O Narrador Devassado Um Olhar Sobre o Filho Eterno
O Narrador Devassado Um Olhar Sobre o Filho Eterno
O Narrador Devassado Um Olhar Sobre o Filho Eterno
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar o ponto de vista do narrador na obra O filho eterno,
de Cristovão Tezza, com ênfase na representação da evocação memorialística da personagem
principal. Discute-se aqui como a memória surge na consciência por meio de fluxos descontínuos e
como a narrativa, por sua vez, simula esse movimento pendular, que não segue um padrão linear. A
linguagem fragmenta-se, com discursos em primeira e terceira pessoas, provocando um efeito de
confusão entre personagem e narrador. Destaca-se, ainda, nos fluxos de consciência do “pai”, uma
sinceridade absoluta, expressa em linguagem objetiva, que emerge a partir da devassa em suas
recordações mais recônditas, oscilando entre a vergonha do filho com síndrome de Down e a
dedicação à provisão de estímulos motores e intelectuais para torná-lo uma criança “normal”. A
fundamentação teórica da argumentação empreendida neste texto consiste em reflexões de Alvarez,
Candido, Ginzburg e Naves, dentre outros.
ABSTRACT: This article aims at analyzing the narrator´s point of view in Cristovão Tezza´s O filho
eterno, with an emphasis on the representation of the memorialistic evocation from the main
character. Here we discuss how memory arises in consciousness through discontinuous flows and
how the narrative, in turn, simulates this pendular movement, which does not follow a linear pattern.
The language breaks up with speeches in first and third person, causing a confounding effect
between character and narrator. It is also emphasized in the flows of consciousness of the "father",
an absolute sincerity, expressed in objective language, emerges from the devastation in its remotest
memories, oscillating between the shame of the child with Down's syndrome and the dedication to
provision of motor and intellectual stimuli to make him a "normal" child. The theoretical foundation of
the argumentation undertaken in this text is based on reflections of Alvarez, Candido, Ginzburg and
Naves, among others.
INTRODUÇÃO
O filho eterno, de Cristovão Tezza, narra a história de um homem que, à espera de
seu primeiro filho, é surpreendido com a notícia de que ele tem síndrome de Down. A partir daí
o caráter afetivo de sua paternidade é colocado em questão, agravado pelo pouco
conhecimento que se tinha sobre tal condição à época do nascimento (década de 1980). De
imediato, o pai nutre pensamentos pessimistas e se revolta com um destino que lhe parece
injusto. Nos meses seguintes, entretanto, esforça-se para tornar o filho o mais parecido possível
com uma criança normal, por meio de estímulos motores e cognitivos.
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Aos poucos, a narrativa do cotidiano familiar, com seus desafios e suas recompensas,
cede espaço a digressões por fatos do passado da personagem principal. A aparente
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arbitrariedade dessas cenas, assim como o espanto inicial causado no leitor pelo discurso
sincero do “pai”, suscitam interesse pela figura do narrador da obra e pelas razões de suas
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Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Professora de Redação e de Filosofia no
Colégio Técnico de Bom Jesus/Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: ceciliaguedesba@gmail.com
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Doutor em Teoria e História Literária. Professor de Literatura na Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-
mail: fabricioflores@gmail.com
DA CONTEMPORANEIDADE DO ROMANCE
Partindo da narrativa tradicional para a moderna, o romance assume as (e também é
influenciado pelas) questões de modificações de perspectiva, na sua “evolução”. O que
direciona o romance e que apresenta seu ponto de vista é o narrador. Walter Benjamin (1987),
nas primeiras décadas do século XX, afirmou que a arte da narrativa estava em processo de
extinção, ocasionado pela insuficiência em narrar experiências traumáticas, como no final da I
Guerra. É nesse sentido que ele problematizava a possibilidade mesma da narração, pois não
havia como expressar a experiência vivida de fato.
Determinados temas são difíceis de narrar, por evocarem episódios ainda não
elaborados psicologicamente, latentes em recantos da memória. Abordá-los, devido à sua
complexidade, implica também um embate com a linguagem. Em uma narrativa ficcional, isso
também ocorre. O escritor procura formas de representar essa insuficiência, acessando
diferentes camadas da constituição psicológica das personagens e/ou incorporando na
estrutura da obra as complexidades do mundo social que o cerca, como explica o autor Antônio
Candido (2011).
Ainda nessa seara, Benjamin afirma que “O extraordinário e o miraculoso são narrados
com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre
para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que
não existe na informação” (BENJAMIN, 1987, p. 203). O autor se refere às comunidades
arcaicas, quando a informação começou a ser difundida, e distingue a recepção do leitor na
informação e nas histórias, o que é capaz de realizar em cada uma delas. O contexto psicológico
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representada por meio da literatura, em que autores (como Machado de Assis, por exemplo)
mudanças e inovações que ocorriam na época. Sobre as sensações e expressão artística como
representação da vida social, Naves afirma:
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James, em seus prefácios (1907-09), nos diz que se encontrava obcecado pelo
problema de encontrar um “centro”, um “foco” para suas estórias, o que foi
solucionado, em larga medida, pela consideração de como o veículo narrativo
podia ser limitado pelo enquadramento da ação na consciência de um dos
personagens da própria trama (FRIEDMAN, 2002, p. 169).
filho com síndrome, do casamento, de tal maneira que o leitor percebe a maturação da
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Seria agora um pai, o que sempre dignifica a biografia. Será um pai excelente, ele
tem certeza: fará de seu filho a arena de sua visão de mundo. Já tem pronta para
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A expectativa pelo primeiro filho faz o pai acreditar que nele terá as suas qualidades,
faz ainda com que acredite na vida e na religiosidade, ainda que por poucos instantes. Esse
momento otimista será raro a partir de então, pois não fazia ideia que a surpresa de ter um filho
com síndrome de Down o abalaria tanto.
Nota-se, além do otimismo do pai, a alternância da voz no texto. No primeiro período
ocorre a terceira pessoa (voz do narrador) referindo-se ao pai, e no período seguinte a voz é a
do próprio pai referindo-se ao filho (“O filho será a prova definitiva das minhas qualidades”). A
voz do narrador é, na maioria das vezes, interior, como reflexão no texto, mas não compartilha
com ninguém, nem mesmo com a esposa. Alvarez afirma sobre a voz do narrador: “Mas é um
pacto de mão dupla: o escritor trabalha para criar ou encontrar uma voz que irá alcançar o
leitor, fazendo-o apurar ouvidos e prestar atenção” (ALVAREZ, 2006, p. 19). Essa é a finalidade
da voz na narrativa, direcionar o leitor a ouvi-la e interpretar a história de acordo com o seu
posicionamento.
A síndrome de Down, na década de 80, era conhecida como mongolismo. O pai
representa a grande parcela de pessoas e a visão delas diante de um portador de trissomia do
cromossomo 21. Palavras ríspidas e duras são recorrentes no início do relacionamento. Ao
mesmo tempo que o despreza, o pai faz de tudo para estimulá-lo e torná-lo uma criança cada
vez mais “normal”.
Sua revolta é contra todos, até contra a esposa e Felipe; não quer construir afetos
com ele, a dureza com que o trata é evidente e assustadora, qualifica o filho como “pedra inútil”.
Para viver quase como uma criança normal, os médicos dizem aos pais de Felipe que é preciso
estimulá-lo durante toda a vida. Contudo, o pai escolhe a omissão ao invés da aceitação, por
isso convive com a angústia por muitos anos sem expressá-la às pessoas, e esse tempo é
percebido durante toda a narrativa, quando decide escrever sobre o filho com síndrome de
Down. E, mesmo quando decide fazer isso, expressa-se de maneira inconformada e revoltada,
principalmente quando fala sobre a brevidade da vida de Felipe:
O desejo do pai consiste em aliviar a dor que o angustia, a frustração em não ter tido
um filho saudável. Nesse trecho, vê-se que ele antecipa o dia do enterro do filho, imagina como
tudo aconteceria, com suas descrenças e ideologias. A solução para esse problema seria a
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morte de Felipe. O pai se expressa por meio da escrita. Marcando a narrativa, a rejeição e o
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desprezo que sente pelo filho, em princípio, são representadas na linguagem e interrupções da
voz do narrador.
Esta criança não me dá nenhum futuro, ele se viu dizendo. Não estou condenado
a nada, ele quase diz em voz alta. Posso ir a Moçambique dar aula de português
para uma tribo perdida no mato, e nunca mais voltar. Ou entrar nos Estados
Unidos e trabalhar como varredor – já fiz isso na Alemanha, posso fazer de novo
-, enquanto escreveria livros que me tornariam célebre, com outro nome. Eu
posso – ele se via dizendo, com uma irritação crescente contra a própria
impotência (TEZZA, 2011, p. 56).
Eu não tenho competência para sobreviver, conclui. Não consegui nem um único
trabalho regular na vida. Penso que sou escritor, mas ainda não escrevi nada.
Tudo que tenho é um filho recém-nascido que deve morrer em breve. Mas essa,
mas essa morte próxima, esse – ele gaguejava, tentando não pensar nisso,
acendendo outro cigarro, tentando recuperar o fio de uma rotina que simulasse
normalidade, o que fazer agora? Almoçar? – mas esse fato, essa morte
anunciada, parecia-lhe, nesse momento, o único lado bom de sua vida (TEZZA,
2011, p. 33).
Ao revelar um pensamento difícil, problemático, que gera dor, o narrador hesita, gagueja, insere
travessões, indicando formalmente a dificuldade de abordar o tema. O pai, por sua vez, na
época, estudante de letras e desempregado, faz alguns “bicos”, como revisar trabalhos
acadêmicos e consertar relógios. Seu desespero aumenta quando se frustra com o nascimento
de Felipe e pensa que fracassou mais uma vez, desejando, assim, a morte do filho, e isso é o
que o “acalma”. Imaginar que ele não viverá muito tempo é a solução das suas angústias, e
esse sofrimento é representado na linguagem, ao inserir elementos e repetições que
materializam a dificuldade em falar sobre seus pensamentos.
Em toda a obra há momentos e descrições em que se nota essa dificuldade do pai em
expressar os seus próprios pensamentos, e o autor explora, além do uso de travessão e
repetição, o uso de interrogações e reticências; a fim de indicar o desconforto do pai. Vale
lembrar que não se trata apenas da hesitação do pai materializada no texto, mas também de
outras personagens da obra, como no trecho abaixo, em que os professores explicam a
síndrome para o pai de Felipe. Na ocasião, o narrador faz uso de reticências e repetição:
Tudo pode ser recomeçado, mas agora não; tudo pode ser refeito, mas isso não;
tudo pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo é de uma solidez granítica
e instransponível; o último limite, o da inocência, estava ultrapassado; a infância
teimosamente retardada terminava aqui, sentindo a falta de sangue na alma,
recuando aos empurrões, sem mais ouvir aquela lenga-lenga imbecil dos médicos
e apenas lembrando o trabalho que ele lera linha a linha, corrigindo
caprichosamente aqui e ali detalhes de sintaxe e de estilo, divertindo-se com as
curiosidades que descreviam com o poder frio e exato da ciência a alma do seu
filho. Que era esta palavra: “mongoloide” (TEZZA, 2011, p. 26).
No trecho acima, o pai expressa o sentimento de luto por não ver solução para o caso
de Felipe, ao mesmo tempo que lembra do trabalho de genética que revisou. Há uma esperança
de que algo poderia ser feito, porém torna-se difícil aceitar a situação logo com seu filho que foi
tão desejado.
Ao mesmo tempo em que se distancia do filho, aproxima-se dele pela própria síndrome.
Felipe precisa ir a médicos especialistas que o ajudem no desenvolvimento mental e físico, e é
nesse momento que há a real convivência dos dois, sem que percebam. Ainda que não haja
solução para Felipe, o pai vai em busca de tratamentos médicos que ajudem o filho a evoluir.
Entre os aspectos que chamam a atenção na leitura da obra O filho eterno, destacam-
se aqueles a que Ginzburg (2000) faz referência – a estrutura da narrativa e o contexto –,
levando em consideração a organização estrutural da linguagem (se a narrativa é fragmentada
ou linear) e a análise do enredo. O discurso, por exemplo, é, na maioria das vezes, em terceira
pessoa, ainda que tente confundir o leitor, usando também a primeira pessoa:
É preciso enfrentar as coisas tais como elas são; é preciso desarmar-se, ele
sonhava. Não fugir do peso medonho do instante presente. A filosofia inteira do
século se debruça sobre esse instante vazio, ele relembra. O problema é que as
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coisas – o filho agora, e toda a interminável e asfixiante soma dos pequenos fatos
cotidianos que ele acumulou a vida inteira com a sensação de que criava e nutria
uma personalidade própria – as coisas não são nada em si. O mundo não fala.
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Sou eu que dou a ele a minha palavra; sou eu que digo o que as coisas são
(TEZZA, 2011, p. 35-36, grifo nosso)
E é uma criança – como todo recém-nascido – feia. É difícil imaginar que daquela
coisa mal-amassada surja como que por encanto algum ser humano, só pela força
do tempo. E no caso dele, ele pensa – e quando pensa acende outro cigarro -, a
troco de nada. Para dizer as coisas claramente, ele conclui todos os dias: essa
criança não lhe dará nada em troca. [...] Se eu escrever um livro sobre ele, ou
para ele, o pai pensa, ele jamais conseguirá lê-lo (TEZZA, 2011, p. 64-65).
A rotina é uma máquina extraordinária de estabilidade e a condição básica de
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um presente perpétuo irredimível, como num verso de Eliot, mas sem o seu
charme; o tempo é um “em si” não angustiante, o espaço imediato em que o
Há, nos excertos acima, as duas posições assumidas pelo pai. Em termos de
construção formal, são dispostos na obra de modo a que o leitor perceba o amadurecimento
paterno em relação à síndrome de Felipe. Não há pieguice, quando se trata de abordar a
síndrome de Down, mas sim uma honestidade de sentimentos, exemplificada no primeiro
trecho. No segundo, percebe-se a aceitação da condição do filho, resultado da convivência
consolidada e do reconhecimento das vicissitudes dos relacionamentos parentais, sujeitos a
tristezas e a alegrias cotidianas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se viu, a representação contemporânea dos meandros da memória leva em
conta a extensa tradição de colocar-se um narrador a evocar o seu passado e dirigir sua
narrativa a um interlocutor ou leitor de quem espera atenção, compreensão e, em alguns casos,
indulgência. Em escritores atentos a essa tradição e ao acúmulo de conhecimento relativo ao
processo de formação e consolidação das memórias, a trama possível dessa temática tende à
fragmentação, à dúvida, à hesitação, diferentemente, por exemplo, dos narradores do século
XIX, para quem as recordações eram perfeita e linearmente representáveis.
Não é objetivo do narrador de O filho eterno conquistar o leitor pela piedade, mas
provocar sensações diferentes, como repulsa e aceitação, no decorrer da narrativa. Uma
história como a de Felipe é uma das diversas maneiras de a literatura abordar uma temática
difícil, interessante e, ao mesmo tempo, perigosa. Daí o papel do narrador e do seu ponto de
vista na obra, como aquele que direciona a interpretação da história. Para dar conta dessa
complexidade, Tezza criou um narrador sincero, aberto, disposto a permitir que a devassa em
sua consciência seja o derradeiro ato de sua reparação.
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Recebido em 31-03-2020
Aceito em 10-05-2020