Passagens Entre Fotografia e Cinema Na Arte Brasileira
Passagens Entre Fotografia e Cinema Na Arte Brasileira
Passagens Entre Fotografia e Cinema Na Arte Brasileira
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PASSAGENS
entre
fotografia
e cinema
na arte
brasileira
ANDR parente
colaborao
LUCAS Parente
INTRODUO
5
passagens n 1
DO QUASE-CINEMA PS-FOTOGRAFIA
12
passagens n 2
TRANSPARNCIAS E OPACIDADES DO CRISTAL DO TEMPO
36
passagens n 3
Do efeito-cinema foto-feitio
76
passagens n 4
Do CARTO POSTAL IMAGEM-CLICH
110
passagens n 5
a vertigem da imagem hbrida
148
NOTAS
188
BIBLIOGRAFIA
190
Antes dos anos 1970, havia uma forte dicotomia entre o cinema
e a fotografia de um lado, o movimento, o fluxo narrativo, o
presente, o consentimento dessa iluso do presente e de duplicao da vida; do outro, a imobilidade, o passado, a busca da
alucinao e da duplicao da morte , o que no impediu que
uma srie de artistas e cineastas do ps-guerra dissolvessem
esta clivagem em obras que, ao se aproximarem da imobilidade
fotogramtica, rompiam com a iluso do movimento e do fluxo
narrativo. PASSAGENS ENTRE FOTOGRAFIA E CINEMA NA ARTE
BRASILEIRA parte de uma problemtica discutida anteriormente
em um captulo de CINEMTICOS (PARENTE, 2013) onde penso o
agenciamento entre fotografia e cinema em filmes, vdeos e instalaes de artistas brasileiros.
Se em CINEMTICOS analiso a questo do ponto de vista do cinema
que se apropriava da fotografia, da sua fixidez, agora, inversamente,
discuto o surgimento de percursos de artistas que visaram expandir
o campo fotogrfico e questionar o carter indicial, esttico e bidimensional da fotografia clssica, emoldurada e exposta em paredes
de museus, segundo um padro esttico e expositivo que tem sua
gnese na histria da pintura burguesa do sculo XIX.
Realizao
Agradecimentos
10
Frederico Morais
curriculum vitae I e II
DO QUASE-CINEMA
PS-FOTOGRAFIA
Nessa dcada, o audiovisual poca muito empregado na propaganda institucional e na educao era, entre os novos meios tecnolgicos, um dos mais utilizados pelos artistas, ao lado da fotografia e do cinema em super-8. O audiovisual desempenhou um papel
jamais devidamente analisado na produo de alguns artistas nos
anos 70. Muito se falou das COSMOCOCAS (1973), de Hlio Oiticica e
Neville dAlmeida, por se tratar no apenas de um audiovisual, mas
de uma instalao, porm muito pouco sobre as experincias dos
outros artistas. Segundo Frederico Moraes, crtico e artista pioneiro
do audiovisual brasileiro, tratava-se de um veculo propcio
documentao das obsesses dos artistas e dos problemas do nosso
tempo, a exemplo do documentrio cinematogrco.
passagens n 1
De fato, esta viso de Frederico, pouco explorada pela crtica brasileira, est completamente sintonizada com todo o pensamento
do dispositivo do cinema, trazido tona pela crtica atual em suas
anlises do cinema experimental, da videoarte e do cinema expandido, cinema que encontrou refgio nos museus, galerias, espaos
alternativos e pblicos, s vezes ao ar livre, onde a hibridizao dos
meios, a apropriao de um dispositivo por outro, vem contribuindo para pensar outras formas de cinema. Como j dissemos, as
passagens entre imagens so uma tentativa de refletir sobre os
atravessamentos que da mobilidade para a imobilidade, de uma
velocidade outra, de um suporte a outro, de um espao a outro,
de uma escala outra produzem uma imensa mudana esttico-cultural do cinema, de sua imagem, de seu espectador, de seus
regimes de visibilidade, enunciabilidade e subjetividade.
16
18
Paulo Fogaa
Letcia Parente
bicho morto
EU ARMRIO DE MIM
Audiovisual, 1973
Audiovisual, 1976
20
Em primeiro lugar, MEDIDAS rene os principais conceitos e elementos do trabalho de Letcia: o corpo, o rosto, a transformao da
ao fsica, da presena, em ao cognitiva e, sobretudo, a problematizao dos modelos de produo de subjetividade. Em segundo
lugar, MEDIDAS utiliza os principais suportes e meios de expresso utilizados por Letcia ao longo de sua carreira: a fotografia, o
audiovisual, a xerox, o som e uma srie de dispositivos de medio
compondo uma instalao. Finalmente, MEDIDAS , a meu ver,
22
Letcia Parente
Letcia Parente
medidas - ESTAO A e D
medidas - os recordes
Dois anos depois, a artista realiza um vdeo com imagens fotogrficas de seu prprio corpo. As fotografias foram feitas por mim a seu
pedido e ampliadas primeiramente em formato 1824, para uma
exposio. Ocorre que a exposio no aconteceu, por uma razo
de que no me recordo. Letcia ento decide realizar um vdeo,
intitulado DE AFLICTIBUS ORA PRO NOBIS, no qual, eu filmava
cada fotografia isoladamente. Quando ela dizia Ora pro nobis, pro
nobis, eu fazia um fade-out no obturador da cmera de vdeo (Sony,
modelo Portapak). Ela ento trocava a fotografia e eu fazia um
fade-in. O vdeo mostra cerca de 25 fotografias. Eu perguntei a ela
porque no utilizar o audiovisual. Ela me explicou que o audiovisual j estava comeando a cair em desuso. E, de fato, o vdeo veio
substituir o audiovisual, e mais tarde o super-8. Entretanto, como
veremos mais adiante, embora a tecnologia do audiovisual tenha
desaparecido, pelo menos no Brasil, o uso de imagens em slide
show no desapareceu, como veremos nos trabalhos de Ana Vitria
Mussi, Solon Ribeiro, Marcio Boetner e Pedro Agilson.
Hlio Oiticica comeou timidamente com NEYROTIKA, o nico
de seus audiovisuais exposto nos anos de 1970, em primeiro lugar
na Expo-Projeo (1973), de curadoria de Aracy Amaral. Em
1973, realiza, com Neville dAlmeida, uma obra seminal do audiovisual mundial.
nas formas mais ESPETCULO-ESPECTADOR que continuam a permanecer virtualmente imutveis: a NEVILLE interessa gadunhar a
plasticidade sensorial do ambiente que quer como se fora artista
plstico (e o mais do que ningum!) INVENTAR: em MANGUE
BANGUE a cmera como uma luva sensorial pra tocar-cheirar-circular: explodir portanto em fragmentos-SLIDES pretexto-consequncia pra PERFORMANCE-AMBIENTE: EU-NEVILLE no criamos
em conjunto, mas incorporamo-nos mutuamente de modo q o
sentido da autoria to ultrapassado quanto o do plgio: JOGOJOY: nasceu de blague de cafungar p na capa do disco de ZAPPA
WEASELS RIPPED MY FLESH: quem quer a sobrancelha ? e a boca ?:
sfuuum! : p-SNOW: pardia das artes plsticas: pardia do cinema
(OITICICA, 2005).
28
30
de cincia e cinema de poesia), as COSMOCOCAS e outras instalaes de quase-cinema (que no necessariamente se utilizam de projetores de slides, como BANG, de Ana Vitria Mussi) se desatrelam
do carter textual terico-narrativo do cinema-ensaio para construir
um dispositivo que lana as imagens no mundo de forma violenta,
ainda mais dispersa como uma bomba que explode a sucessividade do audiovisual , numa tentativa de realizar uma fuso radical
entre arte e vida, por um lado. So obras que parecem possuir um
aspecto mais livre (e ldico) e mais abstrato (formal) ao mesmo
tempo. Rompem com uma iluso para nos envolver em outra.
32
p.
32 e 34-35
36
TRANsPARNCIAS E OPACIDADES
DO CRISTAL DO TEMPO
Antonio Fatorelli, em seu livro sobre A fotografia contempo2013), utilizou o termo forma cinema para,
a partir dele, se perguntar se a histria da fotografia no teria sido
marcada, ela tambm, por um modelo hegemnico, uma forma fotografia, caracterizado pelo estatuto da imagem direta e instantnea (Ibidem, p. 22-23), que nos levaria a deixar de fora ou a excluir
tudo o que extravasa as noes historicamente estabelecidas pela
fotografia dominante e que nos dificultaria o acesso s formas contemporneas de fotografia expandida.
rnea (FATORELLI,
passagens n 2
40
Essila Paraso
Exposico fotogrfica
42
Essila Paraso
Essila Paraso
Exposico fotogrfica
Exposico fotogrfica
fade-out para o preto. Lembramos que o fade-out um procedimento cinematogrfico que faz com que a imagem desaparea,
deixando em seu lugar uma no imagem, um quase-branco que
sempre contm algo, uma imagem de todos os movimentos vividos
naquele espao ao mesmo tempo.
H aqui uma superao do ndice (da analogia por contato) atravs
de um aprofundamento na prpria imagem. Algo similar se d no
filme Loeil qui ment (1992), de Raoul Ruiz, em que um pintor
se utiliza de uma substncia pictrica extrada de cadveres para
pintar seus quadros. Surgem ento novos seres que, por um lado,
condensam a memria de vidas passadas (so puro ndice) e, por
outro, j no remetem a ser algum, pois possuem vida prpria
tornaram-se independentes (so puro simulacro). Da mesma
forma, no conto Les suaires de Veronique (sobre os encontros de
fotografia de Arles, na Frana), Michel Tournier narra a histria
de uma amiga, Vernica, que possui um modelo chamado Heitor,
fazendo da pele dele uma fotografia. Como diz Tournier: elle reussit
a avoir sa peau!. Vernica o faz por imerso, imergindo Heitor em
banhos qumicos e depois pondo-o em contato com o papel. Nestes
contatos, a pele dele vira a prpria imagem e ele desaparece,
deixando em seu lugar uma imagem indicial pura, que elimina
a distncia entre a fotografia e o mundo.1
Essila Paraso desenvolveu uma srie de exposies que guardam
similaridade com o trabalho posteriormente desenvolvido por
Rosngela Renn, em pelo menos dois sentidos. A questo da
relao da imagem com a memria e o arquivo, em primeiro
lugar, e da relao da imagem com o apagamento e o esquecimento, em segundo. Este tipo de situao nos remete a outro livro de
fico cientfica, Nocilla dream, do escritor espanhol Agustn
Fernandez Mallo. Em Nocilla dream, o deserto descrito como
um espao que surge da sedimentao de inmeras fotografias
de rostos annimos (segundo a fico de Mallo, o coiote ajuda na
decomposio devorando as fotos, por isso tem olhos de prata).
A partir de um excesso de acontecimentos, de pegadas e sedimentaes, surge um espao sem histria nem identidade, espao de
revelao e desaparecimento, onde entramos em contato com o
ideal do tempo absoluto.
Essila realizou exposies/instalaes nas quais eram apresentadas
fotografias de monumentos da cidade do Rio de Janeiro. As imagens
fotogrficas eram ampliadas em estdios, mas a artista pedia ao
estdio para utilizar um processo de fixao que fizesse com que as
imagens desaparecessem ao longo de horas ou dias, ou em funo
46
Desde o incio da dcada de 1970, Ana Vitria se dedica experimentao com a imagem fotogrfica. Seus trabalhos vo muito
alm da fotografia impressa em papel. A artista utiliza todo tipo
de suporte para fazer seus trabalhos, alm do projetor de slides
e do projetor de vdeo. Algumas vezes, a fotografia ganha tridimensionalidade. O corpo, o esporte (o futebol, o boxe, a ginstica olmpica, a natao, a esgrima, entre outros), a guerra e as
mquinas de viso (a cmera de fotografia, a cmera de cinema, o
binculo) so alguns de seus temas prediletos. Sua fotografia cria
atravessamentos com os mais diversos meios, como o cinema, a
televiso, o jornal e a gravura. Tendo sido aluna de Ivan Serpa, Ana
Vitria desenvolveu uma sensibilidade especial para as questes
ligadas a luz e sombra, bem como a transparncia e opacidade de
suas imagens.
Ana Vitria Mussi que, juntamente com Sonia Andrade, integrava o grupo de pioneiros da videoarte uma das artistas
que mais contriburam para transformar a fotografia em algo
mais do que uma superfcie bidimensional ampliada em papel e
exposta na moldura e afixada parede. Na verdade, a produo
e a pesquisa de Ana Vitria, desde os anos de 1970, criaram
50
vertigem
MERGULHO NA IMAGEM
52
boxe na tv
boxe na tv
bang
Fotografia, 1975
Vdeo-instalao, 2013
Ana Vitria Mussi, nos acorda com a delicadeza das imagens que
flutuam no presente de um passado que no passa nunca, porque
as imagens so mais que arquivos: so percepes incrustadas em
nossos corpos, como a guerra e o cinema. E o tempo bergsoniano porque aqui o passado contemporneo do presente que ele
foi. Nos termos colocados por Gilles Deleuze, a durao uma
memria, porque ela prolonga o passado no presente (CESAR,
2013, p. 23).
so fotografadas em preto e branco, da tela da televiso, procedimento j utilizado por Ana Vitria em outros projetos, como na
srie BOXE NA TV (1975). Esta aparente uniformidade, acentuada
pela montagem e pelo tema comum da guerra, nos induz a criar
nexos narrativos entre as imagens, quando na verdade no h propriamente uma narrativa, mas um conjunto de imagens que, pela
temtica e montagem, criam a sensao de narratividade.
A instalao se divide em pelo menos quatro momentos distintos.
Adolfo Montejo Navas descreve muito bem a orquestrao rtmica
de BANG: nas coordenadas espao-temporais de BANG podem ser
vislumbradas diferentes combinaes de imagens e uma pauta
medida, rigorosa. Assim, primeiro existe um ritmo compassado,
regular (um andante com inmeras imagens indagando sobre a
funo do olhar), depois uma passagem levemente mais rpida
(onde o olhar tambm se orienta e se tensa para o cu), at a ponte
da legenda enigmtica de Nem uma gaivota... que funciona como
pausa, verdadeira diviso de guas da obra (pois at este momento
muda a apresentao e agora comear a se escutar a cano de
Nancy Sinatra); logo vir uma nova fase regular de imagens mas
com certa vivacidade (atletas saltando junto a avies caindo), para
chegar fase que representa o ponto lgido, o molto vivace das
imagens disparadas ao mesmo tempo (com a maior associao de
cenas violentas), para fechar com uma nova e normal pulsao
de imagens at o final, outro andante (CESAR, 2013, p. 78).
cria uma pedagogia da violncia. Esta pedagogia tem duas
faces: por um lado, est claro, como diz Marisa Flrido, que o que
importa no fotografar a guerra, mas seus modos de visibilidade e espetacularizao: o que relaciona a imagem violncia e a
violncia imagem, o que torna indistinto o homo videns do homo
belicus (CESAR, 2013, p. 8).
BANG
60
No entanto, h em BANG um desejo de desejo, um desejo em suspenso, difcil de explicar seno fazendo um paralelo com o filme
ASAS DO DESEJO (Wim Wenders, 1987), um filme que promove o
encontro areo, impossvel, entre o Anjo e a Trapezista ele sem
presente e ela sem futuro. Em uma arte que cada vez mais uma
imagem sem presente, ou melhor, de um presente que se tornou
um curto-circuito entre um passado e um futuro anteriores, BANG
nos traz de volta um tempo no reconciliado, o da violncia exorcizada pela imagem que a criou, numa viso que no deixa de ser
extica, pois entramos neste mundo estranho como se nunca
tivssemos sado dele.
Como disse mais acima, as fotografias de Essila Paraso e Ana
Vitria Mussi, bem como as fotografias de Sonia Andrade, no
so fotografias de um instante decisivo, de algo que elas gostariam
de fixar para sempre. Muito pelo contrrio, suas fotografias nada
mais so do que acontecimento; no se deixam fixar em um aqui e
agora. Ao contrrio, elas deixam agir a cumplicidade entre o objeto
fotogrfico e o tempo, como se encontrassem a correspondncia
secreta, e propriamente potica, entre uma materialidade, uma
forma de fenomenologia selvagem das imagens, e algo que est
fora da linguagem, algo que no passa pela metafsica do sentido.
Este algo a imagem-cristal, ao mesmo tempo ela mesma e outra,
pura diferena na repetio.
Depois de denunciar a imagem como parte de um circuito ideolgico, de explorar as poses do corpo para atingir o impensvel,
de recorrer s oposies entre imagens atuais e virtuais para nos
dar uma imagem direta do tempo, de mostrar que as artes do
espao tambm podem transformar-se nas artes do tempo, Sonia
promete-nos uma imagem que incide diretamente sobre o cristal
como uma forma de solucionar o mais velho mistrio da pedra
especular, matria-tempo (pedra filosofal). De fato, em sua nova
srie de instalaes IT WERE BUT MADNESS NOW TIMPART THE SKILL
OF SPECULAR STONE [Seria loucura agora partilhar a matria da
pedra especular], Sonia apresenta-nos imagens-cristais, literalmente: so projees de imagens sobre telas cuja matria mesma so
pedras e cristais de rocha.
Sonia E A IMAGEM-CRISTAL
62
64
Sonia Andrade
Sonia Andrade
Vdeo-instalao, 1999
Vdeo-instalao, 1999
66
Sonia Andrade
goe, and catche a falling starre - noturno
Instalao, 1998
68
72
Sonia Andrade
Sonia Andrade
74-D
74
Dirceu Maus tem pelo menos trs sries distintas realizadas com fotografias pinhole.3 Na primeira srie, intitulada VER-O-PESO PELO FURO
DA AGULHA (2004), ele criou, ao longo de um ano durante o qual
Do efeito-cinema
foto-feitio
passagens n 3
Dividiremos este captulo em trs sries de trabalho. Esta tripartio se refere a diferentes formas principais de alcanar tal
efeito-cinema: seja atravs de uma maneira especial de capturar as
imagens (os stop motions de pinhole feitos por Dirceu Maus), atravs
da criao de um mecanismo de projeo (os dispositivos criados
por Frederico Dalton) ou dos suportes nos quais as imagens so
projetadas (as bolhas de sabo de Feco Hamburger e a fumaa de
Rosngela Renn).
80
Dirceu Maus
feito poeira ao vento
Vdeo, 2006
Dirceu Maus
em um lugar qualquer
Instalao, 2011
84
Dirceu Maus
cmeras Pinhole
p.
84 e 85
Dirceu Maus
extremo horizonte
88
Segundo o prprio artista Frederico Dalton, o termo protocinema designa projees com mecanismos para alternar ou fundir
as imagens e que produzem uma animao. (DALTON, 2008, p.
52) Estes mecanismos ou dispositivos criados por Dalton em suas
instalaes fotocinematogrficas, so mecanismos que em geral
interferem sobre as imagens projetadas por projetores de slides.
90
Frederico Dalton
menina da base instvel
Frederico Dalton
Frederico Dalton
mergulho em formao
94
Frederico Dalton
fotomecanismos
As ps da Hlice de mozinhas
(1999) so acopladas ao eixo
destinado ao rolo do filme em
um projetor Super-8. Elas alternam rapidamente duas imagens
diferentes, o que proporciona
a sensao de animao.
96
criando assim a Publicidade Absoluta. Um lampascpio integrado ao dispositivo permitiria a projeo de fotografias gigantes
no cu, o que ajudaria na divulgao de fotografias de fugitivos
perseguidos pela polcia. Finalmente, Villiers de LIsle-Adam trata
do uso do dispositivo pela propaganda poltica e fala que com uma
roda seria possvel alternar fotografias, produzindo uma pequena
animao (de forma que um homem poltico poderia aparecer
entre duas constelaes piscando um olho ou passando de uma
expresso grave a um sorriso). Villiers de LIsle-Adam escreve com
sarcasmo, criticando as novas tecnologias e o fervor pelo progresso no sculo XIX. Mas, ao criar tais pardias, se aproximava da
ubiquidade que seria, no sculo XX, almejada pelo cinema, pela
televiso e finalmente pela internet.
Fazer uma projeo sem tela (sem corpo slido) seria como realizar
algo que est para alm (ou aqum) de uma imagem. Mas, se
Villiers de LIsle-Adam trata da imagem que atinge o lado de fora
(uma imagem que se direciona para as estrelas), no trabalho de
Feco Hamburger ns nos deparamos com a imagem que surge (e
nunca termina de surgir no se fixa) do lado de dentro. Estamos
dentro da cmera ou do crebro como um neutrino que acaba
de atravessar um corpo. Para o neutrino, todo slido imaterial
e impalpvel, atravessvel. Tornados neutrinos, reduzidos de
tamanho, vemos a imagem surgir na pelcula de sabo como quem
v um reflexo de luz na lente da cmera, ou uma lembrana vaga
que brota no interior mesmo do crebro.
100
Frederico Dalton
Feco Hamburger
alongamento
neutrino
Instalao, 2009
quando comenta que No fundo, o amador que volta para casa com
inmeras fotografias no mais srio que o caador, regressando
do campo com massas de animais abatidos. Girado um disco mudo
de Rosngela Renn produzir uma espcie de silncio e opacidade
dolorida (HERKENHOFF, 1994, p. 137).
Em A EXPERIENCIA CINEMA (2004), Renn aprofunda as experincias de relao entre a fotografia e o cinema. Em uma sala escura,
vemos uma srie de imagens fantasmagricas projetadas numa
tela formada por uma cortina de fumaa. Como no trabalho de
Feco Hamburger, a projeo sobre uma matria quase-imaterial,
vaporizada ou lquida, produz uma imagem que nunca termina
de se formar.
102
trabalho de Rosngela Renn, em oposio demonstrao geomtrica de McCall, temos uma dissecao de fantasmas sem contorno.
A experincia foi realizada no proscnio de um teatro em runas
(o Teatro Dulcina, na Cinelndia do Rio de Janeiro), o que conferia
um aspecto aterrorizante e espetacular obra, semelhante ao das
fantasmagorias de Robertson, encenadas no perodo do Terror da
Revoluo Francesa numa capela abandonada do antigo Convento
dos Capuchinhos em Paris. Fantasmagoria um termo que foi
inventado no final do sculo XVIII por tienne-Gaspard Robert (que
mudou seu nome para Robertson) para designar uma forma de
espetculo que fazia aparecer espectros ou fantasmas por meio de
iluses de tica. Possui trs verses etimolgicas, a partir da soma
da palavra fantasma com a palavra agoreuein, falar em pblico
(arte de fazer falar o fantasma em pblico), ou fantasma com a
palavra gora (arte de produzir uma assembleia de fantasmas)
ou finalmente fantasma com alegoria (arte de produzir alegorias com fantasmas).
A mquina de Robertson baseava-se numa srie de aperfeioamentos da lanterna mgica inveno de Atansio Kircher documentada em seu ARS MAGNA LUCIS ET UMBRAE, livro de 1646 que
possibilitavam a iluso do movimento. Tais aperfeioamentos
foram realizados, documentados e difundidos por uma srie de
estudiosos no final do sculo XVII e durante todo o sculo XVIII.
A mquina de Robertson, seu fantascpio, basicamente o
resultado de uma condensao de vrias experincias de iluso
de ptica, consistindo essencialmente em montar uma lanterna
mgica sobre trilhos, o que possibilitava a produo de figuras de
tamanho varivel, dando a iluso de que se aproximavam ou se
distanciavam dos espectadores. Alm disso, ele podia colocar uma
pessoa dentro de uma lanterna mgica fortemente iluminada e
assim criar uma imagem de uma personagem em movimento que
aumentava de tamanho dentro de um cenrio. Robertson projetava estas figuras em fumaa. Podemos imaginar o assombro que
tais projees causaram na poca do Terror na Frana. Robertson
chegou a projetar o fantasma de Robespierre saindo de seu tmulo
antes de se debater no cho, golpeado por um raio (MAX MILNER,
1982, primeiro captulo).
Segundo Max Milner, em seu livro LA FANTASMAGORIE, existiria
uma relao entre os aparelhos pticos que produziam efeitos de
aparies e uma mudana de regime da imaginao fantstica,
ligada ao surgimento da concepo romntica da viso enquanto
fenmeno que une o exterior ao interior, sem mais podermos
104
Rosangela Renn
Experincia cinema
Instalao, 2004
Podemos aproximar essa dimenso projetiva da imagem romntica da EXPERINCIA CINEMA de Rosngela Renn. Segundo
Antnio Fatorelli, o modo de percepo, sucessivo e intermitente,
deste conjunto de imagens performatiza o modo de existncia
das imagens mentais, tambm elas intermitentes e instveis.
A experincia de cinema se realiza, neste caso, pela apreenso
dos fotogramas individuais, implicando ativamente o espectador,
o seu repertrio de imagens e a prpria dinmica operativa das
imagens mentais.
No entanto, para alm de imagens mentais, no seriam tais
fantasmagorias como o que Chris Marker chama de no imagens?
Em SANS SOLEIL (1982), o personagem fictcio japons Hayao (alter
ego de Chris Marker) inventa um sintetizador de imagens capaz
de liquefazer as imagens de arquivo inseridas nele. De repente,
imagens de guerra solarizadas se liquefazem como se dissolvidas
por calor virtual. Trata-se de uma forma de deteriorar imagens
digitalmente. Como Bill Morrison, que lana fungos na pelcula
flmica, Marker tenta lanar fungos no vdeo. Juntos, Marker
e Hayao alteram as imagens como se se tratassem de rudos.
Segundo eles, filhos da Segunda Guerra Mundial, apenas atravs
desta desfigurao poderamos acessar o horror, o irrepresentvel, encarando os acontecimentos traumticos da histria de
108
p.
107-109
Rosangela Renn
Experincia cinema
Instalao, 1989
110
Do CARTO POSTAL
IMAGEM-CLICH 1
passagens n 4
Assim, o grande desafio daquele que produz imagens justamente saber em que sentido possvel extrair imagens dos clichs,
imagens que nos deem razo de acreditar neste mundo em que
vivemos. De fato, ns vivemos no mundo como num sonho, como
se os acontecimentos no nos concernissem. Se tudo nos parece
fico, se ns temos dificuldades em viver a histria, porque tudo
parece j ter sido preestabelecido, tornando toda criao uma recreao interativa cnicomunicacional. Assim, tudo parece em seu
lugar, estvel e fixo. Ora, as verdadeiras imagens e acontecimentos
se fazem entre os conjuntos e fronteiras preestabelecidos, entre
o campo e a cidade, entre os pais e os filhos, entre o trabalho e o
amor, entre o amor e a amizade, entre a vida e a morte, entre as
culturas, entre os campos do saber, entre os clichs do que j nasce
velho (repetio do mesmo) e as imagens do ainda novo (eterno
retorno), entre a impossibilidade de ficar e a impossibilidade de
partir. Entre a imagem-clich (o carto-postal dj-vu) e a imagem-virtual (jamais vu).
SOLON RIBEIRO OU A VIOLENTAO DAS IMAGENS-CLICHS
Nos anos 1990, o artista Solon Ribeiro herdou de seu pai uma
imensa coleo de mais de trinta mil fotogramas retirados de
filmes. A coleo foi iniciada nos anos 50 por seu av, Ubaldo
Uberaba Solon, dono de uma sala de cinema no Crato (na regio
do Cariri, sul do Cear). Os fotogramas, em geral mostrando
protagonistas de filmes clssicos de Hollywood, eram cuidadosamente guardados em lbuns feitos especialmente para este fim,
contendo o nome e o ano de cada filme, bem como uma legenda
com os nomes dos atores. Uma parte da coleo se encontra fora
dos lbuns, tendo sido guardada de forma imprecisa, complicando
a catalogao por ser difcil saber exatamente de que filme cada
imagem teria sido extrada.
Solon Ribeiro trabalha com fotografia desde os anos 70. Como
muitos artistas contemporneos, seu trabalho se volta para a
problematizao das imagens-clichs, tendo em vista o fenmeno
contemporneo, j ecolgico, da saturao de imagens. Com a
herana dos fotogramas, d-se uma espcie de reencontro no
caminho traado por Solon: encontro entre o percurso questionador do artista e suas primeiras experincias em salas de cinema.
Com a volta de fantasmas hollywoodianos, seu trabalho sofre uma
114
p.
113 e 115-117
Solon Ribeiro
o golpe do corte
colonizador transforma tudo e todos em objeto de consumo (principalmente atravs da colonizao do imaginrio),2 devolver o
olhar (como um escravo suicida que deixa de olhar para o cho e
passa a olhar na cara do senhor) seria a principal forma de reverter
essa relao de poder. Os desenhos de cocana nas capas de revista
e nos LPs americanos, as projees de filmes clssicos sobre carnes
de abatedouro, a troca de tiros entre um macaco e um cego em
BANG BANG, trata-se sempre de uma esttica que destripa e disseca
as imagens-clichs, imagens estas que parecem passar por verdadeiro um suplcio, ou sacrifcio. neste sentido que Solon aparece
com uma mscara de bandido manchada de sangue no abatedouro,
o que nos remete tanto ao faroeste norte-americano quanto ao
BANDIDO DA LUZ VERMELHA de Rogrio Sganzerla.
Solon encara estas imagens-lembranas (o imaginrio colonizado)
no como algo a ser rememorado de forma lvida em busca de
uma inocncia passada, mas, pelo contrrio, como um pesadelo
que deve ser combatido. Em vez de ater-se ao crculo mgico da
memria afetiva, fundindo memria pessoal e memria coletiva,
como Walter Benjamin em DESEMPACOTANDO MINHA BIBLIOTECA,
Solon prefere, como ele mesmo diz, a consagrao da perda
da aura para, atravs de uma violncia visceral e iconoclasta, fazer-se veculo (operador mais do que autor-criador) de
uma reencarnao aterrorizante da imagem (BENJAMIN, 2004).
As imagens aqui dizem, como o monstro criado por Victor
Frankenstein: eu poderia ter sido o seu Ado, mas tornei o seu
anjo cado. curioso, neste sentido, pensar que o monstro de
Frankenstein teria sido criado a partir de corpos de cadveres
diferentes e ganhado vida a partir de um choque eltrico, assim
como os monstros de Solon Ribeiro e Peter Tscherkassky.
Solon desmonta as relaes que o arquivista e o colecionador,
cada qual sua maneira, estabelecem com o passado. Ao invs de
tornar-se zelador do arquivo ainda que todos os arquivistas e colecionadores possuam uma violncia velada inevitvel com relao
ao material acumulado , Solon prefere dizer-se descolecionador
ou deslocador, ressignificando e profanando o sagrado no caso,
o arquivo de seu pai. Solon banha a memria no esquecimento,
transformando cada lembrana em um efeito. Da o ttulo da
ltima obra da srie: PERDEU A MEMRIA E MATOU O CINEMA. Se
por um lado Solon libera as imagens, tornando-as mais espantosas,
pois desprovidas dos limites de um quadro narrativo prprio aos
filmes de origem, por outro ele no as insere numa nova narrativa (que seria a do arquivo ou coleo). Ao contrrio, ele destri
tanto o fluxo flmico quanto a espacializao das imagens tpica
116
120
122
O Estado hoje se confunde com uma rede de imagens que nos assujeita atravs de uma colonizao do imaginrio. Podemos dizer,
portanto, que so agora as imagens-clichs que nos dizem sou um
sujeito, um modelo, e voc, ser humano, que a cpia. Assim,
o trabalho visceral de Solon Ribeiro talvez um dos maiores
exemplos do esforo de uma srie de artistas contemporneos de
extrair uma nova vitalidade a partir de uma confrontao direta
com a assujeitao almejada pelo Estado das imagens-clichs no
caso, as imagens de Hollywood. Mas, para isso, como diz Marker,
devemos aprender a conviver com o horror, extra-lo dos clichs
para evidenciar a guerra das imagens.
Dissemos que o simulacro mais e menos do que uma cpia e
a no imagem de Chris Marker mais e menos que uma imagem.
Falamos tambm do quase-cinema tanto de Hlio Oiticica e Neville
dAlmeida quanto de Solon Ribeiro. Poderamos falar agora desse
aqum e alm fotogrfico do cinema enquanto quasidade. Algo que
busca dar uma nova vida s imagens (destacando-as dos clichs),
mas que para tal necessita fazer uso de um efeito (de um fato artificial que parece emanar do mundo dos mortos), de uma quasidade
que viria substituir a quantidade e a qualidade. Assim, as imagens
de Solon, mas tambm as do efeito cinema (imagens-feitio) de
Rosngela Renn extrapolam qualquer mtrica (grau) e qualidade (natureza), ultrapassando os limites do real para tocar nestas
alteridades-esprito, nesta quasidade to perigosa porque anunciadora de novos regimes de poder.
124
Em um mundo onde as novas tecnologias, a biologia e a engenharia gentica, a nanotecnologia esto sendo apropriadas em todos
os campos da vida, da indstria, do mercado e da cultura, no
vemos mais nenhuma razo para se falar de um campo especfico da arte chamado de arte tecnolgica. Todas as tecnologias,
no apenas as de hoje, mas tambm as de ontem, esto a servio
dos artistas sem, com isto, determinar suas tendncias. A meu
ver, o conceito e a poeticidade de um trabalho independem do
meio empregado, ao contrrio do que pensam aqueles uma boa
parcela dos tericos da arte e tecnologia que endossam a ideia de
Marshall McLuhan de que o meio a mensagem, embora muitas
vezes no percebam que o fazem.
Gostaria de comear este captulo analisando um trabalho de Sonia
Andrade, uma das pioneiras da arte e tecnologia no Brasil, para
mostrar que seu trabalho, embora seja muito atual do ponto de
p.
123-127
Sonia Andrade
multimeios
Instalao, 1977
Sonia Andrade
multimeios - Os habitantes
Instalao, 1977
130
132
Andr Sheik
Andr Parente
Rock'n'roll
belvedere,
Vdeo, 2005
136
Andr Parente
belvedere,
138
140
Antonio Manuel
loucura e cultura
141
Antonio Manuel
semitica
senso comum, ultrapassada. Ao contrrio do que se pensa, o aparecimento da fotografia no campo da produo imagtica ajudou a
romper com essa ideia. Com a fotografia, o equilbrio da separao
dos setores entre natureza e cultura foi abalado, na medida em
que ela ao mesmo tempo natureza e cultura, objetiva e investida
(linguagem, discurso).
A fotografia transformou definitivamente a relao imagempalavra: como inveno, ela obriga a repensar o estatuto da arte
Benjamin, por exemplo, mostrou que no havia nenhum sentido
se perguntar se a fotografia e o cinema so artes, na medida em
que seu aparecimento transformou o conceito e o estatuto da arte
; como prtica especfica da comunicao social, ela transforma
inteiramente o texto que a acompanha em um sistema adventcio
que vem sublimar, patetizar ou racionalizar a imagem.
O fato que a imprensa ilustrada, os livros de histria em quadrinhos, os livros de arte e o audiovisual tornaram a relao imagem-palavra um espao de relaes inditas e desconhecidas. verdade
que, desde Plato, a palavra jogou como que um vu negro sobre o
sensvel, na medida em que este era tematizado como um menos-ser. Mas com Henri Bergson e Edmond Husserl, e posteriormente
com Maurice Merleau-Ponty e Jean-Franois Lyotard, h uma tentativa de apreender um sentido prprio do visvel, uma tentativa de
se interrogar sobre a possibilidade de um discurso falar do sensvel
sem anular sua alteridade. O sensvel no est de fato fora da linguagem, mas dentro dela. A linguagem no um meio homogneo,
ela fracionada porque exterioriza o sensvel em presena, objeto,
mas tambm porque integra o icnico no articulado. O olho est
na palavra, j que no h mais linguagem articulada sem exteriorizao de um visvel. Por outro lado, ele ainda est na palavra
porque existe exterioridade ao menos gestual, visvel, no interior
do discurso que sua expresso.
COMENDO PAISAGENS (LIA CHAIA, 2005)
142
144
146
Lia Chaia
comendo paisagens
Vdeo, 2005
Vdeo, 2004
a vertigem da
imagem hbrida
passagens n 5
comea sua leitura. Mas eis que ele sente emanar das vibraes da
rvore algo que lhe toca profundamente, como se seu corpo fosse
tratado pela primeira vez como uma alma. Esta sensao cresce no
homem a ponto de ele interromper a leitura para meditar sobre o
que se passa. Depois de pensar sobre o encantamento que a troca
com a arvorezinha lhe proporcionou, ele conclui: eu fui conduzido ao outro lado da natureza. Esta constatao, vinda de Rilke,
nos parece perfeita para exprimir a sensao causada em ns pela
paisagem, pela rvore e pelo arvorar de Katia Maciel (BACHELARD,
1988, p. 205 a 207).
PISTA (2015) um desses devaneios da artista. A imagem
formada por vrias imagens de um tronco de rvore projetado
na horizontal. Vemos o tronco se mover, como se ele passasse da
esquerda para a direita. Usando uma tcnica parecida com INTIL
PAISAGEM, a artista fotografou o tronco de uma rvore e o colou
no After Effects, de forma a dar-lhe um movimento, como se ele
fosse infinito. Mais uma vez, a artista se apodera da imagem da
rvore e cria, com ela, um movimento. No mais uma respirao. A rvore sequer est na vertical. Ela foi horizontalizada. Ao
realizar este trabalho, Katia provavelmente ter se lembrado de
um imenso pinheiro filmado por Eija-Liisa Ahtila e projetado na
horizontal, numa dimenso quase real. A imagem que vi projetada
no MODENA, de Stockholm, durante uma retrospectiva da artista,
curada por Daniel Birnbaum, devia ter algo em torno de 15 metros
de largura. Ao p da rvore, vamos a prpria artista finlandesa,
isto , ao lado do tronco do gigantesco pinheiro. Eram necessrios
algo como 7 projetores colocados na horizontal cada um projetando uma parte do tronco. Entre uma imagem e outra, havia um
corte. A artista no se preocupou em dar a iluso de ser uma nica
projeo. No caso de Katia, temos a iluso de ser o mesmo tronco
que avana sem parar, como se a rvore fosse infinita. Em PISTA,
se Katia parece entender porque um ser exterior como a rvore
est procura de sua alma, porque ela deve estar procura da
sua. Como poeta que , ela sabe que a rvore se conecta s nossas
foras e potncias, que muitas vezes dela dependem para crescer:
eu, que quero crescer, olho para fora e a rvore cresce em mim
(BACHELARD, 1988, p. 205 a 207).
152
Katia Maciel
Katia Maciel
uma arvor
pista
Vdeo, 2010
Vdeo-instalao, 2015
154
156
Katia Maciel
Katia Maciel
intil paisagem
Vdeo, 2007
Vdeo, 2009
tamente em um travelling cinematogrfico. A imagem ganha movimento, mas o movimento no est dentro da imagem. O trabalho
opera, portanto, entre as linguagens da fotografia, do vdeo e dos
meios digitais. Vemos uma depois da outra as entradas e jardins
dos prdios gradeados de ponta a ponta justamente no bairro em
que a Bossa Nova foi inventada e onde provavelmente a msica
homnima de Tom Jobim teria sido feita, trinta anos depois. Ao
fim do movimento, a cmera virtual para e faz o movimento
contrrio, para a esquerda. O que vemos a iluso de que as grades
foram removidas, o que gera uma aparente sensao, ainda que
virtual, de liberdade. Mas uma liberdade que tem um preo, pois
a imagem ficou marcada pelas grades dela extradas.
Se observarmos com ateno a imagem, vemos que a autora no
se importou com os traos deixados pelo trabalho de extrao das
grades que por sinal nos fazem lembrar as pinturas quase hiperrealistas de David Hockney , que deixam seus rastros na carne
da realidade, ainda que de uma realidade virtual, pois a ausncia
de paralaxe marca a sensao de uma falta de movimentos na
relao entre os objetos verticalizados em profundidade. A sutileza
do trabalho de Katia consiste em chamar nossa ateno para o
contraste entre a beleza da paisagem da cidade do Rio de Janeiro e
os problemas sociais que a deformam, por uma espcie de falta de
sensibilidade. Se todos ouvissem INTIL PAISAGEM, quem poderia
ter a ideia de gradear a nossa paisagem? Neste trabalho, a criao
de uma fotografia em movimento a condio de possibilidade
para a colocao de uma pergunta: grade para qu, se a violncia
est na separao, na relao cindida entre o dentro e o fora? Desta
forma, de um sintoma da violncia, a grade se transmuta em uma
de suas causas, ainda que virtuais. A ausncia da paralaxe curiosamente s aumenta o contraste entre o nosso devaneio de liberdade
criado pela verticalidade das rvores e a ausncia de imaginao
dos homens de negcio que hoje habitam esses prdios da orla.
oportuno lembrar, como o faz to bem Guy Brett, que o
trabalho de Katia Maciel se conecta persistncia de um tema ou
ideia na arte brasileira: a noo de barreiras e divises permeveis. O DIVISOR de Lygia Pape, nos anos 60 um grande lenol de
algodo, com buracos equidistantes para passarem as cabeas ,
explorava o paradoxo do junto e separado como uma experincia
sensual e social. Preocupaes similares teve Cildo Meireles em
ATRAVS (1983-89), uma enorme instalao penetrvel feita de
diferentes tipos de barreiras que se podem encontrar dentro e fora
da cidade. E depois tambm Antonio Manuel com OCUPAES/
DESCOBRIMENTOS (2002) um ambiente participativo onde pessoas
158
primeiro lugar, a obra como uma foto que mantm em suspenso o instante decisivo. Em segundo lugar, uma imagem
em movimento que perpetua o movimento do instante decisivo.
Finalmente, MEIO CHEIO, MEIO VAZIO produz uma isomorfia entre
o contedo e a forma, porque o instante decisivo que ela capta
possui duas faces: uma atual (o copo est enchendo), outra virtual
(o copo permanece meio cheio, meio vazio).
AUTOBIOGRAFIA
160
162
164
Andr Parente
Andr Parente
Andr Parente
estereoscopia
trilhos urbanos
vel
Vdeo-instalao, 2006
Vdeo, 2015
166
Mosaico que soma eus e vocs e vice-versa: Eu quero ver o que voc
est vendo de mim do que eu estou vendo de voc dentro de mim.
Mantra do universo digital, em que a repetio o ritmo do que se
v. No jardim das delcias digitais, eu voc e voc sou eu, compartilhando uma profundidade virtual infinita, porm a nica que
interessa, pois no determinada tecnicamente, mas esteticamente.
168
170
O Visorama,1 um sistema original e completo de realidade aumentada, contm um software de visualizao baseado em imagens
fotogrficas panormicas, bem como de um aparelho especfico
que simula um binculo. um sistema imersivo, que, por um lado,
pertence linhagem dos panoramas arquitetnicos em particular
o Photorama, inventado pelos irmos Lumire e , por outro, um
sistema interativo, que remete a tcnicas de visualizao computacionais especficas, baseadas em fotografias panormicas virtuais.
O panorama, dispositivo arquitetnico patenteado em 1787 por
Robert Barker, o primeiro dispositivo imagtico de telepresena.
Os panoramas simulavam atravs de uma pintura de 360 graus,
contemplada a partir de uma plataforma central to perfeitamente a realidade representada que o espectador sentia a sensao
de se encontrar diante da prpria realidade. Os lemas criados pelos
panoramas eram similares aos dos simuladores mais sofistica-
172
p.
171-173 e 186-187
Andr Parente
figuras na paisagem
174
nos faz pensar em Jorge Luis Borges e a praia, ambiente tipicamente carioca.
O terceiro ambiente apenas uma estrutura de navegao envolvendo paisagens diversas, por meio da qual o espectador poder
visualizar as potencialidades do sistema do ponto de vista dos
deslocamentos espaciais e temporais.
176
FIGURAS NA PAISAGEM
Historicamente, as variaes nos dispositivos audiovisuais implicaram em variaes no regime espectatorial de cada poca, por vezes
acentuando a crena no realismo da mmese e da verossimilhana, inserindo o observador na imagem, por outras promovendo o
distanciamento, o estranhamento diante da representao. Hoje,
a hibridizao das imagens, potencializada pelas novas tecnologias,
vem colocando em questo nossa tradicional viso da realidade e
reinventando o papel do observador, mais uma vez, em decorrncia das relaes entre dispositivos e imagens.
Em um dilogo com a histria do cinema, FIGURAS NA PAISAGEM
cria as condies para uma experincia que ao mesmo tempo
retoma e reinventa outros dispositivos audiovisuais. Desde os primeiros panoramas fotogrficos aos primeiros cinemas, passando
pelo cinema clssico, pelos experimentalismos modernos e pela videoarte, o dispositivo e seu contedo (este muda a cada instalao,
qual um filme em uma sala de cinema) dialogam com as tecnologias e com os regimes de arte e de observao de cada poca. Ao
passo que retoma o funcionamento de um dispositivo conhecido
historicamente, em um jogo de aproximao e distanciamento,
FIGURAS NA PAISAGEM escapa dos modelos pr-definidos. Os modos
de apario e desapario das imagens, a fragilidade e a instabilidade da narrativa, sua apresentao como um fluxo e os diferentes papis destinados aos observadores reconfiguram o lugar das
imagens tcnicas na contemporaneidade (CARVALHO, 2010).
Logo de incio, a primeira imagem a ser observada a prpria
sala de exposio, silenciosa, vazia, imvel. O espectador tem a
impresso de estar a ver o espao real no qual se encontra, como
se estivesse utilizando um binculo de verdade.
SILENCIOSA,
178
Na srie REVERSOS (2009), Antonio Fatorelli faz uma srie de animaes de fotografias antigas retiradas do arquivo de imagens do
antigo Hospcio D. Pedro II, onde hoje o Palcio Universitrio da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, no campus Praia Vermelha.
A srie constituda por trs imagens: O AR AZUL DA ENSEADA DE
BOTAFOGO (2009), CORREDOR (2009), TRS MULHERES (2009) e VARAL
(2009). Em CORREDOR, o artista se apropria de uma fotografia da
dcada de 1940, de Erich Hess, para produzir um vdeo de 3 minutos
que nos mostra um processo de superexposio da imagem luz.
A princpio, tendemos a crer que a luz que penetra pelas arcadas,
no corredor, que aumenta e se intensifica. Depois percebemos que
a totalidade da imagem que superexposta at fazer desaparecer todos os seus elementos, como um fade-out para o branco, ao
passo que em TRS MULHERES temos o exato oposto, isto , uma
sombra que domina a fachada lateral do palcio cresce ao ponto de
dominar toda a cena, na qual se destacam trs mulheres, e produzir
um fade-out para o preto. Em O AR AZUL DA ENSEADA DE BOTAFOGO,
180
182
Antonio Fatorelli
Antonio Fatorelli
Cris Bierrenbach
corredor
trs mulheres
vcuo
Vdeo, 2009
184
186
Andr Parente
figuras na paisagem
188
PASSAGENS N2
1 Vemos aqui um exemplo da relao estreita entre a fotografia
expandida e uma mudana de regime, pois, como diz Josep Maria
Catal (CATAL, 2007, p. 94), quando uma condio tradicional
est se desvanecendo, a sua prpria estrutura se converte em uma
espcie de forma simblica. Desta maneira, curioso notar que,
justo quando entramos em um mundo de imagens eletrnicas,
so produzidas obras que exageram o aspecto indicial da imagem.
2 Ao escrever sobre BANG, utilizamos como referncia quatro
textos: o release da instalao escrito pela curadora Marisa Flrido
no folder da exposio; SHOT BY BANG. FOTOGRAFIA E IMAGEM EM
MOVIMENTO (2013), de Greice Cohn; ALVO E FUGOR (NOTAS PARA
BANG), de Adolfo Montejo Navas e BANG, de Katia Maciel. Estes
dois ltimos integram o catlogo ANA VITRIA MUSSI, organizado
por Marisa Flrido (Rio de Janeiro: Oi Futuro, 2013).
notas
PASSAGENS N3
PASSAGENS N4
1 O termo imagem-clich aqui definido em uma acepo
puramente cultural. Chamamos de imagem-clich uma imagem
banalizada, com a qual estamos to acostumados, que precisamos
fazer um esforo para v-la verdadeiramente.
O PENSAMENTO SELVAGEM.
O termo ingls pinhole (= buraco de alfinete), bastante difundido entre ns, foi cunhado pelo cientista e fotgrafo ingls David
Brewster, um dos pioneiros do uso de cmeras estenopeicas e da
fotografia estereoscpica, em seu livro THE STEREOSCOPE (1956).
A fotografia pinhole passou por quatro momentos distintos. Em
meados do sculo XIX, ela foi experimentada como uma curiosidade tcnica; no final do sculo XIX, foi valorizada pelos pictorialistas, sobretudo em funo do desfocado, que de certa forma tem
a ver com o efeito de sfumato (cf. termo de Da Vinci); nos anos 1950,
a indstria de brinquedos cria uma srie de kits de pinhole; de 1960
para c, a fotografia pinhole passa a fazer parte da experincia de
artistas em todo o mundo.
3
TEMPO
PASSAGENS N5
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