmo que Fausto sinta ser essencial continuar movendo-se, as consequncias da modernidade vistas pela leitura de A Caverna parecem nos indicar o contrrio. Considerando a
dialtica das imagens em runas traadas por Saramago, vemos que as causas determinantes da
presena destas localizam-se ao longo de uma extensa linha temporal de nossa histria, visualizao fortalecida se dermos a essas imagens uma conotao alegrica que no se prenda a um
553
REFERNCIAS
AGUILERA, Fernando Gmez. Jos Saramago: a consistncia dos sonhos, cronobiografia.
Lanzarote: Editorial Caminho, 2008.
BERMAN, Marshall. Tudo que Slido Desmancha no ar. A aventura da modernidade. So
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurana no mundo atual. Rio de Janeiro:
Zahar, 200.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo:
Brasiliense,1985.
_____ . A Origem do Drama Trgico Alemo. Belo Horizonte: Autntica, 2011.
HOBSBAWM. Eric J. A Era do Capital. So Paulo: Paz e Terra, 2012.
KOTHE, Flvio. Para Ler Benjamin. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1976.
SARAMAGO, Jos. A Caverna. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.
554
555
Pensando nisso, sigo caminho aqui nesse trabalho, que apresenta as questes de escrita
de si e de memria, pensando no canal de transmisso utilizado pelos personagens, a internet,
mas tambm buscando informaes da caracterizao das personagens no cinema, foco de meu
trabalho.
Utilizo Michel Foucault para tratar da escrita de si, para a memria uso Jeanne Marie
Gaugnebin e tambm Ecla Bosi, que pensa a memria do idoso. Alm disso, Lipovetsky e
Serroy me ajudam a legitimar as personagens idosas no cinema.
O personagem que estou caracterizando j um idoso. Um homem que construiu sua
vida afastado de parte do passado, pois em determinado momento da vida, casado e com filha,
se envolve em outro relacionamento, vindo a abandonar mulher e filha. O novo relacionamento
no d certo e tenta nova aproximao da ex-mulher e filha, mas rechaado. Vivendo em
cidades diferentes, termina por no tomar mais conhecimento da vida e trajetria da filha.
Agora j com idade avanada, o personagem vive apenas com uma terceira esposa, sem
outras relaes de parentesco. Ao descobrir a existncia de um neto de 14 anos, Antnio v a
possibilidade de preencher de outra forma o momento final de sua vida. Os sentimentos que
esto em jogo nesse momento, dizem respeito viso natural e tradicional do idoso (fim da
vida, como dito), mas tambm esto relacionados com nova maneira que o idoso encarado em
nossa sociedade, ou seja, de uma fase da vida onde no mais uma espera pela morte, mas sim
fase ativa, com novas experincias, novas relaes interpessoais.
Ao tratar das fases da vida retratadas no cinema, Serroy & Lipovetsky (2010) em Ecr
Global afirmam que as obras cinematogrficas no se valem apenas de adultos para perfilar
personagens. Conforme os autores, no perodo hipermoderno, o cinema abrange todos os ciclos,
todas as etapas da existncia e todas as geraes tm direito de cidadania: so auscultadas e
colocadas em cena [...] j no o homem e a mulher medianos que interessam, mas o ser
singular, cuja primeira singularidade a da sua idade, em todas as idades (2010, p. 102).
A partir disso, os autores apontam que
a durao da vida cada vez maior e as normas em vigor no mundo da tradio j no
fazem sentido. Emancipado dos antigos controlos comunitrios e da influncia dos
modelos tradicionalistas ou religiosos, o indivduo tornou-se o ser principal e cada
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idade de sua vida, de repente, merece ser considerada por si mesmo como absoluta
[...] a criana j no espera, como antigamente, para ser adulto, e o velho quer viver
a sua idade, seja a terceira ou a quarta. O novo imperativo ser eu-prprio de uma
idade a outra (2010, p.103) [grifo dos autores].
E quanto aos velhos, os autores continuam afirmando que eles tambm no escapam da
individualizao, ressaltando que
Nas sociedades antigas, o ideal associado a este momento da vida era preparao
para a morte. J no mais assim. Doravante o velho um indivduo que se recusa
a suportar passivamente o peso da idade. Se ele j no objetivamente jovem, pelo
menos assume como seus os valores juvenis da atividade, do dinamismo, da forma
fsica. Antes a velhice era o momento, pelo menos idealmente, da aceitao das coisas
e do destino. Hoje, a terceira idade recusa que o futuro lhe seja obstrudo, que as
coisas estejam decididas. Mesmo em idade avanada, o indivduo quer continuar a
poder construir, a inventar ou mesma a refazer sua vida (SERROY & LIPOVETSKY,
2010, p. 107).
557
Falar de si a um leitor desconhecido to ou mais virtual do que o leitor virtual do textopapel , constitui um desabafo sem consequncias ticas palpveis e mensurveis.
Como toda escrita, esta tambm remdio e veneno, verdade e mentira, histria e
fico, que, lida ao acaso por um leitor casual, deixa marcas de si na virtualidade do
no lugar (Aug, 1992), no espao vazio das subjetividades que (re)colhem ao acaso
e por acaso fragmentos de si no outro e no outro de si. ( p. 44)
558
como cadernos de notas que, como afirma Foucault em si mesmos constituem exerccios
de escrita pessoal, podem servir de matria-prima para textos que se enviam aos outros. Em
contrapartida a missiva (texto destinado aos outros) d tambm lugar a exerccio pessoal (p.
145).
Se pensamos em vdeos criados por um av endereados a seu neto, no ser improvvel
pensar que em algum deles haver certo tipo de conselho, ou recomendao. Inclusive,
um vdeo em que aparea certo conselho, ser o desencadeador da revelao da presena
(ou ausncia) da filha. Explico melhor: nos vdeos criados pelo av h apenas a inteno de
comunicao com o neto. Mais adiante na histria, Leonardo tambm vai responder, em vdeo
e pela internet, ao av. Porm, em nenhum momento a filha de Antnio estar presente na fala
ou intenes dos vdeos. Isso ir mudar no momento em que Antnio, ao dar recomendaes
ao seu neto, vai perceber que quem deveria fazer isso era Andria. Foucault aponta sobre isso
ao dizer que na carta - enviada para auxiliar o seu correspondente constitui, para o escritor,
uma maneira de se treinar: tal como os soldados se exercitam no manejo das armas em tempo
de paz (p. 147), assim, esses conselhos seriam preparao para eventualidade semelhante.
Nesse momento, Antnio vai perceber que est pregando o dilogo entre me e filho, mas est
esquecendo o dilogo entre ele (pai) e sua filha.
Seguindo nessa ideia, Foucault diz que medida que progride, aquele que orientado
vai-se tornando cada vez mais capaz de, por seu turno, dar conselhos, consolar aquele que
tomou a iniciativa de auxiliar, e isso ir acontecer nos momentos finais da histria, onde o neto
vai perceber a necessidade de uma comunicao completa, entre os trs personagens (ele, sua
me e seu av).
Ainda que separados no espao, e de certa forma, no tempo, esses personagens esto
comunicando-se. Foucault afirma que
escrever pois mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto prprio junto ao outro.
E deve-se entender por tal que a carta simultaneamente um olhar que se volve para
o destinatrio (por meio da missiva que recebe, ele sente-se olhado) e uma maneira de
o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a
carta proporciona um face-a-face (1992, p.150).
559
servirem de carta, esto pedindo uma resposta do neto. Quando o av conta fatos do passado,
ainda assim, em algum momento ele provoca a reao do neto, ele pede a presena do neto
naqueles lugares de memria.
E por isso que trago a noo de espaos de memria, apresentada por Ecla Bosi. A
autora pensa a Memria e sociedade, ressaltando a lembranas de velhos. Bosi diz que dos
jovens se espera produo, dos velhos no, dos velhos se espera lembranas. Faz referncia
tambm a certa funo social da memria, quando diz que
A criana recebe do passado no s os dados da histria escrita; mergulha suas razes
na histria vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte na
sua socializao. Sem estas haveria apenas uma competncia abstrata para lidar com
os dados do passado, mas no a memria.
Enquanto os pais se entregam s atividades da idade madura, a criana recebe
inmeras noes dos avs, dos empregados. Estes no tm, em geral, preocupao do
que prprio para crianas, mas conversam com elas de igual para igual, refletindo
sobre acontecimentos polticos, histricos, tal como chegam a eles atravs das
deformaes do imaginrio popular. (BOSI, 1994, p. 74)
Tratando mais precisamente dos espaos de memria, Bosi fala da casa, das pedras da
cidade, dos objetos e sua distribuio no espao (como por exemplo a mesa da sala de jantar e a
posio que cada membro da famlia ocupava). Em um dos vdeos de Antnio, ele vai percorrer
os trilhos do trem que ainda existem sobre a Ponte Internacional Mau, que liga a cidade de
Jaguaro, no Rio Grande do Sul, onde Antnio nasceu, viveu sua infncia e onde voltou a viver
depois de aposentado, com a cidade de Ro Branco, no Uruguai. Em determinado momento
Antnio recorda do som do trem. Bosi diz que a memria no se restringe ao visual, que nossas
lembranas esto povoadas de sons (p. 445).
A realizao dos vdeos uma tentativa de comunicao com o neto. A vontade de
Antnio que o neto veja o quanto antes e o responda, e mais do que isso, que queira ou possa
realmente encontr-lo. Porm, mesmo com inteno de encontrar-se com o Leonardo, Antnio
sabe da possibilidade de isso no acontecer. Nesta hiptese, os vdeos serviam ento, para
guardar a sua imagem, sua memria e serviriam como documento de sua inteno em conhecer
Leonardo. Desta forma, mesmo que apenas aps sua morte o neto encontre os vdeos, estes
sero documentos memorialsticos e uma carta de vontades de Antnio. Nesse sentido, Antnio
parece estar de acordo com o que diz Jeanne Marie Gagnebin lutar contra o esquecimento e a
denegao tambm lutar contra a repetio do horror (2009, p. 47). Neste caso, o horror o
de ser esquecido, ou mesmo rechaado.
Quando a filha de Antnio descobre os vdeos vai tentar mostrar ao filho que aquele
560
av que parece ser to interessante, foi uma pessoa que fez mal a ela, a abandonou. Gagnebin
diz que a preocupao com a verdade do passado se completa na exigncia de um presente
que, tambm, possa ser verdadeiro. Sendo assim, tanto o neto de Antnio, como sua filha, iro
perguntar-se sobre quem Antnio, aquele que abandonou a famlia no passado, ou este que
quer aproximar-se da famlia, no presente?
Gagnebin traz o conceito de rastro, que Bosi apresenta de forma prtica em seu estudo.
Bosi fala dos objetos dizendo que quanto mais votados ao uso cotidiano, mais expressivos so
os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com
as mos, tudo perde as arestas e se abranda (BOSI, 2010, p. 441). Para Gagnebin, a noo de
rastro mantm juntas a presena da ausncia e a ausncia da presena. A autora se pergunta
por que a reflexo sobre a memria se utiliza tanto do conceito de rastro, respondendo que a
memria vive essa tenso entra a presena e a ausncia, presena do presente que se lembra do
passado desaparecido, mas tambm presena do passado desaparecido que faz sua irrupo em
um presente evanescente (GAGNEBIN, 2009, p. 44).
O rastro est presente no roteiro que venho escrevendo, principalmente quando em
determinado momento da histria o neto vai at a cidade de Jaguaro, em busca de conhecer o
v, e passa por alguns lugares retratados nos vdeos. Um deles o j citado trilho do trem na
ponte. Quando o neto e dois amigos esto atravessando a ponte, eles usam a memria do av
(que disse em seu vdeo que na infncia colocava o ouvido nos trilhos para ouvir a chegada do
trem) misturado com suas prprias memrias de um filme norte-americano que traz um grupo
de amigos atravessando os trilhos do trem sobre uma ponte. O neto e os amigos fingem estar
ouvindo o barulho do trem (som presente na memria de Antnio) e fogem pelos trilhos, como
fizeram os protagonistas do filme que eles assistiram.
Concluo ento, ressaltando que esta pesquisa est em andamento, demandando, como
prximos passos, mais leituras e reflexes sobre a escrita de si, pacto autobiogrfico, uso de
internet entre outros aspectos. Porm, j possvel caracterizar o personagem Antnio com
base na busca que ele se dispe a fazer. Sua finalidade principal a de encontrar o neto, sendo os
vdeos uma oportunidade de mostrar-se, de revelar-se desejoso do encontro, da futura vivncia.
Porm, ainda que no alcance o objetivo de conhecer o neto, os vdeos que produz podem ser
uma herana imaterial, documento de suas memrias, seja para o neto, ou para qualquer outro
leitor.
Escrita de si e memria constroem esse personagem, que embora idoso, no esteja
apenas esperando a vida chegar ao fim. Como apontado, a ao de lembrar e de falar de si no
um ponto final, ao contrrio, a ferramenta que visa permitir um novo incio. O incio de uma
nova fase de vida, com a presena do neto.
561
REFERNCIAS
BOSI, Ecla. Memria e sociedade: Lembranas de velhos. So Paulo: Companhia das Letras,
1994.
CORACINI, Maria Jos R. F. A escrita de si na internet: histrias ao acaso e o acaso das
histrias. IN SCHONS, Carine Regina e RSING, Tnia M. K. (Orgs). Questes de Escrita.
Passo Fundo: UPF Editora, 2005
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que um autor? Lisboa: Passagens. 1992.
GAGNEBIN. Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. So Paulo: Editora 34 Ltda., 2006.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. O ecr global. Lisboa: Arte & comunicao, 2010.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: A construo do personagem. So Paulo: Editora tica,
1989.
562
Consideraes iniciais
No fim da dcada de 1920, Alberto Coelho da Cunha1 (1853-1939), j publicava no jornal
Opinio Pblica uma srie de artigos nos quais buscava descrever a forma como a vida cultural,
poltica e econmica da pequena freguesia de So Francisco de Paula vinha se desenvolvendo.
Como explica Eduardo Arriada:
Apesar do trabalho s ter sido publicado em 1928, a maior parte do mesmo foi escrita
em 1908, conforme observao do prprio autor: A nossa terra que j h 73 annos
subio suprema categoria de cidade (...). Esse trabalho passou a ser fonte obrigatria
de referencia sobre Pelotas, sendo inclusive glosado trechos imensos por outros
autores (ARRIADA, 1994, p.10).
Notadamente, estes artigos, assim como os publicados por Joo Simes Lopes Neto na
Revista do 1 Centenrio de Pelotas (1911-1912), vieram a ser as principais fontes de pesquisa
do professor Fernando Lus Osrio Filho quando este assumiu a tarefa de reunir a histria da
cidade em livro. O resultado uma das obras mais recorridas ainda hoje pelos pesquisadores de
qualquer aspecto da histria do municpio, A cidade de Pelotas (1922), um panorama geral da
histria desta cidade at a poca de edio, com reedies em 1962 e em 1997.
Estes primeiros esforos, assim como os que os sucederam, cumprem uma funo
essencial ao resgatarem personagens e obras que, embora tenham um papel importante no
processo de formao cultural e literrio de Pelotas, foram sendo relegadas ao esquecimento.
1 Segundo Pedro Villas-Bas (1974, p.155), Alberto Coelho da Cunha conhecido tambm como Vtor Valprio,
seu principal pseudnimo foi um cronista e contista pelotense, membro do Partenon Literrio e diretor do Arquivo da Prefeitura Municipal.
563
Ao consult-los, foi possvel perceber que praticamente todos estabelecem como ponto de
partida a segunda metade do sculo XIX, quando se iniciaram as atividades de imprensa nesta
cidade, de modo que se compreende uma significativa lacuna na histria da literatura e da
cultura pelotenses. supresso de tal lacuna que este trabalho visa contribuir, atravs da
reunio de informaes dispersas ao longo das primeiras dcadas, a partir do que foi registrado
em inventrios de antigos moradores da cidade, nas notcias enviadas aos jornais da poca, nas
primeiras publicaes e no incio da imprensa local.
No princpio...
Embora envolta em diversas contradies, sobre a Histria de Pelotas pode-se inferir,
a partir dos documentos existentes, que a chegada de habitantes da ento Vila do Rio
Grande causada pela ocupao castelhana em 1763 e da Colnia do Sacramento,
a poltica de assentamento de casais aplicada pelo ento governador, assim como o
crescimento das charqueadas e da atividade agropastoril, teriam sido os principais
fatores que deram origem povoao da freguesia de So Francisco de Paula
(MONQUELAT; MARCOLLA, 2012).
564
parquia So Francisco de Paula, da qual foi o primeiro proco. Hiplito Jos (1774-1823) e Jos
Saturnino (1771-1852) fizeram parte de um pequeno grupo de jovens desta regio que na poca
frequentou a Universidade de Coimbra (MORAIS, 1940, p.197). Hiplito, posteriormente, em
Londres, tornou-se editor do primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense, recebendo por
este feito o ttulo de patrono da imprensa brasileira.
Alm de ter demonstrado reconhecer valor na aquisio do conhecimento e na formao
acadmica ao financiar a educao dos sobrinhos, o padre doutor tambm mantinha algumas
obras, que foram listadas em seu inventrio, em 1815. Alm de um jogo de brevirios velhos, foi
encontrado entre os livros do padre um calepino2, um grande dicionrio da lngua latina. Jorge
de Souza Arajo (1999) comenta a correspondncia que constatou entre os livros permitidos
pela Real Mesa Censria e os que foram mais lidos no sculo XVIII no Brasil. Dentre tais,
destaca a popularidade do clebre dicionrio de Ambrosio Calepino (1435-1511) (ARAJO,
1999, p.107).
Segundo Telmo Verdelho (2000), o padre Bento Pereira (1605-1681) comenta a
importncia do Calepino para a elaborao de Prosdia, assim como de outras de suas obras.
No obstante, no inventrio do padre doutor consta tambm uma prosada de Bento Pereira
no identificada, que provavelmente se trate da prpria Prosdia, a obra mais representativa
da dicionarstica dos jesutas, tendo recebido uma primeira publicao em 1634 e sucessivas
reedies at 1750. Alm dessas obras e de outros dois ttulos desconhecidos atualmente, um
tomo de Justino Febrnio3 compunha a biblioteca do padre.
Logo, pode-se perceber uma preocupao com o domnio e com o estudo da lngua,
j que o Calepino deu, em parte, origem lexicografia autorizada, em que se textualiza a
informao lexicogrfica recorrendo s explicaes e s citaes de autores reconhecidos; alm
de ser uma das bases para a produo das obras de Bento Pereira, sacerdote catlico, que
assim como Justino Febrnio teve alguns de seus escritos indexados como proibidos pela
Igreja. A presena dessas obras na biblioteca de Mesquita e da relao entre seus autores, visto
que ambos estimularam, cada um a seu tempo e de sua forma, o processo de secularizao,
indicam seu interesse pelo pensamento que se apresentava em oposio ao da Igreja na poca.
Como reflete Arajo (1999, p.38), mesmo diante dos mecanismos de controle por parte
do Estado, registram-se algumas subverses ideolgicas. Muitos desses livros defesos entraram
no Brasil e forneceram elementos de reflexo e desenvolvimento da inteligncia nativa. O
autor demonstra a presena de diversos ttulos que constavam na lista de obras indexadas pela
2 Todas as referncias a obras indicadas nos inventrios tero suas grafias mantidas tal qual encontram-se nas
fontes e aqui destacadas em itlico.
3 Justino Febrnio era o pseudnimo de Johan Nikolaus von Hontheim (1701-1790), bispo de Trveris e um dos
principais fomentadores do galicanismo na Alemanha e demais pases europeus.
565
Igreja e/ou pelo governo, como o Paralelo dos costumes deste seculo, correspondente a um
dos dez volumes da traduo castelhana, de 1827, do Ensaio sobre os costumes e o esprito das
Naes (1756), do iluminista Voltaire (1694-1778), pertencente biblioteca do inventariado
Incio Jos Bernardes, falecido igualmente em Pelotas.
Na expectativa de revelar o perfil do leitor colonial brasileiro, Arajo recolheu
informaes de inventrios e testamentos de diversas provncias do Brasil. Da regio, poca
freguesia de So Francisco de Paula, Arajo encontrou dez inventariados.
Embora que de cinco desses, s constem indicaes vagas como 12 livros velhos de
varios autores ou 17 livros de varios autores truncados (ARAJO, 1999, p.293), a partir
do inventrio de Manoel Vieira (1825), foram registrados alguns ttulos ou ao menos reas de
interesse dos inventariados Tereza Anglica de S (1828), Incio Jos Bernardes (1838), David
Pamplona Corte Real (1846) e Toms Francisco Flores (1847). Alm destes, pode ser includo
a esta lista o nome de Flix da Costa Furtado de Mendona, cunhado do padre doutor, que,
segundo Arajo, teve seu inventrio registrado em Rio Grande, porm pode ser apontado na
regio que poca correspondia a Pelotas durante suas ltimas trs dcadas de vida.
Um dos ttulos citados nesses inventrios o Cmara tica, onde as vistas s avessas
mostram o mundo s direitas, publicado em 1824 pelo portugus Jos Daniel Rodrigues da
Costa (1757-1832). Nesta obra, notvel a preocupao do autor em manter a ordem social
vigente por meio de crticas morais em tom satrico. Outra obra de cunho literrio indicada,
embora sem referncia a um ttulo, um exemplar de Cavalaria, gnero que apresenta
algumas caractersticas semelhantes s da obra de Costa.
No que tange s biografias citadas em inventrios de moradores de Pelotas, destaca-se
inicialmente a Vida de Camoens, obra que teve duas edies publicadas pelo padre Toms
Jos de Aquino, em 1779 e em 1780, na oficina Luisiana em Lisboa. Nessa obra, alm das
informaes biogrficas, o autor pretendeu incluir a produo de Cames em sua totalidade,
demonstrando a importncia que tal poeta portugus tinha entre os literatos brasileiros e que sua
repercusso chegava inclusive no extremo sul brasileiro.
Em posse de David Pamplona Corte Real, encontrava-se um exemplar da Historia de
Carlos XII, de Voltaire, traduzido para o portugus por Manuel Monteiro em 1739. Nele, o
iluminista francs, opositor do absolutismo e defensor da reforma social, apresenta uma crtica
guerra, ao mesmo tempo em que apresenta um lder corajoso e enrgico, de posse de todas as
virtudes necessrias para, diante dos padres da poca, ser reconhecido como um heri. As obras
de Voltaire tiveram forte influncia sobre importantes pensadores tanto da Revoluo Francesa
quanto da Americana. Interessante observar que essa biografia em especial j se encontrava
na biblioteca de um morador local durante os dez anos da Revoluo Farroupilha, podendo-se
inferir disso que os livros influenciaram parte do ideal que tomou conta do estado durante esse
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conflito.
Entre os ttulos de Histria encontram-se uma Histria de Portugal, uma Historia
do imperio da Rucia em dois volumes, uma Historia georgiana, a Monarchia de Napoleo e
a Descrio da cidade do Porto. A presena deste tipo de obra indica o interesse dos leitores
do perodo pela histria e pela cultura de outros povos, revelando que existiam moradores de
Pelotas e regio, mesmo nesse perodo de guerras e revolues, atentos ao que se passava no
centro do pas ou mesmo da Europa.
Outra interessante obra listada por Arajo foi o Tratado da educao, obra de
Almeida Garret (1799-1854) publicada em 1829, na qual, em clara aluso a Emlio ou Da
educao (1762) de Jean-Jacques Rousseau, Garret apresenta de forma irnica como deveria
comportar-se a jovem rainha D. Maria II que, exercendo uma posio reservada aos homens,
estaria contrariando as leis de Deus e da natureza, quais sejam, de que se ativesse s funes
de procriar e criar os filhos. A presena desta obra na biblioteca de David Pamplona Corte Real
possibilita-nos deduzir que o mesmo esteve atento s discusses das polticas educacionais
realizadas no Brasil de ento.
No inventrio de Corte Real h tambm um exemplar de Elementos de Chimica,
publicado em Lisboa no ano de 1788 pelo cientista brasileiro Vicente Coelho de Seabra Silva
Telles (1764-1804), que apresenta uma ruptura com o modelo do alemo Georg Ernst Stahl
(1659-1734) e sua adeso s ideias do francs Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794),
considerado o pai da Qumica moderna.
Ao observar estes ttulos, percebe-se um perfil de leitor consonante com as tendncias da
poca, ou seja, tem alguma coisa de sentido prtico, aliada curiosidade histrica, Poltica,
Geografia e s Cincias naturais (ARAJO, 1999, p.294). Pode-se constatar que ao menos at a
primeira metade do sculo XIX prevalecia o interesse por obras instrutivas e pelo conhecimento
da Histria, seja de outros povos e naes, seja de grandes personalidades.
Dos textos relacionados, poucos poderiam ser classificados como literrios, o que indica
um perfil de leitor voltado s transformaes polticas que assolavam o pas, tais como os
impactos da Revoluo Francesa (1789-1799) e as influncias do Iluminismo na economia,
nas artes, na educao, na poltica e na concepo de cidado. Nesse perodo marcado pelo
gradativo enfraquecimento da Igreja e pelas mudanas decorrentes da chegada da famlia real
no Brasil, em 1808, questes como a diviso em trs poderes e o liberalismo econmico e
poltico pareciam estar em voga entre os pelotenses.
A presena destas obras aponta para a existncia de uma cultura letrada j neste perodo,
fator tambm referenciado por diversos viajantes que ainda no sculo XIX passaram pela regio
e registraram detalhes e impresses sobre a Pelotas da poca, como John Luccock, em 1809,
o ento bispo do Rio de Janeiro Jos Caetano da Silva Coutinho, em 1815 (MAGALHES,
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Pode-se perceber, nas memrias de Seidler, alguns primeiros registros que apontam para
a vida cultural da localidade. Ao referir-se s mulheres pelotenses, o alemo comentou que, em
geral, todas tocavam algum instrumento, principalmente o piano que se encontra em todas as
boas casas, alm de que muitas falam um pouco de francs, como tambm na maioria danam
muito bem (SEIDLER, 1976, p.94).
Auguste de Saint-Hilaire (1779-1859), durante o perodo que esteve em So Francisco
de Paula, em 1820, hospedou-se na residncia de Antnio Jos Gonalves Chaves (1779?1836), portugus que chegou ao Rio Grande em 1805 e que, em 1810, havia fundado margem
do Arroio Pelotas a charqueada So Joo. Sobre Chaves, Saint-Hilaire registrou, em seu dirio,
que era um homem culto, que sabe latim, francs, com leitura de Histria Natural e conversa
muito bem (SAINT-HILAIRE, 2002, p.111). Destaca tambm que Chaves, que iniciou como
simples caixeiro, possui, hoje, uma fortuna de seiscentos mil francos (SAINT-HILAIRE, 2002,
p.113-114). Logo, possvel inferir que a riqueza acumulada por Chaves que lhe permite
dedicar-se a atividades culturais, diferenciando-o da maioria dos habitantes da cidade. Como
afirma a pesquisadora pelotense Glenda Dimuro Peter (2007, online), os charqueadores tinham
vrios momentos de cio e lazer, visto que a safra das charqueadas era curta (de novembro a
abril), e teve como resultado estilos de vida urbanos.
Entre 1817 e 1823, Gonalves Chaves redigiu e publicou cinco livretos, aos quais
chamou Memrias ecnomo-polticas sobre a administrao pblica do Brasil, a primeira obra
de um autor local, onde apresenta informaes organizadas e apontamentos detalhados acerca
da situao social e econmica do Brasil, seu desenvolvimento e suas limitaes, revelando a
ateno de um morador de So Francisco de Paula s questes que estavam pautadas em todo
o territrio brasileiro.
Alm dos dados organizados por Chaves, outras informaes podem ser obtidas a partir
da leitura de sua obra, j que ao longo de seu texto, o autor deixou uma srie de referncias que
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indicam alguns rastros dos livros4 que leu ou com os quais teve contato. Chaves referencia a
obra de Aristteles (384-322 a.C.), vida de Aristides de Atenas (535-468 a.C.), do rei Carlos
II (1630-1685) da Inglaterra, entre outros, assim como faz meno a fatos e personagens
histricos, ao contexto scio-poltico de outros pases, mostrando-se bem informado quanto
poltica mundial. Ao apresentar alternativas para a questo das terras incultas e refletir sobre
os procedimentos de Portugal, Chaves novamente recorre, com propriedade, a exemplos de
cidades (colnias) da Grcia formadas a partir de emigraes, as quais nunca sofreram do
estado grego a represso de seus direitos originrios tal como se dava no Brasil (CHAVES,
2004, p.110-112).
Para tratar de temas que se faziam urgentes, abordou tambm a posio de importantes
economistas, agrnomos, filsofos e polticos da poca, dentre eles: Arthur Yong (17411820), Benjamin Franklin (1706-1790), Francisco de Melo Franco (1757-1823); referiu-se
positivamente ao filsofo iluminista Charles de Montesquieu, demonstrando intimidade com
o pensamento do mesmo. Para introduzir suas reflexes sobre a escravatura, Chaves tambm
retomou alguns modelos histricos, fez referncia Histria da Polnia e aos conflitos que
envolveram as diversas partilhas de seu territrio ao longo do sculo XVIII.
O autor apresenta uma citao direta da Histria poltica, do historiador e filsofo
francs Guillaume Raynal (1713-1796), personagem influente no contexto da Assembleia
Constituinte da Revoluo Francesa, e uma do Ensaio sobre os melhoramentos de Portugal e
Brasil, de Soares Franco, publicado em Portugal em 1820, demonstrando, logo, sua atualizao
intelectual. O mesmo ocorre na quinta memria, Sobre a Provncia do Rio Grande de So
Pedro em particular, na qual o autor cita obras que tratam da realidade local, tais como os
Anais da Provncia de So Pedro (tomo II, cap. 12 e 13) e o Corografia Braslica, publicado
em 1817, no Rio de Janeiro, pelo padre Francisco Aires de Casal (1754-1821), artigos escritos
por Gomes Freire de Andrade Corte entre abril de 1754 e maio de 1756, alm de documentos
que foram apenas mencionados.
Chaves destaca tambm a ausncia de investimentos em instruo por parte do imprio
nesta Provncia e conclui que estas questes repercutiram na falta de homens de letras na regio
j que, segundo ele, no nos consta que haja mais de trs homens formados, naturais desta
provncia e quatro meninos em Coimbra (CHAVES, 2004, p.258).
A partir destes dados, possvel dimensionar um pouco a cultura deste homem que viria
a estabelecer-se como um dos principais nomes da elite intelectual e econmica pelotense da
poca e integrar os principais espaos de deliberao e encaminhamento da vida da regio.
4 Sobre a biblioteca de Gonalves Chaves, Joo Simes Lopes Neto (1911) afirma que existe na Biblioteca
Publica Pelotense e foi doada pelos netos de Chaves, por intermedio do dr. Bruno G. Chaves. Cf. Revista do 1o
Centenrio de Pelotas, 15 out. 1911, p.8.
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com 30, de forma que, no total, estavam sendo atendidos 49 meninas e 246 meninos, dos quais
21 eram ensinados gratuitamente. Ao final da exposio da condio em que se encontravam
alunos e professores na vila, a Comisso solicitava que fosse construda na mesma uma casa
para a aula de primeiras letras para meninos e para meninas, custa do governo.
Assim, possvel perceber o quo excludente era o sistema educacional da poca.
Embora houvesse professores capacitados, a falta de investimento pblico na educao era
tanta, que, de um total de 295 alunos, s 21 no pagavam.
Por outro lado, havia na vila uma srie de professores oferecendo aulas particulares.
Em um anncio de 18 de maro de 1833, Jos Joaquim Lodi oferece suas aulas de piano forte e
canto, alm da classe de Msica vocal e instrumental no colgio de Joo Ladislau de Figueiredo
Lobo. O engenheiro Ernesto de Kretschamar, em anncio de 6 de maio de 1833, prope-se a
ensinar Belas Artes para a mocidade, afirmando que suas aulas seriam reguladas pelo ltimo e
melhor mtodo estabelecido na Europa. Em 26 de fevereiro de 1835, ofereceram seus servios
Caetano Ricciolini, apresentando-se como mestre de dana, e Izabel Ricciolini, que se dispe a
ensinar meninas a ler e escrever, alm de costurar e danar.
A dana, assim como a msica, a literatura e o teatro eram expresses artsticas muito
presentes nas comemoraes cvicas em So Francisco de Paula. Durante os anos registrados
pelO Noticiador, houve comemoraes pelo nascimento do imperador D. Pedro II, em 2 de
dezembro, pelo descobrimento do Brasil, em 3 de maio5, e pela abdicao de D. Pedro I, em 7
de abril, considerada a segunda independncia do Brasil, entre vrias outras.
Nestas ocasies, a programao iniciava na vspera, quando os moradores iluminavam
suas casas e, em geral os mais jovens, percorriam as ruas tocando e cantando o Hino Nacional,
entre Vivas! ao fato comemorado. Na data em si a programao iniciava ainda pela manh na
Igreja Matriz com a celebrao do Te-Deum. Durante a tarde, ocorriam torneios ou apresentaes
em praa pblica era comum o espetculo de cavalhadas. Pela noite, no teatro, cantava-se o Hino
Nacional, era recitado um elogio, representado um drama, sendo os intervalos preenchidos com
a recitao de obras poticas, tais como odes, hinos e sonetos. Por fim, era comum encerrarem
as comemoraes com a apresentao de peas curtas e cmicas, oras tratadas por entremezes,
ora por farsas jocosas.
O Noticiador do dia 4 de maio de 1832 (p.141-142) descreve as comemoraes do dia
7 de abril realizadas no teatrinho de mesmo nome6. Sobre as comemoraes da Independncia
5 A Carta de Pero Vaz de Caminha foi guardada em Lisboa, na Torre de Tombo, onde permaneceu ignorada at
1817, quando foi publicada pela primeira vez em Corografia Braslica, do padre Aires do Casal. S a partir de
ento que se soube que a expedio liderada por Pedro Alvares Cabral no havia chegado ao Brasil no dia 3 de
maio, mas sim em 22 de abril.
6 Embora s tenha sido inaugurado em dezembro 1833, o Teatro Sete de Abril foi fundado em 1831 funcionando em um galpo desativado na esquina das ruas Anchieta e Major Ccero , mesmo ano em que comearam as
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poticos localizados nO Noticiador enviados de So Francisco de Paula, dez eram seus e outros
cinco eram de seus alunos, L. S. Flores e Antnio Jos Caetano da Silva Filho.
Como poeta, Domingues esteve atento s principais questes polticas e sociais que
interferiam diretamente na vida da populao, transportando para sua arte reflexes emergentes.
Porm, no era apenas atravs da literatura que revelava seu engajamento, j que ele foi membro
eleito para o Conselho da Sociedade Defensora da Liberdade e Independncia Nacional da vila
por diversos mandatos (O NOTICIADOR, 7 fev. 1832, p.38; 29 abr. 1833, p.551).
A edio de 4 de abril de 1833 d'O Noticiador (p.525-526) apresenta a transcrio de
uma ode de Domingues que havia sido publicada no Propagador da Indstria Rio Grandense.
Na referida ode, o eu-lrico apresenta-se entusiasmado com a chegada da indstria Provncia e
caracteriza-a como a esperana de desenvolvimento para um mundo conflituoso e sombrio. Ao
comentar a ode, o editor afirma que no se pode negar o merito ao Sr. Antonio Jos Domingues a
sua linguagem expressiva, o seu estilo energico, e o seu gosto sublime [...] (O NOTICIADOR,
4 abr. 1833, p.526). A opinio explicitada pelo editor, assim como a disposio de publicar, ao
menos uma dezena de textos poticos de Domingues em seu peridico, revelam que este j era
reconhecido e valorizado por seus contemporneos como poeta e por sua contribuio cultura
da poca.
A receptividade d'O Noticiador para publicao das peas recitadas em Pelotas, motivou
Hum Rio-Grandense, pseudnimo de um desconhecido, a enviar ao redator quatro textos
poticos. Um naturalmente de autoria de Domingues, porm os outros trs um soneto e dois
poemas revelam pela primeira vez, dentre o acervo pesquisado, um segundo poeta em Pelotas:
Antnio Jos Caetano da Silva Filho (Jaguaro, 1817 - Rio de Janeiro, 1865), um jovem aluno de
Antnio Jos Domingues, integrado causa poltico-social e membro da Sociedade Patriotica
dos Jovens Brasileiros.
Outro poema de Antnio Jos Caetano da Silva Filho viria a ser publicado em outubro
do mesmo ano, por razo do assassinato do padre Bernardo Jos Viegas, em Rio Grande. Silva
Filho e seu colega L. S. Flores, alunos de gramtica latina de Antnio Jos Domingues, haviam
sido tambm alunos de Viegas e por esta razo homenagearam o recm-falecido mestre.. A
publicao sistemtica de poemas de autoria de Domingues, assim como os de alguns de seus
alunos, serve como amostra de parcela da cultura letrada existente em Pelotas antes mesmo da
primeira tipografia se estabelecer na cidade.
Lamentavelmente, nos anos de 1834 e 1835, pouqussimas informaes acerca das
atividades culturais da localidade foram encaminhadas para publicao n'O Noticiador.
Os ltimos poemas enviados de Pelotas para publicao, em 15 de dezembro de 1834,
em comemorao ao aniversrio de D. Pedro II, eram de autoria de Mateus Gomes Viana
(1809-1839). De acordo com as informaes constantes em sua nota biogrfica na Revista do
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mesmo equvoco.
Uma referncia anterior foi localizada no Anurio da Academia Politcnica do Porto
dos anos de 1877-1878, que apresenta uma lista dos lentes e diretores da Academia da Marinha
e Comrcio da Cidade do Porto, com breves informaes biogrficas acerca de cada um. Dentre
os referidos, encontra-se Antnio Lus Soares (Porto, 1805-1875), nomeado lente do 1.o anno
mathematico desta academia por decr. e carta reg. de 31 de dezembro de 1836 (1878, p.250).
Aps dez anos neste cargo, Soares integrou a Junta do Porto e, aps a Conveno de Gramido
em 1847, veio para o Brasil, tendo fundado um colgio em Pelotas.
Sobre este colgio, Monquelat e Pinto (2013) encontraram diversos anncios no jornal
O Rio-Grandense entre os anos de 1848 e 1849. Segundo os pesquisadores, na edio de 18 de
abril de 1848, eram divulgadas as disciplinas oferecidas no colgio, destacando a importncia
para a formao dos alunos e recorrendo experincia de seu diretor como garantia, o qual
teria sido lente de uma das academias politcnicas da europa (MONQUELAT; PINTO, 2013,
p.1). Tal colgio estaria provisoriamente situado na rua Alegre, na casa de Cipriano Rodrigues
Barcellos, um dos Membro da Comisso do exame das Aulas de Primeiras Letras da Vila de
So Francisco de Paula em 1832 (Correspondncia ao n. 40 dO NOTICIADOR, 29 maio 1832,
p.171).
Em anncio do dia 4 de julho de 1848, notificada a transferncia do colgio para um local
mais apropriado: a casa de Candida Flores, prxima ao arroio Santa Brbara (MONQUELAT;
PINTO, 2013, p.6). No mesmo anncio, foi informado que j estavam disponveis as aulas de
primeiras letras, Gramtica da lngua nacional, Aritmtica e Geometria, princpios de Mecnica
e de Fsica, Desenho linear de figura e relativo s Artes, Geografia e Lngua francesa, abertas a
pensionistas, meio-pensionistas e externos.
Tal instituio, que at ento era tratada por Colgio de meninos na cidade de Pelotas,
na sesso A pedido, de 29 de julho do mesmo ano, recebia a denominao de Colgio de Santa
Brbara (MONQUELAT; PINTO, 2013). Os autores afirmam que ainda nas edies de 11 e
18 de maio, foi publicada a diviso dos estudos do programa deste colgio com justificativas
acerca da relevncia de cada uma e, mais de um ano mais tarde, em 10 de novembro de 1849,
dois anncios informavam a inaugurao das aulas de Latim, que ainda no eram oferecidas, e
a venda da obra Exposio dos elementos de aritmtica para o uso dos estudantes do colgio
de Santa Barbara na cidade de Pelotas, disponvel na loja de Daniel de Barros e Silva, na rua
da Praia (MONQUELAT; PINTO, 2013).
Em 1851, Antnio Lus Soares regressou para Portugal. Ao final de sua biografia
apresentada no Anurio (1878), j consta uma referncia a essa obra, publicada em 1848 em
uma tipografia pelotense.
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Princesa dos Campos do Sul (In: IBGE, 1959, p.40). Aps a publicao e conhecimento dos
pelotenses, tornou-se corrente essa expresso e o termo foi inclusive includo no braso da
cidade, elaborado em 1961, em razo dos 150 anos de Pelotas.
Esta verso citada por Euclides Franco de Castro, editor do peridico Princeza do Sul,
em 1951; apresentada na Enciclopdia dos municpios brasileiros, em 1959 e simplesmente
reproduzida na proposta de material didtico Pelotas: sua Histria e sua gente, de Znia de
Len, em 1996. Anos mais tarde, pertencente a uma vertente crtica da histria da cidade, o
pesquisador Ado Monquelat, em um artigo publicado no jornal Dirio Popular, questionou tal
verso. Monquelat (2000) destacou que a referncia feita no to clara, visto que a expresso
s aparece no ltimo verso e, ainda assim, intercalada com outras palavras.
Ao se pronunciar sobre a questo, Mario Osrio Magalhes afirmou: segundo entendo, a
palavra [sic] Princesa do Sul surgiu espontaneamente, e foi adotada pela comunidade, na segunda
metade do sculo 19, incorporando-se desde logo ao imaginrio pelotense (MAGALHES,
2012, online). Tal inferncia foi confirmada neste estudo.
Atravs de pesquisas em material digitalizado da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro),
foi possvel acrescentar uma informao que contradiz a tradicional verso, j que o exemplar
de 6 de janeiro de 1860 do Brado do Sul trs anos, portanto, antes da publicao da poesia de
Antnio Soares da Silva apresenta uma poesia sem ttulo assinada por um correspondente de
Jaguaro, sob o codinome Alibab, que fazia uma referncia direta e objetiva a Pelotas como
a Princesa do Sul, como pode-se observar no trecho que segue: Que bela manh fagueira e
risonha/ Offereces, oh tu princesa do Sul/ Tuas bellas campinas, teu todo mencantam./ gentil
o teu co, gentil seu azul! (BRADO DO SUL, 6 jan. 1860, p.1).
Mario Magalhes (1993, p.106-107) comenta que o apelido da cidade ganhou to grande
popularidade, na dcada de 1880, que foi utilizado como nome para um bazar. Tambm, no
carnaval de 1882, o jornal pelotense Correio Mercantil apresenta a descrio do desfile dos
carros alegricos organizado pelo Clube Demcrito.
Deste modo, tal representao foi sendo reproduzida em diversos momentos e compondo
o tom narrativo empregado na construo discursiva que, ao longo das dcadas, foi dando
forma ao imaginrio da populao pelotense. Estas imagens (verbais ou imagticas) ganham
fora e credibilidade quando apresentadas junto aos registros histricos que comprovam sua
efervescncia cultural durante as dcadas de 1860 a 1890. No entanto, em muitos aspectos este
processo no foi bem sucedido. Estudos dos professores Aristeu Elisandro Machado Lopes
(2006), Glenda Dimuro Peter (2007) e dos pesquisadores Ado Monquelat e Valdinei Marcolla
(2012) revelam, como afirma Lopes (2006, p.163), o outro lado da Princesa do Sul.
Atravs da anlise das crticas e stiras presentes em ilustraes de trs peridicos
humorsticos que circularam em Pelotas ao longo da dcada de 1880 Cabrion (1879-1881),
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Referncias
ANURIO da Academia Politcnica do Porto. Ano letivo de 1877-1878. Porto: Tipografia
Central, 1878. Disponvel em: <http://migre.me/ddT6X>. Acesso em: 12 jul. 2012.
ARAJO, Jorge de Souza. Perfil do leitor colonial. Ilhus: Editus, 1999.
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Introduo
Neste trabalho, proponho uma anlise de Quarto escuro, de Carlos Drummond de
Andrade, a partir da fenomenologia do Imaginrio, com nfase na filosofia de Bachelard acerca do devaneio da infncia e da casa. O poema faz parte de uma das obras autobiogrficas de
Drummond, Menino antigo, ou, simplesmente Boitempo II.
Quarto escuro compe o quarto captulo da obra, intitulado O menino e os grandes,
e possui uma riqueza de imagens simblicas as quais evidenciam a interao entre o sujeito e o
espao habitado, culminando em uma troca de papeis entre essas duas personagens.
O aporte terico utilizado para sustentar as interpretaes do poema conta com a contribuio de Gaston Bachelard e sua cosmogonia aplicada aos quatro elementos fundamentais,
bem como de suas obras que tratam do espao e do devaneio, Gilbert Durand e suas estruturas
antropolgicas do Imaginrio alargam a compreenso do espao ocupado por trevas, alm de
dicionrios de smbolos e mitos literrios, ampliando as significaes, afastando o poema de
uma interpretao binria e excludente para uma leitura abrangente das imagens.
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texto, principalmente no espao da casa. Constituinte de Menino antigo (1973), o poema est
no captulo O menino e os grandes, em que observamos as relaes entre Carlos em sua meninice e os outros, grandes, que o circundam.
Mais que um espao de punio, como assinalado por Souza (2002) em sua tese sobre
a autobiografia potica de Drummond1, o quarto e suas trevas so responsveis pelo enoitecimento do menino, cumprindo a profecia do anjo torto: Vai, Carlos! ser gauche na vida. O
cerne de Quarto escuro gira em torno do menino Drummond e os momentos que passa nesse
quarto, cuja escurido o absorve de tal maneira que resulta em uma assimilao do quarto pelo
indivduo.
A imagem da casa para Bachelard (1993)2 remete ao nosso primeiro universo, um
cosmos por si s e serve como instrumento de anlise para a alma humana. Entretanto, o filsofo explora todas as possibilidades em que esse espao se configura. Assim, estuda no apenas
a casa, mas as gavetas, os cofres, quartos, sto e poro: a alma humana tambm possui seus
cantos escondidos. Fazem parte desse estudo a dialtica do grande e do pequeno, a do interior
e exterior, alm de uma fenomenologia do redondo. Para essa anlise, o enfoque na casa, os
cantos e a dialtica interior e exterior se fazem suficientes.
Outro ponto importante, do qual no podemos nos distanciar, o fato de que a narrao
do poema conta uma histria de Carlos Drummond de Andrade quando menino, o que nos leva
ao devaneio de infncia. Gaston Bachelard encerra sua obra noturna com A potica do devaneio, no qual dedica um captulo para tratar do tema. Por ora, interessa-nos a questo da grandeza desse tipo de devaneio ao tratar das dimenses do quarto soturno habitado por Drummond.
Segundo Bachelard:
O mundo do devaneio da infncia grande, maior que o mundo oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio potico diante de um grande espetculo do mundo ao devaneio da infncia h um comrcio de grandeza. Assim, a infncia est na origem das
maiores paisagens. Nossas solides de criana deram-nos as imensidades primitivas.
(BACHELARD, 2006: 96-97)
1 Ver: SOUZA, Raquel Rolando. Boitempo: a poesia autobiogrfica de Carlos Drummond de Andrade. Rio Grande: Editora da FURG, 2002. p. 136.
2 Ver: BACHELARD, Gaston. A potica do espao. So Paulo: Martins Fontes, 1993.
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O drama existencial vivenciado pelo menino Carlos alonga-se e ganha corpo, concretizando-se nas tonalidades contrastivas que as dependncias da casa apresentam.
Dessa forma, a casa a concretizao do estado de nimo do menino. Assim, em meio
a poemas diversos, nos quais a preocupao primeira do poeta dar conta de narrar episdios e sentimentos resgatados ao passado, Drummond permite um despontar
inesperado da imagem da casa. (SOUZA, 2002: 136)
assim que poderemos perceber a casa a partir de seus fragmentos abordados nos poemas: a sala de visitas, a cozinha, o gabinete de trabalho, a escadaria, e, claro, o quarto reservado,
local de punio dos meninos da casa3 (p. 136). A partir do estudo das imagens em Quarto escuro, chegaremos a algumas consideraes acerca da identidade do poeta e como esse episdio
rememorado por ele.
O adjetivo escuro j denota um tom soturno para o poema. As trevas simbolizam o
caos, informe de que o mundo foi criado; negro e escuro simbolizam o mal moral. Entretanto,
a escurido no era entendida apenas de modo negativo, pois tambm significava possibilidade
para o tornar-se. nela que se pode revelar a profundidade do mistrio.4 (p. 730) Encoberto
pelas trevas, o quarto um espao de tenso. O domnio absoluto da escurido responsvel
pela resultante: quarto habita o menino, explorados no item a seguir.
O nico elemento que remete claridade o sol, o qual se apresenta no poema de maneira ameaadora, pois o nome exposto traz como consequncia a escurido. O nome em questo
3 SOUZA, op. cit.
4 Ver: LURKER, Manfred. Dicionrio de simbologia. So Paulo: Martins Fontes, 2003.
5 Em: ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunio: 23 livros de poesia. v.3. 3 ed. Rio de Janeiro: Bestbolso,
2011.
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Partindo desse dado, percebemos que o quarto no apenas lugar de punio, mas que
toda a sorte de objetos pode ser ali colocada, inclusive o menino e, da mesma maneira, desfeitos
6 Em: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, nmeros. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2012.
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de sua forma original. Ao transpor o umbral, passa a ser outro. A condenao se d no nvel
de uma constante reformulao de si mesmo a partir dessa entrada no quarto escuro. Uma vez
transposto o limiar, sabendo que isso implica em ser outra matria, logo, o processo de se conhecer precisa ser reorganizado.
Aquilo que se torna, evidencia-se nos versos seguintes:
Sou coisa inanimada, bicho preso
em jaula de esquecer, que se afastou
de movimento e fome. Esta pesada
cobertura de sombra nega o tato,
o olfato, o ouvido. Exalo-me. Enoiteo. (p. 77)
Nesses versos, Carlos reelabora o que ficara indefinido do bloco anterior. De mim
desconhecido (v. 10), enfim reformulado: Sou coisa inanimada, bicho preso/ em jaula de
esquecer. (v.11-12) Perdendo propriedades de movimento e fome, o menino, que agora coisa, bicho, gradativamente reduz-se a nada, preso naquele invlucro de pesada sombra: Esta
pesada/ cobertura de sombra nega o tato, o olfato, o ouvido. (v. 13-15)
O afastamento da fome indica, mesmo de forma indireta, a perda do paladar. Os outros
trs sentidos restantes desaparecem em seguida: com o tato j no possvel tocar e sentir as
coisas em sua materialidade. O cheiro, responsvel por tantas associaes na memria, some.
O ouvido, assim negado fica exposto ao silncio. A eliminao dos sentidos restantes cabal para a anulao do ser anterior. Perde aquilo que o torna ser e vira um bicho largado ao esquecimento cujas caractersticas bsicas como fome e movimento j no lhe so mais comuns.
A cobertura de sombra pode ser facilmente associada ao teto do quarto. Sua funo, em
geral, a de proteo de adversidades como chuva e sol, segundo Bachelard (1993): O teto
revela imediatamente sua razo de ser: cobre o homem que teme a chuva e o sol (p. 36). No
poema a cobertura deixa de ser proteo da temeridade para ser a prpria ameaa temida.
Em um movimento de liberao e assimilao, o menino deixa-se ir embora para converter-se em noite. A treva envolve o menino por completo. Deixa de ser algo ele mesmo (exala
a si) e incorpora a treva (enoitece).
Enfim, o menino agora quarto:
O quarto escuro em mim habita. Sou
o quarto escuro. Sem lucarna.
Sem culo. Os antigos
condenam-me a essa forma de castigo. (p. 77)
586
Todo o processo de estar sem olhos, transpor o umbral, ser bicho preso, converter-se
em noite resulta em mais uma redefinio de ser, por uma constatao de troca de papeis: O
quarto escuro em mim habita. (v. 16), para uma afirmao da identidade assumida: Sou/ o
quarto escuro. (v. 16-17) Lucarna e culo (partes de construes que significam abertura para
o exterior) seriam os olhos do quarto, entretanto, no os possui. A clausura nas trevas castigo
imposto pelos antigos, nesse verso, surge o par que rege o captulo: O menino e os grandes.
Consideraes finais
O estudo de Quarto escuro permite avaliar um percurso trilhado por Drummond em
seu perodo de infncia, essencial para a formao de seu ser poeta. O aprisionamento em um
quarto reservado pode ser entendido, em minha viso, de duas formas: uma mais prxima do literal, em que realmente estamos tratando de um aposento na casa natal de Drummond destinada
a abrigar meninos cujo comportamento precisava de correes e outra, em que o quarto escuro
diz respeito a um processo gradativo de ensimesmamento, em que o sujeito imerge nas trevas e
tal enoitecimento acompanha-o indefinidamente.
Dessa forma, proponho o quarto escuro como uma viagem introspectiva realizada por
Drummond. Os guardados do verso 3 podem ser relacionados as sries de lembranas. O
quarto feito pensadamente para intrigar seria o local em que o menino Drummond adentra para
refletir acerca da realidade que o circunda. Uma vez transposto o umbral enigmtico que a
viagem ao interior de nossa intimidade, tudo perde forma, sentido e pensar sobre si desconfortante, pois muitas perguntas permanecero inevitavelmente sem respostas.
Preso nessa teia de reflexes bicho, indefinido e imvel, Carlos pequeno diante do
mundo, quando se volta para si mesmo anulando o exterior (os cinco sentidos, a comear pela
viso) percebe-se impotente diante do mundo. A transformao progressiva em coisa e em bicho obriga-nos a considerar a representao do Minotauro no poema.
A nica sada para o menino, diante de tanta opresso e anulao, enoitecer tal qual um
quarto escuro, punio dos antigos com suas repreenses aplicadas aos mais jovens.
Sua projeo a partir da converso de menino em quarto tambm guarda um dado interessante, o de no ter comunicao com o mundo exterior: a ausncia de lucarna e culo. Os
olhos anulados no incio do poema no sero recuperados em seu trmino. Interessa ao menino
denunciar a forma de castigo, justificar, em certa medida, o seu comportamento gauche, colocar
no seu trajeto de formao de escritor esses pequenos espaos de reflexo sobre o si mesmo, que
o acompanhariam pelo resto de sua carreira literria.
587
REFERNCIAS:
BACHELARD, Gaston. A potica do espao. So Paulo: Martins Fontes, 1993.
_____. A potica do devaneio. So Paulo: Martins Fontes, 2006.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2012.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo: Martins Fontes,
2002.
LURKER, Manfred. Dicionrio de simbologia. So Paulo: Martins Fontes, 2003.
SOUZA, Raquel Rolando. Boitempo: a poesia autobiogrfica de Drummond. Rio Grande: Editora da FURG, 2002.
588
589
o de livreiro, reflexo do homem apaixonado pelo objeto livro. Mas Campos tambm trabalhou
em outras reas, como as de comerciante, vendedor e caixeiro-viajante.
Alm disso, Campos tambm se fez presente no mbito da poltica, em especial em relao militncia no Partido Comunista, principalmente nas dcadas de 1950 e 1960, e tambm
nos cargos assumidos na Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre nos anos 1980 e no
Instituto Estadual do Livro (IEL), rgo vinculado Secretaria Estadual da Cultura, no final
dos anos 1990.
A leitura de dois volumes permite conhecer um pouco do carioca com alma de gacho.
O primeiro o livro Um livreiro de todas as letras (2006). A obra apresenta uma srie de relatos
em forma de conto da biografia de Arnaldo Campos, fruto de um conjunto de entrevistas do
autor ao jornalista Renato Mendona. Esta experincia, como menciona Mendona no livro,
serviu para Campos como um ajuste de contas dos seus mais de 70 anos de vida.
Outro texto que apresenta a vida de Arnaldo uma publicao do IEL, o volume 6 da
Nova Srie Autores Gachos (2002), uma coletnea de entrevistas, depoimentos, fragmentos
textuais, anlises literrias e fotos, alm da biografia e bibliografia do autor. A publicao conta
com nomes como Landro Oviedo, Lauri Maciel, Charles Kiefer, Mrcia Ivana de Lima e Silva,
entre outros.
No captulo 2, De contos, personagens e marginais, buscou-se o estudo de pressupostos tericos que abordam a teoria do conto, a personagem narrativa, o conto contemporneo, o
conto sul-rio-grandense e a marginalidade no contexto social brasileiro. Autores como Ndia
Battella Gotlib, Antonio Hohlfeldt, Gilda Neves da Silva Bittencourt, Beth Brait, Antonio Candido, Roberto Jarry Richardson, Lucio Kowarick, Darcy Ribeiro, entre outros, so utilizados.
Destes, trs nomes so fundamentais para esta pesquisa, o da professora Gilda Neves da
Silva Bittencourt, por seu trabalho em O conto sul-rio-grandense: tradio e modernidade; o de
Lucio Kovarick por seu livro Capitalismo e marginalidade na Amrica Latina; e o do socilogo
Roberto Jarry Richardson, por seu trabalho em Marginalidade, pobreza e excluso social: uma
questo histrica.
As subdivises temticas apresentadas por Bittencourt, envolvendo o conto gacho,
servem como subsdio a aproximao da obra de Arnaldo Campos a um grupo j consolidado de
contistas contemporneos. A partir textos selecionados da dcada de 1970 produzidos no Rio
Grande do Sul, a pesquisador prope quatro vertentes que compreendem a de cunho social, a
existencial-intimista, a memorialista ou de reminiscncia infantil e a regionalista. J os estudos
de Kowarick e Richardson, a partir de reflexes sobre o conceito da marginalidade e do homem
marginal, contribuem analise dos personagens marginais da obra de Campos.
No captulo 3, O marginal nos contos de Campos, faz-se a anlise literria dos contos,
organizando as personagens marginais tratadas pelo contista em trs abordagens: os marginais
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por condies socioeconmicas, pobres e miserveis; os marginais pelo comportamento, solitrios, sonhadores e saudosistas; e os marginais fora da lei e por pensamentos ideolgicos.
No subcaptulo O marginal por condies socioeconmicas h a anlise dos contos
em que se sobressaem as caractersticas fsicas e psicolgicas na feitura de alguns personagens,
sobre os quais recai a mazela da condio social precria, tendo em vista sua marginalidade
de ordem socioeconmica. Do livro O degrau, foi possvel reconhecer esse trao como nota
presente nas narrativas A ltima partida, Ladro de cobertor, Bodas, Berenice, Albergue e O degrau. Em O justiceiro & outras histrias, os contos Dois sorrisos e Z Feio,
Mirita e o missioneiro encaixam-se nessa proposta.
Da mesma forma, no subcaptulo Marginal por comportamento so analisados os contos Uma estreia, Chuva aos 47, Janurio, Noite do samba, Brincadeira e Hora de
ir, de O degrau, e O homem-pssaro e Vozes do mar, de O justiceiro & outras histrias.
Ainda permanece o recorte das personagens marginais, mas foi possvel buscar, nos dois livros
de contos de Arnaldo Campos, algumas figuras fictcias cuja caracterstica marginal acentua-se
pelo comportamento. Trata-se de protagonistas que, de alguma forma, no se adaptam aos padres impostos pela sociedade, pelas normas culturais e comportamentais aceitas pela maioria.
a prova de que o conceito marginal bastante amplo. No se restringe queles indivduos
margem somente por questes socioeconmicas.
A ltima subdiviso, Os marginais fora da lei e por pensamentos ideolgicos, comporta
o menor nmero de contos: Morcegos e Na margem do rio, de O degrau, e Na hora sexta
e O justiceiro, de O justiceiro & outras histrias. H aqui o olhar queles representantes dos
mais diversos grupos tnicos, sociais, culturais e polticos, que sofrem ou cometem a violncia
pblica; bem como a articulao da crtica aos atos de arbitrariedade e hostilidade comuns no
regime militar.
claro que um olhar ao contexto marginal no chega a ser considerado algo novo; no
entanto, a viso sobre os marginais apresentados pelo autor, a sua prpria histria de homem
que lutou por ideais comunistas no perodo da ditadura, o envolvimento com questes culturais
a partir da dcada de 1980 e a sua paixo pela literatura, demonstrada na sua caminhada de
livreiro, resultam em textos de qualidade literria considervel e em observaes minuciosas
sobre aqueles que permanecem beira da sociedade.
Ainda que importncia de Arnaldo Campos enquanto figura pblica no ambiente cultural e intelectual sul-rio-grandense seja inegvel; como livreiro, cronista, gestor pblico, contista, novelista, agente cultural; admissvel, a partir desta temtica cotidiana, comumente representada na literatura gacha contempornea, junto crtica sobre o autor, erguer uma discusso
sobre a relevncia da obra de Campos para a literatura, elencando subsdios que justifiquem a
presena do contista na historiografia literria sul-rio-grandense contempornea.
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Para isso, surge a diviso temtica proposta por Gilda Bittencourt em O conto sul-riograndense tradio e modernidade, nas quatro vertentes que englobam os contistas gachos
contemporneos. Nelas possvel aproximar as narrativas de Campos a dois grupos: queles
que permeiam as questes sociais, possivelmente s quais mais se aproxima dos contos do
autor, com sensibilidade aos problemas sociais, miserabilidade, aos fracos e oprimidos e ferocidade do sistema capitalista; e queles que focalizam a relao do indivduo com o mundo e/
ou consigo, elencando problemas com a solido, a inadaptao com o mundo, bem como outras
perdas e desiluses, caractersticos do cunho existencial-intimista.
Campos paira, portanto, com sua narrativa curta, em uma variedade interessante de
abordagens individuais e sociais, por vezes com aguada criticidade, em outras com subjetividade quase potica. Seu personagem constitui-se como marginal por comportamento, por miserabilidade, por ideologia, por conflitos internos de aceitao e afirmao, por conflitos externos,
quase sempre por opresso; de fato, o autor apresenta inmeras facetas, mltiplas, como o
prprio gnero conto, conforme aponta Alfredo Bosi:
Ora o quase-documento folclrico, ora a quase-crnica da vida urbana, ora o quase
drama do cotidiano burgus, ora o quase-poema do imaginrio s soltas, ora, enfim,
grafia brilhante e preciosa votada s festas da linguagem (BOSI, 2008, p.7).
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Assim, ao mesmo tempo em que a narrativa de Campos denuncia a realidade, provocando a reflexo do leitor, tambm ajuda na construo de uma identidade social mltipla,
valorizando a variedade cultural. Cabe ressaltar que o extremismo, a indiferena e a falta de
tolerncia com o outro, com o prximo, de certa forma, constituem os fatores principais excluso e marginalizao. Deste modo, ao refletir sobre o assunto, levando em considerao que
estamos em uma sociedade mltipla, como a brasileira, possvel definir essa relao de causa
e consequncia, por conseguinte, como descabida:
Ns, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedidos de s-lo. Um povo
mestio na carne e no esprito, j que aqui a mestiagem jamais foi crime ou pecado.
Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos
da mestiagem viveu por sculos sem conscincia de si, afundada na ninguendade.
Assim foi at definir como uma nova identidade tnico-nacional, a de brasileiros. Um
povo, at hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, fcil
perceber que so, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor,
porque lavada em sangue ndio e sangue negro. (RIBEIRO, 2009, p. 410)
Mas, se vivemos em uma sociedade mltipla, por que o ser humano permanece to excludente? Por que, muitas vezes, no consegue nem entender, nem aceitar o outro e to pouco
a si mesmo? Talvez a exatido em uma resposta a essas perguntas seja improvvel; entretanto,
textos como os de Arnaldo Campos contemplam reflexes considerveis que permitem a aceitao da diversidade.
Infelizmente, no momento em que este trabalho de pesquisa e anlise encontrava-se
quase finalizado, surge a notcia da morte de Arnaldo Campos. O escritor, que sofria do Mal de
Alzheimer e passara os ltimos quatro anos em uma clnica na cidade de Gramado/RS, faleceu
no dia 20 de setembro de 2012, aos 80 anos.
Confesso que a notcia de sua morte, ainda que esperada, visto que eu estava ciente do
quadro clnico do autor nos ltimos anos, causou um sentimento angustiante em mim e em meu
orientador, talvez pela proximidade com a figura idealizada do autor Campos, que se confunde
com o homem Arnaldo. Espera-se que a memria do autor e do cidado Arnaldo Campos possa
ser bem representada e homenageada neste trabalho.
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Principais Referncias
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BITTENCOURT, Gilda Neves. O conto sul-rio-grandense: tradio e modernidade. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.
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______. A ceia do diabo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
______. Breve histria do livro. Porto Alegre: IEL; Mercado Aberto, 1994.
______. O justiceiro & outras histrias. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.
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GOTLIB, Ndia Battella. Teoria do conto. So Paulo: tica, 1990.
HOHLFELDT, Antonio. Conto brasileiro contemporneo. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1981.
KOWARICK, Lucio. Capitalismo e marginalidade na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1985.
LUKCS, Georg. Teoria do romance. So Paulo: Duas Cidades, 2007.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formao e o sentido. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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minao, uma vez que editorialmente todos os textos passam por esse processo antes da publicao. Alm disso, a pecha de exotismo converge para um aspecto flagrado por Joo Csar de
Castro Rocha (2006): a abordagem da realidade da periferia possui apelo comercial, interessa
aos consumidores de bens culturais. Nessa esteira, em 1997, Paulo Lins, morador da Cidade de
Deus, publicou o romance que leva o nome da favela carioca, experimentando grande sucesso
de crtica e pblico.
Quase que concomitantemente ao sucesso de Cidade de Deus, porm sem alcanar a
mesma repercusso, Ferrz (alcunha de Reginaldo Ferreira da Silva) movimenta a ateno da
imprensa ao lanar Capo Pecado. Trata-se de um romance cuja histria transcorre em Capo
Redondo, na Zona Sul de So Paulo, o habitat do autor. Temas como pobreza, violncia,
drogas, preconceito racial e traio compreendem a trama da obra. H um narrador onisciente
contando a vida de diversos personagens, em especial a de Rael, que acaba morto depois que
matou Seu Oscar, o dono da metalrgica em que trabalhava, pois aps ter conquistado Paula,
namorada de seu melhor amigo, Matcherros, descobriu que ela era amante do empresrio.
Na epgrafe, Ferrz (2000) satiriza o fato de o texto estar fadado infmia, pelo reduzido nmero de leitores que o apreciaro e por no ser conveniente aos interesses da mdia e da
sociedade: querido sistema, voc pode at no ler, mas tudo bem, pelo menos viu a capa. A
capa mostra, em primeiro plano, uma criana com os ps descalos e descamisada, empunhando um revlver na mo direita, com os braos estendidos e olhos vendados, exibindo ao fundo
um conjunto de casebres do Capo Redondo. O corpo dela est todo tingido em vermelho. Em
outras palavras, a representao de uma vida recm-iniciada, todavia sem horizontes, que se
arma para sobreviver e que se depara com o iminente risco de morte.
Em 2000, Ferrz passa a colaborar para a Caros Amigos, publicando artigos nas edies
da revista. Conforme rica Peanha do Nascimento (2009, p. 43),
essa foi uma importante conexo para que ele se tornasse conhecido nacionalmente e
conseguisse patrocnio para lanar outros autores com semelhante perfil sociolgico
(originrios das classes populares e moradores ou ex-moradores das periferias urbanas brasileiras) no projeto de literatura marginal em revista.
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vendidos, o que viabilizou a edio de outros dois cadernos, que circularam em abril de 2002
e em junho de 2004. Ao todo, 48 pessoas estiveram envolvidas com algum dos trs nmeros
especiais da revista, tendo contribudo com 80 textos, sendo contos, crnicas, poemas e letras
de rap (NASCIMENTO, 2009).
Consolida-se, assim, atravs do projeto de literatura em revista, um movimento. Literatura marginal, anota rica Peanha do Nascimento (2009), como ser denominado por uma
escolha do prprio Frrez, abrindo espao, na literatura brasileira, para autores provenientes
da periferia. Trata-se de uma produo baseada na autenticidade do relato de quem conhece
o ambiente perifrico por viver nele, seguindo o mesmo princpio de Carolina Maria de Jesus
de que preciso experimentar a fome para saber descrev-la. Agora, o foco narrativo no
externo ou alheio vida da favela, no se trata mais de um olhar de fora para dentro, seno
no sentido oposto. A perspectiva interna, nasce no mago do contexto enfocado, como fez
Carolina, porm sozinha em seu tempo, diferentemente deste novo momento no qual diversas
vozes antes caladas passam denunciar calamidades, a apresentar sua crtica social, a expor seu
ponto de vista, produzindo literatura.No manifesto Terrorismo literrio elaborado por Ferrz
ao lanar a primeira edio da Revista Caros Amigos/Literatura Marginal ficam evidenciados
esses pontos:
Cala a boca, negro e pobre aqui no tem vez! Cala a boca!
Cala a boca uma porra, agora agente fala, agora agente canta, e na moral agora agente
escreve. (...) No somos o retrato, pelo contrrio, mudamos o foco e tiramos ns mesmos a nossa foto (FERRZ, 2005, p. 9).
Isso leva Joo Csar de Castro Rocha (2006, p. 37) a constatar uma nova forma de
relao entre as classes sociais proposta nesse fazer literrio. A dialtica da marginalidade,
conceito que o pesquisador desenvolve, em vez de ocultar a violncia, exacerba o tema. No
lugar da conformao das desigualdades, o embate a substitui, por meio da clara exposio das
diferenas polticas, econmicas e culturais a dividir a sociedade. Emerge nos textos uma posio engajada, transformando os autores em representantes dos excludos.
importante salientar que, alm da valorizao da escrita, h uma atuao estticocultural que mobiliza integrantes da literatura marginal contempornea. A realizao de saraus
em bares, oficinas em escolas, eventos que conectam o fazer literrio a outras artes, bem como a
abertura de bibliotecas nas diferentes comunidades perifricas ampliam a participao cultural
desses autores, que se transformamem interventores habilitados a se encarregar de uma tarefa
cuja incumbncia seria originariamente devida ao Estado. Nasce, dessa forma, um engajamento voltado valorizao e desenvolvimento dos talentos artsticos locais, misso de natureza
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to, como o mercado editorial legitima certos grupos em detrimento de outros, extremamente
pertinente a contribuio de Regina Dalcastagn (2012). Ao apresentar um estudo realizado
com 258 romances publicados pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco, entre
os anos de 1990 e 2004, Dalcastagn comenta que os nmeros indicam, com clareza, o perfil
do escritor brasileiro. Ele homem, branco, aproximando-se ou j entrado na meia idade, com
diploma superior, morando no eixo Rio-So Paulo (DALCASTAGN, 2012, p. 162). As constataes da pesquisa que a autora empreendeu levam compreenso de que o enriquecimento
da literatura passa pela democratizao do acesso aos meios de produo cultural, pois desta
maneira haveria uma pluralizao de perspectivas, um respeito expresso das diferenas. A
literatura, segundo ela, para ser mais rica, precisa de maior representatividade. No entanto, o fazer literrio est restrito a um grupo. Inclusive na reproduo das personagens isso verificado.
Quase no h negros, nem pobres representados, alm da ocorrncia da disparidade de gnero.
Ao identificar o perfil do escritor brasileiro, a pesquisadora revela quem est ocupando
a posio central no sistema literrio, o que permite novas contestaes: por que os negros,
as mulheres, os no diplomados e os moradores de outras regies do pas so excludos dele?
Eis o ponto-chave: a democratizao da literatura por meio do acesso aos meios de produo
cultural permanece encolhida e a reboque de grupos dominantes, o que exclui a diversidade de
expresses.
Como destaca Even-Zohar (2007-2011, p. 26, traduo nossa), nenhuma literatura funciona com um repertrio pequeno. No caso da literatura marginal perifrica, a disseminao
de textos garante a legitimidade e o valor de permanncia do movimento. A conquista da independncia para transformar em expresso artstica os seus anseios o foco, e esse exerccio
tem se mostrado prolfico. A identidade local no sucumbe. Em vez disso, desperta at mesmo
a ateno de outros pases, e para que os autores marginais deixem de ser discriminados pelo
sistema o engajamento comunitrio deve funcionar como sustentculo desse projeto.
Dos poetas marginais dos anos 70 aos marginais das periferias brasileiras contemporneas so muitas as diferenas no que tange classe social dos escritores, atitude diante do
mercado, s condies histricas de produo, linguagem e forma dos textos. Contudo, em
um aspecto essencial ambas as marginalidades convergem: na atitude de conferir literatura
uma forma de visibilidade que no se restringe apenas esfera esttica, uma vez que ambos os
movimentos souberam criar formas de partilha do sensvel (RANCIRE, 2009) no restritas
aos ambientes eruditos, acadmicos e elitistas, mas estendendo o regime da arte ao viver cotidiano e coletivo, no que reforam, cada qual a seu modo e com meios prprios, a dimenso
poltica da esttica.
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REFERNCIAS
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Vinhedo: Editora Horizonte/Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012.
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1960/1970. So Paulo: Brasiliense, 1980.
NASCIMENTO, rica Peanha do. Vozes marginais da literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano,
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RANCIRE, Jacques.A partilha do sensvel: esttica e poltica.So Paulo: Editora 34, 2009.
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VAZ, Srgio. Cooperifa: antropofagia perifrica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
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Outrora, o passado no estava realmente morto e podia irromper a qualquer momento, ameaador, no interior do presente. Na mentalidade coletiva, muitas vezes a vida e
a morte no apareciam separadas por um corte ntido. (Jean Delumeau)
Contos de Fantasmas
O ingls Daniel Defoe (1660-1731) celebrizou-se por ter escrito As aventuras de Robinson Cruso (1719). Sua vida se caracterizou pela intensa produo literria e jornalstica. Em
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1704, fundou o jornal The Review, onde escrevia praticamente sozinho sobre todos os temas.
nesse peridico que Defoe ir publicar inicialmente estes Contos de Fantasmas, baseado em entrevistas ou relatos conhecidos pelo autor. Em seu tempo, os folhetins de horror e assombrao,
de grande interesse popular, proliferavam (LOVECRAFT, 1987). O auge deste gnero literrio,
entretanto, ser apenas entre o fim do sculo XVIII e comeo do XIX com a escola gtica, destacando obras como Dracula de Bram Stoker e Frankenstein de Mary Shelley.
O que chama a ateno a diviso que Defoe faz em sua obra, pela veracidade dos relatos. Alguns dos personagens envolvidos do livro so assombrados por pessoas mortas, espritos
do bem ou do mal, atormentados. Outros, j sem sorte, so visitados pelo prprio diabo.
Importante observar que, de acordo com Lovecraft (1987), o conto A Apario da Senhora Veal foi construdo para, disfaradamente, promover uma dissertao teolgica sobre a
morte, que vendia mal, uma vez que as camadas mais altas da sociedade estavam perdendo a f
no sobrenatural em face do racionalismo clssico.
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dos que procedem bem, que a vida eterna, temos de, no tempo que nos resta, voltar a
Deus por um rpido arrependimento, deixando de cometer o mal e aprendendo a fazer
o bem, partindo em busca de Deus, se com felicidade Ele possa ser de ns encontrado,
e de levar tais vidas no futuro que Lhe possam ser agradveis (DEFOE, 1997, p. 9).
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1997, p.12).
Mais adiante, a Senhora Veal classifica o ensaio de Drelincourt sobre a morte como o
melhor dos livros sobre o assunto (DEFOE, 1997, p.14). A seguir, o narrador destaca o alcance
que tal livro atingiu a partir do caso relatado:
A senhora Bargrave foi ter com seu vizinho de porta logo depois de despedir-se da
senhora Veal, contou a tal vizinho a conversa maravilhosa que mantivera com uma
velha amiga. O livro de Drelincourt sobre a morte tem sido, desde que isso aconteceu,
comprado extraordinariamente. E deve ser observado que, no obstante todo o cansao e o aborrecimento que a senhora Bargrave sofreu por causa dessa apario, ela
nunca recebeu o valor de um centavo por causa do relato, nem suportou que sua filha
recebesse qualquer coisa de qualquer pessoa, o que demonstra que no tem interesse
algum nessa historia (DEFOE, 1997, p. 23).
O trecho acima citado atesta que ambas tm preocupao com uma amizade duradoura,
e que essa siga um caminho exemplar.
Assim sendo, verifica-se que a amizade algo de valor precioso s duas amigas, prin-
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cipalmente senhora Veal, j que argumenta que a senhora Bargrave sua nica amiga. Para
tanto, a referncia a obras que tratem do tema. J o outro tpico, a morte, possvel a anlise
de que, assim como com as senhoras, o escritor Daniel Defoe era um leitor recorrente do tema.
Tal aspecto referendado pela citao do livro de Derlincourt1 em diversas partes do conto.
O livro em questo Les Consolations de lme fidle contre les frayeurs de la mort, avec les
dispositions et prparations pour bien mouri2, de 1651.
A partir da:
[...] pode-se perguntar se foi por simples jogo que Shakespeare evocou o espectro do
pai de Hamlet e Tirso de Molina animou a esttua do comendador. Os espectadores
dessas peas consentiam em uma fico com que no se iludem? Ou ento o que
mais provvel aderiam em sua maioria crena nos fantasmas? (DELUMEAU,
1990, p. 86).
Medo
preciso analisar o contexto de escrita da obra. Europa, sculo XVIII. Um continente
que vive uma transio do sistema feudal lgica urbana e moderna, mas que mantm resqucios da mentalidade do medievo. Afinal, essa mudana no brusca e nem to rpida: uma
longa transio em que determinados aspectos, como a influncia religiosa e o medo do sobrenatural, permanecero ditando certos comportamentos de homens e mulheres.
Jean Delumeau, em A histria do medo no Ocidente, ir argumentar que o medo
natural (1990, p. 18). Na introduo de seu trabalho, Delumeau ir fazer uma compilao de
citaes misturando relatos, descries e conselhos antigos e contemporneos de intelectuais,
viajantes e tantos outros com o intuito de justificar que O medo ambguo. Inerente nossa
natureza uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensvel que
permite ao organismo escapar provisoriamente morte (1990, p.19).
O historiador francs destaca tambm em particular o medo dos fantasmas. Ir encaixlos na categoria dos medos espontneos e permanentes (1990, p.31). Em seguida, ele ressalta
1 Charles Drelincourt (1595-1669), telogo e pastor protestante francs. Escritor prolfico, suas obras tiveram
inmeras impresses, inclusive em ingls. Segundo a fonte aqui consultada, Daniel Defoe se refere obra, supostamente, com o propsito de promover a obra francesa entre seus leitores ingleses. No obstante isso, a contribuio
do escritor ingls estar presente na quarta traduo em lngua inglesa (1706). http://en.wikipedia.org/wiki/Charles_Drelincourt consultado no dia 20/08/2013.
2 Segundo a fonte aqui consultada, essa obra j teve quarenta edies at fim do sculo de produo. http://www.
museeprotestant.org/Pages/Notices.php?noticeid=559&scatid=136&lev=1 consultado no dia 20/08/2013. Outro
site, que pode servir de acesso a bibliotecas digitais que contem algumas obras do citado para leitura (entre outros)
: http://www.prdl.org/author_view.php?s=40&limit=20&a_id=244&sort=.
609
Nesse sentido, Defoe apresenta o tema da amizade entre duas mulheres, da relao e dos
assuntos entre elas para, aps isso, e mobilizando as expectativas do leitor, apresentar a temtica da apario aps a morte da senhora Veal.
A emoo mais forte e mais antiga do homem o medo, e a espcie mais forte e mais
antiga do medo o medo do desconhecido. Poucos psiclogos contestaro esses fatos,
e a sua verdade admitida deve firmar para sempre a autenticidade e dignidade das narraes fantsticas de horror como forma literria (LOVECRAFT, 1987, p. 11).
Fantasmas
A questo da morte foi crescendo junto ao desenvolvimento econmico, social e cultural
da humanidade. Tericos e outros profissionais comearam a apontar aspectos sobre a passagem final, na tentativa de dar um carter cientfico ao mesmo tempo em que a religio se fazia
presente nessa construo. E a literatura como elemento importante, seja da constituio humana, seja do imaginrio coletivo - trilhou caminho semelhante em relao morte, como no
exemplo abaixo, em que citado um trecho do Bardo ingls.
.
[...] a concepo da Igreja de uma separao radical da alma e do corpo no momento da morte no podia progredir seno lentamente. Ainda no sculo XVII, inmeros
juristas dissertam sobre os cadveres que pem a sangrar na presena do assassino,
apontado assim justia. O telogo irmo Nol Taillepied, que publica em 1600 um
Traict de lapparition de esprits..., ensina categoricamente: Se um bandido se apro-
610
xima do corpo que ele tiver matado, o morto comear a espumar, suar e dar algum
sinal
O mdico Flix Platter v a coisa acontecer em Montpellier em 1556. No primeiro
ato de Ricardo III, Shakespeare faz o cortejo fnebre de Henrique VI passar diante do
assassino. frente deste, o cadver sangra (DELUMEAU, 1990, p. 84).
Percebe-se a partir do citado acima, ento, uma relao de sintonia entre algo que transita entre o imaginrio e o popular (cadveres sangrando), passando pela legitimao de profissionais (no caso acima, juristas e o mdico) at ganhar espao na literatura.
O historiador Jean Delumeau (1990) cita dois acontecimentos que podem trazer luz
sobre a crena popular na Europa da transio entre o Medievo e a Modernidade. Segundo o
autor, os dois exemplos so retirados de um manuscrito do sculo XV, consagrado s Vidas de
Santos.
O primeiro caso de um homem que tinha o hbito de recitar um De profundis sempre
que atravessa um cemitrio. Ora, um dia ele atacado por seus mais mortais inimigos. Corre
para o cemitrio mais prximo e defendido vigorosamente pelos defuntos, cada um tendo
na mo um instrumento do ofcio em que servira em vida [...] do que seus inimigos tiveram
grande temor e fugiram todos apavorados.
O outro relato parente prximo do precedente e vem justo depois dele na crnica: um
padre celebrava todos os dias uma missa para os mortos; foi denunciado a seu bispo (sem dvida porque se considerava esse rendimento muito lucrativo). O prelado proibiu-o de celebrar o
ofcio, mas, depois de algum tempo, ele veio a passar por um cemitrio. Os mortos assaltaramno. Para ser libertado, precisou prometer restituir ao padre o direito de dizer missas para os
mortos.
Ambos os casos mencionados por Delumeau (1990) podem ser considerados como uma
apologia da orao pelos defuntos, certamente; mas ao mesmo tempo, servem como testemunho da crena nos fantasmas, na vida aps a morte.
O Fantstico
O conto de Daniel Defoe pode ser analisado a partir do terico Todorov e sua conceituao de fantstico, j que:
O fantstico ocorre nesta incerteza. Ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o
fantstico para se entrar em um gnero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantstico a hesitao experimentada por um ser que s conhece as leis naturais, face a
um acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1975, p. 31).
611
Assim sendo, o fantstico trabalha com a realidade. Porm, a vida cotidiana sofre a insero do mistrio nas relaes normais. um jogo em que o ceticismo faz parte e que [...] a
narrativa fantstica no resolve um esclarecimento cultural, mas realiza um jogo do irreal e do
inverossmil com determinada funo da racionalidade, para questionar a prpria racionalidade
vigente (SAMUEL, 2007, p.34).
O conto da Apario pode servir ao propsito de comprovar o quo era tnue a linha que
dividia vivos e mortos e o quanto estes estavam presentes no imaginrio das pessoas na poca
de escrita do escritor ingls.
O livro como um todo um exemplo de como Daniel Defoe era piedoso e temente a
Deus. Mais do que isso, o livro serve como uma apologia amizade sincera entre duas mulheres
que queriam muito bem: ambas se culpam pela distncia que mantiveram por determinado tempo, mas quando se reencontram, fazem valer o significado que tem serem amigas alm da vida.
Uma amizade que supera a morte. Supera inclusive as crenas e a religio oficial do perodo.
O cristianismo encarregou-se, ento, pouco a pouco da crena nos espectros, dando-lhe
uma significao moral e integrando-a numa perspectiva da salvao divina. Mas, entre o dis-
612
curso teolgico sobre as aparies e o cotidiano vivido, uma distncia subsistiu mais ou menos
larga segundo os mais variados setores geogrficos e culturais da existncia humana.
Em suma, Daniel Defoe foi, antes de tudo, um homem de seu tempo: religioso (que
sofre a influncia da Reforma e da moral protestante) e que ainda assim pertencia a um mundo
cercado de indecifrveis mistrios e cheio de solues mgicas e sobrenaturais para eles.
Referncias Bibliogrficas
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DEFOE, Daniel. Contos de fantasmas. Porto Alegre: L&PM, 1997.
DELUMEAU, Jean. O medo no Ocidente. 1300-1800, uma cidade sitiada. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literria. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura Fantstica. So Paulo: Perspectiva, 1975.
613
1 TEMA
O tema a ser pesquisado neste trabalho a argumentao em fbulas de La Fontaine e
em sua releitura por Monteiro Lobato
1.2 JUSTIFICATIVA
Na linha de pesquisa da Constituio do texto e do discurso, o papel do lingustico na
construo do sentido um enfoque pouco estudado por outras linhas da lingustica que tratam
da leitura. H outras linhas de investigao que se ocupam da leitura, mas focalizam o estudo
em elementos externos ao discurso. Pouco do sentido vinculado ao lingustico.
A Teoria da Argumentao na Lngua, linha terica da qual este trabalho ir se embasar,
distingue-se de outras teorias semnticas porque considera que o sentido est na lngua e que
esse sentido argumentativo. Essa teoria permite explicitar a argumentao do enunciado por
meio da construo de encadeamentos, que traduzem o sentido do discurso.
Esse trabalho apresenta como contribuio para a linha de pesquisa da qual est inserido a sugesto de novas formas de se fazer a leitura de textos, apresentando, assim, uma nova
metodologia de leitura.
614
Os discursos a serem considerados para a anlise semntica sob o foco da TBS so fbulas. A razo da escolha do gnero que esses discursos permitem comparaes entre si, no que
se refere s estruturas discursivas e ao sentido argumentativo.
2 PROBLEMATIZAO
2.1 PROBLEMA
As fbulas de La Fontaine e sua releitura por Monteiro Lobato se diferenciam quanto
argumentao ou apenas na manifestao lingustica dessa argumentao?
2.2 HIPTESE
Analisando-se a influncia que as diferentes argumentaes evocadas pelas entidades
lingusticas tm em cada narrativa, verifica-se que algumas argumentaes evocadas pelas fbulas e suas morais se mantm, apesar das diferentes pocas que cada texto foi escrito, porm,
outros conceitos, importantes para a construo do sentido global da fbula, apresentam alteraes considerveis.
3 OBJETIVOS
3.1 GERAL
Investigar atravs da leitura argumentativa da fbula original e de sua releitura quais
eram os ensinamentos defendidos
3.2 ESPECFICOS
- Empregar nova metodologia de leitura, por meio da teoria da argumentao na lngua.
- Investigar, atravs da comparao entre diferentes fbulas, se h alteraes nos encadeamentos evocados pelas morais da fbula e da sua releitura.
- Entender ensinamentos morais de cada poca atravs do texto.
615
de materiais j publicados, os quais daro suporte terico para que se realizem seus objetivos.
Dessa forma, como afirmam Rauber e Soares (2005, p. 27), como a pesquisa bibliogrfica, os
primeiros procedimentos sero de leitura, fichamento e sntese de textos e em seguida anlise
dos dados.
A partir da realizao dessa parte terica, sero analisadas as fbulas atravs de encadeamentos em donc e pourtant. A abordagem de carter qualitativo, o qual se d quando o
ambiente natural fonte direta para a coleta de dados, interpretao de fenmenos e atribuio
de significados. (PRODANOV e FREITAS, 2013, p. 128).
As fbulas foram escolhidas porque explicitam, atravs dos discursos com lies de
moral, o que considerado tico para determinada poca. Por meio da comparao entre as
fbulas, verificou-se que cada fabulista, ao produzir os discursos, deixou marcas de sua subjetividade, ou seja, assumiu pontos de vista. Como corpus, foram selecionadas seis fbulas e foi-se
verificado no que se assemelhavam e no que se distinguiam linguisticamente, isto , como o
sentido foi construdo em cada uma delas. Para isso, a leitura desses discursos tem a TBS com
base.
As seis fbulas selecionadas foram: Unha-de-fome e O avarento que perdeu seu tesouro; As duas panelas e A panela de barro e a panela de ferro; O rato e a r e A r e o
rato.
A anlise dos enunciados ser feita da seguinte forma
- Segmentar o discurso em enunciados;
- Levantar as argumentaes internas ao lxico;
- Levantar as argumentaes internas aos enunciados;
- Comparar os discursos por meio das anlises realizadas.
5 FUNDAMENTAO TERICA
5.1 FBULA
A fbula uma pequena narrativa curta que se origina do conto popular. Tem por objetivo divulgar uma instruo de carter moralizante, impessoal, sem localizar precisamente
um fato ou um personagem. Para isso so utilizados animais como protagonistas de situaes
nitidamente humanas, em que revelam virtudes e defeitos prprios dos seres humanos. Como
resultado da narrativa, vem a lio de moral.
Os personagens so smbolos, isto , so representativos de algo num contexto mais amplo. Por exemplo, o leo o smbolo da fora e do poder, e a raposa o smbolo da astcia. Esse
616
simbolismo animal, segundo Coelho (1991), est relacionado com o totemismo e a zoolatria
dos tempos mais remotos da civilizao, reflexo da sua viso de mundo na poca.
Originalmente, os povos orientais utilizavam-se de narrativas moralizantes para difundir princpios religiosos, principalmente do budismo. Embora os personagens no fossem animais, os preceitos eram uma constante, o que caracterizava o gnero. Inclusive, a moralidade
era muito mais valorizada do que a narrativa em si. Essa importncia chegou Idade Mdia,
quando os copistas, transcrevendo fbulas, copiavam a moral com tinta vermelha, salientado-a
das narrativas, escritas em preto.
617
Esse movimento faz referncia ao mundo extralingustico. Ducrot refuta e considera insuficiente essa concepo pelo simples fato de que na lngua h pares de frases que,
em um mesmo contexto, designam o mesmo fato, porm, as argumentaes aceitveis a
partir das frases so totalmente contrrias.
Tome-se como exemplo os encadeamentos:
(1) Pedro comeu pouco.
(2) Pedro comeu um pouco.
Em um determinado contexto, os dois enunciados designam o mesmo fato. Caso se
admita (01), tambm se pode admitir (02). Nos dois enunciados a ideia de que Pedro trabalhou
pouco no falsa. Todavia, as concluses possveis a partir desses enunciados so totalmente
opostas. Em um contexto em que Pedro estava doente e precisava comer para melhorar, a partir
de (01), pode-se concluir portanto no vai melhorar e a partir de (02), portanto vai melhorar.
Logo, as duas frases expressam o mesmo fato, no entanto, so opostas do ponto de vista argumentativo. Assim, o poder argumentativo do enunciado no se determina somente pelo fato que
expressa esse enunciado, mas tambm pela sua forma lingustica.
A Teoria da argumentao na lngua props, em primeiro lugar, que as relaes semanticamente pertinentes eram os encadeamentos argumentativos entre dois predicados, que
eram explicitados pela frmula X conector Y. Nessa fase inicial, eram apenas considerados
os segmentos unidos pelo conector DC (significa donc em francs e portanto em portugus),
que ligava um signo a outro. Tomando como exemplo a palavra inteligente. Segundo a ADL,
a significao consiste nos discursos que podem ser encadeados a partir da palavra inteligente.
Dessa forma, a significao de uma orao como Pedro inteligente ser o conjunto de encadeamentos que podem se formar a partir dessa orao, como, por exemplo, Pedro inteligente,
portanto conseguir resolver o problema. Dessa forma, os encadeamentos entre dois predicados, de acordo com essa primeira parte da teoria, eram apenas normativos, encadeamentos em
DC.
618
Marion Carel se deu conta que a noo de topos contrariava a ideia central da teoria, em
que o sentido de uma expresso est dado pelos discursos argumentativos que pode encadear-se
a essa expresso. Ainda, aponta que na frmula geral que esquematiza os encadeamentos argumentativos A donc C, o sentido do primeiro segmento contm nele mesmo a indicao que ele
deve ser completado pela concluso. Dessa forma, no existe um princpio argumentativo, um
topos, que seria uma garantia que liga um argumento a uma concluso, pois o predicado donc
C j est inscrito no primeiro elemento, A. Tome-se como exemplos os encadeamento (01):
Esse enunciado seria garantido pelo topos quanto mais quente for, melhor pas-
619
X CONECTOR Y
Nessa fase, um dos pressupostos que questionado e reformulado que o sentido seria constitudo apenas por discursos normativos, do tipo isso PORTANTO aquilo, sendo
assim, as argumentaes apenas movimentos conclusivos. A TBS props que, alm dos
discursos normativos, fossem considerados encadeamentos argumentativos os encadeamentos do tipo isso MESMO ASSIM aquilo, que seriam discursos transgressivos. Carel
(2005, p.81) afirma serem as palavras, em Francs, donc, (portanto ou ento) que marcam
o carter normativo de uma argumentao e as palavras, pourtant, (mesmo assim ou apesar de) que assinalam, de outro lado, uma argumentao transgressiva. Foram escolhidos
esses conectores porque produzem uma interdependncia entre os dois segmentos. A ideia
620
base da TBS, segundo Graeff (2011, p. 222), que argumentar no justificar e que existem duas unidades semnticas bsicas A DC C e A PT neg-C, visto que a interdependncia
entre A e C a mesma.
Como exemplo da afirmao de que os segmentos dos enunciados so interdependentes, que no podem ser separado em duas partes semanticamente independentes, tomese o seguinte encadeamento, contendo dois segmentos unidos por um conector:
(05) Pedro rico, portanto feliz.
Nesse encadeamento, o primeiro segmento, Pedro rico, apenas tem o seu sentido completado pelo segundo segmento, portanto feliz. Se for observado o primeiro
segmento de uma maneira isolada, perde-se o sentido, podendo, dessa forma, chegar-se a
uma concluso contrria esperada. Da mesma forma, o segundo segmento apenas ganha
seu sentido se obsevado no encadeamento com o primeiro.
O encadeamento anterior constitui um encadeamento normativo ou encadeamento
em DC. O segundo tipo de encadeamento o encadeamento transgressivo ou encadeamento em PT. Observe-se o exemplo:
(06) Pedro rico, mesmo assim infeliz.
Dessa forma, conclui-se, novamente, que cada um dos segmentos somente toma
seu sentido na relao com o outro que o acompanha. Isso se chama interdependncia
semntica. Essa oposio entre normativo e transgressivo se encontra no interior das palavras e se estende por toda a lngua.
Diferentemente do encadeamento (06), o possvel encadeamento Pedro rico, portanto infeliz no transgressivo e sim normativo. , em realidade, contrrio s crenas
sociais. Est inserido em uma sociedade em que dinheiro no traz felicidade. O encadeamento normativo Pedro rico, portanto feliz, v a regra (a riqueza traz felicidade). O
encadeamento Pedro rico, portanto infeliz deve, ento, ser bem diferenciado de Pedro
rico, mesmo assim infeliz: o primeiro contradiz a regra segundo a qual a riqueza traz
felicidade; o segundo contenta-se em desobedec-la. Um no transgressivo, apenas pertence a outro bloco semntico, conforme ser visto adiante.
Como os encadeamentos possuem uma interdependncia semntica que unem o
primeiro segmento (A) ao segundo segmento (B) do encadeamento, esses dois segmentos
podem formar oito conjunto de encadeamentos, isso , so oito possibilidades de combinaes, que so chamados de aspectos argumentativos. Isso possvel por meio da alter-
621
nncia de conectores e pela presena da negao. Esses oito aspectos se dividem em dois
blocos semnticos, e a relao entre o segmento (A) e o segmento (B) a mesma dentro
dos quatro aspectos de um bloco semntico. Os quatro aspectos do mesmo bloco podem
ser esquematizados da seguinte forma:
A DC B
A PT NEG-B
NEG-A PT B
NEG-A DC NEG-B
Esses quatro aspectos, ento, so elementos de um mesmo bloco semntico, o Bloco semntico 1. Como dito anteriormente, o segmento (A) e o segmento (B) podem formar
oito conjuntos de encadeamentos. Dessa maneira, os outro quatro aspectos restantes formam outro bloco, o Bloco Semntico 2, que pode ser explicitado da seguinte forma:
A DC NEG-B
A PT B
NEG-A DC B
NEG-A PT NEG-B
Esses aspectos pertencem ao segundo bloco, o qual completamente diferente do
primeiro. Para formalizar a noo de bloco semntico, Carel utiliza o quadrado argumentativo.
Os quatro aspectos pertencentes a um mesmo bloco estabelecem relaes entre si,
que so denominadas conversas, recprocas ou transpostas. Denominam-se recprocos
os encadeamentos A CON B e NEG-A CON NEG-B, em que so mantidos os mesmos
conectores e os segmentos so negados. Os encadeamentos A CON B e A CON NEG-B
so denominados conversos, pois ocorre a troca dos conectores e a negao do segundo
segmento. Enfim, so denominados transpostos A CON B e NEG-A CON B, em que h
alternncia dos conectores e negao do primeiro segmento.
Os esquemas abaixo formalizam os oito aspectos e as relaes discursivas interiores do Bloco Semntico 1 e o Bloco Semntico 2.
622
Aps a definio de bloco semntico, considere-se o enunciado (5) quando colocado no quadrado argumentativo.
623
REFERNCIAS
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RAUBER, Jaime Jos; SOARES, Marcio (Coord.) Apresentao de trabalhos cientficos:
normas e orientaes prticas. 2. ed. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2002.
625
Consideraes iniciais
A revisitao do passado caracterstica marcante da literatura contempornea. Com
tramas arquiteturadas no discurso histrico, muitas obras tencionam um novo olhar para trs,
resignificando eventos e fatos e desestabilizando a unidade e a universalidade da considerada
narrativa oficial.
Nesse contexto, inmeros escritores vm fazendo o que Mielietinski (1987) chama de
mitopotica. Utilizando mitos cristalizados na cultura e inserindo-os em novas diretrizes, esses
escritores dialogam criticamente com o passado, ao mesmo tempo em questionando o imaginrio coletivo.
A representao e a reflexo a partir de mitos faz parte do projeto esttico de Almeida
Faria na obra O conquistador. Nessa narrativa, possvel identificar uma parodia do mito de
Dom Sebastio, atravs de uma leitura contempornea do fenmeno sebstico em Portugal.
A partir dessas consideraes, esse trabalho tem por objetivo propor uma anlise do
processo de construo da releitura mtica, atravs do ertico como elemento satrico, na obra
O conquistador. Para isso, ser percorrida uma trajetria analtica que privilegia a conceituao
do mito, a fim de inserir o sebastianismo nessa categoria, para posteriormente verificar no texto
como esse parodia se processa.
1 O mito e a Literatura
Os mitos so narrativas simblicas, constitudas de representaes que aludem a um
fato, personagem ou ideia. Usualmente, so uma forma de refletir sobre a existncia, expressando vivncias e conflitos humanos.
626
Tendo em vista a complexidade dessa categoria e a trajetria labirntica que seu desenvolvimento percorre, o conceito de mito ainda custoso. Sem alongar essa discusso, ser
adotada aqui a definio de Durand (1997), que concebe o mito como
um sistema dinmico de smbolos, arqutipos e esquemas, sistema dinmico, que, sob
o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito j um esboo de
racionalizao, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os smbolos se resolvem em
palavras e os arqutipos em ideias. (DURAND, 1997, p. 62-63).
A partir disso, convm destacar que a elaborao mtica sofreu alteraes ao longo da
historia, mas est presente em todas as culturas, muitas vezes atravs de imagens recorrentes.
Em sociedades primitivas, os mitos desempenham a funo de explicar a criao - utilizando
solues transcendentais para os problemas humanos e adquirindo assim um forte carter sagrado. Contudo, o mito sempre cifrado, esconde muito mais do revela, nesse sentido, fonte
inesgotvel para leituras e interpretaes.
Tendo em vista que os mitos fazem parte do imaginrio coletivo, possvel afirmar que
exercem forte influncia no comportamento dos sujeitos, tendo um papel social significativo.
Nesse sentido, as funes bsicas da mitologia seriam:
incutir em ns um sentido de deslumbramento grato e afirmativo diante do estupendo
mistrio que a existncia; a segunda funo da mitologia apresentar uma imagem
do cosmos, uma imagem do universo que nos cerca, que conserve no indivduo um
sentido mstico e explique tudo com que ele tenha contato no universo sua volta; a
terceira funo validar e preservar dado sistema sociolgico: um conjunto comum
daquilo que se considera certo e errado, propriedades e impropriedades, no qual esteja
apoiada nossa unidade social particular; (...) por fim, a quarta funo da mitologia
psicolgica: o mito deve fazer o indivduo atravessar as etapas da vida, do nascimento
maturidade, depois senilidade e morte. A mitologia deve faz-lo em comum acordo com a ordem social do grupo desse indivduo, em comum acordo com o mistrio
estupendo. (CAMPBELL, 2008, p.34-36).
Por fim, convm destacar que, para fins didticos e analticos, os mitos podem ser ordenados em diferentes grupos. Entre eles destacam-se os mitos fundadores, os oteriolgicos, os
folclricos e o mitos do eterno retorno, categoria na qual faz parte o mito de Dom Sebastio.
627
1578. Tornou-se rei com apenas trs anos e assumiu a governao com quatorze. Aps a derrota
portuguesa em Alccer-Quibir, batalha travada no norte de Marrocos e liderada por D. Sebastio, desapareceu, dando incio crise socioeconmico e ao mito do sebastianismo.
A batalha de Alccer-Quibir foi considerada por muitos como imprudente, e a derrota
j era prevista. Contrariando a poltica do pas, D. Sebastio almejava a criao de um imprio
no norte da frica, objetivando levar o cristianismo aos mouros. Esse projeto terminou com
metade dos soldados mortos e a outra metade presa.
O desaparecimento do rei D. Sebastio provocou inmeras consequncias para Portugal, sobretudo porque o jovem rei no havia deixado descendncia. O trono portugus terminou
nas mos da Espanha, proliferando um sentimento de desamparo entre o povo lusfono: para
Eduardo Loureno (1992), a perda de D. Sebastio significou a perda de um pai.
Os portugueses nunca aceitaram a morte de D. Sebastio, fato que os levou a difundirem o mito de que o rei ainda estava vivo e regressaria no momento certo para salvar Portugal
da runa. Criou-se assim um clima favorvel para o desenvolvimento do mito em torno de um
messias salvador. No Brasil, o movimento tambm teve ecos, sobretudo no imaginrio do sertanejo nordestino.
Entretanto, embora o mito tenha servido para acalentar a esperana no povo portugus,
tambm serviu para desenvolver um sentimento de estagnao e espera:
O profetismo mtico-ucrnico portugus, tendo tido embora o mais valioso significado ntico e a mais fecunda das funes psicossociolgicas (...), resultou, pois no
mesmo plano poltico em que pretendia situar-se, em avaliao irrealista. Se, durante
o sculo XVI e parte do sculo XVII, alimentou eficazmente a chama patritica, acendendo ou reacendendo o entusiasmo e a f do povo no destino independente da nao,
ao mesmo tempo a espera prolongou-se, acabando por provocar uma expectativa de
inrcia (QUADROS, 1983, p. 159).
O sebastianismo foi alimentado durante sculos, ganhando diferentes feies. Na literatura, o mito assumiu uma fora restauradora, sendo continuamente revisitado. Destacam-se
obras como Os Lusadas de Luiz Vaz de Cames, Frei Lus de Sousa, drama de Almeida Garret e Trovas do Bandarra de Trancoso. Contemporaneamente podemos citar O encoberto, de
Affonso Lopes Vieira, D. Sebastio, de Miguel Torga e O conquistador, de Almeida Faria.
3 Sebastianismo e Literatura
O conquistador, publicado em 1990, pelo portugus Almeida Faria, apresenta um interessante trabalho de composio textual e imagtica - para contar as peripcias de Sebastio
628
629
Ao iniciar a narrativa, Sebastio de Castro no se mostra convencido dessa suposta reencarnao, e ora pende para uma viso ctica e analtica de que as semelhanas entre ele e o
rei so apenas coincidncias, ora parece assumir o discurso da av Catarina:
Este espetculo criou nos presentes, e ignoro se em meu pai, a convico de que no
seria casual a coincidncia de el rei D. Sebastio e eu termos vindo ao mundo no
dia do santo do mesmo nome. (...) Quando cresci e percebi que algo se esperava de
mim, preferi, por instinto, fingir que no era comigo. S muito mais tarde comecei a
interrogar-me, como agora, quando olho aqui de cima, da Peninha, este mar de janeiro
coberto de tiras de neblina. (FARIA, 1990, p. 15)
Os indcios que aproximam os dois Sebasties no se esgotam facilmente: a rvore genealgica tambm esconde semelhanas - ambos tiveram pais chamados Joo e Joana, e uma
av Catarina. Ademais, a personagem tinha sonhos envolvendo cenrios de guerras e mantinha
dilogos imaginrios com duques e condes, como possvel perceber nos fragmentos abaixo:
Segundo meus pais, muitas vezes eu acordava a errar, como se assaltado pelos diabos.
.Mas no eram diabos, eram homens que me queriam estrangular, trespassar espada,
lana ou facada.
A av, pelo contrrio, interpretava meus espetculos como o mais certssimo sinal
de reencarnao predestinada. Sempre que me apanhava em flagrante dilogo com
duques e duquesas, condes e condessas, marqueses e marquesas, Catarina corria a
buscar algum da vizinhana para assistir maravilha. Assim me alcunharam de Rei
da Roca, nome que, quando cresci e comecei a danar, deformei em Rei do Rock (
(FARIA, 1990, p.31 e p.38).
Entretanto, existe uma diferena significativa entre os personagens: o rei Dom Sebastio conquistava naes, enquanto Sebastio de Castro conquistava mulheres. Nas palavras de
Sebastio de Castro, seu objetivo era dedicar em exclusivo quilo em que o Outro estrondosamente falhara ao manifestar pelo belo sexo uma averso extraordinria (FARIA, 1990, p.74).
Por isso, explora os corpos femininos, transforma-os em territrios de luta - mas tambm de
gozo, desejo e volpia. A partir disso, emerge um elemento fundamental para a tessitura narra-
630
631
Consideraes finais
A literatura, valendo do imaginrio popular, revisitou e eternizou inmeros mitos. Alm
disso, criou tantos outros, que dos livros passaram a figurar as crenas coletivas. Nesse sentido,
as relaes entre a literatura e o imaginrio coletivo so inquestionveis.
Sobre o mito sebstico, seu cultivo literrio smbolo do nacionalismo portugus - representa o saudosismo de um povo que j se viu grande e a esperana de quem no aceita a runa. Em O conquistador h um resgate dessa Histria de Portugal e um deslocando o mito para
o tempo presente. Utilizando o erotismo como elemento de parodia, Almeida Faria subverte o
mito de D. Sebastio ao mesmo tempo em que questiona o imaginrio e as crenas portuguesas. Nesse sentido, h um resgate do mito, para desconstru-lo. A obra reflete preocupaes
ontolgicas e questionamentos sobre o processo de autoconhecimento e aceitao (Sebastio
de Castro luta para descobrir quem ) mas tambm revela, atravs do humor e da ironia, uma
leitura descontrada pelo imaginrio portugus.
Referncias
BASTAZIN, V. Mito e potica na literatura contempornea. So Paulo: Ateli, 2007.
DURAND, Gilbert. A imaginao simblica. So Paulo: Cultrix, 1988.
ELIADE, M. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edies 70, 1999.
FARIA, Almeida. O conquistador. Lisboa: Caminho, 1990.
HERMANN, Jaqueline. No reino do Desejado: A construo do sebastianismo em Portugal
(sculos XV e XVII). So Paulo : Companhia das Letras, 1998.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da pardia: ensinamentos das formas de arte do sculo XX.
Trad. Teresa Louro Prez. Lisboa: Edies 70, 1985.
LOURENO, Eduardo. O labirinto da saudade. 5. ed. Lisboa. Portugal: Publicaes Dom
Quixote, 1992.
MEGIANI, Ana Paula Torres. O jovem rei encantado Aspectos da construo e personificao do mito messinico portugus. Dissertao de mestrado apresentada Faculdade de
Histria da USP. So Paulo, 1995.
MIELIETINSKI, Eleazar M. A potica do mito. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 1987.
632
633
CONSIDERAES INICIAIS
O presente ensaio prope uma leitura da obra A Rainha dos Crceres da Grcia, de
Osman Lins. O texto apresenta-se como uma mescla de vrios estilos, como o ensaio acadmico, o dirio ntimo e o romance. Na histria detecta-se um curioso jogo narrativo que beira o
experimentalismo, pois o narrador envereda nas mais distintas instncias e camadas narrativas,
conduzindo o leitor nos entremeios de um labirntico universo recriado a partir da viso de um
perturbado e atento observador.
O livro estruturalmente apresentado como um dirio: o primeiro dia de narrao se
inicia em 26 de abril de 1974 e o ltimo em 23 de setembro do mesmo ano. Nas palavras do
narrador, tudo comea a partir da necessidade de dar sentido s horas livres: Muitas vezes,
durante o ltimo ano, to penoso e vazio, mencionei aqui a inteno de ocupar as horas vagas,
dar-lhes sentido talvez, escrevendo o que Julia, sempre discreta em relao a si mesma, me contou da sua vida, o que testemunhei e o que depois pude saber (LINS, 2005, p.07).1
A partir da deciso de transcrever os manuscritos deixados por sua amante, inicia-se
um transcendental exerccio hermenutico praticado pelo narrador. Ao buscar Julia Marquezim
Enone nos fragmentos de A Rainha dos Crceres da Grcia, o narrador se redescobre no mago
de sua prpria existncia. Este processo indica, segundo a leitura que aqui proponho, trs aspectos vitais: 1) pressupostos que permeiam uma refinada conscincia de construo romanesca:
a mise en abyme e a bricolage enquanto tcnicas; 2) o hermtico: a construo de significado a
partir de uma linguagem hermtica, como a quiromancia e os conceitos alquimicos de calcinao, dissoluo, coobao e ligao;
Estes aspectos mencionados reforam a leitura aqui proposta: a de que a partir da ob1 Neste trecho o leitor pode perceber que possui em mos um dirio e o que parece ser um comeo, na verdade,
a continuidade de algo j iniciado: h um narrador perturbado com sua condio existencial h pelo menos um
ano de escrita confessional.
634
servao e reescrita dos manuscritos deixados por Julia, o personagem ressignifica sua prpria
existncia, pois sua busca o leva, no arbitrariamente, a (con)fundir-se com Maria de Frana, a
personagem principal do livro de sua amiga e ex-amante Julia Marquezim Enone.
***
Para se pensar esta obra de Osman Lins como um grande mosaico constitudo por significaes de ordem mltipla, antes de tudo necessrio considerar algumas tcnicas literrias.
Detectar a essncia conceitual destas ferramentas desde uma perspectiva terica importante,
pois auxilia a entender a no-arbitrariedade das partes que constituem este grande fractal, que
aqui devido ao carter multissignificativo e pluriforme escolhi alcunhar como Mosaico
de Hermes.
O primeiro aspecto que saliento a bricolagem. A reflexo do terico portugus Carlos
Ceia um interessante ponto de partida no processo de compreenso da delimitao conceitual
deste termo. De acordo o autor, a bricolagem um
termo francs que significa, literalmente, um trabalho manual feito de improvisos e
aproveitando toda a espcie de materiais e objectos. Nas modernas teorias da literatura, o termo passa a ser sinnimo de colagem de textos ou extra-textos numa dada
obra literria, o que nos aproxima da ideia de hipertexto. Tambm serve para traduzir
uma prtica dita ps-modernista de transformao ou estilizao de materiais preexistentes em novos (no necessariamente originais) trabalhos. (Dicionrio de Termos
Literrios)2
De fato, o que hoje entende-se por bricolagem veio na esteira das vanguardas europeias
e afirmou-se nas inovaes apresentadas pelo Modernismo brasileiro. O antroplogo de matriz
estruturalista Claude Levi-Strauss foi um dos primeiros a teorizar sobre o conceito de bricoleur3:
O conjunto dos meios do bricoleur no se pode definir por um projeto; define-se somente por sua instrumentalidade, para dizer de maneira diferente e para empregar a
prpria linguagem do bricoleur, porque os elementos so recolhidos ou conservados,
em virtude do princpio de que isto sempre pode servir. Tais elementos so, pois,
2 Retirado de http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=165&Itemid=2
3 A conceituao empregada por LVI-STRAUSS complementa a perspectiva que aqui privilegio. Contudo,
existem reflexes de ordem ps-estruturalistas que buscam colocar em posio de xeque as ideias do estruturalismo francs, especialmente no que tange ao conceito de bricoleur. Fosse este um espao de reflexo propcio,
abordar-se-ia com profundidade este tema. O leitor que tenha interesse em imergir nesta discusso, deve conferir o
texto de Jacques Derrida intitulado A estrutura, o signo e o jogo no discurso das cincias humanas.
635
Apesar de o livro no ser exatamente criado sob a gide deste propsito, o de constituirse somente atravs de fragmentos, os exemplos de bricolagem so abundantes. Um deles pode
ser visto no espao relativo ao dia 2 de setembro, quando o narrador apresenta ao leitor o trecho de uma reportagem supostamente retirada do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em
21/01/19704: Os recursos nacional de Previdncia Social (INPS) dedicado assistncia mdica so insuficientes, e suas dirias hospitalares vm diminuindo em relao ao custo mdico do
paciente-dia. Devido em grande parte a este estado de coisas, 48 hospitais brasileiros fecharam
suas portas. (LINS, 2005, p.30). A reproduo integral da nota supostamente encontrada pelo
personagem-narrador nos arquivos pessoais de Julia M. Enone5 serve, neste caso, para reafirmar
a tese pessoal apresentada por ele de que Julia, de fato, pesquisava sobre o sistema previdencirio. Neste aspecto, uma reflexo plausvel apresentada em nvel metapotico: a questo da
verossimilhana.
Atravs desta estratgia narrativa, torna-se perceptvel a reflexo incitada pela obra,
pois no dia subsequente do dirio (4 de setembro), Maria de Frana, a personagem criada por
Julia M. Enone, empreende uma busca incessante em um hospital a procura de documentos,
debatendo-se ento com o caos na administrao hospitalar pblica: Tem reincio a partida
contra o INPS, mas, com o centroavante do Torre, a mquina emperrada movimenta-se, embora
esse combate seja como lutar em campo adversrio, com um juiz vendido, marcando tudo a
favor do outro lado (LINS, 2005, p.30).
Ao observar este recorte possvel compreender um dos princpios bsicos do bricoleur
mencionados por Lvi-Strauss: os elementos so recolhidos ou conservados, em virtude do
princpio de que estes tero, de fato, uma razo de ser no contexto geral da obra, servindo para
algum propsito.6 Outra passagem, desta vez do dia 20 de agosto, auxilia a compreender o aspecto funcional da bricolagem. Ao longo do livro o narrador interpreta e reescreve os captulos
do romance escrito por sua amante. Raramente o leitor do livro de Osman Lins tem acesso ao
4
Por questes de conscincia terica e construo, no interessa aqui entrar no mrito se de fato a notcia reproduzida no romance de Osman Lins foi, realmente, publicada no referenciado jornal.
5 A ser referida neste ensaio a partir deste momento tambm como J.M.E, a amante do narrador, ou simplesmente
Julia.
6 Curiosamente, no dia 25 de outubro do dirio, o narrador menciona o livro O pensamento selvagem, de LeviStrauss, o mesmo no qual o autor teoriza a bricolagem.
636
que Julia teria escrito. Contudo, neste dia o narrador, aps descrever exaustivamente o estado
de embriaguez de Maria de Frana, insere no texto um recorte que denomina hino da turma,
cantado pela protagonista e fugindo a habitual parfrase:
Mandei fazer um buqu pra minha amada,
mas sendo ele de bonina disfarada,
com o brilho da estrela matutina,
Adeus, menina,
linda flor da madrugada (LINS, 2005, p.28)
Nessa passagem o que marca o discurso das ruas, a oralidade que se apresenta no mago de um texto narrativo. Alm dessa, tambm so encontradas outras formas de bricolagem. Se
no segundo exemplo mencionado h a predominncia de uma linguagem oral e de uma esttica
inclinada poesia oral, no terceiro exemplo predomina uma linguagem estritamente rgida,
situada no mbito do conhecimento jurdico:
8 de agosto
A expresso perodo de carncia indica o intervalo entre a total ausncia de um direito e o seu exerccio: entramos, a, na incerta posse de um bem que em princpio nos
pertence e que ainda no nos favorece. O decreto 72.771, de 6/9/1973, publicado em
suplemento ao nmero 173 do Dirio Oficial da Unio, de 10/9/1973, estabelece no
artigo 41 a carncia de onze contribuies mensais para que o sistema previdencirio
estude a concesso de:
auxlio doena,
aposentadoria por invalidez,
penso por morte,
auxlio recluso,
auxlio natalidade.
A exigncia no abrange todos os benefcios. Dela independe, por exemplo (artigo
42), a aposentadoria nos seguintes casos:
de lepra,
de tuberculose ativa,
de cegueira,
de alienao mental,
de paralisia irreversvel.
O direito assistncia mdica, precria, obtido a partir da primeira contribuio.
Garantido, igualmente, o auxlio para enterro. (LINS, 2005, p.23-24)
Neste recorte, o conhecimento jurdico auspicia a retrica e a verossimilhana perpassada pela obra escrita por Julia Marquezim Enone. Estes trs exemplos elucidam em parte a
637
afirmao de Massaud Moiss em Histria da Literatura Brasileira sobre A rainha dos crceres da Grcia: A tnica a do romance-esttico. Vinculado aos prdromos do nouveau roman,
um romance-colagem, ou mesmo um romance cubista. A inteno do narrador parece menos
contar uma histria que examinar o romance como estrutura (MOISS, 1996, p.512). Este
aspecto, ainda de acordo com o autor, faz com que o romance na viso do narrador tome
propores de meta-romance.
O recurso da bricolagem perceptvel amplamente ao longo da narrativa se d, em partes, em complemento a outro elemento narrativo empregado na construo da obra: a mise en
abyme7. Esta expresso um termo francs que, em traduo livre, pode ser entendido como
Narrativa em abismo. A primeira descrio deste procedimento esttico que se tem notcia
foi feita em 1893 pelo escritor francs Andr Gide8. Em termos gerais, a narrao dentro da
narrao. Massaud Moiss compara este procedimento estrutura das bonecas ucranianas, das
pirmides mexicanas, dos cartazes de propaganda, em que seu todo se encontra reproduzido,
em miniatura, como um detalhe.. (...) o filme dentro do filme, o teatro dentro do teatro, a boneca
dentro da boneca (MOISS, 2004, p.298). Na literatura, este recurso j foi empregado nas
mais diferentes formas, sendo a mais famosa a obra As mil e uma noites, estando as histrias
narradas por Sherazade imbricadas na histria da prpria narradora. Alm disso, em escalas e
propores diferentes, o escritor estadunidense Edgard Allan Poe, o pintor espanhol Diego Velsquez, e tambm o dramaturgo ingls Willliam Shakespeare tambm valeram-se da estrutura
em abismo. Ainda de acordo com Moiss,
A mise en abyme consiste, por meio da viso em profundidade, na reproduo do objeto esttico em tamanho menor, mirando o todo, o olhar converge para o detalhe que
o reproduz. Fixando a retina no pormenor, tem-se a smula reveladora da totalidade
em que se inscreve. Em suma, vemos em pequeno o todo em que se apresenta, como
se o divisssemos em profundidade abismal. Reflexo, espelhamento, narcisismo ou
equivalentes constituem manifestaes prprias desse mecanismo esttico. (MOISS,
2004, p.298)
A Rainha dos Crceres da Grcia se sobressai na cena da histria da narrativa brasilei7 Cabe ressaltar que os exemplos de bricolagem no se esgotam nestes trs exemplos mencionados. No dia 27
de maro, por exemplo, antes de explicitar a forma como Julia M. Enone viera a falecer, o narrador reproduz o
Soneto IV de Petrarca - originalmente em italiano - no qual o poeta discorre sobre a morte de sua amada Laura.
Aps bricolar parte deste soneto, o narrador traa um dilogo imaginrio com Petrarca e revela ao leitor o modo
como Julia perdeu a vida. Cf LINS. p. 133.
8
Ao mencionar dirios ficcionais na histria da literatura, Gide lembrado pelo narrador: Patente a minha desvantagem em um confronto com os fictcios autores de dirios imaginados por Goethe (Werther), por Machado de
Assis (Memorial de Airs), por Gide (Sinfonia Pastoral). Ocupavam-se de mulheres de Carlota, de Fidlia, de
Gertrudes enquanto meu heri s um livro. Ao menos, favorece-me a circunstncia no pouco valiosa de que
o livro e eu somos reais. (LINS, 2005, p.14)
638
Na sequncia do trecho anterior h um outro plano de narrao, desta vez um manuscrito do livro A Rainha dos Crceres da Grcia. Se anteriormente o personagem se encontrava
na condio de narrador, agora ele se identifica como leitor, para depois reescrever o texto de
Julia:
639
Que isso? Espada firme na mo e festa? As sentinelas na costa, nos altos e nos baixos, bocas de ao apontando para os peixes e um escuro de meia-noite dentro do cu
de meio-dia, as claridades dos foguetes perto do balo, esse navio na praa, no cho
seco, cheio de marinheiros, e os bombos, e as rebecas, e as flautas, e as violas, quarenta recrutas nas armas (da ptria filhos?) e uma corneta de batalha, o boi com fitas
verdes nos chifres, alegria, gente, preciso no ver e no pensar nas sessenta torres
marinhas, nas sessenta torres viajantes, carregadas de chumbo, de brotes, de lanas,
de vozes de comando, o povo do Recife encantado e enganado [...] [pp.37-7 do manuscrito] (LINS, 2005, p.134)
A estrutura em abismo possui um carter de espelhamento ou reduplicao. Claude Edmonde Magny, primeiro terico a alcunhar o procedimento esttico descrito por Gide, afirma
que a mise en abyme todo o espelho interno que reflete o conjunto da narrativa por reduplicao simples, repetida ou complexa (MAGNY, 1948, p.53 apud MOISS, 2005, p.298).
O reflexo e o espelhamento vm nas cascatas abismais deste mecanismo de construo. Uma
passagem interessante que elucida e exemplifica bem esta ideia de espelhamento mencionada
por Magny pode ser encontrada no dia 1 de agosto, perodo em que o narrador resolve viajar
at Recife, local onde Julia Marquezim Enone escreveu seu primeiro e nico romance. exatamente nesta parte do livro que surge o aprofundamento da relao alqumica que envolve os
personagens de ambas histrias e planos de narrao. Na busca de uma Julia que existe apenas
em suas memrias, o narrador empreende uma labirntica caada pelas ruas do Recife.
No contexto da obra escrita por Julia, h um personagem chamado Rnfilo Rivaldo. A
primeira meno a este personagem no dirio do narrador se d no dia 4 de agosto. Rivaldo
causa no narrador uma espcie de desconforto e inquietao, conforme confessa: No aqui
o lugar onde tentarei analisar a inquietao, a necessidade de indagar (mas indagar o qu?)
que em mim provoca certo personagem, Rnfilo Rivaldo, surgido no captulo III. Rivaldo
um negro alto e magro, conhecido no bairro conforme relata como Espanador-da-lua. O
personagem uma espcie de mdium que flutua entre o espiritismo , a superstio franca e
o protestantismo (p.22). Ele possui um guia astral chamado Alberto Magno de Titivila. este
personagem, sob a influncia do esprito que supostamente o orienta, quem ensina Maria de
Frana alguns hinos evangelistas e tambm matricula-a em uma escola que ele prprio fundou,
apesar de ser analfabeto.
Ao visitar o Recife, j no plano de existncia do personagem narrador, o professor de
biologia encontra ante a Biblioteca Municipal um homem que o deixa estupefato: Eu esperava
um nibus quando vi atravessar a rua e tomar lentamente a direo do Mappin, acotovelado pela
multido, um indivduo alto, de terno branco. (p.175). O modo de vestir-se do personagem,
bem como a estatura foram os dois indicativos que mais chamaram a ateno do narrador, que
640
Quando encontrou um homem muito parecido com o que imaginara ser Rnfilo Rivaldo, logo em seguida o narrador deu a entender que vira tambm uma mulher muito parecida
com Maria de Frana, sem explicitamente declarar isso. Logo em seguida, no dia 5 de agosto,
empreende uma reflexo em relao problemtica do espao e do tempo: A sequncia por
assim dizer natural destas anotaes devia conduzir-nos, examinando o espao surpreendente
inventado por Julia M. Enone, ao problema do tempo: com ele fundido tanto que, por vezes, s
as custas de artifcio evitei discutir (p.176).
Nesse sentido, pensar a bricolagem e a mise en abyme no contexto de A Rainha dos Crceres da Grcia auxilia a compreender a razo da obra constituir-se como um grande mosaico
composto por tesselas de ordem distinta.
***
Em A Rainha dos Crceres da Grcia h o amplo uso de uma linguagem esotrica9. Isso
se d, principalmente, porque o narrador prope-se a interpretar o livro escrito por Julia Marquezim Enone desde um vis bastante especfico. Na prtica deste exerccio hermenutico, torna por descobrir uma srie de referncias que o levam a epistemologias presentes na linguagem
quiromntica, alqumica e simblica, o que remete a uma matriz de conhecimento que, apesar
de hermtico, consideravelmente consensual na linguagem esotrica ocidental.
9 Convm distinguir a delimitao conceitual entre as acepes de esotrico e exotrico. De acordo com Marcelo
Del Debbio (2009) Exotrico vem do grego exoteriks e refere-se ao ensinamento que em escolas da Antiguidade grega era transmitido ao pblico sem restries, por tratar-se de ensinamento dialtico, provvel e verossmil. J
Esotrico vem do grego esoteriks e refere-se ao ensinamento que era reservado aos discpulos completamente
instrudos nas escolas filosficas da Antiguidade. No mbito da teosofia, o termo esotrico refere-se ao que est
dentro, ao passo que exotrico seria o que se encontra no mundo externo ao individuo.
641
Dessa forma, o carter referencial do romance escrito por sua amante desperta no personagem uma imensa obstinao em decodific-lo. Logo, por incorporar o papel do hermeneuta
mergulhado em nveis de interpretao situados no mbito do conhecimento hermtico, atribuise aqui ao personagem-narrador o arqutipo de Hermes. No apenas o deus Hermes grego, mas
a fuso deste deus com Thoth, o seu correspondente egpcio, que culmina no grande hermeneuta da tradio esotrica ocidental: Hermes Trismegisto.
Trismegisto, aquele que trs vezes grande10, era considerado o deus do verbo, do conhecimento, da escrita e da sabedoria. No dia 29 de outubro do dirio do personagem o narrador
faz uma meno primeira a Hermes-Thoth:
o inquietante jogo de contrastes existente em Rnfilo, ainda que intencional, nada
tem de arbitrrio. Funda-se na tradio de ambivalncia que impregna o auricular,
posto sob o influxo de Mercrio e chamado, pelos quiromantes O Sbio o mesmo
que se reconhece o seu poder de conjurar influncias negativas. Pelos dons e poderes,
Tot, o deus egpcio com cabea de bis, que, com a mesma intrigante ambivalncia,
patrocinava os mgicos e a palavra criadora (atuava ainda, associao surpreendente,
sobre os arquivista e autnomos), correspondente, no entender dos gregos, a Hermes.
(LINS, 2005, p.57).
E exatamente com este advento de criar o mundo a partir da palavra que o narrador (re)
cria o prprio mundo desde o plano de narrao do romance de J.M.E. Sendo Hermes Trismegisto considerado o pai da alquimia11, no surpreende perceber-se acontecer ao longo da obra
parte de algumas operaes alqumicas empregadas pelos velhos alquimistas. No princpio da
obra, por exemplo, quando a narrativa est em seu comeo, o que se percebe um personagem
calcinado pelas experincias malfadadas de sua existncia: Muitas vezes, durante o ltimo
ano, to penoso e vazio, mencionei aqui a inteno de ocupar as horas vagas, dar-lhes sentido... (LINS, 2005, p.07). A calcinao um processo de reduo, a ao repetida do calor
sobre alguma coisa, at dissolv-lo. De acordo com Titus Buckhardt (1994, p.95), a matria
10
Neste aspecto podemos pensar o narrador em sua essncia enquanto leitor do romance de Julia, produtor do
dirio e protagonista da histria.
11
De acordo com Vitor Manuel Adrio, a palavra Alquimia provm do rabe Al-Chemi e significa Qumica
Divina, sendo a sua origem atribuda a Hermes Trismegisto que a registou na sua obra Tbua de Esmeralda,
obra publicada entre o sculo I e III d. C., que foi a fonte de inspirao do pensamento hermtico e neoplatnico
medieval e renascentista. Esta cincia tradicional alastrou depois ndia e China, e na Idade Mdia foi trazida
para a Europa pelos peregrinos que iam Palestina e tomavam contacto com os sbios islmicos que os instruram
nesses conhecimentos hermticos. Da para c, o estudo e a prtica da Alquimia mantiveram-se at aos dias actuais
e a Igreja catlica com mais ou menos reservas tolerou mais a sua filosofia que a sua prtica. (ADRIO, 2013,
p.01)
642
mais precisa que o alquimista obtm a cinza restante da calcinao do metal ordinrio1213. No
plano fsico, a calcinao ocorre quando o sujeito est esgotado e reduzido matria bruta, tal
como se apresenta o personagem-narrador de Osman Lins. Desde uma perspectiva alqumica,
possvel dizer que este o primeiro estgio no processo de transformao do metal bruto em
ouro.
Aps a etapa da calcinao, que o princpio de todas as outras operaes, ocorrem
mais duas etapas no mbito emocional do personagem: a primeira a Dissoluo14, uma espcie de destilao sofisticada. Este processo ocorre logo aps o personagem dar-se conta de que
possua em si a necessidade de fazer algo em relao a Julia Marquezim Enone. Ainda no dia
26 de abril ele admite a vontade de transpor para o papel as histrias que sua amiga lhe contava,
o que testemunhou e o que depois pode ver: Quantas noites, ouvindo o rumor dos veculos
que ascende, indistinto, a esta sala agora sem alma, examino os poucos retratos que deixou?
Sei quase de cor seus apontamentos, e um dilogo nosso, gravado (LINS, 2005, p.07). neste
momento em que o personagem passa a examinar todo o material deixado por J.M.E, contudo
sem algo definido Nos ltimos dias, entretanto, uma ideia vaga e que no quero ainda registrar
comea a rondar-me (p.08). Logo aps, ocorre de fato a dissoluo: aps averiguar e separar os
escritos deixados pela amante (destilar, separar em uma linguagem alqumica), o personagem
finalmente consegue decidir com clareza, a partir deste ato, o que far: A ideia persiste e se
define. Em vez de escrever sobre a mulher, por que no dedicar um estudo ao livro, o seu, que
sempre leio? Mais razovel a alternativa e mais proveitosa. (p.08).
A segunda operao que sequencia a calcinao chama-se Coobao15. Esta operao
consiste em uma repetio destilada sobre uma determinada substncia, at que essa se dissolva. Psicanaliticamente, seria a recuperao de uma emoo perdida que volta a ser o centro
das atenes. Essa operao, evidentemente, ao recuperar algo ao qual no se tinha acesso no
presente, visa dissolver definitivamente as emoes que perturbam o indivduo. Dentro desta
perspectiva possvel afirmar que o exerccio de reescrita do livro de J.M.E um ato cabal de
coobao, pois o personagem recupera uma srie de memrias pessoais de suas experincias
12
Na linguagem alqumica, o corpo fsico considerado o chumbo, metal ordinrio.
13 Al comienzo de la obra, la materia ms preciosa que obtiene el alquimista es la ceniza que resta de la calcinacin del metal ordinario. Con esta ceniza, que ha quedado exenta de toda humedad pasiva, podr fijar el espritu
voltil. (BUCKHARDT, 1994, p.95).
14
De acordo com Vitor Manuel Adrio, a matria slida transformada, dissolvida em lquida, desaparecendo
nesse solvente, assim se tornando a dissoluo filosfica em que essa gua o prprio Mercrio que solve ou
absorve a essncia do elemento qumico diferenciado integrando-a ao seu estado indiferenciado original, ou seja,
a Matria-Prima ou Substncia Universal. O smbolo desta etapa um homem coroado (o Adepto da
Arte Real) banhando-se num lago (as guas mercuriais) expressivo do mergulho dentro de si mesmo. (ADRIO,
2013)
15 Cohobar. (Del b. lat. cohobare). 1. tr. Qum. Destilar repetidas veces una misma sustancia.
(Real Academia
Espaola). Em portugus Coobar.
643
vividas com Julia. No mbito da obra, esta etapa estende-se ainda viagem do personagem a
Recife, a fim de encontrar uma J.M.E perdida.
Evidente que observar operaes alqumicas aplicadas em um nvel mental pode constituir um processo de complexidade analtica. No objetiva-se aqui realizar uma anlise psicanaltica do personagem, mas sim mostrar como o processo de lapidao do personagem respeita uma srie de princpios diretamente ligados a uma linguagem alqumica. Estes princpios
tornam por culminar no final do livro em uma quarta e fatal operao alqumica: a Ligao.
Esta operao constitui-se em um composto artificialmente criado atravs da coexistncia de
duas substancias unidas dentro de um recipiente fechado. Em instncia ltima seria a fuso
que ocorre, nos captulos finais, entre o professor de biologia e a faxineira Maria de Frana:
conjecturalmente o momento em que o leitor perguntar-se-ia o que teria acontecido para que
a personagem do livro tenha fundido-se com o seu leitor de primeira hora e (re)escritor. Este
o processo sugerido pela operao chamada ligao: a partir de dois elementos distintos
muito raramente afinados entre si forma-se um terceiro elemento. Assim, nem o elemento
um mantm-se ntegro, como tampouco o elemento dois consegue manter sua essncia. como
uma juno que d lugar a uma terceira coisa: nem a Maria de Frana da fico de J.M.E, nem o
professor de biologia que veio lapidando-se por suas experincias a partir do momento em que
assumira a empreitada.
Na esfera de referncias da obra, possvel perceber um completo rol de referentes bibliogrfico a obras encontradas no mbito da quiromancia:
Aprofundo-me em textos pouco familiares. Consultado, principalmente, o manual de
J.O von Hellwig, Die Hand, Zusammenfassung der Welt (A mo, resumo do mundo).
Atrai-me esse Hellwig, que se interessava tambm por alquimia, tendo pelo menos
dois livros sobre a matria: Hermaphoditisches Sonn und Mondskind, Mongncia,
1752; e Arcana Maiora, Frankfurt, 1712. A antologia dos Aztecas, Mxico, Los profetas de las manos, que rene textos de Patrcio Tricasse, Gaspar Peuccer, Rodolfo
Goglenius, do capito dArpentigni, de Desbarolles, e de vrios outros cujo nome eu
ainda no ouvira. (LINS, 2005, p.49-50)
644
CONSIDERAES FINAIS
Antes de finalizar esta leitura e apresentar uma ltima chave interpretativa, cabe ressaltar que a mesma no esgota as infinitas possibilidades de compreenso que esta masterpiece de
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Osman Lins porventura possa suscitar. Desse modo, ao se lanar um olhar sobre A Rainha dos
Crceres da Grcia, possvel compreend-la como um ponto luminoso no que tange a sua
esttica no panorama da literatura brasileira da dcada de 70 e tambm do sculo XX.
Em Anjos Cados, o crtico literrio estadunidense Harold Bloom questiona-se: Quais
so os usos de uma conscincia de ser, em alguma medida, um anjo cado? E logo em seguida
responde: Amor e morte, segundo a revelao do hermetismo, surgiram quando o andrgino
Divino Homem criou algo para si prprio ou si prprio. (BLOOM, 2005, p.79). De acordo
com esta perspectiva incitada por Bloom, o amor quem causa a morte, a exemplo do grande
heroi trgico da histria da literatura ocidental, Hamlet. Ele aprendeu que o amor, seja ertico
ou familiar, gera morte. (p.81). Em A Rainha dos Crceres da Grcia o observador pode perceber claramente que essa mxima aplica-se universalmente nas realizaes do personagem.
o amor por J.M.E que condiciona o professor de biologia a uma caada, a um resgate daquilo
que no pode viver em circunstncias anteriores.
Nesse sentido, a importncia da iconografia do mosaico aqui empregada: a partir da
referncias que a obra se significa, como bem exemplificam as inmeras passagens recortadas
do livro Alice no pas das maravilhas, de Lewis Carrol. Logo, no apenas Alice, mas tambm
Maria de Frana e o mito de Enias no inferno. como o narrador se pergunta: A Rainha dos
Crceres da Grcia, visto de um modo transcendental, evoca as buscas do homem - a da salvao?, a do destino?, a da compreenso?, ou todas. Neste ponto percebe-se que a obstinao
pelo significado no mago da narrativa condiciona o personagem ressignificao: Guardemo-nos, porm, amigos, da transcendncia e das suas sedues. Ela pode embotar a acuidade
ao circunstancial e h diferenas entre a peregrinao de Enias (ou a do baleeiro Ahab) e a de
Maria de Frana? (p.66). Nesse sentido, a pergunta lanada pelo narrador talvez pudesse ser
reescrita: Haveria diferena entre a peregrinao de Alice, do professor de biologia, de Enias
e de Maria de Frana? Dessa forma, as inmeras camadas e instncias narrativas se completam
e ressignificam semanticamente os personagens enquanto anjos cados.
possvel afirmar que o ttulo do livro de J.M.E homnimo ao de Osman Lins um
exemplo cabal de unificao dos laos que se entrecruzam em ambas histrias. Em filosofia
hermtica, os crceres da mente16 so habitados por Choronzon, o habitante do Abismo. Este
seria o ltimo estgio de provao no caminho do viajante. No mbito da religio thelemita,
se cr que a funo de Choronzon destruir o ego. No final do livro, exatamente isso o que
ocorre. O personagem percebe a figura de um animal que o remete a nada menos que a Esfinge,
a que convida o grande heroi trgico a decifr-la ou a ser devorado: Numa das vezes em que
ergui os olhos do livro, vi sobre o tapete um animal raqutico e sujo, gato ou gata, de perfil, as
16
Mente, Grcia, filosofia, pensamento e lngua de decodificao complexa (sempre desde a perspectiva de uma
escrita lusfona);
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patas dianteiras estendidas. Como a esfinge! (p.226) Logo aps percebe que algo j no
mais como fora antes
Que animal era este e como pode entrar aqui? Esta pergunta foi como que incinerada
pela combusto do que vi, o intruso era real, e, sem deixar de ser real, era a sua inveno, nele coincidiam morte e perenidade, a orla do imaginrio ascendia e acercava-se
de mim, no s isto, o mundo inteiro apodrecia nesse animal onde reinava o esquecimento, e nele comeava a nascer outra memria. Devagar, sua escurido me invade,
eu me levanto e, sem saber por qu, as mos como luvas no caladas, abro os braos,
sufocando um grito que no sei se de alegria ou de horror (p.226)
Logo aps, percebe que Maria de Frana comea a dominar o seu corpo, e o que acontece um inacreditvel processo de coexistncia mtua. No desfecho, perceptvel que a grande
Rainha dos Crceres da Grcia de ambos ttulos talvez no seja nada mais seno a prpria Esfinge, ou Choronzon na tradio hermtica ocidental. a esfinge quem guarda os crceres da
memria e da busca, e que exige decifrao. Esta imagem aparece, em primeira instncia, na
empreitada de Maria de Frana no apenas nos corredores do INSS, mas tambm na arte de viver: precisava decodificar a linguagem do mundo incognoscvel do INSS e tambm da prpria
realidade. J na esfera do narrador, este sabia que precisava compreender algo o qual no sabia
bem o que. A plurissignificncia do texto de J.M.E suscitou nele um impulso interpretativo que
o fez incorporar um fiel arqutipo de Hermes Trismegistus. Contudo, assim como a infeliz Maria de Frana, o narrador tampouco teria conseguido desvendar o grande mistrio, mesmo tendo
empreendido grande astcia e bagagem literria para interpretar. Assim, como reao adversa
ao fracasso, ambos personagens devorados por suas intenes, acabam por fundir-se a partir da
operao alqumica da ligao, finalmente ressignificando-se no mago de suas prprias existncias, vencidos e unidos pela grande Rainha dos Crceres da Grcia.
REFERNCIAS
ADRIO. Vitor Manuel. As manses filosofais de Praga. Disponvel em: https://lusophia.
wordpress.com/2013/03/ Acesso em: 4 out 2013.
AMORIM. Ana Flavia. et al. O enredo multifacetado de A Rainha dos Crceres da Grcia,
de Osman Lins. Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 187-193
BRAIT, Beth. Bakhtin: Outros conceitos-chave. So Paulo: Contexto, 2010.
BLOOM. Harold. Anjos Cados Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
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Anlise:
O ANDARILHO
1
Os loucos me interpretam.
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*penso que devemos conhecer algumas poucas cousas sobre a fisiologia dos an-
darilhos. avaliar at onde o isolamento tem o poder de influir sobre os seus gestos,
sobre a abertura de sua voz, etc. estudar talvez a relao desse homem com as suas
rvores, com as suas chuvas, com as suas pedras. saber mais ou menos quanto
tempo o andarilho pode permanecer nas condies humanas, antes de se adquirir
do cho a modo de um sapo. antes de se unir s vergnteas como as parasitas.
antes de revestir uma pedra maneira do limo. antes mesmo de ser apropriado por
relentos como os lagartos. saber com exatido quando um modelo de pssaro se
ajustar sua voz. saber o momento em que esse homem poder sofrer de prenncios. saber enfim qual o momento em que esse homem comea a adivinhar.
651
remete ao verbo andar, o que estabelece um ritmo particular. Nesse sentido, a escolha por versos
livres no parece ser aleatrio, pois d ao poema uma liberdade e como se cada verso marcasse
que seu andar no segue uma forma ou um destino fixo. Com exceo do verso 18, todos os
outros possuem um ponto final como se fechassem em si mesmos, em pequenos instantes, que
continuam e retoma seu caminho, o que d aos versos um carter de descontinuidade.
Essas caractersticas estruturais s adquirem sentido ao percebermos a imagem no todo.
Nos trs primeiros versos, o sujeito potico se reconhece como o andarilho e se apresenta:
1
652
constante na nsia de encontrar o fim, pois a expresso atraso o final do dia indica um sujeito
despreocupado:
4 Caminho por beiras de rios conchosos.
O ritmo calmo relaciona-se, a partir do verso 4, com o espao ao qual o andarilho caminha:
rios conchosos.. Apesar de no haver uma relao lgica entre tempo/espao, Schelle (2001)
nos mostra que existe uma diferena entre caminhar nas montanhas, nos vales, na beira do mar,
do rio ou na cidade. Assim, o rio como espao do caminhante no uma escolha aleatria. As
guas seguem seu curso de modo fludo, seu percurso, porm de modo descontinuo. Do adjetivo
conchosos, depreendemos a imagem do rio, pois forma-se a partir do substantivo concha +
sufixo oso. Esse tem sentido de abundncia, existncia em grande quantidade3, o que pode ser
remetido as grandes cheias dos rios pantaneiros. A caracterstica lenta contrape-se ao tempo
acelerado, progressista, peculiar da modernidade, concepo que carrega uma ideia de inovao
e progresso sempre ligado a um processo de urbanizao, no qual o homem pensa ter o domnio
dos processos naturais. .
O caminhante, desse modo, sugere a presena em um espao no qual contempla a
natureza, convive com ela. A lentido, por sua vez, passa a ser caracterstica da imagem, tanto
no sentido morfolgico, na formao do prprio nome do sujeito potico, quanto na escolha
do verbo andar. Tal constatao aproxima-se do pensamento de Gros (2010), para quem
a boa lentido no , necessariamente, contrria rapidez, mas sim a precipitao. Como
exemplificao, o filsofo relata a experincia que teve com seu amigo Mateo ao caminhar no
Alpes italianos, quando uns grupos de jovens barulhentos os pressionavam para ultrapass-los.
Ao chegarem ao topo, Gros e Mateo encontram o grupo de jovens fazendo clculos de sua
escalada, contando vantagens e fazendo comparaes.
Dessa experincia, o filosofo francs afirma que a iluso da velocidade que ela faz
ganhar tempo, quando na verdade ocorre o contrrio, pois a precipitao e a velocidade
aceleram o tempo, que passa mais ligeiro, duas horas apressada encurtam o dia.. Assim, conclui
que os dias que passamos caminhando com calma so longussimos: fazem que se viva mais
tempo, porque se deixou cada hora, cada minuto, cada segundo respirar, apronfundar-se (...)
(GROS,2010: 42/43).
Essa dissonncia na experimentao do tempo tambm est presente nas discusses
propostas por Gaston Bachelard ao contrapor a filosofia de Bergson e Roupnel. O terico afirma
que a durao baseada numa filosofia da ao, enquanto o instante numa filosofia do ato. A
diferena que na perspectiva da ao esta sempre um desenrolar contnuo que se situa
3 In: CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramatica do Portugus Contemporneo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 3.
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entre a deciso e o objetivo, ao passo que o ato antes de tudo uma deciso instantnea, e
essa deciso que encerra toda a carga de originalidade. (BACHELARD, 2010: 23/24). Nesse
sentido, o caminhar para o sujeito potico antes de tudo um ato, pois o afasta de uma ideia de
tempo fsico, computado em consonncia com o relgio.
Se nos trs primeiros versos h apresentao do sujeito potico a partir de seu ponto de
vista; dos versos 5 ao 7 o sujeito lrico apresenta-nos a viso do Outro em relao a si:
5
Esse Outro , representado aqui, pelas crianas. Ao utilizar letras maisculas para
Homem do Saco, o sujeito potico d nfase e eufemiza a imagem do homem que amedronta
as crianas. Ao analisar a obra de Barros, Waldman (1995: 282) diz que a eleio da pobreza,
dos objetos que no tm valor de troca, dos homens desligados da produo (loucos, andarilhos,
vagabundos, idiotas de estrada), formam [na obra do poeta] um conjunto residual que a sobra da
sociedade capitalista.. A viso construda no imaginrio das crianas da sociedade capitalista
que d nfase apenas ao lucro e valoriza o ser pela quantidade de bens materiais; no entanto
Barros subverte o olhar na medida em que focaliza no Ser e no no Ter. Isso fica evidente, pois
o sujeito potico procura inverter essa lgica dando nfase aos objetos descartveis, cujo valor
para ele imaterial.
A inverso entre a nfase no Ter para a nfase no Ser pode ser observada na imagem do
andarilho em outro poema intitulado No tempo do andarilho. O sujeito aparece como um ser
que no conhece ter. (BARROS, 2010: 215). E o sujeito potico ainda acrescenta: No sei se
os jovens de hoje, adeptos da natureza, conseguiro restaurar dentro deles essa inocncia. No
sei se conseguiro matar dentro deles a centopeia do consumismo. (Ibidem). E refora a ideia
quando o eu-lrico No tem nome nem relgio. Vagabundear virtude atuante para ele. Nem
um idiota programado, como ns. (BARROS, 2010: 214). Aqui, o adjetivo programado pode
ser lido como uma das caractersticas s quais o mundo industrializado nos encaminha e nos
automatiza.
A negao desse tempo programado tambm est presente no poema O andarilho, nos
seguintes versos:
10 A minha direo a pessoa do vento.
11 Meus rumos no tm termmetro.
12 De tarde arborizo pssaros.
654
655
Barros, Souza (2010: 71) afirma que este recurso gramatical assume, para o poeta, a funo de
uma ideia de ao, pois no se trata de uma ao de simplesmente negar, contrariar, privar ou
afastar, mas de transfazer. Des uma ao de transfazer as coisas, retirando delas as suas
utilidades.
Essa ideia de transfazer explica a presena de elementos prefixais de negao sempre na
relao com os verbos ser e ter, que lido de maneira descontextualizada nos remete a uma
ideia de essncia e de posse, respectivamente. Por isso, sempre anterior ou posteriormente a esses
verbos h um elemento gramatical de negao, como em Meus rumos no tm termmetro
(v.11). Nota-se o uso de adjetivo, advrbios e desinncias de nmero que modificam o carter
uno do verbo em destaque, como em S conheo as cincias que analfabetam (v.17) e tambm
Sou um sujeito remoto (v.19). Aqui, as cincias, analfabetam e remoto descaracterizam
a estabilidade a qual nos remete o verbo conheo antecedido do S, bem como do verbo
ser.
A interrogao Todas as coisas tm ser?, no verso 18, nos encaminha para a concluso
do poema ao mesmo tempo em que retoma ao questionamento do primeiro verso sobre o ser,
corroborando para a possibilidade do mltiplo, tanto do ser, como das coisas j afirmadas no
incio. A possvel resposta vem nos versos seguintes e finais:
19 Sou um sujeito remoto.
20 Aromas de jacintos me infinitam.
21 E estes ermos me somam.
Esses versos retomam questes j apresentadas no poema, como, por exemplo, a relao
com a natureza, a pluralidade de espaos e a no essencialidade do ser. O retorno, aqui, contribui
para a hiptese de leitura do poema como um instante potico, que para Bachelard (2010) uma
realidade temporal suspensa entre dois nadas. Os dois nadas so o passado e o futuro.
No poema, apenas no primeiro verso nos deparamos com um verbo no passado, sendo
todos os demais conjugados no presente, o que contribui para estabelecer o instante. Cabe
destacar que o instante no exclui o passado, mas o pensa, junto com o futuro, como instantes
no qual esto presentes no mesmo ato. A juno dos tempos confirma-se no ltimo verso: E
estes ermos me somam, pois o nico verso que apresenta um elemento de ligao, o que nos
faz pensar no instante que d unidade a todos os versos anteriores, pois para construir um
instante complexo, para atar, nesse instante, simultaneidades numerosas, que o poeta destri a
continuidade simples do tempo encadeado. (BACHELARD, 2010: 94).
Na expresso sou um sujeito remoto, o adjetivo remoto se relaciona a algo ou algum
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distante no espao e no tempo, contribuindo para a ideia do sujeito e/ou o prprio fazer potico
como um andarilho, que no est restrito a sua terra e/ou ao seu tempo, pois como mencionado
anteriormente a sua direo a pessoa do vento (v.10). Essa ideia de atemporalidade tambm
nos suscita pensar a questo da infinitude do sujeito e de sua criao. No poema, a contraposio
finitude , principalmente, representada no verso 14:
14 No tenho carne de gua.
A expresso carne de gua assume um sentido tanto metafrico, quanto metonmico.
Este quando pensamos carne de gua relacionado ao ser biolgico, fsico (homem), ou seja,
materialidade do ser e aquele se lermos a expresso como espelho no qual o ser mira-se e
percebe seu reflexo. Tanto o primeiro quanto o segundo sentido, ao serem negados pela presena
do advrbio no, encaminha-nos para a relao do andarilho com o fazer potico, no sentido
de esse transcender o ser biolgico, ao mesmo tempo em que nega a poesia como apenas reflexo
desse ser.
A transcendncia, muitas vezes, pode ser percebida pela relao que o sujeito estabelece
com a natureza, como em:
20 Aromas de jacintos me infinitam.
A personificao de alguns elementos naturais um recurso que transfere ao sujeito e suas
caractersticas o carter infinito dos seres naturais:
10 A minha direo a pessoa do vento.
A presena da natureza em Barros constante. Sobre tal assunto, quando questionado,
em uma entrevista, sua resposta foi: o tema da minha poesia sou eu mesmo e eu sou pantaneiro.
Ento, no que eu descreva o Pantanal, no sou disso, nem de narrar nada. Desse modo, no
poema O andarilho percebemos alguns elementos que permeiam o imaginrio do homem
pantaneiro, tais como rios conchosos, pssaros, sapos, jacintos; inclusive o prprio
andarilho, nome dado a um pssaro terrcola que existe naquela regio.
No entanto, Barros utiliza-se das possibilidades que a linguagem potica lhe oferece para
transfazer esse imaginrio. O trabalho com a linguagem indica o instante, pois sua construo
lingustica corresponde transitoriedade e a quebra do tempo como um fluxo contnuo. No plano
existencial pode ser visto como uma crtica aos valores da sociedade de consumo. Entretanto, a
crtica observada pela evidente valorizao do instante, reiterada por meio da ampliao dos
recursos lingusticos.
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Assim, nos valemos de uma das concluses de Bachelard (2010: 65), para o qual no
fundo, mais que a continuidade da vida, a descontinuidade do nascimento que convm explicar.
a que se pode medir a verdadeira potncia do ser. Essa potncia, como veremos, o retorno
liberdade do possvel, quelas ressonncias mltiplas nascidas da solido do ser. A imagem
do andarilho nos apresentada como essa potncia do ser ao recusar a continuidade da vida em
sua horizontalidade e causalidade, fixando-se no instante. No entanto, para que essa imagem
repercuta em nosso ser necessrio nos distanciarmos da racionalidade como meio de perceber
o mundo e as coisas e nos deixarmos surpreender a cada verso.
Por fim, vale ressaltar que o deslocamento contnuo a marca do sujeito potico, o que
nos d a possibilidade de pensar a poesia de Manoel de Barros como movimento constante,
porm no linear e contnuo. O andarilho potencializa a descontinuidade temporal na medida
em que se contrape a imagem de um sujeito ideal construdo pela sociedade de consumo.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BACHELARD, Gaston. A intuio do instante. Trad. Antonio de Padua Danesi. Campinas, SP:
Verus editora, 2010.
BARROS, Manoel de. Poesia completa. So Paulo: Leya, 2010.
GROS, Frdric. Caminhar, uma filosofia. Trad. Llia Ledon da Silva. So Paulo: Realizaes,
2010.
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SOUZA, Elton Luiz Leite. Manoel de Barros: a potica do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras,
2010.
WALDMAN, Berta. Recenses Crticas, n. 135/136 In: Revista Colquio/Letras. 1995, p. 282.
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