Argumentos Sobre o Aborto
Argumentos Sobre o Aborto
Argumentos Sobre o Aborto
Pedro Madeira
King's College London
passa que, ao usar este argumento de que "as pessoas f-lo-iam na mesma", os defensores da
legalizao do aborto esto implicitamente a partir do princpio de que o roubo eticamente
incorrecto, ao passo que o aborto, se no eticamente correcto, ser, pelo menos, eticamente
permissvel. Assim que nos apercebemos disto, v-se claramente que, ao usar o argumento de
que "as pessoas f-lo-iam na mesma" para tentar justificar a legalizao do aborto, os defensores
da legalizao esto, pura e simplesmente, a fugir questo.
frequentemente dito que o aborto errado "porque vai contra a dignidade da pessoa humana",
ou "por causa da santidade da vida humana". Este um daqueles argumentos que me deixam a
coar a cabea, tentando descobrir o que que algum poder estar a querer dizer com isto. A
interpretao mais caridosa , talvez, a interpretao religiosa, segundo a qual a nica coisa que
este "argumento" diz que atribuda uma alma ao feto no momento da concepo, pelo que
imoral mat-lo em qualquer momento da gravidez. Este argumento talvez seja suficiente para
convencer uma pessoa religiosa de que o aborto imoral. No entanto, dado o seu carcter
religioso, no um argumento que possamos usar contra a legalizao do aborto. ( de notar, de
passagem, que a prpria ideia de uma alma a ser "atribuda" (por assim dizer) no momento da
concepo problemtica. No estou a falar no problema de saber o que , supostamente, uma
alma, a sua composio j nem vou to longe. O problema o de que no h um momento
preciso em que se d a concepo. Essa apenas uma iluso. A fertilizao um processo
gradual que leva cerca de vinte e duas horas. dificil perceber em que altura que a alma
supostamente ser "atribuda".) Uma interpretao menos caridosa deste argumento dir que,
das duas, uma: ou o argumento simplesmente vcuo o opositor da legalizao consegue
pouco mais ao avan-lo do que aclarar a garganta; ou ento o argumento est, pura e
simplesmente, a fugir questo e no h mais nada a dizer. Dizer que o aborto imoral porque
o feto tem dignidade intrnseca, ou coisa que o valha, um "conversation-stopper". Vi uma vez
um episdio curioso num debate televisivo em que um dos convidados avanou este argumento,
mas vou deixar essa interessante histria para depois cont-la-ei na ltima seco (a oitava).
no ventre da me. As feministas podem agora aceitar esta concluso, ou rejeit-la. Imaginemos
que a aceitam. Nesse caso, ficam com a dificuldade de explicar porque que no podemos
matar uma crianca recm-nascida. Afinal, podamos mat-la dois minutos antes, mas agora j
no? Isso parece extremamente arbitrrio. Imaginemos agora que as feministas rejeitam a
concluso de que moralmente permissvel abortar no nono ms. Nesse caso, tero de nos dizer
a partir de que altura que o feto, ainda na barriga da me, comea a ter o direito vida.
Independentemente de como escolham responder a este problema, uma coisa certa: ao admitir
que no moralmente permissvel abortar no nono ms, uma feminista ter acabado de
abandonar o argumento de que "o corpo da mulher, a mulher que sabe o que h-de fazer com
ele". O mximo que uma feminista poder dizer que, at determinado estdio da gravidez,
moralmente permissvel abortar. A partir dessa altura, o feto adquire o direito vida. De
qualquer maneira, se o argumento feminista de que "o corpo da mulher, a mulher que sabe o
que h-de fazer com ele" fosse mesmo levado a srio, ento isso teria a implicao de que a
prostituio devia ser legalizada. Afinal, o corpo da mulher. Todavia, quase certo que
qualquer feminista que se preze se opor legalizao da prostituio, com o argumento
habitual de que a prostituio degrada a mulher condio de mero objecto sexual.
H um mau argumento usado pelos opositores da legalizao do aborto que no , em bom
rigor, um argumento: apenas o chamado apelo s emoes. Aquando do perodo imediamente
precedente ao referendo, assisti, com algum desconforto, a uma campanha chamada "No
matem o Zzinho", a qual, se no estou em erro, distribuiu vdeos em que eram mostrados
abortos verdicos. Tambm constatei que houve pelo menos um partido que ps fotografias de
bbs sorridentes em outdoors. E, de um modo geral, em vez de se falar em zigoto, embrio, ou
feto, falava-se na "criana ainda por nascer". certo que os defensores da legalizao tambm
recorriam, aqui ou ali, a linguagem envenada, como por exemplo quando se referiam ao feto
como "um amontoado de clulas". Mas o apelo s emoes por parte dos defensores da
legalizao no foi, ainda assim, to descarado como o apelo s emoes por parte dos
opositores da legalizao. Suspeito que um nmero considervel de votantes tenham sido
influenciados por essas imagens e mudado, consequentemente, as suas intenes de voto. Esta
uma maneira deplorvel de conduzir uma campanha. Os outros maus argumentos a favor e
contra a legalizao do aborto que tive a oportunidade de analisar na seco anterior e nesta (e
que continuarei a analisar na prxima seco) so apenas isso: maus. Mas o apelo s emoes
no apenas um mau argumento: um argumento perigoso. a prpria histria do sculo XX
que no-lo ensina.
devemos considerar que o feto tem o direito vida e explicarei porque que acho que todos os
outros critrios esto errados. Essa ser a parte positiva da minha argumentao.
Os argumentos que fazem uso da potencialidade geralmente tm a seguinte estrutura: o feto ,
em potncia, um ser humano; todos os seres humanos, quer sejam apenas seres humanos em
potncia ou no, tm o direito vida; logo, o feto tem o direito vida. Este um mau
argumento porque foge questo. Aquilo que est em disputa a segunda premissa: no , por
isso, permissvel inclu-la num argumento. E , de qualquer modo, falso que, se um ser tem
potencialmente um direito, ento tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidado portugus,
sou potencialmente presidente da Repblica; o presidente da Repblica o Comandante
Supremo das Foras Armadas; no entanto, da no se segue que eu seja agora o Comandante
Supremo das Foras Armadas. Poder ser objectado que estou simplesmente a fugir questo: a
analogia no funciona o feto tem o direito vida desde a concepo, mas eu s adquirirei o
estatuto de Comandante Supremo das Foras Armadas caso venha a ser eleito Presidente da
Repblica. O problema com esta objeco que foge, ela prpria, questo! Se estivssemos
desde logo a partir do princpio de que o feto tem o direito vida desde a concepo, ento para
que que precisaramos de invocar o estatuto de potencialidade do feto?
Aquele a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos" faz o percurso inverso.
Primeiro, nota-se que a criana, quando nasce, tem o direito vida. Depois, acrescenta-se que
no h grande diferena entre a criana dois minutos antes de nascer e agora, que acabou de
nascer. Isso significa, certamente, que tinha o mesmo direito vida dois minutos antes de
nascer. E, se a coisa assim, ento certamente tambm teria o direito vida quatro minutos
antes de nascer. E por a fora at ao momento da concepo. (A concepo no um processo
instantneo, como alguns parecem pensar; j expliquei isto na segunda seco, e aprofundarei
na prxima seco.) Este argumento falacioso. Para ver que , basta pensar no seguinte
argumento anlogo, que claramente falacioso:
O Jorge no careca; o Z tem menos um cabelo na cabeca do que o Jorge; logo, o Z tambm
no careca. O Eduardo tem menos um cabelo na cabea do que o Z; logo, o Eduardo tambm
no careca. E, como a diferena de um cabelo no parece ser suficente para delimitar a
fronteira entre os carecas e os no carecas, chegamos ao caso do Manuel, que no tem qualquer
cabelo na cabea. Para sermos consistentes, devemos dizer que o Manuel tambm no careca,
o que claramente falso.
Em ambos os casos, a falcia a mesma. O facto de haver casos de fronteira no significa que
no haja casos em que seja fcil dar uma soluo. O facto de haver pessoas acerca das quais no
saberamos bem dizer se so ou no carecas no significa que no haja pessoas que so
Concepo
Como j tive oportunidade de mencionar, muitas pessoas parecem pensar que h um momento
concreto em que se d a concepo; mas isto falso. A fertilizao um processo gradual que
demora cerca de 22 horas. Primeiro, o espermatozide penetra no vulo, deixando a cauda do
lado de fora. Nas horas seguintes, o espermatozide e o vulo so, ainda, duas coisas distintas,
embora o espermatozide j esteja dentro do vulo. S ao fim das ditas 22 horas que j temos
um nico objecto: o zigoto. Mas vamos fingir que no h esta dificuldade: vamos fingir que h
um momento concreto em que se d a concepo. Ainda assim, a concepo no poderia marcar
o momento em que o feto adquire o direito vida. Presumivelmente, um beb recm-nascido e
um ser humano adulto tm algo em comum que lhes garamte a ambos o direito vida. O que
que o zigoto teria em comum com um bb recm-nascido e com um ser humano adulto que
bastaria para lhe atribuirmos, igualmente, o direito vida? No conheco qualquer resposta
convincente. O opositor do aborto que favorece o critrio da concepo geralmente tenta usar o
argumento da potencialidade para mostrar que o zigoto tem o direito vida. E esse argumento,
como j vimos, muito fraco.
Implantao
A implantao a altura em que aquilo que vir a ser o feto se "agarra" parede do tero. Isto
geralmente acontece seis a oito dias aps a fertilizao. facil ver que a implantao no pode
ser o critrio correcto. O que que no existe, no quinto dia, que passa a existir no sexto?
Aparentemente, nada. Ocorrem alteraes hormonais no corpo da mulher, mas no claro que
relevncia moral isto possa ter.
Forma humana
O feto comeca adquirir forma humana por volta das seis a oito semanas. At essa altura, podia
parecer apenas "um amontoado de clulas", como os defensores da legalizao costumam dizer,
agressivamente. Poder ser o facto de que o feto adquire forma humana que lhe garante o direito
vida? No. Se uma avestruz passasse pelas mos de um cirurgio talentoso e adquirisse forma
humana, acha mesmo que adquiriria, s por isso, o direito vida? No se j no o tinha
antes, no era agora que ia passar a t-lo.
Acelerao ("quickening")
Normalmente, a me comea a aperceber-se dos movimentos do feto por volta das 16/17
semanas aps a fertilizao. H pessoas que defendem que aqui que o feto comeca a ter o
direito vida porque precisamente na altura em que a me sente o feto "a dar pontaps" que se
cria uma empatia especial entre ela e o feto. Este tambm um mau argumento. O facto de um
ser ter ou no o direito vida no pode estar dependente de termos ou no empatia para com ele
(ou ela). Se no podemos dizer que o feto comea a ter o direito vida quando comea a mexerse, ento tambm no podemos dizer que comea a ter o direito vida quando a me se
apercebe, pela primeira vez, desse movimento.
suficiente para que tal suceda. Nessa altura, a nica parte do crebro que est mais ou menos
desenvolvida a que se ocupa de funes bsicas, como o ritmo cardaco e a respirao.
Viabilidade
Diz-se que um feto se torna vivel quando pode sobreviver fora da barriga da me (ainda que
com recurso a cuidados mdicos), o que acontecer algures entre as 20 e as 23 semanas.
Argumenta-se por vezes que a viabilidade do feto marca a altura em que o feto adquire o direito
vida, dado que a partir desta altura o feto j no necessita da me. Este critrio sofre de um
problema bvio: a altura da viabilidade do feto determinada pelo estado da tecnologia
existente. Isso torna arbitrria a adopo do critrio da viabilidade. No futuro, a viabilidade
pode passar a ser mais cedo mas isso no significa que o feto adquira o direito vida mais
cedo.
H ainda uma ltima posio que, tanto quanto me pude aperceber, no muito discutida na
bibliografia de biotica, mas que aparece, de vez em quando, em debates pblicos: o
gradualismo. O gradualismo a posio de que o direito vida uma questo de grau, e que o
feto vai progressivamente adquirindo maior direito vida medida que a gravidez avana no
tempo. H um sentido trivial em que concordo com o gradualismo: a partir da vigsima quinta
semana, o feto vai adquirindo progressivamente maior direito vida, e, em termos morais,
matar um feto com 30 semanas no , certamente, a mesma coisa que matar um feto com 40
semanas. No entanto, no possvel usar o gradualismo para argumentar a favor da posio de
que o zigoto tem o direito vida. Ao usar esta linha de argumentao, uma pessoa estaria a cair,
subtilmente, no erro de usar o chamado "argumento dos dois minutos", que, como j vimos,
falacioso.
A minha posio no facilmente rotulvel. Dado que acho que h uma altura a partir da qual
imoral abortar, no me considero "pr-escolha". E, dado que acho que moralmente permissvel
abortar at certa altura, tambm no me considero "pr-vida". Se pensarmos que temos de ser
ou pr-vida ou pr-escolha, ento ficamos perante um grande dilema. Se somos pr-escolha,
ficamos com a dificuldade de explicar porque que o infanticdio no permissvel, dado que
seria permissvel abortar no nono ms. Se somos pr-vida, ficamos sem nenhuma histria para
contar para explicar porque que o zigoto tem o direito vida s podemos bater na mesa e
repetir que o aborto vai contra a dignidade da pessoa humana. Ao apoiar um critrio que me
parece convincente, escapo ao dilema.
Dado que h inumeros critrios possveis para definir a partir de que altura o feto tem o direito
vida, os opositores da legalizao costumam reclamar que, se nem os defensores da legalizao
esto de acordo acerca do critrio a usar, segue-se que devemos ser cautelosos e tratar o feto
como se tivesse o direito vida desde a concepo. Esta objeco falha o alvo. verdade, sim,
que h desacordo entre os defensores da legalizao acerca de qual o critrio a usar. Mas a nica
coisa que daqui se segue que no se pode recorrer a argumentos de autoridade para defender
um dado critrio. uma regra elementar da argumentao que no permissvel usar um
argumento de autoridade para tentar estabelecer uma dada concluso quando as autoridades no
esto de acordo entre si. No entanto, daqui no se segue, de modo algum, que um critrio
particular seja to bom como qualquer outro. E, de facto, acabei de falar dos critrios mais
debatidos na bibliografia e, como se pde ver, s um deles parece defensvel. Seja como for, na
prxima seco olharei para este argumento da cautela em maior pormenor e explicarei por que
acho que no colhe.
Tenho vindo a discutir vrios argumentos a favor e contra o aborto. Agora, porm, vou analisar
um argumento especial que os opositores da legalizao costumam usar em desespero de causa.
Este argumento no procura estabelecer que o aborto imoral, mas apenas que o aborto no
deve ser legalizado porque o debate acerca da moralidade ou imoralidade do aborto
inconclusivo.
A estratgia argumentativa a seguinte: Se o aborto moralmente permissvel, ento ao tomar a
atitude de no legalizar o aborto estaremos apenas a dificultar desnecessariamente a vida s
mulheres que pretendiam abortar ("dificultar a vida" um eufemismo, obviamente). Por outro
lado, caso o aborto seja imoral, estaremos a autorizar um assassnio em larga escala. O problema
com este argumento o de que toma a seguinte forma: "podemos achar que os argumentos
contra a permissibilidade moral da prtica X no so convincentes; no entanto, como as
consequncias morais de X ser imoral seriam terrveis, mais vale abstermo-nos de realizar X".
Este um princpio de deciso a que comum chamar "princpio de eliminao do risco". A
ideia simples: imagine que o leitor tem vrias opes disponveis. Uma delas tem a
possibilidade nfima de causar um desastre. Por isso, o leitor deve abster-se de escolher esta
opo. No dificil perceber porque que no devemos empregar este princpio. Imagine que o
leitor presidente de uma empresa que vende champs ao domiclio. Um dos seus vendedores
vem ter consigo, com ar solene, mas cauteloso, e diz-lhe que acha que a empresa devia deixar
de vender o champ "Charmoso". Perplexo com este comentrio, dado que o champ Charmoso
, precisamente, o champ mais popular junto dos consumidores, pergunta-lhe, inquieto, quais
as suas razes. O vendedor diz-lhe que duas pessoas foram atropeladas, no mesmo dia, logo
aps usar o dito champ, pelo que a empresa corre o risco de ser processada por vender um
champ que d azar aos utilizadores.
Como bvio, este um argumento nada convincente. A coisa certa a fazer , sem dvida,
continuar a vender o champ Charmoso. extremamente escassa a probabilidade de que seja
um dia aprovada uma lei (com efeitos retroactivos, ainda por cima) que permita processar uma
empresa por vender produtos azarentos. E a probabilidade de que o champo Charmoso seja
mesmo azarento mais escassa ainda. O problema com o princpio de eliminao do risco est
agora vista: o princpio pede-nos que negligenciemos a qualidade dos argumentos
apresentados. Se houver um argumento qualquer a defender que X uma consequncia possvel
de fazer Y e que X uma coisa terrvel, ento, por pior que esse argumento seja, o melhor
mesmo no fazer Y. Este um princpio que no parece l grande ideia adoptar. O princpio s
entra em cena se houver um empate entre os argumentos a favor da posio de que X uma
coisa terrvel e os argumentos a favor da posio de que X no uma coisa terrvel. Quando no
se mostrou que h esse empate, falacioso invocar o princpio de eliminao do risco.
O leitor poder achar, contudo, que usei o exemplo de uma deciso comercial, ao passo que o
princpio se aplica, fundamentalmente, a questes ticas. Esta no uma crtica justa, dado que
a objeco que apresentei contra o argumento igualmente pertinente quer tentemos aplic-lo
na vida de uma empresa, quer na nossa vida tica quotidiana. Um princpio de deciso aplica-se,
supostamente, a todas as decises que temos de tomar no dia-a-dia, quer estejam relacionadas
com a nossa vida moral ou no. Mas vou, ainda assim, tomar esta preocupao em linha de
conta e apresentar um exemplo de uma questo tica em que o princpio poderia ser empregue.
Imagine, ento, que aparecia algum a dizer que as rvores tm direitos. Nesse caso, ele poderia
apelar ao princpio de eliminao do risco e dizer: "vocs podem achar que os meus argumentos
no so muito convincentes; no entanto, pensem nas terrveis consequncias morais de eu estar
certo. Estaramos a autorizar anualmente o assassnio de milhes de arvores inocentes pelo
mundo inteiro." Se aceitssemos o princpio de eliminao do risco, ento seramos forados a
deixar de deitar abaixo rvores. Mas no h qualquer razo para fazermos isso, dado que os
argumentos a favor da posio de que as rvores tem direitos no so convincentes. As pessoas
podem reclamar que o caso das rvores no semelhante ao do feto, pelo que a analogia no
funciona. No semelhante? Se o leitor pensa isso, porque est implicitamente a partir do
princpio de que o aborto imoral. No entanto, como j tive oportunidade de mostrar, no h um
empate entre os argumentos a favor da posio de que o aborto uma tragdia moral e os
argumentos a favor da posio de que o aborto no uma tragdia moral. Pelo contrrio
tanto os argumentos frequentemente usados em debates pblicos como os principais argumentos
usados na bibliografia de biotica parecem maus. E, embora alguns argumentos apresentados a
favor da legalizao do aborto sejam maus, h outros que parecem decisivos. Os argumentos
no so como mas num cabaz: a "podrido" passe a expresso de uns no afecta a
qualidade (boa ou m) dos outros. (O facto de muitos dos argumentos a favor de uma dada
posio serem nitidamente maus pode provocar um preconceito espontneo contra uma posio,
mas essa outra histria.) Concluindo: falacioso estar a usar o princpio da eliminao do
risco para argumentar que, por uma questo de precauo, o aborto no deve ser legalizado,
dado que no h um empate entre os argumentos contra e a favor.
A quem queira ter uma posio informada acerca do assunto, aconselho dois livros. Em
primeiro lugar, Ethics in practice: an anthology, organizado por Hugh LaFollette, tem uma
seco acerca do aborto que contm quatro artigos, sendo que dois deles so j classicos: "A
Defense of Abortion", de J. J. Thomson, e "An Argument that Abortion is Wrong", de Don
Marquis. um escndalo que um livro destes ainda no esteja publicado em Portugal. [Ambos
os artigos, e outros, foram entretanto publicados no livro A tica do Aborto, org. de Pedro
Galvo (Dinalivro, 2005).] No admira que, em termos de divulgao da biotica, ainda
estejamos na idade da pedra. Em segundo lugar, A Defense of Abortion, de David Boonin, a
defesa mais convincente (e exaustiva) do aborto que j alguma vez li, e a minha discusso do
aborto foi muito influenciada pelo livro. Como foi publicado recentemente (2003), achei por
bem retirar daqui todos os dados cientficos de que necessitei. Alguns dos argumentos que
discuti aqui no aparecem no livro porque so demasiados maus. Achei por bem discuti-los,
ainda assim, porque vm muito baila em debates pblicos em Portugal.
Se o leitor concorda que o aborto deve ser legalizado, ento est igualmente ciente de que
enfrentamos agora um grave problema poltico: o referendo foi realizado h apenas 5 ou 6 anos
atrs e a resposta foi "no". Se fizermos outro referendo agora, estaremos a desautorizar os
votantes, a trat-los como crianas. Se, por outro lado, o aborto desta vez for legalizado sem
recorrer a um referendo, ento no se percebe para que se fez o primeiro referendo: bastava ter
legalizado logo e pronto. Como as coisas esto que no podem continuar: o aborto deve ser
legalizado at s vinte e cinco semanas. Penso que o melhor a fazer simplesmente legalizar o
aborto sem recorrer a um novo referendo. Nesta altura, algum poder objectar que um
referendo acerca da legalizao do aborto sempre necessrio, tal como um referendo acerca da
entrada de um qualquer pas na Unio Europeia sempre necessrio. Discordo. Talvez faa
sentido repetir-se um referendo acerca da entrada de um dado pas na Unio Europeia porque as
condies de entrada mudam ao longo do tempo. Os cidados de um pas podem ver que as
vantagens de entrar para a Unio aumentaram, e nesse caso podero votar a favor da entrada do
pas na Unio. No entanto, o caso moral a favor e contra o aborto no mudar substancialmente
ao longo dos anos. por isso que esta uma deciso que no deve ser deixada aos votantes: a
legalizao do aborto no deve passar pelo referendo. Seja como for, isso agora um problema
para os politicos.
Em Inglaterra, onde me encontro a residir h cerca de trs anos, as coisas so diferentes. Sem
querer dar uma lista muito extensa, podemos dizer que os seguintes filsofos tm vindo a dar
contribuies pblicas para a discusso de problemas ticos ao longo de vrios anos
(escrevendo livros de divulgao para o grande pblico, escrevendo para jornais, participando
em comisses ticas, etc): Bernard Williams (que faleceu no ano passado), Jonathan Wolff,
Mary Warnock, Simon Blackburn, Roger Scruton, Anthony Grayling e Raimond Gaita. (Isto
apenas em Inglaterra: na Amrica, h outros tantos.) Deixe-me dar apenas um exemplo concreto
da participao directa de um filsofo ingls num caso polmico: o caso de Diane Pretty. Diane
Pretty tinha uma doena terminal e pediu autorizao ao Supremo Tribunal para que o marido
pudesse desligar-lhe a mquina sem por isso incorrer numa pena de priso. No sei bem se o
caso chegou a ser divulgado em Portugal, mas pelo menos em Inglaterra fez correr muita tinta.
Lembro-me de h dois anos estar a passar os olhos peloGuardian e ver um artigo de Grayling,
em que ele defendia que a eutansia devia ser permitida no caso de Diane. Nessa altura,
apercebi-me de que este tipo de coisa raramente ou nunca acontece em Portugal.
Em Portugal, frequentemente apregoado que a filosofia "o lugar crtico da razo", mas isto
na prtica letra morta. Os filsofos portugueses quase no participam na vida pblica, ou,
quando participam, geralmente com um discurso demasiado vago para poder ser propriamente
avaliado, ou demasiado dogmtico para poder ser levado a srio.
O resultado mais visvel da ausncia de filsofos nas discusses pblicas em Portugal o de
que, como Paulo Carvalho diz, acabam por ser convidadas as pessoas erradas para debates:
cientistas, jornalistas, polticos, telogos e juristas. Embora competentes nas suas reas,
geralmente no tm grande conhecimento da bibliografia relevante de biotica. De modo a
exemplificar isto, deixe-me contar-lhe um episdio marcante de um debate acerca da clonagem
num canal de televiso portugus. (Abster-me-ei de dizer o canal, a data e os intervenientes de
modo evitar polmicas desnecessrias seria errado fazer disto uma questo pessoal.) Nesse
debate, um habitu dos debates televisivos sobre biotica dizia ao jornalista que tinha ido a uma
conferncia de especialistas europeus em biotica e que tinha sido capaz de convencer a
audincia de que a clonagem era errada. O jornalista perguntou-lhe, expectante, qual havia sido
esse argumento. O entrevistado respondeu que a clonagem era errada porque ia contra a
dignidade da pessoa humana. O jornalista ficou momentaneamente a olhar para o entrevistado,
incrdulo, e perguntou, com ar desconfiado, se tal havia bastado para convencer a audincia, ao
que o entrevistado respondeu afirmativamente. O jornalista evitou delicadamente fazer qualquer
comentrio e apressou-se a passar a palavra a outro convidado.
Este o tipo de coisa que pode acontecer quando so convidadas as pessoas erradas para
discutir questes ticas. Felizmente, h pelo menos duas excepes notveis a este panorama