Ensaios Noguera Renato
Ensaios Noguera Renato
Ensaios Noguera Renato
A tica da serenidade:
O caminho da barca e a medida da balana na filosofia de
Amen-em-ope
Renato Noguera1
Resumo
O objetivo deste artigo fomentar a discusso sobre filosofia africana
antiga. Ns argumentamos que a filosofia pluriversal. Portanto, a filosofia
no nasceu na Grcia. Com uma crtica ao entendimento equvoco que
percebe a filosofia como algo feito pelo Ocidente. Ns vamos ler filosofia
egpcia, o pensamento de Amen-em-ope. O objetivo apresentar a tica da
serenidade atravs dos caminhos da barca e medidas da balana.
Palvras-chave: Filosofia egpcia. Pensamento de Amen-em-ope. tica da
serenidade.
Abstract
The goal of the present article is to further discussion about Ancient African
Philosophy. We to argue that the Philosophy is pluriversal. Thus,
Philosophy wasnt born in Greece. A critical to the misconception
understand Philosophy as something made by West. We will read Egypt
Philosophy, Amen-em-ope Thought. The purpose is show Ethics of Serenity
through of barge path and measure of balance.
Key-Word: Egypt Philosophy. Amen-em-ope Thought. Ethics of Serenity
Introduo
Sem dvida, os manuais de filosofia convergem para um ponto comum, a
filosofia de origem grega. Mas, diversas pesquisas tm contestado essa primazia
grega, explicitando o carter pluriversal da filosofia. Este artigo pretende apresentar de
modo sucinto e em carter introdutrio, a filosofia africana antiga, especificamente
parte do pensamento egpcio atravs da leitura de um texto de 1300 a.C. O livro de
1
Professor Adjunto de Filosofia do Departamento de Educao e Sociedade (DES), do Programa de PsGraduao em Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
E-mail: renatusjr@gmail.com
A tica da serenidade
Outra questo decorrente do primeiro problema posto est na anlise dos textos
de filosofia antiga [africana]. Para essa tarefa, sem dvida: o vasto material egpcio se
impe como primeira escolha. Amen-em-ope foi selecionado entre autores como PtahHotep, Khti, Meri-ka-r e tantos outros. Amen-em-ope oferece um belo trabalho
filosfico que examina questes ticas. A caminhada deste trabalho se divide em poucas
etapas, primeiro uma apresentao da filosofia egpcia, em seguida, a filosofia de
Egito e filosofia
A tica da serenidade
Pois bem, a questo em foco tambm pode ser formulada nos termos colocados
pelo filsofo sul-africano Mogobe Ramose. O filsofo entende que o problema est
ligado simplesmente ao epistemicdio sistemtico que os povos africanos sofreram
devido aos processos de colonizao impetrada pelos europeus. Por epistemicdio se
deve entender o assassinato de perspectivas intelectuais que no esto dentro dos
cnones europeus, no caso sob anlise, Ramose, Diop e Bernal convergem para um
entendimento comum, a filosofia africana foi invalidade pelos critrios ocidentais de
filosofia.
Muitas(os) filsofas(os) com boa formao ocidental fazem uma objeo que
primeira vista parece muito razovel. Por que usar o termo filosofia para designar
pensamentos de culturas fora do circuito ocidental? Por que no aceitar que a filosofia,
considerando que a prpria palavra grega na origem, emerge de um contexto
histrico, cultural e poltico particular e bastante especfico? A principal rplica integra
os argumentos ramoseanos.
Ramose critica a ideia de universalidade, advogando a favor do conceito de
pluriversalidade. Com isso, Ramose pretende denunciar uma contradio posta pelo
ocidente. A questo simples, como podemos considerar que, apenas, uma perspectiva
particular seja base da universalidade? Por que a Grcia tem direito a fazer da sua
particularidade um exerccio universal do pensamento e outras culturas no tem esse
direito? Se a filosofia universal por que precisa ter uma origem especfica? A
contradio precisa ser solucionada atravs do reconhecimento da particularidade como
um critrio vlido para toda ou para nenhuma filosofia (RAMOSE, 2011, p.11 ). A
abordagem ramoseana nos ajuda a trazer tona mais do que um alargamento do
conceito de filosofia. Mas, carrega outra questo: num aspecto de muita relevncia o
A tica da serenidade
A tica da serenidade
Uma distino importante que Mdw nTr, nome da escrita do Kmt (Kemet),
significa palavra ou falar de nTr [deus]. Enquanto mdt nfr quer dizer palavra bem feita
e remete rekhet. O que denominamos de filosofia no se restringe ao nome grego,
afinal, entendemos que um nome no esgota uma atividade intelectual ampla como a
filosofia. Obenga explica que no Egito antigo existia um termo que circunscrevia a
filosofia, sabedoria e cincia: rekhet. No caso da filosofia, o termo remete ideia de
mdt nfr que podemos traduzir como palavra bem feita ou palavra bonita, fala bem
esculpida e cuidadosamente talhada. O filsofo Ptah-Hotep deixou registros que a arte
da palavra bem feita precisa de humildade, pois os limites da arte no podem ser
alcanados e a destreza de nenhum artista perfeita (PTAH-HOTEP, 2000, p. 247).
Para Ptah-Hotep ele fazia uma arte que nunca tem um artista perfeitamente destro, o
carter inconcluso do rekhet indica que a dissecao perfeita nunca alcanada, se trata
de um artesanato do pensamento que est em contnuo curso. Meri-ka-R em seus
Ensinamentos converge com o mesmo conceito indicando, S um arteso da palavra e
vencers, (pois) a lngua a espada[de um rei]: as palavras tm mais fora que qualquer
combate, o de corao destro no vencido (MERI-KA-R, 2004, p.283-284).
Vale a pena mencionar que o desconhecimento dos textos egpcios fiador dessa
ideia inverdica de que os filsofos africanos antigos no tratavam das questes do ser.
O escopo deste artigo no vai levar adiante as indagaes, por assim dizer, metafsicas
do Egito antigo. Mas, relevante registrar que boa parte da crtica est assentada na
ignorncia dos escritos africanos. O estudo de Obenga, uma pesquisa que sistematizou
um longo perodo da histria africana, cobrindo mais de dois mil anos, no deixa
dvidas quando justifica a existncia de escolas filosficas no Egito antigo, explicando
que a arte da palavra perfeita [medet nefer] tambm denominada de rekhet significa:
A tica da serenidade
10182) traz a Stira das profisses escrita por Khti e que remonta 19 Dinastia. O
texto elenca diversas profisses, destacando o trabalho de escriba como o de melhor
sorte, por ser tido como aquele que ouve, e o (bom) ouvinte o que age (KHTI,
2000, p.224). O agir considerado um resultado do que sabe ouvir Maat [verdade,
justia, harmonia]. Pois bem, neste trabalho devido s limitaes de um artigo
acadmico, vamos nos ater a um filsofo egpcio, Amen-em-ope.
A filosofia de Amen-em-ope
Quem foi Amen-em-ope? Quais as questes colocadas pelo seu pensamento
filosfico? Ns encontramos mais de uma figura proeminente chamada Amen-em-ope.
O quarto Fara da 21 Dinastia. Mas, o autor dos Ensinamentos (2000) que foram
preservados na ntegra e esto acessveis no Papiro 1074 do Museu Britnico datam
aproximadamente 1300 a.C. e so de autoria do alto funcionrio de mesmo nome, filho
de Ka-nakht, um escriba (ASANTE, 2000, p.107).
Os caminhos da barca
A transliterao do hierglifo
A tica da serenidade
as vicissitudes da vida. O que a barca promove? Ora, a barca mais do que uma
alegoria, ela depet e medet nefer, ela evita que nos tornemos uma pessoa inflamada, o
uso da barca rekhet, antdoto de fala que tal como uma tempestade irrompe como
fogo na palha, assim o homem inflamado em sua hora (AMEN-EM-OPE, 2000, p.
265). A fala inflamada artefato de palavras sem preparo e faz do homem que as emite,
barqueiro de palavras enganosas (Idem, p. 269). O que Amen-em-ope tenta evitar so
as palavras enganosas e o tipo de pessoa que as diz. O que significa que estamos diante
de uma questo tica. Na cultura kemtica, tica diz respeito ao agir reto, capacidade
de viver em equilbrio consigo diante dos desafios e escolhas. O que passa por um
exerccio filosfico de afastamento da inflamao que impede o discernimento. A
capacidade de discernir um tipo de travessia existencial dentro de uma barca que no
se deixa levar pelas intempries externas. Ou seja, mesmo diante dos problemas
concernentes vida, no devemos ter pressa em respond-los, correndo o risco de que a
irritao seja guia do pensamento e das palavras.
A medida da balana
A palavra Maa vem do termo Maat significando certeza, ordem e balana
(ASHBY, 2005, P. 23). Para uma incurso a respeito da balana como quesito filosfico
na tradio egpcia, precisamos tratar de Maat. A palavra balana [Maa] est
intimamente ligada ao nome da deusa. Maat representada como uma mulher (negra)
segurando o smbolo de Ankh [vida] numa das mos e um cetro na outra, ela usa uma
pena de avestruz na coroa.
A balana recheia inmeras narrativas kemticas. Na cosmoviso egpcia a
balana um signo que remete medida da justia. Muata Ashby em Introduction to
Maat Philosophy ajuda leitores e leitoras a empreenderem um mergulho profundo sobre
as grandes questes filosficas de Maat.
Coming Forth by Day], traduzido equivocadamente como O Livro dos mortos por
muitos especialistas, encontra na traduo do filsofo e socilogo Maulana Karenga
uma primorosa exposio dos princpios de Maat e os protocolos comportamentais no
tribunal depois da morte. Maat uma deusa muito importante na cultura egpcia, seu
nome no pode ser traduzido por um s termo; Maat circunscreve retido, verdade,
harmonia e justia. Ela filha de R, deus do sol, casa da com Toth, deus do
conhecimento e da escrita, responsvel por pesar o corao dos que deixam o mundo
dos vivos. Maat d a medida da balana, o juzo pautado pela verdade.
Na cosmoviso egpcia, o ser humano formado por cinco elementos, ka, ba,
akh, sheut e ren. Os termos, apesar de difcil traduo, apontam para fora vital (ka);
corao/alma (ba); fora divina (akh) sombra (sheut) e identidade (ren). O endereo
ps-morte fsica um julgamento, ba pode ser traduzido como corao [alma] deixa
o corpo material acompanhado do ka fora vital vai, guiada pelo deus Anbis, para o
tribunal presidido pelo deus Osris. Diante de Osris, o corao da pessoa que deixou a
vida terrena colocado num dos pratos da balana (Maa), Maat, deusa da justia coloca
sua pena de avestruz no outro prato. O objetivo medir o peso, se o corao for leve,
uma vida melhor ser dada como recompensa, festejando a vida eterna. Mas, se o
corao for mais pesado do que a pena, a pessoa iria se encontrar com Ammit, deus com
cabea de crocodilo, corpo de leo e membros inferiores de hipoptamo responsvel
por aterrorizar as pessoas que tm o corao pesado por uma vida fora da medida (da
harmonia).
No texto de Amen-em-ope, a balana aparece como guia importante. No dcimo
sexto captulo dos Ensinamentos, o filsofo egpcio adverte: no altere as escalas nem
falsifiques os pesos ou diminuas as fraes da medida (...). O Macaco posta-se junto
balana (AMEN-EM-OPE, 2000, p. 273). importante explicar que Macaco uma
alcunha para Toth, esposo de Maat, deus da sabedoria, conhecimento e escrita. As
narrativas sobre Maat e Toth indicam e circunscrevem o que denominamos de medida
da verdade ou peso da verdade remetendo Maat. Em paralelo, coextensivamente
medida da verdade, encontramos a escrita da verdade, esta, por sua vez diz respeito
ao esposo de Maat, Toth. A medida e a escrita da verdade, da justia, harmonia e
conhecimento so como as duas asas do bis ou da avestruz. O bis s pode voar com as
duas, a avestruz tampouco pode se equilibrar e andar sem percalos com uma somente.
Na mitologia egpcia, Maat e Toth perfazem um casamento que d o panorama e os
detalhes daquilo que a rekhet [filosofia] busca.
A questo em jogo como a medida da palavra e, por conseguinte da escrita,
devem estar devidamente alinhado ao peso e medida da verdade. Amen-em-ope alerta,
no captulo 17, Guarda-te de alterar a medida (Idem, p.273). O adequado falar
pautado pelo silncio, preparando a palavra enquanto artfice tomando a medida da
A tica da serenidade
questo: a possibilidade de uma vida feliz. Numa leitura sistemtica da tradio egpcia,
Ashby aponta um aspecto que atravessa o trabalho de alguns filsofos, incluindo o de
Amen-em-ope, a felicidade s pode vir do conhecimento de si (ASHBY, 2005, p.84).
O discernimento o veculo que torna possvel o conhecimento de si, o que torna vivel
a felicidade. De modo simples, uma pessoa serena algum que conhece a si, sabe
sobre si porque usa do discernimento e, portanto, pode levar uma vida feliz
independente do destino. Ashby alerta que no existe uma diferena efetiva entre
destino e ao. A questo central est no discernimento que a filosofia propicia para
viver com a ao tomada. Uma ao tomada com discernimento equivale a falar depois
do silncio que encontra a si antes da palavra ser arremessada para fora. Dito de outro
modo, a serenidade uma posio moral sugerida por Amen-em-ope. Mas, para atingir
esse estado, o que se realiza discernindo silenciosamente sobre a medida da verdade.
Ora, o discernimento silencioso proposto por Amen-em-ope incide sobre os
cinco elementos constitutivos de uma pessoa ka, ba, akh, sheut e ren. Um mergulho em
si mesmo, traz tona as nuances mais especficas de cada elemento, fora vital (ka);
corao/alma (ba);
A tica da serenidade
pessoas e escritas que foram forjadas e gestadas na frica de 1.300 anos antes da Era
Comum.
Referncias bibliogrficas
ALLEN, J. Genesis in Egypt, The Philosophy of Ancient Egyptian Creation Accounts,
New Haven: Yale Egyptological Studies 2, 1988.
__________. Middle Egyptian: an introduction to the language and culture of
hieroglyphs. Publisher: Cambridge University Press, 2001.
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a frica na filosofia da Cultura.
Traduo Vera Ribeiro. So Paulo: Editora Contraponto, 1997.
ASANTE, Molefi. The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotep to
Akhenaten. Illinois: African American images, 2000.
BAINES, John; MALIK, Jaromir. Cultural Atlas of Ancient Egypt. London:
Andromeda Oxford Limited, 2004.
BBC, Documentary. Chapter 6 The Secrets of the Hieroglyphs (no Brasil: Captulo 6
O Segredo dos Hierglifos)
CARREIRA, Jos. Filosofia Antes dos Gregos. Mem Martins: Publicaes EuropaAmrica, 1994.
COELHO, Liliane C. Hierglifos e Aulas de Histria: Uma Anlise da Escrita Egpcia
Antiga em Livros Paradidticos In Revista Mundo Antigo Ano I Volume I
Junho 2012.
DIAGNE, Mamouss. De La Philosophie et des philosophie en Afrique
noire. Dakar/Paris: IFAN/Karthala, 2006.
DIOP, Cheikh Anta. Antriorit des civilisations ngres: mythe ou vrit historique?
Paris: Prsence Africaine, 1967.
______________. Nations ngres et culture, t. i, Paris: Prsence africaine, 1954.
______________. Parent gntique de lgyptien pharaonique et des langues ngroafricaines, Paris: IFAN/NEA, 1977
OBENGA, Thophile. Ancient Egypt and Black Africa. Chicago, IL: Karnak House,
1992.
_________________.Egypt: Ancient History of African Philosophy In WIREDU,
Kwasi. A companion to African Philosophy. Oxford: Blackwell Publishing, 2004, pp.
31-49.
________________.La philosophie africaine de la priode pharaonique (2780-330 a.
C.), Paris: LHarmattan, 1990.
________________. Lgypte, la Grce et lcole dAlexandrie. Paris: LHarmattan,
2005.
RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Traduo
Dirce Eleonora Nigro Solis, Rafael Medina Lopes e Roberta Ribeiro Cassiano. In:
Ensaios Filosficos, Volume IV, Outubro de 2011. Disponvel em:
<http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf>. Acesso
em 01.12. 2013.