A Viagem A Maior Flor Do Mundo
A Viagem A Maior Flor Do Mundo
A Viagem A Maior Flor Do Mundo
RESUMO: Trs anos aps receber o Prmio Nobel da Literatura, Jos Saramago
publica o conto A Maior Flor do Mundo, ilustrado por Joo Caetano, que narra
a aventura ecolgica de um jovem heri para longe da zona de conforto da
sua comunidade, rumo ao altrusmo. O presente estudo aborda as temticas do
crontopo e dos diferentes tipos de viagem, incluindo a ecolgica, enquanto
estratgias e motivos literrios quer na narrativa saramaguiana, quer na sua
adaptao como curta-metragem pelo guionista e realizador galego Juan Pablo
Etcheverry em 2007.
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Afirmamos num outro estudo (PUGA, 2004) que a metafico uma das
caractersticas mais inovadoras deste conto infantil, e o mesmo pode ser afirmado
relativamente narrativa flmica, sendo o prlogo de ambas as obras marcado pelo
exerccio metaficcional, que frequentemente associado ao paradigma ps-moderno
e que enfatiza a tentativa do narrador contar, ou melhor inventar, um conto que se
quer simples, como as crianas. Trata-se, portanto, de um jogo retrico durante o
qual o narrador-escritor confessa que no consegue contar histrias para crianas, mas
comea a relatar como seria a histria que contaria caso o soubesse fazer, e, quando
acaba, a histrica est contada.
A adaptao do conto e a sua transformao em narrativa flmica ou audiovisual
por Etcheverry levanta questes sobre a autoria do texto transformado, que
obviamente, e apesar de conter vrios excertos do texto original, da responsabilidade
do guionista, mas criado a partir do conto original de Saramago. alis bvia a
liberdade criativa de Etcheverry ao construir, com a cooperao do autor portugus,
a sua verso de A Maior Flor do Mundo (SARAMAGO, 2001), que ora se aproxima,
ora se afasta do texto de partida, com o qual mantm forosamente uma relao
de intertextualidade no apenas literria mas tambm cultural, saindo a mensagem
ecolgica reforada na curta-metragem.
O incipit e o eplogo metaficcionais das narrativas de que nos ocupamos
remetem para a esttica da recepo de um determinado tipo de literatura, a infantil,
e acabam por negar a simplicidade que muitas vezes lhe associada. A primeira
parte das obras consiste na introduo metaficcional que, no caso do conto, se
estende ao longo de quatro pginas at ao momento em que o narrador, que se
auto-caracteriza como humilde, apresenta o heri-viajante e tambm deixa clara a
sua prpria viagem interior, antes de narrar a do protagonista annimo, pois em
tempos achara que a sua histria seria a mais bela escrita desde o tempo dos contos
de fadas e princesas encantadas H quanto tempo isso vai! (SARAMAGO,
2001, p.6). A viagem igualmente a do leitor citadino implicado e interpelado pelo
narrador, ou seja, o aluno que dever procurar os significados de vocbulos difceis
no dicionrio ou perguntar ao professor, remetendo quer para a aprendizagem
formal na escola, quer para a aprendizagem informal ou centrada no aluno que
age e aprende por si mesmo, como o heri menino (SARAMAGO, 2001, p.9)
do conto.
A viagem um tema recorrente na Obra de Saramago como o demonstram,
entre outras, as seguintes obras: A Viagem a Portugal, em 1981, a viagem da Passarola
e de Blimunda em O Memorial do Convento, em 1982, A Jangada de Pedra, em 1986,
O Conto da Ilha Desconhecida, em 1997 e A Viagem do Elefante, em 2008, sendo
essa temtica tambm transportada para a curta-metragem. Relativamente ao ltimo
romance por ns referido, o trajeto do elefante no sculo XVI que lhe d ttulo
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funciona como uma metfora da vida humana, como sugere, desde cedo, a prpria
sinopse da obra, tal como o tambm A Maior Flor do Mundo, pois metaforiza,
como veremos, o altrusmo, o respeito do ser humano pelo equilbrio ecolgico,
bem como vrios tipos de viagem: a aventura geogrfica e interior do protagonista
e a viagem da leitura. Esta ltima viagem envolve o narrador e o leitor/espectador
criana e adulto, como revela a provocatria sinopse que se encontra na contracapa
do livro A Maior Flor do Mundo em forma de interrogao e que, por sua vez, encerra
a narrativa flmica galega: E se as histrias para crianas passassem a ser de leitura
obrigatria para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que h
tanto tempo tm andado a ensinar?. Tal como as demais epgrafes-sinopses nos
romances de Saramago, esta estratgia literria encerra uma chave de leitura e de
interpretao da mensagem que o Autor quer fazer passar, ou seja, indica ao leitor
que os adultos ensinam a generosidade, a Ecologia e o valor do humani(tari)smo
desinteressado mas, na realidade, no os praticam, gerando-se, desde cedo, o binmio
em torno da inocncia da criana e do solipsismo que caracteriza o mundo adulto.
Alis, na curta-metragem o individualismo adulto mais proeminente, pois no a
comunidade a procurar o menino que se ausentara, mas apenas os seus pais, juntandose a aldeia apenas no final, incluindo o Saramago-escritor, para observar a flor vertical
que embeleza o horizonte. Por sua vez, essa mesma sinopse-epgrafe que interrompe
o enredo da curta-metragem guisa de concluso dialoga intertextualmente com a
dedicatria de uma outra obra infanto-juvenil, O Pequeno Prncipe, de Antoine de
Saint-Exupry (1993, p.5):
Peo perdo s crianas por dedicar este livro a uma pessoa grande. Tenho uma
desculpa sria: [] essa pessoa grande capaz de compreender todas as coisas,
at mesmo os livros de criana. [] Eu dedico ento esse livro criana que
essa pessoa grande j foi. Todas as pessoas grandes foram um dia crianas. (Mas
poucas se lembram disso).
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representando uma planta que parece querer ascender at ao sol e que, muito
provavelmente, ir continuar a sua existncia na Casa dos Bicos, em Lisboa,
para mostrar como neste mundo tudo est ligado a tudo, sonho, criao,
obra. o que nos vale, o trabalho.
(SARAMAGO, 2009).
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lhe atribui o estatuto de heri com base no gesto altrusta de cuidar de uma flor
desconhecida que precisava de ajuda. A comunidade reconhece, assim, a grandeza
do gesto humanitrio e ecolgico do jovem heri, demonstrando-lhe isso mesmo
atravs do chamado reforo positivo. Como este estudo demonstra, so inmeras
as diferenas entre as duas narrativas ao nvel da caracterizao das personagens, do
enredo e da simbologia. Na curta-metragem de Etcheverry o ambiente e a comunidade
rural so diferentes dos modelos originais, bem como a famlia do menino, apenas
composta pelos seus jovens pais, atarefados com a construo de um lar num bairro
e comunidade recm-construdos e que se assemelham a um estaleiro de construo
civil povoado por maquinaria e gruas e rodeado por campos ridos nos quais a flor se
destaca. Na adaptao flmica as palavras do narrador do conto original do lugar s
imagens em movimento e sobretudo ao silncio das personagens cujos movimentos
so, no entanto, pautados pela msica de Emilio Aragn. O enredo reduzido e
centra-se sobretudo no objetivo da viagem ecolgica, ou seja, no salvamento da flor,
no se observando, por essa razo, o reconhecimento final do jovem heri por toda
a aldeia. Se as adaptaes de romances tendem, regra geral, a desagradar a crticos
literrios caracterizados como puristas pela indstria do cinema (ELLIOTT, 2003;
LEITCH, 2007), notrio o agrado quer de Jos Saramago, uma voz literria
presente no incio e no fim da curta-metragem, quer do pblico espectador que
reconhece o romancista como personagem de plasticina e voz off na adaptao visual
de Etcheverry.
No conto, a viagem-aventura tambm tem lugar no espao fsico das pginas
do livro onde se encontram representados ou sugeridos os espaos da ao e o tempo
cclico da infncia marcado sobretudo pela brincadeira: Logo na primeira pgina, sai
o menino pelos fundos do quintal, e, de rvore em rvore, como um pintassilgo, desce
ao rio (SARAMAGO, 2001, p.10). A viagem sinnimo de felicidade e liberdade,
enquanto o movimento cronotpico2 do menino faz avanar a narrativa em ambas
as narrativas. O carcter cronotpico da viagem, bem como as experincias sensoriais
e intelectuais enriquecem assim o saber que a criana adquire sobre o mundo que
o rodeia, num processo gradual de aprendizagem informal. A viagem, cronotpica
por natureza, um tema constante no conto, cuja ao comea e termina no espao
familiar da aldeia do protagonista, enquanto na adaptao flmica o menino vive num
mundo mais fechado pelo muro do seu jardim e pelo automvel em que se desloca
Bakhtin (2000, p.84) define a dimenso cronotpica do romance como [] the process of assimilating
real historical time and space in literature [...] the intrinsic connectedness of temporal and spatial relationships
that are artistically expressed in literature [...], it expresses the inseparability of space and time [...]. Spatial and
temporal indicators are fused into one carefully thought-out, concrete whole. [[...] o processo de assimilao do
tempo real histrico e do espao na literatura [...] a relao intrnseca entre tempo e espao que so artisticamente
expressas pela literature [...], expressa a inseparabilidade do tempo e do espao [...]. Os indicadores espaciais e
temporais fundem-se tudo concreto e bem estruturado] (traduo nossa).
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ABSTRACT: Three years after being awarded the Nobel Prize in Literature, Jos
Saramago published the short-story A Maior Flor do Mundo, illustrated by Joo
Caetano, which represents the ecological adventures of an altruist young hero far away
from the comfort zone of his community. This article studies both the chronotope and
the different kinds of voyage (including the ecological) as literary motives both in the
narrative and in its screen adaptation, the short film A Flor Mis Grande do Mundo
by Juan Pablo Etcheverry (2007).
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